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Nobres subversivos: a performance de mestres-salas e porta-bandeiras e possíveis debates sobre gênero, sexualidade e raça 1 Felipe Gabriel de Castro Freire Oliveira (PPGAS-USP/São Paulo) Palavras-chave: Performance, marcadores sociais da diferença, escolas de samba Introdução O presente trabalho tem como objetivo refletir sobre um caso que acredito ser bom para pensar questões sobre performance e gênero, discussão que foi recentemente iniciada dentro de uma pesquisa de mestrado mais ampla sobre a transmissão de conhecimento entre casais de mestre-sala e porta-bandeira no carnaval das escolas de samba paulistanas. Como será apresentado mais detalhadamente abaixo, as escolas são agremiações que realizam um concurso de desfile durante o carnaval e, para tanto, se organizam ao longo de todo um ano por meio de um calendário de eventos e preparações de seus diversos componentes. Um deles é o casal de mestre-sala e porta-bandeira, que desenvolve uma dança específica ostentando e apresentando o pavilhão (uma bandeira com o brasão e as cores da escola de samba). Esses movimentos são baseados na ideia de que a porta-bandeira, representada de forma feminilizada e portando esse objeto, é cortejada e protegida pelo mestre-sala, que deve ser masculinizado. Dessa forma, o casal se baseia também em uma concepção de gênero, desempenhada na expressão corporal por meio das técnicas da dança. Para pensar sobre isso e organizar melhor esse exercício de análise, escolhi trabalhar com o caso de Anderson Morango, primeiro homem a ser empossado como porta-bandeira no Brasil, ao lado do mestre-sala Wladimir Bulhões, na Acadêmicos do Sossego, escola de samba integrante da Série A do carnaval carioca. Escolhi tal caso apesar de trabalhar no mestrado com foco maior sobre os casais paulistanos por ser justamente bom para pensar as possibilidades criativas e, em certo sentido, politicamente subversivas do carnaval das escolas de samba. O carnaval, nesse sentido, por conta de sua dimensão de liminaridade, pode ser um campo de criação de narrativas sobre o mundo social e também de disputa política. 1 Trabalho apresentado na 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 09 e 12 de dezembro de 2018, Brasília/DF.

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Nobres subversivos: a performance de mestres-salas e porta-bandeiras e possíveis debates

sobre gênero, sexualidade e raça 1

Felipe Gabriel de Castro Freire Oliveira (PPGAS-USP/São Paulo)

Palavras-chave: Performance, marcadores sociais da diferença, escolas de samba

Introdução

O presente trabalho tem como objetivo refletir sobre um caso que acredito ser bom

para pensar questões sobre performance e gênero, discussão que foi recentemente iniciada

dentro de uma pesquisa de mestrado mais ampla sobre a transmissão de conhecimento entre

casais de mestre-sala e porta-bandeira no carnaval das escolas de samba paulistanas. Como

será apresentado mais detalhadamente abaixo, as escolas são agremiações que realizam um

concurso de desfile durante o carnaval e, para tanto, se organizam ao longo de todo um ano

por meio de um calendário de eventos e preparações de seus diversos componentes. Um deles

é o casal de mestre-sala e porta-bandeira, que desenvolve uma dança específica ostentando e

apresentando o pavilhão (uma bandeira com o brasão e as cores da escola de samba). Esses

movimentos são baseados na ideia de que a porta-bandeira, representada de forma

feminilizada e portando esse objeto, é cortejada e protegida pelo mestre-sala, que deve ser

masculinizado. Dessa forma, o casal se baseia também em uma concepção de gênero,

desempenhada na expressão corporal por meio das técnicas da dança.

Para pensar sobre isso e organizar melhor esse exercício de análise, escolhi trabalhar

com o caso de Anderson Morango, primeiro homem a ser empossado como porta-bandeira no

Brasil, ao lado do mestre-sala Wladimir Bulhões, na Acadêmicos do Sossego, escola de

samba integrante da Série A do carnaval carioca. Escolhi tal caso apesar de trabalhar no

mestrado com foco maior sobre os casais paulistanos por ser justamente bom para pensar as

possibilidades criativas e, em certo sentido, politicamente subversivas do carnaval das escolas

de samba. O carnaval, nesse sentido, por conta de sua dimensão de liminaridade, pode ser um

campo de criação de narrativas sobre o mundo social e também de disputa política.

1 Trabalho apresentado na 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 09 e 12 de dezembro de 2018, Brasília/DF.

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Imagem 01: Wladimir Bulhões e Anderson Morango, terceiro casal da Acadêmicos do Sossego, em entrevista a Matheus Rodrigues, no Sambódromo Marquês de Sapucaí. Foto: Jorge Soares/G1. Disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/carnaval/2019/noticia/2018/09/11/academicos-do-sossego-tera-homem-como-porta-bandeira-no-carnaval-2019-veja-video.ghtml . Acesso em 05/11/2018, às 15h23.

Devido à novidade desse objeto de pesquisa no desenvolvimento de minha

dissertação, foi possível apenas realizar uma articulação introdutória sobre os temas de

gênero, marcadores sociais e performance, que terão avanço em um futuro próximo. O

contato com Anderson, inclusive, só foi possível via ligação telefônica, pelo qual

conversamos sobre sua trajetória e opiniões a respeito das questões que levantei previamente.

Parte do diálogo será apresentado aqui. Aproveito para agradecer ao antropólogo, doutorando

na Universidade Federal do Rio de Janeiro e carnavalesco Vinícius Natal pela grande

contribuição de nos ter colocado em contato. Para problematizar o contexto no qual se insere

o caso de Anderson Morango, explorarei parte do acúmulo sobre os casais de São Paulo,

descrevendo o cargo de mestre-sala e porta-bandeira e as formas de aprendizagem e

aprimoramento da dança, âmbito fundamental para entender como uma certa ideia sobre

gênero e performance alimenta a atuação desses sujeitos no universo do carnaval.

Nobre Figura

A tríplice formada por mestre-sala, porta-bandeira e pavilhão é um elemento

fundamental para os desfiles das escolas de samba. Tais desfiles são organizados a partir de

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“enredos”, expresso em suas diversas composições (samba-enredo, fantasia, alegoria, bateria,

comissão de frente, etc), que são julgadas por meio de notas e somadas para se eleger a escola

campeã. O casal é um desses quesitos e é o único em que se julga a atuação de apenas duas

pessoas – o restante são atuações coletivas ou análises estéticas.

Por conta das disputas se limitarem a um mesmo modelo de cortejo carnavalesco, os

desfiles são sempre pautados pelo seu poder de criação e de inovação. Dessa forma, o casal

enfrenta o desafio de desempenhar uma apresentação pela qual atinja as expectativas do que

se espera ser a dança de mestre-sala e porta-bandeira, executada com qualidade, e que

proponha novos passos ou adaptações ao tema do desfile, mas sem ultrajar essa “tradição”.

Para a antropóloga Renata Gonçalves,

A investigação sobre esse elemento tradicional no espetáculo das escolas, ao enfatizar

princípios que organizam e transformam a experiência de sua atuação diante de uma

plateia, pretende oferecer uma compreensão diferenciada daquela que a caracteriza

como resistência cultural, dando lugar a tradição a partir de uma antropologia da

experiência (Gonçalves, 2008: p. 225).

A autora demonstra que será a própria atuação dos indivíduos como um casal, nos

mais diversos espaços, que irá colocá-los em um processo de reflexão sobre sua arte: serão o

conhecimento até então constituído pelos casais já atuantes e as expectativas relacionadas a

eles que nortearão a execução de movimentos. A autora defende que é a própria performance

do mestre-sala ou da porta-bandeira que articula imagens do passado ao presente vivo, que

torna possível a descoberta e a construção do significado dessa “arte”.

A performance compreende a possibilidade renovada de significar e reinterpretar a

passagem do tempo. Ao construir uma nova continuidade com a memória do passado,

comunica-se a “metáfora da tradição”. Trata-se de uma “performance reflexiva”, um “lugar

crítico, belo e surpreendente”, como defende Gonçalves (2008), de um “elemento de

permanência no dinâmico espetáculo da mudança”. A dança é, assim, um “modo inventivo de

lidar com planos de significação da ideia de tradição”. É esse dilema que problematiza o

estudo de Gonçalves e abre caminho para o presente trabalho. Investigar como esses saberes

são assimilados em diferentes cenários - os cursos de formação e aprimoramento e no

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cotidiano de uma escola de samba - pode indicar as estratégias empregadas pelos sujeitos que

lidam constantemente com essa controvérsia.

Em seu estudo, Sá Gonçalves analisou a Escola de Mestres-Salas, Porta-Bandeiras e

Porta-Estandartes Manoel Dionísio, na época comandada por Mestre Dionísio, no Rio de

Janeiro, e que inspirou a criação desses cursos em São Paulo. Mestre Dionísio, além de

referência do conhecimento da dança em si, exerce uma função de “iniciador” de dançarinos,

oferecendo oportunidades de inserção no universo do Carnaval, e de “mediador”,

comunicando diferentes “mundos sociais” (Gonçalves, 2008).

A Escola, fundada em 7 de julho de 1990, tornou-se uma vitrine de mestres-salas e

porta-bandeiras para as escolas de samba: muitos casais adultos e mirins que atuam em

escolas cariocas foram escolhidos durante suas aulas. Ou seja, o aluno ou a aluna tem na

Escola de Mestre Dionísio a porta de entrada para a rede de sociabilidade que um mestre-sala

ou uma porta-bandeira deve se inserir. Muitos alunos no anos iniciais do curso tinham origem

sociais desfavorecidas, sendo que o curso representava, além do auxílio a alimentação e

transporte, uma possibilidade de atividade remunerada - há no Rio de Janeiro diversos casais

que são contratados por salários e premiações.

Assim, são nas situações de interação, seja durante as aulas ou nas apresentações de

uma escola de samba, seja em eventos particulares ou em visitas a sedes de outras

agremiações, que o bailado enamorado e o porte elegante e diplomático serão construídos, em

um processo de experimentação inventiva que nunca cessa (Gonçalves, 2008).

Os contextos históricos carioca e paulistano diferem quanto ao início da atuação de

casais em escolas de samba. Em linhas gerais, a oficialização dos concursos entre as escolas

paulistanas com o apoio da prefeitura municipal implicou na implantação do modelo do Rio

de Janeiro, fazendo declinar certos elementos dos cortejos existentes.

Durante os dias de Momo, era mais presente outro tipo de agrupamento carnavalesco

nas ruas da capital paulista, os chamados “cordões”. Surgidos a partir das década de 1910, os

cordões eram formados geralmente pelo “batuque” (agrupamento musical que apresentava

instrumentos de percussão, de cordas e de sopro, correspondentes em certos aspectos à

“bateria” carioca), os balizas, porta-estandarte, corte (formado por “damas antigas”, rainha,

rei, príncipe e princesa) e pelas pastoras (Moraes, 1978).

Os diversos cordões surgidos, como o Cordão da Barra Funda e o Cordão Vae-Vae

(precursores das escolas de samba Camisa Verde e Branco e Vai Vai), por não terem uma

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federação ou instituição organizativa que defendesse um modelo de cortejo, podiam

apresentar elementos e número de participantes diversificados (Simson, 2007). Os concursos

existentes até a década de 1960 eram organizados pela iniciativa privada - rádios, jornais,

comércios - e possuíam critérios também diversos e não de âmbito municipal (Moraes, 1978).

Os desfiles podiam apresentar um tema que inspirava suas fantasias, como “gregos”,

“romanos”, por exemplo, mas não chegavam a ser como os enredos do carnaval atual -

também uma criação dos cariocas - e não determinava o conteúdo das músicas entoadas pelos

participantes, que podiam ser de temáticas variadas, geralmente de exaltação ao próprio

cordão.

Contudo, alguns elementos eram constantes, dentre eles, os “balizas” e as

“porta-estandartes”, de forma geral ocupados por homens e mulheres, respectivamente. O

estandarte era uma espécie de bandeira que representava o grupo carnavalesco, uma espécie

de totem. Além dos concursos organizados, havia a prática de captura ou destruição de

estandartes quando um cordão se encontrava com outro e eram os “balizas” - armados

justamente com esses instrumentos, com os quais realizava também acrobacias - os

responsáveis pela proteção desse símbolo maior da agremiação. Em alguns cordões, havia a

presença dos batedores ou bastedores e mestres-de-cerimônias, que também ficavam no

entorno da porta-estandarte: os primeiros portavam uma batuta para defesa contra possíveis

atacantes e, os segundos, ocupavam-se em abrir espaço para o cordão passar e cuidava de sua

organização. Se um folião de fora conseguisse ultrapassar essa barreira e retalhar o pavilhão

concorrente, declarava o seu grupo como vencedor. Ao longo do tempo, essas disputas mais

violentas foram declinando em favor dos concursos lúdicos.

Desde então, foi-se constatado um aumento do público participante e da aceitação dos

cordões pela sociedade mais ampla (Simson, 2007), o que fez com que as agremiações

paulistanas iniciassem negociação com o prefeito Faria Lima em 1967 a fim de conquistarem

apoio financeiro para a produção dos desfiles. As escolas cariocas, nos anos 1930, já haviam

conseguido adesão do poder público, fator que pode ter fortalecido a proposta em São Paulo.

Como não havia nenhum tipo de instituição até então que organizava os grupos carnavalescos

e critérios para seus desfiles, foi-se proposto, para tanto, a implantação do modelo carioca das

escolas de samba para o concurso municipal. Dessa maneira, os cordões e as escolas de

samba já existentes na capital paulista tiveram que se adaptar a certos elementos cariocas

como, por exemplo, a obrigatoriedade do enredo como tema das apresentações, a ala das

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baianas, a exclusão de instrumentos de sopro do grupo percussivo - se aproximando mais do

modelo das “baterias” - e o casal de mestre-sala e porta-bandeira. Foram criados, então,

concursos para as escolas de samba, que correspondiam a maior tendência, e para os ainda

resistentes cordões.

Esse período concentrou o maior número de fundação de escolas de samba na capital,

segundo o Censo Samba Paulista 2012. Das 78 agremiações que desfilaram em 2012, 21

(27%) foram fundadas na década de 1970, 13 (17%) na década de 1980 e 13 (17%) nos anos

1990. O apoio da municipalidade, de certa forma, concomitante ao aumento do público e da

base social das escolas de samba.

Dessa maneira, o carnaval em São Paulo chamava cada vez mais atenção pelo sua

possibilidade de exploração turística e de entretenimento. Já na década de 1980, os desfiles

passam a ser transmitidos ao vivo por rádio e TV. Até que, em 1990, a prefeita Luiza

Erundina decide construir uma localidade especial para abrigar o desfiles das escolas. Em

1991, era inaugurado o Sambódromo do Anhembi. Para Belo (2009), o Sambódromo fez com

que os desfiles se tornassem mais grandiosos e luxuosos, em um processo crescente de

espetacularização.

Para a produção de desfiles cada vez maiores, foi se intensificando um processo de

profissionalização ligado às composições das escolas de samba. Como mostra Moraes (1978),

a partir já da aprovação da subvenção municipal, muitos “trabalhos voluntários” passaram a

minguar e a ser exigido contratação para prestação de serviços. O nível dos desfiles aumentou

demasiadamente com a crescente exploração midiática, do aumento da gestão com visão

empresarial e crescimento das receitas das escolas, âmbitos das agremiações que vão se

intensificando mutuamente e consolidando uma economia do carnaval.

Com suas transformações e adaptações, o carnaval paulistano vai constituindo uma

nova fase de organização das escolas de samba e do relacionamento de sua base social com

seu cotidiano, no processo de preparação do desfile ou no consumo de seus eventos. E será

nesse contexto, em 1995, 4 anos depois da inauguração do Sambódromo, que será criada a

Associação dos Mestres-Salas, Porta-Bandeiras e Estandartes do Estado de São Paulo

(AMESPBEESP). Segundo Mestre Ednei Mariano e Mestre Gabi, seus idealizadores, estava

sendo muito comum encontrar casais que apresentassem uma dança “deturpada”: apesar da

dança ter base no minueto europeu e em movimentos da “ginga da capoeira”, as

apresentações estavam tendo muitos elementos do ballet, problema principal que deveria ser

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corrigido pela forma “tradicional de bailar”. Mestre Ednei explica que o que intensificou esse

problema foi a crescente participação de bailarinos profissionais, alheios aos conhecimentos

da origem da dança, como jurados de desfiles: afirma que quem se aproximasse mais dos

passos do ballet era melhor avaliado, enquanto “quem jogava de perna mesmo perdia nota”.

Aprendendo a dançar

Mais do que apenas um curso, a AMESPBEESP é um órgão que mobiliza grande

parte do setor de casais e pessoas ligadas a eles na cidade e em algumas cidades do interior do

Estado. Suas atividades anuais sugerem todo um processo de preparação do corpo dos

dançantes, de construção de uma rede de relações entre pessoas e agremiações, de

estruturação das condições materiais e humanas para os desfiles, de entendimento e

julgamento dos critérios de avaliação da dança na avenida, de formas de dom como dádiva

(com relação aos instrutores que fazem parte da Associação como voluntários) e de dom

como talento (como uma capacidade de alguém que demonstre ser extraordinária) e de

premiação para casais que conquistaram bons desempenhos. Nesse sentido, acompanhar essas

atividades ao longo dos anos de 2016, 2017 e parte de 2018 proporcionou refletir, a partir de

uma perspectiva, como as formas de conhecimento e prática sobre o corpo dos casais estão

sendo articuladas entre as escolas de samba da capital paulista e suas instituições correlatas,

de como são corpos em constante capacitação física e ideológica para o grande desafio do

carnaval.

Com mostra seu site na internet, a Associação foi fundada norteada pelo objetivo de

defender a “forma tradicional” da dança dos casais e de ensiná-la. Seu núcleo, então, seria a

criação de um curso de formação a ser desenvolvido supra-escolas de samba. Além disso,

teria como objetivo a intermediação entre os próprios casais e as diretorias das agremiações e

as instituições carnavalescas como a Liga e a União das Escolas de Samba Paulistanas

(UESP), esta responsável pelos quatro grupos inferiores, com o intuito de informá-las cada

vez mais dos princípios da dança. Nesse sentido, a AMESPBEESP interveria nesses vários

âmbitos para “valorizar o quesito”, como aponta Mestre Ednei, evitando a consideração

apenas da “plástica”, segundo defende, mas também e principalmente se o casal dança

corretamente e transmite o porte fino com uma desenvoltura ideal. Pela possibilidade de

inscrição a qualquer pessoa, o curso proporciona, então, um contato privilegiado com casais e

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sambistas de grande experiência no carnaval e acúmulo sobre essa arte.

O curso de formação e aprimoramento foi inspirado no modelo de aula do Projeto

Manoel Dionísio, do Rio, pioneiro nessa proposta de ensino. Mestre Gabi possuía

proximidade com Dionísio e conseguiu apoio dele para assessorá-los nessa formatação.

Mesmo baseando-se em dinâmicas de aulas do curso carioca, segundo Mestre Gabi, as

“especificidades paulistanas” foram levadas em consideração na concepção das lições. Uma

diferença prática é a forma de julgamento na avenida: no Rio de Janeiro, o casal é apenas

avaliado pelo jurado em sua apresentação para a cabine, local onde este fica, podendo se

deslocar caminhando levemente nos intervalos de deslocamento; em São Paulo, o júri deve

considerar a apresentação do par dentro de todo o seu campo de visão, o que faz com que o

casal tenha que evoluir (bailar e apresentar o pavilhão) durante todo o desfile.

As aulas são divididas em salas de níveis de aprendizagem para que se tivesse bom

aproveitamento: infantil, iniciante, intermediário e avançado ou salas “kids, 1, 2 e 3”. O

primeiro nível é para casais-mirins, iniciantes ou com certa experiência de avenida; o

iniciante é voltado para os casais que ainda são totalmente leigos, mesmo que já tenham tido

experiência de desfile por conta de alguma oportunidade, e para pessoas interessadas; o

intermediário é voltado para casais ou pessoas que procuram aperfeiçoamento e

desenvolvimento de seu estilo próprio; e o avançado para casais ou pessoas que querem ter

um treinamento mais intensivo e continuidade no desenvolvimento do estilo próprio.

Todos os integrantes da AMESPBEESP, seja instrutor, seja membro da diretoria, são

voluntários. Segundo Ednei, todos já foram alunos do curso e já conquistaram notas máximas

em carnavais passados, têm “a mesma filosofia que o curso e, acima de tudo, tem respeito”.

Os convites são realizados ano a ano, pois cada instrutor tem sua conduta avaliada pelos

diretores. Pode-se afirmar - e Mestre Ednei, em depoimento, defende o mesmo - que, apesar

de ser um trabalho não remunerado, os casais ou pessoas convidadas usufruem de certa

distinção nesse universo, internamente e externamente às agremiações nas quais atuam, como

uma forma de certificação de sua experiência como dançante. Pode-se fazer a leitura que se

trata também de um sistema de dádiva (Mauss, 2003) do carnaval, em que se recebe um

conhecimento advindo dos mais experientes e, no momento em que se atinja uma maturidade

na dança e um acúmulo reconhecido em escolas e desfiles, se retribui, ensinando e

introduzindo novos casais. A retomada das aulas ocorre, de forma geral, no mês de abril e as

inscrições prévias são realizadas via e-mail ou durante as primeiras aulas. Em 2017, foi-se

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cobrado um taxa única de R$70 para custos de manutenção administrativa e logística do

projeto e para a camiseta, uniforme obrigatório. A Associação não possui sede própria: seus

documentos são guardados nas residências dos membros diretores e o curso é oferecido nas

quadras de escolas de samba que o acolhem. Atualmente, o curso acontece na quadra da

Mocidade Alegre.

As aulas são organizadas em três momentos, teoria, aquecimento e atividades das

salas, consecutivamente. Nem todas as aulas tinham parte teórica, que era realizada antes de

qualquer atividade prática. Eram todos dispostos em cadeira em frente ao porta-pavilhão,

onde a instrutora Daniela Renzo profere as palestras. Seu conteúdo versava sobre a história da

dança, seus aspectos característicos, regras dos desfiles, rituais das escolas de samba e

conduta moral dos casais.

Na aula do dia 05 de maio de 2018, retomou o assunto das aulas anteriores e avançou

na discussão sobre “palavras mágicas” que todos devem estar pensando na hora de treinar,

ensaiar e executar a dança. A primeira aula tratou sobre corpo e movimento. Ela não

discorreu muito sobre esses termos, o que foi uma pena mas serve como anotação para uma

conversa ou entrevista com Daniela futuramente. Falou apenas que se tratava da importância

de ver os movimentos corporais. Ver e entender o movimento do corpo poderia ser algo

essencial para o aprendizado da dança, ligado à prática do aprender a aprender (aspecto já foi

indicado por Gonçalves, 2008) e ao uso da observação como modo de aprendizado e

transmissão de conhecimentos.

Em seguida, falou sobre o tema da segunda aula, que abordou quatro palavras:

“gesto”, “postura”, “expressão” (facial e corporal, transparecer uma mensagem para as

pessoas) e “emoção” (a emoção que se transmite, “sentir o samba”). Pelo o que pude

entender, era uma forma de descrição da dança e uma forma de reflexão sobre essa

performance que orientava seu desenvolvimento. A ideia de “gesto” contempla os

movimentos corporais que indicam certa intenção, fundamentais para a comunicação corporal

entre os bailarinos. A “postura” é a necessidade de executar um comportamento altivo,

elegante, inspirado em parte no balé clássico. A “expressão”, a comunicação corporal que o

casal deve exprimir para o público, mostrando o valor do pavilhão que ostenta. E, por fim, a

“emoção”, mostrando-se como é afetado emocionalmente pela apresentação da escola que

integra.

Naquela data, então, explorou mais quatro palavras: “leveza”, “ritmo”, “finalização” e

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“sincronia”. Leveza é a execução de uma dança “limpa”, descontraída, de movimentos leves,

algo que não é ligado ao peso do dançarino, mas ao domínio físico e à forma do movimento.

No caso dos mestres, não se tratam de gestos femininos, visto que a performance propõe uma

dança entre um casal formado por uma “homem masculinizado” e uma mulher

“feminilizada”, independente de sua orientação sexual e sua identidade de gênero. A questão

entre corpo, gênero e sexualidade, portanto, é fundamental para entender produção e

construção de corpos capacitados, o que será abaixo melhor discutido. A sexta ideia é

“ritmo”: execução dos movimentos na cadência do samba, tendo como referência o

samba-enredo, que tem seu compasso marcado pelo “surdo”, o instrumento de percussão

grave da bateria. A sétima palavra é “finalização”, ou seja, a clareza dos movimentos e

plasticidade de seus inícios e fins, como o encontro de mãos entre os dançarinos, o término de

um giro ou de um jogo de perna, por exemplo. E, por último, “sincronia”, que é a qualidade

dos movimentos realizados entre mestre e porta-bandeira no mesmo tempo por meio da

comunicação corporal ou de coreografias ensaiadas, algo que também está ligado a ideia de

que um não pode ter uma performance destoante do outro, mas com igualdade na execução

de cada passo.

Cada ideia foi explicada por Daniela e demonstrada por outros casais que são

instrutores no curso. Trata-se de uma estratégia em que se observa o movimento, entende sua

lógica e, posteriormente, se executa.

Depois da teoria, os alunos partiam para a prática. Em 2016, o aquecimento ocorria

com todos os alunos juntos, dançavam “zumba” com trajes esportivos, comandados pela

professora de dança Bianca Maria, ligada à Mocidade Alegre. Em 2017, foi conduzido por

um mestre-sala do qual não pude saber o nome, mesmo depois de incessante pesquisa. Logo

após, os alunos vestiam as vestes de mestres-salas, calça e sapato social e camiseta da

Associação, portando seu instrumento de trabalho (leque, lenço, bastão), e, as alunas, as de

porta-bandeiras, sandália de salto, saia rodada abaixo do joelho, calça ou bermuda por baixo

(o recatamento é um aspecto muito valorizado pelos instrutores por fazer parte da postura

moral do casal) e camiseta do curso, além de seu talabarte (cinto que possui um suporte

acoplado para mastro), mastro e pavilhão (para as que já possuem agremiação).

Em 2018, observei uma mudança nesse início. A aula teórica era realizada

primeiramente e, logo depois, os alunos já formavam suas salas e, nelas, praticavam o

aquecimento. Trata-se de exercícios físicos, pelo o que pude observar, que não apenas

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alongava e aquecia o corpo para os treinamentos propostas pela aula prática, mas também

tinha a intenção de fortalecer muscular e aerobicamente os alunos e alunas. Exercícios de

corrida, de agilidade com os pés com desvios marcados no chão, por exemplo, eram

utilizados. Acredito que isso está relacionado à ideia de que, para realizar a dança com o

máximo de domínio possível sobre seus técnicas, o dançarino deve também ter uma condição

física que lhe possibilite executar os passos de maneira eficaz e durante um certo tempo,

condições que lhe serão necessárias durante as apresentações e ensaios de quadra e também

durante o desfile, momento este que pode exigir muito psicologicamente e influenciar no

vigor físico. Casais oficiais, atualmente, fazem comumente preparações físicas em academias

de musculação, praticam esportes de luta ou fazem algum tipo de fortalecimento muscular e

de condicionamento da respiração para enfrentar a rotina da dança.

Em todas as salas são ensinadas ou reforçadas as regras de certos ritos da dança,

como, por exemplo, a roda de pavilhões (que une diversos casais em uma dança coletiva de

ostentação e união entre os pavilhões), de apresentação da bandeira para a bateria e para o

palco musical em eventos dentro de quadras, em velórios (no qual o pavilhão é levado à

cerimônia e deixado em meia-altura em sinal de respeito a uma figura importante para as

escolas de samba), etc.

Ao longo de todo curso, o aluno e a aluna são avaliados segundo critérios

estabelecidos pelos instrutores de cada turma, avaliação essa entregue no final do ano letivo,

logo antes da formatura. Contudo, o objetivo do curso não é uniformizar a dança de todos,

reproduzindo o modelo dos instrutores ou de qualquer outro mestre-sala, mas sim orientar os

casais de forma a construírem a sua dança de acordo com os princípios “tradicionais”. Como

defende Mestre Gabi, “estilo cada um tem o seu!”.

Em conversas informais, pude constatar que, geralmente, as pessoas ficam sabendo da

existência do curso em espaços ligados às escolas de sambas por meio de pessoas que

também são frequentadoras. Nos casos de casais já atuantes, cursam as aulas por iniciativa

própria e também por indicação de diretores das entidades em que dançam. Na turma de

2015, formaram cerca de 122 alunos, sendo 40% de crianças. As origens eram as mais

diversas: São Paulo (capital), Batatais, Sorocaba, São Bernardo do Campo, Santo André,

Diadema, Santos, Guarujá, Itaquaquecetuba e Brasília.

Durante a entrega dos certificados, ao fim do curso, Mestre Ednei realizou um

discurso que mostra como a formatura, para os casais, não devia representar exatamente a

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certificação de que estavam prontos. “A gente sempre fala que vocês estão se formando, mas

vocês são sambista e sambista nunca tem diploma final. O sambista tá sempre buscando, tá

sempre aprendendo. Então, isso realmente, hoje, realmente, é um encerramento de um ciclo,

né? De mais um ciclo na vida de vocês, de muitos [ciclos] de vocês”, afirmou. Acredito que

essa declaração de Ednei mostra com profundidade a especificidade do corpo de um

mestre-sala e de uma porta-bandeira. Trata-se de um corpo que está sempre em constante

aperfeiçoamento, que o domínio da técnica nunca é completo, mas sempre um objetivo que

proporciona as performances durante o ciclo do carnaval e no desfile. São em certos

momentos de finalização de ciclos (que podem ser entendidos como ciclos corporais) que os

dançarinos poderão receber um reconhecimento de suas performances. Seja durante a

formatura, seja durante a apuração das notas após um desfile. Em um plano temporal, a

inventividade da tradição, como apontada por Renata Gonçalves (2008), sempre levará o

casal a constantemente buscar uma nova performance, inspirados também pelo ciclo

carnavalesco, que propõe, ano a ano, um enredo a ser desenvolvido. Os fins de ciclos, como a

formatura ou a conquista das notas máximas, representarão a aprovação do júri e, em certa

medida, do público sobre a capacidade de performatizar essa dança. Contudo, com o início do

novo tempo, o corpo volta a enfrentar a condição básica como um corpo em devir. O

reconhecimento da posição de alguém entre as escolas de samba, dessa maneira, passa não

apenas por certificados conquistados por cursos, que têm até menos centralidade para essas

pessoas, mas pela experiência e comprometimento com os ciclos carnavalescos.

De forma especial, o ensino prático ainda guarda o objetivo central, segundo seus

idealizadores, da forma de transmissão do conhecimento sobre arte que existia antes do

advento dos cursos: a tentativa de desenvolvimento do estilo pessoal do dançante, de acordo

com os princípios fundantes da “arte”. Não se trata de uma uniformização da dança de todos

os casais, mas de uma orientação. Para Mestre Ednei, deve-se “buscar a nossa identidade,

mas não podemos perder o fio da tradição, o porquê da dança do mestre-sala e da

porta-bandeira”. Dessa maneira, para Gonçalves (2008), trata-se de um modo inventivo

norteado por esses espaços de reflexão e construção da ideia da “arte tradicional”, alcançada

por uma pedagogia dos movimentos e por uma pedagogia moral de como exercer essas

funções.

Além disso, Mestre Gabi, em entrevista, afirma que, apesar de não ter sido o objetivo

inicial, os cursos facilitaram o caminho de se tornar um mestre-sala ou uma porta-bandeira de

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uma escola de samba. Ainda hoje, é possível haver formas de escolha de pessoas de dentro

das escolas, por envolvimento em uma comunidade e ocorrência de oportunidades em que se

demonstre habilidades extraordinárias, interessantes para pensar o dom não como dádiva,

mas como talento, aptidão fora do comum, que podem ser identificados tanto no cotidiano

das escolas, como no das escolas de bailado. Há também as chamadas “audições”, espécie de

concursos abertos e divulgados publicamente pelos quais as escolas realizam uma seleção

entre casais interessados em data, hora e local marcado (geralmente suas quadras). Mas os

cursos, como também apontado por Gonçalves (2008) sobre o caso carioca, tornaram-se

vitrines para diretorias, que visitam as aulas em busca de mestres-salas ou porta-bandeiras.

Diferentemente do que se pode supor, a AMESPBEESP não cria uma categoria

profissional, não possuem esse intuito classista. Mas pode ser considerada uma instituição

que articula pessoas ligadas a essa figura central dos desfiles das escolas de samba. Fazendo a

opção pela busca da “arte tradicional”, a entidade trabalha no sentido de proporcionar

melhores condições de atuação e desenvoltura na dança do casal nobre, símbolo do respeito

ao valor do samba e do carnaval.

Vestir-se de porta-bandeira

É preciso esclarecer que, devido aos limites metodológicos da pesquisa sobre as

questões específicas aqui levantadas, optei por fazer uma aproximação entre os carnavais de

escolas de São Paulo e Rio de Janeiro. Como apontado pela historiadora Lígia Conti (2015),

sambistas - e seus saberes e práticas - desde o final do século XIX e início do XX - estiveram

em relação de troca e soma, circulando entre esses estados. A oficialização dos desfiles pela

prefeitura de São Paulo e a consequente adoção de moldes cariocas no julgamento paulistano

é exemplo disso. A construção do Sambódromo do Anhembi foi também em reflexo da

passarela do Marquês de Sapucaí. Há uma circulação grande de ritmistas, mestres de bateria,

passistas, rainhas de bateria, intérpretes, etc, que circulam entre os dois carnavais.

Recentemente, tivemos o primeiro mestre-sala de São Paulo a ocupar o cargo de oficial em

uma escola carioca de destaque: Marlon Lamar, ex-mestre da Império de Casa Verde, foi

convidado por Lucinha Nobre, porta-bandeira de grande destaque, a dançar na Estácio de Sá

(2017) e, posteriormente, na Portela (2018 e 2019). Dessa forma, mesmo sabendo da

necessidade de aprofundar no estudo das relações entre casais e demais integrantes e fazer as

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devidas distinções, assumo neste trabalho uma proximidade entre esses dois âmbitos do

carnaval para refletir sobre o caso de Anderson Morango.

A Acadêmicos do Sossego é uma escola de samba de Niterói que participa atualmente

do carnaval da capital fluminense. Em 2019, o carnavalesco Leandro Valente assinará o

enredo “Não se meta com a minha fé, acredito em quem quiser”, abordando a tolerância

religiosa. Não por acaso é que acontece o convite a Anderson para ocupar, ao lado de

Wladimir Bulhões, o cargo de terceira porta-bandeira - como uma forma de também abordar

o tema do gênero, do direito à identidade, da agenda da diversidade. Ambos dançarinos não

serão avaliados pelos jurados (o casal oficial Marcinho Souza e Thayanne Loureiro defenderá

o quesito na avenida), mas foram responsáveis por colocar a Sossego na boca do povo por

conta da polêmica. Anderson, que é homem cis, se vestirá como porta-bandeira para dançar

com seu mestre Wladimir no próximo carnaval.

Para ele, o exercício desse cargo é uma forma de mostrar que o carnaval “é para todos

e [que] temos que ser livres, é a festa do povo” (Anderson Morango. Depoimento em

03/11/2018) e uma maneira de defender a “tradição da dança”, já que antigamente muitos

homens eram porta-estandartes, figura antecedente ao casal que portava sozinho o estandarte,

também antecedente dos pavilhões. Defende que para ser porta-bandeira é preciso

essencialmente saber dançar, justificando que também é importante reconhecer o artista que

está em performance, que, mesmo que não seja uma mulher, deve haver respeito. Afirma que

a “dança é o corpo em movimento então deixe meu corpo se movimentar e vamos

movimentar as nossas vidas. Acho que no samba não pode ter preconceito de forma alguma”

(Anderson Morango. Depoimento em 03/11/2018).

A postura de Anderson é interessante para pensar, primeiramente, na ideia de “ser

porta-bandeira” em contraposição à ideia de “dançar (ou estar) como porta-bandeira”. Sua

atuação vai de encontro com a defesa que muitas pessoas desse universo fazem da

necessidade de ser mestre-sala ou porta-bandeira a todo momento, 24 horas por dia, por

acreditarem ser um posto público de representação do valor de sua agremiação. Ou seja, a

forma pela qual se vive deve estar indiferenciada do momento de atuação como dançarino,

sendo a própria dança apenas mais um elemento da ocupação do cargo. Pelo o que pude

conversar com Anderson, não é que ele não acredite que ele seja ininterruptamente

porta-bandeira da Sossego, mas percebo haver uma valorização de sua condição como artista,

como dançarino, que executa uma técnica específica com habilidade e capacidade.

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A dança de mestre-sala e porta-bandeira leva a ser refletir sobre como a arte pode ser

expressão sem uma técnica a ser executada de maneira ideal e a dança como um conjunto de

regras que deve seguir certos protocolos do fazer certos passos. Não se trata de uma arte

enquanto expressão livre, mas uma expressão em dupla (ou mesmo em trio, levando-se em

consideração a agência do pavilhão) seguindo certos ditames que até possuem uma certa

potência criativa, mas que se baseia em passos e cerimoniais básicos como o beija-flor (dança

circular da porta-bandeira e cortejo do mestre-sala no entorno) e a apresentação do pavilhão

para o público, por exemplo. A fala de Anderson atestando sua capacidade elege justamente

essa ideia central de domínio sobre a técnica como argumento para a ocupação de seu cargo.

Acredito que essa valorização do domínio sobre a técnica pode estar relacionado ao

processo de profissionalização dos casais, mesmo que esse processo não pressuponha

necessariamente uma relação salarial com as agremiações, pelo fato de que o desempenho no

desfile e a busca pelos títulos de campeã do carnaval possuem hoje uma importância diversa,

inclusive por conta de investimento financeiro. Aliado a isso, todo o contexto político

brasileiro que tem fortalecido a agenda dos direitos individuais e a denúncia da discriminação

social e da lgbtfobia pode ter contribuído para hoje um caso como o de Anderson seja

possível - ao mesmo tempo que impossíveis, já que exceção.

Pude conversar com uma porta-bandeira de uma escola de destaque e um mestre-sala

consagrado sobre a polêmica. Nas duas oportunidades, as posições se mostraram contrárias

ao exercício do cargo por Anderson. A justificativa do mestre-sala foi de que a “tradição”

estaria em risco devido a essa subversão. Para ele, a opção sexual do dançarino ou da

dançarina sempre foi livre, mas que o corpo masculino e o corpo feminino devem ser o que

organiza a ocupação desses cargos. Ele até lembra que teve práticas homossexuais, que

existem diversos mestres-salas gays, mas que a feminilidade não deve ser transposta para a

dança, que deve ter características bastante distintas de um e de outro, ideia que é defendida

nos cursos de formação e aprimoramento. Em apostilas que pude ter acesso, trechos falam

explicitamente sobre a questão, esclarecendo que há o respeito pela opção sexual dos alunos,

mas que ela não deve transparecer em suas danças.

A porta-bandeira, por sua vez, argumentou que um homem ocupando um lugar que

deveria ser de uma mulher, na verdade, é uma forma de ocupar um lugar de empoderamento

feminino. Lembrando justamente da ideia de que no período dos ranchos carnavalescos, eram

os homens quem carregavam os símbolos máximos das entidades e que, com o tempo, esse

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cargo passa a ser ocupado por mulheres, defende que se trata de uma posição conquistada

pela participação feminina, sempre em posição subalterna.

Uma análise interseccional poderia dar pistas sobre como analisar essa controvérsia,

algo que foge da possibilidade atual desse trabalho, inclusive por poder também apontar

formas de se refletir sobre a questão da raça, já que muitos desses dançarinos são negros e o

próprio carnaval é uma prática que historicamente é presente nas populações negras, presença

que me parece ser mais diversificada nas últimas décadas, período em que se aumenta a base

social de grupos ligados ou frequentadores de escolas de samba. Cabe aqui, no entanto,

apontar que o caso de Anderson Morango contribui para refletir sobre como carnaval é um

campo de disputa política e moral por conta de sua possibilidade de criar uma suspensão em

parte temporária do cotidiano por meio da criação de narrativas sobre o mundo dessas escolas

de samba e de seus integrantes. Narrativas essas que podem questionar concepções, regras e

criar, mesmo que durante uma hora, uma outra realidade, em trajes de gala e rebelde, nobre e

subversiva, ao mesmo tempo. Em entrevista a um portal jornalístico , Anderson, vestido de 2

porta-bandeira e como uma fisionomia notadamente feliz, declarou sorrindo: Eu espero esse

povo gritando já que é algo novo e diferente. Eu acho que tem a ver com a cara do povo. Já é

uma vitória, ‘eu estou aqui né’. Como eu falo para as pessoas, eu vou passar [no

sambódromo]. Gostando ou não, vou passar”!

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