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m a r ç o d e 2 0 0 8 • C I Ê N C I A H O J E • 6 3

CIÊNCIA FORENSE Polícia técnica tem novas ‘armas’ para investigar crimes e preparar laudos periciais

Leonardo GomesLaboratório de Eco-epidemiologia de Doença de Chagas,

Fundação Oswaldo Cruz

Fechando o cerco

A ciência forense – que se tornou profissão legali-zada no início do século 20 e se popularizou na

década de 1990 com o advento da análise de DNA – sempre atraiu a atenção do grande público. São exemplos de sucesso o detetive Sherlock Holmes, criado pelo escritor inglês Arthur Conan Doyle, a sé-rie televisiva Quincy, de Jack Klugman, ou os atuais programas de investigação criminal na tevê. Hoje vá-rias séries criminais, entre elas Crime Scene Investi-gation (CSI), estão na lista dos 20 programas de tele-visão mais vistos no mundo.

O lado positivo de tudo isso é que o público pas-sou a respeitar mais a ciência, o que se reflete, por exemplo, na procura por cursos de ciência forense. O número de alunos matriculados na Universidade Chaminade, em Honolulu, passou de 15 para 100 em quatro anos. Na Universidade da Virgínia Ocidental, o curso de ciência forense e investigativa, que em 2000 tinha apenas quatro alunos, é hoje o terceiro maior do campus, com mais de 500 alunos. No Bra-sil o número de estudantes na área também tem crescido.

Enquanto nos Estados Unidos a polícia se preo-cupa em corresponder às expectativas dos programas nacionais de investigação forense, no Brasil ainda há, em algumas regiões, um longo caminho a percor-rer em busca dos padrões internacionais de qualida-de para a ciência forense. As análises de DNA exem-plificam bem esse quadro. Para obter os níveis de segurança dos exames feitos em laboratórios de re-ferência no exterior, é preciso estabelecer rígidos padrões de qualidade, entre eles calibração periódi-ca de equipamentos, coleta apropriada de material e estabelecimento de procedimentos que minimizem a chance de troca de amostras.

Além disso, novas áreas de pesquisa na ciência forense estão longe de ser exploradas no Brasil e em

outros países em desenvolvimento. Uma delas é a entomologia forense, que envolve o estudo de insetos para auxiliar as investigações criminais, principal-mente em casos de morte violenta.

Quando moscas-varejeiras, por exemplo, encon-tram um cadáver, em geral aí depositam ovos, dos quais em pouco tempo eclodem larvas (algumas es-pécies põem larvas já eclodidas). As larvas alimen-tam-se dos tecidos em decomposição até atingir a fase de pupa. Portanto, podem ser tomadas como uma espécie de ‘relógio biológico’ indireto, capaz de in-dicar o tempo transcorrido entre a morte e a desco-berta do cadáver, chamado de ‘intervalo pós-morte’. A estimativa desse intervalo baseia-se na compara-ção de dados sobre o desenvolvimento de insetos obtidos em análises laboratoriais do material (ovos, larvas, pupas e adultos de diferentes espécies) cole-tado no corpo ou próximo dele.

Larvas de diferentes ordens de insetos. A identificação das espécies é fundamental na entomologia forense

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Mas as informações obtidas a partir do exame de insetos recolhidos em cadáveres permitem outras aplicações de interesse, além da estimativa do inter-valo pós-morte. A identificação de espécies pode indicar que o corpo foi afastado do local original do crime, caso uma espécie não ocorra naturalmente na área onde o cadáver foi achado. Se muitas larvas forem encontradas em outra região do corpo, além das cavidades naturais, isso pode indicar algum tipo de traumatismo, possivelmente causado por armas. Com base nos insetos coletados, também é possível saber se o corpo esteve enterrado ou submerso por determinado tempo.

Nos Estados Unidos, no Canadá e em vários países europeus, a entomologia forense já é utilizada com freqüência em investigações criminais. Entre nós, uma tentativa de torná-la mais divulgada e aceita foi a criação, em março de 2007, da Associação Brasi-leira de Entomologia Forense (www.rc.unesp.br/ib/zoologia/abef).

InovaçõesAlém das técnicas de DNA e da recente entomologia forense, nos últimos anos surgiram outras áreas de apoio à ciência forense, que no futuro deverão permi-tir o aperfeiçoamento das investigações criminais e a elaboração de laudos periciais mais precisos, gra-ças ao emprego de novos métodos pelo perito crimi-nal. A determinação do intervalo pós-morte de um cadáver é decisiva em uma investigação criminal, e uma boa estimativa desse intervalo de tempo poderá ser feita com o auxílio de métodos propiciados pe-las novas áreas da ciência forense.

A entomotoxicologia forense trata da análise de insetos para determinar se uma pessoa consumiu

drogas ou foi envenenada, a partir da coleta de inse-tos que se alimentaram do cadáver, principalmente larvas de moscas. Essa área de pesquisa surgiu na década de 1970, quando se demonstrou o acúmulo de ferro, cobre e zinco em moscas-domésticas. Em 1980 a determinação qualitativa de drogas em insetos e cadáveres começou a ser investigada. Nos anos 90, alguns estudos revelaram traços de drogas em larvas de moscas-varejeiras que se alimentavam de corpos em decomposição. Coletadas e levadas ao laboratório, as larvas revelaram a presença de cocaína e morfina em seus tecidos, uma prova de que as pessoas haviam consumido essas drogas.

Nos últimos tempos, a entomotoxicologia forense progrediu bastante e objetiva no futuro estabelecer protocolos de coleta de insetos em cadáveres (ou ao seu redor) e definir uma concentração mínima que permita afirmar categoricamente se uma pessoa consumiu drogas ou não. Esse cuidado é necessário diante do problema da bioacumulação, isto é, da transferência, para gerações seguintes, de substâncias que insetos ingeriram durante sua permanência em um cadáver. Uma geração de moscas, por exemplo, pode vir de pais que se alimentaram do cadáver de uma pessoa que morreu de overdose de cocaína. Se a nova geração de insetos for coletada em um cadáver que teve morte natural, um perito poderá concluir equivocadamente que a pessoa morreu em decorrên-cia do consumo excessivo de drogas.

Ovos, larvas e pupasOutra tendência é a identificação molecular de inse-tos de importância forense. Para a determinação do intervalo pós-morte, é essencial reconhecer os inse-tos que se alimentam de um cadáver. Mas às vezes o

Microscopia eletrônica de varredura de ovos das moscas Chrysomya megacephala (A), Chrysomya putoria (B), Lucilia cuprina (C), Lucilia eximia (D), Ophyra aenescens (E)

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perito encontra apenas pedaços deles, como partes de uma perna, de uma asa ou do abdome. Por isso, a identificação tende a ser feita a partir do seqüencia-mento de DNA, que pode ser extraído de uma porção mínima do inseto. Após o seqüenciamento e consul-tas a bancos de genes, pode-se chegar à espécie. O procedimento vale tanto para partes de insetos adul-tos, quanto para ovos, larvas e pupas. Além disso, existe também uma tendência de se criarem chaves taxonômicas para identificação de larvas e ovos com auxílio do microscópio eletrônico de varredura.

Procura-se ainda determinar o tempo em que um ovo, uma larva ou uma pupa está em um cadáver a partir da coleta de uma dessas fases da vida de um inseto e da análise da concentração de seus hidro-carbonetos cuticulares (compostos orgânicos presen-tes em sua cutícula, típicos de cada espécie). Essa análise permite determinar o tempo em que uma larva vive em um cadáver, o que hoje só pode ser feito com base em exames morfológicos da larva.

Acaralogia e micologia A acarologia e a micologia forense, estudo dos ácaros e fungos que ocorrem durante a decomposição de um cadáver, despontam também como novas áreas de investigação a serviço da ciência forense.

O levantamento e a análise de ácaros podem de-terminar o tempo de morte de uma pessoa e oferecer indícios se ela de fato morreu no local onde o corpo foi encontrado. Nesse caso, o especialista compara as espécies que ocorrem naturalmente no solo do local com as identificadas no corpo em decomposição.

A análise de fungos também pode colaborar com outras áreas da ciência forense na estimativa do in-tervalo pós-morte. Nas diferentes fases de decompo-sição de um cadáver, uma espécie ou conjunto de espécies de fungos se desenvolve nos tecidos. O es-tudo dessa sucessão micológica pode indicar o tem-po de morte de um indivíduo.

Botânica e palinologiaA botânica forense, estudo de restos vegetais com o fim de elucidar crimes, é uma nova linha de pesqui-sa que surge no campo da ciência forense. Embora essa área tenha sido explorada nos Estados Unidos na década de 1930, só agora começou a crescer e a auxiliar a polícia em investigações criminais. Em todos os casos foram analisados vegetais encontrados nos cadáveres ou consumidos pelas vítimas antes de morrer, com o objetivo de determinar, principalmen-te, o local das mortes.

O conhecimento da flora de uma região permite saber se uma pessoa se alimentou de vegetais daque-le local. No caso de alguém que morreu a pauladas, por exemplo, o especialista pode, a partir da análise dos tecidos vegetais encontrados na vítima, identifi-

car a espécie de planta que deu origem àquela ma-deira e dizer se ela ocorre no local onde a pessoa foi encontrada morta.

Além disso, muitas pessoas são encontradas mor-tas sobre plantas, podendo conter pólen aderido ao corpo, proveniente ou não dessas plantas. A análise desse material, coletado e identificado em um cadá-ver por um palinologista, pode indicar, assim como a botânica forense, se a pessoa morreu ou não naque-le lugar. Essa recente área de estudos é denominada palinologia forense.

Novos avançosCom o aumento da temperatura global, alguns levan-tamentos de animais e plantas ficaram prejudicados. Estudo recente feito na Europa indica que houve migração de animais (sobretudo insetos) para outras regiões. Esse quadro dificulta o trabalho do perito, uma vez que o conhecimento do hábitat de insetos pode ser essencial na elucidação de um crime. Hou-ve alterações também no hábitat de plantas, em razão da mudança das condições ambientais ou porque determinado animal passou a dispersar pólen em outro local.

Para que a ciência forense – tanto as áreas de inves-tigação mais antigas quanto as mais recentes – possa obter novos avanços, são desejáveis a padronização de métodos e o estabelecimento definitivo da muti-disciplinaridade, com maior integração entre biólo-gos, paleontólogos, médicos, farmacêuticos, antro-pólogos, físicos e autoridades judiciais.

Os ácaros do gênero Macrocheles são importantes em estudos forenses

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