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Nobres subversivos: a performance de mestres-salas e porta-bandeiras e possíveis debates
sobre gênero, sexualidade e raça 1
Felipe Gabriel de Castro Freire Oliveira (PPGAS-USP/São Paulo)
Palavras-chave: Performance, marcadores sociais da diferença, escolas de samba
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo refletir sobre um caso que acredito ser bom
para pensar questões sobre performance e gênero, discussão que foi recentemente iniciada
dentro de uma pesquisa de mestrado mais ampla sobre a transmissão de conhecimento entre
casais de mestre-sala e porta-bandeira no carnaval das escolas de samba paulistanas. Como
será apresentado mais detalhadamente abaixo, as escolas são agremiações que realizam um
concurso de desfile durante o carnaval e, para tanto, se organizam ao longo de todo um ano
por meio de um calendário de eventos e preparações de seus diversos componentes. Um deles
é o casal de mestre-sala e porta-bandeira, que desenvolve uma dança específica ostentando e
apresentando o pavilhão (uma bandeira com o brasão e as cores da escola de samba). Esses
movimentos são baseados na ideia de que a porta-bandeira, representada de forma
feminilizada e portando esse objeto, é cortejada e protegida pelo mestre-sala, que deve ser
masculinizado. Dessa forma, o casal se baseia também em uma concepção de gênero,
desempenhada na expressão corporal por meio das técnicas da dança.
Para pensar sobre isso e organizar melhor esse exercício de análise, escolhi trabalhar
com o caso de Anderson Morango, primeiro homem a ser empossado como porta-bandeira no
Brasil, ao lado do mestre-sala Wladimir Bulhões, na Acadêmicos do Sossego, escola de
samba integrante da Série A do carnaval carioca. Escolhi tal caso apesar de trabalhar no
mestrado com foco maior sobre os casais paulistanos por ser justamente bom para pensar as
possibilidades criativas e, em certo sentido, politicamente subversivas do carnaval das escolas
de samba. O carnaval, nesse sentido, por conta de sua dimensão de liminaridade, pode ser um
campo de criação de narrativas sobre o mundo social e também de disputa política.
1 Trabalho apresentado na 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 09 e 12 de dezembro de 2018, Brasília/DF.
Imagem 01: Wladimir Bulhões e Anderson Morango, terceiro casal da Acadêmicos do Sossego, em entrevista a Matheus Rodrigues, no Sambódromo Marquês de Sapucaí. Foto: Jorge Soares/G1. Disponível em https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/carnaval/2019/noticia/2018/09/11/academicos-do-sossego-tera-homem-como-porta-bandeira-no-carnaval-2019-veja-video.ghtml . Acesso em 05/11/2018, às 15h23.
Devido à novidade desse objeto de pesquisa no desenvolvimento de minha
dissertação, foi possível apenas realizar uma articulação introdutória sobre os temas de
gênero, marcadores sociais e performance, que terão avanço em um futuro próximo. O
contato com Anderson, inclusive, só foi possível via ligação telefônica, pelo qual
conversamos sobre sua trajetória e opiniões a respeito das questões que levantei previamente.
Parte do diálogo será apresentado aqui. Aproveito para agradecer ao antropólogo, doutorando
na Universidade Federal do Rio de Janeiro e carnavalesco Vinícius Natal pela grande
contribuição de nos ter colocado em contato. Para problematizar o contexto no qual se insere
o caso de Anderson Morango, explorarei parte do acúmulo sobre os casais de São Paulo,
descrevendo o cargo de mestre-sala e porta-bandeira e as formas de aprendizagem e
aprimoramento da dança, âmbito fundamental para entender como uma certa ideia sobre
gênero e performance alimenta a atuação desses sujeitos no universo do carnaval.
Nobre Figura
A tríplice formada por mestre-sala, porta-bandeira e pavilhão é um elemento
fundamental para os desfiles das escolas de samba. Tais desfiles são organizados a partir de
“enredos”, expresso em suas diversas composições (samba-enredo, fantasia, alegoria, bateria,
comissão de frente, etc), que são julgadas por meio de notas e somadas para se eleger a escola
campeã. O casal é um desses quesitos e é o único em que se julga a atuação de apenas duas
pessoas – o restante são atuações coletivas ou análises estéticas.
Por conta das disputas se limitarem a um mesmo modelo de cortejo carnavalesco, os
desfiles são sempre pautados pelo seu poder de criação e de inovação. Dessa forma, o casal
enfrenta o desafio de desempenhar uma apresentação pela qual atinja as expectativas do que
se espera ser a dança de mestre-sala e porta-bandeira, executada com qualidade, e que
proponha novos passos ou adaptações ao tema do desfile, mas sem ultrajar essa “tradição”.
Para a antropóloga Renata Gonçalves,
A investigação sobre esse elemento tradicional no espetáculo das escolas, ao enfatizar
princípios que organizam e transformam a experiência de sua atuação diante de uma
plateia, pretende oferecer uma compreensão diferenciada daquela que a caracteriza
como resistência cultural, dando lugar a tradição a partir de uma antropologia da
experiência (Gonçalves, 2008: p. 225).
A autora demonstra que será a própria atuação dos indivíduos como um casal, nos
mais diversos espaços, que irá colocá-los em um processo de reflexão sobre sua arte: serão o
conhecimento até então constituído pelos casais já atuantes e as expectativas relacionadas a
eles que nortearão a execução de movimentos. A autora defende que é a própria performance
do mestre-sala ou da porta-bandeira que articula imagens do passado ao presente vivo, que
torna possível a descoberta e a construção do significado dessa “arte”.
A performance compreende a possibilidade renovada de significar e reinterpretar a
passagem do tempo. Ao construir uma nova continuidade com a memória do passado,
comunica-se a “metáfora da tradição”. Trata-se de uma “performance reflexiva”, um “lugar
crítico, belo e surpreendente”, como defende Gonçalves (2008), de um “elemento de
permanência no dinâmico espetáculo da mudança”. A dança é, assim, um “modo inventivo de
lidar com planos de significação da ideia de tradição”. É esse dilema que problematiza o
estudo de Gonçalves e abre caminho para o presente trabalho. Investigar como esses saberes
são assimilados em diferentes cenários - os cursos de formação e aprimoramento e no
cotidiano de uma escola de samba - pode indicar as estratégias empregadas pelos sujeitos que
lidam constantemente com essa controvérsia.
Em seu estudo, Sá Gonçalves analisou a Escola de Mestres-Salas, Porta-Bandeiras e
Porta-Estandartes Manoel Dionísio, na época comandada por Mestre Dionísio, no Rio de
Janeiro, e que inspirou a criação desses cursos em São Paulo. Mestre Dionísio, além de
referência do conhecimento da dança em si, exerce uma função de “iniciador” de dançarinos,
oferecendo oportunidades de inserção no universo do Carnaval, e de “mediador”,
comunicando diferentes “mundos sociais” (Gonçalves, 2008).
A Escola, fundada em 7 de julho de 1990, tornou-se uma vitrine de mestres-salas e
porta-bandeiras para as escolas de samba: muitos casais adultos e mirins que atuam em
escolas cariocas foram escolhidos durante suas aulas. Ou seja, o aluno ou a aluna tem na
Escola de Mestre Dionísio a porta de entrada para a rede de sociabilidade que um mestre-sala
ou uma porta-bandeira deve se inserir. Muitos alunos no anos iniciais do curso tinham origem
sociais desfavorecidas, sendo que o curso representava, além do auxílio a alimentação e
transporte, uma possibilidade de atividade remunerada - há no Rio de Janeiro diversos casais
que são contratados por salários e premiações.
Assim, são nas situações de interação, seja durante as aulas ou nas apresentações de
uma escola de samba, seja em eventos particulares ou em visitas a sedes de outras
agremiações, que o bailado enamorado e o porte elegante e diplomático serão construídos, em
um processo de experimentação inventiva que nunca cessa (Gonçalves, 2008).
Os contextos históricos carioca e paulistano diferem quanto ao início da atuação de
casais em escolas de samba. Em linhas gerais, a oficialização dos concursos entre as escolas
paulistanas com o apoio da prefeitura municipal implicou na implantação do modelo do Rio
de Janeiro, fazendo declinar certos elementos dos cortejos existentes.
Durante os dias de Momo, era mais presente outro tipo de agrupamento carnavalesco
nas ruas da capital paulista, os chamados “cordões”. Surgidos a partir das década de 1910, os
cordões eram formados geralmente pelo “batuque” (agrupamento musical que apresentava
instrumentos de percussão, de cordas e de sopro, correspondentes em certos aspectos à
“bateria” carioca), os balizas, porta-estandarte, corte (formado por “damas antigas”, rainha,
rei, príncipe e princesa) e pelas pastoras (Moraes, 1978).
Os diversos cordões surgidos, como o Cordão da Barra Funda e o Cordão Vae-Vae
(precursores das escolas de samba Camisa Verde e Branco e Vai Vai), por não terem uma
federação ou instituição organizativa que defendesse um modelo de cortejo, podiam
apresentar elementos e número de participantes diversificados (Simson, 2007). Os concursos
existentes até a década de 1960 eram organizados pela iniciativa privada - rádios, jornais,
comércios - e possuíam critérios também diversos e não de âmbito municipal (Moraes, 1978).
Os desfiles podiam apresentar um tema que inspirava suas fantasias, como “gregos”,
“romanos”, por exemplo, mas não chegavam a ser como os enredos do carnaval atual -
também uma criação dos cariocas - e não determinava o conteúdo das músicas entoadas pelos
participantes, que podiam ser de temáticas variadas, geralmente de exaltação ao próprio
cordão.
Contudo, alguns elementos eram constantes, dentre eles, os “balizas” e as
“porta-estandartes”, de forma geral ocupados por homens e mulheres, respectivamente. O
estandarte era uma espécie de bandeira que representava o grupo carnavalesco, uma espécie
de totem. Além dos concursos organizados, havia a prática de captura ou destruição de
estandartes quando um cordão se encontrava com outro e eram os “balizas” - armados
justamente com esses instrumentos, com os quais realizava também acrobacias - os
responsáveis pela proteção desse símbolo maior da agremiação. Em alguns cordões, havia a
presença dos batedores ou bastedores e mestres-de-cerimônias, que também ficavam no
entorno da porta-estandarte: os primeiros portavam uma batuta para defesa contra possíveis
atacantes e, os segundos, ocupavam-se em abrir espaço para o cordão passar e cuidava de sua
organização. Se um folião de fora conseguisse ultrapassar essa barreira e retalhar o pavilhão
concorrente, declarava o seu grupo como vencedor. Ao longo do tempo, essas disputas mais
violentas foram declinando em favor dos concursos lúdicos.
Desde então, foi-se constatado um aumento do público participante e da aceitação dos
cordões pela sociedade mais ampla (Simson, 2007), o que fez com que as agremiações
paulistanas iniciassem negociação com o prefeito Faria Lima em 1967 a fim de conquistarem
apoio financeiro para a produção dos desfiles. As escolas cariocas, nos anos 1930, já haviam
conseguido adesão do poder público, fator que pode ter fortalecido a proposta em São Paulo.
Como não havia nenhum tipo de instituição até então que organizava os grupos carnavalescos
e critérios para seus desfiles, foi-se proposto, para tanto, a implantação do modelo carioca das
escolas de samba para o concurso municipal. Dessa maneira, os cordões e as escolas de
samba já existentes na capital paulista tiveram que se adaptar a certos elementos cariocas
como, por exemplo, a obrigatoriedade do enredo como tema das apresentações, a ala das
baianas, a exclusão de instrumentos de sopro do grupo percussivo - se aproximando mais do
modelo das “baterias” - e o casal de mestre-sala e porta-bandeira. Foram criados, então,
concursos para as escolas de samba, que correspondiam a maior tendência, e para os ainda
resistentes cordões.
Esse período concentrou o maior número de fundação de escolas de samba na capital,
segundo o Censo Samba Paulista 2012. Das 78 agremiações que desfilaram em 2012, 21
(27%) foram fundadas na década de 1970, 13 (17%) na década de 1980 e 13 (17%) nos anos
1990. O apoio da municipalidade, de certa forma, concomitante ao aumento do público e da
base social das escolas de samba.
Dessa maneira, o carnaval em São Paulo chamava cada vez mais atenção pelo sua
possibilidade de exploração turística e de entretenimento. Já na década de 1980, os desfiles
passam a ser transmitidos ao vivo por rádio e TV. Até que, em 1990, a prefeita Luiza
Erundina decide construir uma localidade especial para abrigar o desfiles das escolas. Em
1991, era inaugurado o Sambódromo do Anhembi. Para Belo (2009), o Sambódromo fez com
que os desfiles se tornassem mais grandiosos e luxuosos, em um processo crescente de
espetacularização.
Para a produção de desfiles cada vez maiores, foi se intensificando um processo de
profissionalização ligado às composições das escolas de samba. Como mostra Moraes (1978),
a partir já da aprovação da subvenção municipal, muitos “trabalhos voluntários” passaram a
minguar e a ser exigido contratação para prestação de serviços. O nível dos desfiles aumentou
demasiadamente com a crescente exploração midiática, do aumento da gestão com visão
empresarial e crescimento das receitas das escolas, âmbitos das agremiações que vão se
intensificando mutuamente e consolidando uma economia do carnaval.
Com suas transformações e adaptações, o carnaval paulistano vai constituindo uma
nova fase de organização das escolas de samba e do relacionamento de sua base social com
seu cotidiano, no processo de preparação do desfile ou no consumo de seus eventos. E será
nesse contexto, em 1995, 4 anos depois da inauguração do Sambódromo, que será criada a
Associação dos Mestres-Salas, Porta-Bandeiras e Estandartes do Estado de São Paulo
(AMESPBEESP). Segundo Mestre Ednei Mariano e Mestre Gabi, seus idealizadores, estava
sendo muito comum encontrar casais que apresentassem uma dança “deturpada”: apesar da
dança ter base no minueto europeu e em movimentos da “ginga da capoeira”, as
apresentações estavam tendo muitos elementos do ballet, problema principal que deveria ser
corrigido pela forma “tradicional de bailar”. Mestre Ednei explica que o que intensificou esse
problema foi a crescente participação de bailarinos profissionais, alheios aos conhecimentos
da origem da dança, como jurados de desfiles: afirma que quem se aproximasse mais dos
passos do ballet era melhor avaliado, enquanto “quem jogava de perna mesmo perdia nota”.
Aprendendo a dançar
Mais do que apenas um curso, a AMESPBEESP é um órgão que mobiliza grande
parte do setor de casais e pessoas ligadas a eles na cidade e em algumas cidades do interior do
Estado. Suas atividades anuais sugerem todo um processo de preparação do corpo dos
dançantes, de construção de uma rede de relações entre pessoas e agremiações, de
estruturação das condições materiais e humanas para os desfiles, de entendimento e
julgamento dos critérios de avaliação da dança na avenida, de formas de dom como dádiva
(com relação aos instrutores que fazem parte da Associação como voluntários) e de dom
como talento (como uma capacidade de alguém que demonstre ser extraordinária) e de
premiação para casais que conquistaram bons desempenhos. Nesse sentido, acompanhar essas
atividades ao longo dos anos de 2016, 2017 e parte de 2018 proporcionou refletir, a partir de
uma perspectiva, como as formas de conhecimento e prática sobre o corpo dos casais estão
sendo articuladas entre as escolas de samba da capital paulista e suas instituições correlatas,
de como são corpos em constante capacitação física e ideológica para o grande desafio do
carnaval.
Com mostra seu site na internet, a Associação foi fundada norteada pelo objetivo de
defender a “forma tradicional” da dança dos casais e de ensiná-la. Seu núcleo, então, seria a
criação de um curso de formação a ser desenvolvido supra-escolas de samba. Além disso,
teria como objetivo a intermediação entre os próprios casais e as diretorias das agremiações e
as instituições carnavalescas como a Liga e a União das Escolas de Samba Paulistanas
(UESP), esta responsável pelos quatro grupos inferiores, com o intuito de informá-las cada
vez mais dos princípios da dança. Nesse sentido, a AMESPBEESP interveria nesses vários
âmbitos para “valorizar o quesito”, como aponta Mestre Ednei, evitando a consideração
apenas da “plástica”, segundo defende, mas também e principalmente se o casal dança
corretamente e transmite o porte fino com uma desenvoltura ideal. Pela possibilidade de
inscrição a qualquer pessoa, o curso proporciona, então, um contato privilegiado com casais e
sambistas de grande experiência no carnaval e acúmulo sobre essa arte.
O curso de formação e aprimoramento foi inspirado no modelo de aula do Projeto
Manoel Dionísio, do Rio, pioneiro nessa proposta de ensino. Mestre Gabi possuía
proximidade com Dionísio e conseguiu apoio dele para assessorá-los nessa formatação.
Mesmo baseando-se em dinâmicas de aulas do curso carioca, segundo Mestre Gabi, as
“especificidades paulistanas” foram levadas em consideração na concepção das lições. Uma
diferença prática é a forma de julgamento na avenida: no Rio de Janeiro, o casal é apenas
avaliado pelo jurado em sua apresentação para a cabine, local onde este fica, podendo se
deslocar caminhando levemente nos intervalos de deslocamento; em São Paulo, o júri deve
considerar a apresentação do par dentro de todo o seu campo de visão, o que faz com que o
casal tenha que evoluir (bailar e apresentar o pavilhão) durante todo o desfile.
As aulas são divididas em salas de níveis de aprendizagem para que se tivesse bom
aproveitamento: infantil, iniciante, intermediário e avançado ou salas “kids, 1, 2 e 3”. O
primeiro nível é para casais-mirins, iniciantes ou com certa experiência de avenida; o
iniciante é voltado para os casais que ainda são totalmente leigos, mesmo que já tenham tido
experiência de desfile por conta de alguma oportunidade, e para pessoas interessadas; o
intermediário é voltado para casais ou pessoas que procuram aperfeiçoamento e
desenvolvimento de seu estilo próprio; e o avançado para casais ou pessoas que querem ter
um treinamento mais intensivo e continuidade no desenvolvimento do estilo próprio.
Todos os integrantes da AMESPBEESP, seja instrutor, seja membro da diretoria, são
voluntários. Segundo Ednei, todos já foram alunos do curso e já conquistaram notas máximas
em carnavais passados, têm “a mesma filosofia que o curso e, acima de tudo, tem respeito”.
Os convites são realizados ano a ano, pois cada instrutor tem sua conduta avaliada pelos
diretores. Pode-se afirmar - e Mestre Ednei, em depoimento, defende o mesmo - que, apesar
de ser um trabalho não remunerado, os casais ou pessoas convidadas usufruem de certa
distinção nesse universo, internamente e externamente às agremiações nas quais atuam, como
uma forma de certificação de sua experiência como dançante. Pode-se fazer a leitura que se
trata também de um sistema de dádiva (Mauss, 2003) do carnaval, em que se recebe um
conhecimento advindo dos mais experientes e, no momento em que se atinja uma maturidade
na dança e um acúmulo reconhecido em escolas e desfiles, se retribui, ensinando e
introduzindo novos casais. A retomada das aulas ocorre, de forma geral, no mês de abril e as
inscrições prévias são realizadas via e-mail ou durante as primeiras aulas. Em 2017, foi-se
cobrado um taxa única de R$70 para custos de manutenção administrativa e logística do
projeto e para a camiseta, uniforme obrigatório. A Associação não possui sede própria: seus
documentos são guardados nas residências dos membros diretores e o curso é oferecido nas
quadras de escolas de samba que o acolhem. Atualmente, o curso acontece na quadra da
Mocidade Alegre.
As aulas são organizadas em três momentos, teoria, aquecimento e atividades das
salas, consecutivamente. Nem todas as aulas tinham parte teórica, que era realizada antes de
qualquer atividade prática. Eram todos dispostos em cadeira em frente ao porta-pavilhão,
onde a instrutora Daniela Renzo profere as palestras. Seu conteúdo versava sobre a história da
dança, seus aspectos característicos, regras dos desfiles, rituais das escolas de samba e
conduta moral dos casais.
Na aula do dia 05 de maio de 2018, retomou o assunto das aulas anteriores e avançou
na discussão sobre “palavras mágicas” que todos devem estar pensando na hora de treinar,
ensaiar e executar a dança. A primeira aula tratou sobre corpo e movimento. Ela não
discorreu muito sobre esses termos, o que foi uma pena mas serve como anotação para uma
conversa ou entrevista com Daniela futuramente. Falou apenas que se tratava da importância
de ver os movimentos corporais. Ver e entender o movimento do corpo poderia ser algo
essencial para o aprendizado da dança, ligado à prática do aprender a aprender (aspecto já foi
indicado por Gonçalves, 2008) e ao uso da observação como modo de aprendizado e
transmissão de conhecimentos.
Em seguida, falou sobre o tema da segunda aula, que abordou quatro palavras:
“gesto”, “postura”, “expressão” (facial e corporal, transparecer uma mensagem para as
pessoas) e “emoção” (a emoção que se transmite, “sentir o samba”). Pelo o que pude
entender, era uma forma de descrição da dança e uma forma de reflexão sobre essa
performance que orientava seu desenvolvimento. A ideia de “gesto” contempla os
movimentos corporais que indicam certa intenção, fundamentais para a comunicação corporal
entre os bailarinos. A “postura” é a necessidade de executar um comportamento altivo,
elegante, inspirado em parte no balé clássico. A “expressão”, a comunicação corporal que o
casal deve exprimir para o público, mostrando o valor do pavilhão que ostenta. E, por fim, a
“emoção”, mostrando-se como é afetado emocionalmente pela apresentação da escola que
integra.
Naquela data, então, explorou mais quatro palavras: “leveza”, “ritmo”, “finalização” e
“sincronia”. Leveza é a execução de uma dança “limpa”, descontraída, de movimentos leves,
algo que não é ligado ao peso do dançarino, mas ao domínio físico e à forma do movimento.
No caso dos mestres, não se tratam de gestos femininos, visto que a performance propõe uma
dança entre um casal formado por uma “homem masculinizado” e uma mulher
“feminilizada”, independente de sua orientação sexual e sua identidade de gênero. A questão
entre corpo, gênero e sexualidade, portanto, é fundamental para entender produção e
construção de corpos capacitados, o que será abaixo melhor discutido. A sexta ideia é
“ritmo”: execução dos movimentos na cadência do samba, tendo como referência o
samba-enredo, que tem seu compasso marcado pelo “surdo”, o instrumento de percussão
grave da bateria. A sétima palavra é “finalização”, ou seja, a clareza dos movimentos e
plasticidade de seus inícios e fins, como o encontro de mãos entre os dançarinos, o término de
um giro ou de um jogo de perna, por exemplo. E, por último, “sincronia”, que é a qualidade
dos movimentos realizados entre mestre e porta-bandeira no mesmo tempo por meio da
comunicação corporal ou de coreografias ensaiadas, algo que também está ligado a ideia de
que um não pode ter uma performance destoante do outro, mas com igualdade na execução
de cada passo.
Cada ideia foi explicada por Daniela e demonstrada por outros casais que são
instrutores no curso. Trata-se de uma estratégia em que se observa o movimento, entende sua
lógica e, posteriormente, se executa.
Depois da teoria, os alunos partiam para a prática. Em 2016, o aquecimento ocorria
com todos os alunos juntos, dançavam “zumba” com trajes esportivos, comandados pela
professora de dança Bianca Maria, ligada à Mocidade Alegre. Em 2017, foi conduzido por
um mestre-sala do qual não pude saber o nome, mesmo depois de incessante pesquisa. Logo
após, os alunos vestiam as vestes de mestres-salas, calça e sapato social e camiseta da
Associação, portando seu instrumento de trabalho (leque, lenço, bastão), e, as alunas, as de
porta-bandeiras, sandália de salto, saia rodada abaixo do joelho, calça ou bermuda por baixo
(o recatamento é um aspecto muito valorizado pelos instrutores por fazer parte da postura
moral do casal) e camiseta do curso, além de seu talabarte (cinto que possui um suporte
acoplado para mastro), mastro e pavilhão (para as que já possuem agremiação).
Em 2018, observei uma mudança nesse início. A aula teórica era realizada
primeiramente e, logo depois, os alunos já formavam suas salas e, nelas, praticavam o
aquecimento. Trata-se de exercícios físicos, pelo o que pude observar, que não apenas
alongava e aquecia o corpo para os treinamentos propostas pela aula prática, mas também
tinha a intenção de fortalecer muscular e aerobicamente os alunos e alunas. Exercícios de
corrida, de agilidade com os pés com desvios marcados no chão, por exemplo, eram
utilizados. Acredito que isso está relacionado à ideia de que, para realizar a dança com o
máximo de domínio possível sobre seus técnicas, o dançarino deve também ter uma condição
física que lhe possibilite executar os passos de maneira eficaz e durante um certo tempo,
condições que lhe serão necessárias durante as apresentações e ensaios de quadra e também
durante o desfile, momento este que pode exigir muito psicologicamente e influenciar no
vigor físico. Casais oficiais, atualmente, fazem comumente preparações físicas em academias
de musculação, praticam esportes de luta ou fazem algum tipo de fortalecimento muscular e
de condicionamento da respiração para enfrentar a rotina da dança.
Em todas as salas são ensinadas ou reforçadas as regras de certos ritos da dança,
como, por exemplo, a roda de pavilhões (que une diversos casais em uma dança coletiva de
ostentação e união entre os pavilhões), de apresentação da bandeira para a bateria e para o
palco musical em eventos dentro de quadras, em velórios (no qual o pavilhão é levado à
cerimônia e deixado em meia-altura em sinal de respeito a uma figura importante para as
escolas de samba), etc.
Ao longo de todo curso, o aluno e a aluna são avaliados segundo critérios
estabelecidos pelos instrutores de cada turma, avaliação essa entregue no final do ano letivo,
logo antes da formatura. Contudo, o objetivo do curso não é uniformizar a dança de todos,
reproduzindo o modelo dos instrutores ou de qualquer outro mestre-sala, mas sim orientar os
casais de forma a construírem a sua dança de acordo com os princípios “tradicionais”. Como
defende Mestre Gabi, “estilo cada um tem o seu!”.
Em conversas informais, pude constatar que, geralmente, as pessoas ficam sabendo da
existência do curso em espaços ligados às escolas de sambas por meio de pessoas que
também são frequentadoras. Nos casos de casais já atuantes, cursam as aulas por iniciativa
própria e também por indicação de diretores das entidades em que dançam. Na turma de
2015, formaram cerca de 122 alunos, sendo 40% de crianças. As origens eram as mais
diversas: São Paulo (capital), Batatais, Sorocaba, São Bernardo do Campo, Santo André,
Diadema, Santos, Guarujá, Itaquaquecetuba e Brasília.
Durante a entrega dos certificados, ao fim do curso, Mestre Ednei realizou um
discurso que mostra como a formatura, para os casais, não devia representar exatamente a
certificação de que estavam prontos. “A gente sempre fala que vocês estão se formando, mas
vocês são sambista e sambista nunca tem diploma final. O sambista tá sempre buscando, tá
sempre aprendendo. Então, isso realmente, hoje, realmente, é um encerramento de um ciclo,
né? De mais um ciclo na vida de vocês, de muitos [ciclos] de vocês”, afirmou. Acredito que
essa declaração de Ednei mostra com profundidade a especificidade do corpo de um
mestre-sala e de uma porta-bandeira. Trata-se de um corpo que está sempre em constante
aperfeiçoamento, que o domínio da técnica nunca é completo, mas sempre um objetivo que
proporciona as performances durante o ciclo do carnaval e no desfile. São em certos
momentos de finalização de ciclos (que podem ser entendidos como ciclos corporais) que os
dançarinos poderão receber um reconhecimento de suas performances. Seja durante a
formatura, seja durante a apuração das notas após um desfile. Em um plano temporal, a
inventividade da tradição, como apontada por Renata Gonçalves (2008), sempre levará o
casal a constantemente buscar uma nova performance, inspirados também pelo ciclo
carnavalesco, que propõe, ano a ano, um enredo a ser desenvolvido. Os fins de ciclos, como a
formatura ou a conquista das notas máximas, representarão a aprovação do júri e, em certa
medida, do público sobre a capacidade de performatizar essa dança. Contudo, com o início do
novo tempo, o corpo volta a enfrentar a condição básica como um corpo em devir. O
reconhecimento da posição de alguém entre as escolas de samba, dessa maneira, passa não
apenas por certificados conquistados por cursos, que têm até menos centralidade para essas
pessoas, mas pela experiência e comprometimento com os ciclos carnavalescos.
De forma especial, o ensino prático ainda guarda o objetivo central, segundo seus
idealizadores, da forma de transmissão do conhecimento sobre arte que existia antes do
advento dos cursos: a tentativa de desenvolvimento do estilo pessoal do dançante, de acordo
com os princípios fundantes da “arte”. Não se trata de uma uniformização da dança de todos
os casais, mas de uma orientação. Para Mestre Ednei, deve-se “buscar a nossa identidade,
mas não podemos perder o fio da tradição, o porquê da dança do mestre-sala e da
porta-bandeira”. Dessa maneira, para Gonçalves (2008), trata-se de um modo inventivo
norteado por esses espaços de reflexão e construção da ideia da “arte tradicional”, alcançada
por uma pedagogia dos movimentos e por uma pedagogia moral de como exercer essas
funções.
Além disso, Mestre Gabi, em entrevista, afirma que, apesar de não ter sido o objetivo
inicial, os cursos facilitaram o caminho de se tornar um mestre-sala ou uma porta-bandeira de
uma escola de samba. Ainda hoje, é possível haver formas de escolha de pessoas de dentro
das escolas, por envolvimento em uma comunidade e ocorrência de oportunidades em que se
demonstre habilidades extraordinárias, interessantes para pensar o dom não como dádiva,
mas como talento, aptidão fora do comum, que podem ser identificados tanto no cotidiano
das escolas, como no das escolas de bailado. Há também as chamadas “audições”, espécie de
concursos abertos e divulgados publicamente pelos quais as escolas realizam uma seleção
entre casais interessados em data, hora e local marcado (geralmente suas quadras). Mas os
cursos, como também apontado por Gonçalves (2008) sobre o caso carioca, tornaram-se
vitrines para diretorias, que visitam as aulas em busca de mestres-salas ou porta-bandeiras.
Diferentemente do que se pode supor, a AMESPBEESP não cria uma categoria
profissional, não possuem esse intuito classista. Mas pode ser considerada uma instituição
que articula pessoas ligadas a essa figura central dos desfiles das escolas de samba. Fazendo a
opção pela busca da “arte tradicional”, a entidade trabalha no sentido de proporcionar
melhores condições de atuação e desenvoltura na dança do casal nobre, símbolo do respeito
ao valor do samba e do carnaval.
Vestir-se de porta-bandeira
É preciso esclarecer que, devido aos limites metodológicos da pesquisa sobre as
questões específicas aqui levantadas, optei por fazer uma aproximação entre os carnavais de
escolas de São Paulo e Rio de Janeiro. Como apontado pela historiadora Lígia Conti (2015),
sambistas - e seus saberes e práticas - desde o final do século XIX e início do XX - estiveram
em relação de troca e soma, circulando entre esses estados. A oficialização dos desfiles pela
prefeitura de São Paulo e a consequente adoção de moldes cariocas no julgamento paulistano
é exemplo disso. A construção do Sambódromo do Anhembi foi também em reflexo da
passarela do Marquês de Sapucaí. Há uma circulação grande de ritmistas, mestres de bateria,
passistas, rainhas de bateria, intérpretes, etc, que circulam entre os dois carnavais.
Recentemente, tivemos o primeiro mestre-sala de São Paulo a ocupar o cargo de oficial em
uma escola carioca de destaque: Marlon Lamar, ex-mestre da Império de Casa Verde, foi
convidado por Lucinha Nobre, porta-bandeira de grande destaque, a dançar na Estácio de Sá
(2017) e, posteriormente, na Portela (2018 e 2019). Dessa forma, mesmo sabendo da
necessidade de aprofundar no estudo das relações entre casais e demais integrantes e fazer as
devidas distinções, assumo neste trabalho uma proximidade entre esses dois âmbitos do
carnaval para refletir sobre o caso de Anderson Morango.
A Acadêmicos do Sossego é uma escola de samba de Niterói que participa atualmente
do carnaval da capital fluminense. Em 2019, o carnavalesco Leandro Valente assinará o
enredo “Não se meta com a minha fé, acredito em quem quiser”, abordando a tolerância
religiosa. Não por acaso é que acontece o convite a Anderson para ocupar, ao lado de
Wladimir Bulhões, o cargo de terceira porta-bandeira - como uma forma de também abordar
o tema do gênero, do direito à identidade, da agenda da diversidade. Ambos dançarinos não
serão avaliados pelos jurados (o casal oficial Marcinho Souza e Thayanne Loureiro defenderá
o quesito na avenida), mas foram responsáveis por colocar a Sossego na boca do povo por
conta da polêmica. Anderson, que é homem cis, se vestirá como porta-bandeira para dançar
com seu mestre Wladimir no próximo carnaval.
Para ele, o exercício desse cargo é uma forma de mostrar que o carnaval “é para todos
e [que] temos que ser livres, é a festa do povo” (Anderson Morango. Depoimento em
03/11/2018) e uma maneira de defender a “tradição da dança”, já que antigamente muitos
homens eram porta-estandartes, figura antecedente ao casal que portava sozinho o estandarte,
também antecedente dos pavilhões. Defende que para ser porta-bandeira é preciso
essencialmente saber dançar, justificando que também é importante reconhecer o artista que
está em performance, que, mesmo que não seja uma mulher, deve haver respeito. Afirma que
a “dança é o corpo em movimento então deixe meu corpo se movimentar e vamos
movimentar as nossas vidas. Acho que no samba não pode ter preconceito de forma alguma”
(Anderson Morango. Depoimento em 03/11/2018).
A postura de Anderson é interessante para pensar, primeiramente, na ideia de “ser
porta-bandeira” em contraposição à ideia de “dançar (ou estar) como porta-bandeira”. Sua
atuação vai de encontro com a defesa que muitas pessoas desse universo fazem da
necessidade de ser mestre-sala ou porta-bandeira a todo momento, 24 horas por dia, por
acreditarem ser um posto público de representação do valor de sua agremiação. Ou seja, a
forma pela qual se vive deve estar indiferenciada do momento de atuação como dançarino,
sendo a própria dança apenas mais um elemento da ocupação do cargo. Pelo o que pude
conversar com Anderson, não é que ele não acredite que ele seja ininterruptamente
porta-bandeira da Sossego, mas percebo haver uma valorização de sua condição como artista,
como dançarino, que executa uma técnica específica com habilidade e capacidade.
A dança de mestre-sala e porta-bandeira leva a ser refletir sobre como a arte pode ser
expressão sem uma técnica a ser executada de maneira ideal e a dança como um conjunto de
regras que deve seguir certos protocolos do fazer certos passos. Não se trata de uma arte
enquanto expressão livre, mas uma expressão em dupla (ou mesmo em trio, levando-se em
consideração a agência do pavilhão) seguindo certos ditames que até possuem uma certa
potência criativa, mas que se baseia em passos e cerimoniais básicos como o beija-flor (dança
circular da porta-bandeira e cortejo do mestre-sala no entorno) e a apresentação do pavilhão
para o público, por exemplo. A fala de Anderson atestando sua capacidade elege justamente
essa ideia central de domínio sobre a técnica como argumento para a ocupação de seu cargo.
Acredito que essa valorização do domínio sobre a técnica pode estar relacionado ao
processo de profissionalização dos casais, mesmo que esse processo não pressuponha
necessariamente uma relação salarial com as agremiações, pelo fato de que o desempenho no
desfile e a busca pelos títulos de campeã do carnaval possuem hoje uma importância diversa,
inclusive por conta de investimento financeiro. Aliado a isso, todo o contexto político
brasileiro que tem fortalecido a agenda dos direitos individuais e a denúncia da discriminação
social e da lgbtfobia pode ter contribuído para hoje um caso como o de Anderson seja
possível - ao mesmo tempo que impossíveis, já que exceção.
Pude conversar com uma porta-bandeira de uma escola de destaque e um mestre-sala
consagrado sobre a polêmica. Nas duas oportunidades, as posições se mostraram contrárias
ao exercício do cargo por Anderson. A justificativa do mestre-sala foi de que a “tradição”
estaria em risco devido a essa subversão. Para ele, a opção sexual do dançarino ou da
dançarina sempre foi livre, mas que o corpo masculino e o corpo feminino devem ser o que
organiza a ocupação desses cargos. Ele até lembra que teve práticas homossexuais, que
existem diversos mestres-salas gays, mas que a feminilidade não deve ser transposta para a
dança, que deve ter características bastante distintas de um e de outro, ideia que é defendida
nos cursos de formação e aprimoramento. Em apostilas que pude ter acesso, trechos falam
explicitamente sobre a questão, esclarecendo que há o respeito pela opção sexual dos alunos,
mas que ela não deve transparecer em suas danças.
A porta-bandeira, por sua vez, argumentou que um homem ocupando um lugar que
deveria ser de uma mulher, na verdade, é uma forma de ocupar um lugar de empoderamento
feminino. Lembrando justamente da ideia de que no período dos ranchos carnavalescos, eram
os homens quem carregavam os símbolos máximos das entidades e que, com o tempo, esse
cargo passa a ser ocupado por mulheres, defende que se trata de uma posição conquistada
pela participação feminina, sempre em posição subalterna.
Uma análise interseccional poderia dar pistas sobre como analisar essa controvérsia,
algo que foge da possibilidade atual desse trabalho, inclusive por poder também apontar
formas de se refletir sobre a questão da raça, já que muitos desses dançarinos são negros e o
próprio carnaval é uma prática que historicamente é presente nas populações negras, presença
que me parece ser mais diversificada nas últimas décadas, período em que se aumenta a base
social de grupos ligados ou frequentadores de escolas de samba. Cabe aqui, no entanto,
apontar que o caso de Anderson Morango contribui para refletir sobre como carnaval é um
campo de disputa política e moral por conta de sua possibilidade de criar uma suspensão em
parte temporária do cotidiano por meio da criação de narrativas sobre o mundo dessas escolas
de samba e de seus integrantes. Narrativas essas que podem questionar concepções, regras e
criar, mesmo que durante uma hora, uma outra realidade, em trajes de gala e rebelde, nobre e
subversiva, ao mesmo tempo. Em entrevista a um portal jornalístico , Anderson, vestido de 2
porta-bandeira e como uma fisionomia notadamente feliz, declarou sorrindo: Eu espero esse
povo gritando já que é algo novo e diferente. Eu acho que tem a ver com a cara do povo. Já é
uma vitória, ‘eu estou aqui né’. Como eu falo para as pessoas, eu vou passar [no
sambódromo]. Gostando ou não, vou passar”!
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