felpo filva: análise estilística da obra de eva furnari

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1 UNIVERSIDADE DE SOROCABA PRÓ-REITORIA ACADÊMICA CURSO DE LETRAS PORTUGUÊS E INGLÊS Karen de Moraes Machado FELPO FILVA: ANÁLISE ESTILÍSTICA DA OBRA DE EVA FURNARI Sorocaba/SP 2012

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Resumo: Este trabalho relata, no capítulo inicial, os conceitos de literatura e a literatura presente no livro analisado. O estudo norteia que as palavras exercem um papel determinante e causam efeitos de sentido que buscam produzir e induzir o leitor. Segundo o escritor Proença Filho, “A literatura é a arte da palavra, A literatura revela uma realidade (a literatura é o homem e a sua circunstância), A literatura, arte que é, proporciona prazer estético”. O trabalho traz uma análise estilística do livro Felpo Filva, de Eva Furnari, veiculada à literatura infantil, e as características do estilo da obra. Nessa pesquisa, discutem-se conceitos sobre recursos estilísticos e efeitos de sentido, que são os objetos da análise. São também utilizadas as figuras de linguagem, sendo uma vertente da estilística. Pela análise do livro, foi possível perceber que o leitor é seduzido pela visualidade, pelo reconhecimento figurativo e movido pela curiosidade. Todas as imagens ligadas à escrita que foram analisadas são ricas em detalhes, por utilizar de vários artifícios estilísticos durante a obra. Ao final da pesquisa, foi possível constatar que os recursos estilísticos utilizados na obra buscam produzir efeitos de humor, uma vez que reveste na maioria de um sentido cômico o que foi dito. Também podemos ver efeito de depreciação/ironia, quando a autora busca criticar algo. Toda essa ideia está ligada ao efeito de afetividade, quando a escritora demonstra afeto e emoções infantis para seduzir o ouvinte quando relaciona a palavra/imagem. Palavras-chave: Literatura Infantil. Felpo Filva. Estilística. Figuras de Linguagem e Efeitos de Sentido.

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Page 1: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

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UNIVERSIDADE DE SOROCABA

PRÓ-REITORIA ACADÊMICA

CURSO DE LETRAS PORTUGUÊS E INGLÊS

Karen de Moraes Machado

FELPO FILVA: ANÁLISE ESTILÍSTICA DA OBRA DE EVA FURNARI

Sorocaba/SP

2012

Page 2: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

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Karen de Moraes Machado

FELPO FILVA: ANÁLISE ESTILÍSTICA DA OBRA DE EVA FURNARI

Trabalho de Conclusão do Curso apresentado

como exigência parcial para obtenção do

Diploma de Graduação em Letras Português e

Inglês, da Universidade de Sorocaba.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes

Sorocaba/SP

2012

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Karen de Moraes Machado

FELPO FILVA: ANÁLISE ESTILÍSTICA DA OBRA DE EVA FURNARI

Trabalho de Conclusão de Curso aprovado

como requisito parcial para a obtenção do

Diploma de Graduação em Letras Português e

Inglês, da Universidade de Sorocaba.

Aprovado em:

BANCA EXAMINADORA:

Ass. ______________________________

1ºexaminador _______________________

Ass. ______________________________

2º examinador ______________________

Ass. ______________________________

3º examinador ______________________

Page 4: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

4

Dedico este trabalho às duas

pessoas mais importantes durante todo esse

processo: minha mãe, Eleni, que, sempre me

apoiou, e meu professor e orientador, Luiz

Fernando Gomes, que além de ter me guiado

brilhantemente, ensinou-me a questionar em

vez de buscar respostas prontas.

Page 5: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, a Deus pela vida, por iluminar meu caminho e pelas

oportunidades que tive na vida.

Ao meu orientador, Luiz Fernando Gomes, que me inspirou e mostrou que ser

professor vale a pena. Ensinou-me a enxergar o mundo de uma forma bem diferente e

despertou em mim a dúvida e a curiosidade.

À minha mãe, Eleni, ao meu pai, Josino, à minha irmã, Elen e ao meu irmão, Vinícius,

que colaboraram para que esse trabalho fosse feito, apoiando-me e me incentivando.

Aos meus professores que contribuíram cada um à sua maneira, para a minha

formação.

E, por fim, gostaria de agradecer em especial ao João Paulo, que sempre me ajudou.

Também aos meus amigos e colegas de sala, pelas risadas, pelas brincadeiras, pelo

companheirismo e pela alegria que nos conduziu durante esses três anos de curso.

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Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.

(Fernando Pessoa)

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RESUMO

Este trabalho relata, no capítulo inicial, os conceitos de literatura e a literatura presente no

livro analisado. O estudo norteia que as palavras exercem um papel determinante e causam

efeitos de sentido que buscam produzir e induzir o leitor. Segundo o escritor Proença Filho,

“A literatura é a arte da palavra, A literatura revela uma realidade (a literatura é o homem e a

sua circunstância), A literatura, arte que é, proporciona prazer estético”. O trabalho traz uma

análise estilística do livro Felpo Filva, de Eva Furnari, veiculada à literatura infantil, e as

características do estilo da obra. Nessa pesquisa, discutem-se conceitos sobre recursos

estilísticos e efeitos de sentido, que são os objetos da análise. São também utilizadas as

figuras de linguagem, sendo uma vertente da estilística. Pela análise do livro, foi possível

perceber que o leitor é seduzido pela visualidade, pelo reconhecimento figurativo e movido

pela curiosidade. Todas as imagens ligadas à escrita que foram analisadas são ricas em

detalhes, por utilizar de vários artifícios estilísticos durante a obra. Ao final da pesquisa, foi

possível constatar que os recursos estilísticos utilizados na obra buscam produzir efeitos de

humor, uma vez que reveste na maioria de um sentido cômico o que foi dito. Também

podemos ver efeito de depreciação/ironia, quando a autora busca criticar algo. Toda essa ideia

está ligada ao efeito de afetividade, quando a escritora demonstra afeto e emoções infantis

para seduzir o ouvinte quando relaciona a palavra/imagem.

Palavras-chave: Literatura Infantil. Felpo Filva. Estilística. Figuras de Linguagem e Efeitos de

Sentido.

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ABSTRACT

This paper reports in its opening chapter the concepts of literature and the literature found on

the analyzed book. The study suggests that words play a decisive role and cause meaning

effects that seek to produce and induce the reader. According to the writer Proença Filho,

“Literature is the art of words, Literature discloses a reality (literature is the man and his

condition). Literature, being an art, provides aesthetic pleasure”. The paper brings a stylistic

analysis of the book Felpo Filva, by Eva Furnari, conveyed to children's literature and the

characteristics of the style of work. This paper discusses concepts of stylistic devices and

effects of meaning, which is the object of analysis. Figures of speech are also used, as it is one

of the aspects of stylistics. By analyzing the book was possible to see that the reader is

seduced by the visual, figurative and moved by curiosity. All images linked to the writing

which were analyzed are rich in details, because of the use of many stylistic artifices. At the

end of the research it was possible to find that the stylistics means used in the work seek to

produce effects of humor, once it coats, in most cases, in a comic sense. We can also see the

effect of depreciation or irony, when the writer seeks to criticize something. All this idea is

linked to the effect of affection, when the author shows childish affection e emotions to

seduce the listener when linking word to image.

Key words: Children's Literature. Felpo Filva, Stylistics, Figures of speech, Sense effect.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Frase de dedicatória do livro Felpo Filva............................................................25

Figura 2 Felpo Filva...........................................................................................................36

Figura 3 Sticorelia Rabite Perfection.................................................................................37

Figura 4 Orelite Tremulosa................................................................................................39

Figura 5 Livros de Felpo Filva...........................................................................................40

Figura 6 Charlô..................................................................................................................41

Figura 7 Destremil.............................................................................................................42

Figura 8 Casamento...........................................................................................................44

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11

1. A LITERATURA EM FELPO FILVA ............................................................................................................... 13

1.1 Conceitos de Literatura .................................................................................................. 13

1.2. Literatura Infantil: Significados e Constatações .......................................................... 15

1.3. Estilística .......................................................................................................................... 18

1.4. Figuras de Linguagem ..................................................................................................... 20

1.5. Efeitos de Sentido ............................................................................................................ 22

1.6. Literatura Infantil de Eva Furnari ................................................................................ 26

1.7. O livro Felpo Filva ........................................................................................................... 27

2. METODOLOGIA DE PESQUISA ................................................................................... 34

2.1 Contexto da Pesquisa ...................................................................................................... 34

2.2 As questões e os instrumentos de coleta de dados ........................................................ 34

3. ANÁLISE DO LIVRO ....................................................................................................... 36

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 46

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 48

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INTRODUÇÃO

A literatura se faz muito importante em nossas vidas, pois, por meio dela, podemos

aprender ensinar e conhecer outras culturas. A sua grandiosidade deve ser compreendida

como uma leitura que permita a viagem no mundo da imaginação, tão presente na infância.

Para Drummond, “Literatura Infantil é antes de qualquer coisa, literatura, isto é,

mensagem de arte, beleza ou emoção. Portanto, se destinada especificamente à criança, nada

impede (pelo contrário) que possa agradar ao adulto. E nada modifica sua característica

‘literária’ se, escrita para o adulto, agradar e emocionar a criança”.

Dentre as literaturas existentes, minha pesquisa foca na literatura infantil, na análise

estilística do livro Felpo Filva, de Eva Furnari.

Objetivo

O objetivo desta pesquisa é analisar e compreender o uso dos recursos estilísticos

utilizados pela autora na produção da obra. Assim, as figuras de linguagem, como estratégias

que a autora pode aplicar no texto para conseguir um efeito determinado na interpretação do

leitor.

Questões de Pesquisa

As principais questões que tentarei responder com esta pesquisa são:

Quais são os recursos estilísticos utilizados na obra?

Quais são os efeitos de sentido que esses recursos buscam produzir?

Esses recursos estilísticos produzem os efeitos de sentido esperados,

considerando-se o público leitor desse tipo de literatura?

Justificativa

Considerando que a estilística é uma área fundamental a ser estudada, a obra Felpo

Filva contribui para ampliar os conhecimentos estilísticos, valorizando os recursos utilizados

pela autora no livro escolhido como objeto de análise.

A estilística, entretanto, é uma área que aponta um dinamismo nas figuras de estilo,

fazendo-se necessário o estudo dessas variações da língua e sua utilização, incluindo o

estético.

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Esta pesquisa justifica-se pelo meu encantamento com a literatura infantil, que gera

diversos efeitos de sentido num mundo cheio de imaginação.

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1. A LITERATURA INFANTIL EM FELPO FILVA

Neste capítulo, estudo a literatura infantil e sua relação com o livro Felpo Filva, de Eva

Furnari, assim como a biografia da autora, estilística, figuras de linguagem e efeitos de

sentido.

1.1 Conceitos de Literatura

A literatura é a arte da palavra. Na sociedade em que vivemos, a arte está cada vez

mais presente em nosso quotidiano. Como manifestação artística, a literatura tende a recriar

uma realidade a partir da visão de determinado autor (o artista), com base em seus

sentimentos, pontos de vista e técnicas narrativas.

Lajolo (1986, p. 29) diz

A forma latina litteratura nasce da outra palavra igualmente latina: littera, que

significa letra, isto é, sinal gráfico que representa, por escrito, os sons da linguagem.

O parentesco letras/literatura continua em expressões como cursos e academias de

letras, homens letrados, belas-letras e tantas outras. Insinua-se, por aí, uma estreita

relação entre a palavra literatura e a noção de língua escrita, pergaminho com

iluminuras, papel impresso, etc. (LAJOLO, 1986, p. 29).

O exposto mostra divergências de concepções do que venha ser a literatura e como ela

interfere nas reflexões que envolvem por um lado a sua conceituação e, por outro lado, os

seres humanos em geral.

Embora a literatura permita a criação de novos universos, esses são baseados, ou

inspirados, na realidade da qual o escritor participa. Daí a afirmação de que a literatura é

vinculada à realidade, mas dela foge por meio da estilização de sua linguagem. Marisa Lajolo

(1986) afirma que a linguagem tem um papel determinante na classificação de uma obra como

literária:

É a relação que as palavras estabelecem com o contexto, com a situação de

produção da leitura que instaura a natureza literária de um texto [...]. A linguagem

parece tornar-se literária quando seu uso instaura um universo, um espaço de

interação de subjetividade (autor e leitor) que escapa ao imediatismo, à

predictibilidade e ao estereótipo das situações e usos da linguagem que configuram a

vida cotidiana. (LAJOLO, 1986, p. 38).

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Percebe-se, portanto, que a função exercida pela linguagem é de suma importância

para que uma obra seja tida como obra de arte literária. Essa linguagem assume características

especiais.

Ainda sobre isso:

A literatura não é um jogo, um passatempo, um produto anacrônico de uma típica

sociedade dessorada, mas uma atividade artística que, sob uniformes modulações,

tem exprimido e continua a exprimir, de modo inconfundível, a alegria e a angustia,

as certezas e os enigmas do homem. [...] (SILVA, 1976 apud LAJOLO, 1987, p. 07).

Nesse ponto, Lajolo ressalta que cada autor cria um juízo próprio da literatura.

Entretanto, ainda segundo a autora, as perguntas e respostas sobre o que é literatura ultrapassa

qualquer intelectualismo.

Lajolo (1986) diz:

Será que é errado dizer que a literatura é aquilo que cada um de nós considera

literatura? Por que não incluir um conceito amplo e aberto de literatura, as linhas

que cada um rabisca em momentos especiais? Ou aquele conto que alguém escreveu

e está guardado na gaveta? [...] (Lajolo, 1986, p. 10).

Tecendo o conceito de literatura, Lajolo (1986, p. 15) ainda afirma: “A resposta é

simples. Tudo isso é, não é e pode ser que seja literatura. Depende do ponto de vista, do

sentido que a palavra tem para cada um, da situação na qual se discute o que é literatura.”

Nesse sentido, a autora cria certo suspense, pois, quando se pensa estar definida a

literatura, surge um novo conceito, cria-se uma nova expectativa de resposta. E, ao finalizar,

fica claro que não existe uma palavra única que possa definir a literatura.

Silva (1968) afirma que

Em latim, literatura significava instrução, saber relativo à arte de escrever e ler, ou

ainda gramática, alfabeto, erudição, etc. Pode-se afirmar que, fundamentalmente, foi

esse o conteúdo semântico do vocábulo “literatura” até o final do século XVIII,

ora, se entendendo por literatura a ciência em geral. (Silva, 1968, p. 20).

Tendo em vista o apresentado, a manifestação artística feita com a palavra recebe o

nome de literatura. Designa textos que buscam expressar o belo e o humano por meio

das palavras. Embora se tenha amplos significados, o seu sentido genérico embarca o artístico

e criativo. Instiga o prazer e conhecimento por seu conteúdo, forma e organização, sendo

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utilizada simultaneamente por palavras, recursos gráficos ou visuais na comunicação do dia a

dia.

1.2 Literatura Infantil: Significados e Constatações

Para iniciar a reflexão deste capítulo, uso o livro “Novas Palavras – Português. Ensino

Médio” (AMARAL et al., 2003), no qual encontro o significado da palavra Literatura e

observo que pode ser compreendida como:

A literatura, como qualquer outra arte, é uma criação humana, por isso sua definição

constitui uma tarefa tão difícil. O homem, como ser histórico, tem anseios,

necessidades e valores que se modificam constantemente. Suas criações — entre

elas a literatura — refletem seu modo de ver a vida e de estar no mundo. Assim, ao

longo da história, a literatura foi concebida de diferentes maneiras. Mesmo os

limites entre o que é e o que não é literatura variam com o tempo. Literatura é arte

que utiliza a palavra como matéria-prima de suas criações. (AMARAL et al., 2003,

p. 15).

Assim, a Literatura Infantil divide opiniões. Para alguns, sua origem se confunde com

a idade oral do mito:

Para nós a Literatura Infantil tem origem na idade oral do mito (...) não podemos

concordar com os que, considerando a literatura tão somente uma fase histórica (...),

acham que depende sua eliminação de uma modificação de estrutura social que seria

responsável pela sua existência. (GÓES, 1991, p. 48).

Para alguns autores, como Zilberman (1979 apud GÓES, 1991), a Literatura Infantil

só surgiria com a ascensão da ideologia burguesa no século XVIII, quando houve a

preocupação especial com a infância. Por isso, segundo Zilberman, a Literatura Infantil seria

um “gênero incompreensível sem a presença de seu destinatário, a Literatura Infantil não

poderia surgir antes da infância” (p. 47).

Assim, a denominação Literatura Infantil pode ser compreendida como:

A Literatura infantil é, antes de tudo, literatura, ou melhor, é arte: fenômeno de

criatividade que representa o Mundo, o Homem, a Vida, através da palavra. Funde

os sonhos e a vida prática; o imaginário e o real; os ideais e sua possível/impossível

realização. (CAGNETI, 1996, p. 07).

A literatura infantil leva a criança à descoberta do mundo; sonhos e realidade se

incorporam; o surreal, a realidade e a fantasia estão intimamente ligadas, propondo à criança

uma viagem, fazendo com que ela descubra e atue num mundo mágico, podendo modificar a

realidade, seja ela boa ou ruim.

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Para Lúcia Pimentel de Góes (1991):

[...] ao reconhecer e afirmar que existe uma literatura infantil, bem caracterizada, se

levarmos em conta o aspecto editorial. Sabe-se que, nos países industrializados, a

produção gráfica destinada às crianças é uma das mais importantes como esteio

econômico, abrangendo a grande produção destinada à alfabetização e escolaridade,

e também a produção, cada vez mais ampla, de livros especificados como

“Literatura Infantil”. (GÓES, 1991, p. 01).

Para uma melhor compreensão desta definição, a mesma autora argumenta que muitas

das obras publicadas para as crianças têm o objetivo de recrear ou emocionar. Hoje, por

exemplo, temos muitos livrinhos que são vendidos em bancas de jornais, em supermercados,

para as crianças pintarem os espaços em branco. Outras, em verdade, são jogos, brincadeiras;

não há quase nenhum texto.

Portanto, apesar de muitos comprarem esse material pensando ser literatura infantil, na

verdade, não poderíamos classificá-los como tal. Isso não significa que em bancas de jornais e

supermercados não são vendidas outras obras de considerável valor. Sem dúvida que a obra

para a criança, que está começando o contato com o universo das palavras, possa recrear e

emocionar, mas consideramos que a criança deve entrar num universo de textos simples e de

boa qualidade desde seus primeiros contatos com a literatura infantil.

Góes (1991) diz que

Com esta última produção destina-se a recrear ou emocionar, coloca-se, desde logo,

o problema de sua eficácia como a literatura. E aqui a resposta já não é tão simples,

a busca e encontro dessa literatura não são tão simples, porque a ideia de “eficácia”

envolve juízos de valor de ordens estética, pedagógica, psicológica, ideológica, etc.,

dependendo dos objetivos de quem os emite. (GÓES, 1991, p. 01).

Outros questionamentos surgem: “Os livros infantis são literatura? Eles têm um papel

a desempenhar na formação intelectual e sensível da criança ou devem apenas proporcionar o

entretenimento?” (GÓES, 1991, p. 02).

Drummond (1964 apud GÓES, 1991, p. 02) escreveu a esse respeito o seguinte:

O gênero Literatura Infantil tem a meu ver existência duvidosa. Haverá música

infantil? Pintura infantil? A partir de que ponto uma obra literária deixa de ser

alimento para a alma de uma criança ou um jovem e se dirige ao espírito do adulto?

Qual o bom livro para crianças que não seja lido com interesse pelo homem feito?

[...] Observados alguns cuidados de linguagem e decência, a distinção

preconceituosa se desfaz. Será a criança um ser à parte? Ou será a Literatura Infantil

algo de mutilado, de reduzido, de desvitalizado – Porque coisa primária, fabricada

na persuasão de que a imitação da infância é a própria infância? (DRUMMOND,

1964 apud GÓES, 1991, p. 02).

Page 17: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

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Para melhor entender essa definição, evidencia-se nas palavras de Drummond (1964

apud GÓES, 1991), o mérito que um bom livro pode apresentar, por servir tanto a criança

quanto ao adulto.

Logo, pode-se concluir que:

[...] para o autor Literatura Infantil é antes de qualquer coisa, “Literatura”, isto é,

“mensagem de arte, beleza ou emoção”. Portanto, se destinada especificamente à

criança, nada impede (pelo contrário) que possa agradar ao adulto. E nada modifica

sua característica “literária” se, escrita para o adulto, agradar e emocionar a criança.

(Góes, 1991, p.03).

Considerando o fato de poder causar satisfação tanto à criança quanto ao adulto,

presumisse que a “redução do homem” a que se referiu Drummond (1964 apud GÓES, 1991),

encontra-se nos livros que não são Literatura Infantil, mas “pueril”, que, segundo Góes (1991,

p. 03), são “obras carregadas de diminutivos, piegas, onde transparece falsa simplicidade, com

ação e diálogos artificiais”.

Com a mesma preocupação acerca da existência ou não da Literatura Infantil, Meireles

(1979 apud GÓES, 1991, p. 26) escreveu:

Evidentemente, tudo é uma Literatura só. A dificuldade está em delimitar o que se

considera especialmente “do âmbito infantil”. São as crianças na verdade quem o

delimitam com sua preferência. Costuma-se classificar Literatura Infantil o que para

elas se escreve. Seria mais acertado, talvez, assim classificar o que elas leem com

utilidade e prazer. Não haveria, pois, uma literatura infantil “a priori”, mas “a

posteriori”. (MEIRELES 1979 apud GÓES, 1991, p. 26).

E acrescentou logo depois:

“Mas o equívoco provém de que, se a arte literária é feita de palavras, não basta

juntar palavras para se realizar obra literária.” (MEIRELES 1979 apud GÓES, 1991,

p. 26).

Nesse sentido, a Literatura Infantil é a literatura que procura despertar na criança

emoção e prazer pelo interesse do narrado: oral ou escrito. (GÓES, 1991)

Para concluir essa questão sobre a Literatura, os Parâmetros Curriculares Nacionais de

Língua Portuguesa (PCN, 1998) descrevem que é importante que o trabalho com o texto

literário esteja incorporado às práticas cotidianas da sala de aula, visto tratar-se de uma forma

específica de conhecimento.

Page 18: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

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Vale lembrar que, para o PCN (1998), esses textos devem ser tratados de maneira a

tornar interessante para o aluno à leitura dos respectivos — ou seja, diariamente, estimular os

educandos, desde o primeiro ciclo, à leitura literária devido a grande variedade e riqueza do

seu conteúdo.

A literatura não é cópia do real, nem puro exercício de linguagem. Se tomada como

uma maneira particular de compor o conhecimento, é necessário reconhecer que sua

relação com o real é indireta, ou seja, o plano da realidade pode ser apropriado e

transgredido pelo plano do imaginário como uma instância concretamente formulada

pela mediação dos signos verbais (ou mesmo não verbais, conforme algumas

manifestações da poesia contemporânea). (PCN, 1998).

Seguindo essa linha, o PCN (1998) afirma que pensar sobre a literatura a partir dessa

autonomia relativa ante o real implica dizer que se está diante de um inusitado tipo de diálogo

regido por jogos de aproximações e afastamentos, em que as invenções de linguagem, a

expressão das subjetividades, o trânsito das sensações, os mecanismos ficcionais podem estar

misturados a procedimentos racionalizantes, referências indiciais e citações do cotidiano do

mundo dos homens.

1.3 Estilística

Segundo Bechara (2009, p. 615) a palavra estilística pode ser compreendida como “a

parte dos estudos da linguagem que se preocupa com o estilo”.

Em busca desta definição um tanto complexa, encontramos, em Câmara Júnior (1977),

o reconhecimento da estilística como o ramo da linguística que estuda as variações

da língua e sua utilização, incluindo o uso estético da linguagem e as suas diferentes

aplicações dependendo do contexto ou situação.

Desta maneira, a estilística para Câmara Júnior (1977) significa:

A estilística é a ciência da linguagem expressiva, independente do âmbito particular

em que a expressividade linguística funciona. Também aqui, como Sapir assinala

para o sistema representativo — se pode dizer que — “Platão vai de par com o

porqueiro da Macedônia, Confúcio com o caçador de cabeças do Assam” (XLVIII-

234). Apenas cabe ressalvar que num poeta, da mesma sorte que em Platão ou

Confúcio no âmbito da linguagem representativa, os traços são mais típicos e mais

nítidos, pois os processos estilísticos se acham a serviço de uma psique mais rica e

especialmente educada para o objeto de exteriorizar-se. (CÂMARA JÚNIOR, 1977,

p. 25).

Page 19: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

19

Para melhor entender essa definição, o objeto preferencial de estudos estilísticos é

a literatura, não exclusivamente a “alta literatura”, mas outras formas de textos escritos, na

publicidade, política ou religião.

A noção de estilística é, por conseguinte, a ciência da expressão e encontra-se tanto no

meio literário como no linguístico. A Estilística Literária estuda o estilo próprio dos autores,

as estruturas dos textos e as características dos períodos literários; a Estilística Linguística

estuda os fatores que determinam o estilo do discurso, sobretudo na fala.

De acordo com Guiraud (1970, p. 11), a Estilística é definida como “o estudo da

expressão linguística; e a palavra estilo, reduzida a sua definição básica, nada mais é que uma

maneira de exprimir o pensamento por intermédio da linguagem”.

Assim, Guiraud (1970) diz:

O estilo — de stilus, punção ou estilete que servia para escrever em tabuinhas, antes

da época do papel e da pena de ganso — é a maneira de escrever, a utilização pelo

escritor dos meios de expressão para fins literários, distinguindo-se, portanto, da

gramática, que define o sentido e a correção das formas. (GUIRAUD, 1970, p. 17).

E acrescenta logo depois:

É só a língua literária que se interessa ao estilo, especialmente a seu rendimento

expressivo, o “colorido”, como se dizia, próprio para convencer o leitor, agradá-lo,

manter vivo seu interesse, impressionar-lhe a imaginação mediante formas vivas,

pitorescas, elegantes e estéticas. (GUIRAUD, 1970, p. 17).

Para Bechara (2009) o significado da palavra estilo pode ser compreendido como “o

conjunto de processos que fazem da língua representativa um meio de exteriorização psíquica

e apelo” (p. 615).

Em face do exposto, é necessário considerar que o estilo pode ser encontrado num

vasto número de definições. Aqui, Rémy Gourmont (1916 apud ENKVIST, SPENCER &

GREGORY, 1974, p. 37) ao traduzir sua citação:

Avoir um style c’est paler au milieu de la langue commune um dialect particulier,

unique et inimitable et cependant que cela soit à la fois le langage de tous et le

langage d’un Seul. (LA CULTURE DÊS IDÉES, 1916, p. 09).

Traduz:

Page 20: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

20

Ter um estilo significa falar um dialeto particular, único e imitável em meio a uma

linguagem partilhada com outros o qual é um só tempo a língua de todos e a língua

de um único indivíduo — Tradução: Nils Erik Enkvist. (LA CULTURE DÊS

IDÉES, 1916, p. 09).

Após esta breve explanação, podemos fazer a ligação na fala de Guiraud que liga a

estilística com as figuras de linguagem, como recursos especiais utilizados por quem fala ou

escreve, para comunicar uma expressão.

As figuras de dicção referem-se à pronúncia. [...] As figuras de construção

relacionam-se à sintaxe e à ordem das palavras. O hipérbato, por exemplo, nada

mais é que uma inversão. As principais são a elipse, o zeugma, a silepse, o

pleonasmo, a conjunção, a disjunção, a repartição, a oposição. As figuras de

palavras ou tropos são mudanças de sentido, sendo a metáfora a mais conhecida; a

sinédoque consiste entre outras, em tomar a parte pelo todo: uma vela por um navio;

a metonímia, o continente pelo conteúdo: um copo de vinho. Os principais tropos

são: a metáfora, a alegoria, a alusão, a ironia, o sarcasmo, a catacrese, a hipálage, a

antífrase etc. As figuras de pensamento tomam a forma das próprias ideias, a

hipérbole consiste em exagerar o pensamento, a litotes em atenuá-lo. Distingue-se

também a antítese, a apóstrofe, a exclamação, o epifonema, a interrogação, a

subjeção, a comunicação, a enumeração, a concessão, a gradação, a suspensão, a

reticência, a interrupção, a obsecração, a perífrase, a hipérbole, a litotes, a

extenuação, a prosopopeia, a hipotipose etc. (GUIRAUD, 1970, p. 30-31).

A partir das afirmações dos autores, fica claro que as figuras de linguagem fazem parte

da estilística, que tem por finalidade estudar os processos de manipulação da linguagem. Na

estilística, analisa-se a capacidade de provocar sugestões e emoções usando certas fórmulas e

efeitos de estilo. As figuras de linguagem são o principal ramo da estilística; o estudo das

figuras é essencial tanto para interpretação de texto, quanto para gramática.

1.4 Figuras de Linguagem

As Figuras de linguagem são estratégias literárias que um escritor pode aplicar em um

determinado texto com o objetivo de fazer um efeito determinado na interpretação do leitor,

são formas de expressão que caracterizam formas globais no texto.

Almeida (2009, p. 410) afirma que as “Figuras de Linguagem são recursos a que os

autores recorrem para tornar a linguagem mais rica e expressiva. Esses recursos revelam a

sensibilidade de quem os utiliza, traduzindo particularidades estilísticas do emissor”.

Para o mesmo autor, as figuras de linguagem classificam-se em: figuras de palavra ou

semânticas, figuras de construção ou sintaxe e figuras sonoras ou de harmonia.

As figuras de palavra ou semânticas consistem no emprego de palavras ou

expressões do ponto de vista conotativo, ou seja, em sentido diferente do que

habitualmente são empregadas. A semântica, que é a exploração do significado das

Page 21: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

21

palavras gera as seguintes figuras: Comparação, Metáfora, Catacrese, Metonímia,

Antonomásia, Sinestesia, Antítese, Eufemismo, Gradação, Hipérbole, Prosopopeia,

Paradoxo ou Oximoro, Perífrase e Ironia. [...] As figuras de construção ou sintaxe

são os desvios que se evidenciam na construção normal do período. Ocorrem na

concordância, na ordem e na construção dos termos da oração. Esses recursos são os

seguintes: Elipse, Zeugma, Pleonasmo, Assíndeto, Polissíndeto, Anacoluto,

Hipérbato, Hipálage, Anáfora, Apóstrofe e Silepse. [...] As figuras sonoras ou de

harmonia utilizam os efeitos que a linguagem realiza para reproduzir os sons

emitidos pelos seres. São as seguintes: Aliteração, Assonância, Paranomásia e

Onomatopeia. (ALMEIDA, 2009, p. 411-415; 416-419; 419-421).

Após apresentar as figuras de linguagem, notamos que estas, além de auxiliar a

compreender melhor os textos literários, deixam-nos mais sensíveis à beleza da linguagem e

ao significado simbólico das palavras e dos textos.

Para Guiraud (1970 apud PARENTE, 2008),

[...] as figuras de linguagem são recursos de expressividade e afetividade linguística,

que registram maneiras de falar ou redigir diferenciadas, com o intuito de dar

relevância por meio de expressões mais “vivas”, ou ainda de dar ao texto certo grau

de literariedade, no que tange à valorização estética da palavra. (GUIRAUD, 1970

apud PARENTE, 2008, p. 96).

Isto é, são ferramentas que zelam pela estética verbal.

Abordando a questão com mais amplitude, encontro em Guimarães & Lessa (1988) a

definição das figuras de linguagem que irei utilizar para análise, a saber:

– Anáfora: é a figura que consiste na repetição da mesma palavra ou construção no

início de várias orações, períodos ou versos. (p. 42).

– Eufemismo: é uma palavra ou expressão empregada por outra palavra ou expressão

considerada desagradável, grosseira. O eufemismo procura atenuar o sento de determinados

termos que geralmente são considerados demasiado fortes pelos fantasmas da língua. No

eufemismo, existe uma intenção, por parte do falante, de não chocar o seu interlocutor. (p.

51).

– Ironia: é a figura de pensamento que consiste em sugerir pelo contexto, pela

entonação, pela contradição de termos, o contrário do que as palavras ou orações parecem

exprimir. (p. 50).

– Comparação simples: é uma comparação entre dois elementos de um mesmo

universo. É muito comum compararmos as coisas que nos rodeiam. Frequentemente dizemos

que tal coisa é melhor do que outra, que fulano é mais simpático do que beltrano e assim por

diante. Comparar é uma forma de organizar as nossas experiências no mundo. Sempre temos

Page 22: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

22

que escolher alguma coisa, fazemos uma comparação antes de tomar qualquer decisão. E essa

comparação é feita muitas vezes sem que percebamos. [...] (p. 04).

– Comparação Metafórica (ou Símile): é uma comparação entre dois elementos de

universos diferentes. Observe: “Está criança é forte como um touro”. Nesse caso, estamos

comparando a criança a um touro, dois elementos de universos bastante diferentes.

Aproximamos esses elementos porque “enxergamos” uma característica comum a ambos, ou

seja, a força. (p. 05).

Os dados teóricos apresentados pelos autores citados indicam que a linguagem

figurada é objeto da estilística e possui maior utilização na criação literária. As figuras são

maneiras de expressão objetivando maior sugestão para despertar o sentimento estético e a

emoção. Pode alterar a disposição das palavras na oração ou alterar profundamente seu

significado comum.

Deste modo, vale analisar um trecho do livro Felpo Filva: “Era uma vez um príncipe

diferente dos outros. Ele era um pouco feio, um pouco estranho, um pouco torto e um pouco

azarado também.” (FURNARI, 2006, p.25).

Nesse excerto podemos identificar algumas figuras de linguagem: (a) anáfora: consiste

em iniciar vários versos ou frases, ou sucessivos membros de frases por uma mesma palavra

ou grupo de palavras, como “um pouco”; (b) lugar-comum: “era uma vez” já se tornou uma

expressão clichê; (c) comparação: com o conectivo “diferente de”; (d) eufemismo: para não

ser objetivo, a autora usou “um pouco” para atenuar os adjetivos; (e) Ironia: ao usar o

eufemismo, a expressão acabou se tornando irônica.

Tendo em vista o fato de que as figuras de linguagem são recursos utilizados pelos

autores para conseguir efeitos expressivos, é válido destacar que as figuras dão ênfase, vida,

força, colorido e beleza ao texto, quando empregadas adequadamente.

1.5 Efeitos de Sentido

Para Sonia Mariza Martuscelli (2010), o uso de certos elementos na formação de

palavras, em dados contextos, produz efeitos de sentido:

– efeitos de subjetividade – denunciam o envolvimento pessoal do falante em

relação ao que ele diz;

– efeitos de objetividade – acobertam o envolvimento do falante, criando a ilusão

de imparcialidade e de objetividade deste diante do que diz;

– efeitos de humor – revestem de um sentido cômico o que foi dito.

Page 23: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

23

Logo, destaca a autora, que, entre os efeitos de subjetividade, encontramos os

seguintes:

I – Efeito de depreciação e/ou ironia

O falante demonstra depreciar e criticar negativamente alguém ou algo por meio do

uso dos seguintes processos de formação de palavras: derivação com sufixos aumentativos ou

diminutivos sem estabelecer relação com o tamanho ou a proporção:

Rapidópolis, 20 de fevereiro

Prezado Senhor Felpo Filva

Meu nome é Charlô e admiro demais o seu talento e os seus poemas, mas, se me

permite, tem algunzinhos deles que eu não gosto nem um pouco...

(FURNARI, 2006, p. 12).

Se analisarmos esse trecho, veremos que, em “algunzinhos”, a autora atenua, ao

amenizar por meio de diminutivos, para deixar expresso o fato de não gostar nem um pouco

mais suavemente.

II – Efeito de exaltação positiva

O falante demonstra apreciar e criticar positivamente alguém ou algo através do uso

dos seguintes processos de formação de palavras: derivação com sufixos aumentativos sem

estabelecer relação com o tamanho ou a proporção:

“Princesa do avesso não mora na torre. O fundo do poço é o seu casarão.” (FURNARI,

2006, p. 12)

Na palavra casarão, tem-se a intenção, por meio do grau aumentativo, de dar um valor

depreciativo ou pejorativo.

III – Efeito de afetividade ou puerilidade

O falante demonstra afeto e/ou emoções infantis (geralmente para seduzir o ouvinte),

com o uso do seguinte processo de formação de palavras: derivação com sufixos diminutivos

e reduplicação.

Para melhor entender, os efeitos de sentido podem estar presentes em um texto

ficcional apoiado em imagens ilustrativas que dialogam com o texto verbal de diferentes

linguagens.

Assim, podemos ver os textos complementados pelas imagens. Em muitos casos, as

imagens são esclarecedoras e mais impactantes, porém não são autoexplicativas. O texto

Page 24: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

24

auxilia a imagem quanto na intensificação do sentido, e também contribui para um melhor

entendimento, interpretação e referenciação das imagens.

Para Godard (1993 apud JOLY, 1996), “palavra e imagem são como cadeira e mesa: se você

quiser se sentar, precisa de ambas”.

Essa frase recente de Godard sobre a imagem e as palavras é, a nosso ver,

particularmente judiciosa, porque ao mesmo tempo em que reconhece a

especificidade de cada linguagem – a da imagem e das palavras Godard mostra que

se completam, que uma precisa da outra para funcionar, para serem eficazes. (JOLY,

1996, p. 115).

Como afirma a mesma autora, essa declaração é ainda mais agradável por parte de um

“homem de imagens”, porque as relações imagem/linguagem são na maioria das vezes

abordadas sem termos de exclusão, ou em termos de interação, mas raramente em termos de

complementaridade.

Joly (1996, p. 133) afirma que

Assim, quer queiramos, que não, as palavras e as imagens revezam-se, interagem,

completam-se e esclarecem-se com uma energia revitalizante. Longe de se excluir,

as palavras e as imagens nutrem-se e exalam-se umas das outras. Correndo o risco

de um paradoxo, podemos dizer que quanto mais se trabalha sobre as imagens mais

se gosta das palavras. (JOLY, 1996, p. 133).

De fato, julgamos uma imagem “verdadeira” ou “mentirosa” não devido ao que

representa, mas devido ao que não é dito ou escrito do que representa. Se admitirmos como

verdadeira a relação entre o comentário da imagem e a imagem, vamos julgá-la verdadeira; se

não, vamos julgá-la mentirosa. Mais uma vez, tudo depende da expectativa do espectador, o

que nos conduz também à questão do verossímil. Claro que se pode jogar com todos os

desvios possíveis em relação a essas expectativas. Porém, mais uma vez esses desvios serão

mais ou menos bem aceitos conforme os contextos de comunicação. (JOLY, 1996, p. 116-

117).

Joly (1996) considera que a complementaridade das imagens e das palavras também

reside no fato de que se alimentam umas das outras. Não há qualquer necessidade de uma

copresença da imagem e do texto para que o fenômeno exista. As imagens engendram as

palavras que engendram as imagens em um movimento sem fim.

Camargo (1998) acrescenta que as ilustrações atribuem-se usualmente as funções de

ornar ou elucidar o texto junto ao qual ela aparece. No entanto, a ilustração pode ter várias

Page 25: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

25

outras funções: representativa, descritiva, narrativa, simbólica, expressiva, estética, lúdica,

conativa, metalinguística, fática e pontuação.

A imagem tem função representativa quando imita a aparência do ser ao qual se

refere; função descritiva, quando detalha essa aparência; função narrativa, quando

situa o ser representado em devir, através de transformações (no estado do ser

representado) ou ações (por ele realizadas); função simbólica, quando sugere

significados sobrepostos ao seu referente, mesmo que arbitrariamente, como é o

caso das bandeiras nacionais; função expressiva, quando revela sentimentos e

valores do produtor da imagem, bem como quando ressalta as emoções e

sentimentos do ser representado; função estética, quando enfatiza a forma da

mensagem visual, ou seja, sua configuração visual; função lúdica, quando orientada

para o jogo, incluindo-se o humor como modalidade de jogo; função conativa,

quando orientada para o destinatário, visando influenciar seu comportamento,

através de procedimentos persuasivos ou normativos; função metalinguística,

quando o referente da imagem é a linguagem visual ou a ela diretamente

relacionado, como citação de imagens etc.; função fática, quando a imagem enfatiza

o papel de seu próprio suporte; função de pontuação, quando orientada para o texto

junto ao qual está inserida, sinalizando seu início, seu fim ou suas partes, nele

criando pausas ou destacando alguns de seus elementos. (CAMARGO, 1988).

Proporcionando uma visão numa perspectiva mais ampla, Camargo (1998) considera

muito mais do que apenas ornar ou elucidar o texto, a ilustração pode, assim, representar,

descrever, narrar, simbolizar, expressar, brincar, persuadir, normatizar, pontuar, além de

enfatizar sua própria configuração, chamar atenção para o seu suporte ou para a linguagem

visual.

Para o mesmo autor, é importante ressaltar que raramente a imagem desempenha uma

única função, mas, da mesma forma como ocorre com a linguagem verbal, as funções

organizam-se hierarquicamente em relação a uma função dominante.

Para exemplificar, usarei uma frase que contém imagem da dedicatória do livro Felpo

Filva (FURNARI, p. 05):

Page 26: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

26

Fig. 1: Frase de dedicatória do livro Felpo Filva.

A página que inicia a narrativa é provocativa. Ela dá subsídios para discutir o

“respeito” e as “diferenças” ao convidar e levar o leitor a elaborar hipóteses sobre o tema da

história, que envolve questões éticas e os conceitos do que é ser “normal” ou ser “diferente”.

O uso da figura com coelhos está representando as orelhas diferentes por meio da imagem em

relação à escrita.

1.6. Literatura Infantil de Eva Furnari

De acordo com a Biblioteca Eva Furnari (2010), Eva Furnari nasceu em Roma, Itália

em 1948. Veio para o Brasil aos dois anos de idade e reside em São Paulo até hoje.

Em 1976, formou-se em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. Foi

professora de artes no Museu Lasar Segall de 1974 a 1979; colaborou, na década de 1980,

como desenhista em diversas revistas, recebendo o Prêmio Abril de Ilustração em 1987.

Publicou, semanalmente, por quatro anos, histórias da Bruxinha no suplemento infantil do

jornal, Folha de São Paulo. Começou sua carreira de escritora e ilustradora de livros infantis e

juvenis em 1980, com livros de imagem e publicou 60 livros.

Seus livros já foram publicados no México, Equador, Guatemala, Bolívia e Itália.

Participou da feira Internacional de Ilustradores de Bratislava, em 1995, e participou de

Exposições de Ilustradores Brasileiros promovidas pela FNLIJ, em Bolonha. Participou da

Honour List do IBBY — International Board on Book for Young People —, órgão consultivo

da Unesco para o livro infantil, com o livro Feitiço do Sapo, da Editora Ática, em 1996.

Alguns de seus livros foram adaptados para o teatro: Lolo Barnabé, Pandolfo Bereba,

Page 27: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

27

Abaixo das Canelas, Cocô de Passarinho, A Bruxa Zelda e os 80 docinhos, A Bruxinha

Atrapalhada, Cacoete e Truks, sendo que esta última recebeu o prêmio Mambembe em 1994.

Ao longo de sua carreira, Eva Furnari recebeu diversos prêmios. Entre eles, o Prêmio

Jabuti de Melhor Ilustração pela CBL (Câmara Brasileira do Livro) pelos livros; Truks

(1991), A Bruxa Zelda e os 80 Docinhos (1996), Anjinho (1998), Circo da Lua (2004),

Cacoete (2006) e Felpo Filva (2007), este pelo texto e ilustração. Foi premiada por nove vezes

pela FNLIJ (Fundação do Livro Infantil e Juvenil) e recebeu Prêmio APCA pelo conjunto da

obra. Foi vencedora do concurso promovido em 2000 pela Rede Globo de Televisão para a

caracterização dos personagens do Sítio do Pica Pau Amarelo.

Alguns livros de Furnari podem influenciar muito na vida de uma criança e

adolescentes em desenvolvimento, como é o caso do livro “Felpo Filva” — um livro muito

colorido que primeiramente chama a atenção pela sua capa e depois pelo seu rico conteúdo.

1.7 O livro Felpo Filva

O livro Felpo Filva, de Eva Furnari, nos mostra a alegria com que a autora lida com as

palavras e a força poética de seus textos. O contexto de Felpo Filva, pode ser considerado

tanto infantil como juvenil; podemos explorar as figuras de linguagem e os efeitos de sentido

que causam nas formas mais criativas que desenvolve o estilo próprio da autora.

Para compreendermos a estrutura básica de Felpo Filva, é necessário conhecermos

alguns aspectos da teoria da literatura, que aborda os estudos de personagens, tempo, espaço e

enredo que são fundamentais em qualquer obra.

As personagens são divididas em dois grupos: planas e redondas. Ataíde (1979)

afirma:

A personagem plana ou estática são as personagens destruídas de profundidade, de

vida interior, de dramaticidade, de consciência do seu eu. A vida de tais não vai

além as condições externas que a modelam, são superficiais quanto ao mundo que

têm dentro de si, [...] sendo estática, não evolui, não apresenta alterações na conduta

interior.[...] A personagem redonda ou dinâmica é aquela que possui profundidade,

vida interior, dramaticidade, consciência do seu eu, dos conflitos e problemas

internos que vive. Revela-se por força de seu caráter e como que escapa da mão do

ficcionista. Tem vida própria. As coisas se passam dentro dela. Possui

disponibilidade psicológica, ela mesma não sabe o que poderá vir a lhe acontecer no

instante seguinte de sua vida. A personagem redonda supera o meio em que vive,

possuindo particularidades próprias. É indivíduo, ela mesma, singular e pessoal, e

não se importa com o que os outros pensem dela, pois o que lhe interessa é o seu eu.

(ATAÍDE, 1979, p. 47).

Page 28: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

28

Ataíde (1979, p. 43) diz: “A vida de tais personagens não vai além as condições

externas que a modelam, são superficiais quanto ao mundo que têm dentro de si”. As

redondas ostentam a dimensão que falta às personagens planas, e, por isso, possuem uma série

complexa de qualidades ou defeitos.

As personagens planas são mais fáceis de analisar, pois sua característica principal

nunca se modifica, ao contrário das personagens redondas, que possuem várias

personalidades.

Em conformidade com Ataíde (1979), Moisés (1969) diz:

Personagens planas: seriam bidimensionais; dotadas de altura e largura, mas não de

profundidade: um só defeito ou uma só qualidade - estáticas por natureza. Quanto às

personagens redondas, ostentariam a dimensão que falta às outras, e, por isso,

possuiriam uma série complexa ou/e defeitos. (MOISÉS, 1969, p. 110-111).

Essa citação propicia uma visão abrangente das características das personagens.

Observamos, na personagem plana, permanência e previsibilidade na sua conduta; seu caráter

e suas atitudes mantêm-se inalteráveis ao longo da narrativa, enquanto a personagem redonda

é complexa, mostra variações de humor e atitudes em suas ações e em sua interioridade

psicológica.

Concluímos ao destacar o conceito de personagem e a sua importância numa narrativa,

para compreendermos que (a personagem) pode ser um humano, um animal, um ser fictício,

um objeto ou qualquer coisa que o autor possa inventar. Também podem ter nomes ou não, e

ter qualquer tipo de personalidade.

Diante das tais colocações, é importante mencionar que as personagens podem ser

fictícias ou referir-se a uma pessoa. Conhecemos a personagem de uma narrativa por meio do

que ela fala ou pensa e também do que as outras personagens ou narrador dizem a respeito

dela, e ainda ao ver a desenvoltura no decorrer da história.

O tempo pode ser cronológico ou histórico.

A cronometria acrescenta a ordem das datas a partir de acontecimentos qualificados,

que servem de eixo referencial (nascimento de Cristo, Égira etc.), anterior ou

posteriormente ao qual outros acontecimentos se situam. Tempo socializado ou

tempo “público”, posto que relacionado com a atividade prática e os objetos que se

apresentam diante de nós, é o tempo cronológico e não o físico, a despeito dos

estalões cada vez mais precisos do último, que regula nossa existência cotidiana.

Formando uma sequência sem lacuna, contínua e infinita, percorrida tanto para a

frente, na direção do futuro, quanto para trás, na direção do passado, a sua armação

fixa e permanente abriga expressões temporais específicas e autônomas da cultura,

que lhe interrompem, periodicamente, a vigência geral. (NUNES, 2000, p. 20-21).

Page 29: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

29

O mesmo autor:

O tempo histórico representa a duração das formas históricas de vida, e podemos

dividi-lo em intervalos curtos do tempo histórico se ajustando por fatos diversos. Os

intervalos curtos do tempo histórico se ajustam a acontecimentos singulares:

guerras, revoluções, migrações, movimentos religiosos, sucessos políticos. Os

intervalos longos correspondem a uma rede complexa de fatos ou a um processo

(formação da cidade grega, desenvolvimento do feudalismo, advento do capitalismo,

por exemplo). (NUNES, 2000, p. 20-21).

Nessa perspectiva o tempo cronológico ou tempo da história é determinado pela

sucessão cronológica dos acontecimentos narrados. E o tempo histórico refere-se à época ou

momento histórico em que a ação se desenrola.

Assim, há duas formas de se lidar com o tempo em uma narração: cronologicamente e

psicologicamente: Moisés (1969) diz,

O tempo cronológico (ou histórico) é marcado pelo ritmo de relógio, conforme as

mudanças regulares operadas em âmbito da natureza e facilmente perceptíveis

mesmo para as maiores sensibilidades: a alternância da noite e do dia, o movimento

das marés, as estações, o movimento do sol, etc. – é o tempo material em que se

desenrola a ação, utilizando-se de expressões como: no dia seguinte, algum tempo

depois, duas horas depois, passaram-se meses, no inverno seguinte, etc. Seja em

saltos abruptos (anos, décadas, séculos), ou em períodos curtos (no mesmo dia, na

manhã seguinte, em uma semana) mantém-se a sucessão temporal, faz crer numa

regularidade fixa de segmentos temporais, divididos ascendentemente de segundo ou

fração até século ou milênio. (MOISÉS, 1969, p. 102).

Acrescenta:

O tempo psicológico opõe-se frontalmente ao outro; como o próprio adjetivo

psicológico sugere, ignora a marcação do relógio. Tempo interior, imerso no

labirinto mental de cada um, apenas cronometrado pelas sensações, ideias,

pensamentos, pelas vivências; não tem idade: pertence à experiência; é um tempo

subjetivo, varia de individuo para individuo. É o tempo da dor, da espera, da

angustia. Pode-se, por exemplo, narrar em muitas páginas o que tenha ocorrido em

apenas minutos, o que permitiria ao leitor a percepção do tempo interior. (MOISÉS,

1969, p. 102).

O tempo cronológico é aquele que é possível marcar, seja pelos dias, meses, anos

horas, minutos e segundos. Pode-se também marcar o tempo cronológico pelas condições

climáticas, como as estações do ano, por exemplo.

Ataíde assim define o tempo cronológico:

O tempo cronológico é aquele que se mede pelo relógio, pela sucessividade dos dias

e das noites, pelo movimento da terra e da lua, pela alternância das estações. O

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30

tempo cronológico consiste num esforço do homem para opor uma barreira ao

tumulto subjetivo, às presentificações da memória, à duração interior que é

imprescindível e incontrolável. Achando que o mundo cotidiano não se poderia

reger desta maneira, a sociedade capitalista criou a pontualidade inglesa, espécie de

mito no qual o homem não se ajusta ao que dentro de si mesmo, mas se governa

segundo padrões ideais propostos de fora. Assim, o tempo cronológico não é mais o

que uma escala rígida, fixa e convencional estabelecida para controlar fixamente as

relações humanas. Este tempo exterior de calendário se opõe ao tempo interno

subjetivo, pessoal, mensurado pela experiência de cada um. (ATAÍDE, 1974, p. 47).

O tempo psicológico não é medido da mesma maneira que o cronológico, ele tem uma

medida única e interior.

Cabe ainda mencionar o espaço, sendo um conjunto de elementos da paisagem

exterior (espaço físico) e interior (espaço psicológico), onde se situam as ações dos

personagens. O espaço também é fundamental para a análise de um conto: é o local que se

passa a história. Seja no campo ou na cidade, o meio interfere nas personagens, assim como as

personagens interferem no meio.

Moisés (1969) salienta que

O espaço constitui outro ingrediente em que deve atentar o analista da ficção. Como

se sabe, uma narrativa pode passar-se na cidade ou no campo, mas depende de seu

caráter linear ou vertical a maior ou menor importância assumida pelo cenário. Na

verdade, a frequência e a intensidade e densidade com que o lugar geográfico se

impõe no conjunto de uma obra ficcional, está em função de suas outras

características. E a tarefa do analista consistirá especialmente em lhes conhecer a

interação e a razão de ser. (MOISÉS, 1969, p. 108).

Ataíde observa que “hoje a noção mais importante de espaço tem uma configuração

nova e se instala na obra através da procura de relacionamento com os demais ingredientes

ficcionais”. (ATAÍDE, 1974, p. 50). E acrescenta: “Numa narrativa de boa qualidade,

qualquer indicação sobre áreas geográficas, interiores, paisagens, deve ser entendida como

conexa a outros constituintes ficcionais”.

Assim, a nosso ver, o espaço físico seria o local que circulam as personagens e se

desenvolve a ação. O espaço psicológico tende a ser as atmosferas das personagens.

O enredo é o encadeamento de ações executadas ou a executar pelas personagens numa

ficção, a fim de criar sentido ou emoção no espectador.

Os episódios ou acontecimentos são o conjunto de elementos vividos pelas

personagens. Deve haver uma coerência própria entre os acontecimentos e quem os

vive. O acordo entre enredo e personagem é necessário para que haja plausibilidade.

Os acontecimentos são expostos através de um lance inicial, um problema, uma

duvida, um conflito quase sempre de proporções menores. Por uma combinação de

fatos, aquele momento inicial — que deve ter uma forma interior capaz de fazê-lo

Page 31: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

31

caminhar para situações maiores e mais graves — vai complicar-se através da ação e

não querer, o propor é que levam à intriga. Este decorre do encadeamento dos feitos

que se vão somando. As soluções das intrigas menores, assim como das mais

importantes, devem ser dramáticas: as coisas vividas pelas personagens. Ataíde

(1974, p. 22).

Estas complicações alcançam um ponto maior, que é chamado de clímax. Ataíde (1974) faz

questionamentos: como é que as coisas do enredo se vão complicando? Há dois processos: os

episódios atam-se cada vez mais uns aos outros de modo a formar um todo complexo; os

problemas levantados, focando em torno da personagem e do que ela é, suscitam outra ordem

de complexidade, agora quanto ao comportamento humano em si.

Após o clímax, a narrativa tem que ter um fim. A esta parte final dá-se o nome de

desfecho ou desenlace.

Assim, podemos considerar o enredo em que todas as partes devem ter ligações entre

si. Segundo Ataíde (1974, p. 24), “não é permitida uma passagem que não se ligue, pela

natureza da matéria versada, ao conjunto”.

Antônio Cândido (1987, p. 534) diz: “O enredo existe através dos personagens; as

personagens vivem do enredo. Enredo e personagem exprimem ligados, os intuitos do

romance, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores que o animam.”

Nesse sentido, o enredo é o conteúdo do qual esse texto se constrói. O enredo, também

chamado de trama, tem sempre um núcleo, que chamamos de conflito. É esse conflito que

determina o nível de tensão (expectativa) aplicado na narrativa. No enredo desenrolam os

acontecimentos que formam o texto.

Vale ainda mencionar os gêneros literários, para dar início a uma breve apresentação

do livro Felpo Filva e postumamente fazer a análise.

As tentativas de classificar as obra literárias em gêneros são muito antigas.

Remontam a Platão e a Aristóteles. A tradição fixou uma classificação básica em

três gêneros, que englobam inúmeras categorias menores comumente chamadas

subgêneros. (AMARAL et al., 2003, p. 22).

narrativo (ou épico)

Gêneros lírico

dramático

Page 32: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

32

O gênero lírico se faz o mais das vezes em versos. “Mas os outros dois gêneros — o

narrativo e o dramático — também podem ser escritos nessa forma, embora modernamente se

prefira a prosa”. (AMARAL et al., 2003, p. 22).

Amaral (et al., 2003) expõe características para explicar os gêneros literários. Diz:

Podemos definir a obra narrativa como o relato de um enredo imaginário ou não,

situado num tempo e num lugar determinado, envolvendo uma ou mais personagens.

Quanto à estrutura, ao conteúdo e à extensão, podemos classificar as obras em

romances, contos, novelas, poemas épicos, crônicas, fábulas etc. Quanto a temática,

as narrativas podem ser históricas policiais, de amor etc. Na obra lírica um sujeito

que chamamos eu-lírico, sujeito lírico, voz lírica ou voz poética exprime suas

emoções [...] devido à intensidade da expressão, as obras líricas tendem a ser breves

e acentuar o ritmo e a musicalidade da linguagem. Em consequência, o gênero lírico

realiza-se perfeitamente em forma de poema, isto é, em versos. É dos três gêneros, o

mais subjetivo [...] Na obra dramática os fatos são apresentados diretamente ao

espectador, sem intermediários. Não é necessária a voz de um narrador como na

obra narrativa [...]. (AMARAL et al., 2003, p. 23-25).

Em face do exposto, todas as modalidades literárias são influenciadas pelas

personagens, espaço e tempo. Todos os gêneros podem ser não ficcionais ou ficcionais. Os

nãos ficcionais representam fielmente a realidade, e os ficcionais inventam um mundo onde

os acontecimentos ocorrem coerentemente com o que se passa no enredo da história.

A obra:

Felpo Filva. São Paulo: Moderna 2006. 56p. “Esta história é dedicada a todos aqueles

que têm orelhas diferentes.” (p.5)

GÊNERO: Narrativa.

ENREDO: Felpo Filva, famoso poeta, é um coelho solitário. Felpo era assim solitário

desde os tempos de criança, quando os coleguinhas da escola zombavam dele porque ele tinha

uma orelha mais curta que a outra.

Felpo poderia ter ficado sozinho para sempre se não fosse ter recebido, um dia, uma cartinha

de Charlô, uma fã que discordava do conteúdo pessimista e dramático de alguns dos poemas

que o poeta escrevia e que, ainda por cima, tinha tido a audácia de reescrevê-los ao seu modo.

Injuriado com o atrevimento de Charlô, Felpo inicia uma troca de correspondência em que o

tom mal-humorado das primeiras cartas vai, aos poucos, ficando cada vez menos amargo até

ficarem tão doces quanto os bolinhos de chocolate da avó de Felpo.

PERSONAGENS: Felpo Filva e Charlô.

TEMPO: Cronológico.

Page 33: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

33

ESPAÇO: Toca 88, da Rua Despinhos, na cidade de Rapidópolois.

ASPECTOS ESTÉTICOS: É uma história bem ilustrada que chama a atenção do

público leitor ao fazer o uso constante da imaginação. A obra atinge o público infantil e

infantojuvenil, pois se desencadeia com dinamismo e imprevisibilidade.

Com este breve estudo, a respeito da análise estilística na literatura e escrita com

ilustrações no livro infantil, ficou claro, nos escritos dos autores, que todo texto seguido ou

não de imagem terá um efeito de sentido determinado, de acordo com a interpretação de cada

leitor.

Ao trilhar caminhos pela busca dos conceitos de literatura infantil, para

compreendermos a estilística, figuras de linguagem e efeitos de sentido no contexto do livro

infantojuvenil Felpo Filva, é notável que a literatura se faça muito importante em nossas

vidas, pois, por meio dela podemos aprender, ensinar e conhecer diversos efeitos de sentido

causados a cada leitura. A sua grandiosidade deve ser compreendida como uma leitura que

permita a viagem no mundo da imaginação, tão presente na infância.

Page 34: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

34

2. METODOLOGIA DE PESQUISA

Neste capítulo, explicarei e descreverei os procedimentos e os instrumentos usados

para a coleta e para a análise de dados. Com base na fundamentação teórica apresentada no

primeiro capítulo e também de acordo com as questões que norteiam este trabalho, justificarei

a utilização dos instrumentos escolhidos, bem como os procedimentos adotados.

2.1 Contexto da Pesquisa

Inserido na linha de pesquisa da Literatura e na análise do livro infantil, a presente

pesquisa foi desenvolvida em função do contato que a criança e o adolescente tem com a

estilística por meio do contato com livros infantis.

As histórias que encantavam crianças séculos atrás não surtem o mesmo efeito com as

crianças do século XXI. Estas vivem num mundo virtual e digital e, por este motivo,

interessam-se por histórias que contenham aventura e ação da personagem que se assemelha

ao leitor.

A história “Felpo Filva” foi criada para mostrar ao jovem leitor “as orelhas diferentes”

que cada ser humano pode ter ao recorrer de diversos gêneros textuais. É este embasamento

que deu origem à minha pesquisa: pesquisar se os recursos estilísticos utilizados na obra

produzem os efeitos de sentidos esperados.

2.2 As questões e os instrumentos de coleta de dados

Antes de o meu projeto ser aceito pelo orientador, comecei a procurar livros infantis

para que, quando eu fosse explicar a ele sobre a minha intenção de pesquisa, eu já estivesse

com algum livro em mente para justificar meu trabalho. Meses depois de ter obtido o livro, e

de meu projeto ter sido aprovado, comecei a procurar trabalhos que tivessem temas parecidos

com o qual pretendia fazer. Consegui encontrar alguns relacionados à proposta da minha

pesquisa. Já com a pesquisa em andamento, digitalizei as imagens do livro, que auxiliaram no

entendimento da análise. No total, as imagens digitalizadas somam-se oito.

Com o livro e as imagens, consegui chegar à proposta inicial do meu projeto:

descobrir as respostas para as minhas questões-problemas.

Para que eu pudesse chegar à ideia da análise estilística de um livro infantil, foram

necessárias algumas imagens do livro. Para realizar este trabalho, foi preciso achar o

Page 35: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

35

problema, ou seja, a razão pela qual estou desenvolvendo esta pesquisa. As questões

levantadas são:

– Quais são os recursos estilísticos utilizados na obra?

– Quais são os efeitos de sentido que esses recursos buscam produzir?

– Os recursos estilísticos produzem os efeitos de sentido esperados, considerando-se o

público leitor desse tipo de literatura?

Page 36: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

36

3. ANÁLISE DO LIVRO

Neste capítulo, analisarei o livro Felpo Filva e as características de estilo da obra, de

acordo com referências estudadas no primeiro capítulo deste trabalho. A Estilística, Figuras

de Linguagem e Efeitos de Sentido me guiarão durante a análise.

3.1 Felpo Filva

Fig. 2: Felpo Filva.

Na Toca 88, da Rua Despinhos, na cidade de Rapidópolis, morava um coelho

solitário. Ele não recebia visitas, não tinha amigos, nunca queria saber de conversa

com ninguém. Os vizinhos já estavam acostumados, diziam que ele vivia no mundo

da lua, que era distraído e desligado, e que tudo isso se podia entender, pois ele era

um poeta. Ele era o famoso poeta e escritor Felpo Filva. (FURNARI, 2006, p. 07)

Felpo Filva, o protagonista dessa história, é um coelho casmurro, como afirma em sua

autobiografia: “Sou um coelho solitário, não gosto de sair de sair da toca. Quando eu era

pequeno sofri muito porque tinha uma orelha mais curta que a outra. Os colegas sempre

zombavam de mim...” (FURNARI, 2006, p. 09).

Analisando de acordo com a estilística podemos classificar a linguagem do excerto

acima como “expressiva”, como diz Camargo (1998). Logo, vemos a imagem acima do texto,

de Felpo Filva, o personagem, expressando o pensamento por intermédio da linguagem.

Há uma semelhança entre a imagem e a escrita: o coelho acima está com expressão de

distraído e triste. Podemos vê-lo de cabeça baixa com uma expressão facial e olhar de solidão.

Isso é uma característica que trabalha as questões imagéticas, ou seja, todos os artifícios de

Page 37: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

37

que o autor faz uso para provocar a mente do leitor na relação palavra/imagem. Aqui, cabe a

metáfora mencionada por Godard (1993 apud JOLY, 1996) de que “a palavra e imagem são

como cadeira e mesa: se você quiser se sentar, precisa de ambas”.

Ao juntarmos essas informações, vemos que o leitor, ao olhar para a ilustração,

percebe a real solidão e tristeza do coelho; porém, se fosse omitida a representação imagética

por meio das palavras na descrição da autora, cada um teria sensações e representações destas

criadas mentalmente por cada leitor individualmente, com visões diferentes.

Para ambos os casos, a estilística é a responsável por guiar a narrativa de acordo com a

imaginação do autor, para que o texto possa surtir efeito na imaginação do leitor.

Além disso, ao olharmos para a figura, vemos, logo abaixo, uma descrição que retrata

brevemente a biografia do coelho, que, por sua vez, está aliado ao retrato de Felpo Filva.

Nesse sentido, o texto expressa a mensagem que deseja passar por intermédio da linguagem

na imagem.

3.2 Manual do aparelho Sticorelia Rabite Perfection

Fig. 3: Sticorelia Rabite Perfection

Reescrita da imagem

Sticorelia Rabite Perfection

Manual de Uso

Apresentação O STICORELIA RABITE PERFECTION deve ser utilizado por filhotes de coelho

que sofrem de desvio de simetria auricular. O aparelho tem por objetivo esticar a

orelha menor durante o crescimento do filhote. Deve ser usado por, no mínimo, 5

anos.

Page 38: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

38

Uso do aparelho

O usuário não deve tirar o aparelho para dormir. Ao tomar banho com o aparelho,

deve-se secar muito bem as orelhas com Cotonetes Rabite Perfection, para não dar

aguorelite.

Avisos de Segurança

Recomenda-se que o usuário do aparelho não jogue futebol nem brinque de pega-

pega ou esconde-esconde, sob o risco de machucar os coleguinhas.

Os Cotonetes Rabite Perfection, agora com bulbos envolvidos em algodão extra-

shups e ultraflot, vêm nos modelos duro e flexível, em diversas cores, espessuras e

comprimentos.

ASSISTÊNCIA TÉCNICA

Caso o aparelho apresente defeito, entre em contato com o SAC – Serviço de

Atendimento aos Coelhos.

Felpo deveria usar um aparelho para esticar a orelha curta. O aparelho se chamava

Sticorelia. Era grande, pesado e difícil de usar. O pior de tudo foi que de nada

adiantou tanto sacrifício. (p. 08)

Vemos a figura 3 apoiada à escrita, por meio da descrição “grande e pesado, difícil de

usar”; a ilustração dialoga o tempo todo com o texto verbal. Assim, podemos ver o texto

complementado pela imagem, sendo mais impactante; se tivéssemos somente o texto, o leitor

iria fazer o uso da sua imaginação, não havendo a imagem autoexplicativa para retratar o

texto — isso surtiria outros efeitos de sentido, de acordo com a imaginação de cada um.

A ilustração apresenta a maneira correta de utilizar o aparelho e a forma que ele tem, o

que seria complicado e confuso de dizer por meio de palavras somente.

O nome do aparelho é escrito utilizando figuras de linguagem “Sticorelia Rabite

Perfection” é um estrangeirismo (“rabite”, que derivou de rabbit, significa coelho em inglês;

“perfection”, que é perfeição em inglês), fenômeno linguístico que consiste no uso

“emprestado” de uma palavra, expressão ou construção frasal estrangeira, em substituição a

um termo na língua nativa.

Outra coisa que nos chama a atenção no manual é o uso do aparelho que diz: “O

usuário não deve tirar para dormir. Ao tomar banho com o aparelho, deve-se, depois, secar

muito bem as orelhas com Cotonetes Rabite Perfection, para não dar aguorelite.”

Analisando o excerto, percebemos novamente o uso do estrangeirismo em “Cotonotes

Rabite Perfection” e o neologismo em “cotonete”, pois o nome correto seria “hastes flexíveis”

ou “limpador de orelhas”; o nome “cotonete” foi inventado para a marca e acabou se

consagrando com o uso. Podemos ainda ver outra possibilidade, que a autora fez uso de uma

metonímia (a marca pelo produto), embora acredito que não tenha sido essa a intenção

principal. Em “aguorelite”, temos mais um neologismo — água + orelha — fenômeno

Page 39: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

39

linguístico que consiste na criação de uma palavra ou expressão nova, ou na atribuição de um

novo sentido a uma palavra já existente.

É interessante notar um ditado que ouvimos desde nossos antepassados e que continua

presente no livro ao surtir tal efeito de sentido no leitor: “Molhar a orelha no banho e não

secar direito pode dar dor de ouvido.” Em outras palavras, temos uma similaridade

(semelhança). Na criação da “aguorelite”, vemos aqui, que o sufixo -ite, que significa

inflamação e que “aguorelite” seria uma versão infantil para otite.

3.3 A Orelite Tremulosa

Fig. 4: Orelite Tremulosa

Reescrita da imagem

Quando Felpo acabou de ler, sua orelha direita (a mais curta) começou a tremer.

Toda vez que ele ficava nervoso a orelha tremia descontrolada. Infelizmente, além

do encurtamento, ele sofria de orelite tremulosa.

A carta tinha deixado Felpo bem nervoso. Um coelho famoso como ele não estava

acostumado com pessoas que diziam assim, com todas as letras, não gostei do seu

poema.

Quem era aquela Charlô, que tinha a coragem de falar com ele daquele jeito? E

ainda mais mudar o fim da sua história? Felpo não ia nem responder a tamanho

atrevimento! Amassou a carta e a jogou fora.

A carta foi para o lixo, mas o assunto não. Felpo não conseguia esquecer as palavras

de Charlô. Será que ela tinha razão? Será que ele era tão pessimista assim?

Nesse momento, seus pensamentos foram interrompidos pela campainha. Era o

carteiro trazendo uma pilha enorme de cartas. O poeta sempre recebia muitas, mas

nunca lia nenhuma. Nem as abria. Elas iam direto para o fundo do baú. (FURNARI,

2006, p. 11)

Page 40: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

40

Porém, nesse dia ocorre algo inesperado, Felpo Filva recebe uma carta de uma

coelha chamada Charlô Paspartu, a qual reescreve seus poemas de cunho pessimista,

com final sempre triste e dramático, e os deixa alegre com final feliz.

Nessa imagem é notável o espanto de Felpo Filva, pelos olhos arregalados e ao

mesmo tempo diz: “Não vou nem responder a tamanho atrevimento! Amassou a

carta e jogou fora.” (FURNARI, 2006, p.14)

Analisando, vemos em “tamanho atrevimento” uma figura de linguagem, a

prosopopeia, por estar medindo o atrevimento, que deveria ser abstrato. Podemos ainda ver o

lugar-comum, que é uma locução muito utilizada e já se tornou uma expressão clichê.

Felpo, além do encurtamento da orelha, sofria de Orelite Tremulosa, uma espécie de

otite que deixa os coelhos com as orelhas trêmulas, as quais caracterizaram como um

neologismo, criado pela autora para gerar um efeito de humor, ao revestir com um sentido

cômico o que foi dito.

3.4 Títulos dos livros de Felpo

Fig. 5: Livros de Felpo Filva

Reescrita da imagem

Pensou nos títulos de seus livros: A cenoura murcha, A horta por trás das grades,

De olhos vermelhos, Um pé de coelho azarado, Infeliz Páscoa. Ficou cheio de

dúvidas, preocupado. Pegou a carta do lixo, desamassou, leu e releu umas quinze

vezes. Pensando bem, aquela sinceridade dela até que era bacana. A gente confia

mais nas pessoas que falam a verdade. Guardou a carta amarrotada na gaveta da

escrivaninha. Felpo levou um bom tempo para esquecer o assunto e, quando

conseguiu, chegou mais um envelope lilás. Ele leu a carta.

Assim como na outra imagem analisada, vemos a imagem ficcional ligada ao texto

verbal. “Pensou nos títulos de seus livros: A cenoura murcha, A horta por trás das grades, De

olhos vermelhos, Um pé de coelho azarado, Infeliz Páscoa.”

Page 41: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

41

Os supostos nomes dados aos livros são todos pessimistas, em que cada imagem é

retrato do título triste. Também tem trocadilho (Infeliz Páscoa), ironia (Um pé de coelho

azarado) — que também pode ser um oximoro, uma figura de linguagem que harmoniza dois

conceitos opostos — e metáfora (A horta por trás das grades).

Além dessas informações, podemos ver nas imagens das capas dos livros: em “A

cenoura murcha”, uma cenoura murcha, curvada e sentada em um sofá, com uma tristeza

exposta na face; essa imagem está sendo usada para fazer com que aquele que vê a imagem

sinta todo o pessimismo presente. Serve também para expor que o adjetivo “murcho” não está

sendo usado no sentido denotativo (como uma cenoura murcha na fruteira), mas também no

conotativo (triste e cabisbaixo). Além disso, há o fundo o roxo, que simboliza dor.

Em, “A horta por trás das grades”, vemos o verde, que é uma cor calmante e que

representa as energias da natureza; porém, nessa horta, os frutos já estão quase sem vida e

aparentam estar morrendo atrás das grades. Há, na imagem, a prosopopeia, uma vez que a

horta ganha vida e há a reação facial em cada um desses frutos. Também é uma metáfora para

a prisão.

Em “De olhos vermelhos”, a imagem apresenta o desespero do protagonista da

história, já que os olhos estão arregalados e pedindo socorro.

Em “Um pé de coelho azarado”, a imagem enfatiza o azar do coelho, ao mostrar que

ele pisou em um prego.

Em “Infeliz páscoa”, a imagem da “infelicidade” não está no feriado em si, mas no

fato de que os coelhos, como são de chocolate, são devorados pelas crianças. É de fato a

justificativa para os títulos cômicos escolhidos para os livros.

3.5 Carta para Charlô

Fig. 6: Charlô

Page 42: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

42

Nessa imagem, nos é informado como Felpo imagina a coelha. Percebemos a função

descritiva — como vimos no estudo teórico, nada mais é do que detalhar a aparência, no caso

a personagem Charlô: satirizada em “redondamente enganada” e em “barriga estufada,

orelhas peludas, nariz de batata, bigode caído”.

Se analisarmos de acordo com as figuras de linguagem, podemos classificar esses

adjetivos dados a Charlô, como uma enumeração, na qual nos é relatado uma sequência de

descrição, intensificando o ritmo de nossa imaginação.

É notável a maneira utilizada pela autora de exprimir o pensamento por intermédio da

linguagem, sendo essa sequência de adjetivos um dos meios expostos para descrever a

personagem que está logo ao lado.

A figura auxilia as palavras a ridicularizar a personagem, por meio do “efeito de

humor”, como diz Martuscelli (2010), “ao revestir de um sentido cômico o que foi dito”.

Vemos isso presente nas seguintes características: pelo verde, vestido de bolinhas, pés

grandes, olhos desproporcionais e dentes afastados. Isso ocorre porque a linguagem verbal

organiza-se com o desenho representativo de Charlô, em uma relação de ligação entre ambas.

A palavra imaginação aparece constantemente nessa carta de Felpo à Charlô: “eu

tenho muita imaginação...”, “olha como eu imagino você”, “... um poeta cheio de

imaginação”. Podemos perceber que a “imaginação” que se repete tem o intuito de chamar a

atenção para a linguagem visual.

3.6 Bula de remédio

Fig. 7: Destremil

Page 43: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

43

Reescrita da imagem

DESTREMIL

APRESENTAÇÃO

Xarope suspensão – vidro com 200 ml

PARA USO ADULTO

AGITE ANTES DE USAR

COMPOSIÇÃO

Cada 15 ml contém:

Veículo q.s.p. .................14,5ml

Desmiclotina ..................0,3ml

Tremendil.......................0,1ml

Mipropilenoglicol...........0,1ml

INFORMAÇÕES AO PACIENTE

Destremil é um produto para ser tomado

via oral em caso de orelite tremulosa de

origem nervosa. Esta medicação não cura a

orelite, ela apenas controla os tremores. O

paciente deve procurar outros tipos de

tratamento para curar a doença.

INDICAÇÕES

O produto é indicado para o alivio dos

sintomas de orelite tremulosa simplex ou

complicadex.

CONTRAINDICAÇÕES

Se, ao ingerir a medicação, o paciente ficar

verde ou tiver uma coceira insuportável no

nariz, quer dizer que ele tem alergia. Nesse

caso, a medicação deve ser suspensa

imediatamente.

PRECAUÇÕES E ADVERTÊNCIAS

Destremil não deve ser tomado em caso de

otite infecciosa gripulenta, pois pode

ocultar os sintomas. Não deve ser usado

durante a gravidez.

POSOLOGIA

Em caso de orelite tremulosa simplex,

tomar uma colher de sopa. Em caso de

orelite tremulosa complicadex, tomar duas

colheres de sopa.

SUPERDOSAGEM

Em caso de superdosagem, recomenda-se

que o paciente deixe de ser besta e nunca

mais faça isso.

TODO MEDICAMENTO DEVE SER MANTIDO LONGE DO ALCANCE DOS

FILHOTES

LABORATÓRIOS INTOX

Farmacêutico Responsável: Beto Caroteno – Registro nº 49866

Para nº do lote, data de fabricação e vencimento ver embalagem.

O remédio que é mostrado consta a bula que acompanha o medicamento e contém

informações sobre a sua composição, maneira de usar, contraindicações, quem é o fabricante

e tudo o que pode ser importante para a utilização.

Analisando, o nome do xarope “Destremil” tem uma semelhança proposital em relação

à doença sofrida pelo coelho, orelite tremuosa, sendo por sua vez ligada ao tremor da orelha

que é similar ao nome do xarope. O “Destremil” é uma criação da autora que faz o uso da

figura de linguagem: o neologismo, ao criar esse nome pela tremedeira da orelha de Felpo.

É notável a instrução dos procedimentos usados em um remédio de verdade, fazendo

com que o leitor aproxime-se do problema e veja como agir para amenizar, uma vez que no

remédio é dito que não cura.

Vemos no xarope a criação da composição, sendo que a autora utiliza a função

representativa a todo o momento, imitando a aparência de uma bula a qual se refere criando

novos neologismos.

Page 44: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

44

Nas indicações, o produto é indicado para o alívio dos sintomas simplex que vem da

palavra (simples), ou complicadex da palavra (complicado), criando um efeito de depreciação

positiva, como já foi citado por Martuscelli (2010) no capítulo anterior.

O medicamento contém as precauções e advertências. Vemos novamente um

neologismo em “gripulenta”, que vem de gripe e teve tal criação humorística. Na posologia,

em “... tomar duas colheres de chá”, temos a causa pelo efeito, pois eu não vou tomar a

colher, e sim o chá que está nela. Pode até conceituar como uma expressão clichê, visto que a

grande maioria as pessoas utiliza e se identifica com essa conotação.

Para finalizar a análise dessa bula, no item superdosagem, em “recomenda-se que o

paciente deixe de ser besta e nunca mais faça isso”, temos uma sátira ao ver que o resultado

da ação é contrário ao desejo esperado.

A partir dessa análise, fica claro que a figura de linguagem esta ligada à estilística ao

desenvolver o processo de manipulação da linguagem a todo o momento na bula.

3.7 O final feliz

Fig. 8: Casamento

Quando a Charlô acabou de ler estava emocionada, com lágrimas nos olhos. Ela deu

um beijo em Felpo e o pediu em casamento. Na hora ele desmaiou e teve uma crise

de orelite tremulosa pavorosa na orelha esquerda, de tanta felicidade. Depois da

crise, ele se deu em casamento para a Charlô, com muito amor. (FURNARI, 2006,

p.37)

Page 45: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

45

Na última imagem escolhida, temos o final feliz que acontece na maioria das histórias

infantis, visto que há um problema inicial e um desfecho. Pode-se dizer que o problema inicial

seria quando os coleguinhas da escola zombavam de Felpo porque ele tinha uma orelha mais

curta que a outra e ele vivia sozinho e solitário; porém, quando ele começa a receber as cartas

de Charlô, mesmo sendo para criticá-lo de seus poemas pessimistas, as coisas mudam, e ele

passa a viver em harmonia, dando início ao desfecho.

Na figura, as flores representam, em tom claro, a felicidade dos coelhos, uma vez que

a flor roxa é conhecida como a cor do primeiro amor. O personagem Felpo tem várias fãs,

mas a Charlô é o seu primeiro amor.

Podemos ver, então, que, quando Felpo é pedido em casamento, ele tem “uma crise de

orelite tremulosa pavorosa na orelha esquerda, de tanta felicidade”. Dessa vez o efeito de

sentido é positivo, pois dessa vez a orelha treme de felicidade, sendo o oposto de quando

tremia de nervoso durante toda a história.

Page 46: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

46

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo exposto, pode-se inferir que, diante de um livro, aprendemos os seus atributos

pela percepção e pela espontaneidade inicial, de um gostar ou não. Mas à medida que a

compreensão avança, que a frequência e o aprofundamento com as ilustrações ocorrem, olhar

e gostar são modificados, porque esse é um saber que se amplia. O contato e o diálogo com a

visualidade em suas múltiplas formas e manifestações criam e transformam estruturas internas

e promovem o refinamento das abstrações.

O instante em Felpo Filva é mágico, momento único e pessoal de prazer que deve

iniciar na infância, quando o leitor é seduzido pela visualidade, pelo reconhecimento

figurativo e movido pela curiosidade, pela alegria da descoberta e pela ativação da fantasia.

Ao final deste trabalho, pude, então, responder às questões que, desde o começo,

norteiam esse trabalho e que são as seguintes:

– Quais são os recursos estilísticos utilizados na obra?

Os recursos estilísticos utilizados na obra são: linguagem expressiva, semelhança

imagem/escrita, estrangeirismo, neologismo, prosopopeia, expressão clichê, trocadilho, ironia,

metáfora e enumeração.

– Quais são efeitos de sentido que esses recursos buscam produzir?

De acordo com a questão anterior, os recursos estilísticos utilizados na obra buscam

produzir efeitos de humor, uma vez que reveste, na maior parte, de um sentido cômico o que

foi dito. Também podemos ver efeito de depreciação/ou ironia, quando a autora busca criticar

algo com sufixos aumentativos ou diminutivos sem estabelecer relação com o tamanho ou a

proporção. Toda essa ideia também engloba o efeito de afetividade, quando a escritora

demonstra afeto e emoções infantis para seduzir o ouvinte.

– Os recursos estilísticos produzem os efeitos de sentido esperados, considerando-se o

público leitor desse tipo de literatura?

Os recursos estilísticos presentes na obra produzem os efeitos de sentido que são

esperados, uma vez que as imagens que estão retradas na história em todas as páginas

complementam a escrita da autora, fazendo com que o leitor seja levado pela intenção da

representação imagética.

Contudo, o estilo de escrita de Eva Furnari, além de atender todas as exigências

supracitadas, é altamente significante do ponto de vista estilístico, pois está carregado de

elementos figurativos que enriquecem a densidade de sua obra, como foi percebido ao se

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analisar o livro Felpo Filva. Assim, finalizo com a certeza de que a obra de Eva Furnari, além

de ser uma presença marcante na literatura brasileira contemporânea, também pode servir de

estudo para a ciência linguística, como foi abordada na estilística.

Page 48: Felpo Filva: análise estilística da obra de Eva Furnari

48

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