feix - a encenacao de esperando godot no ceara

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Feix - A Encenacao de Esperando Godot No Ceara

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  • T ni a Al i ce Fe i x A encenao de Esperando Godot no Estado do Cear (2005)

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    A encenao de Esperan-do Godot no Estado do Cear (2005):

    Tnia Alice Feix

    professora-doutora em Letras e Artes pela Universidade de Aix-Marseille I (Frana). Atualmente, professora de Esttica e Teoria Teatral na Graduao e Ps-Graduao da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).e-mail: [email protected]

    da busca esttica conscincia tica

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  • A encenao de Esperando Godot no Estado do Cear (2005)

    resumo

    abstract

    resumen

    O artigo investiga as condies de recepo do Teatro do Absurdo hoje, a partir da montagem de Esperando Godot, no Estado do Cear em 2005. Busca-se entender de que maneira foi realizada a adaptao da pea de Beckett, atravs de uma anlise dos diferentes elementos de composio do espetculo, focando particularmente questes ligadas esttica da recepo.Palavras-chave: Beckett; Teatro do Absurdo; adaptao; esttica tea-tral; ps-modernidade.This article analyses the conditions of reception of the Theatre of the Ab-surd today, based on a production of Waiting for Godot in the state of Cear, Brazil, in 2005. The aim is to understand how Becketts play was adapted by analyzing the different elements, which make up the repre-sentation, focusing particularly on the questions linked to the aesthetic of reception.Key-words: Beckett; Theatre of the Absurd; adaptation; theatrical aes-thetic; post-modernity.El artculo investiga las condiciones de recepcin del Teatro del Absurdo en la actualidad, a partir del montaje de Esperando a Godot en el estado de Cear en 2005. Se busca entender la manera en que fue realizada la adaptacin de la obra de Beckett a travs de un anlisis de diferentes ele-mentos de composicin del espectculo, centrndose especialmente en los que estn ligados a la esttica de recepcin. Palabras-clave: Beckett; Teatro del Absurdo; adaptacin; esttica tea-tral; posmodernidad.

    NABSTRACTRESUMORESUMENABSTRACR

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    Em 2005, em Sobral, no Cear, foi montada uma adaptao de Es-perando Godot, de Samuel Beckett. Partindo do clssico escrito pelo Prmio Nobel de Literatura irlands, a adaptao, realizada pelo di-retor carioca Francisco Expedito, permitiu uma nova leitura da pea. Reflexo de inquietaes metafsicas profundamente humanas que chegaram a transformar a pea em um clssico do teatro moderno, a adaptao se fez em funo de um processo de incluso do especta-dor, levando em conta as teorias da esttica da recepo.

    Como foi efetuada a passagem do texto original adaptao? De onde emergiu a necessidade de adaptar esse clssico da literatura dramtica do sculo XX? Quais so as condies estticas, mas tam-bm econmicas e sociais, que tornam a reescrita necessria? Quais so as caractersticas da adaptao, como e em que condies propor uma releitura hoje do que se costuma chamar de Teatro do Absur-do e quais seriam os critrios de inveno desta nova linguagem, que conservaria a essncia do clssico oferecendo, ao mesmo tempo, uma leitura contextualizada?

    O ser humano atrs das grades: a farsa trgica de Beckett o termo de Clia Berretini (2000). Escrita em 1947, foi originalmente montada por Roger Blin e apresentada pela primeira vez no dia 5 de janeiro de 1953 no Thtre de Babylone, em Paris. Apesar da rejeio inicial da crtica, a pea permaneceu em cartaz por mais de quatro-centas apresentaes e foi montada em mais de vinte pases, com en-cenaes famosas, como a de Otomar Krejka, em Avignon (1978), ou Jol Jouanneau no Thtre des Amandiers, de Nanterre, em 1991.

    O impacto provocado pela primeira montagem de Herbert Blau, que estreou no presdio de Saint Quentin, na Frana, j tinha de-monstrado, contrariamente s expectativas, que a nova linguagem, a nova acepo do teatro, propostas por Beckett, nada tinham de elitista. Pelo contrrio, a pea responde a inquietaes metafsicas profundamente humanas, independentemente do nvel de (in)forma-o do espectador. Esperando Godot no trata somente do absurdo da existncia, da vaidade das esperanas, mas tambm as coloca em evidncia de maneira sensvel.

    Roland Barthes (1954, p.59), nos seus Escritos sobre o teatro, ana-lisa o itinerrio social da pea:

    No incio, as crticas definiram a pea como uma pea de vanguarda: era s assim que ela podia ser salva. Depois, fato surpreendente, a pea no se li-mitou a sua platia de intelectuais e esnobes esclarecidos: ela continuou seu caminho, atravessando platias sempre mais amplas, sempre mais afastadas desse hermetismo onde a critica politicamente correta queria confin-la. Go-dot atingiu o grande pblico parisiense, estrangeiro, a provncia. Hoje, Godot comove at as associaes de teatro popular. [...] Sociologicamente, Godot no mais uma pea de vanguarda. [...] Godot ficou adulto. [...] Godot se ampliou, porque Godot continha as propriedades especficas do seu tempo

    Neste sentido, a pea constitui um eco da memria afetiva coleti-

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    va, uma expresso palpvel das angstias essenciais do homem, uma expresso da espera, da esperana contnua e desesperada de cada ser humano, esperando o seu Godot, alm das contingncias temporais. Como em O Deserto dos Trtaros, de Dino Buzzati (2003), em que o protagonista espera invasores que nunca chegam, a essncia de Go-dot varivel: a sua identidade depende da funo que cada um lhe atribui, o que amplia consideravelmente a receptividade da pea.

    Na pea, Godot nunca chega, e a nica alternativa, a nica ocu-pao possvel parece ser o suicdio; mas os personagens no tm a coragem necessria para se enforcar e acabam se agarrando em pe-quenas diverses cotidianas para no cair no desespero, presas inva-riveis de suas esperas decepcionadas e de uma existncia desprovida de sentido porque, no contexto ps-guerra de escrita da pea, toda referncia metafsica havia desaparecido.

    A escrita destas angstias, fundamentalmente humanas e atem-porais, gerou o clssico, montado como tal, mas igualmente adap-tado sob diversas formas. Em crire et mettre en espace le thtre, Marie Bernanoce, que considera (com razo) o universo de Beckett especificamente apropriado para um trabalho em sala de aula, pro-pe a definio seguinte de adaptao (2002, p.84):

    Adaptao: Traslado ou transformao de uma obra dum gnero para outro gnero. [...] Durante esta operao semitica de traslado, o romance trans-portado em dilogos [muitas vezes diferentes dos dilogos originais] e, sobre-tudo, em aes cnicas utilizando todos os materiais de representao teatral [gestos, imagens, msica, etc...].

    A adaptao pensada como uma transposio genrica e no como uma reescrita em funo de critrios contextuais. No caso con-creto da adaptao da obra de Beckett, no se trata da adaptao ge-nrica como o prprio Beckett o fez, retomando trechos de dilogos dos dois protagonistas de seu romance Mercier et Camier (1945) em Esperando Godot , mas sim da transposio de um clssico em lin-guagem contempornea segundo a definio de clssico proposta por T.S. Eliot (1991): no interior de suas prprias limitaes formais, um clssico dever expressar o mximo da gama completa de sentimen-tos que representam o carter de um povo que fala esta lngua.

    Prescindindo de um esquema de intertextualidade interna, a pr-pria pea funciona sobre o princpio da adaptao. O discurso de Lucky, por exemplo, na pea original o nome do personagem a traduo literal e irnica do ingls lucky, que significa sortudo uma adaptao irnica realizada pelo prprio Beckett. Na dcada de 30, no Colgio onde ele era professor, Beckett j tinha apontado a in-coerncia dos discursos cientficos, metafsicos e intelectuais, numa adaptao do Cid, de Corneille, mediante um discurso totalmente arrasador, no fim do qual o pblico no conseguia nem ouvir a cam-painha do despertador que um personagem tinha em mos, antes

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    de adapt-los de maneira teatral em Esperando Godot1. A adaptao segue a mesma lgica de preservao do essencial sob uma forma humorstica, leve porque nada mais engraado do que a infelici-dade (Beckett).

    Na adaptao de Francisco Expedito, o texto original encurtado e dividido numa multiplicidade de personagens para responder s exigncias do imediato, da rapidez do espectador contemporneo, que vive num clima de Luna Park audiviosual a expresso de Jos Saramago2. Dessa forma, acrescenta-se o sentimento catrtico do espectador, acostumado a viver na sociedade do espetculo, conforme a anlise do situacionista Guy Debord (1992), que consi-dera a sua prpria vida como uma forma de representao. O espe-tculo ganha em dinamismo e em fora conforme as exigncias da sociedade contempornea.

    Trata-se de celebrar um compromisso entre o que se gostaria de dizer e o que o espectador capaz de entender. Em nossos dias nin-gum mais agenta um monlogo de Shakespeare de uma durao de dez, quinze minutos, por exemplo3, explica Francisco Expedito, autor da adaptao.

    Segundo talo Calvino (1990, p.8), leveza, rapidez, exatido, vi-sibilidade, multiplicidade e consistncia so os critrios estticos do novo milnio. A adaptao leva em conta essas exigncias para tornar-se mais acessvel e tornar o espetculo mais curioso, menos depressivo e mais dinmico, reflexo das exigncias contemporne-as. A adaptao entendida, ento, como um trabalho de transpo-sio de um texto clssico para uma linguagem acessvel ao pblico contemporneo, sem, contudo, desnaturar o valor fundamental do mesmo. A vivacidade, a linha de emoo do espetculo, oscilando entre a expectativa intensa e as decepes cada vez mais acentuadas, mantm o espectador atento, sensibilizando-o para as realidades ex-ploradas no texto clssico.

    No necessrio insistir que o contexto cultural brasileiro exige uma leitura dinmica o que no implica que essa leitura seja simplifi-cadora, demaggica, pedaggica no sentido pejorativo do termo -, mais ainda quando o espetculo montado para ser apresentado no Nor-deste, onde a tradio teatral principalmente constituda de mon-tagens e manifestaes regionais e populares. O contexto poltico interfere tambm diretamente no contexto cultural, fruto de projetos que o nutrem. A encenao de um texto, na medida em que se efetua numa cidade do interior do Cear como Sobral, requer uma ateno especial no que diz respeito sensibilizao do pblico a uma nova linguagem, a um texto pouco conhecido ou desconhecido, na pers-pectiva de outorgar uma credibilidade e um reconhecimento do tra-balho dos atores tanto a nvel estadual quanto no mbito nacional.

    Voltando-se para o contexto original, percebe-se que o Teatro do Absurdo denominado pela primeira vez como tal por Martin Es-

    1 A ironia do destino fez com que um dia antes da estria, na inaugurao do Teatro So Joo, no dia 29 de Dezembro de 2004, a Cia fosse impedida de ensaiar por causa dos discursos polticos interminveis, sendo que um, inclusive, atribuiu a pea de Beckett a Shakespeare, justificando, assim, o discurso de Lucky no palco.

    2Entrevista de Jos Saramago no documentrio sobre o olhar Janela da Alma, de Joo Jardim e Walter Carvalho, Brasil, 2003.

    3Francisco Expedito, discurso pronunciado numa mesa redonda sobre o processo e encenao de Esperando Godot, organizada pela Universidade Vale do Acara (UVA), Sobral, no dia 20.10.2003, na presena de Srgio Saboya, produtor no Rio de Janeiro, Raimundo Nonato de Souza, ator e produtor em Sobral, e Tnia Alice Feix, atriz, diretora de teatro e professora.

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    slin em 1962 , por definio, um teatro que afirma uma ruptura em relao ao teatro tradicional. Essa ruptura tripla: histrica, com a Segunda Guerra Mundial, os campos de concentrao, Hiroshima; filosfica, com a transmutao dos valores operada por Nietzsche e o existencialismo de Sartre e Camus; psicolgica, enfim, com as teorias freudianas. Os dramaturgos do Teatro do Absurdo adotam uma atitude niilista diante da platia, das tradies, das convenes, nota Emmanuel Jacquart (1998, p.49). Em sua essncia, essa ruptura esttica, provocando uma modificao da conscincia teatral. Em O Teatro e seu Duplo (1964), Antonin Artaud j havia proposto um afastamento do textocentrismo; Brecht j havia teorizado o efeito do distanciamento; o Mtodo de Stanislavski tinha sido reconhecido e aplicado universalmente. Enfim, trata-se de muitos terrenos frteis para que o Teatro do Absurdo se implante de maneira intempestiva e durvel no campo teatral com suas encenaes e interpretaes es-pecficas, seja na dramaturgia de Beckett, Ionesco, Arrabal, Genet ou Adamov.

    Nesse sentido, a adaptao de Francisco Expedito preserva as ca-ractersticas principais do Teatro do Absurdo como tal: ausncia de caracterizao marcada dos personagens, ausncia de estrutura linear coerente, segundo os princpios da anlise estrutural do for-malista russo Vladimir Propp, ausncia de intriga. A temporalidade cclica da adaptao idntica temporalidade da pea original. Tra-ta-se de dois dias fora do tempo, fora da temporalidade linear, fora da perspectiva historicista. o Eterno Retorno. A curva emocional do espetculo segue um ritmo reversvel em funo das duas emoes principais, espera e desiluso. Nada acontece, ningum vai, nin-gum vem, terrvel, diz Gogo, o acadmico amargurado no seu lato. Martin Esslin claro a respeito: Esperando Godot no conta uma histria, mas explora uma situao esttica (1961, p.39).

    As palavras so balbuciadas e, na adaptao, elas so ainda mais retiradas do contexto racional. A racionalizao ultrapassada pela emoo da cena. Percebe-se que a ruptura da confiana na linguagem como meio de comunicao constitui uma das caractersticas essen-ciais do Teatro do Absurdo. Nada a fazer, repetem invariavelmente os personagens. E o tempo passa, ou antes, pelo contrrio, no passa. A linguagem perde a sua funo de comunicao para assumir uma funo simplesmente ftica: as pessoas falam por falar e no para dizer ou comunicar. Esta ao da palavra pela palavra exprime o sen-timento fundamental que anima a pea: a conscincia do absurdo da existncia humana. Diga algo, mesmo que seja uma mentira, diz Estragon a Wladimir no incio do segundo ato. Assim, segundo Mauriac, as palavras foram inventadas para ocultar o incerto, o contraditrio, o impensvel (1958, p.43), para constituir uma ocu-pao, uma diverso no sentido de Pascal: o que afasta o homem do essencial.

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    No universo do Teatro do Absurdo, o mundo de Beckett assume uma fora particular. As peas de Beckett possuem uma intriga ain-da mais reduzida do que as peas de Teatro do Absurdo em geral, nota Martin Esslin em O Teatro do Absurdo (1962). A verso com-posta por Francisco Expedito que integra trecho em lngua francesa das Criadas, de Genet (1964), e de A Lio, de Ionesco (1954), presta, assim, uma homenagem ao Teatro do Absurdo de um modo geral.

    A modificao estrutural em termos de personagens passa-se de cinco a dezesseis responde necessidade de dinamizao da pea. Os nomes dos personagens so extrados de outras peas de Beckett. Assim, o nome de Krapp origina-se da ltima gravao (1958-1960)4, no qual, prisioneiro de seu passado, vtima da marcha irreversvel do tempo, Krapp tenta lutar contra a irreversibilidade do mesmo. O nome de Clov tirado do protagonista de Fim de partida (1957). Mesmo que ambos prestem homenagem s personagens da Lio, de Ionesco.

    Os personagens funcionam por pares, compondo binmios in-capazes de viverem juntos e incapazes de se separarem. A separa-o, constantemente pensada como uma soluo possvel, acaba por tornar-se demasiado tardia, e o fato de ficarem juntos constitui uma ltima opo para afrontar as angstias da vida. No me toque, no me faa perguntas, no fale comigo fique comigo, diz Estragon a Wladimir, ilustrando o quanto a presena constitui um cataplasma, mas jamais uma soluo.

    Na encenao, a adaptao insiste no efeito V efeito de dis-tanciamento explicitado por Brecht em seus Escritos para o Teatro (1963). O efeito utilizado na medida em que os personagens no respondem a um imaginrio naturalista, mas representam a situa-o de seres em perdio, imersos na dvida, no medo, na angstia existencial, distanciando e envolvendo o espectador num mesmo movimento. A interpretao dos atores tende a buscar o prottipo da espera de cada personagem, exemplificando-o, em vez de se con-formar a um padro de interpretao naturalista segundo o mtodo stanislavskiano. O cenrio tambm no responde a uma conveno naturalista: so trs armrios nos quais vivem trs das duplas de Vla-dimir e Estragon, uma escada, dois lates, cadeiras amontoadas: um universo hostil, angustiante, incmodo.

    A pretenso de aliviar o peso dessa realidade social, contudo, est ausente do universo beckettiano, e a montagem de Jol Jouanneau, que fazia uma releitura social da pea, teve uma recepo difcil, por conta da reduo operada em funo do texto original. a vida na sua realidade pura que questionada mais do que as modalidades de organizao social, questionadas por Piscator, Brecht ou Boal.

    Eugnio Kusnet, teatrlogo, que realiza uma comparao dos m-todos de Stanislavski com os de Brecht, insiste na importncia do coletivo, da comunicao, da emoo em detrimento do intelecto

    4 A ltima gravao de Krapp foi encenada em 2005 por Francisco Medeiros (SP) a partir dos dirios de montagem de Beckett, prestando igualmente uma homenagem ao Teatro do Absurdo.

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    (1985), caracterizando o universo de Beckett. O universo coletivo dos personagens, fora do quadro realista, opera um efeito de distan-ciamento mesmo que os movimentos de interpretao dos atores empreguem mtodos de inspirao naturalista , distanciamento ca-racterstico do princpio fundamental da pea, refletindo o questio-namento metafsico: que fazemos no mundo, alm de esperar?

    O ritmo dessa espera entra em oposio com as formas de percep-o contemporneas. O ritmo acelerado da ps-modernidade produz uma exigncia mais rpida, mais imediata de percepo. Como su-blinha Marie-Christine Autant-Mathieu (2003, p.21): os bons textos [de teatro] vivem os seus ritmos e destilam as suas mensagens atravs deste ritmo e no por meio da transmisso da informao.

    A decomposio em personagens mltiplas acelera o ritmo, res-pondendo a uma exigncia do leitor/espectador ps-moderno. A linguagem televisiva, as exigncias da telenovela5, o cinema e suas novas codificaes exigem de uma maneira sempre mais definitiva uma condensao do tempo, um ritmo acelerado dos acontecimen-tos. Para permanecer interpretvel, o teatro deve levar em conta, sem, contudo, renunciar as suas prprias exigncias, a linguagem da ps-modernidade com os seus rompimentos, seu ritmo, sua linha emo-cional. Ns desaprendemos a ler esteticamente o teatro, explica Francisco Expedito numa entrevista:

    Os espectadores querem que tudo se assemelhe televiso, ao que lemos todos os dias. Ns, diretores de teatro, somos conscientes disso e pretendemos man-ter a nossa identidade simplesmente fazendo teatro para as pessoas que vo ao teatro e que gostam do teatro. Esperando Godot um clssico, um tema universal que toca no corao dos espectadores porque ele fala da espera6.

    O cenrio original composto, na linha das indicaes cnicas do prprio Beckett, por um caminho e uma rvore com algumas fo-lhas, simbolizando a passagem do tempo. A rvore, na qual Judas se pendurou as aluses forca percorrem toda a trajetria da pea a rvore sonhada que marca a entrada no inferno de Dante7 encontra-se presente no cenrio da adaptao, e os personagens se agrupam incessantemente no p da mesma para pensar no enforcamento. Na encenao de Jol Jouanneau em Nanterre, a rvore tinha sido trans-formada num transformador eltrico, criando uma atmosfera indus-trial, que deu pea uma conotao poltica: de fato, Godot ou era visto como o smbolo do movimento social anticapitalista.

    Na adaptao, esse universo amplia-se com as cadeiras numa refe-rncia s Cadeiras, de Ionesco, a escada, os lates, os jornais, os livros empilhados e os tecidos rasgados. Os armrios, decorados pelos ato-res que interpretam os personagens que vivem no interior, abrem-se e fecham-se, abrindo-se palavra, expresso, antes de reduzir os per-sonagens ao silncio. Eternamente. Realizado por Francisco Expedi-to em cooperao com o artista plstico Sanzio Marden e os alunos

    6Entrevista de Francisco Expedito, publicada no Caderno Cultural do Norooeste , 30 de dezembro de 2004.

    7Na Divina Comdia, Dante compara as almas desejosas de atravessar o Aqueronte a folhas mortas. Na adaptao de Francisco Expedito, Nag, Nell et Nill comentam que o rudo das folhas mortas assemelha-se ao rudo dos homens falando de seus passados.

    5As pesquisas sobre as regras de composio da telenovela revelaram que para que uma novela tenha sucesso dever haver de 7 em 7 minutos um MBH (moment bouleversant dhumanit -, literalmente, momento profundamente humano) como reencontros, mortos ressuscitados... Quanto menor for o intervalo dos MBH, maior ser a chance de sucesso da telenovela.

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    de um projeto de integrao social da Oficina-Escola de Sobral8, o cenrio exprime uma situao de desespero com uma porta no fundo da platia que se abre duas vezes no fim de cada ato, quando os perso-nagens no ousam passar, com medo do vazio. E se Godot chegasse?

    Da mesma forma, os figurinos refletem as preocupaes existen-ciais dos personagens. As roupas de inverno vermelho, cinza, branco e preto, com coturnos, esto cobertas de neve, remetendo ao frio, ao isolamento. Numa semiologia especfica, os chapus materializam o intelecto, o pensamento, enquanto os sapatos constituem uma es-pcie de smbolo do peso do envolvimento da existncia, instinto e matria, dos quais os personagens tentam constantemente se liberar sem consegui-lo. As calas fazem parte dos acessrios de palhaos grotescos que reforam o efeito de distanciamento porque, tanto na adaptao como no original, Estragon perde a cala num momento trgico, o que contribui para criar uma situao trgico-cmica, es-pecfica do Teatro do Absurdo.

    Comentando sua primeira encenao no presdio, Herbert Blau comparou Esperando Godot a uma obra de jazz: sem dvida em vir-tude do ritmo ascendente e descendente das esperas, do ritmo emo-cional alternado entre esperana e decepo, mas tambm em vir-tude dos mltiplos instrumentos que compem a obra, provocando uma emoo universal, apesar da cultura diversificada dos ouvintes. Neste sentido, a adaptao trabalha com todos os registros. Se os Be-atles compem o essencial da sonoplastia na montagem de Francisco Expedito, ela associa tambm a interveno de Joe Cocker, do Bolero de Ravel, de um Baccamarte, misturando registros, pocas, criando um som atemporal de espera. Os dilogos dos personagens que res-pondem uns aos outros geram uma musicalidade especfica refora-da pelo dinamismo das vinhetas, durante as quais os personagens tentam fugir sem jamais conseguir.

    No que se refere iluminao que varre a cena criada por Fran-cisco Expedito e Walter Faanha para a estria de inaugurao do Teatro So Joo de Sobral -, ela ilustra, num vaivm perptuo entre a noite e o dia, a angstia metafsica dos personagens, com subidas de luzes brancas asfixiantes, na fumaa contnua dos sonhos evapo-rados.

    Concluindo, a adaptao permitiu, durante a apresentao no Cear, uma leitura exigente devido qualidade da preservao do original, favorecendo a leitura de um pblico menos acostumado esttica ps-moderna. Dessa forma, a pea tornou-se acessvel sem passar pelos critrios do regionalismo tradicionalmente considera-dos necessrios quando se faz uma encenao no Nordeste. Tanto que, nas apresentaes, as reaes da platia eram surpreendentes, revelando um reconhecimento profundo com a temtica proposta: estranho, os personagens vivem a mesma coisa que ns no Nordeste, nunca acontece nada. A musicalidade, o ritmo acelerado, a multi-

    8Trata-se do projeto Oficina Escola, baseado em So Paulo com uma ramificao em Sobral.

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    plicidade dos personagens, que encarnam tantos mitos da moderni-dade desmoronados: a f no saber, representado pelos universitrios Gogo e Didi; a f na cincia, encarnada por Minnie e Winnie; a f no amor, transtornada por Krapp e Clov; a f crist, liquidada por Blood e Mary. Desiluso ps-moderna, reflexo de angstias metafsi-cas, a adaptao transpe o questionamento atemporal da existncia ao quotidiano e joga-a para o presente, questionando o homem de maneira existencial: o que estamos esperando para viver?

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