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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X FEMINISMO AUTÔNOMO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: REFLEXÕES INICIAIS Telma Gurgel¹ Resumo: O debate sobre a autonomia no interior do feminismo no Brasil tem sido teorizado em diversos aspectos que demarcam no geral, a autodeterminação das mulheres como condição ontológica do feminismo como sujeito coletivo. Neste sentido, o maior interesse desse texto é dialogar com as questões que giram em torno da noção de autonomia na atualidade e seus desdobramentos na práxis política feminista, mediante os dados iniciais de pesquisa documental com grupos feministas em três estados do nordeste brasileiro. Com isto, ensaiamos indicar que dentre os desafios que contornam este debate está a perspectiva da autonomia como elemento demarcatório que, dialeticamente, estabelece os nexos internos necessários à todo sujeito coletivo constituído por múltiplas opressões como o feminismo. Nesse campo, utilizamos a noção de coletivo total como uma síntese das particularidades que possibilitam uma unidade na diversidade no campo feminista considerando-se sua heterogeneidade teórico-política-social como sujeito emancipatório. Palavras-chaves: movimento feminista, autonomia, coletivo total. Ao longo da história do feminismo no Brasil, o termo autonomia assumiu diversas conotações que refletiu antes de tudo, o nível de envolvimento desse movimento com determinado contexto social e a sua ação militante, no processo de transformações sociais, políticas e culturais. Assim, para além de outras singularidades que compõem a história do feminismo, nesse artigo seguiremos o fio condutor do debate sobre autonomia que desde o início, criticou o sentido restrito do individualismo abstrato preconizado pela sociedade moderna e situou as contradições e desigualdades com relação à condição socio-histórica das mulheres. Destarte a autonomia pressupõe a condição de liberdade sendo assim não se pode falar em autonomia das mulheres, em realidades com bases estruturais patriarcais, capitalistas e racistas que consubstancialmente e coextensivamente alimentam todas as relações societárias e naturalizam os diversos sistemas de opressões. 1 . A primeira demarcação foi, portanto, no sentido de que a autonomia não seria uma palavra sem corporeidade, sua compreensão exige o pressuposto de que existem diferentes condições de 1 Mesmo que algumas mulheres consigam viver em condição de autonomia e possa estabelecer relações mais igualitárias em seu cotidiano, a realidade de hierarquização, segregação e exploração ainda é fato concreto na vida da maioria das mulheres, em nível mundial e no Brasil, em particular.

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Page 1: FEMINISMO AUTÔNOMO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: … · 2018-01-17 · ... no processo de transformações sociais, políticas e ... essa compreensão atribuída à autonomia pelo feminismo

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

FEMINISMO AUTÔNOMO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO:

REFLEXÕES INICIAIS

Telma Gurgel¹

Resumo: O debate sobre a autonomia no interior do feminismo no Brasil tem sido teorizado em

diversos aspectos que demarcam no geral, a autodeterminação das mulheres como condição

ontológica do feminismo como sujeito coletivo. Neste sentido, o maior interesse desse texto é

dialogar com as questões que giram em torno da noção de autonomia na atualidade e seus

desdobramentos na práxis política feminista, mediante os dados iniciais de pesquisa documental

com grupos feministas em três estados do nordeste brasileiro. Com isto, ensaiamos indicar que

dentre os desafios que contornam este debate está a perspectiva da autonomia como elemento

demarcatório que, dialeticamente, estabelece os nexos internos necessários à todo sujeito coletivo

constituído por múltiplas opressões como o feminismo. Nesse campo, utilizamos a noção de

coletivo total como uma síntese das particularidades que possibilitam uma unidade na diversidade

no campo feminista considerando-se sua heterogeneidade teórico-política-social como sujeito

emancipatório.

Palavras-chaves: movimento feminista, autonomia, coletivo total.

Ao longo da história do feminismo no Brasil, o termo autonomia assumiu diversas

conotações que refletiu antes de tudo, o nível de envolvimento desse movimento com determinado

contexto social e a sua ação militante, no processo de transformações sociais, políticas e culturais.

Assim, para além de outras singularidades que compõem a história do feminismo, nesse

artigo seguiremos o fio condutor do debate sobre autonomia que desde o início, criticou o sentido

restrito do individualismo abstrato preconizado pela sociedade moderna e situou as contradições e

desigualdades com relação à condição socio-histórica das mulheres.

Destarte a autonomia pressupõe a condição de liberdade sendo assim não se pode falar em

autonomia das mulheres, em realidades com bases estruturais patriarcais, capitalistas e racistas que

consubstancialmente e coextensivamente alimentam todas as relações societárias e naturalizam os

diversos sistemas de opressões.1.

A primeira demarcação foi, portanto, no sentido de que a autonomia não seria uma palavra

sem corporeidade, sua compreensão exige o pressuposto de que existem diferentes condições de

1 Mesmo que algumas mulheres consigam viver em condição de autonomia e possa estabelecer relações mais

igualitárias em seu cotidiano, a realidade de hierarquização, segregação e exploração ainda é fato concreto na vida da

maioria das mulheres, em nível mundial e no Brasil, em particular.

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sua realização, na vida do individuo concreto, quando situamos a perspectiva de intersecionalidade

classe, raça e sexo.

Num segundo momento, esboçaremos alguns elementos que demarcam e definem o campo

feminista autônomo, mediante um diálogo com os dados iniciais de nossa pesquisa sobre o

feminismo no Brasil contemporâneo.2

1-Questões de autonomia para a práxis do Feminismo

Como já nos assinalou Pinto (2003) a organização de coletivos que se auto definem como

feministas, teve inicio no Brasil, nos anos de 1970, no cenário da ditadura militar e sob a influência

das ideias feministas em países da Europa e dos Estados Unidos. Eram conhecidos como grupos de

reflexão, com importante atuação no sentido do compartilhamento de experiências vividas e na

construção de um espaço político, não misto, que possibilitasse uma ação coletiva, mesmo em

tempos de cruel repressão. Mesmo com esse caráter intimista, podemos encontrar registro de

manifestações políticas organizadas por alguns desses coletivos, em torno do direito ao aborto.

Como não se tinha uma arena de luta política aberta para a disputa de projetos societários,

em função da ditadura militar, à época, esses grupos de reflexão representavam o espaço legítimo

de auto-organização das mulheres e um ambiente de sororidade3 que foi fundamental para os

momentos seguintes, em que o debate da au tonomia política do movimento se evidencia.

Isto porque a experiência da organização de grupos de mulheres brasileiras exiladas, em

especial, o Círculo de Mulheres, em Paris, no qual se ratificou uma perspectiva revolucionária para

o feminismo em aliança com o ideário feminista do Movimento de Libertação da Mulher- MLF.4

Trouxe para o centro do debate a relação programática e tensionada entre a auto-organização das

mulheres e a luta de classes, com o enfoque no limite e complementariedade dessa aproximação.

2 Referimo-nos a pesquisa que coordenamos O FEMINISMO COMO UM COLETIVO TOTAL: um estudo sobre o

feminismo autônomo no Brasil trata-se de uma pesquisa nacional, iniciada, em 2016, com o apoio do CNPq. Os dados

que apresentaremos no artigo se refere a coletivos de três estados nordestinos: Rio Grande do Norte, Ceará e

Pernambuco. 3 A sororidade é aqui compreendida como uma aliança feminista entre mulheres( Lagarde,2009), como um valor e

prática, ela se traduz como um agrupamento de mulheres que se reconhecem, mesmo na diversidade. Como conceito

complexo, exige o cuidado para não invisibilizar experiências vividas e as relações de poder entre mulheres.

4 O MLF foi uma das expressões feministas dos movimentos de contestação as formas tradicionais de organização

política, que se desenvolveram no contexto europeu dos anos de 1960 e influenciaram toda uma geração de militantes,

intelectuais e ativistas.

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A querela era, portanto, entre o feminismo, o movimento de mulheres, os partidos políticos

de esquerda ou centro-esquerda e as organizações de esquerda clandestinas e girava em torno do

potencial da luta feminista e sobre seu objetivo estratégico. Para Pinto ( 2003), o tensionamento se

dava,

[...] entre aquelas que pensavam que o feminismo tinha de estar associado à luta de classe e

aquelas que associavam o feminismo a um movimento libertário que dava ênfase ao corpo,

à sexualidade e ao prazer. ( PINTO, 2003,p. 55).

Importa ainda destacar que além dessa disputa no seio do movimento, as mulheres ainda

tinham que enfrentar a resistência de suas organizações políticas que consideravam o feminismo e

suas temáticas, como um risco para a unidade da classe trabalhadora, já que traziam para o espaço

público o questionamento da ordem patriarcal, muitas vezes reproduzida no interior dos partidos de

esquerda, seja na divisão de tarefas, na representação pública e no assédio moral e sexual de suas

militantes pelos dirigentes.

A conjuntura dos anos de 1980 e o início do frágil e comprometido processo de

redemocratização em nosso país é acompanhada por uma maior aproximação do feminismo com as

demandas das mulheres populares e com os partidos políticos de esquerda. Fenômeno que já se

evidenciava na década passada, quando foi criado o Centro de Desenvolvimento da Mulher

Brasileira5.

Neste cenário o princípio teórico dos debates sobre autonomia se centrava na crítica a dupla

militância de feministas com atuação no movimento e em partidos políticos. Os riscos de uma

hegemonização das lutas e interesses das organizações partidárias no interior do movimento

feminista foi o ponto predominante do debate. No geral se temia que a disputa de correlação de

forças entre as diversas agremiações partidárias no interior do campo feminista, implicasse em

fragilidade organizativa e dispersão de força coletiva.

O questionamento em torno da autonomia também se desenvolvia no processo de

aproximação com as mulheres em bairros populares que traziam questões relativas à imediaticidade

do cotidiano, para o movimento. Demandas essas que em diferentes enfoques, muitas vezes, foram

compreendidas à época, como destoante em relação às reivindicações feministas que se

5Organização criada em 1975 com o objetivo de desenvolver estudos e ação de organização políticas das mulheres. Ver Pinto (2003).

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desenvolviam no tripé do confronto com o patriarcado, da crítica ao capitalismo e de resistência às

formas tradicionais de fazer política. Por outro lado, temiam-se, principalmente, as alterações

programáticas que seriam provocadas no feminismo mediante a incorporação destas pautas, que se

encerravam na conquista imediata das políticas públicas e na garantia de participação política das

mulheres.

Além desse debate programático, nesse momento o termo autonomia ganha destaque

também na questão estratégica do feminismo, em torno da aproximação/distanciamento do Estado.

Aqui se encontravam pelo menos duas tendências hegemônicas: aquela que defendia a

institucionalização do movimento com uma maior relação com os governos, no intuito de inserir o

tema da condição das mulheres nas políticas públicas. E, a que ponderava a manutenção do caráter

autônomo do movimento e destacava o risco da cooptação ou do envolvimento manipulatório,

segundo Cisne (2015) que poderiam advir desta justaposição de interesses. Esta temeridade se

evidenciará mais fortemente na década seguinte, com o fenômeno das Organizações Não-

Governamentais- ONGs.

Com os anos de 1990, essa compreensão atribuída à autonomia pelo feminismo desloca-se

da questão da especificidade da autodeterminação do movimento de mulheres, em relação aos

partidos políticos e as esferas estatais e ganha o terreno da institucionalidade das ONGs feministas.

Diferentemente da década anterior, na qual alguns coletivos feministas realizavam serviços,

dirigidos às mulheres, como estratégia de pressão sobre os diversos governos para implantação de

políticas públicas para mulheres e ao mesmo tempo ampliar o apoio social a uma pauta

principalmente, na área de atenção saúde, combate a violência contra a mulher e organização

política6.

O fenômeno das ONGs está relacionado a um contexto mais amplo de estruturação do

capitalismo e cumpre um papel estratégico, sob o ponto de vista da transferência de

responsabilidade de programas e políticas que deveriam ser executadas pelo Estado, para o

chamado terceiro setor (MONTAÑO E DURIGUETO, 2011).

6 Estas iniciativas já contavam com financiamento externo, a maioria desses advinha de fundos de solidariedade de

associações da sociedade civil, movimentos sociais, órgãos clericais progressistas e outras fontes associativas do

hemisfério norte, principalmente.

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No campo do feminismo podemos destacar pelo menos duas críticas à ‘onguização’ que

podem esclarecer, os conflitos que repercutem na questão da autonomia do movimento feminista

enquanto sujeito coletivo, até hoje.

A primeira diz respeito à transformação da identidade institucional com a redução política e

quantitativa, da base social do movimento de mulheres na dinâmica cotidiana da ONG. A segunda

crítica se centra na estrutura administrativa que transferiu as decisões políticas do movimento, para

as equipes das ONGs.

A contradição estaria assim situada entre o princípio da autonomia que se materializa no

processo de autodeterminação, individual e coletivo, das mulheres no exercício da política. E a

centralidade de poder nas estruturas das ONGs que reproduz práticas de hierarquização e

centralidade decisórias, modelo este, cuja a crítica é um dos fundamentos teórico-políticos do

feminismo como sujeito coletivo.

Outro ponto de crítica se centrava na questão da origem dos financiamentos na medida em

que além dos recursos internacionais7, o contexto dos anos de 1990 inaugura um período de maior

acesso dos coletivos feministas, por meio das ONGs, aos fundos públicos nacionais. Inclusive como

resposta às orientações da cooperação internacional que preconizava uma contrapartida das

instituições, mediante aproximação com o Estado.

A contradição entre os interesses de autodeterminação das mulheres e as relações

institucionais construídas mediante estes financiamentos, é focalizada na maioria dos estudos sobre

o movimento na América Latina. Conforme Alvarez (1998, 2000) e Castro (1997) o financiamento

das ONGs passou a ser um dos indicadores, do processo de “onguização” do feminismo e sua

provável perda de autonomia para a realização de ações com maior combatividade e radicalidade.

Importa destacar que apesar dessa tendência, existem práticas diferenciadas entre as ONGs em

relação a essa política.

Com isso, queremos indicar que o debate sobre a autonomia para o feminismo pode ser

sistematizado, em qualquer época histórica, mediante três questões centrais, entre outras: 1- Qual a

7 Estes se estruturam, muitas vezes, como intermediárias de fundos advindos de organismos financeiros, principais

responsáveis pelo crescimento da pobreza e desigualdades no continente, como o Fundo Monetário Internacional(FMI),

o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD) e o Banco Mundial(BM). Cisne( 2015) observa uma redução

desse financiamento atualmente.

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natureza e com quais sujeitos estabelece relações políticas? 2- Como garantem sua sustentabilidade

financeira? 3- Quais são suas instâncias decisórias, como funcionam e em que periodicidade?

Com estas questões iniciamos nossa pesquisa com grupos autônomos feministas, pois como

parte de um complexo de totalidades (KOSIK,1985) o fenômeno da institucionalização do

feminismo no último período, tem sido acompanhado pelo surgimento de novas organizações

feministas.

Assim no próximo ítem nos deteremos na concepção de autonomia que referenciam esses

coletivos, indicando assim uma tendência teórico-política desse debate na atualidade.

2- Autonomia e feminismo: um debate em continuidade

O debate sobre a autonomia como elemento de demarcação e unidade exige antes de tudo

que o movimento feminista recrie os mecanismos de participação direta em suas instâncias de

decisões.

Em tempos de adversidades, como o que enfrentamos na atualidade, é fundamental o

alargamento dos espaços de democracia que expresse a diversidade das opressões contra as quais as

mulheres se mobilizam. E, ao mesmo tempo, destaque a necessidade de compreendê-las num

processo de imbricação permanente, que possibilite, mesmo que pontualmente, a construção de um

campo amplo de ação política das diferentes formas de resistência das mulheres, às expressões do

poder estrutural-simbólico do patriarcado na sociedade contemporânea,.

Essa prerrogativa de se constituir como espaço amplo, que contemple a diversidade de

experiências de opressão enfrentadas pelas mulheres é destacado pelos coletivos em seus

documentos:

[...] o feminismo não diz respeito apenas às mulheres, mas toda forma de opressão,

dominação e controle. Entendemos que não existe hierarquia de opressões, tanto a opressão

de gênero quanto a de raça, etnia e classe devem ser combatidas (COLETIVO LEILA

DINIZ, 2014,p.02).

Além de indicar uma perspectiva de consubstancialidade e coextensividade das relações

sociais de sexo, raça e classe que segundo Kergoat (2012, p. 126-127):

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[...] formam um nó que não pode ser sequenciado ao nível das práticas sociais, apenas em

uma perspectiva analítica da sociologia; e elas são coextensivas: implantando as relações

sociais de classe, de gênero e de ‘raça’, se reproduzem e se coproduzem mutuamente.

Esse caráter, ao mesmo tempo, geral e específico das lutas feministas, aliado a centralidade

da superação do patriarcado em suas dimensões de “raça”/etnia e classe pode ser considerada a

força política do feminismo. Como nos afirma Falquet (2011), a unidade relativa do feminismo em

torno desse projeto emancipatório demarca a sua memória social.

Nesse panorama, a estratégia global do feminismo deve reconhecer as diferentes

experiências de opressão das mulheres, como corpo individualizado e sujeito social e a

heterogeneidade em sua formação, daí decorrente.

Esse reconhecimento confere ao feminismo um movimento dialético que conforma uma

unidade para sua construção como sujeito político que se desafia, permanentemente, ao “[...]

reconhecimento da diversidade e a construção de uma unidade diversa que exprime a aceitação das

experiências particulares dentro da identidade coletiva” (CISNE; GURGEL, 2014, p. 73),

constituindo-se assim, como um coletivo total.

Compreendemos que a categoria de coletivo total permite uma leitura das diversas

singularidades no feminismo, sem hierarquização. Pois reivindicar o total nos distancia dos riscos

da fragmentação e/ou isolamento nas especificidades, compreendidas como um desprendimento do

processo social como complexo de totalidades. Trata-se, portanto, do reconhecimento das

particularidades no todo da diversidade que compõe um sujeito múltiplo, como o feminismo.

Neste sentido, a noção do coletivo total pode ser entendida, ao mesmo tempo como uma

ferramenta analítica e um instrumento politico, no campo da práxis social feminista, pois pressupõe

a construção de relações horizontalizadas elemento constitutivo de todo processo de debate sobre

autonomia.

Em nossa pesquisa a horizontalidade foi apresentada por todos os coletivos como princípio e

condição essencial pra concepção de autonomia política assumida pelo movimento, na atualidade.

Assim, podemos encontrar que,

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O Coletivo Feminista Diadorim entende que a horizontalidade das práticas, das decisões e

das relações é um elemento essencial da nossa atuação. Entendemos que a igualdade nas

relações de poder e a rejeição a qualquer forma de hierarquia são centrais a construção do

empodera- mento das sujeitas e do feminismo. O diálogo entre as nossas companheiras é

parte fundamental do processo de construção das nossas autonomias. ( COLETIVO

DIADORIM, 2014, s/p).

Sem dúvida que a reafirmação da horizontalidade, responde imediatamente a crítica do

deslocamento de poderes, no interior do feminismo, com o processo de onguisação. No entanto

concordamos com Oliveira (2017) que destaca em suas reflexões os riscos do espontaneismo, como

uma contra tendência política, também possível, no cenário contemporâneo.

Com base nessa leitura destacamos a necessidade do feminismo em superar esse risco com

o desenvolvimento de formação política, ações diretas e encontros amplos que fomente o debate em

torno dos elementos que limitam sua perspectiva crítica do real e sua força política, na criação de

uma nova ordem de igualdade e liberdade.

O desafio é, portanto, desenvolver simultaneamente a crítica ao Estado e ao capitalismo sem

perder de vista, as demais dimensões, objetivas e subjetivas, que constróem a experiência

compartilhada das mulheres no processo de oposição à estrutura patriarcalizada da sociedade.

É neste sentido que a autodesignação de feministas autônomas, ganha força nos coletivos

pesquisados. Como encontramos na apresentação do coletivo Diadorim:

[...] o coletivo feminista Diadorim, surge se afirmando enquanto coletivo independente,

autônomo, horizontal e auto organizado, formado por mulheres cis e trans comprometidas

com a luta pelo combate à todas as formas de opressão, entendidas assim, como

transversalizadas a luta anticapitalista. (COLETIVO DIADORIM, 2014, s/p ).

Ou ainda na carta política do Coletivo Leila Diniz quando explica a sua transição de ONG

para movimento autônomo,

Autônomo porque essa foi nossa primeira pauta e decisão coletiva, queríamos caminha com

as nossas pernas, de forma independente de partidos políticos e sindicatos. Somos auto-

organizadas, descoladas de organismos verticalizados, com hierarquia e concenração de

poder, protagonizamos nossa própria luta. ( COLETIVO LEILA DINIZ, 2014, p.01)

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Ao incorporar a autonomia como parte constituinte de sua ação política, esses grupos

feministas reveem antigas matizes desse debate na história do movimento. Ao mesmo tempo em

que afirmam demarcações importantes no sentido da afirmação do caráter emancipatório do

movimento.

Entre estas queremos destacar a dimensão da auto-organização e de unidade na diversidade

que acompanham as propostas em evidência e que pode alterar a representatividade pública do

movimento, em seu diálogo com a sociedade e em termos de sua conexão com a luta de classes8.

Por fim, podemos indicar que as expressões do feminismo autônomo surgidas em meio a

crítica à institucionalização, em nosso país, nos últimos anos, favorecem ao processo de construção

de uma agenda anticapitalista, antirracista, antissexista e de solidariedade que favorece a

perspectiva de reconhecimento das diversas opressões, vivenciadas pelas mulheres, que o

caracterizam como um sujeito coletivo total.

6 Referências

ALVAREZ, Sônia E. Em que Estado está o feminismo latinoamericano: uma leitura crítica das

políticas públicas com ‘perspectiva de gênero’. Cadernos Sempreviva Gênero nas políticas públicas:

impasses e perspectivas para a ação feminista. Nalu Faria, Maria Lúcia Silveira e Míriam

Nobre(Orgs). São Paulo: SOF, 2000, p. 09-25.

______. Feminismos Latino-americanos. Revistas Estudos Feministas. Rio de Janeiro.

IFSC/UFRJ-PPCIS/UERJ, n. 2, p. 265-284, 1998.

CASTRO, Mary Garcia. Feminismos e feminismos, reflexões à esquerda. Presença de Mulher,

São Paulo, n. 29, p. 03-09, 1997.

CISNE, Mirla. Feminismo e Consciência de classes no Brasil. São Paulo: Cortez Editora, 2015

________e GURGEL, Telma. Feminismos no Brasil Contemporâneo: apontamentos críticos e

desafios organizativos. In Revista TEMPORALIS. Brasília (DF), ano 14, n. 27, p. 57-76, jan./jun.

2014.

COLETIVO LEILA DINIZ. Carta para amigas/os e parceiras/os, Natal-RN, 2013.

COLETIVO AUTÔNOMO FEMINISTA LEILA DINIZ. Manifesto do coletivo autônomo

feminista Leila Diniz. 05 DE AGOSTO DE 2014. Disponível em: <

8 Referimo-nos em especial ao coletivo marcha das vadias e o Diadorim em Recife-Pe, o Coletivo Leila Diniz, em

Natal- RN e o grupo Tambores de Safo, em Fortaleza- Ce, entre outras expressões.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

https;//www.facebook.com/coletivoleiladiniz/posts/706700192716777> Acesso em 05 de maio de

2016.

COLETIVO DIADORIM. Carta Política. Recife/PE, 2014.

FALQUET, Jules. Le Mouvemement féministe em Amérique Latine et aux Caraïbes: défis et

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Acesso em 20/10/2012.

KERGOAT, Danièle. Se battre, disent-elles... Paris: La Dispute, 2012.

KOSIK, Karel. Dialética do Concreto, 3ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.

OLIVEIRA, Thaisa Vanessa Costa. FEMINISMO E AUTONOMIA: um estudo da organização

da Marcha das Vadias em Recife/Pe. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Direitos

Sociais. Mossoró: UERN, 2017, 119 p.

MONTAÑO, Carlos e DURIGUETO, Maria Lúcia. Estado, Classes e Movimentos Sociais. São

Paulo: Cortez, 2011.

PINTO, Celi Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu

Abramo, 2003.

Abstract: The debate about autonomy in feminism in Brazil has been theorized in several aspects

that demarcate in general, the self-determination of women as the ontological condition of feminism

as a collective subject. In this sense, the main interest of this text is to dialogue with the questions

that revolve around the notion of autonomy in the present and they unfolding in the feminist

political praxis, through the initial data of documentary research with feminist groups in three states

of northeastern Brazil. With this, we try to indicate that among the challenges that surround this

debate is the perspective of autonomy as a demarcating element that, dialectically, establishes the

necessary internal links to every collective subject constituted by multiple oppressions such as

feminism. In this field, we use the notion of total collective as a synthesis of the particularities that

make possible a unity in diversity in the feminist field considering its theoretical-political-social

heterogeneity as an emancipatory subject.

Keywords: feminist movement, autonomy, total collective