fernanda oliveira araujo

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE POLO UNIVERSITÁRIO DE RIO DAS OSTRAS - PURO SERVIÇO SOCIAL Fernanda Oliveira Araujo SOCIEDADE CIVIL E "TERCEIRO SETOR": CRÍTICA AO PADRÃO NEOLIBERAL DE ATENDIMENTO ÀS POLÍTICAS SOCIAIS NO BRASIL E SEUS REBATIMENTOS PARA O SERVIÇO SOCIAL Rio das Ostras 2013

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Fernanda Oliveira Araujo

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE POLO UNIVERSITRIO DE RIO DAS OSTRAS - PURO

    SERVIO SOCIAL

    Fernanda Oliveira Araujo

    SOCIEDADE CIVIL E "TERCEIRO SETOR": CRTICA AO PADRO NEOLIBERAL DE

    ATENDIMENTO S POLTICAS SOCIAIS NO BRASIL E SEUS REBATIMENTOS PARA O

    SERVIO SOCIAL

    Rio das Ostras 2013

  • FERNANDA OLIVEIRA ARAUJO

    SOCIEDADE CIVIL E "TERCEIRO SETOR": CRTICA AO PADRO NEOLIBERAL DE ATENDIMENTO S POLTICAS SOCIAIS NO BRASIL E SEUS

    REBATIMENTOS PARA O SERVIO SOCIAL

    Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao Curso de Graduao em Servio Social da Universidade Federal Fluminense Polo Universitrio de Rio das Ostras como requisito parcial para a obteno do Grau de Bacharel em Servio Social.

    ORIENTADOR: Prof. Dr. Ranieri Carli

    Rio das Ostras Maro de 2013

  • FERNANDA OLIVEIRA ARAUJO

    SOCIEDADE CIVIL E "TERCEIRO SETOR": CRTICA AO PADRO NEOLIBERAL DE ATENDIMENTO S POLTICAS SOCIAIS NO BRASIL E SEUS REBATIMENTOS

    PARA O SERVIO SOCIAL

    Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao Curso de Graduao em Servio Social da Universidade Federal Fluminense Polo Universitrio de Rio das Ostras como requisito parcial para a obteno do Grau de Bacharel em Servio Social.

    Aprovada em maro de 2013.

    BANCA EXAMINADORA

    __________________________________________________

    Prof. Dr. Ranieri Carli Orientador

    Universidade Federal Fluminense

    __________________________________________________

    Prof. Ms. Paula Martins Sirelli Examinadora

    Universidade Federal Fluminense

    __________________________________________________

    Prof. M. Bruno Ferreira Teixeira Examinador

    Universidade Federal Fluminense

    Rio das Ostras 2013

  • AGRADECIMENTOS

    Deus pela minha existncia.

    Aos meus amados pais, Jorge e Moema, pelo esforo e dedicao somados ao incentivo para que at aqui eu pudesse chegar.

    Aos meus irmos, Rodrigo e Juliana, pessoas to singulares em minha vida que fizeram parte desta trajetria.

    Aos meus sobrinhos, Gabriel, Gyovana e Maria Alice, sem os quais os risos em meio a tantas preocupaes no teriam graa.

    Ao Fabrcio, amado companheiro, sempre mostrando que em frente eu posso seguir.

    s amigas, companheiras do decorrer da vida acadmica que, desde o incio, pelas proveitosas discusses e pelas descontradas conversas, muito contriburam pata tornar prazerosa esta jornada.

    Ao professor Ranieri Carli, pela paciente e dedicada orientao.

    Aos meus professores que durante todo curso transmitiram seu conhecimento e contriburam para minha formao profissional.

    A todos que acreditaram que desta caminhada eu no ia me cansar.

  • RESUMO

    Este estudo tem por objetivo debater a sociedade civil na atual conjuntura do neoliberalismo, cujo conceito passou por uma reformao tornando-se um fenmeno ideolgico caracterizado como terceiro setor. Desta forma, a trajetria do capitalismo at a difuso do projeto neoliberal e esta conjuntura que permanece at os dias atuais, vem trazendo grandes modificaes no que diz respeito implementao de polticas sociais do mbito pblico, e a sociedade civil o que para alguns autores um terceiro setor fora do mbito do mercado e do Estado assume este papel em detrimento da responsabilidade do Estado em atuar nestas polticas garantido acesso aos direitos para a classe trabalhadora. Neste sentido, focalizamos em especfico o Projeto Pescar mantido pela empresa Companhia Brasileira de Offshore para exemplificar o que trazemos como caracterstica deste fenmeno. Realizamos uma pesquisa emprica com o profissional de Servio Social inserido neste campo, o qual aproximou o contexto teoricamente debatido realidade sob os limites e possibilidades atribudos categoria. Portanto, o estudo discutir a controvrsia entre os conceitos sociedade civil e terceiro setor, a sua relao com o Estado em tempos neoliberais e os rebatimentos para o Servio Social.

    Palavras-chave: Sociedade civil. Terceiro setor. Neoliberalismo. Estado.

  • ABSTRACT

    This study aims to discuss civil society in the current conjuncture of neoliberalism, whose concept has undergone a reformation becoming an ideological phenomenon characterized as "third sector". Thus, the trajectory of capitalism till the diffusion of the neoliberal project and this situation that remains until today, has brought major changes with regard to the implementation of social policies from the public scope, and civil society - which for some authors is a "third sector" outside the scope of the market and the State - this role takes over the responsibility of the State to act on these policies guaranteed access rights for the working class. In this sense, the focus on specific Fishing Project held by Companhia Brasileira de Offshore to exemplify what we bring as characteristic of this phenomenon. We conducted an empirical study with Social Work professional entered in this field, which approached the theoretical framework discussed in the reality under the limits and possibilities assigned to the category. Therefore, the study discusses the controversy between the concepts civil society and "third sector", its relationship with the State in neoliberal times and the repercussions for Social Service.

    Keywords: Civil society. "Third sector". Neoliberalism. State.

  • SUMRIO

    INTRODUO......................................................................................................................07

    1 SOCIEDADE CIVIL EM GRAMSCI...........................................................................09 1.1 Sociedade civil versus terceiro setor...............................................................................12 1.2 O que terceiro setor? Caractersticas sobre este fenmeno: traos superficiais e contraditrios............................................................................................................................16 1.2.1 Influncias atuais no campo do terceiro setor: A empresa-cidad ....................21 1.3 Terceiro setor: setor ou funo social?.....................................................................23

    2 A PRIVATIZAO DAS POLTICAS SOCIAIS NO PROJETO NEOLIBERAL DO BRASIL CONTEMPORNEO ...................................................................................25 2.1 A era do neoliberalismo .....................................................................................................25 2.2 Neoliberalismo brasileira ............................................................................................29 2.3 A poltica social: trajetria e contradies.........................................................................34 2.4 As polticas sociais no Brasil..............................................................................................38 2.5 Sociedade civil mal organizada: o que est por trs do chamado terceiro setor.............45 2.5.1 O crescimento do terceiro setor: marcos que o reafirmam ...................................47

    3 A CONFORMAO DO PROJETO NEOLIBERAL, SEUS REBATIMENTOS PARA O ASSISTENTE SOCIAL E A SOCIEDADE CIVIL.............................................51 3.1 O Servio Social brasileiro: historicamente condicionado s fases do capitalismo............51 3.2 Polticas sociais neoliberais, terceiro setor e a funcionalidade do Servio Social.......53 3.3 Insero do Servio Social em entidades da sociedade civil: aproximao com esta realidade....................................................................................................................................57

    CONSIDERAES FINAIS.................................................................................................69 BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................................71

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    INTRODUO

    O estudo que segue resultado dos questionamentos levantados durante o cumprimento do meu perodo de estgio curricular obrigatrio inserida no campo do terceiro setor o qual desempenhei em analisar as especificidades desta nova categoria de atendimentos s sequelas da questo social e, consequentemente, seus rebatimentos para o Servio Social. Atravs da aproximao com esta realidade no estgio, especialmente tratando-se de um projeto social mantido por uma empresa privada, a partir das discusses realizadas em aulas e aproximao com referenciais tericos que tratavam sobre o assunto, percebemos como o conhecimento crtico da realidade contempornea ou a falta desta pode influenciar a busca pela transformao social. O conceito do terceiro setor, como ideologia funcional e contraditria fruto do capitalismo inspirado pelo projeto neoliberal, sobrevive tentativa de cada vez mais tornar-se e mostrar-se efetivo para a implementao de polticas sociais, encobrindo o acesso aos direitos.

    Neste sentido, nos fez indispensvel entender como um assistente social inserido neste campo compreende e analisa esta nova modalidade que tida como uma rea de atuao, partindo do pressuposto de que essa categoria mantm, a partir da renovao do Servio Social, estreita relao com as polticas sociais pblicas e o compromisso com o projeto societrio e a tentativa de efetivao destes com base no Projeto tico-Poltico do Servio Social. Como tambm, um profissional que pode apoiar-se sobre uma base profissional sustentada por esta ideologia.

    Para tanto, realizamos entrevista com a assistente social que coordena um projeto social mantido por uma empresa privada em parceria com uma organizao no governamental. Desta forma, buscamos analisar como atualmente profissionais da categoria lidam com esta remodelada sociedade. Considerando que novos campos de atuao para o Servio Social podem surgir em virtude das mudanas ocorridas a partir da reestruturao do Estado, mas que a essncia da profisso no que diz respeito ao compromisso com as classes sociais no pode ser desconsiderada.

    Apoiamos em referenciais tericos de autores crticos que debatem sobre este processo atual de parcial desresponsabilizao social do Estado e transferncia para a sociedade civil de interesse privado em atuar com polticas sociais em funcionalidade com o projeto neoliberal como tambm abordamos autores que creditam ser este o caminho a seguir.

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    A fim de desvendar o que h por trs deste novo conceito hegemnico do terceiro setor e sua funcionalidade encoberta, contextualiz-lo historicamente e problematizar sua influncia para as polticas sociais pblicas e consequentemente, para o Servio Social distribumos nossas anlises em trs captulos.

    No primeiro captulo nos dedicaremos a discutir sobre a categoria sociedade civil interpretada por Marx e ampliada Gramsci que nos servir para desmistificar o fenmeno encoberto pelo conceito de terceiro setor que, segundo seus partidrios, mantm uma aparente relao com o que os tericos defendem.

    No segundo captulo traremos em debate a trajetria histrica do modelo econmico capitalista apoiado nos ideais neoliberais no mundo e especialmente suas influncias para o Brasil para contextualizar o funcional atendimento s polticas sociais em detrimento da desresponsabilizao do Estado, o que este influenciou na trajetria das polticas sociais e em sua efetivao e ainda as particularidades desta nova modalidade de atendimento s sequelas deste contemporneo modelo econmico, principalmente no que tange ao acesso os direitos sociais.

    E a partir destes conceitos colocados em debate, no terceiro e ltimo captulo, abordaremos as influncias das polticas neoliberais, alvo deste mstico terceiro setor, para o Servio Social, como os limites e possibilidades e, concluindo, apresentaremos os resultados obtidos atravs da entrevista com a assistente social inserida neste campo.

    Acreditamos ser relevante tornar em debate os assuntos referidos acima na tentativa de analisar sobre este novo campo que se amplia com o advento do projeto neoliberal e com a sociedade civil assumindo tarefas nas lacunas deixadas pelo Estado.

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    1 SOCIEDADE CIVIL EM GRAMSCI

    No presente captulo nos dedicaremos a discutir a categoria sociedade civil para desmistificar o fenmeno ideolgico do terceiro setor. Para isso, recorremos teoria poltica de Gramsci que de maneira ampliada procede s descobertas de Marx e ao mtodo do materialismo histrico anunciando um novo conceito de Estado com novas possibilidades categoriais no contexto do capitalismo desenvolvido. Para iniciarmos, discorreremos a respeito das interpretaes tericas singulares s pocas analisadas pelos pensadores Karl Marx e Antonio Gramsci que nos serviro como base e muito contribuir para entendermos e considerarmos o fenmeno terceiro setor.

    O tempo histrico vivido por Marx apresentou como contexto para o aprofundamento de sua anlise da sociedade uma conjuntura com poucas participaes polticas por parte da classe do proletariado de forma a prevalecer o explcito poder coercitivo do Estado burgus como espao privilegiado, com poder decisrio na sociedade, com seu aspecto repressivo (ou ditatorial) como aspecto principal da dominao de classe (COUTINHO, 2007, p. 124). Outros tipos de organizaes eram apenas as de clubes jacobinos, de profissionais, de pequenos grupos secretos, o que demonstra que Marx encontrava como base para sua crtica a poltica enquanto esfera voltada para a ordem burguesa como exemplo forte de organizao. Este poder representado por uma autonomia estatal era, na verdade, o provedor da diviso da sociedade em classes garantindo assim que os interesses comuns de uma classe particular se imponham como o interesse geral da sociedade (COUTINHO, 2007, p. 124). Em suma, Marx reconhece inicialmente em suas pesquisas apenas uma organizao poltica e econmica

    exercida pelo poder estatal em face da ordem capitalista, ou, nas palavras do prprio Marx e do Engels (2008, p.12) o poder do Estado moderno no passa de um comit que administra os negcios comuns da classe burguesa como um todo.

    Para alm da importante anlise da sociedade capitalista realizada por Marx, a qual sua contribuio poltica, econmica e social ainda aquela que nos oferece base para reflexes acerca da superao da organizao da sociedade em classes antagnicas, este no pode acompanhar as evolues que as organizaes populares e de massa tiveram a partir de grandes processos de socializao da participao poltica em busca de sua emancipao. E foi exatamente nesta poca em que o pensador Antonio Gramsci sistematizou sua concepo de teoria ampliada de Estado.

    Cabe destacar a partir disto que o essencial ao analisar tanto a teoria marxista quanto a teoria gramsciana, como faremos a seguir, o tempo histrico utilizado por estes como base

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    para se pensar na complexidade do fenmeno estatal considerando a esferas poltica e econmica vigentes. Gramsci, como um pensador que parte das teorias de Marx e Engels como clssicos, pode acompanhar um perodo histrico no qual amplia-se a participao poltica da sociedade em alguns pases j nos finais do sculo XIX, que, com o desenvolvimento das relaes de produo, possibilitou a socializao da poltica, com a formao de sindicatos, partidos polticos de operrios dando origem ao que chama de sociedade civil, uma esfera social nova, dotada de leis e de funes relativamente autnomas e especficas, tanto em face do mundo econmico quanto dos aparelhos repressivos do Estado. (COUTINHO, 2007, p. 124), de fato uma nova dimenso nas relaes de poder no capitalismo.

    Nesse sentido, Gramsci apoia sua teoria no Estado em seu sentido ampliado trazendo como principal contribuio a distino entre duas esferas principais no interior da superestrutura poltica que, compreende-se segundo Bobbio, superestrutura como fora da estrutura econmica (apud MONTAO, 2010, p. 121), a sociedade poltica e a sociedade civil. No que tange compreenso da sociedade poltica, Gramsci tambm a chama de Estado em sentido estrito ou de Estado-coero, a formao desta pelos aparelhos repressivos do Estado, ou ditadura, ou aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produo e economia em um dado momento (COUTINHO, 2007, p 127). H aqui uma dominao mediante a coero e foi at este momento o analisado pelos clssicos. A sociedade civil, enquanto a essncia das novas determinaes descobertas por Gramsci, como representatividade social da hegemonia, so aparelhos privados que voluntariamente, atravs de consenso, buscam disseminar suas ideologias, isto , como mesmo resume Coutinho (2007, p.127),

    formada precisamente pelo conjunto das organizaes responsveis pela elaborao e/ou difuso das ideologias, compreendendo o sistema escolar, as igrejas, os partidos polticos, os sindicatos, as organizaes profissionais, a organizao material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicao de massa), etc.

    Podemos diferenciar estas duas esferas analisadas por Gramsci seguindo como a sociedade poltica e a sociedade civil se organizam e que meios utilizam para adquirirem consenso entre os indivduos no Estado em seu sentido amplo j que ambas so capazes de provocar mudanas, sejam estas coercitivas e autoritrias ou de maneira hegemnica e consensual. Ambas em conjunto formam o Estado e implicam na organizao e promoo de

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    uma determinada base econmica, porm o modo de como se prope tal interesse o que as distinguem. A sociedade civil como uma organizao hegemnica recebe a partir da viso poltica de Gramsci uma base material e autnoma em face sociedade poltica. Funciona como uma nova oportunidade de organizao de massa frente s imposies sociopolticas e econmicas no capitalismo avanado, com novas formas de organizaes como podemos obervar atualmente. Tal esfera ideolgica ganha corpo atravs dos aparelhos privados de hegemonia, como mesmo destaca Coutinho, proveniente de novas instituies sociais. interessante destacar ainda a proximidade terica de Gramsci quando atribui a base material organizao da sociedade civil vinculando-a com a perspectiva materialista de Marx (Gramsci no rompe com o marxismo para avanar em sua teoria poltica), legitimando a nova possibilidade na organizao do Estado em seu sentido amplo atravs da sociedade civil. Nas palavras de Coutinho (2007, p. 129),

    Gramsci registra aqui um fato novo de que a esfera ideolgica, nas sociedades capitalistas avanadas, mais complexas, ganhou uma autonomia material (e no s funcional) em relao ao Estado em sentido restrito. Em outras palavras: a necessidade de conquistar o consenso ativo e organizado como base para a dominao uma necessidade gerada pela ampliao da socializao da poltica criou e/ou renovou determinadas objetivaes ou instituies sociais, que passaram a funcionar como portadores materiais especficos (com estrutura e legalidade prprias) das relaes sociais de hegemonia. [...] Temos aqui mais um exemplo de aplicao concreta por Gramsci, na esfera da prxis poltica, da ontologia materialista do ser social que est na base da produo terica de Marx: para este, no h forma ou funo social sem uma base material, no h objetividade histrica que no resulte da dialtica entre essa forma social e seu portador material. Concretamente: em Marx, no h valor-de-troca sem valor-de-uso, no h mais-valia sem produto excedente [...] em Gramsci, no h hegemonia, ou direo poltica e ideolgica, sem o conjunto de organizaes materiais que compem a sociedade civil enquanto esfera especfica do ser social.

    Esta anlise suscitada por Gramsci quanto ao conceito sociedade civil nos permite avaliar a abrangncia legitimada por este que defendeu o papel da organizao popular e de massa e sua relevncia pensando em novas propostas de transformao na sociedade onde contextos (sociais, polticos e econmicos) tem como influncia o capitalismo, uma vez que esta a ordem econmica dominante.

    Assim como temos o conceito de sociedade civil fortemente analisado em Gramsci como base que provm dos estudos de Marx, tem-se atualmente uma ideia distorcida desta esfera de organizao, se assim podemos considerar, do que de fato esta representa

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    ideologicamente na sociedade, mais especificamente a partir das influncias neoliberais1. Nesse aspecto, surge o conceito ideolgico de inteno progressista o chamado terceiro setor que compreende-se como um campo da sociedade civil organizada autonomamente, como veremos adiante .

    1.1 Sociedade civil versus terceiro setor

    Ao analisarmos a categoria sociedade civil interpretada e ampliada por Gramsci, verificamos sua aparente relao com o que atualmente autores liberais vm debatendo sobre o chamado conceito ideolgico do terceiro setor, servindo a teoria gramsciana como base para assim o definir. Para isso, ser necessrio compreender e interpretar o que estes defendem sobre este conceito.

    O debate do terceiro setor surge no Brasil cunhado de interesses capitalistas (o seu curso histrico, ser tema do nosso prximo captulo) e participa de uma diviso em setores das esferas na sociedade. Segundo Montao (2010, p.53), so estas esferas societrias as que se dividem em Estado (primeiro setor), o mercado (segundo setor) e a sociedade civil (terceiro setor). considervel salientar que, apoiados nos estudos do autor Carlos Montao, tal conceito pressupe uma srie de debilidades que impede a real conformao e a insero histrica do terceiro setor no pas; como se esta diviso em trs setores emanasse sem base material apenas fenomnica, o que na verdade esconde o conveniente interesse de uma classe dominante de cunho neoliberal no Brasil.

    Para melhor exemplificar imperativo mencionar um fato histrico brasileiro no ps-64 que serviu tambm como um dos triunfos para a disseminao do conceito sociedade civil pelos autores que apoiam o terceiro setor de maneira a associar estes dois conceitos. O Brasil passava por um perodo de ditadura militar que impulsionou a luta de uma sociedade civil organizada contra o Estado ditador da poca, o que provocou um momento de tenso no pas. Houve assim uma ocasio de ao entre estas duas esferas sociedade civil/Estado representadas de um lado por diferentes atores e foras em oposio ditadura e de outro um Estado ditatorial. O fato que o Estado, em tal contexto, opunha-se sociedade civil (reunidos por diversas classes, movimentos sociais e partidos) e vice versa e, neste caso, segundo afirma Coutinho tudo o que provinha da sociedade civil era visto de modo

    1 A influncia do neoliberalismo no Brasil como hegemnico no campo da questo social ser tema do prximo

    captulo.

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    positivo, entretanto, tudo o referente ao Estado aparecia marcado por sinal fortemente negativo (apud MONTAO, 2010, p.132).

    Assim, como mesmo nos conota Coutinho, a parcela adepta ao terceiro setor usou-se deste contexto histrico de oposio entre Estado/sociedade civil para tornar ruim tudo aquilo que provm do Estado e fez justificao acrtica de uma sociedade civil despolitizada caracterizando-a como eficiente, ou seja, resumida num mtico terceiro setor falsamente situado para alm do Estado e do mercado (apud MONTAO, 2010, p. 134), como sendo os representantes para o bem comum.2

    Com isto autores, pensadores e adeptos que incorporam o discurso do terceiro setor permeiam por vezes deste contexto da ditadura de oposio em carter superficial para a satanizao do Estado representativo atual de maneira a afast-lo dos movimentos populares e desarticul-los, e a santificao da sociedade civil de maneira geral, incorporando esta idealizao para o terceiro setor (sociedade civil) como nico espao de participao cidad. Em suma, a separao da sociedade em setores pelos adeptos do terceiro setor apoiou-se veementemente neste perodo histrico de insatisfao popular com o Estado ditatorial ao transportar temporalmente, descontextualizando, a oposio (empiricamente constatvel naquele contexto) entre Estado e sociedade civil (MONTAO, 2001, p. 132 e 133).

    Nesse sentido podemos identificar em que pretensamente autores nas perspectivas neoliberais fundamentam a questo do terceiro setor para legitimarem suas ideologias em face ao neoliberalismo. Erroneamente, em relao a esta diviso setorial da sociedade em trs esferas (Estado primeiro setor, mercado segundo setor e sociedade civil terceiro setor) atribui-se a Gramsci como sendo o percussor desta diviso, pois o fato de sua teoria definir a sociedade poltica e a sociedade civil como situadas fora da estrutura econmica, na superestrutura, se tornasse base justificativa de uma suposta setorializao gramsciana entre sociedade civil, sociedade poltica e estrutura econmica neste debate neoliberal conceituadas como terceiro setor, primeiro setor (Estado) e segundo setor (mercado), respectivamente (MONTAO, 2010, p. 121). Desta forma, na verdade, o modelo terico defendido por Gramsci no tripartite Estado, sociedade civil e estrutura como supem os autores liberais que defendem o terceiro setor, mas bipartite Estado (lato sensu, que

    2 Este reforo claramente funcional ao processo de reestruturao do capital no molde neoliberal, o qual o

    conceito terceiro setor produto. O Estado, antes provedor das polticas sociais pblicas em resposta s sequelas da questo social foi desresponsabilizado, ampliando assim cada vez mais os sistemas privados de atendimento sociais.

  • 14

    integra a sociedade civil e a sociedade poltica) e estrutura econmica ; no sendo, portanto, setorialista, mas uma viso de totalidade (MONTAO, 2010, p. 125).

    Neste caso, podemos assumir que a teoria do Estado ampliado analisada por Gramsci permitiu a construo de conceitos distorcidos em relao a esferas na sociedade burguesa. Em suma, para Gramsci o Estado e a sociedade civil fazem parte de uma mesma estrutura, a superestrutura, nas relaes ideolgicas, culturais e polticas na sociedade capazes de se articularem; e para os adeptos do terceiro setor estas esferas participam de setores diferentes e interesses incomuns na sociedade. Isso porque, o que propem os neoliberais acerca da disseminao do terceiro setor que se dizem apoiados no conceito gramsciano, a autonomia deste desvinculado do Estado e da estrutura econmica na sociedade para conferir neutralidade ao terceiro setor, na verdade despolitizando-o. Assim sendo, o uso da noo de sociedade civil como um terceiro setor nada tem a ver pois a sociedade civil gramsciana faz parte do Estado (lato sensu) que por sua vez permeado pelos interesses e conflitos das classes sociais conformadas na estrutura econmica (MONTAO, 2010, p. 126) e, portanto, o efeito seria o de desarticular este terceiro setor da esfera estatal.

    H tambm que se pensar que a ideia de terceiro setor como uma esfera autnoma e singular na sociedade estratgica. O terceiro setor tem procedncia sim e funcionalidade com os interesses de classe e, neste caso, foi fundamentalmente criado por instituies ligadas diretamente ao capital. Em linhas gerais, isso sinaliza clara ligao com os interesses de classe, nas transformaes necessrias alta burguesia (MONTAO, 2010, p. 53) e a anlise crtica histrica deste processo reveladora.

    Ao analisar Gramsci podemos entender ainda que a sociedade civil situa-se na intermediao entre a base econmica e sociedade poltica existentes na sociedade de carter claramente classista, e que esta, na superestrutura forma um par conceitual, uma unidade na diversidade junto ao Estado, como destaca Coutinho (apud MONTAO, 2010, p. 125). Isto significa que a teoria da sociedade civil defendida por Gramsci permeado pelos interesses e conflitos das classes sociais aderidas estrutura econmica e, desta forma, a noo de sociedade civil no desprovida de contradies e livre de influncias da totalidade social, alis, em nenhum dos autores que discorreram sobre a sociedade civil. Neste caso, o que afirma ainda mais o uso inadequado para o terceiro setor (autonomizado dos outros dois setores) associando-o ideia de sociedade civil.

    Partidrios do terceiro setor por vezes aproximam-se de uma interpretao no histrica sobre sociedade civil (contrrio do que baseia-se Gramsci na revoluo proletria em sociedades orientais e ocidentais como pressupostos de anlise para uma teoria ampliada de

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    Estado), desvinculando-o do Estado e da economia, afirmando que ambos (sociedade civil e terceiro setor) possuem mesmos objetivos, ao contrrio do que realmente defendido por Gramsci. O terceiro setor deve ser considerado como uma organizao da sociedade civil com novas perspectivas pelo seu vnculo aos interesses de um Estado mnimo e funcional ao mercado. O que ocorre a descaracterizao do verdadeiro conceito de sociedade civil adaptando-o realidade do capital e escamoteando o que est por trs do chamado terceiro setor. Podemos verificar nas palavras de Montao (2010, p. 129):

    Os autores do terceiro setor de inteno progressista entendem que a est radicada sua proposta: a democratizao da sociedade, atravs da ampliao deste setor. O problema, que revela a clara funcionalidade desta proposta com o projeto neoliberal consolida-se na despolitizao operada no terceiro setor, na retirada das contradies de classe (que esto presentes no conceito gramsciano de sociedade civil), na sua desarticulao com as esferas estatal e infra-estrutural e, portanto, no efeito de encobrir a lgica liberal-corporativa que termina assumindo essa proposta supostamente democratizadora, dando (resignadamente) como fato a retirada do Estado das respostas questo social e a flexibilizao (ou esvaziamento) de direitos sociais, econmicos e polticos[...].

    O terceiro setor, portanto, tem procedncia e funcionalidade com os interesses polticos e econmicos de uma classe que a propsito a dominante segundo a ordem econmica capitalista, assumindo uma propriedade supostamente democratizadora. neste caso, uma sociedade civil mal organizada que mantm falsa associao ao que Gramsci reconhece como sociedade civil e no um terceiro setor que por muitos autores considerado como um aparelho separado do Estado (primeiro setor) e do mercado (segundo setor). Assim, nas palavras de Coutinho (apud MONTAO, 2010, p. 133),

    A partir de finais dos anos 80, a ideologia neoliberal em ascenso apropriou-se da dicotomia maniquesta entre Estado e sociedade civil para tornar demonaco de uma vez por todas tudo o que provm do Estado (mesmo que agora se trate de um Estado democrtico e de direito, permevel por demais s presses das classes subalternas) e para fazer a apologia acrtica de uma sociedade civil despolitizada, ou seja, convertida num mtico terceiro setor falsamente situado para alm de Estado e do mercado.

    Neste contexto, pensar no efeito democratizador do terceiro setor em consonncia com o conceito de sociedade civil desconsiderar as contradies de classe e o interesse escondido na sua desarticulao com a esfera estatal, e ainda, desconhecer que a sociedade civil a uma arena de lutas como uma sociedade organizada em busca do rompimento com a correlao de foras presentes na sociedade. (MONTAO, 2007, p. 129).

    Afinal, o que autores do terceiro setor tentaram, tratando-se de fundamentaes tericas, foi a de se reafirmarem nas teorias de Gramsci utilizando-se da ideia de sociedade

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    civil como se tratasse de um setor especfico, isolado e independente para visibilizar o fenmeno terceiro setor afirmando ser este preenchido com as mesmas particularidades. Consideraram superficialmente as procedncias gramscianas e as apontaram como sendo ideais para reafirmao de um conceito neoliberal cunhado de interesses para sua legitimidade na sociedade. Isto porque o ideal tornar a sociedade civil organizada num setor despolitizado, independente e responsvel pelas suas necessidades sociais, polticas e econmicas, encobrindo-os pela lgica neoliberal. Alm do mais amplia-se cada vez mais uma sociedade civil despolitizada a ser manipulada por este projeto desarticulado com a esfera estatal, pouco organizada.

    Nada tem a ver, portanto, um terceiro setor na sociedade e reforar este mistificado terceiro setor no reforar a sociedade civil como pensam e pretendem. O que podemos considerar sim que o que no h entre os pensadores neoliberais uma determinao de sociedade civil como a estudada por Gramsci.

    1.2 - O que o terceiro setor? Caractersticas sobre este fenmeno: traos superficiais e contraditrios

    Como j apontamos, o termo terceiro setor carrega grandes debilidades tericas e um conceito atravessado de controvrsias. Havendo ou no, e sendo este um conceito utilizado estrategicamente na sociedade capitalista moderna de maneira intencional, o que em sntese o chamado terceiro setor? Vimos que o debate atual sobre esta ideologia, como proposta dos autores que o defendem, parte do pressuposto de isolar os supostos setores um dos outros na sociedade a concentrar-se apenas nos interesses particulares e nas problematizaes que o compem, considerando-o como um fenmeno isolado. Assim, veremos em seguida as propriedades e perspectivas superficiais apresentadas, como falsa viso hegemnica, confusa e mistificada defendida por aqueles que o contemplam.

    Em termos internacionais, a concepo de um terceiro setor foi cunhada nos EUA na transio da dcada de 1970 para a dcada de 1980 e, no Brasil, o III Encontro Ibero-Americano do Terceiro Setor, evento este organizado no Rio de Janeiro em 1996, foi o marco para a introduo deste conceito no pas (MONTAO, 2010, p. 55), alis, utilizam-se deste os adeptos para datar a iniciativa do fenmeno. Segundo Rubem Fernandes um dos autores que participaram deste encontro quando define o terceiro setor, menciona que este

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    composto de organizaes sem fins lucrativos, criadas e mantidas pela nfase na participao voluntria, num mbito no governamental, dando continuidade s prticas tradicionais da caridade, da filantropia e do mecenato (FERNANDES, 2005, p. 27). E tendo Gramsci como principal referncia acrescenta ainda que a ideia de sociedade civil serviu para destacar um espao prprio, no governamental, de participao nas causas coletivas. Nela e por ela, indivduos e instituies particulares exerceriam a sua cidadania, de forma direta e autnoma (idem, p. 27).3

    Analisamos assim que o tema j se encontra bastante calcado ante os objetivos de expanso e legitimao de um terceiro setor no pas na dcada de sua culminncia enquanto proposta de um setor que cresceria a fim de solucionar problemas sociais emergentes na e pela sociedade.

    O fato que este conceito se apresenta em meio a muitas debilidades reconhecidas at mesmo entre os prprios autores ao tratarem de que instituies fazem parte deste terceiro setor considerando os objetivos que as norteiam e sua relao com os outros setores na sociedade, o Estado e o mercado, quanto ao seu carter no governamental e autogovernado e ainda sua caracterstica de no lucratividade, entre outras.

    A priori poderamos considerar a partir da bibliografia do terceiro setor todas as organizaes no governamentais (ONGs), as organizaes sem fins lucrativos (OSFL), as organizaes da sociedade civil (OSC), as intuies culturais, as instituies religiosas, atividades informais e individuais de qualquer interesse, as fundaes, os sindicatos, os movimentos polticos, os movimentos violentos de massa (como os de ocupaes em espaos pblicos e queimadas de patrimnios, por exemplo) entre outros da sociedade civil como sendo estes pertencentes ao terceiro setor j que no so atividades de cunho estatal e da rbita do mercado (primeiro e segundo setor). Sendo os objetivos que carregam de maneira diversificada, as parcerias que mantm, desgnios das atividades a que se dedicam e para qual finalidade poltica e econmica que permeiam tais organizaes que as tornam peculiares entre si.

    Mas o fato que nem mesmo os autores analistas, criadores e defensores do terceiro setor possuem rigor nesta caracterizao, no h acordo entre os tericos e pesquisadores sobre as entidades que integram este setor ao passo que deveriam ter total convico em seus debates j que insistem na lgica de um setor autnomo e distinto, independente do Estado e

    3 A realizao do III Encontro Ibero-Americano do Terceiro Setor em 1996 no Rio de Janeiro propiciou a

    discusso entre os convidados para abordar e afirmar questes entorno do tema introduzindo assim no Brasil o conceito de terceiro setor. Culminou desta forma a construo do livro 3 Setor Desenvolvimento social sustentvel.

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    do mercado. Em alguns casos consideram apenas manifestaes pacficas, no de organizaes de lutas de maior impacto no enfrentamento (MONTAO, 2010, p. 56) e em outros a excluem, mas no h concordncia terica. O fato que no h consenso na categoria ao definir sua autenticidade, ao menos em acordo de quais categorias de entidades e organizaes integrariam o terceiro setor. Sendo um dos pontos debatidos por Montao, o autor ressalta que

    este conceito, mais do que uma categoria ontologicamente constatvel na realidade, representa um constructo ideal que, antes de esclarecer sobre um setor da sociedade, mescla diversos sujeitos com aparentes igualdades nas atividades, porm com interesses, espaos e significados sociais diversos, contrrios e at contraditrios. (MONTAO, 2010, p. 57)

    Segundo autores adeptos ao conceito, as referncias a seguir so caractersticas deste fenmeno: as organizaes no lucrativas e no governamentais que englobam as ONGs, os movimentos sociais, organizaes e associaes comunitrias, as instituies de caridade, religiosas, atividades filantrpicas as quais incluem fundaes empresariais, filantropia empresarial, empresa cidad (tema muito atual), as aes de conscincia solidria, de ajuda mtua e ajuda ao prximo, aes voluntrias e atividades informais (MONTAO, 2010, p. 182). Estas so as principais aes e responsabilidades consideradas como atividades do terceiro setor que supostamente no so de cunho estatal (primeiro setor) e longe da esfera do mercado (segundo setor). Porm, tudo indica aqui que algo est aparentemente errado se for justificar a similaridade com a sociedade civil pois no h referncia s organizaes sindicais, de movimentos sociais combativos (como o MST, por exemplo), quando se trata de instituies e atividades que perfazem o conceito do terceiro setor. Grande parcela dos autores e adeptos desta perspectiva neoliberal no menciona em suas teses e publicaes as conquistas dos grandes movimentos sociais deixando uma grande lacuna neste confuso conceito. Mas qual ser o motivo desta excluso se os movimentos sociais e organizaes populares referem-se a aparelhos voluntrios da sociedade civil em busca de um objetivo comum?

    importante destacar um perodo da histria no Brasil nos anos de 1980 a 1990 no qual os movimentos sociais estiveram organizados e atrelados Organizaes No Governamentais ONGs, organizaes estas consideradas como uma das principais referncias ao terceiro setor e por vezes atualmente h a tentativa de confundi-las mostrando serem organizaes munidas com os mesmos objetivos.

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    Os movimentos sociais desenvolviam suas atividades de maneira interligada ONG, atividades para ou contra o Estado com o intuito e objetivos principais de luta, reivindicaes, organizao e participao nas demandas emergentes da poca. A ONG surgiu como apoio aos movimentos oriundos destes anos a fim de potenciar sua organizao.

    O fato que os movimentos sociais historicamente conhecidos como campo de luta de uma sociedade civil organizada voluntariamente dotada de reivindicaes democrticas por direitos contra e pelo Estado esto perdendo seu lugar para um dito terceiro setor (at porque no so considerados inclusos neste fenmeno) que desenvolve uma relao de parceria harmnica com o Estado e mercado. Por assim dizer, ocorre atualmente mudana de carter e significado do que de fato representaram os movimentos sociais fortemente organizados nos anos de 1980 e 1990. E ainda, aqueles que atualmente so resistentes passam a no serem considerados pertencentes a mesma categoria sociedade civil organizada pelos neoliberais, de fato por no creditarem das mesmas propostas. Entretanto, iniciando a dcada de 1990, os partidrios ao terceiro setor comeam a ostentar uma nova postura a partir de grandes processos histricos ocorridos no Brasil. A ONG iniciou uma ao de despolitizao na sociedade e os movimentos sociais foram substitudos (no em sua maioria, pois fortes movimentos permanecem) por um terceiro setor desenvolvendo assim parceria escamoteada com o Estado e o mercado e os movimentos populares que hoje permanecem organizados em luta no so ento considerados como um campo do terceiro setor.

    Para alm desta impreciso em delimitar os segmentos e instituies que a compem, temos ainda que enfatizar em nossas reflexes outra debilidade entorno do modo contraditrio que o terceiro setor carrega quando se trata do carter no-governamental, autogovernado e no-lucrativo em questo (MONTAO, 2010, p.57), como uma das principais peculiaridades deste setor. Parece que este trao no assinalado verdadeiramente em suas entidades, ocasionando uma confuso entre pblico e privado, no se conseguindo distinguir assim sua origem, atividade e finalidade.

    Os espaos/iniciativas privadas como as organizaes no-governamentais (ONGs) com o intuito voltado para o trato da questo social4 so financiadas por entidades que mantm parceria com o Estado (seja este federal, municipal ou estadual) a desempenhar, de

    4 Podemos definir com base em Iamamoto (2004, p.17) que a questo social diz respeito ao conjunto das

    expresses das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura (...) expressa portanto, disparidades econmicas, polticas e culturais das classes sociais, mediatizadas por relaes de gnero, caractersticas tnico-raciais e formaes regionais, colocando em causa as relaes entre amplos segmentos da sociedade civil e o poder estatal. Uma anlise mais profunda desta relao ser apresentada nos prximos captulos.

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    maneira terceirizada, as funes que lhe so atribudas. Desta forma, uma das principais bandeiras levantadas por autores neoliberais ao sintetizarem a emancipao da sociedade civil moderna atravs de um terceiro setor parece-nos enganosa. O carter autnomo e independente na verdade tendencialmente ligado poltica de governo e esto condicionadas por esta poltica. A questo que ao ser estabelecida esta parceria com uma ONG e no outra, ao destinar recursos a determinados projetos e no a outros, podemos ento definir que h consensos pr-selecionados em determinar a permanncia e a sustentao de selecionadas organizaes que diretamente desenvolvem interesses governamentais.

    Observamos que parcerias entre Estado e sociedade civil em vista a interesses coletivos comuns para a sociedade so descartadas de imediato a fim de perpetuar a lgica governamental com aquelas organizaes de carter pblico e fins privados. Esta confuso entre Estado e governo no neutra e no aparece toa entre as discusses dos autores do terceiro setor j que

    uma coisa so as parcerias com os governos nacionais, estaduais ou municipais com clara hegemonia do grande capital e engajados no projeto neoliberal, e outra so as parcerias com governos, particularmente estaduais e municipais, de inspirao trabalhista ou progressistas, populares e democrticos (MONTAO, 2010, p. 137).

    No entanto, a verdade que as organizaes que englobam o terceiro setor no so estatais mas suas parcerias so diretamente resultadas da poltica de governo. Diferentemente do mbito do Estado democrtico e social a poltica governamental, esta associada aos interesses basilares do terceiro setor, definida a partir de opes de classe, de alianas polticas partidrias e de acordos e compromissos com organismos internacionais de certas gestes (MONTAO, 2010, p. 137).

    Outro contexto de discusso refere-se ao carter de no lucratividade dessas entidades. As organizaes e fundaes que fazem parte deste conceito oferecem atravs das atividades que exercem um carter econmico cobioso e disfarado ao mesmo tempo por meio da iseno de impostos e da melhora da imagem dos seus produtos aumentando suas vendas e ainda na funo propagandista, um marketing estratgico. H, portanto, um claro fim lucrativo, ainda que de maneira indireta.

    Esta ltima debilidade apresentada pelo terceiro setor em sua afirmao uma especificidade centrada principalmente pelas iniciativas inovadoras das empresas com prticas de responsabilidade social em parceria com as organizaes no governamentais (ONGs) e com as fundaes, por exemplo. Muito se observa entre empresrios brasileiros o comprometimento com o social na atual conjuntura do capitalismo moderno face as sequelas

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    da questo social, aproveitando-se da insuficiente oferta de polticas e servios sociais pblicos pelo Estado ajustado poltica neoliberal.

    1.2.1 Influncias atuais no campo do terceiro setor: A Empresa-cidad

    Entre os finais da dcada de 1980 e incio dos anos 1990 inicia-se no pas um processo de ajuste capitalista e reforma do Estado confrontando com as conquistas sociais advindas dos movimentos sociais e trabalhistas fortemente organizados, o que culminou na importante Constituio Federal de 1988, referncia magna para as conquistas sociais. E neste cenrio que os empresrios das grandes empresas capitalistas no mais se restringem s aes sociais destinadas aos seus prprios empregados atravs de benefcios e servios prestados a estes, propondo a interferir tambm na sociedade como um todo.

    Anterior a esta poca, principalmente aps o golpe de 1964 no Brasil, o empresariado une-se ao Estado para articularem servios sociais para os trabalhadores na inteno de controlar as manifestaes e conflitos e adapt-los ao ritmo de produtividade do trabalho, porm o Estado sendo o responsvel pela populao brasileira e o empresariado pela fora de trabalho contratada. Alis, desde os primrdios da industrializao no Brasil, por meio da criao de vilas operrias que acolhiam o operrio e sua famlia, o empresariado j apontava sinais de formao e reproduo dos seus trabalhadores, mantendo um maior controle sobre estes e disciplinando-os para o trabalho e consequentemente para o aumento da produtividade. Como apontado, as empresas passaram a investir na ideia da responsabilidade social corporativa revelada como

    o conjunto de atividades que a empresa realiza para atender, internamente, s necessidades dos seus empregados e dependentes e, externamente, s demandas das comunidades, em termos de assistncia social, alimentao, sade, educao, preservao do meio ambiente e desenvolvimento comunitrio, entre outras (CESAR, 2008, p. 18).

    Essas prticas ocorrem por meio de aes sociais e oferta de benefcios para seus trabalhadores empregados e dependentes e atravs de investimentos em programas sociais para a comunidade, em muitas destas o empresariado est associado ONG, a Fundaes e a outras instituies que mantm parceria que facilitam o trabalho social desenvolvido junto a estas representantes do terceiro setor. Muitas destas aes so orientadas e articuladas por associaes que tem a funo de representarem e realizarem a interlocuo da empresa e suas

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    atividades de responsabilidade social com a imprensa, com as organizaes, as lideranas polticas, visando ainda mais o fortalecimento desta categoria. Tais associaes surgiram ainda na dcada de 1980 e tem papel de destaque quando o assunto produzir visibilidade para as chamadas empresas cidads, dentre as quais podemos citar o PNBE (Pensamento Nacional das Bases Empresariais), Fides (Fundao Instituto de Desenvolvimento Empresarial e Social) e Gife (Grupo de Institutos, Fundaes e Empresas) (CESAR, 2008, p. 244). Estas promovem seminrios, fruns, discusses e debates com a finalidade de agenciar assessoria, divulgao de trabalhos desenvolvidos e ainda difundir os conceitos e prticas de uso de recursos e medidas privadas para o suposto desenvolvimento do bem social. Podemos citar ainda o Instituto Ethos que mantido pelos prprios empresrios e a ele associados tendo como principal objetivo a difuso dos modelos aplicados pelas empresas como exemplares aplicveis em todo pas. Ao tratarem a respeito desta nova categoria, os adeptos sobre o tema responsabilidade social nas empresas afirmam que esta nova estratgia est associada ao progresso econmico sendo fundamental para a reduo das desigualdades no pas. Ditem ainda que tais iniciativas quando voltadas para a fora de trabalho ser capaz de causar melhoria na qualidade de vida dos trabalhadores, da produtividade e da relao entre capital e trabalho. Com base em pesquisas realizadas pela autora Mnica de Jesus Cesar nas empresas a respeito destas iniciativas privadas que estas incluram em suas atividades econmicas, o trecho a seguir exemplifica esta auto imagem que as empresas tem de si:

    o desenvolvimento de projetos pautados em seres humanos, de acordo com seus princpios bsicos e focados em temas que tragam ganhos para todos: sociedade, governo, trabalhador e para a empresa [...]. um dos mais importantes modos de identificao. Ela tem como prioridade, investir na rea social, nas condies de seus empregados, motivando seus colaboradores para um comprometimento pessoal e profissional, no sentido da melhoria contnua da qualidade e produtividade [...]. estabelecer uma verdadeira parceria entre capital-trabalho, empresa-funcionrios, desenvolver uma poltica empresarial-industrial com sistemas e mtodos inovadores. a implantao das atividades em pequenos grupos; o trabalho humanizado, uns com os outros, cooperao, consenso e unio (CESAR, 2008, p. 251).

    Alm deste claro objetivo em relao aos prprios trabalhadores, o empresariado se v engajado em atividades e aes para a populao residente entorno da empresa, principalmente preferindo focalizar na erradicao da pobreza e, atravs de programas sociais, desenvolver capacitao e insero no mercado de trabalho, acesso da populao a sistemas de informao e tecnologia, cultura, so estas algumas de suas mais comuns propostas.

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    Neste sentido as vantagens empresariais so muitas. O discurso de complementar e at assumir as sequelas sociais do pas ao caracterizar o Estado de incapaz e ineficiente, faz com que escondam os reais interesses at mesmo em relao aos benefcios internamente proporcionados aos trabalhadores, o que at j mencionamos. De modo geral, as prticas de responsabilidade social adotadas pelas empresas contribuem e muito para o aspecto lucratividade, um ponto crucial. Alm de promover a melhora da sua imagem no mercado e na sociedade j que passa a ser uma empresa que se destaca das demais pelo carter cidad que passa a assumir, atrai novos investidores alm de, atravs de parcerias com Fundaes sociais, por exemplo, obter deduo no imposto de renda. Pois em alguns casos as Fundaes mantm-se atravs de doaes cultivadas por estas empresas em troca da parceria e desenvolvimento de algum projeto. E com isso outro aspecto o marketing social, ou seja, aquilo que se convencionou chamar, na linguagem do mercado, de valor agregado marca ou imagem da empresa, como resultado de seu investimento social (CESAR, 2008, p. 282).

    Podemos verificar, portanto, que o terceiro setor parece demonstrar-se mesmo organizado e preparado a responsabilizar-se pelo desenvolvimento social do pas atravs de aes que retiram do Estado sua responsabilidade enquanto garantidor da universalidade dos direitos sociais pblicos atravs das polticas sociais. O terceiro setor e outras novas formas como a das empresas, so inovaes estratgicas no mbito social forjadas de interesses que s diminuem a garantia de cidadania plena.

    1.3 Terceiro Setor: Setor ou Funo Social?

    Vimos que este fenmeno (terceiro setor) para seus autores significa a organizao e/ou aes da sociedade civil, ao menos numa perspectiva que estes dizem se basearem. Porm, Carlos Montao provoca ao questionar se o terceiro setor um setor ou uma

    funo social. E em mais uma anlise crtica podemos colocar em debate este conceito. O autor retrata que ao realizar uma reflexo crtica sobre a bibliografia do terceiro

    setor percebeu aluso a este fenmeno como se abordando de atividades pblicas desenvolvidas por particulares, segundo Thompson, conformadas pelas instituies sem fins lucrativos que a partir do mbito privado, agem propsitos de interesse pblico (apud MONTAO, 2010, p. 184). O que seria tambm tratar de funo social de resposta s necessidades sociais ao fornecer algum tipo de servio para solucionar problemas de

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    cidados comuns, de qualquer pessoa necessitada; tratando-se tambm de valores de solidariedade local, auto-ajuda e ajuda mtua: segundo Salamon, os valores do terceiro setor incluem altrusmo, compaixo, sensibilidade para com os necessitados e compromisso com o direito de livre expresso (MONTAO, 2010, p. 184). a partir destas consideraes que adeptos caracterizam o terceiro setor.

    Neste sentido, Montao afirma que na verdade o terceiro setor, portanto, ao invs da utilizao deste termo - terceiro setor para design-lo e nome-lo deve ser considerado e interpretado a partir de suas funes e aes, do fenmeno real, pois, o que os autores chamam de terceiro setor nem terceiro, nem setor [...], nem refere-se s organizaes desse setor ONGs, instituies, fundaes e outros. Isto , o terceiro setor representa aes que expressam funes a partir de valores, aes estas desenvolvidas pelas organizaes da sociedade civil as quais assumem tais funes de respostas as demandas sociais a partir de valores de solidariedade local, auto-ajuda e ajuda mtua (MONTAO, 2010, p. 184).

    Assim, o que na realidade chamado de terceiro setor na sociedade um termo equivocado, como tentamos ilustrar a partir de algumas definies. E como mesmo ressalta Montao, essa desarticulao do real, do fenmeno escondido, propicia maior aceitao das classes sociais, porm o que ocorre a transformao de uma questo poltico-econmico-ideolgica numa questo meramente tcnico-operativa. [...] Opera-se no apenas a j mencionada setorializao do real, mas uma verdadeira despolitizao do fenmeno e do debate (MONTAO, 2010, p. 185). A discusso levada, portanto, para a eficincia de uma ou outra instituio enquanto o debate necessrio, porm encoberto sobre a funo social em dar resposta s demandas sociais, fica de fora.

    relevante pensar as consideraes levantadas pelo autor. Este fenmeno no se esgota em controvrsias na tentativa de tornar-se legtimo na atual conjuntura neoliberal brasileira. E a tentativa de desmistificar o conceito de terceiro setor s o incio de uma anlise crtica que pode ser feita de um fenmeno disfarado por mitos e interesses especficos da sociedade burguesa capitalista.

    Portanto, todo debate acima referido pois em busca de tornar claro um fenmeno que deve ser entendido num projeto de reestruturao social e totalmente produto dele, pautado em seus princpios neoliberais e funcional a ele.

    Pretendemos agora partir de sua origem e mostrar de maneira crtica sua real pretenso e carter de um fenmeno que emergiu para assumir juntamente ao Estado (e em maiores partes) o seu papel de provedor das polticas sociais em atendimento as refraes da questo

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    social. Pois uma coisa o conceito hegemnico do terceiro setor e outra, bastante diferente, o fenmeno real em questo.

    2 - A PRIVATIZAO DAS POLTICAS SOCIAIS NO PROJETO NEOLIBERAL DO BRASIL CONTEMPORNEO

    Para prosseguirmos nosso estudo acerca do atual modelo de atendimento questo social no Brasil em consonncia e decorrncia do estratgico fenmeno do terceiro setor, privilegiaremos expandir a anlise da poltica social brasileira como fundamental alvo deste novo projeto econmico de reestruturao do capital e desresponsabilizao do Estado no que concerne implementao destas polticas pela via pblica.

    As polticas sociais universalistas, com igualdade de acesso, no contratualistas e constitutivas de direito de cidadania (MONTAO, 2010) a materializao dos direitos legalmente reconhecidos e legitimamente assegurados, porm, o projeto neoliberal reorganizou-a sua maneira. Surge uma nova modalidade de resposta que torna as polticas privatizadas, reduzindo-as a meras atividades focalizadas, localizadas atravs de reduzidos programas e benefcios e outras alteraes significativas o terceiro setor.

    Neste sentido, faremos um breve retrocesso histrico do contexto de consolidao do capitalismo e suas principais influncias para a disseminao em terras brasileiras resgatando pontos principais que fizeram resultar neste caldo que permanece at nossos dias. Teorizaremos o neoliberalismo como um todo a fim de contextualizar suas influncias mundiais para o Brasil at retomarmos ao tema terceiro setor. Retrataremos tambm as particularidades ocorridas no Brasil no que diz respeito classe burguesa e conformao do Estado e contextualizar historicamente no pas aquele que chamamos de responsvel e fundador deste conceito: a influncia do capitalismo no pas at chegar ao mais recente projeto, o neoliberal.

    2.1 - A era do Neoliberalismo

    Os anos de 1945 1960, perodo ps-guerra, so considerados os anos de ouro do capitalismo. poca em que vivenciou-se um perodo de forte expanso da demanda efetiva, altas taxas de lucro, elevao do padro de vida (BEHRING e BOSCHETTI, 2009, p.88),

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    alto crescimento econmico e aumento da produo e consumo em massa. Alm de, neste perodo de consenso ps-guerra (MISHRA, 1995 apud BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p.92), propagar-se a poltica do pleno emprego e direitos assegurados aos trabalhadores: cobertura de acidentes de trabalho, seguro-doena e invalidez, penses a idosos, seguro-desemprego, auxlio-maternidade, entre outros certos de que tais conquistas foram asseguradas a partir das reivindicaes dos prprios trabalhadores durante o sculo XIX (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p.93-93). Tais medidas referem-se fase madura do capitalismo em tempos de padro Keynesiano que, agregado ao pacto fordista para configurar a produo e regulao das relaes econmicas e sociais, foram as sadas para a grande crise de 1929. Considerada como a maior crise econmica do capitalismo em escala mundial at o referido momento iniciado no sistema americano com marco na Bolsa de Nova York. Como motivos podemos destacar a organizao trabalhadora que pressionou a classe burguesa para o reconhecimento de seus direitos com um forte movimento e ainda, a concentrao e monopolizao do capital com a necessidade de altos investimentos e emprstimos de dinheiro. Agrega-se a esta crise econmica o desemprego em massa e a crise de legitimidade poltica do capitalismo (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p.68). O perodo keynesiano do capitalismo mundial, principalmente considerando sua influncia nos pases centrais, desenvolveu um momento de prticas estatais intervencionistas e o estabelecimento de uma aliana entre classes, viabilizado somente a partir do abandono, por parte da classe trabalhadora, do projeto de socializao da economia (BEHRING e BOSCHETTI, 2009, p.92). Deu-se a expanso do chamado Welfare State (PIERSON, 1991 apud BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 92) por um ampliado conceito de seguridade social existente deste perodo. Contudo, no final dos anos 1960 esta poca dos anos de ouro do capitalismo comea a se esgotar. As taxas de crescimento, o Estado com suas funes mediadoras civilizadoras atuando com polticas intervencionistas cada vez mais amplas, a absoro de novas tecnologias poupadoras de mo de obra, j no so mais as mesmas e passam a contrariar o essencial ao padro at ento vigente: o pleno emprego. Fora as dvidas pblicas e privadas que crescem. Resultando desta forma no descontentamento em relao ao Estado e ao papel que assumia, pois as elites poltico-econmicas, ento, comearam a questionar e a

    responsabilizar pela crise a atuao agigantada do Estado mediador civilizador (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p.103). Citando Behring & Boschetti (2009, p. 116),

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    o que ocorreu em 1974-1975, na verdade, foi uma crise clssica de superproduo [...]. O j presente agravamento do problema do desemprego (no nas propores atuais) pela introduo de tcnicas capital-intesivas e poupadoras de mo-de-obra, a alta dos preos de matrias-primas importantes, a queda do volume do comrcio mundial, e um poder de barganha razovel dos trabalhadores empregados, advindo do ainda recente perodo de pleno emprego no capitalismo central: todos esses so elementos que esto na base da queda da demanda global (de um ponto de vista keynesiano) e da eroso inexorvel da taxa mdia de lucros, de uma ptica marxista, no incio dos anos 1970.

    Nessa perspectiva, o capitalismo inicia um perodo de estagnao (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p.116) oscilando entre tentativas de reanimao monetria ainda conforme o estilo keynesiano, mas que logo se esgotam, sem sucesso. As correntes crises

    propiciaram o aprofundamento deste perodo da economia como as crises de superproduo, crise social e poltica com a ascenso das greves de trabalhadores e crise de credibilidade capitalista (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p.118).

    A reao burguesa para este modelo, que j no conseguia solucionar as crises decorrentes do perodo, foi a de aprofundar-se nas concepes da ideologia neoliberal. Para Anderson, o neoliberalismo nasceu aps a segunda Guerra Mundial consistindo em uma reao terica e poltica veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar, tendo como texto de origem O Caminho da Servido (de 1944) de Friedrich Hayek. Obra esta que refere-se a um ataque apaixonado contra qualquer limitao dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciadas como uma ameaa letal liberdade, no somente econmica, mas tambm poltica (ANDERSON, 1995, p. 9). Porm, a expanso deste ideal somente tornou-se favorvel quando anunciada a referida crise do capitalismo avanado. Os anos dourados que a antecederam no eram favorveis aos padres neoliberais uma vez que tal fase representou o auge do crescimento mais rpido da histria, durante as dcadas de 1950 e 1960. E, por esta razo, no pareciam muito verossmeis os avisos neoliberais dos perigos que representavam qualquer regulao do mercado por parte do Estado (ANDERSON, 1995, p. 10).

    Nas palavras de Montao (2010, p.26). O projeto/processo neoliberal representa, portanto, a atual estratgia hegemnica de reestruturao geral do capital, face crise, ao avano tecno-cientfico, reorganizao geopoltica e s lutas de classes que se desenvolvem no ps-70, e que se desdobra basicamente em trs frentes articuladas: o combate ao trabalho (s leis e polticas trabalhistas e s lutas sindicais e da esquerda) e as chamadas reestruturao produtiva e reforma do Estado.

    Afirmam adeptos ao projeto neoliberal que a crise do capitalismo avanado (quando a partir da surge a oportunidade para o desenvolvimento do neoliberalismo) resulta do poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, [...] do movimento operrio, que havia corrodo as bases

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    de acumulao capitalista em suas presses reivindicativas sobre os salrios e com sua presso parasitria para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais (ANDERSON, 1995, p. 10). E nessa perspectiva, com base nos argumentos de Navarro, como resposta para a crise,

    os neoliberais defendem uma programtica em que o Estado no deve intervir na regulao do comrcio exterior nem na regulao de mercados financeiros, pois o livre movimento de capitais garantir maior eficincia na redistribuio de recursos internacionais (NAVARRO, 1998 apud BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p.126)

    Neste sentido, o fato que de maneira direta o Estado no interveria na regulao de mercado porm no ficaria isento de suas responsabilidades para com a reproduo do capitalismo maduro. Economicamente, o neoliberalismo fracassou, no conseguindo nenhuma revitalizao bsica do capitalismo avanado, cita Anderson (1995, p. 23), ao considerar que o capitalismo nos pases centrais, na dcada de 1980, no foi capaz de resolver a crise do capitalismo pelo esgotamento do padro keynesiano. Contudo, menciona seus efeitos destrutivos que foram adquiridos em outros mbitos: socialmente, ao criar sociedades mais desiguais, e, poltica e ideologicamente, alcanando um patamar jamais sonhado por seus idealizadores, baseando-se na reduo dos gastos pblicos com polticas sociais retirando do Estado uma de suas principais responsabilidades e ainda provocando o aumento do desemprego com a reduo dos postos de trabalho, como consequncia da reestruturao produtiva do capital.

    Desta forma, o processo de reestruturao produtiva do capital, com a finalidade de reduzir tempo e custos de produo, deu-se a partir da passagem de um padro de acumulao e regulamentao fordista-keynesiano para um novo padro a acumulao flexvel (HARVEY, 1993 apud BEHRING, 2007, p. 177, 178). Inspirado no padro toyotista, esta nova forma produtiva tende a ser conduzida pela demanda e sustentada pelo estoque mnimo e necessrio para o consumo. H de se considerar a descentralizao produtiva na terceirizao de pequenas empresas, incorporando tecnologias poupadoras de mo de obra, substituindo o trabalho vivo, processo este sendo caracterizado pela fragmentao da classe trabalhadora (BEHRING, 2007, p. 177, 178).

    Esses novos processos acarretaram em considerveis mudanas principalmente para a classe trabalhadora no que tange a suas condies de vida e de trabalho. Observa-se a reduo do emprego por substituio daqueles trabalhos temporrios e subcontratados, o desemprego estrutural e desenfreado, levando-os a pssimas condies de vida. H tambm de se considerar o processo de desorganizao poltica resultado dessa conscincia partilhada e

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    individual de trabalho a qual os trabalhadores so convidados a pensarem em si enfraquecendo a luta contra o sistema de produo vigente. Alm de um novo carter de relacionamento construdo entre Estado e sociedade civil desestruturando as conquistas at ento estabelecidas desde o perodo anterior, principalmente no campo dos direitos sociais, resultado das reconfiguraes do papel de Estado e das polticas sociais que sero abordadas adiante.

    Em resposta crise dos anos 1970 a economia neoliberal trouxe para o capitalismo o aumento das taxas de lucro empresariais no sendo capaz de gerar crescimento econmico, o que no solucionou a necessidade real a qual passava o perodo de estagnao. Afetou apenas, com a nova estrutura, a vida dos trabalhadores e acirrou a desigualdade social e de classes. Ideologicamente, no entanto, este novo conceito mostrou-se glorioso com estes ltimos (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p.128-130).

    Estas questes no se alteraram na dcada de 1990 e incio do sculo XXI, no capitalismo contemporneo, s tornaram-se mais incorporadas em diversos pases desde aqueles que ainda no tinham ainda instaurado o cenrio capitalista em suas rotinas.

    2.2 Neoliberalismo brasileira

    O processo de consolidao do capitalismo na Amrica Latina, particularmente no Brasil, deu-se de maneira tardia e de forma diferente dos pases europeus e, inclusive, do norte-americano que a partir da Revoluo Industrial no sculo XIX, assumiram a tendncia liberal como percussora da economia, da poltica e do controle social. No liberalismo predominante ocorridos nos pases desenvolvidos at a Grande Depresso em 1929, momento este causado pela crise e descontentamento deste modelo pelos burgueses, o mercado o supremo regulador das relaes sociais funcional ausncia da interveno estatal, em que o papel do Estado, uma espcie de mal necessrio na perspectiva do liberalismo, resume-se a fornecer a base legal com a qual o mercado pode melhor maximizar os benefcios aos homens (BEHRING e BOSCHETTI, 2009, p. 56).

    A contrarreforma do Estado no Brasil culminou mediante a constituio de um capitalismo oligrquico-dependente, que, ainda no sculo XIX e incio do sculo XX, estava baseado no latifndio tradicional e num esquema colonial de exportao de matrias-primas e importao de produtos industrializados (MONTAO, 2010, p. 30). Isto significa que, em razes brasileiras e em toda Amrica Latina, quando traos capitalistas comeam a serem

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    introduzidas no pas, as estruturas econmicas comeam a serem modificadas, mas no atingem plenamente elementos ideolgicos, culturais e at de relaes sociais prprias da influncia colonial, j que o capitalismo nasce subordinado fase imperialista (LENIN, apud MONTAO, 2010 p. 31), de um sistema latifundirio, servil e escravocrata (idem, p. 30-31). Desta forma, podemos considerar que o capitalismo no Brasil no foi implantado aqui a partir da revoluo burguesa, mas de maneira conservadora.

    No pice de um perodo de tenso do capitalismo o qual pases respiram sinais de uma grande crise numa escassez de lucros e queda do consumo, o Brasil apresentava um captulo diferente em seu contexto. No final dos anos 1960 o perodo de ouro do capitalismo internacional aprecia sinais de esgotamento do seu padro de produo fordista-keynesiano. Enquanto no plano brasileiro desencadeava, no contexto de ditadura militar ps-64, a expanso do fordismo brasileira (SABIA, apud BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 92). Neste perodo de intenso crescimento econmico chamado de Milagre Brasileiro viveu-se no Brasil um perodo no qual prevaleceu a produo em massa para o consumo restrito de automveis e eletrodomsticos, com uma redistribuio restrita dos ganhos da produtividade que, embora no tenha ocorrido consenso e o pacto social-democrata, acarretou para o pas o crescimento interno (idem, p. 135-136). Sem contar que, para o que nos importa neste estudo com o objetivo de apresentar as influncias neoliberais no Brasil, expandia-se, ainda que de forma tecnocrtica e conservadora, a poltica social no pas.

    De forma que o capitalismo avance em terras brasileiras, numa fase que Montao (2010, p. 31) chama de neocolonialismo, a aliana entre Estado, capital nacional e partes da classe trabalhadora foram essenciais para a industrializao por exportao o que exigiu participao de todos, como a demandada interveno estatal (o que chamou de Estado social intervencionista), e o aumento do emprego para crescer a produo e a elevao do salrio para aumentar o nvel do consumo.

    No final dos anos de 1970 inicia no Brasil uma fase crtica de esgotamento da poltica econmica at ento vigente o que acirra para uma crise que criou foras na dcada de 1980 combinando com a conjuntura de tenso econmica do capitalismo que ocorria nos pases desenvolvidos como em toda Amrica Latina. Afirma Cesar (2008, p.143) que o regime militar se desfazia sob o descrdito provocado pelo contedo da poltica que praticara, acentuando os nveis de injustia social, o que fez com que a questo social, em seus diferentes aspectos adquirisse grande visibilidade. Este perodo de recesso foi marcado pelo crescimento da dvida externa e interna, estagnao econmica, entre outros agravantes como presses coletivas pela classe trabalhadora para a democratizao das relaes sociais e

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    polticas do pas. Amplos movimentos de massa que propunham grandes mudanas para o cenrio poltico e econmico do pas (Idem, p. 143) foram atores importantes para a mudana na conjuntura brasileira de ditadura militar.5 Alm de, como efeito desta crise do endividamento, uma tenso no padro de interveno social estatal e deste modelo poltico, econmico e social de ditadura.

    A dcada de 1980 foi marcada pelo incio de transformao lenta e gradual do regime ditatorial em transio para o processo da democracia que ir influenciar e muito a adeso brasileira ao padro neoliberal, este j em curso num plano mundial. Perodo este, como j mencionado, marcado pelo fracasso econmico e, ao mesmo tempo, pelas conquistas significativas no plano democrtico em funo das lutas sociais, como resultado, por exemplo, a Constituio Federal de 1988. Segundo Netto (1999 apud MONTAO, 2010, p. 35) a constituio de 1988 consagrou este profundo avano social, resultado das lutas conduzidas, por duas dcadas, pelos setores democrticos, configurando um pacto social.

    Nesse tempo, tal crise causou um empobrecimento generalizado na Amrica latina, especialmente no Brasil onde tais caractersticas resultantes da crise que preexistiam antes deste perodo, foram acirradas quando a estagnao chega periferia, fazendo cair os ndices de crescimento, deslegitimando os governos militares e dando flego s transies democrticas (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 137). O pas ingressou na dcada de 1990 devastado pela inflao, pouco investimento (pblico e privado) e com uma questo social muito agravada. Um terreno frtil para a adeso das possibilidades da hegemonia neoliberal principalmente com a realizao do Consenso de Washington que organizou seu receiturio de medidas de ajuste a serem aplicados politicamente em busca pela estabilizao.

    Representando uma conquista democrtica brasileira, ocorre em 1989 a primeira disputa direta para o cargo de presidente num perodo de crise insustentvel. Duas foram as candidaturas entre Lula e Collor que expressavam a tenso entre distintas classes sociais as quais representavam respectivamente a classe operria e quela classe que demonstrava insatisfao com a Carta Constitucional e almejava a guinada rumo ao ajuste neoliberal (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 142-143). Em 1990 Fernando Collor de Mello tomou

    5 Segundo Cesar (2008, p. 144-145) o processo de redemocratizao do Brasil teve ampla participao de novas

    prticas e formas de organizao com o fortalecimento dos movimentos sociais. A vida poltica foi abalada por estes movimentos que propunhas mudanas profundas na institucionalidade poltica e econmica do pas, como o movimento das Diretas J (reivindicaes por eleies diretas). Movimento este que se desenvolveu com as greves do ABC Paulista, com as mobilizaes dos trabalhadores rurais por aumento de trabalho e acesso terra entre outros movimentos que lutavam por melhores condies de vida, insatisfeitos com a tendncia at ento vigente.

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    posse da cadeira da presidncia da repblica prometendo atender s aspiraes do povo que vinha do regime militar da Ditadura brasileira (1964 1985). Com seu principal discurso de modernizao, ganhou a simpatia da populao com a ideia de renovao. Uma de suas primeiras medidas foi a de, entre outras coisas, demisso de funcionrios e diminuio de rgos pblicos, congelamento de preos e salrios, com o objetivo de conter supostos gastos desnecessrios, iniciando os processos de contrarreformas. Este plano de recuperao ficou conhecido como Plano Collor que previa uma srie de novas medidas para o mbito econmico, confiscando poupana durante um determinado prazo, criao de nova moeda o Cruzeiro, privatizao de empresas estatais. Nesse cenrio, a insatisfao dos trabalhadores e do empresariado comeou a revelar-se contra o governo de Collor. Foi intitulada a CPI (Comisso Parlamentar de Inqurito) a fim de investigar as denncias contra o presidente envolvido em esquemas de corrupo que conseguiu provar as irregularidades a ele atribudas, levando em 1992 ao impeachment de Fernando Collor.

    Neste contexto, seu vice Itamar Franco assume o governo dando continuidade s contrarreformas do Estado e prtica da estratgia neoliberal no pas. Atravs da implementao do Plano Real, destaque do seu curto governo, elaborado pelo ento ministro da fazenda e futuro presidente da repblica Fernando Henrique Cardoso, a constituio desta nova moeda e suas propostas deram sinais de esperana para solucionar a inflao brasileira.

    E neste sentido que FHC assume em 1994 como o ento presidente do Brasil. Governo este que tratou de reformatar o Estado brasileiro intensificando a poltica de ajuste neoliberal no Brasil pautado na valorizao do mercado. As mudanas cometidas foram difundidas como novas propostas a fim de promover o desenvolvimento do pas ajustado na valorizao do mercado como regulador principal e organizador da produo industrial e catalisador da integrao nacional nova economia mundial. O mercado seria responsvel pela difuso dos recursos ideolgicos e materiais, bem como inovaes tecnolgicas que pudessem viabilizar um crescimento expressivo para a acumulao capitalista brasileira. Para isso, como afirma Cesar, o Estado deveria, em tese, afastar-se de suas funes primordiais e reduzir seu papel empresarial para que o mercado pudesse voltar a se tornar o principal mecanismo e critrio de regulao econmica (CESAR, 2008, p. 167-168). Como resultado, trata-se de uma ofensiva conservadora de uma burguesia que predica o Estado mnimo para os trabalhadores e o Estado Mximo para o capital (NETTO, 1999 apud CESAR, 2008, p. 168).

    Alm destas, que mudanas profundas trouxeram o neoliberalismo para o Brasil? Dando continuidade ao que provocara o projeto neoliberal iniciado com o governo Collor,

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    FHC reafirma mudanas em legitimao plena desta nova regulamentao do mercado. Como afirma Montao (2010, p. 48)

    em sntese, o projeto poltico de (contra-) reforma do Estado do governo FHC persegue a desregulao (flexibilizao) da acumulao, abrindo fronteiras, desvalorizando a fora de trabalho, cancelando (total ou parcialmente) os direitos trabalhistas e sociais, desonerando o capital e desresponsabilizando-o da questo social.

    No plano econmico, empresas privatizadas foram desobrigadas a comprarem insumos no Brasil o que acarretou no aumento da remessa de dinheiro enviada para o exterior assim como as empresas estatais foram privatizadas, ocasionando num parcela significativa do patrimnio pblico entregue ao capital estrangeiro. O que podemos considerar ainda que o Brasil continua um pas dependente internacionalmente.

    Associado a essa dinmica, a condio dos trabalhadores na dcada de 1990 sofreu maiores alteraes devido modernizao da estrutura produtiva que provocou desassalariamento e precarizao da ocupao e das condies de trabalho pelas inovaes tecnolgicas de produo e mquinas -, alm do aumento do desemprego, que j vinha sinalizando uma situao crtica desde a ltima crise, fragmentao de aes sindicais e debilidade de seus poderes. De maneira geral, houve a perda de direitos trabalhistas e sociais e o acirramento da questo social principalmente atravs da nova medida adotada para a consolidao da poltica social voltada para aes mais perversas da crise.

    Assistimos nestes anos at os dias atuais reafirmao do projeto neoliberal desde o final da candidatura de Collor, que passou por FHC e mesmo com Lula no poder, no conseguindo transformar a realidade at ento vigente. Projetos minimalistas de atendimento pobreza foram reinventados como o programa de transferncia de renda, o Bolsa Famlia que no foi capaz de transformar substancialmente a realidade brasileira, mas, sobretudo, tornar dependentes as famlias pobres deste tipo de atendimento assistencial.

    Tendo hoje o controle da presidncia do Brasil a Dilma Roussef, que at ento suas aes nos conotam a continuidade das polticas neoliberais, vemos que sob seu governo o Brasil ainda conservar sua complicada realidade, o que nem mesmo movimentos populares so capazes de amolecer suas decises em vista para o crescimento do mercado brasileiro (como a ltima greve ocorrida em 2012 das universidades federais brasileiras).

    Como podemos verificar atravs da anlise de textos que retratam o percurso do capitalismo no Brasil, o pas no acompanhou de fato o perodo histrico deste modo econmico, porm, esteve sempre influenciado de alguma maneira, o que, consequentemente, o atrelava aos acontecimentos que provocaram mudanas no mundo mantendo-se assim at os

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    dias atuais. Passando pelos mesmos processos de estagnao, esgotamento e crise nos mbitos econmicos, polticos e sociais, o Brasil, considerando suas particularidades, se mantm firme neste projeto.

    Durante o processo histrico de insero do modo de produo capitalista no Brasil considerando suas particularidades at chegar s influncias neoliberais que at hoje permanecem, as polticas sociais perpassaram por mudanas as quais as caracterizaram de acordo com o contexto. neste sentido que limites e possibilidades se desenvolvem no percurso das polticas sociais enquanto processo central na agenda de lutas dos trabalhadores, todavia participante do processo de produo e reproduo do capitalismo. Portanto, o prximo tema de discusso ser para, neste sentido, discutir a respeito deste movimento.

    2.3 A poltica social: trajetria e contradies

    Para compreendermos o percurso histrico das polticas sociais no Brasil preciso alinhar o que consideramos sobre este processo social. Este carregado de determinaes econmicas, sociais e polticas que por vezes, se desconsideradas, perde seu real valor. O fato de, por alguns tericos e autores que discutem o tema, tornarem as polticas sociais descritivas e cercadas de bases tcnicas, corre-se o risco de despolitiz-las, transferindo-as para uma dimenso instrumental e tcnica, e esvaziando-as das tenses polticas e societrias que marcam sua formulao e cobertura. Ou ainda, h aqueles que as consideram como deveriam ser e no como realmente ela ignorando sua realidade crtica (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 35-36). No entanto necessrio, como mesmo destaca as autoras, que

    a anlise das polticas sociais como processo e resultado de relaes complexas e contraditrias que se estabelecem entre Estado e sociedade civil, no mbito dos conflitos e luta de classes que envolvem o processo de produo e reproduo do capitalismo, recusa a utilizao de enfoques restritos ou unilaterais, comumente presentes para explicar sua emergncia, funes ou implicaes (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 36).

    Desta forma o que temos como base a perspectiva crtico dialtica de contribuio marxista para abordagem da poltica social que problematiza o surgimento e desenvolvimento desta no contexto da acumulao capitalista e da luta de classes demonstrando seus limites e possibilidades na produo do bem-estar nas sociedades capitalistas. Sendo assim como um processo social inscrito na sociedade burguesa (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 37).

    Desde sua gnese, quando as primeiras aes desenvolvem-se voltadas para a noo de polticas sociais at os dias atuais, imperativo considerar as mltiplas causalidades e

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    diversas manifestaes e dimenses que as compem at o atual fenmeno do terceiro setor. Do ponto de vista histrico, preciso considerar o surgimento das expresses da questo social que foi fundamental para seu aparecimento e que, de maneira dialtica, sofre efeitos destas polticas, ao passo que, do ponto de vista econmico, as fases as quais passaram o capitalismo so determinantes para o efeito que provocaram e provocam na classe trabalhadora, ao considerar, por exemplo, o Brasil que sempre se manteve influenciado e acompanhando, mesmo que tardiamente, as determinaes mundiais. E ainda, de um ponto de vista poltico, ao analisar as foras polticas na sociedade desde a atuao estatal e sua relao com os interesses de classe at a influncia das organizaes sociais, caracterizando a sociedade civil, e/ou o que chamam de terceiro setor. Neste, inserem-se tambm o fato de que tipo de vinculao esta sociedade civil mantm em relao aos movimentos de defesa dos trabalhadores ou aqueles que defendem interesses do empresariado. Elementos estes devem ser observados como complementares e articulados entre si, como referenciais que auxiliam situar as polticas sociais e compreender seus significados (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 43-45).

    Mas afinal, podemos considerar de que forma sua gnese? Mundialmente, as polticas sociais, mesmo que autores como Behring & Boschetti no situam um perodo especfico para o seu surgimento, a Revoluo Industrial, em meio aos movimentos de ascenso do capitalismo, luta de classes e desenvolvimento de interveno do Estado, teve um papel significativo na gesto destas como processo social. Porm, citam que sua generalizao tem estrita relao com a passagem do capitalismo concorrencial para o monopolista, em especial, em sua fase tardia no ps-45 (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 47).

    Nas sociedades pr-capitalistas onde no havia influncia do mercado e a fora de trabalho era afastada das demais atividades diferentemente da era capitalista as aes sociais eram voltadas para a punio e restrio da classe trabalhadora e dificilmente, para aquela classe considerada apta para atividades laborativas mas que no exerciam. Tais aes no tinham o intuito de garantir o bem comum, mas o fim de manter a ordem e punir a vagabundagem ao direcionar-se somente queles que trabalhavam -, estas aes podem ser consideradas como protoformas de polticas sociais, mesmo que garantidas com objetivos diferentes.

    Das leis inglesas, podemos considerar que a partir de 1975 com a Lei Speenhamland as configuraes da poltica social comeam a se modificar com um carter menos repressor, garantindo aos empregados como tambm aos desempregados uma quantia em valor, mas de forma que estes se mantivessem fixados sem mobilidade de mo de obra. J as leis anteriores

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    a realidade manteve-se diferenciada a partir do Estatuto dos Trabalhadores vigorada em 1349, que sinalizava a finalidade de estabelecer o imperativo do trabalho a todos que dependiam de sua fora de trabalho para sobreviver; obrigar o pobre a aceitar qualquer trabalho que lhe fosse oferecido; regular a remunerao do trabalho [...]; proibir a mendicncia dos pobres vlidos [...] (CASTEL, 1998 apud BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 48) entre outras medidas punitivas. Dentre as mais conhecidas da poca que sucederam o Estatuto temos: o Estatuto dos Artesos de 1563, a Lei dos pobres elisabetanas, que se sucederam entre 1531 e 1601 e a Lei de Domiclio que vigorou em 1662 (idem, p. 48).

    Com a Nova Lei dos Pobres, criada em 1834, num contexto de iniciao da Revoluo Industrial, seu objetivo era o de liberar a mo de obra interessante e necessria nova sociedade de mercado. Esta na verdade configurou-se em uma nova roupagem da Lei Speenhamland, a qual reinstitua de maneira menos intensa a obrigatoriedade ao trabalho para os pobres capazes de trabalhar para, desta forma, merecer e obter o auxlio. Cabe ressaltar que j nesta poca o capitalismo mundial j engendrava no cenrio influenciando nas aes de proteo social classe que vive do trabalho.

    Nesta ocasio que os trabalhadores iniciam no sculo XIX um processo de revolta contra o novo padro de explorao que cada vez mais causava o agravamento de suas condies de vida. A questo social, como uma inflexo deste processo de produo e reproduo das relaes deste momento histrico capitalista, torna-se visvel a partir da luta de classes em busca da reduo da jornada de trabalho. Comea a ocorrer o deslocamento da desigualdade social e da explorao para o campo da questo social, porm, o que tiveram como respostas advindas do Estado foram, sobretudo, repressivas e algumas apenas aes demandadas pela classe trabalhadora, de maneira tmida e parcial, no atingindo o cerne da questo social (BEHRING & BOSCHETTI, 2009, p. 62-63). Todavia, estreando o sculo XX, ainda mundialmente falando, algumas benesses no que diz respeito ao campo dos direitos foram conquistadas, como o direito ao voto e de organizao sindical.

    De maneira geral, como j mencionado, o surgimento das polticas sociais em cada pas depende totalmente de cada uma das realidades vividas historicamente nestes, dependendo especificamente da fora dos movimentos da classe trabalhadora, de sua presso e organizao, o grau de desenvolvimento das foras produtivas e das correlaes de fora do Estado.

    A situao comea a mostrar traos de mudana durante os trinta anos de expanso do capitalismo maduro mundial aps a grande crise ocorrida em 1929. Momento este marcado pelas altas taxas de lucro e ainda grande investimento de polticas sociais voltadas para os

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    trabalhadores no qual o Estado tem seu papel social provocando melhorias na qualidade de vida no somente no mbito fabril, mas de lazer dos trabalhadores.

    As polticas sociais viveram um momento de grande expanso como estratgia anticrise que, atravs de aes estatais interventivas que faziam parte do padro keynesiano, ampliaram instituies de servios e polticas, de benefcios sociais, principalmente aqueles voltados para os trabalhadores dos pases desenvolvidos. Resultado este de reivindicaes desta classe que antes desde perodo j vinham apresentando sinais de luta.

    Nesse sistema de aes sociais do Estado, os direitos passam a ser universais estendidos a todos os cidados independente de qualquer circunstncia e de maneira incondicional, garantindo os mnimos sociais a todos com necessidade. Perodo este conhecido principalmente atravs do termo Welfare State originado na Inglaterra, ultimamente muito utilizado para caracterizar tal poca de expanso social.

    Neste contexto, as polticas sociais em seu perodo extensivo aps Segunda Guerra Mundial, podem ser consideradas em cada pas, sobretudo a partir de conceitos como sistema beveridgiano que tem como base o Plano Beveridge e o modelo bismarckiano de atendimentos s necessidades sociais e o papel ocupado pelo Estado. No beveridgiano, que propunha a crtica aos seguros privados bismarckianos, prevalecem os servios no contributivos, j no plano bis