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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Famílias do ramo de rede: tecelagem, negócio e viagem no sertão da Paraíba e do Rio Grande do Norte Elisa Ribeiro Alvares da Cunha 2006

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Famílias do ramo de rede: tecelagem, negócio e viagem no sertão da Paraíba e

do Rio Grande do Norte

Elisa Ribeiro Alvares da Cunha

2006

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Famílias do ramo de rede: tecelagem, negócio e viagem no sertão da Paraíba e

do Rio Grande do Norte

Elisa Ribeiro Alvares da Cunha

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de mestre em Antropologia Social. Orientador: Prof. Dr. Moacir Gracindo Soares Palmeira

Rio de Janeiro Agosto de 2006

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Famílias do ramo de rede:

tecelagem, negócio e viagem no sertão da Paraíba e do Rio Grande do Norte

Elisa Ribeiro Alvares da Cunha

Orientador: Prof. Dr. Moacir Gracindo Soares Palmeira

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de mestre em Antropologia Social.

Rio de Janeiro, 30 de agosto de 2006

________________________________________ Prof. Dr. Moacir Palmeira, (PPGAS/MN/UFRJ)

_________________________________________ Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes (PPGAS/MN/UFRJ)

_________________________________________

Prof. Dr. Helion Póvoa Neto (IGEO/UERJ)

__________________________________________ Prof. Dr. Fernando Rabossi (PPGAS/MN/UFRJ - suplente)

__________________________________________ Prof. ª Drª Beatriz Heredia (IFCS/UFRJ - suplente)

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RESUMO

CUNHA, Elisa Ribeiro Alvares da. Famílias do ramo de rede : tecelagem, negócio

e viagem no sertão da Paraíba e Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro, 2006.

Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade

Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

Este trabalho analisa as famílias envolvidas na produção e no comércio de redes de dormir, entre outros produtos têxteis, e que têm sua origem no sertão paraibano e potiguar. A partir de pesquisas de campo naquela região e no Rio de Janeiro, com maior ênfase na área produtora, buscou-se identificar os modos como as famílias organizam sua experiência econômica, distribuindo-se em diferentes atividades associadas às tecelagens, à confecção de acabamentos, às vendas como ambulantes, ao transporte de mercadorias e ao estabelecimento de depósitos e de lojas em outros estados Brasil.

ABSTRACT

The aim of this work is the analysis of families, from Paraíba’s sertão and Rio Grande do Norte’s sertão, envolved in production and trading of hammock and other textiles products. Based on fieldwork in those areas and in the city of Rio de Janeiro, we have tried to identify the economic experience of those families and the way their production are organized, from the producing of hammock, including the trade made by peddler, to storage and stores in other estates of Brasil.

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À minha mãe.

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Moacir Palmeira, meu orientador, pelo inestimável apoio durante a

formação no mestrado.

Ao Sebastião Menezes, o Tião, e Adalberto Oliveira (IICA), ao pessoal do

SEBRAE e ao seu Jupinha, presidente do STR de Jardim de Piranhas, por terem

me proporcionado uma boa “entrada” no campo.

Ao Zé, pela agradável companhia e pelas incursões aos sítios em sua moto.

Á Aparecida, pela inacreditável hospitalidade em Jardim de Piranhas.

E, por fim, a todos os envolvidos no ramo de rede que participaram desta

pesquisa.

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SUMÁRIO

Introdução …………………………………………………………… p. 8

Capítulo 1 – O ramo de rede ....................................................... p. 26

A Feira da Pedra ..................................................... p. 43

Capítulo 2 – As famílias do ramo de rede ................................... p. 53

Zé do Crediário ....................................................... p. 54

Geraldo .................................................................. p. 60

D. Alice .................................................................. p. 61

Mariano ................................................................. p. 63

Luciano .................................................................. p.64

Família Nunes Rocha ............................................ p. 68

Alba de Leandro .................................................... p. 72

Ricardo .................................................................. p. 80

João ....................................................................... p. 82

Solange .................................................................. p.84

Capítulo 3 – Negócio e viagem ................................................... p. 86

Conclusão ................................................................................... p. 104

Referências bibliográficas ........................................................... p. 109

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Introdução

O ramo de rede compreende um grupo de produtores e vendedores cuja

origem aproximadamente se circunscreve aos municípios de São Bento, Brejo do

Cruz, Paulista, Patos, Pombal, Catolé do Rocha e Vista Serrana, na Paraíba;

Jardim de Piranhas, Serra Negra e Caicó, no Rio Grande do Norte. Todos estes

municípios se localizam no Sertão nordestino, mais especificamente nas micro-

regiões, conforme a divisão do IBGE, de Catolé do Rocha (PB) e do Seridó

Ocidental (RN).

A produção de redes de dormir está associada à presença da cultura do

algodão realizada nas fazendas e tornou-se uma das atividades econômicas mais

importantes naquela área desde a década de 1960. Atualmente as tecelagens

diversificam a produção, fazendo mantas, panos de prato, bonés, tapetes, roupas

de cama e de mesa, entre outros produtos têxteis de menor destaque. Ainda

assim, de tal modo as redes são predominantes, que se observa na entrada da

cidade de São Bento uma placa com os dizeres “São Bento – a capital das redes”.

São Bento (PB) e Jardim de Piranhas (RN) são municípios limítrofes entre

a Paraíba e o Rio Grande do Norte e concentram a maior parte das tecelagens,

sobressaindo-se São Bento, que de certo modo polariza o ramo de rede. Os

demais municípios estão articulados a este pólo através da participação da

população na confecção de acabamentos das redes e no processo de

comercialização. A despeito da maioria das tecelagens localizarem-se na área

urbana destes dois municípios, todas estas atividades – tecelagem, confecção de

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acabamentos e comercialização – distribuem-se tanto pelas áreas urbanas quanto

pelas áreas rurais, isto é, na rua e no Sítio1.

Caicó, Catolé do Rocha, Patos e Pombal foram incluídos nesta delimitação

geográfica e, embora tenham um papel periférico no ramo de rede, são centros

regionais com comércio mais variado e com maior diversificação de serviços

(escolas, hospitais, bancos). Caicó, Patos e Pombal são os municípios que

interligam os demais ao restante do território nacional, sendo que Pombal e Patos

situam-se na BR 230, que cruza o estado da Paraíba do litoral até a divisa com o

Ceará.

A primeira vez que estive em São Bento ocorreu no ano de 2002, quando

se aproximava o período de conclusão da minha graduação em Geografia e

estava buscando um tema de pesquisa para a monografia. Em julho daquele ano

iria a um Encontro Nacional de Geógrafos, em João Pessoa. Pouco antes da

minha ida, surgira a idéia de pesquisar os vendedores ambulantes de redes que

via circular pelos bairros e praias do Rio de Janeiro. Uma notícia na internet e um

vendedor no bairro onde moro foram as primeiras referências sobre a cidade, que

me fizeram aproveitar a oportunidade de estar na Paraíba e fazer uma primeira

exploração.

Visitei algumas tecelagens e a Feira da Pedra, que acontece às segundas

feiras na cidade. Desde essa época fiquei intrigada com a impressionante

diversidade dos produtores. Tecelagens de todos os tamanhos, pessoas que

confeccionavam só os acabamentos e uma trama ainda mais complexa para os

1 Rua se refere à cidade, a palavra sítio tem dois sentidos nas áreas rurais do Nordeste. Por convenção, usa-se Sítio (com “S” maiúsculo) quando o termo é empregado para designar a

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imagem da rede como um artigo artesanal, fica difícil não tomar tais evidências

como indícios das transformações provocadas pelas relações capitalistas e que

tornaram a produção artesanal de redes uma produção fabril. Sem dúvida, somos

levados a compreender uma gama de outras relações – de trabalho, comerciais,

espaciais – do modo mais coerente possível com essa história.

Claudio Egler realizou uma pesquisa em São Bento, em 1984. Naquela

época, havia ainda muitas tecelagens com teares de pau (Foto 1), o que imprimia

à paisagem um sentido ainda maior de evolução, de mudança, pois podia-se

observar diretamente a tendência dos teares de pau serem substituídos pelos

elétricos; das unidades de trabalho familiar, tornarem-se unidades de trabalho

assalariado e especializado. Paisagem ainda mais propícia às explicações que se

baseiam na teoria da transformação do artesanato em manufatura, tal qual Marx

formulou:

Em São Bento diferentes combinações deste processo de trabalho podem ser observadas, desde o artesanato até a fábrica mecanizada, embora formem um entrelaçado difícil de se distinguir exatamente onde começa um e acaba o outro, representando de maneira exemplar uma fase peculiar do desenvolvimento do capitalismo: a manufatura doméstica. (Egler, 1984, p.64)

As combinações dos processos de trabalho se referem ao modo como as

etapas de confecção das redes podem associar as fábricas (tecelagens

mecanizadas) às manufaturas (tecelagens que ainda exigem a habilidade manual)

e às “feiteiras” (mulheres que fazem os acabamentos das redes nos sítios), ou

combinam as fábricas e manufaturas com os “artesãos” na cidade (Egler, 1984). E

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ainda, de arranjos entre, de um lado, o trabalho de tipo fabril e especializado –

como urdidores e tecelões – e de, outro, o trabalho familiar.

Foto 1

Outra pesquisa encontrada sobre a produção de redes-de-dormir em São

Bento foi a monografia de graduação de Galba Suassuna Figuerêdo (1995), que

procurava dar indicações mais precisas sobre a “evolução histórica” da produção,

provavelmente baseando-se no texto: “São Bento – Estudo sobre a manufatura de

redes-de-dormir”, de José Bolivar V. da Rocha (apud Figuerêdo, 1995). Alguns

elementos expostos remontam a um tempo mais antigo em que eram as mulheres

quem fazia as redes em teares de origem indígena, fato anteriormente exaltado

por Cascudo (2003 [1957])2.

Segundo a autora, teria sido a introdução do fio industrializado na década

de 1930 por comerciantes locais que estimularia os homens a produzir também,

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assim como surgiria o “tear de batelão” ou “tear de um pano”3 e, com ele, a

consolidação da divisão do trabalho na família: homens urdindo, alvejando,

tingindo, tecendo; mulheres fazendo os acabamentos. Na década de 1950, os

comerciantes passariam a adquirir os teares e a produzir através de uma relação

chamada de “trabalho por negócio” (Figueredo, 1995, p.41) – o comerciante

fornecia fios e tintas e ficava com uma porcentagem das redes produzidas, na

tecelagem pelos homens, e em casa pelas mulheres. Este sistema proporcionaria

maior capitalização por parte dos comerciantes, concomitante ao aumento da

produção, o que levaria ao surgimento das “viagens para revenda em outros

estados” (Figueredo, 1995, p.41). Por fim, em 1958 surgiria a primeira

“manufatura” com trabalhadores assalariados.

Aqui, o esforço de apresentar o desenvolvimento das forças produtivas e

das relações de produção na “indústria das redes de São Bento” já não aparece

apenas como exercício lógico, mas como possibilidade histórica. E o

encadeamento dos fatos que vão da crise da cultura algodoeira à ascensão da

indústria têxtil nos revelaria os traços fundamentais daquela paisagem, marcada

pelos momentos em que as transformações da estrutura produtiva engendram o

aperfeiçoamento do espaço urbano.

Na análise de Egler não faltaram as relações entre produção e

comercialização. Os mesmos dois aspectos são ressaltados sobre as categorias

2 Um maior contraste em relação à produção fabril e espacialmente especializada aparece nesta passagem: “quem viveu no sertão do nordeste até 1910 sabe perfeitamente que rara seria a fazenda onde a rede fosse objeto de compra (...)” (Cascudo, 2003, p.25). 3 A denominação “tear de um pano” se deve ao contraste com os antigos teares que faziam o pano da rede com um terço do comprimento, precisando ser emendadas as três partes depois.

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sociais que ele encontrou durante a fase de comercialização: a presença dos

“fornecedores de fios” e dos “viajantes”:

O controle do fornecimento do fio nas quantidades necessárias à pequena produção doméstica permite ao atacadista montar uma rede de artesãos sobre (sic) seu controle, fornecendo fios ou o pano4 e recebendo o pagamento em produto acabado (...) (Egler, 1984, p.68).

O “viajante” existe quando a produção não é comprada diretamente na porta da manufatura, é o proprietário do caminhão, sua função é levar o produto a grandes distâncias (Maranhão, Pará, Acre, Goiás, um caso extremo como foi contado por um entrevistado até a Bolívia) onde se encarrega da comercialização. Ele é em si um resultado da produção em maior escala, portanto nasce da necessidade do proprietário da manufatura de vender seu produto, mas atua sobre o pequeno produtor artesanal, levando suas redes em consignação e chegando mesmo a encomendá-las aos artesãos (...) (Egler, 1984, p.68-69)

A introdução do processo de comercialização no esquema coloca o

comerciante em duas posições distintas: de um lado, o fornecedor de fios que

domina os produtores, de outro, o “viajante”, que é retratado como “resultado da

produção em maior escala”, da “necessidade do proprietário da manufatura” e,

ainda alhures, “é o ‘viajante’ de um modo ou de outro subordinado ao produtor

manufatureiro e que ao mesmo tempo controla o pequeno produtor artesanal".

Em ambos os trabalhos verifica-se que as categorias sociais são

construídas a partir de uma lógica evolutiva, partindo da transformação do

artesanato em manufatura, e desta em indústria, e da transição do comerciante

controlando a manufatura para a indústria dominando o comércio e os outros

produtores, desde o momento em que a introdução dos teares mecânicos teria

4 Os fornecedores de fios se tornam também fornecedores de tecidos “importados diretamente das tecelagens de São Paulo e Santa Catarina” (Egler, 1984, p.68)

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provocado o incremento da produção. A mesma lógica seria responsável pela

transformação das relações entre cidade e campo na região, pois o seu

desenvolvimento só seria possível na medida em que correspondesse à

complementaridade entre liberação do trabalho no campo e necessidade de força

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utilizar, em certos setores, técnicas rudimentares da produção de bens (Araújo, 1996, p.47).

Uma leitura menos linear, tal como aparece na argumentação de Araújo,

baseando-se em Canclini (1983), vai considerar essas atividades “rudimentares”

como a própria forma de realização do capitalismo, servindo freqüentemente como

alternativa de inserção do campesinato a fim de evitar sua completa proletarização

(Araújo, 1996, p.51). Sobre este aspecto, ao se apoiar em Canclini, Araújo destaca

o desenvolvimento do “artesanato” através do interesse do Estado em evitar o

êxodo rural quando as cidades não conseguem mais absorver a força de trabalho.

Em outras circunstâncias, conforme assinalado na citação acima, o fato se devia à

própria inviabilidade do capital. Ambas interpretações negligenciam possíveis

estratégias sustentadas pelos próprios camponeses.

A proposta de análise que apresento nesta dissertação de mestrado em

grande parte está inspirada na leitura de “O Sul: o caminho do roçado”. A obra de

Afrânio Raul Garcia Jr. foi fundamental para que pudesse perceber que as

relações capitalistas não precisam ser compreendidas numa narrativa evolutiva

que sempre implica na transformação de relações pré-capitalistas ou arcaicas em

capitalistas e, consequentemente, na transmutação de camponeses/artesãos em

assalariados ou empresários. Mais precisamente ela forneceu argumentos para

analisar o contexto social em questão sem precisar antecipar a finalidade dos

acontecimentos históricos e sem precisar tomar tais categorias – camponeses,

artesãos, assalariados, empresários – como entidades homogêneas e nitidamente

distinguíveis umas das outras.

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Esses argumentos não se referem apenas a um outro tipo de concepção

metodológica, mas às formulações específicas sobre os agricultores do Brejo e

Agreste da Paraíba, pesquisados na década de 1970 por Garcia Jr. Eles se

valeriam do negócio nas feiras para permitir, simultaneamente, o uso da força de

trabalho externa ao grupo doméstico nas tarefas do roçado e a ida para o Sul com

o intuito de trabalhar na construção civil. As combinações entre agricultura, criação

e negócio e seus desdobramentos – o uso do alugado5 e o assalariamento no Sul

– teriam o importante papel de garantir a condição de liberto, isto é, de não estar

sob a condição de sujeito ou morador, submissos ao poder dos senhores de

engenho, usineiros e fazendeiros.

Para o autor, se o desenvolvimento das relações capitalistas vinham

provocando a decadência da dominação tradicional no Brasil, elas não se

traduziam necessariamente na aniquilação concomitante do campesinato. Ao

contrário, estariam contribuindo até para a sua ampliação. Os camponeses

poderiam se apropriar das relações capitalistas não apenas para escapar da

dominação, como também para evitar a submissão completa às oscilações do

mercado. Isto porque, ao combinarem a produção do roçado com o negócio nas

feiras, eles podiam contornar a variação dos preços, optando pela venda ou pelo

consumo direto. Não que o negócio nas feiras fosse feito com a própria produção,

mas porque ele era uma fonte de renda constante que poderia ser usada para

reinvestir na agricultura, caso fosse mais válido consumir em casa os produtos da

lavoura do que vendê-los, ou caso a safra tivesse sido ruim.

5 Alugado se refere ao trabalhado, geralmente pela diária, em fazendas ou sítios.

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A compra da força de trabalho ao mesmo tempo em que era possibilitada

pelo negócio, era importante para a realização do negócio, pois liberava o trabalho

do produtor para que pudesse fazer o circuito de feiras. Podia também servir para

liberar o seu trabalho ou de seu filho a fim de que fossem vender suas respectivas

forças de trabalho no Sul, o que, por sua vez, significava a possibilidade de

reinvestir o dinheiro obtido com os salários no negócio, na compra de gado ou de

terra. A ampliação do patrimônio que essas ações asseguravam cumpria um papel

essencial na reprodução social da família, pois era necessária para os momentos

de divisão do grupo doméstico e formação de novos grupos domésticos nos

períodos de casamento dos filhos.

O que estas considerações principalmente têm a acrescentar é que o uso

de certas categorias tende a nos levar a interpretações que encerram as práticas

dos indivíduos concretos naquilo que tais categorias previamente têm a

caracterizar. Trocando em miúdos, do mesmo modo que o contexto retratado por

Garcia Jr. poderia levar à interpretação de que o desenvolvimento das relações

capitalistas no Brasil provocaria a decadência tanto da dominação tradicional

quanto do campesinato e que os camponeses tenderiam a se proletarizar ao

migrar para as cidades e vender sua força de trabalho, ou se transformar em

empresários capitalistas ao comprar a força de trabalho, quando enfocamos o

dono de uma tecelagem que contrata operários, se na análise isto supõe

imediatamente que ele é um empresário, corremos o risco de descartar dados

importantes, como o fato de que ele também é dono de um sítio e que sua família

está envolvida tanto no trabalho da tecelagem, quanto no trabalho do roçado.

Estas considerações permitem construir um quadro social e espacial muito mais

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complexo, pois elas elucidam relações mais intrínsecas no que supostamente está

dividido entre cidade e campo, agrícola e industrial e até nas articulações entre

diferentes estados, regiões, etc.

As reflexões acima foram me levando a reconstruir os dados obtidos no

primeiro trabalho de campo e a tentar confrontá-los com as indicações fornecidas

pelo contato com estudos sobre pequenos produtores rurais no Nordeste. Além

disso, pesquisas de campo foram sendo feitas durante minha formação no

mestrado aqui no Rio de Janeiro.

Neste ano de 2006, surgiu uma nova oportunidade de retornar àquela

região entre a Paraíba e o Rio Grande do Norte. Coincidentemente, esta

oportunidade foi precedida por um encontro, o Seminário de Memória Camponesa,

que propiciou o importante contato com Sebastião Francisco de Menezes, ex-

assessor da Federação dos Trabalhadores Agrícolas do Rio Grande do Norte

(FETARN) e com Adalberto Cabral de Oliveira, ambos vinculados ao Instituto

Interamericano de Cooperação para Agricultura (IICA). Por intermédio deles

conheci seu Jupinha, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais em

Jardim de Piranhas, e Aparecida, funcionária do sindicato que me deu abrigo e

uma “vizinhança”.

Três “entradas” marcaram este campo: uma através do apoio institucional

do IICA, do SEBRAE e do STR, outra realizada a partir dos contatos iniciados no

Rio de Janeiro, e a última aconteceu com as visitas à Feira da Pedra. Destaco

esta informação aqui, pois considero que cada uma, separada ou relacionada às

outras, contribuiu para os recortes realizados, sobretudo na seleção das famílias

que apresento no segundo capítulo. Por exemplo, através do Adalberto (IICA)

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conheci os consultores do SEBRAE e, acompanhando-os em suas visitas, tive

acesso aos produtores em Caicó, que forneceram questões essenciais a este

trabalho. Com o apoio do SEBRAE, também conheci um comerciante de redes em

Caicó que recebia as mercadorias fornecidas por um primo de São Bento. Daí em

diante foi se estabelecendo uma “rede” de contatos que freqüentemente faziam as

“entradas” se entrecruzar. Em certo momento, descobri que o fornecedor de São

Bento era conhecido dos fornecedores indicados pelos informantes do Rio de

Janeiro e o encontro com os dois simultaneamente proporcionou alguns diálogos

que teriam escapado, caso as entrevistas ocorressem de maneira isolada.

Tornando-me conhecida de alguns moradores de Jardim através do pessoal do

sindicato, alguns contatos da Feira da Pedra puderam ser aprofundados

posteriormente na cidade.

Embora já estivesse envolvida com a pesquisa há algum tempo, foi o

material etnográfico deste trabalho de campo que consolidou esta dissertação.

Além disso, ele teve um sentido exploratório, como se estivesse lá ainda para

descobrir que objetos deveriam ser privilegiados. Visto que o conhecimento

anteriormente elaborado moldava-se às teorias que buscava confirmar na época

do primeiro campo em São Bento, era necessário, então, reinventar um início para

tentar reconhecer que significados as próprias pessoas inseridas naquele universo

davam às atividades observadas. Afinal, seria este um recurso fundamental para

evitar sobrepor as minhas teorias de tal maneira a restringir as amplas

possibilidades de entender as lógicas em jogo nas práticas do grupo, ou melhor,

do ramo de rede.

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Por outro lado, tive o cuidado de não absolutizar esta tentativa

de acessar o conhecimento nativo, assumindo que a minha compreensão dos

relatos era necessariamente uma forma de recortar os momentos de encontros

entre pesquisadora e pesquisados, encontros esses que, num plano anterior à

intencionalidade do meu recorte, já isolava alguns elementos daquele contexto

social. Em outras palavras, o próprio momento do encontro, sobretudo quando os

informantes sabiam previamente que eu estava realizando uma pesquisa, teria

uma dinâmica particular que contribuiria para definir os contornos do recorte que

viria a fazer.

Portanto, cabia reconhecer que – mesmo tentando deixar abertos os

diálogos, ou, em algumas situações, sentindo dificuldade de restringir o foco das

conversas – as minhas indagações necessariamente estavam informadas por

certos pressupostos teóricos e por algumas hipóteses, o que era uma forma de

orientar o percurso das entrevistas. Os dois movimentos podem parecer

contraditórios: o de tentar conhecer o que é significativo para os nativos e o de

reconhecer, ao mesmo tempo, o quanto há de nós no que recortamos como

significativo, mas isso não os invalida, pois, de outro modo, tanto a crença de que

não temos acesso a este significado, quanto a crença de que acessamos este

significado sem precisar de maiores mediações, leva à cética tautologia das

teorias. Mas, ao tentar sustentar estes dois movimentos até seu possível embate,

ao pôr em questão as teorias prontas através do diálogo com as pessoas, aí sim

as teorias podem dizer algo mais do que a propensão à redundância.

Devo, portanto, esclarecer três questões centrais que norteavam o meu

olhar. Primeiro, seriam válidas de alguma forma as formulações de Garcia Jr.

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(1990) a respeito da combinação entre agricultura e negócio no Brejo e Agreste

paraibano para aquela região sertaneja? Segundo, a produção e o comércio de

redes estavam relacionados à organização familiar? Terceiro, essas duas

questões contribuem para entender a organização espacial do comércio de redes?

A predisposição de trazer a família para o centro da análise, ao mesmo

tempo em que os dados etnográficos se impunham a esse respeito, cumpria um

certo papel de instrumento capaz de mediar as minhas questões e as minhas

teorias com essa preocupação de identificar os significados da experiência nativa

daquela economia. Como sugere Lewin, a família e o sistema de parentesco

estabelecem categorias de associação humana, que podem ser definidas por

sangue, casamento ou parentesco fictício e marcam as fronteiras dentro das quais

se realiza o comportamento econômico e político (1979, p.264-265). Assim, a

família poderia indicar algumas pistas a respeito do conhecimento prático

daquelas pessoas, que seria responsável por mobilizar a produção local e o

comércio de redes a tal ponto deste se estender por todas regiões do Brasil e

ainda extrapolar as fronteiras nacionais.

Além disso, a escolha da família está relacionada a uma preocupação

metodológica em evitar hipostasiar a funcionalidade econômica dos arranjos

sociais e das ações dos indivíduos, sobrepondo a eles um ideal de racionalidade

econômica, tal como se existisse um sujeito que pensasse de acordo com o puro

cálculo matemático, dos números que devem se transformar em números maiores,

isto é, de ter por finalidade a pura eficiência técnica e econômica.

Esta perspectiva considera a crítica do economicismo como a crítica de um

sujeito autônomo, porquanto somente a racionalidade de um sujeito autônomo

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pode agir conforme o puro interesse econômico do lucro e pode também pensar a

economia como uma esfera separada e autônoma regida por leis próprias. Só

nesse sentido os interesses dos indivíduos podem ser pensados como puro

interesse econômico, separado da esfera da cultura ou do espírito, que por sua

vez também aparecem autonomizados, e não apenas autonomizados, mas como

algo da ordem do simbólico, do abstrato, do separado de toda materialidade.

Estas proposições de Bourdieu (1972), que se refletem no conceito de

capital simbólico e na crítica do sujeito autônomo inspirada em Weber, não supõe

que as operações econômicas, ou outra ação distintamente qualificada dos

indivíduos localizados socialmente, passem ao largo da lógica e da história

capitalista. Pelo contrário, supõe que estas operações se realizam no marco desta

lógica, mas que não podem ser compreendidas sem apreendermos a forma

particular que lhe dá sentido, trate-se de valores morais, políticos ou familiares,

sob pena de reduzirmos a história a uma teoria abstrata.

Devo destacar que o foco sobre a família tornou-se a principal via de

formulação de questões durante a elaboração dos dados. O termo família ou

parentes será utilizado sem uma preocupação em definir o seu conteúdo, isto é,

se estão referidos à família conjugal, extensa, grupo doméstico, etc. Saliento ainda

que não houve a preocupação, durante as entrevistas, de demarcar relações de

parentesco que não estivessem associadas ao ramo de rede, o que

posteriormente dificultou esta análise.

Um problema se colocou a todo instante: como se definem as fronteiras da

família para os informantes? Ao perguntar a uma pessoa que parentes seus

estavam envolvidos no ramo de rede seria possível que ela enumerasse

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indivíduos que em outro contexto não seriam considerados como tais6, fato que

revelaria a necessidade de um certo cuidado em não fazer das fronteiras

familiares (e comerciais) limites fixos. Outras questões advieram desta principal:

ao considerar uma unidade produtiva e/ou comercial, que princípios incluem ou

excluem membros da família no seu cálculo? Por exemplo, quando um irmão

fornece mercadoria para o outro, há diferença entre este fornecimento e o

fornecimento para um não parente? Que princípios hierarquizam os familiares em

suas relações econômicas?

Essas e outras questões não encontrarão respostas completas aqui. Para

respondê-las teria sido necessário que durante o trabalho de campo estivesse

atenta a dois movimentos distintos, mas que se misturam: um que define as

fronteiras das relações econômicas e outro que define as fronteiras das relações

familiares. A não identidade entre esses movimentos não significa que pudesse

apreendê-los separadamente, e sim que é preciso evitar, por exemplo, tomar um

certo arranjo que visa o funcionamento da tecelagem, como um arranjo que

representa uma fronteira propriamente da família e vice-versa. Mesmo não tendo

procedido assim, é possível aproveitar os dados empíricos para pensar o que

estava em jogo para os informantes no cruzamento das relações entre familiares,

negócio, viagem, tecelagem, etc., conforme se estruturam seus relatos.

Com base nestas reflexões, no primeiro capítulo procuro fazer uma

apresentação das diferentes atividades que compõem o ramo de rede. Este

6 Este tipo de questão, estimulada pela pesquisa de Ana Claudia Marques, ainda que não tivesse sido identificada nos mesmos termos que a autora formulou, contribuiu para uma maior sensibilidade à necessidade de flexibilizar certas informações: “Quando fui visitar a fazenda

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enquadramento pretende familiarizar o leitor com as etapas de produção e de

comercialização, apresentando como se articula através de múltiplas relações a

divisão do trabalho que se reflete no considerável alcance territorial do ramo. No

segundo, exponho a trajetória de nove famílias, analisando uma por uma, como

elas conjugaram diferentes atividades, algumas vezes articulando ramo de rede

com outras atividades comerciais e com agricultura e criação. No último capítulo,

por fim, desenvolvo um debate sobre duas atividades que considerei centrais para

a interpretação das lógicas que ordenavam e definiam as fronteiras da família em

suas relações com o ramo de rede: o negócio e a viagem.

Imburana, não pude deixar de notar como certos indivíduos podiam ser distinguidos como parentes e estranhos ao mesmo tempo” (2002, p.126).

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Entre uma tecelagem com um tear e uma “indústria moderna” existem

tantas “gradações” quantas são (im)possíveis de se imaginar. Além disso, a

confecção de redes-de-dormir, que teve papel preponderante no desenvolvimento

desta atividade, mas que não é o único produto desta “indústria” têxtil, não precisa

apenas dos teares. Há uma série de etapas a serem realizadas antes,

paralelamente e depois da confecção do pano da rede (Figura 1), que é a parte

propriamente tecida pelo tear. Essas diversas etapas constituem uma divisão

técnica e do trabalho que possibilita diferentes inserções de produtores e

diferentes relações entre eles.

Antes de chegar aos teares, os fios primeiro precisam ser desenrolados dos

carretéis. Esta etapa é chamada urdimento, e pode ser feita manualmente pelo

urdidor, que vai formando feixes de fios, chamados cabrestios, em um suporte de

madeira, a urdideira (foto 2). Mas há também a urdideira elétrica (foto 3), que

transmite os fios diretamente para o rolo do tear.

No caso das urdideiras manuais e do uso do fio cru, os cabrestios, em

seguida, passam pelo alvejamento e tingimento, sendo postos para secar no chão

das calçadas ou em varais (foto 4). Essa etapa, no entanto, pode ser suprimida

caso a tecelagem compre os fios já coloridos e utilize as urdideiras elétricas.

A partir daí os fios são tecidos. A estrutura dos teares elétricos (foto 5) ou

dos teares de pau é a mesma: eles são compostos por um rolo, com os cabrestios

enrolados, que fica transmitindo os fios para o corpo do tear. Os pentes do tear

vão cravando sobre a malha que é amarrada pelo movimento da lançadeira. Esta,

por sua vez, parece um pião, rodando de um lado para o outro. Dentro das

lançadeiras ficam as espulas, que são pequenos bastões com fio enrolado.

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Figura 1

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Foto 2

Foto 3

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Foto 4

Foto 5

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O enchimento das espulas, ou seja, quando o fio é enrolado no bastão, é

uma etapa realizada paralelamente e, para isso, existem espuleiras elétricas (foto

6) ou manuais (foto 7). Os fios que vão para essas máquinas passam antes pelas

conicaleiras (foto 8): primeiro eles são dispostos em meadas (feixes semelhantes

aos cabrestios), e, depois, encaixados nas conicaleiras que irão transmití-los aos

tubos. São estes últimos que fornecerão fios às espuleiras e máquinas de

trancelim (foto 9). O trancelim está presente na etapa de acabamento das redes:

são aqueles cordões torcidos que ligam o punho ao pano da rede.

Prontos o pano e o trancelim, chega-se à etapa de acabamentos que é

apelidada de aprontar. Com as pontas dos fios do pano da rede é feita uma

trança, onde será enganchado o cordão do trancelim ou, como se diz, passar o

ponto. O trancelim é reforçado pela mamucaba, que atrela as voltas do cordão.

Para fazer a mamucaba usa-se um pequeno suporte de madeira, onde se amarra

os fios e, na outra ponta dos fios, ficam amarrados bastões, a partir dos quais se

faz a trama da mamucaba. Na ponta do trancelim oposta ao pano é colocado o

punho, chama-se empunhar. Todos esses acabamentos são feitos nas

extremidades mais estreitas do pano da rede. Ao longo do pano, pode-se fazer

um efeito simples de desfiado, ou as varandas, que variam de complexidade. As

varandas “trabalhadas” são confeccionadas apenas nas redes chamadas

luxuosas, que são as redes mais caras. No pano da rede de dormir algumas

vezes também são feitos bordados ou estampas. Atualmente existem varandas

confeccionadas em máquinas, nas tecelagens maiores, mas elas são costuradas

ao pano manualmente.

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Foto 6

Foto 7

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Foto 8

Foto 9

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Como se vê, a confecção das redes de dormir demanda uma série de

outras máquinas7, como urdideiras, espuleiras, conicaleiras e máquinas de

trancelim, elétricas ou manuais. Uma pequena tecelagem pode contar com teares

elétricos, porém realizar o processo de urdir manualmente. Um dono de

tecelagem, por exemplo, pode comprar cordões de trancelim na feira de São

Bento – a Feira da Pedra – ou, como dizem, terceirizar esta etapa em outra

tecelagem. O dono desta outra tecelagem, por sua vez, além de ter as máquinas

que garantem a confecção integral do pano de rede e do trancelim para as suas

próprias redes, realiza serviços parciais como encher as espulas e fazer os

trancelins para outros produtores. Além disso, ele leva as suas redes para as

mulheres dos sítios aprontarem, isto é, fazer os acabamentos. Daí já se pode

começar a visualizar a quantidade de combinações e associações entre os

produtores, isto sem ressaltar as etapas de acabamentos, como fazer a

mamucaba, empunhar e fazer a varanda.

Os donos das tecelagens maiores estão inseridos neste ramo em diversas

frentes. Eles podem ser adicionalmente fornecedores de fios ou fornecedores de

máquinas. Os fios são fornecidos tanto pela compra, quanto pela troca, que é um

tipo de relação bastante comum no local. Ela compreende a troca de certa

porcentagem de fios por outra de panos ou redes prontas. Por exemplo, a cada

dez redes tecidas pelo dono de uma outra tecelagem, o fornecedor de fios fica

com seis redes e o dono da tecelagem pequena com quatro. As máquinas podem

ser vendidas, arrendadas ou terceirizadas. O arrendamento se refere

7 A maioria dos teares e dessas outras máquinas é comprada como sucata da indústria têxtil paulista, principalmente na cidade de Americana, e depois adaptada para a produção de redes.

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simplesmente ao aluguel e a “terceirização” acontece quando são fornecidos os

fios juntamente com os teares e o pagamento feito pela troca de panos.

As tecelagens maiores contam com todas aquelas máquinas: teares,

urdideiras elétricas, máquinas de trancelim, espuleiras, conicaleiras, além de

máquinas de renda para fazer as varandas.

A participação da família acontece tanto nas grandes quanto nas pequenas

tecelagens. Nas pequenas, a família trabalha diretamente com as máquinas,

combinando ou não o trabalho de seus membros com o de funcionários. Quanto

ao trabalho dos funcionários, o efetivamente especializado é o tecelão, ou melhor,

o que trabalha de tecer para os outros, que é o modo como se referem para

diferenciar o trabalhador que tece na sua própria tecelagem. Em menor proporção,

é comum os homens se especializarem também como urdidores.

As mulheres que trabalham nas tecelagens são operadoras de conicaleiras,

máquinas de trancelim, fazem as estampas, costuras, entre outros. Elas podem

até trabalhar como urdideiras, o que parece ser raro, mas não se vê mulheres

trabalhando de tecer para os outros. Porém, quando se trata de tecelagem que só

conte com trabalho familiar, elas fazem de tudo um pouco, até mesmo operar o

tear, se o casal não tiver filhos homens adultos trabalhando na unidade produtiva.

As pequenas tecelagens têm de um a oito teares, enquanto as grandes

chegam a ter noventa teares, aproximadamente. Existem casos de pequenas

tecelagens onde só trabalham o dono e funcionários. Os funcionários que

trabalham de tecer geralmente ganham por produção, tanto nas pequenas quanto

nas maiores. Isso pode valer também para o urdidor ou para os operadores das

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outras máquinas, no entanto, é comum se encontrar o diarista, que exceto para o

trabalho de tecer, faz qualquer tarefa que seja necessária.

As pequenas tecelagens muitas vezes não possuem todas aquelas

máquinas, então, trocam-se ou compram-se as espulas e trancelins. Além disso,

geralmente a própria família faz os acabamentos com a ajuda dos filhos

pequenos: “Já sabe passar o ponto, já tá trabalhando”. Existem ainda pequenas

tecelagens onde se têm apenas máquinas de trancelim e se troca trancelim por

pano e trancelim pelos acabamentos.

Entre os que aprontam, a maioria destes trabalhadores são mulheres, mas

acontece igualmente de toda a família aprontar. Os homens empunham, as

mulheres e filhos passam ponto, fazem bainhas, mamucabas, varandas ou franjas.

Às vezes o trancelim é confeccionado manualmente, às vezes comprado na feira,

às vezes fazem parte da troca do pano.

O pessoal que apronta pode fazer isso pela troca com os donos de

tecelagens, ou compram pano e aprontam. No primeiro caso, eles vão vender sua

parte da troca na Feira da Pedra, já os que compram o pano, podem fazê-lo tanto

na feira ou diretamente na tecelagem, e igualmente depois vão vender na feira.

O fato que se destaca sobre esta etapa da produção é a ampla participação

das pessoas. A tal ponto que se pode entrar numa casa onde já se teria dito que

ninguém da família trabalha com rede, mas naquele dia você surpreende uma

mulher fazendo franja. “Um servicinho”. Pode ser por uns trocados, mas pode ser

apenas para ajudar alguém, por um favor.

As pequenas tecelagens e o pessoal que apronta também estão presentes

nos Sítios. Um dos Sítios que visitei fica na divisa dos municípios de Jardim de

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Piranhas e São Bento. No único sítio onde se tinha agricultura e criação, o

proprietário era sogro do dono da maior tecelagem do local, com seis teares. Mas

havia três outros produtores. As casas eram próximas umas às outras e todos os

seus habitantes estavam envolvidos com a produção ou comércio de redes:

aprontando, fazendo frete, vendendo no Maranhão, levando para a feira.

A venda para outros estados não é privilégio dos donos de tecelagens

maiores, ela é chamada de viagem: “eu viajo para Natal toda sexta-feira”. Alguns

apenas vão e voltam na mesma semana, outros chegam a passar meses. Entre os

pequenos, há aqueles que tem um carro – uma F10 ou D20 – outros pagam o

frete do caminhão ou de uma veraneio (quando a viagem é para uma cidade mais

próxima). Existem donos de tecelagens, pequenas ou grandes, que chegam a

alugar uma casa para servir de depósito, o ponto. Outros ainda, aproveitam casas

ou estabelecimentos comerciais de parentes que migraram para outros estados

para servir de depósito. A viagem pode ser feita pelo dono e/ou por seu filho.

Quando não se viaja, vende-se para clientes, que são parentes e conterrâneos

migrantes, principalmente nas cidades do Maranhão, Pará e Ceará.

Os donos de tecelagens maiores dispõem de caminhões e tanto fornecem

mercadorias em grosso para compradores de outros estados, quanto podem

vender através de vendedores ambulantes.

Há ainda outras formas de se inserir no ramo da rede. Uma pessoa pode

ser apenas um fornecedor de fios e ter um depósito em São Bento, Jardim, etc.

vendendo para outras cidades. Pode ser um dono de carro e fazer frete ou

recrutar uma turma de corretores. A turma é um grupo de vendedores ambulantes,

recrutados pelo encarregado – geralmente o motorista do caminhão – ou pelo

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próprio dono do carro. Diz-se que atualmente as turmas estão menores, pode ter

apenas cinco vendedores, mas antigamente chegavam a contar trinta homens.

O encarregado é um indivíduo presente, sobretudo, quando o dono do carro

é proprietário de uma frota de caminhões e/ou é dono também de tecelagem. Já

os corretores – os vendedores ambulantes – recebem um vale, um empréstimo

que pode variar de mil a dez mil reais, a ser pago com a venda das redes e

mantas. O encarregado, além de recrutar e controlar os redeiros, geralmente é

responsável pela compra de mercadorias na Feira da Pedra. Assim, através do

encarregado, donos de tecelagens maiores e donos de carros compram produtos

de tecelagens pequenas e do pessoal que apronta.

Esta modalidade de venda também é chamada de viagem. Algumas são

feitas apenas nas Mercedes: os corretores viajam no caminhão junto com as redes

e mantas e não se fixam em nenhum lugar, acampando em postos da estrada,

que servem como ponto de encontro, onde eles organizam os almoços e amarram

suas redes à noite.

Existe uma certa tendência à especialização, ou seja, o proprietário do

caminhão prefere que as viagens se direcionem sempre para determinado estado

ou região, mas quando se pergunta a algum redeiro, seja corretor, encarregado,

dono de carro, ele provavelmente dirá que já conheceu todos os cantos do Brasil.

Alguns desses donos de carro que tem turma se tornaram donos de

depósitos, isto é, resolveram se fixar em algum ponto, numa cidade de outro

estado. Como donos de depósitos, eles podem continuar com a turma ou resolver

vender somente em grosso para lojas e outros vendedores. Esses depósitos são

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casas onde ficam instalados durante a viagem, ou onde passam a morar junto

com suas famílias, com as mercadorias e até mesmo com a turma de corretores.

Além desses, existem os vendedores por conta e os que vendem no carro

boca de ferro. Ambos são ex-corretores, em sua maioria, que preferiram passar a

trabalhar por conta própria. Eles se juntam com um grupo de conterrâneos ou

parentes para alugar uma casa. Os que conseguem comprar um carro, colocam

um alto-falante para anunciar as mercadorias e vão circulando pelos bairros, por

isso, o termo boca de ferro. Essas vendas de porta em porta também são feitas no

crediário, quando o vendedor passa a freqüentar algum bairro, voltando a cada

mês para receber o pagamento das prestações em que o valor da mercadoria foi

dividido.

Os vendedores por conta ou os corretores, mesmo alugando uma casa

numa cidade ou alojado em um depósito, costumam circular pelas cidades

vizinhas e, quando casados, voltam para casa de três a quatro meses. Já os

solteiros chegam a ficar três anos seguidos sem voltar para casa. Em alguns

casos, os redeiros casados trazem suas esposas na viagem, geralmente alugando

uma casa só para o casal e os filhos. Mas se a casa onde estava antes só tinha

pessoas da família, eles aí permanecem.

A maioria dessas modalidades de vendedores foi pesquisada no Rio de

Janeiro, mas durante o campo na Paraíba e Rio Grande do Norte, também

encontrava os redeiros. No início, pensei que o termo redeiro designasse apenas

o vendedor ambulante, mas depois constatei um uso mais abrangente que se

referiria a todos que participam das viagens, isto é, aqueles que vão vender em

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outros estados do Brasil e até em outros países, independente do modo particular

como está inserido no ramo.

As formas comuns de vendas a varejo e a pé, verificadas no Rio de Janeiro,

além da famosa venda de redes nos ombros pelas praias, predominantemente

feita pelos corretores, são hoje as vendas em lona no chão, como os camelôs, ou

com as mercadorias empilhadas em carrinhos para fac

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Uma característica do ramo de rede é que em grande parte ele depende de

relações de crédito. A própria troca é uma constatação disso: não se paga em

dinheiro pelos fios, o pagamento dos fios é feito em produtos prontos. Ou, por

outro lado, não se paga em dinheiro pelo trabalho, divide-se o resultado da

produção.

Os donos de tecelagens vendem seus produtos para donos de depósitos e

lojistas através de cheques pré-datados. Os vendedores por conta pegam, em

consignação, as redes nos depósitos. O pessoal que compra pano e apronta,

pega o pano em um dia e paga na semana seguinte, na feira ou na tecelagem.

Existem pessoas na Feira da Pedra que compram fiado dos feirantes conhecidos

para depois vender fiado aos encarregados, ou outros comerciantes que lhes

sejam conhecidos também, mas que não são conhecidos dos produtores, por isso

não conseguiriam, eles próprios, comprar fiado diretamente com os produtores.

Até mesmo os vales dos corretores são pagos em cheques pré-datados e

eles investem esses cheques no financiamento de motos ou de carros usados. Um

dia estava na fábrica de Leandro e Alba e, enquanto eu e ela conversávamos

numa sala, foram entrando corretores:

Após conversarem alguma coisa que me escapou, pois se tratava de um

papo iniciado em outro momento, ela vira para mim e diz: “Esse pessoal chega e

já fica querendo comprar uma moto”. Creio que o verbo “chegar” não tivesse

naquele contexto o significado de “entrar na sala”, mas de “chegar em São Bento

depois de uma viagem”, porque entendi algumas frases como: “mas você não

passou nem um mês aqui!”, ou seja, o rapaz mal havia chegado, já queria fazer

outra viagem e conseguir outro vale.

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Pouco depois, ela foi entregando cheques pré-datados para 30, 60 e 90

dias, somando o valor de R$3.500,00, R$ 4.000,00 e para um dos corretores os

cheques totalizavam uma quantia de R$ 8.350,00. Era um momento de

negociação. Um dos corretores fez Alba ligar para a concessionária da Honda,

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O agiota pode servir para capitalizar um dono de carro que quer investir em

viajar com a turma, porque nem sempre os corretores aceitam o vale em cheque.

Os comerciantes do ramo de rede, principalmente os mais ricos, estão

constantemente contabilizando seus credores e seus devedores. Dão um cheque

de mil reais para o próximo mês a um corretor, e tentam prever quando o

investimento dos corretores começará a retornar: “um investimento que só começa

a retornar em 60 dias”, cálculo feito por Alba, preocupada em ter que investir

duzentos mil reais na viagem, e, ao mesmo tempo, preocupada em “segurar

corretor bom”, que é o outro elo desta cadeia de cheques a inserir dinheiro, além

do agiota. Afinal, é o corretor o principal protagonista deste ramo a desbravar os

mercados para as redes e a vender à vista ao consumidor final.

A Feira da Pedra

A Feira da Pedra (Fotos 10 e 11), em São Bento, é um evento especial para se

observar as diversas possibilidades de cruzamentos entre essas categorias. Ela

congrega diferentes tipos de produtores, de donos de tecelagens ao pessoal que

apronta, passando pelas suas variações. Aí também se pode observar como cada

produtor/comerciante lança mão de estratégias diferencialmente combinadas.

Nem todos estão presentes enquanto feirantes, estes são principalmente os

produtores menores. Há, por exemplo, compradores – os encarregados – que

representam a forma de participação dos setores mais capitalizados do ramo das

redes, como donos de carro, donos de tecelagens maiores e donos de depósitos.

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Foto 10

Foto 11

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A venda de redes e “derivados” não é a única função da feira que acontece

todas as segundas. A Feira da Pedra é apenas uma parte de uma feira maior, de

frutas, legumes, verduras, cereais; mangaios; roupas e calçados; cada um dos

setores praticamente ocupando uma rua distinta. O setor de redes e “derivados”

não apenas expõe as redes de dormir, como as suas partes: panos de redes,

varandas, cordões de trancelim. A Feira da Pedra ocupa a avenida mais central de

comércio na cidade e é certamente a que atrai o maior número de pessoas de

fora. No fim desta avenida, ou nas ruas perpendiculares a ela, observam-se

muitas mercedinhas, veraneios, F10, D20, algumas que estão lá apenas para

buscar mercadorias – neste caso, as mercedinhas, já com a lona por cima,

preparando-se para a viagem – enquanto os outros carros costumam ir e voltar

com pessoas e mercadorias. Além disso, no entorno desta avenida, também

existem pontos de mototaxi e de veraneios que carregam passageiros para

Paulista, Patos, Catolé, Brejo, Jardim e Caicó.

Não existe nenhum tipo de ordem instituída na Feira da Pedra e, por isso,

uma certa organização espontânea que observei não pode ser considerada

absoluta. Mas o fato é que os feirantes se organizam para irem juntos, assim,

forma-se uma configuração espacial em que se vê grupos de Jardim, mais ou

menos separados dos grupos de Brejo, São Bento, de alguns Sítios e daí por

diante. Esses grupos são formados por amigos e parentes que muitas vezes não

vendem os mesmos tipos de mercadorias. Misturam-se, assim, pilhas de redes

com mantas, toalhas, panos de prato, isto é, não há um lugar separado para cada

tipo de produto. Acontece, entretanto, de se formar uma seqüência de pilhas de

redes que pertencem a diferentes feirantes, levando-os a diferenciarem suas

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mercadorias através de pequenas marcas10, ou pela estampa, ou pela trama.

Esse tipo de organização favorece o rodízio entre os vendedores para

tomar conta dos produtos, pois as pilhas ficam (ou não) sobre uma lona no chão,

não havendo barracas para exposição – senão para as mulheres que vendem

jogos de cama e mesa – o que torna o tempo despendido na Feira, debaixo do sol,

muito esgotante. Freqüentemente, um grupo sai para comer, beber ou

simplesmente descansar um pouco na sombra, enquanto alguém toma conta das

pilhas.

Em dois dias de campo pela feira, conversei com 30 feirantes, encontrando

as mais diversas situações, a ponto de ser difícil categorizá-las. Onze vivem na

cidade de São Bento, quatro em Sítios do município; oito na sede de Jardim de

Piranhas; quatro na sede municipal de Brejo do Cruz e dois em Sítios do

município; e um na cidade de Catolé do Rocha.

Um primeiro aspecto importante de se analisar é que os feirantes estão ali

vendendo seus próprios produtos e/ou não. Isso no caso de produzirem redes de

algum modo. Podem estar ali só para vender, ou para vender e comprar ao

mesmo tempo.

Foram entrevistados dez donos de tecelagem, todas elas pequenas, de um

a seis teares. Aliás, é comum se ouvir que “só o pequeno vende na feira”. Foram

nove homens e uma mulher, dentre eles, três comentaram que a tecelagem

funciona só com o trabalho da família, em seis tecelagens combina-se o trabalho

10 Seu Nelson Pedreira, por exemplo, deixava alguns fios “puxados”, misturados na “franja” de acabamento do “pano da rede”.

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da família com o de funcionários, e, em uma tecelagem apenas, trabalham o dono

e funcionários, fato que se explica, em parte, pela ausência de filhos homens em

sua família.

Seu Nelson Pedreira era o dono desta tecelagem, com apenas dois teares,

e que teria somente funcionários trabalhando com ele, dois tecelões e um diarista.

Ele só troca as mamucabas, o restante dos acabamentos é feito na própria

tecelagem, pagando por serviço para sete mulheres. Sua trajetória é a de um ex-

morador de fazenda, que foi para São Bento trabalhar de tecer para os outros.

Assim trabalhou por dez anos e, depois, com o fundo de garantia, comprou dois

teares. “No início, tinha que trabalhar sozinho, mas quando comecei a ganhar um

pouquinho mais, passei a pagar trabalhador”. Disse ainda que, depois de ter

contratado os funcionários para a tecelagem, pôde viajar, ou seja, toda sexta-feira

ele vai para Natal vender as redes no ombro, voltando somente na segunda. Ele

toma uma veraneio, pagando R$ 0,50 pelo frete. Outra viagem que costuma fazer

é para Santarém, onde tem uma irmã morando, mas só vai para lá “quando o

estoque fica cheio”, passando de um a dois meses.

Nelson Pedreira foi o único a dizer que faz viagens, entre os donos das

pequenas tecelagens, entretanto, três outros feirantes mencionaram vender para

clientes situados em outros estados. Quem vende para fora também costuma

comprar de outros produtores. A clientela de Josimar, por exemplo, fica em

Mossoró. O pai dele era dono de uma tecelagem em São Bento e foi morar lá,

onde ainda tentou manter a tecelagem, mas por pouco tempo. Depois passou

apenas a vender, comprando as mercadorias com outros produtores de São Bento

e levando também as redes produzidas pelo filho.

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A única mulher entrevistada, entre os feirantes que vendiam os produtos de

sua tecelagem, foi Ivelise. Ela e o marido possuem uma tecelagem com dois

teares. Mas, além da tecelagem, eles têm um trailer de lanchonete, onde um filho

de vinte anos trabalha com eles.

Mariano estava na feira para vender a produção da tecelagem que

atualmente é administrada por dois de seus filhos. Ele não estava no meio da

feira, onde ficam os feirantes. Encostava-se na D20, que disse ser sua e dos

filhos, cuja caçamba tinha uma série de pilhas de redes e mantas. Não estava ali

apenas para vender a produção da tecelagem – “nem todo mundo que chega aqui

consegue comprar fiado, mas como a gente é conhecido, pode fazer negócio” –

estava também para intermediar outras compras e vendas. Disse ainda ter clientes

no Ceará, onde moram quatro filhos e um irmão. Um desses filhos adquiriu uma

propriedade no município de Jardim de Piranhas e quem cuida do sítio é seu

Mariano, que apesar de morar na rua, vai para o sítio todos os dias.

Dois entrevistados disseram estar na feira para vender a produção da

tecelagem de parentes. Expedito, por exemplo, disse que a tecelagem é do

cunhado e que sua esposa também trabalha lá. Já Roberto Carlos vende a

produção do seu primo não apenas na Feira, como também em Cruz das Almas e

em Juazeiro do Norte.

Dos feirantes entrevistados que vendiam as redes aprontadas por eles e/ou

por membros de sua família, havia seis homens e seis mulheres. Dentre eles,

quatro homens e quatro mulheres aprontavam pela troca, dois homens e duas

mulheres compravam o pano. Outro dado interessante estava no fato de que em

quatro dessas famílias, os maridos eram corretores. Alguns deles estavam na feira

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em casais, mas conversei somente com o casal Ciene e Lindomar. Eles vivem em

um Sítio de Brejo do Cruz, onde Lindomar planta o roçado à meia.

Francisco e Mané estavam juntos na feira. A esposa de Francisco é irmã de

Mané. Francisco é corretor e disse ainda que compra pano e apronta com a

esposa, além de trocar pano por rede pronta com o cunhado Mané. Eles vivem em

um Sítio de São Bento, onde Mané já trabalhou no alugado.

Geová também compra pano para aprontar com a esposa. Ele tem um

carro boca de ferro e viaja para Natal e Mossoró todo início do mês.

Um último tipo de produtor encontrado na feira foi Auxiliadora. Ela e o

marido têm uma máquina de trancelim, trocando assim os cordões de trancelim

por panos e acabamentos. Auxiliadora estava lá para vender as redes prontas da

parte de sua família da troca.

Três homens entrevistados na feira tinham o mesmo perfil: eles são donos

de sítios, trabalham no roçado, e não estão envolvidos com a produção de redes.

Levam a produção do pessoal que apronta no Sítio para vender na Feira da

Pedra. Um deles disse ter um carro.

Ilda, de Catolé do Rocha, vendia varandas feitas à mão. De algodão ou de

linha Cléia, coloridas ou de fio cru, em grades ou rendadas. Ela fornece os fios às

artesãs e paga por produção, depois vem vender na feira.

Quando estava atenta aos compradores foi que conheci seu Mariano e um

outro caso bem semelhante a ele. Jackson também estava encostado na D20, que

igualmente ficava no final da avenida central que a feira ocupa. Enquanto tomava

conta do carro, o pai negociava no interior da Feira. Eles têm um depósito em São

Bento. Jackson explicou o negócio: “nem todo mundo tem dinheiro para comprar à

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vista na feira, então meu pai compra pra revender no crediário”. As compras e

vendas poderiam ser feitas ali mesmo, com os encarregados ou donos de carro,

que vão vender com a turma de corretores; ou no depósito, por telefone, para os

clientes de fora, para os quais ele vende fretando um caminhão.

Tabela 1

Levantamento das situações encontradas na feira Homens Mulheres

Trabalho Familiar 2 1 Trabalho Familiar + Funcionários 6 -

Dono + Funcionários 1 -

Tecelagens

Total 9 1 Total 6 6

Compra e Apronta 2 2 Acabamentos

Troca 4 4 Vendendo para a tecelagem de parentes 2 -

Máquina de Trancelim - 1 Vendendo varandas - 1

Comprando (fiado) 2 - Viagem 2 -

Clientes em outros estados 3 - Sítio e tecelagem 1 -

Sítio e acabamentos 1 1 Sítio e vendas na feira 3 -

A apresentação da feira pretendia trazer à tona os entrelaçamentos das

atividades, ilustrando-a ainda como um espaço onde são revigorados os

significados da participação de cada um. É onde se concentra e onde se expõe as

diversas formas em que os participantes do ramo de rede representam o

conhecimento que acumulam sobre as técnicas de produção, o modo como

atribuem valor ao trabalho e aos objetos produzidos e como distribuem e

combinam as relações entre as pessoas.

No espaço da Feira da Pedra são saldadas dívidas e contraídas outras,

conhecidos se reconhecem, preços são comparados, cálculos são refeitos, é onde

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donos de carro podem sondar o “investimento” dos concorrentes. É também um

momento em que o pesquisador pode visualizar o alcance territorial do ramo de

rede, desde o encontro com os feirantes oriundos de diferentes municípios da

região, aos carros que se preparam para a viagem aos outros estados ou até

países. Por fim, é uma circunstância privilegiada para tentar reconstruir as

categorias nativas porque em um mesmo evento as pessoas se posicionam, em

suas falas, umas em relação às outras, pondo em evidência o modo como

representam essas diferenças.

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Capítulo 2 – As famílias do ramo de rede

No primeiro capítulo procurei fazer uma apresentação das principais

atividades que constituem o ramo de redes. Em muitos momentos chamei atenção

para as diversas combinações possíveis entre produtores e como um mesmo

produtor pode assumir posições distintas no ramo. Por exemplo, donos de

tecelagens que são fornecedores de fios e ao mesmo tempo donos de carros que

viajam com turma. Cada uma dessas posições pode representar indivíduos

diferentes ou um mesmo indivíduo. Para facilitar a compreensão, sem

pre que me referir a essas “atividades” utilizarei o termo “posição” seja para falar

do dono da tecelagem, do dono de carro, do pessoal que apronta, daqueles que

viajam, etc.,enfim, dos diferentes modos de se inserir no ramo de redes.

As estratégias que possibilitam um indivíduo incorporar essas diferentes

posições não são construídas de maneira isolada, ou melhor, ele necessita dispor,

antes, de associações. E o principal meio de associação de que ele dispõe é a

família. Assim, uma família, para diversificar a participação de sua unidade

produtiva e/ou de seu comércio no ramo de rede pode distribuir as diferentes

posições entre seus membros.

Este capítulo pretende apresentar alguns exemplos ou trajetórias de

famílias para tentar analisar como cada uma articulou estas posições, seja num

movimento de expansão mais horizontal, havendo um aumento das unidades

produtivas/comerciais, seja para que alguns membros possam acumular essas

posições, ou, o que é mais comum, que os dois movimentos possam acontecer

simultaneamente. Um outro objetivo desta análise é reconhecer as íntimas

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associações entre as posições, a articulação destas entre os familiares e o

alcance territorial das unidades produtivas e/ou comerciais.

A seleção das famílias que serão apresentadas não obedeceu exatamente

a uma preocupação de apresentar os casos mais ilustrativos de cada tipo de

situação, como, por exemplo, o caso mais ilustrativo das famílias que combinam o

comércio de redes com o sítio. Talvez em algum momento mais adiante da

pesquisa seja possível identificar certos padrões nas combinações, mas o que

exponho aqui abarca simplesmente as informações que melhor pude elaborar a

respeito do que as pessoas disseram sobre o cruzamento das relações familiares

com a produção e o comércio de redes.

Zé do Crediário (Caicó - RN)11

Zé do Crediário e Dona Francisca, sua esposa, foram moradores de

fazenda. Nesta fazenda, Dona Francisca chegou a trabalhar de “fiar” – transformar

o algodão em fios – e vendia os fios para o Sítio Oliveira, onde se produzia rede.

Logo que casaram, Zé foi para São Paulo, juntou dinheiro, voltou e comprou um

sítio. Viveram de agricultura e negócio.

“Meu marido sempre foi bom negociante. Negociava com frutas e era

marchante12. Quando o negócio já estava bom, ele disse: ‘Agora tenho condições

de levar vocês para a rua’”. E, em Caicó, passou a ser negociante de roupa de

cama e de mesa no crediário. Por este motivo, D. Francisca confirmou, o marido

ficou famoso como Zé do Crediário.

Com os recursos deste negócio, Zé montou a tecelagem. No início vendia

os produtos da tecelagem no crediário somente em Caicó, porém, há dez anos

11 As localidades que aparecem entre parênteses referem-se aos lugares onde obtive as informações que apresento em cada tópico. 12 Vendedor de carne na feira.

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começou a viajar. No momento de minha visita, ele estava na Bahia. “Meu pai vive

mais no meio de mundo do que em casa” disse Gegê, um de seus filhos.

Segundo Gegê, lá ele vende principalmente para os donos de crediário e se

instala num ponto alugado. Gegê se apressou em dizer o problema desse

negócio: “os donos pagam as redes só com cheque. A tecelagem já ficou um ano

parada porque meu pai começou a ter cheque devolvido. Mas ele é teimoso,

continuou trabalhando”.

Gegê tem mais três irmãos e duas irmãs. O mais velho deles é dono uma

tecelagem própria, separada. “Ele é esperto” – disse Gegê num tom de crítica,

contando que antigamente todos trabalhavam juntos, mas que “não deu certo

porque ele é esperto”. Inicialmente, as viagens eram feitas somente pelo pai, que

passou a alugar uma casa na Bahia. Depois, um dos irmãos de Gegê começou a

viajar para São Paulo, onde mora um tio, irmão de Zé, que cede um espaço de

sua casa para servir de depósito. O tio é dono de um bar.

Segundo Gegê, o irmão que vai para São Paulo é sócio do pai, enquanto

ele mesmo apenas trabalha na tecelagem, o que significa que ele ganha um

salário como os outros funcionários. Atualmente, o terceiro irmão, que até então

ficava responsável pela tecelagem, também viaja para São Paulo, mas não é

sócio. A partir daí, Gegê ficou responsável por esta tarefa de administrar a

pequena fábrica. “Mas não sei fazer isso não, não sei se vai dar certo. Porque

quando atrasa o dinheiro e eu não tenho como pagar o trabalhador, tem que ouvir

muita reclamação... Eu prefiro ficar trabalhando só de tecer mesmo, é difícil lidar

com as pessoas, cada um pensa de um jeito...”.

Perguntei, então, por que os outros irmãos viajam, se ele, Gegê, não gosta

de ficar tomando conta da tecelagem. “Quando não dá certo num lugar, tem o

outro pra compensar. O negócio dá mais dinheiro no crediário. Uma rede que

custa R$8,00, aqui se vende no máximo por R$9,00, mas lá, à vista é R$15,00 e

no crediário pode ganhar até R$40,00. Só que a venda no crediário dá muito

cheque devolvido”.

Quanto às mulheres da família, D. Francisca é dona de casa e,

antigamente, fazia bordados “pra mim mesma, pra comprar minhas coisas, ou

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alguma coisinha pra casa”. Uma das filhas é nova ainda – tem onze anos – e só

estuda, a outra apronta rede (da tecelagem do pai), recebendo por produção. A

esposa de Gegê trabalha para uma bonelaria e o casal não mora na casa do pai,

na qual fica acoplada a tecelagem.

Ainda a respeito da tecelagem, ela conta com 6 teares, 8 funcionários e

funciona das 6h da manhã até às 17h30. Os tecelões recebem R$ 0,70 por cada

pano tecido e os outros, de acordo com o tipo de trabalho que é preciso fazer em

cada período. Um deles está viajando com Zé do Crediário.

A trajetória da família de Zé do Crediário tem um início bastante semelhante

ao contexto retratado por Garcia Jr. (1990) sobre os agricultores negociantes:

inicialmente ele e a esposa são moradores de fazenda, Zé vai trabalhar no Sul,

estratégia que lhe permitiu juntar dinheiro para usufruir a condição de liberto, que

seria vivida ao retornar, comprar um sítio e negociar com frutas e carne na feira.

“O Sul é hoje o caminho do roçado” (p.154), formulação nativa encontrada por

Garcia Jr. e que tem peso especial para os rapazes que estão para formar a

família ou que acabam de formá-la, afinal, ter a própria terra é um elemento

central para aquele que se reconhece como pai de família, pois preserva o

trabalho de sua esposa e dos filhos da dominação do fazendeiro.

Garcia Jr. também observou, em sua pesquisa, que era comum alguns

desses agricultores prosperarem e passarem a viver só do negócio, bem como o

negócio se desdobrar em alguma manufatura como casas de farinha a motor,

fabricação de tijolos, ou mesmo que fosse combinado com atividades artesanais

em barro, palha ou madeira.

O negócio e agricultura combinado com a manufatura, pelo visto, também é

comum nesta região do Sertão. Aliás, não é fortuito que, aqui, a tecelagem seja

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esta manufatura. O município de Caicó, no Rio Grande do Norte, situa-se na

região do Seridó, que inclusive deu nome ao tipo de algodão cultivado

localmente13. Na própria trajetória do casal esta história ficou impressa: D.

Francisca chegou a trabalhar de fiar na fazenda que produzia algodão. Depois os

fios eram vendidos para o sítio Oliveira, onde as redes eram produzidas.

Outra situação que remete ao mesmo contexto da pesquisa de Garcia Jr. é

o fato de Dona Francisca ter se referido aos bordados “para fora” como algo que

não está inserido nos cálculos da tecelagem ou da família como um todo, pois o

que ganhava com isso era “pra mim mesma, pra comprar minhas coisas, ou

alguma coisinha pra casa”. Esta expressão lembrou o sistema de oposição casa-

roçado: o roçado seria a esfera de realização do grupo doméstico como unidade

de produção e estaria sob comando do pai, chefe de família e a casa seria a

realização da unidade de consumo, sendo a esfera de responsabilidade da mãe.

No caso em questão, a tecelagem passaria a equivaler ao roçado e os bordados,

o roçadinho ou a criação de miunças14 ou bichos da casa, que costuma ficar a

cargo da mãe ou das filhas, e cujo destino é por elas mesmas decidido, sendo

geralmente utilizado para compra de objetos pessoais, roupas para a família e

utensílios para a casa.

Conforme argumentado por Heredia (1979), ocupando-se também dos

pequenos produtores no Nordeste, o que esta proposição vai indicar é toda uma

hierarquia e distribuição das tarefas e do tempo de trabalho que revelam uma

diferenciação individual do que é produzido e consumido, distinguindo as tarefas

13 A produção de algodão não é mais comum na região desde que o bicudo infestou as plantações na década de 1980.

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que devem ser executadas pelas mulheres, daquelas realizadas pelos homens, e

ainda a das crianças, por mais que continue sendo válido o princípio de que o

esforço está voltado para a reprodução da família como um todo.

O relato de Gegê, neste sentido, evidenciou as relações familiares que se

sobressaem quando se trata do funcionamento da tecelagem e de todos os

rearranjos entre pai e filhos que foram necessários para garantir a combinação

entre tecelagem e viagem.

Para que Zé pudesse viajar à Bahia, o que significa uma possibilidade de

ganho maior no negócio, era necessário que alguém tomasse conta da tecelagem,

ou que algum de seus filhos estivesse em condições de administrá-la. Verifica-se,

nesse momento, uma transferência de papéis no ordenamento familiar da

tecelagem permitindo Zé ocupar, no ramo de rede, a posição de dono de

tecelagem que viaja.

De acordo com o relato de Gegê, os prejuízos dos cheques devolvidos

provocaram um segundo reordenamento, fato bem significativo: um dos filhos

também deveria ser disponibilizado para a viagem, enquanto um outro ficaria

administrando e o terceiro (Gegê) trabalhando de tecer. Até que a viagem se torna

atividade central daquela “unidade de produção e comércio”: Zé, dois de seus

filhos e um funcionário viajando, enquanto somente um dos filhos, aparentemente

a contragosto, ficaria administrando, ou seja, há aí um terceiro reordenamento.

Todos esses rearranjos promoveram uma articulação espacialmente ampla

da família no ramo de rede e o negócio passa a poder transitar entre Caicó, a

Bahia e São Paulo. Neste movimento, o irmão de Zé é incorporado indiretamente

14 Cabra, ovelha, aves, etc.

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no negócio, quando sua casa em São Paulo passa a ser um outro ponto. Será

essa uma estratégia que tanto garante a extensão da viagem, quanto mantém os

laços familiares, as fronteiras da família a despeito da não contigüidade de seus

espaços15? Uma tal questão tem por fundamento que as categorias de parentesco

não são dados “naturais”, evidentes, que falam por si só, mas que é necessário

desvelar outras mediações responsáveis por revigorar os vínculos familiares, isto

é, um irmão pode ser identificado como um irmão porque nasceu dos mesmos

pais, mas isso não necessariamente diz alguma coisa sobre a identidade, o

pertencimento ou a inclusão de alguém numa mesma fronteira.

Enquanto o irmão de Zé, tio de Gegê, passa a ter seu vínculo com a família

reforçado, sendo inserido na fronteira que reúne a tecelagem e o negócio segundo

as formulações de Gegê, um dos irmãos de Gegê aparece excluído desta

fronteira, ao ser proprietário de uma outra tecelagem.

Entre os irmãos de Gegê inseridos nesta fronteira da tecelagem e do

negócio, neste modo de representar a família, como unidade de produção e

consumo, forma-se uma hierarquia, pois um dos filhos é sócio do pai, enquanto o

outro viaja e Gegê administra. Uma das filhas também trabalha para a tecelagem

do pai e ganha por produção, mas não foi incluída por Gegê nas situações de

reordenamentos dos esforços familiares no que diz respeito à centralidade da

viagem e da administração da tecelagem.

15 Novamente resgato um exemplo apresentado por Ana Claudia Marques (2002) “Quando algum de seus membros abandona a fazenda e passa a residir em uma cidade próxima, a ligação não precisa ser desfeita, muito embora ao longo do tempo seja bastante possível que algo se modifique. De algum modo se pode ser e deixar de ser, ao mesmo tempo, um Albuquerque da Imburana. Considerando que o mesmo se pode passar com a geração seguinte daquele que mudou a residência, notaremos que uma pessoa pode ser um Albuquerque da Imburana sem jamais ter morado lá” (p.126).

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Geraldo (Caicó - RN)

Para Geraldo, os membros de sua família são: ele, a esposa e seus dois

filhos. Por serem muito pequenos, eles não contribuem para o trabalho e ainda

ocupam o tempo de sua esposa.

Geraldo compra tecido ou pano, gabardine, e apronta redes de sol a sol

com sua esposa. Ela faz os bordados e ele o cordão de trancelim, passa o ponto,

faz as mamucabas e empunha. Às vezes, compra ou troca linha pelas varandas.

Essas redes de gabardine e com bordados, são consideradas mais caras e por

isso não são muito vendidas na Feira da Pedra. São feitas sob encomenda das

lojas aos atravessadores.

A estranha conversa com Geraldo seguiu em tom de reclamação sobre o

papel da D. Arlete que, segundo ele, usa seu prestígio como presidente da

Associação das Bordadeiras para atuar como atravessadora. Visto ter acesso às

encomendas feitas por lojas de todo o Brasil, ela monopoliza o preço e o trabalho

dos artesãos, se apropriando da margem de lucro sobre valor oferecido pelas

lojas. “É como se ela estivesse fazendo um favor, se você não aceita trabalhar

para ela, depois fica sem trabalho. Eu já pensei em viajar, ir pra Natal, vender

direto para as lojas. Assim ia ganhar melhor, sem atravessador. Mas somos só

nós dois trabalhando aqui, não posso parar o trabalho. Com o trabalho de artesão

assim só dá pro comer”.

A história de Geraldo ilustra uma situação oposta à de Zé do Crediário: ele

não pode deixar o trabalho de sua unidade produtiva para viajar e, não

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trabalhadores rurais. Este fato se opõe ao tipo de posição que Dona Francisca

ocupava na sua família (Zé do Crediário), em que a esfera feminina se caracteriza

pelo cuidado da casa e não das atividades que centralizam a unidade de produção

da família, ou da responsabilidade de prover a família. O exemplo de liderança de

Dona Alice somado ao de Ivelise e Auxiliadora, na Feira da Pedra, revelam

também que o ramo de rede pode ser uma forma de abrir espaço para uma

participação mais ativa das mulheres no que diz respeito à experiência econômica

familiar.

D. Alice também destacou sobre os negócios de família a sua relação com

os filhos, semelhante ao enquadramento de Gegê, sobre Zé do Crediário e seus

filhos. Um filho aparece completamente incorporado em seu negócio, o que “anota

o movimento da tecelagem”. O outro tem um negócio próprio, de fios e tintas para

estamparia, valeria descobrir se ele fornece tinta e fios para a tecelagem da mãe,

e se ele troca ou compra mercadorias produzidas por ela para vender para fora.

Neste caso, tratar-se-ia da diferenciação entre negócios, cuja separação seria

fonte de novos tipos de relação entre mãe e filho.

O outro filho cuida do sítio, do qual ela continua sendo reconhecidamente a

dona. Creio que seja por conta da própria presença do gado que D. Alice disse “o

pessoal não quer cuidar...”. Provavelmente ela considera que só a criação, em

comparação com uma época em que havia plantação e engenho no sítio, não tem

o significado de cuidar do sítio, até porque a criação de gado diminui

significativamente o investimento de trabalho. Como é comum as famílias terem

sítios, mas ninguém morar lá, a preferência do filho pelo sítio é, por outro lado,

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mais um aspecto do arranjo da família para conjugar diferentes formas de

participação econômica.

Por fim, a inclusão do genro no relato não estava abstraída de sua própria

participação na conversa. Quando cheguei na casa de D. Alice, foi ele quem me

recebeu e chamou-a depois. Ele e a filha moram na casa dela. Também foi o

próprio que citou seu negócio de peças para motos, quando conversávamos sobre

os negócios da família.

Mariano (Jardim de Piranhas - RN)

Conheci Mariano na Feira da Pedra e depois fui até casa dele. Chegando

lá, conversei primeiro com sua esposa. Ela me contou que, antes e um pouco

depois de casarem, eles eram moradores de fazenda. Mais adiante ele se tornou

negociante: comprava animais nos Sítios, abatia e vendia na rua. Depois

montaram a tecelagem.

Então, Mariano chegou e iniciamos nossa conversa pelo assunto

tecelagem. “Tenho muitos filhos, eles sempre me ajudaram”. Não é à toa que no

cartão que me deu diz: “Tecelagem Dez Irmãos – Org.: Mariano 10 filhos”.

Atualmente, são os filhos que cuidam da tecelagem, mas quatro deles foram para

Fortaleza.

Depois contou que o irmão da esposa montou uma fábrica de material de

couro no Ceará. Dentre os quatro, dois filhos têm suas próprias fábricas e

fornecem material para as lojas do tio (ele tem uma rede de lojas no Ceará). Um é

gerente de uma das lojas e o outro trabalha com um dos irmãos.

Emendamos o papo da história dos filhos no Ceará com a história do sítio.

A terra foi comprada por um de seus filhos, dono de fábrica de couro. O filho

comprou, mas é Mariano quem cuida. “É um sonho pra mim. Sempre tive o sonho

de ter uma terrinha”. O sítio tem criação de gado e plantação de milho e mamão.

Há também um morador.

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A conversa terminou e nós praticamente não falamos mais sobre a

tecelagem e sobre os outros filhos de Mariano. Mas duas informações obtidas na

Feira da Pedra são importantes acrescentar: eles têm clientes no Ceará, além do

negócio da feira.

A trajetória de Mariano repete a mudança da condição de morador à

negociante, mas dessa vez a combinação de sítio e negócio não é intermediária.

Ela se realiza muito tempo depois, com a ajuda do filho. É provável que a própria

oportunidade de cuidar do sítio tenha sido o motivo que fez Mariano relembrar o

desejo de ter a própria terra em tempos passados. Por sua vez, fica em questão

as motivações do filho, do Ceará, comprar um terreno em Jardim de Piranhas. A

aquisição da terra pode ser um excelente meio de revigorar os vínculos com o

local e a família, para quem prospera nos negócios em outro estado.

O enquadramento de Mariano também se voltou para as relações pai-filhos

e é interessante que nele tenham sido destacados os filhos que estão no Ceará,

do que os filhos que cuidam da tecelagem. Decerto, são vínculos que exigem

maior elaboração do que os naturalizados pela presença, sobretudo quando é o

cunhado que propicia e polariza este outro negócio de família.

Luciano (Jardim de Piranhas - RN)

A origem da trajetória de Luciano no ramo de rede é a tecelagem do pai.

Esta tecelagem inicialmente estava instalada no sítio e, em 1969, Chiquinho do

Ouro, pai de Luciano, levou sua esposa e os filhos para morar na sede do

município. O sítio era herança do avô paterno e lá viviam, além deles, o irmão de

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de rede. A tecelagem foi transferida para a cidade, só mais tarde que o irmão de

Chiquinho também se mudou.

Os dois filhos de Chiquinho do Ouro trabalhavam na tecelagem e

ganhavam um salário. Ambos chegaram a administrá-la por um tempo, mas,

depois, com o falecimento do pai em 1993, eles dividiram:

E.: Por que vocês fizeram isso?

L.: A gente tava vendo que tudo num canto só não compensava. Tirar

despesa para várias pessoas. Cada um foi constituindo família, não dava pra todo

mundo. Cada um formou sua empresa, foi trabalhar para si.

E.: Antes de vocês separarem, como ganhava cada um?

L.: Cada um ganhava o seu, papai pagava pelo trabalho de cada um.

E.: Pelo trabalho?

L.: Pelo trabalho, tinha aquele... salário.

E.: E era igual pra todo mundo?

L.: Dependia do trabalho de cada um... variava, cada um tinha um trabalho

diferente, né? Primeiro ele era o chefe, quando foi passando o tempo a gente

passou a administrar.

Hoje a tecelagem de Luciano tem seis teares e produz somente pano de

prato. Ele ainda terceiriza oito teares, isto é, troca fios por tecido. A esposa faz

bainhas e, além dos funcionários homens nos teares, havia cinco mulheres na

estamparia dos panos. Os seus dois filhos são novos, um com dezenove e outro

com dez. Só estudam.

E.: Como é, agora que vocês estão independentes, a sua relação com seu irmão?

Tem algum negócio juntos?

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L.: A gente tem umas parcerias aí. Por exemplo, eu não tenho urdideira, aí

eu terceirizo com ele.

E.: E como é que você paga?

L.: Eu pago o carretel. Aí eu não tenho o alvejamento. Ele alveja pra mim,

eu pago a ele. Ao invés de fazer um investimento desses que sai caro, eu pago a

ele. E a gente também tem outro rapaz, que ele terceiriza para mim. Eu dou a ele

tantos quilos de fio, ele me dá tantos quilos de tecido, depois eu pago a diferença.

Ele tem os teares, eu dou o fio, a matéria prima, ele me dá o tecido.

O relato de Luciano traz seqüências de associações e separações

significativas. Os irmãos, pai e tio de Luciano, se unem para montar a tecelagem

mas fazem negócios separados e, com isso, demarcam negócio e tecelagem

como relações distintas. A tecelagem que era uma unidade na família, em duas

gerações de irmãos – “Nós saímos tudo dum canto só” – se divide com a morte de

Chiquinho, mas isso não significa um apartamento completo das possibilidades de

associação entre, pelo menos, Luciano e seu irmão. As parcerias entre os irmãos

configuram tanto relações em que um completa as etapas para o outro, quanto

relações entre negócios, um negociando com o outro, sendo necessário, para

tanto, a existência de duas empresas diferentes.

Finalizando, Luciano vende os panos de prato na Feira da Pedra e para

clientes em quase todas as regiões do Brasil. E ainda apresentou um tipo de

vendedor que não tinha sido identificado até então:

E.: Você viaja?

L.: Eu tenho os clientes que eu mando direto. Tem outros que eu vendo

aqui, vão vender lá na região. Os clientes são tudo daqui, da região de São Bento.

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A gente vende pra Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste, só é mais difícil pro

Sul, é o ramo que a gente tem mais dificuldade de entrar, o produto daqui. Ainda

mais pra mim que vendo pano de prato, pra rede e manta já é mais fácil, tem em

todo o Brasil.

E.: Na época do seu pai era pano de prato também?

L.: Na época dele era rede, colcha de cama... o básico era rede na época.

E.: E vendia para onde naquela época?

L.: Naquela época era mais Norte e Nordeste. Ele tinha os clientes lá e

vendia pros clientes daqui vender lá. Nesse sistema que você viu lá no Rio de

Janeiro. O caminhão leva um monte de vendedores, aluga uma casa, e bota os

vendedores pa...

E: O dono do caminhão comprava de vocês? L.: Comprava... Ainda tem muita gente que trabalha com esse sistema aqui em São Bento.

E: Vocês têm caminhão?

O: Não.

E: Pano de prato também vende assim?

L.: Vende também.

E.: Tem comprador seu que faz isso?

L.: Tem, mas é pouco. A gente tinha um vendedor que ia lá pro Pará,

arrumava os clientes e fazia o pedido. Trabalhamos assim por dois anos.

E.: E quem é ele?

L.: É um cara aí da Paraíba.

E.: Como era? Como vocês faziam?

L.: Ele já vendia assim pra um outro produtor, nós entramos em contato

com ele. Ele levava o mostruário, trazia os pedidos e a gente mandava entregar.

Passei 2004 e 2005, depois houve um problema a gente parou.

E.: Ele ia para onde?

L.: Estado do Pará e Maranhão.

Família Nunes Rocha (Sítio Barra de Cima - São Bento - PB)

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Quando encontramos Vanessa no Sítio Barra de Cima, na divisa dos

municípios de São Bento e Jardim de Piranhas, estávamos em frente à tecelagem

onde ela trabalha, operando uma máquina de trancelim. Na mesma tecelagem, o

pai trabalha de tecer. Perguntei se o dono da tecelagem era parente deles: “Não é

parente mesmo, é gente conhecida da gente. Mas aqui quase todo mundo é

parente”. As terras no entorno da tecelagem, com seis teares, são do pai da

esposa do patrão, que é proprietário de caminhões que tanto fazem frete, quanto

viajam com turma.

Durante o encontro com Vanessa e a prima Aparecida, apareceu a mãe de

Aparecida, D. Maria. Aparecida é casada com um rapaz que faz frete de rede para

o Pará. Quando ele não está, ela fica na casa do avô, onde nos sentamos para

conversar, enquanto Aparecida fazia mamucaba. As redes que apronta, ela troca

com o marido da prima legítima que tem uma tecelagem com três teares. Ao

perguntar o que ela faz com a parte dela da troca, ela disse: “Eu não ganho nada

disso não, quando preciso de alguma coisa, é meu marido que dá. Isso aqui é só

pra não ficar parada, quando dá dinheiro é muito pouco”.

O pai de Aparecida também faz frete, é dono de carro. Eles já moraram

durante três anos no Pará. “Ele vinha e comprava rede no cheque, pra vender lá”.

Comprava do próprio pessoal do Sítio, dos primos, dos cunhados.

A uma certa altura da conversa, resolvemos mapear o que faz cada irmão

de Maria. São nove irmãos. Roberval e o filho, Lindomar, têm uma tecelagem com

cinco teares e ainda viajam para Juazeiro do Norte. Mané, Zé e Chico, vendem

rede no Maranhão, compram no Sítio ou em São Bento para vender lá. O pai de

Vanessa trabalha de tecer para os outros. Zefa apronta pro irmão e “pra fora”. Gigi

foi para o Pará com o marido, mas se separaram. Ela tem quatro filhos que

vendem rede. Com a ajuda dos filhos e dos irmãos ela está pagando um carro,

para vender rede no boca de ferro. Nego também vendia rede com os irmãos no

Maranhão, mas se casou e foi morar na terra do sogro em Santarém. E, por fim, a

Tia Sonia, que mora e ajuda a cuidar da casa do pai.

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O pai de Maria, avô de Vanessa e Aparecida, é o dono do sítio que chegou

a ter roçado, mas hoje é ocupado apenas com as casas. Aparecida tem sua

própria casa onde mora com o marido, entretanto, quando ele está viajando ela

fica na casa do avô, que continua exercendo uma centralidade para a família.

Este encontro no Sítio Barra de Cima lança um prisma completamente

diferente dos anteriores sobre o modo de uma pessoa representar as fronteiras de

sua família em relação ao ramo de rede. Esta diferença se explica, em parte, pelo

posicionamento familiar e o papel das informantes neste ramo: Vanessa é uma

operária de tecelagem, Aparecida faz mamucabas e é esposa de dono de carro e

D. Maria também é esposa de dono de carro. Assim, não estava em questão a

transmissão do patrimônio, questão que talvez imprima uma fronteira de parentes

muito referida à tecelagem. Pergunto-me, se tivesse conversado com Roberval, se

seria este o quadro que teria montado sobre sua família no ramo de rede. Além

disso, sendo três pessoas, nos referimos às relações de parentesco que considera

o cruzamento entre as três. Por este motivo, mapeamos os irmãos de Maria, mãe

de Aparecida e tia de Vanessa.

Nota-se que entre os dez irmãos, oito estão envolvidos diretamente no

ramo de rede, um já esteve e o outro cuida da casa, que acaba sendo um papel

importante para a reprodução social da família. A mãe é falecida, o pai está bem

idoso, mas a casa está sendo mantida, e mantida como ponto de referência para a

família no Sítio. Não é sem razão que a Tia Sônia foi a última a ser lembrada,

Maria teve dificuldade de apontar a irmã, mas quando seu nome veio à tona, era

como se tivesse faltado perceber o óbvio. Estávamos lá, na casa onde ela mora.

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Quanto às associações entre os familiares no que concerne o ramo de

rede, demonstrou-se que alguns dos irmãos têm seu negócio separado, mas eles

se apóiam mutuamente. Em algumas circunstâncias há relações entre negócios

entre os parentes: primos e cunhados podem estabelecer relações de compra e

venda entre si. A maioria dos irmãos é vendedor por conta ou dono de carro, e

através desses posicionamentos caracteristicamente móveis, constitui-se uma

constante circulação entre o Sítio e o Pará ou entre o Sítio e o Maranhão.

Mantém-se o Sítio como um ponto de referência que articula esses fluxos, seja

enquanto lugar onde a família pode se reencontrar, seja como espaço onde se

estabelecem relações comerciais, como espaço que provê as mercadorias.

Certamente para os parentes (primos ou cunhados desses irmãos, conforme elas

destacaram), o funcionamento de suas tecelagens deve depender desses fluxos

de outros parentes que “compram aqui, vão vender lá”, ou que estão

estabelecidos lá.

Uma relação curiosa que apareceu foi entre Aparecida e o marido da prima

legítima. Ela faz mamucabas para a tecelagem dele e disse não ganhar dinheiro

nem rede por esta atividade. Comparando com a situação da irmã de Gegê (Zé do

Crediário), que faz mamucabas para a tecelagem do pai e ganha por produção,

fica realmente em questão que tipo de relação pode estar em jogo. Considerando

o argumento de que fazia as mamucabas “para não ficar parada”, esta relação

teria a ver com algum tipo de troca menos evidente associada à sociabilidade do

sítio? Ou teria a ver com as relações entre o seu marido e o marido da prima?

A perspectiva da Família Nunes Rocha revela uma composição inédita até

aqui: em um pequeno grupo de parentes distribui-se uma série de

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posicionamentos do ramo de rede, como por exemplo, dono de tecelagem que

viaja, dono de carro, vendedores por conta, vendedor no carro boca de ferro,

pessoa que trabalha de tecer para os outros (tecelão), operador de conicaleira,

pessoa que apronta. Se podemos pensar que a distribuição destas categorias

entre os familiares contribui para a constituição de um sistema de coordenadas em

que cada um dos membros vai se orientando e reconhecendo as inúmeras

possibilidades de inserção nesta economia, o mesmo raciocínio podemos

transferir para o modo como se constrói um conhecimento sobre os diversos

espaços que a família ocupa, o que deve favorecer o significativo deslocamento

entre essas áreas, notadamente, entre a Paraíba, o Maranhão, o Pará e o Ceará.

Daí já se pode inferir o quanto o ramo de rede acumula um conhecimento que vai

ampliando as oportunidades econômicas e espaciais.

Este tipo de abordagem foi suscitada pelos estudos de Patrick Champagne

(1975) que observou como a forte dispersão espacial e social das famílias rurais,

que vêem a maior parte de seus membros deixar a aldeia e abandonar o trabalho

da terra, constituem as mediações concretas mais importantes pelas quais se

opera a mudança da percepção do espaço social pelos camponeses, e são o

principio de uma transformação do sistema de coordenadas sociais por onde se

situam os indivíduos que permaneceram na aldeia (p. 47).

Alba de Leandro (São Bento - PB)

Ao chegar em frente à fábrica de Alba em São Bento achei que estivesse

mais uma vez diante de uma tecelagem com uns 6 teares. Entretanto, aquele

pequeno galpão velho ao lado de outros como ele fazia parte do patrimônio

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industrial de Leandro e Alba. No total contam-se 99 teares, entre a produção de

redes, mantas e panos de prato. Mostrando-me um dos galpões anexos, Alba

disse estar aprimorando a qualidade do tecido do pano de prato para poder

concorrer no fornecimento para uma rede de supermercado.

E.: – Como vocês começaram a trabalhar com rede?

A.: – Meu esposo era solteiro e a gente morava em cidade vizinha, São

José, e a gente se deslocou para São Bento. Me casei, ele possuía caminhões,

carregava rede de frete. Quando a gente se casou, ele, por cinco meses, tentou

colocar essa indústria: comprou cinco máquinas. Então, passou 8 anos sem viajar,

parou de viajar em caminhão e foi fabricar. Só que as dificuldades do comércio

vieram, eu tive que tomar conta da tecelagem e ele fica sempre viajando, Minas,

Rio. E eu fabrico, trabalho com cerca de 90 pessoas, fabrico em torno de 15 mil

unidades por semana. Então eu fico mandando por caminhões, a gente já tem

caminhões, fica transportando até ele lá (Rio) e ele fica distribuindo em grosso. Ele

passa, ultimamente ele está passando 60 dias sem vir em casa, então eu tenho

dois filhos, eu tenho que tomar conta de comércio, de filhos, e graças a Deus,

Deus me deu esse dom, me deu essa fortaleza pra tomar conta e dar conta. No

início, ele passava 15 dias por lá, passava 15 aqui, só que o comércio vai

aumentando, as vendas vão aumentando e ele está chegando a passar 60 dias lá.

E eu que estou me deslocando, passando 5 dias com ele lá, de vez em quando.

Deixo meus filhos com uma menina que mora comigo que é muito responsável; e

o comércio com três pessoas à frente, muito responsável, sempre controlando por

telefone: uma venda, uma entrega, um carro para carregar, eu fico meia hora no

telefone fazendo esse serviço, controlando. Tendo que passar cinco dias lá e

voltando. Vai fazer 60 dias que ele está vindo, dia 15 de junho.

E.: – Ele vende só para os vendedores que ficam por lá? Ou ele vende com

turma?

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A.: – É o seguinte, a turma que a gente tem trabalha em São Paulo. Quem

fornece para a turma sou eu daqui. Ele, eu forneço pra ele hoje e ele distribui em

grosso, ele só vende atacado. Não trabalha com varejo, não.

E.: – Ele vai aos depósitos?

A.: – Vai aos depósitos fazendo entregas. Por exemplo: cada pessoa pega

mil redes, cobertas, outras já 500, ele já tem um carro ali que entrega. Ele já tem

um ponto alugado lá, ele guarda a mercadoria e controla tudo por telefone. Ele

mesmo que faz entrega.

E.: – É em Campo Grande também o ponto?

A.: – É, em Campo Grande.

F.: – E Jardim Bangu – disse uma funcionária que estava por perto.

A.: – Também, mas em Jardim Bangu é o irmão dele que mora.

E.: – Ele tem um irmão lá também?

A.: – Tem um irmão dele que foi para lá há 7 anos. Foi através do comércio

de rede e lá já construiu casas, construiu família.

E.: – Ele é casado com...

A.: – É casado com uma parente minha, prima. Foram embora, se fixaram

lá e a gente que fornece mercadoria para ele. E além do irmão tem primos. A

gente vende tudo entre família, entendeu?

E.: – Então quem está lá da família?

A.: – São primos, primos legítimos, sobrinhos, são vários, são tantos,

porque a gente mora numa comunidade onde existe 5 famílias: Santos, Andrade,

Pereira, Sales e Rocha. Então todo mundo é parente um do outro.

E.: – Lá no Rio?

A.: – Lá em São José que é a minha cidade. Lá todo mundo mexe com

rede, quando não é, é São Bento, Serra Negra, é Patos. Mas já esse pessoal tem

outro parentesco, eu estou falando da minha ligação aqui com a indústria e minha

venda. A gente também fornece para outras pessoas, além de família, só que hoje

o grupo redeiro se familiarizou, porque é todo mundo junto. Todo mundo trabalha

em conjunto, todo mundo se loca num canto só, onde está um, estão todos.

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E.: – E tem alguém que começou? O pioneiro? Foi seu marido

mesmo?

A.: – Lá na minha cidade são dois que começaram. Jackson e Manel. Até

hoje Jackson continua vendendo rede, só que Jackson começou a trabalhar de

empregado. Hoje ele já é patrão. Manel já parou de trabalhar. Hoje são os filhos

que trabalham. Meu esposo, Leandro, a vida dele começou, ele botava água na

rua pra ganhar dinheiro para sobreviver, ele começou trabalhando para hoje é o

atual prefeito de São Bento. Ele era empregado dele. Só que foi indo, ele foi muito

econômico e daí a pouco já comprou um carro, já passou a trabalhar com o irmão

dele que mora hoje no Rio. Eles trabalhavam juntos, só que o tempo foi passando

e cada um foi ficando independente, hoje cada um trabalha para si.

E.: – Fale um pouco mais sobre a família que está lá...

A.: – Tem um outro irmão dele que trabalha em São Paulo, tem um depósito

também com redes. Um irmão do meu esposo. A gente trabalha juntos. Eu, meu

esposo e o irmão dele.

E.: – Tem dois irmãos, um está no Rio, em Jardim Bangu...

A.: – É, o que mora em Jardim Bangu trabalha com redes, mas que a gente

fornece. O que trabalha em São Paulo é sócio com a gente. Tem depósito lá.

E.: – Sócio no capital?

A.: – Sócio no capital. Então ele faz a mesma coisa que Leandro faz no Rio:

entrega em grosso. Eu forneço para ele, lá ele tem o ponto e ele tem o carro que

faz entregas também pro pessoal lá. Lá em São Paulo tem muita gente também,

família, como primos, sobrinhos. (...) Esse pessoal, primos, por exemplo,

sobrinhos, eles começam a trabalhar...

E.: – São filhos de quem?

A.: – Filhos de irmão de Leandro. Eles começam a trabalhar da seguinte

maneira. A gente tem um carro, uma Mercedes que tem 30 homens em cima.

Dentro, desses homens vai ter sobrinho, primo. Então eles trabalham quatro, cinco

anos. Vão economizando. Dão duas viagens, compram uma moto, vão guardando,

compram outra moto, e chegam um ponto que compram uma D10 para ele. Um

sobrinho, por exemplo, já passa a trabalhar para ele. Entendeu?

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E.: – Uma D10?

A.: – D10 é um carro, uma caminhonete. Já passa a trabalhar para eles. É

assim que funciona, quando esse pessoal vai ficando com quatorze, quinze anos,

já quer ganhar algum pra trabalhar, pra ganhar a vida. Então é dessa forma que

eles ganham a vida em família. Um ajuda o outro, entendeu? Quando eles não

têm como ser independente, um tio já ajuda, um primo já ajuda, lhe completa, e dá

uma mão, uma chance de trabalho. E assim prossegue.

E.: – Como é essa diferença? Você falou que tem um irmão do Leandro que

é sócio, ele não está comprando de vocês, e outro irmão, que aí compra de vocês,

no caso...

A.: – Esse irmão que compra, já foi sócio de Leandro, só que no passar do

tempo os negócios não estavam dando certo. Então teve que separar, e eles

separaram, cada um foi trabalhar para si, amigavelmente. E o de São Paulo entrou

e ficou trabalhando com a gente. Esse aí é muito econômico, vai dando certo.

E.: – Houve algum desentendimento?

A.: – Não houve, não. Só comercial, mas nunca deixou de comprar, sempre

a gente dá continuidade no negócio.

E.: – Só por curiosidade: como vocês são sócios, como é o acesso ao

lucro?

A.: – Vou lhe falar: ele por ser irmão, eu cunhada, ele tem muita

organização, é um cara direito, a gente não faz conta de lucro, entendeu? Tudo o

que a gente ganha a gente investe e sempre dá um balanço, de ano em ano, mas

é na base da confiança entre família, a gente não faz conta de centavos, nem... O

que eu mando para ele eu anoto, o dinheiro que ele manda é anotado. Só que é

uma coisa confiável, porque a gente sabe com quem trabalha. É amigável. Ele é

solteiro, eu sou casada, eu tomo conta aqui, meu esposo no Rio e ele em São

Paulo. Então é uma coisa que a gente confia um no outro, entre família.

E.: – Esses sobrinhos, primos...

A.: – Tem um sobrinho dele que trabalha com a gente, é caminhoneiro. Ele

trabalha com meu esposo... aliás morou comigo. Morou cinco anos na minha casa.

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E sempre trabalhou comigo, até hoje, se casou e é caminhoneiro nosso hoje. Já

faz dez anos que trabalha conosco.

E.: – E ele vende no carro com a turma?

A.: – Não, ele puxa mercadoria para Leandro e pra São Paulo, pro Rio e

São Paulo. Minas, Rio e São Paulo. Eu coloco a produção em cima do caminhão,

que o caminhão é nosso, então ele sai fazendo as entregas. Sobrinho, né?

E.: – E o pessoal que trabalha como redeiro? Tem redeiro da família lá?

A.: – Tem, muitos, só família. Veja só. Hoje tenho cerca de 20 Mercedes

que carrega aqui comigo. É tudo de primo. Eu forneço mercadoria pra esse

pessoal. A confiança é tanta que eles nem cheque me passam. Eu vendo a

mercadoria, ele já deposita em conta minha. É uma coisa confiável.

E: – Geralmente tem um encarregado, né?

F: – Tem um encarregado. Por exemplo: o encarregado coloca 20 homens

em cima, entendeu? E passa a trabalhar fora. Só que a vida do redeiro é muito

sofrida. O lucro em si, disso aqui é muito pequeno. Eles sofrem muito, só que hoje,

eu vou lhe dizer, ele que vende na rua, ele tem um lucro melhor na mercadoria do

que o próprio dono do carro. Antes a gente ganhava muito, devido a crescer e ter

menos vendedor, então isso aí ficou ruim para fabricante e o dono do carro. O

redeiro, que vive no meio de rua, hoje ele ganha um pouco melhor, porque aplica

um pouco mais, é independente. Antes eu colocava a mercadoria por X, dava

R$1,00 para ele. Hoje não é, hoje já tem muita mercadoria no mercado. Hoje eles

passaram a comprar e a ter seu próprio lucro. Mas é tudo entre família.

E.: – E aí são essas famílias, essas quatro famílias...

A.: – Cinco famílias. Lá são cinco, porque é tudo primo. É, às vezes primo

casado com primo, porque acontece às vezes, uma tia minha é casada com primo

legítimo. Geralmente lá casam com eles mesmos, cidadezinha pequena, eles

costumam casar entre família. Eu ainda sou parente do meu esposo, né, o

parentesco da gente é: as avós são primas legítimas. É tudo... lá primo namora

com prima... cidadezinha pequena que eles se entendem entre eles mesmos...

Entrou um homem na sala.

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A.: – Ó, esse que chegou aqui é primo de Leandro, veio carregar um

caminhão para viajar. É tudo assim.

Alba de Leandro é a maneira que Solange (final deste capítulo) se refere à

Alba. Ela e o marido são fornecedores de redes e mantas para Solange e Manuel

no Rio de Janeiro. Observar-se-á, na trajetória das duas, um momento em que

serão chamadas a cumprir um papel bastante importante no negócio de sua

família.

Esse momento aconteceu para Alba quando o marido precisou viajar e ela

passou a administrar a tecelagem. Uma vez mais, a viagem marca uma situação

de reordenamento das relações familiares que constituem a unidade produtiva e

comercial. Este momento, aqui, também aparece associado às “dificuldades no

comércio”.

Na narrativa, os reordenamentos do negócio da família não aparecem numa

ordem cronológica como uma história da tecelagem, mas que foram relatados

conforme as diferentes associações de Leandro com seus familiares.

Outro reordenamento se refere ao irmão de Leandro que atualmente está

Jardim Bangu, no Rio de Janeiro. Quando Leandro estava apenas começando –

antes ainda seu pai era morador de fazenda, e ele, empregado do atual prefeito de

São Bento – eles eram sócios e donos de carro. Continuaram como sócios quando

criaram a tecelagem e, mais tarde, “se separaram amigavelmente”, pois tiveram

desentendimentos comerciais, passando, mesmo assim, a estabelecer um outro

tipo de relação: o fornecimento de mercadorias. “Sempre a gente dá continuidade

ao negócio”.

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Mais tarde, um outro irmão foi incorporado ao negócio de Leandro. “Esse aí

é muito econômico. Vai dando certo”, disse Alba. Então se formaram três pontos

desta trama: Alba em São Bento, Leandro no Rio e o irmão de Leandro em São

Paulo.

Muitos outros parentes estão incorporados ao comércio de Leandro e Alba,

e, em outros casos, Leandro e seus familiares estabelecem relações entre seus

respectivos negócios. Distinguem-se três tipos de relações de Leandro com

familiares no ramo de rede: primeiro, os sócios, com quem Leandro compartilha o

capital da unidade produtiva e comercial; segundo, os que fretam, trabalham como

corretores e encarregados, portanto, os que trabalham para o comércio de

Leandro e; terceiro, com quem Leandro negocia: donos de depósito, vendedores

por conta, vendedores no carro boca de ferro, vendedores no crediário.

Além disso, ocorrem transferências entre os tipos. Viu-se o caso do irmão

que, de sócio, passou a negociar com Leandro através do fornecimento de

mercadorias. Alhures, Alba descreveu o caso dos primos (legítimos ou não) que

começam trabalhando para Leandro como corretores e se tornam vendedores por

conta.

Elencando os familiares conforme suas posições no ramo de rede, temos:

entre os encarregados e os que fretam, primos e sobrinhos. Entre os corretores,

primos e o cunhado, pois a vi recebendo o pagamento do vale do marido da irmã.

Somando-se a estes, Alba e Leandro fornecem ainda para o irmão dela em

Cabo frio, que é redeiro por conta, e para o marido de uma irmã de Leandro, em

Belo Horizonte.

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A localização de parentes apresentada por Alba é expressiva. O caso

revela uma articulação ainda mais ampla entre a distribuição das posições e sua

configuração espacial do que a apresentada pela família Rocha Nunes. É provável

que este fato se deva à centralidade do negócio de Leandro, que através dos

parentes pode acumular uma série de posições no ramo de rede: dono de

tecelagem, dono de depósito (ponto), vendas através da turma de corretores, dono

de carro, além de ser fornecedor de máquinas. Por outro lado, sua centralidade

também favorece a inserção dos familiares no ramo, inclusive em suas formas

independentes, isto é, nas relações entre negócios.

Ricardo (São Bento - PB)

Ricardo é fornecedor de fios e gabardine, trocando fios e gabardine por

rede pronta. Vive no Sítio São Paulo e tem um depósito em São Bento. O pai é o

dono do sítio, que já teve uma tecelagem com quatro teares.

E.: – Por que você começou a trabalhar com esse ramo?

R.: – Quando eu comecei a trabalhar com rede, meu pai trabalhava com rede.

E.: – Ele fazia o que?

R.: – Ele tecia. Fazia a mesma coisa que Alba faz aqui.

E.: – Ele tinha quantos teares?

R.: – Lá no Sítio ele tecia com quatro teares. Eu comecei ajudando ele. Aí

quando ele parou, aí eu já tava encaixado. Ele disse: “Ricardo eu vou parar, aí

você fica”.

E.: – Mas aí você não quis ficar com os teares.

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R.: – É como eu tava dizendo a você, eu não gosto de trabalhar com muita

gente, aí eu parti pra comprar e vender porque ganha bem mais.

No sítio, há plantação de milho, feijão e arroz, gado e um criatório de peixe.

Ricardo tem duas irmãs casadas e professoras, é o filho mais propenso a dar

continuidade ao patrimônio do pai:

E.: – Você pretende manter o sitio do seu pai? R.: – É, eu não quero vir pra cá de jeito nenhum, só venho aqui na segunda, que é dia da feira. Acostumado no sítio.

E.: – E ele arrenda terra?

R.: – Não, não, ele arrenda ainda por fora pra criar o gado dele. Nessa

época agora de inverno. Até do outro pessoal que é pra poder botar o gado dele,

porque ele cria bastante sabe? Compra, vende. Ele compra magro, pra poder

botar gordo.

Embora em termos da situação das famílias no ramo de rede, o caso de

Ricardo não ilustra grande amplitude, selecionei-o com o objetivo de apresentar

um contexto em que o sítio tenha um papel mais central para as experiências

econômicas da família.

Entre os exemplos apresentados anteriormente os momentos de crise

levaram a acomodações no negócio que geralmente implicavam em mudanças de

posicionamentos dos familiares em relação ao negócio: membros que deixaram de

trabalhar de tecer para administrar e liberar o trabalho de um outro para a viagem,

incorporação de um parente (irmão, esposa) no funcionamento da unidade

produtiva/comercial, divisão do negócio em negócios. Neste caso, as

acomodações implicaram em desfazer-se da tecelagem para poder dedicar-se

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mais integralmente ao negócio e na transferência de investimentos entre sítio e

negócio. Nesta passagem, Ricardo revela como não quebrou porque tinha

respaldo do seu patrimônio, entre eles, gado:

E.: – Ele (o pai) nunca foi fazer negócio fora?

R.: – Não, não, no mesmo esquema que eu faço. Aí começou perdendo

também... Ele trabalhava com o mesmo setor que o meu. Maranhão, Pará, Ceará..

Mas chega a um certo ponto que de tanto você perder, porque esse comércio da

gente é delicado demais. Eu, por exemplo, em 2002, eu perdi 220 mil Reais, eu

praticamente não quebrei porque eu tinha muito patrimônio. Eu vendi pra pagar o

credor, pra poder não cair de vez. Esse comércio da gente aqui é muito

complicado. É muito alto o índice de cheque sem fundo de rede. Muito, muito, né

brincadeira, não...

João (Rio de Janeiro - RJ/Paulista - PB)

Fui à Paulista procurar a família do João, corretor que conheci no Rio de

Janeiro. Ele me indicou que procurasse primeiro a casa de Juca, que fica na rua, e

pedisse a alguém que me levasse até o sítio onde mora a família dele.

Juca e João trabalham de corretor para Manuel e Solange. Aliás, foi Juca que

chamou João para trabalhar com ele. João se refere a Juca como irmão de criação. A família

de João morava no sítio da família de Juca. O pai de João trabalhava no roçado para os

donos do sítio e negociava com rede na feira. Comprava pano e a esposa e os filhos

aprontavam.

O sítio onde D. Vera e os filhos vivem hoje foi posse transferida pelo tio

paterno de João antes de morrer. Atualmente, o pai de João também é falecido.

No início da década de 1990, a família tinha o sítio e morava na rua, quando

montaram uma pequena tecelagem com teares de pau. O sonho de João é voltar

a ter a tecelagem para os irmãos produzirem e fornecerem mercadoria para ele no

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Rio. João já chamou o irmão Guto para viajar, mas D. Vera contou que ele não se

acostumou, “o rapa levou o fardo de rede dele”.

Na época de inverno, por conta das chuvas, o rio enche e, para chegar até

o sítio é necessário atravessar de canoa. Nego, pai de Juca é o dono das canoas

que fazem a travessia das pessoas. Durante nossa travessia, minha e de D.

Selma, mãe de Juca, estava na canoa um primo de João que disse: “João é muito

bom, muito controlado. O sítio já tem uma boa rês de gado”.

Diversas vezes já havia perguntado a João se ele ajuda a família no sítio e

que tipo de ajuda ele daria, mas ele nunca falou que comprava gado.

Provavelmente porque comprar gado não deve significar propriamente uma ajuda

à família. Fiz a mesma pergunta à D. Vera e ela se referiu ao dinheiro que ele

manda: “Cem reais tá bom mãe? Tá bom meu filho”. Foi, no entanto, esta situação

inusitada do campo que revelou um fato tão importante.

Depois que voltei do trabalho de campo na região fronteiriça entre a

Paraíba e o Rio Grande do Norte, reencontrei o João. Nos cumprimentamos, dei

as notícias sobre a viagem, e, em seguida disse: “você não falou que mandava

dinheiro pra sua mãe comprar cabeça de gado”. E ele: “Já comprei até sete”,

contando ainda que o sítio tem um total de trinta reses. Adquiriu ainda uma parte

do terreno da tia, e agora quer comprar um chão de morada na rua, tudo isso

trabalhando como corretor.

Entre os corretores, é muito comum irmãos, primos e cunhados chamarem

uns aos outros para serem marinheiros, isto é, fazer a primeira viagem. Neste

caso, a inserção de João aconteceu através de seu irmão de criação, pois a

família de João morava no sítio da família de Juca e eles foram criados juntos. É

muito comum nesta região a existência de moradores de sítio e, mesmo que a

situação de morador dê a impressão de subalterno, há aqui um bom exemplo de

como certas hierarquizações devem ser pensadas de uma maneira flexível: uma

pessoa que trabalha para outra indica que eles ocupam posições distintas, mas

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observadas em sua transitoriedade, isso não necessariamente implica numa

ruptura entre classes sociais.

É a partir das relações com os parentes, além das relações de vizinhança,

que os corretores acumulam e transmitem informações sobre o valor do vale,

sobre os lugares bons para vender em determinadas épocas, sobre os carros que

estão indo ou voltando, para mandar alguma coisa para casa, para pegar uma

carona, para mudar de patrão. Estas articulações são fundamentais

principalmente entre os vendedores por conta própria, pois precisam ainda alugar

casa, saber em que depósito pegar as redes e mantas, etc.

O caso de João ilustra também que a viagem como corretor pode ser uma

importante estratégia para a manutenção do sítio e para conquistar um negócio

próprio no futuro.

Solange

Solange veio para o Rio de Janeiro com o marido Manuel em 1994, porque

o mesmo precisava fazer um transplante de rins. “E foi por isso que a gente ficou,

se dependesse dele, só ia trabalhar viajando. Não era só o transplante, era

preciso fazer o acompanhamento pra ver se não ia dar rejeição”. Ela passou um

tempo explicando que o tratamento do marido poderia ter sido feito em Recife,

porque havia um bom médico conhecido da família lá e, além disso, Recife seria

bem mais próximo de Serra Negra (RN) do que o Rio. Mas, como eles teriam que

permanecer por um longo tempo na cidade onde fosse realizado o tratamento,

optou pelo Rio, onde tem um irmão militar e a cunhada morando na Ilha do

Governador, próximo ao Hospital do Fundão.

Um tempo depois de Solange e o marido, vieram sua irmã e o cunhado, que

também “trabalhava no caminhão” com Manuel. Foi através de Manuel que

Juvenal (cunhado de Solange) e Edith (irmã de Solange) se conheceram. Quando

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os dois vieram para o Rio, recém-casados, Juvenal deixou de ser corretor, vindo

trabalhar aqui em carro boca de ferro. Nessa época, outros negociantes que

Juvenal conhecera já tinham se estabelecido em Campo Grande. A irmã e o

cunhado de Solange compraram, então, um terreno na mesma área, em 1996,

logo sucedidos por Solange e Manuel.

Solange falou da luta de “cuidar das redes e dos meninos”, pois foi ela que

ficou administrando o comércio, além de cuidar do marido doente. “Fiquei 17 dias

sem dormir”. Houve uma época que ela resolveu parar de trabalhar com os

redeiros porque “nem todos têm responsabilidade e redeiro gosta muito de

cachaça”, “ter que cuidar daqui e ir para o hospital todo dia tava dando muito

trabalho, os meninos vêm para cá e não têm ninguém. Eu me sentia responsável

por eles se acontecesse alguma coisa”. Desde então resolveu começar a vender.

“Também era um sonho aprender a dirigir”. Ela percorre os bairros (Senador

Camará, Vila Kennedy) numa D10, vendendo redes, mantas, edredons, panos de

prato, toalhas de mesa e fraldas. É uma espécie de comércio de porta em porta,

podendo pagar à vista e no crediário. “Fiz muitas amigas por lá. Dizem que é

perigoso nesses lugares, eu até vejo aqueles homens com metralhadora, mas eles

sabem que sou do trabalho e me deixam passar”.

Além do irmão e da irmã que estão no Rio, a mãe de Solange acabou vindo

também. Ela trabalha de diarista e mora em Campo Grande. A família é de

Pombal.

Nem sempre as acomodações são provocadas por uma situação crítica no

negócio. A crise pode ter origem na própria família, como é o caso de uma doença

que leva ao deslocamento de mãe, pai, filhos, irmãos, etc. O deslocamento desta

família para o Rio de Janeiro não foi apenas espacial, ocorreu também nas

posições que ocupavam no ramo de rede, portanto, o conhecimento das

oportunidades do ramo de rede permitiu a esta família contornar os seus

problemas. Manuel deixou de ser dono de carro e tornou-se dono de depósito.

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Junto com essa mudança reverberou uma seqüência de reordenamentos: Solange

se incorporou às atividades do negócio, tomando conta da turma e vendendo no

crediário. Juvenal se incorporou à família, casando-se com a irmã de Solange e

deixou de ser corretor, tornando-se vendedor por conta no carro boca de ferro. E,

por fim, todas essas mudanças trouxeram conseqüências ainda mais amplas: a

família de Solange praticamente se transferiu para o Rio, fato marcado pela vinda

da mãe, pois ela diz que já não tem vínculos importantes com os parentes na

Paraíba e há doze anos que não retorna.

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Capítulo 3 – Negócio e viagem

Em “Com parente não se neguceia”, Klaas Woortmann procura aprofundar

o sistema de oposições entre trabalho e negócio, segundo o código moral

camponês. Ele sustenta a idéia de que o “comércio era atividade negativamente

valorizada por se basear na capacidade de ocultar informações” (1990:40). Assim,

com base nas apreciações de Garcia Jr. e Garcia (1984), recupera o sentido da

ênfase que certos feirantes, principalmente aqueles que dedicavam mais tempo às

feiras, tinham em afirmar que não “viviam só do negócio”, que “trabalhavam”, isto

é, trabalhavam no roçado. Era uma forma de assegurar a honra, pois a

“invisibilidade do negócio torna duvidosa a honestidade do comerciante. Em outros

termos, o lucro do negócio escapa ao controle do grupo, ao contrário do ganho na

agricultura (...)”(1990:40).

Como se observa no primeiro e segundo capítulo, o grupo social que minha

análise recorta está amplamente envolvido com o negócio. Diria mesmo que,

nesta análise, o negócio é a própria forma que o recorta, pois é o que marca uma

identidade entre pessoas que, observando-as por outro prisma, podem ser muito

distintas umas das outras. Mesmo o negócio não tendo significado igual para

todos que tecem (são donos de tecelagem), tecem para os outros (tecelões),

aprontam, compram pano para aprontar, donos de sítio que negociam com rede,

redeiros, etc., o modo como estas posições foram sendo distribuídas e ampliando

as possibilidades de inserção das pessoas no ramo de rede, faz parecer inegável

a centralidade do negócio na sociabilidade local.

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O presente capítulo pretende indicar tanto as continuidades quanto as

descontinuidades de um contexto que parece ter sido compartilhado entre as

pessoas que se utilizaram do negócio para escapar da condição de moradores ou

sujeitos, que aparecem tanto naquelas pesquisas citadas, quanto nesta daqui.

Tive a oportunidade de ouvir a declaração de Francisco, ex-morador de fazenda,

na Feira da Pedra: “meu filho trabalha pros outros, mas me deu condição, são dois

tearzinhos só, eu e meu filho, mas pelos menos não estou sujeito a ninguém”.

No contexto das pesquisas de Woortmann e Garcia Jr., se por um lado o

negócio poderia ser valorizado porque “salva do cativeiro” (Woortmann, 1990:41),

ou porque assegura a preservação do esforço da família em relação ao trabalho

pesado na agricultura ao permitir o pagamento do alugado, por outro lado ele

também carrega um sentido negativo de “negação da reciprocidade”, por se

basear no “monopólio de informações”, na capacidade do negociante ocultar estas

informações (Woortmann,1990:41). Logo, o espaço de realização do negócio tem

de estar fora do território do Sítio, na medida em que os seus habitantes são

parentes ou parentes em potencial, dada a condição de reprodução social estar

calcada na aliança entre os grupos domésticos para formação de novos grupos

domésticos através do casamento. Justifica-se aí, portanto, a expressão “com

parente não se neguceia”.

O mesmo já não se pode dizer, sem maiores ponderações, sobre o ramo de

rede. Afinal, vimos irmão fornecer mercadoria para irmão, a princípio, tal como

fornece para outros donos de depósitos, entre outras situações. Contudo, não

haverá, ainda assim, uma certa tensão, um reconhecimento de que o negócio é

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negação da reciprocidade, monopólio de informações? Nesta conversa com

Ricardo:

E.: E você vende pra onde mesmo?

R.: Eu vendo pra todo canto. Essa semana eu vendi pra um rapaz daqui

que mora no Rio.

E.: Quem?

R.: Acho que ele tem mostruariozinho, tipo uma lojinha lá em Copacabana.

Ele bota uns cordãozinhos e aí pendura.

E.: Como você chegou a ele?

R.: Ele é daqui, de Jardim de Piranhas.

E.: E como você manda pra ele? Você tem caminhão?

R.: Não. Tem caminhão aqui toda semana.

E.: Você paga o frete?

R.: Ele é quem paga lá. Eu ajeito tudo aqui, boto no caminhão, aí quando

chega lá, ele é quem paga o frete. Mas quando não querem pagar, a gente aqui

paga.

E.: Mas como é que vocês se conheciam?

R.: Desde criança que a gente se conhece. Quando eu comecei com rede,

eu comecei vendendo a ele, faz muito tempo.

E.: E ele morava aqui?

R.: É ele morava aqui, trabalhava com rede em Jardim, a família dele é de

lá.

E.: Ele fazia o que?

R.: Ele tecia.

E.: Por que ele foi parar lá no Rio de Janeiro?

R.: Porque as coisas nem sempre é como a gente quer. Dá errado pra uns.

Você tem seus tearzinhos aqui vem um, lhe compra, lhe engana. Aí você vai só

caindo. Aí chega um tempo que o povo de tanto lhe enganar você não tem mais

como trabalhar. Aí tem que partir pra ir vender lá. Aí ele foi, tinha família dele lá.

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Ele foi pra lá disse: “Ricardo eu vou tentar um trabalho lá”. Aí ele foi trabalhar com

rede de novo.

A passagem revela uma estranha combinação entre viagem e ser

enganado. Nesta concepção, a viagem aparece como conseqüência de ser

enganado: “Aí chega um tempo que o povo de tanto lhe enganar você não tem

mais como trabalhar. Aí tem que partir pra ir vender lá”. Na história de Zé do

Crediário, por exemplo, ela é ao mesmo tempo causa e conseqüência. Gegê diz

que quando seu pai começou a vender para os donos de crediário na Bahia, ele

passou a ter muito cheque devolvido e, por conta disso, a tecelagem chegou a

ficar parada por um ano. Esta situação, no entanto, provocou uma outra viagem, a

do irmão de Gegê, para São Paulo: “quando não dá certo num lugar, tem o outro

pra compensar”.

Mas, se voltamos a questionar por quê viajar, encontramos também a

seguinte resposta: “O negócio dá mais dinheiro no crediário. Uma rede que custa

R$8,00, aqui se vende no máximo por R$9,00, mas lá, à vista é R$15,00 e no

crediário pode ganhar até R$40,00”. Ou ainda:

R.: É como eu tava dizendo a você, eu não gosto de trabalhar com muita

gente, aí eu parti pra comprar e vender porque ganha bem mais. Porque você

comprando e vendendo, você tem chance de vender a fulano mais caro, varia de

preço. Por exemplo, você chega e diz “Ricardo, eu quero mil peças”. Aí tem

condição de fazer um precinho melhor pra você, tá entendendo? Aí chega outro

rapaz e diz: “Ricardo eu quero só cem, aí você não... né? E aqui não. Aqui, quem

tem o tear é só aquele preço. Tanto faz pra mim, quanto pra outro, pra outro.

E.: Por que quem tem o tear é só aquele preço?

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R.: Porque ele só vende aqui. E eu não, eu mando pra Belém, pra o Pará,

São Paulo, Rio. Vai variando de cliente. Aí tem deles que não entende bem do

preço, não vem aqui, né, não sabe... Tem deles que sabe, mais do que a gente.

Pronto. O que é daqui mesmo, daqui de São Bento, a gente só vende a ele por

aquele preço x, mas o que é de lá, aí a gente já vende mais caro um pouquinho,

porque eles não entendem. Aí, por isso que eu parti pra comprar e vender, porque

ganha bem mais.

Quem vende apenas na região, segundo o modo de Ricardo elaborar o

conhecimento desta economia, só pode vender por “aquele preço”, mas vendendo

para fora, ou viajando, então se pode conseguir os clientes que “não entendem

bem do preço”. Entretanto, vender para fora, ou viajar, não é apenas vender em

outras regiões, é vender para quem é de fora, para aqueles que não compartilham

um certo conhecimento comum às pessoas inseridas no ramo de rede: “O que é

daqui mesmo, daqui de São Bento, a gente só vende a ele por aquele preço x,

mas o que é de lá, aí a gente já vende mais caro um pouquinho”. Essa fronteira do

“ser de fora” precisa ser muito mais social do que espacial para que possa vigorar

o principio do “monopólio de informações”.

As expressões “aqui o preço é um só” ou “aqui, quem tem o tear é só

aquele preço” podem ainda revelar que localmente o monopólio de informações

que caracteriza o negócio foi relativizado, afinal, formula-se que “quem é daqui”

sabe qual é o preço, isto é, há um controle público a respeito de como são

atribuídos os preços das mercadorias. Além disso, o conhecimento sobre o

negócio passa a ser compartilhado entre os parentes, ganhando assim um espaço

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maior nos sistemas de classificação do grupo em comparação aos contextos em

que se buscava mantê-lo separado dos valores morais internos.

Vimos, no capítulo anterior, que as inserções combinadas dos familiares no

ramo de rede podiam gerar um sistema de coordenadas que possibilita a cada

membro o conhecimento das diversas posições de que ele é constituído, isto é, da

própria divisão do trabalho no ramo. Este conhecimento é ainda mais

compartilhado quando se verifica uma maior permeabilidade entre as esferas

feminina e masculina das atividades. O negócio não precisa ser necessariamente

realizado pelos homens, há uma presença bastante significativa de mulheres

negociando os mesmos produtos que os homens, seja entre donos de tecelagem

(Ivelise, D. Alice, Alba), donos de depósito (Solange) ou entre o pessoal que

apronta (mulheres na Feira da Pedra). Além do mais, nas tecelagens que só

contam com trabalho familiar, as mulheres também trabalham de tecer, atividade

que, em geral, é considerada masculina, bem como, entre os que aprontam, as

tarefas são predominantemente consideradas femininas, mas os homens também

podem realizá-las.

Há um modelo de divisão do trabalho, mas em suas atualizações ele é

flexibilizado. Esta flexibilidade colabora para a existência de um modelo fluido de

orientação espacial e vice-versa. Um exemplo disso aparece na exposição da

família Nunes Rocha. Quando Gigi foi para o Pará com o marido vendedor por

conta própria, ela pôde permanecer aí, mesmo tendo se separado do marido,

porque pôde assumir, ela própria, a venda no carro boca de ferro, que não é nada

comum entre mulheres. Para comprar o carro, recebeu ajuda dos filhos e dos

irmãos que estão no Maranhão. Através das articulações que o ramo de rede dá

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forma, o núcleo de referência da família continua sendo o Sítio, mais

especificamente a casa do pai, e, assim, a família se distribui entre a Paraíba, o

Pará e o Maranhão, enquanto o negócio de redes sustenta os constantes

deslocamentos espaciais que permitem aos familiares dar suporte uns aos outros

mesmo distantes entre si. Ressalta-se também que a articulação espacial da

família pôde ser reiterada tanto por estes fluxos, quanto pela flexibilidade das

posições que os indivíduos incorporam no ramo de rede.

Se, por um lado, estes diversos aspectos indicam um alargamento do

significado social do negócio, por outro, este fato vai entrando em contradição com

a necessidade de “invisibilidade” do negócio, sobretudo se considerarmos a

existência somente da Feira da Pedra como locus privilegiado para a sua

realização na região de origem do ramo de rede.

Por isso, se torna tão necessário que as fronteiras do negócio sejam

alargadas para outros espaços através das viagens ou da venda para clientes em

outros estados, a fim de constituir um novo lugar de invisibilidade. Estas fronteiras

vão definindo, nos outros espaços, tanto a visibilidade interna das relações no

ramo de rede, pela presença crescente e associada de paraibanos e potiguares no

Maranhão, no Pará, no Rio de Janeiro, em São Paulo, quanto a invisibilidade

externa.

Contudo, o negócio não deve ser visto como o próprio limite da fronteira,

considerando que os que estão do outro lado desta são sempre passíveis de ser

enganados, pois há negociantes dentro, como há negociantes fora. Esta fronteira

não significa uma separação, mas a própria possibilidade de acessar, de entrar

em contato, reconhecendo que o que está fora é tão obscuro para o que está

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dentro, quanto o que está dentro é oculto para o que está fora. As associações

que estendem as fronteiras do ramo de rede são, portanto, um movimento em que

os negociantes de dentro acessam os negociantes de fora para garantir as

possibilidades de enganar e, ao mesmo tempo, acessam os negociantes de

dentro, para se proteger das possibilidades de ser enganado.

E.: – Mas e o seu primo, em Caicó?

R.: – Tiquinho. Jorge, o nome dele. O apelido é Tiquinho..

E.: – E você vende o quê para ele?

R.: – Eu vendo rede.

E.: – Pra ele vender em loja?

R.: – É, ele vai vender justamente no Maranhão.

E.: – Ele vai vender lá... mas ele vende como? Ele é dono de carro?

R.: – Ele é dono de carro. Ele tem uma Mercedes. Por exemplo, ele chega

numa cidade como Caicó. Ele chega no cliente. Lá no Maranhão tem loja de rede,

tem roupa, tudo misturado, sabe?

E: – Ele só vende pra loja, então?

C: – Só vende pra loja, crediarista também.

E: – E lá no Maranhão, ele tem alguém conhecido, algum parente?

C: – Não. Tem, assim, os cliente. Tem muita gente daqui, a maioria dos

clientes da gente lá, da gente não, deles, é gente daqui lá, morando lá. Eles vão

daqui. Ficam morando lá, a gente vende pra eles. 80% é de gente daqui que mora

lá. Paraibano que mora lá. Porque lá mesmo, se você for vender para o

maranhense é 90% de chance de perder. Eles são ruim pagador. Aí você tem

cheque devolvido. De dez cheques lá do Maranhão, 9,8 voltam..

E.: Então os clientes são gente daqui... Daqui, de onde?

R.: É daqui, a maioria de São Bento, Brejo do Cruz, Paulista. Só daqui, do

setor, dessas três, quatro cidadezinhas.

E.: Interessante, como tem gente daqui que vai pra todo canto...

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R.: Em todo canto que você pensar hoje tem gente daqui de São Bento

vendendo essas coisas. Lá no Rio eu já atendi um ou outro. E o canto que tem

mais é o Maranhão e o Pará. Onde tem mais paraibano vendendo mercadoria é o

Maranhão e o Pará. É um setor que vende muito, vende mais do que no Rio.

(...)

R.: Pra vender é o mesmo esquema, eu mando a mercadoria daqui pra lá, quando

chega lá a mercadoria, eles enviam os cheques por sedex. Eu envio dez mil reais de

mercadoria, quando chega lá, eles conferem e enviam os cheques no sedex.

E.: É tudo gente conhecida?

R.: Se não for conhecido é a mesma coisa que jogar o carro dentro do rio. É

gente daqui e às vezes, os daqui conhecem os de lá e ligam pra gente e diz:

“Ricardo, fulano daqui é bom, quer comprar um pouco...”. Aí a gente já vende

através dos daqui, sabe? Porque se vender pros de lá sem conhecer, é o mesmo

que você tá dando, é melhor dar, viu?

Em sua linguagem de comerciante, Ricardo calcula que “80%” dos clientes,

no Maranhão, por exemplo, são os conhecidos e que conhecem bem do preço,

“gente daqui, morando lá”. Quanto ao restante 20%, os daqui conhecem os de lá e

ligam pra gente e diz: ‘Ricardo, fulano daqui é bom, quer comprar um pouco...’ Aí

a gente já vende através dos daqui”. Assim, os conterrâneos e os parentes vão se

inserindo no ramo de rede para que as fronteiras geográficas de sua origem se

estendam a outras cidades, estados, ampliando conseqüentemente as fronteiras

sociais num processo semelhante ao que Strathern (1988) chamou

metaforicamente de encadeamento (enchainment). Ela supõe um movimento, uma

vibração (switch), que é o modo como uma relação é transmitida ou transformada

em outra. Essa vibração é como um eclipse, ela obscurece e revela. Estendem-se

relações que dão visibilidade (revelam) ao negócio, ao acessar, principalmente,

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conterrâneos e parentes, para estender relações que dêem invisibilidade

(obscurecem) ao negócio, assegurando a venda por um preço mais alto aos que

“não sabem bem do preço”.

A visibilidade também é indicativo da importância de se manter um certo

controle social sobre essas relações e não é feita apenas quando existem

relações entre negócios. Na história de Mariano, por exemplo, não há comércio

entre o ramo de couro e o ramo de rede, mas a presença de um cunhado e dos

filhos no Ceará envolvidos no ramo de couro, provavelmente contribuiu para

localizar lá os clientes com quem Mariano negocia. Não serve apenas para

encontrar conhecidos, mas para demonstrar a um cliente que ele é

permanentemente reconhecido.

R.: Todos esses agiotas que emprestam dinheiro aqui, saíram do comércio

de rede.

E.: são daqui todos?

R.: São todos daqui. Sei de uns que vendiam rede, venderam os carros, juntaram

dinheiro e começaram a trocar cheque, esses nunca mais viajaram, acharam melhor o ramo

de trocar cheque, porque eles só trocam com gente conhecida daqui. A gente não engana, a

gente atrasa, mas paga. Nem que lá fora o pessoal não paga a gente daqui. Mas a gente vai

trabalhar aqui e vai pagar. Se desfaz de um bem, divide a conta, mas paga. Esses lá fora

nem dividem, nem pagam. Só um cara só ficou me devendo setenta e seis mil e cem reais.

Ele morava em Caicó, foi pra Teresina, mas lá ele nunca se preocupou de me pagar. Meus

amigos lá disseram: “Rapaz, ele tem muito dinheiro aqui. Ele não lhe paga porque não

quer”. Se matar não resolve, a gente vai gastar mais com justiça. O jeito é trabalhar mesmo

pra pagar o povo.

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Nesta outra conversa com Ricardo se destaca como os amigos são

importantes para dar a ele informações de seu devedor, mesmo que, em última

análise, conclua que não há muito o que fazer. Na passagem, igualmente

sobressai um aspecto importante: seu devedor é de Caicó, mas aparece, para

Ricardo, posicionado no lado de fora da fronteira, uma vez que o enganou e que

Ricardo precisou acessar seus amigos para reforçar o fato de que ele está sendo

reconhecido, procedimento exigido somente quando alguém de alguma forma

escapa do controle. Destarte, isto nos revela o quanto esta fronteira não pode ser

pensada de modo rígido, não é o mero pertencimento às cidades da região de

origem do ramo de rede que faz de alguém um conhecido. Por outro lado, quando

os clientes no Maranhão acessam para Ricardo outros possíveis compradores que

não entendam bem do preço, estes compradores podem tornar-se conhecidos,

clientes. Por isso, sugeri a idéia do eclipse, pois conhecido, desconhecido,

visibilidade, invisibilidade são relações presentes simultaneamente, aquilo que

serve para obscurecer, está revelando um outro lado da situação.

Nota-se ainda a participação dos agiotas locais nesta dinâmica: ele troca

cheques para dar respaldo aos prejuízos dos enganos e se vale das vantagens de

um negócio que pode ser realizado do lado de dentro da fronteira, “acharam

melhor o ramo de trocar cheque, porque eles só trocam com gente conhecida

daqui. A gente não engana, a gente atrasa, mas paga. Nem que lá fora o pessoal

não paga a gente daqui”.

Muitas das situações apresentadas no segundo capítulo, em que foram

observados alguns reordenamentos das posições dos familiares no negócio

também podem ser interpretadas sob esta lógica das articulações feitas para

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garantir as possibilidades de enganar e se proteger das possibilidades de ser

enganado, sobretudo as que se referem à viagem.

No caso de Leandro e Alba, que são produtores/negociantes bem

capitalizados, há várias formas de conjugar visibilidade, isto é, a venda para quem

entende do preço; e invisibilidade, a venda para quem não entende do preço.

Leandro vende tanto para o irmão em Jardim Bangu, por exemplo, quanto através

dos corretores, que acessam os consumidores que não entendem do preço.

Os corretores e os redeiros por conta própria são os responsáveis pela

maior elasticidade desta fronteira ao desbravar regiões realmente externas,

inclusive no que diz respeito à língua, nas viagens a outros países da América do

Sul. Em outros momentos, eles se valem do menor entendimento dos turistas

estrangeiros. Talvez não seja por acaso que esta representação da habilidade em

ocultar informações aparece nele de modo mais marcante e até caricatural, pois

eles se tornaram um personagem famoso por suas barganhas: “o redeiro pede um

milhão, para ganhar um tostão”.

Se por um lado, quando Leandro negocia com seu irmão de Jardim Bangu

há visibilidade por ele ser um familiar, alguém da mesma cidade de origem que

ele, por outro lado, há também invisibilidade quando consideramos que eles já

foram sócios, mas para este nível de relação não há mais confiança suficiente.

Assim também, se por um lado Leandro quer garantir sua invisibilidade para

o consumidor através dos corretores, por outro lado, quando os corretores são

primos ou cunhados existe a garantia de localizar socialmente os indivíduos que

se endividarão com ele ao fazer o vale. Esta dívida, por sua vez, é a principal fonte

de pressão sobre os corretores para que eles estejam preocupados em saldá-la,

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vendendo o máximo de mercadorias pelo melhor preço possível. Uma

circunstância do campo pode ilustrar a importância da localização dos corretores:

acompanhei Alba numa visita à sua família em São José, passamos por Paulista,

Patos e Pombal para voltar a São José. Durante o percurso ela entrou na casa de

muitos corretores para pessoalmente cobrar as dívidas.

Incorporar uma pessoa aos parentes é uma outra forma de garantir

relações de confiança necessárias para se proteger das possibilidades de ser

enganado. Leandro e Alba convidaram Solange e Manuel, a quem são

fornecedores, para serem padrinhos de sua filha.

Tornar um irmão um sócio ou um filho, como fez Zé do Crediário, pode ser

uma forma de dar maior visibilidade às responsabilidades e às relações de

confiança que estão sendo atribuídas, principalmente quando se trata de fazer

uma oposição às situações que não deram certo. Parece haver uma considerável

simetria na oposição entre o familiar que é considerado sócio e o que remete a

uma situação de fracasso: Leandro em relação aos seus irmãos, um com quem se

desentendeu “comercialmente”, o outro que foi tornado sócio; Zé em relação aos

seus filhos, um que “não deu certo”, o outro que passa a ser sócio. É interessante

que a própria noção de família pode ser acessada para corresponder confiança,

mesmo que a situação de fracasso também tenha ocorrido entre familiares:

Vou lhe falar: ele por ser irmão, eu cunhada, ele tem muita organização, é um cara

direito, a gente não faz conta de lucro, entendeu? Tudo o que a gente ganha a gente investe

e sempre dá um balanço, de ano em ano, mas é na base da confiança entre família, a gente

não faz conta de centavos, nem... O que eu mando para ele eu anoto, o dinheiro que ele

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manda é anotado. Só que é uma coisa confiável, porque a gente sabe com quem trabalha. É

amigável. Ele é solteiro, eu sou casada, eu tomo conta aqui, meu esposo no Rio e ele em

São Paulo. Então é uma coisa que a gente confia um no outro, entre família.

Por isso, certas maneiras de hierarquizar as relações familiares servem

para demarcar as fronteiras da família, fazendo com que os indivíduos possam, ao

mesmo tempo, ser ou não considerados parentes de acordo com o contexto em

que eles são acionados. E fazendo com que, em certa medida, uma das fronteiras

que delimitam a família no ramo de rede continue se caracterizando pelo ideal de

que “com parente não se neguceia”, ou “a gente não faz conta de lucro”, ou ainda

que fazer um acabamento signifique apenas um favor.

Recuperando a idéia de que os reordenamentos familiares possam se

compreendidos a partir desta lógica de visibilidade/invisibilidade, os esforços que

são empreendidos para garantir que os donos de tecelagem e até seus filhos

viajem, isto é, que permitem o deslocamento justamente dos indivíduos que têm

maior peso nas próprias tomadas de decisão do funcionamento da tecelagem, são

importante indício de que a ênfase da prosperidade da unidade produtiva é dada

aos sucessos do negócio e, consequentemente, da habilidade do negociante em

conjugar as estratégias disponíveis para alargar as fronteiras do seu negócio, bem

como de sua habilidade para lidar com as possibilidades de enganar e se proteger

dos enganos.

Esta lógica deslocou Leandro para o Rio e colocou Alba à frente da

tecelagem, de modo que, hoje, as visitas dos esposos implica na mobilidade de

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ambos, Leandro retorna à São Bento de dois em dois meses e eventualmente ela

vêm ao Rio de Janeiro.

Zé do Crediário sucessivamente transferiu a posição dos filhos.

Primeiramente, para garantir a liberação do seu trabalho na tecelagem, colocando

um dos filhos para administrar. Como a própria viagem provocou as crises dos

cheques devolvidos, para compensar as possíveis perdas – que é uma forma de

se proteger dos enganos – um filho também foi liberado para viajar. E depois o

outro filho: “quando não dá certo num lugar, tem o outro pra compensar”.

Nelson Pedreira (ver capítulo 1), não tinha filhos para liberá-lo do trabalho

na tecelagem, tendo que pagar pela força de trabalho de outros para poder viajar.

Se restringisse o seu negócio à Feira da Pedra poria em risco sua condição de

negociante, isto é, de tentar conseguir um preço melhor para os seus produtos.

Afinal, ali o preço é um só e são reduzidas as chances de ocultar as informações

sobre os cálculos de sua tecelagem.

O exemplo de Geraldo revela a consciência da importância das relações

familiares na conjugação dos esforços da unidade produtiva, a fim de liberar o

trabalho do produtor para que ele possa negociar e, com isso, garantir um preço

melhor para os seus produtos. Sendo somente o seu trabalho e o de sua esposa,

que ainda precisa ser dividido com o cuidado da prole, seu trabalho na produção

acaba imobilizando-o e, sem poder viajar ou negociar, Geraldo fica vulnerável aos

atravessadores, não conseguindo um preço melhor para os seus produtos. “Com o

trabalho do artesão assim só dá pro comer”.

O negócio, mais uma vez, se associa à condição de realização da

autonomia que encontra, nesta pesquisa, um deslocamento em relação ao lugar

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de seu exercício. Se no contexto dos agricultores negociantes apresentados por

Woortmann e Garcia Jr. a autonomia era garantida pela combinação da produção

agrícola com o negócio, embora fosse vivida na relação do trabalho com a terra,

aqui a autonomia é vivida diretamente na possibilidade do negócio valorizar o

próprio trabalho e o trabalho de sua família, ao conseguir um preço melhor para os

próprios produtos. No entanto, o fato se revela como uma contradição: para

valorizar o próprio trabalho e o de sua família na produção da tecelagem, e dos

acabamentos como extensão da tecelagem, é preciso liberá-los para o negócio ou

para a viagem.

Não estar submetido aos atravessadores quando se negocia os próprios

produtos, que considerei uma idéia de autonomia do trabalho para Geraldo, o

único a citar o termo atravessadores, no limite, leva à negação do trabalho

produtivo que é realizado pelo próprio produtor, dono da tecelagem. Assim, as

representações desta economia voltam a reforçar a identidade entre tecelagem e

negócio, que tanto podem ser apreendidas em seu sentido histórico, no que

concerne à pequena manufatura ser um desdobramento do negócio entre os

agricultores negociantes, quanto pode ser apreendida em seu sentido lógico, no

que concerne à consciência das pessoas envolvidas no ramo de rede de que a

manufatura têxtil só faz sentido quando se pode garantir as melhores condições

de entrada do seu produto no mercado.

Por isso, vai aparecer também nas formulações de Ricardo este sentido de

imobilidade do trabalho na produção, pois, para ele, manter a tecelagem era

sinônimo de estar submetido a um só preço: “Aqui, quem tem o tear é só aquele

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preço”, logo, seria melhor investir o seu esforço de uma vez no negócio, o que o

levou a desfazer-se dos teares de seu pai e “partir para comprar e vender”.

Por fim, pondero que a idéia de autonomia em relação à terra não foi

absolutamente transmutada, conforme apareceu no próprio exemplo de Ricardo,

que se desfez dos teares do pai, mas de modo algum pretende abrir mão do sítio;

e de João, que instrumentaliza sua situação transitória de corretor para garantir a

prosperidade do sítio e, quem sabe, no futuro, poder conjugar o sítio, a tecelagem

e o negócio com seus próprios produtos.

É interessante comparar, neste sentido, a idéia de autonomia representada

nas melhores condições de vender os próprios produtos com a idéia de autonomia

em relação ao trabalho na terra. Não está em questão para os agricultores

negociantes necessariamente garantir as melhores condições de venda dos seus

produtos, pois há a possibilidade de eles não serem vendidos, mas consumidos

em casa, pela família. Não chega a ser um problema direto a venda dos produtos

do roçado aos atravessadores. Por isso, os produtos da lavoura não são

calculados como os mais rentáveis, mas aqueles que vão assegurar a reprodução

social da família, seja através da venda e aquisição de dinheiro, quando está

“dando preço”; seja através do consumo direto. O negócio aí serve para garantir

ao pai de família uma margem maior de manobra em relação às oscilações do

mercado, portanto, para poder lidar com elas mais de acordo com as

necessidades de reprodução social da família, assegurando uma renda em

dinheiro, mesmo quando os produtos da lavoura não estão adequados à venda.

No ramo de rede, sem levar em conta os agricultores, não há dúvida que a

reprodução social da família é um elemento central da dinâmica social, mas outras

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manobras precisaram ser inventadas para poder dar conta do princípio aqui

absoluto (lá relativo) de rentabilidade dos produtos da tecelagem no mercado. É

neste sentido, no modo como as famílias precisam ampliar suas fronteiras

espaciais e sociais em busca das melhores condições de venda dos produtos, que

o negócio se transmuta em viagem.

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Conclusão

A trajetória desta dissertação partiu da elaboração de uma crítica à primeira

abordagem que propus sobre o mesmo recorte empírico na monografia de

graduação. Não me preocupei em fazer uma apresentação prolongada sobre as

formulações da monografia, mencionando apenas a fundamentação teórica em

que me apoiava, bem como apoiava os autores citados que trataram da produção

de redes em São Bento e, no caso de Araújo (1996), da produção de redes no

Nordeste.

Na introdução, no que concerne às análises expostas, a perspectiva

marxista de temas como a contradição entre o desenvolvimento das forças

produtivas e das relações de produção e a transição do artesanato para

manufatura, foi questionada mais no sentido metodológico do que propriamente

em relação à validade das proposições teóricas. A crítica se voltava para o uso

dessas teorias como modelos explicativos que poderiam ser aplicados e que

geralmente eram aplicados sem maiores ponderações.

A primeira ponderação feita aqui se dirigiu à necessidade de confrontar

estas teorias com os significados que certas transformações nas relações de

produção poderiam ter para as próprias pessoas envolvidas com o ramo de rede.

O verbo confrontar deve ser tomado em seu sentido enfático, ou seja, é

necessário ter a preocupação de não conceber tais significados como reflexos

dessas teorias, mas em oposição a essas teorias, mesmo que eventualmente eles

– significados e teorias – venham a confluir.

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Trazer a esta “arena” outras orientações teóricas é também uma forma de

estimular o confronto. No caso desta pesquisa, as outras teorias se voltavam para

os estudos sobre família e campesinato, que acabavam sendo situados, na

abordagem anterior, no passado do desenvolvimento da indústria e do comércio

de redes e “derivados”.

A família se tornou central para esta análise sobretudo a partir do trabalho

de campo realizado na região sertaneja. Desde as primeiras visitas aos

produtores, que aconteceu em Caicó (RN), num momento que considerava não ter

chegado ainda ao meu destino, que estava simplesmente de passagem, o

funcionamento das unidades produtivas e comerciais pareciam não poder ser

compreendidos em sua dinâmica particular sem levar em conta as relações

familiares.

Hipoteticamente, a história que Gegê me contou sobre seu pai, Zé do

Crediário, poderia simplesmente ter confirmado que o início das viagens de Zé à

Bahia é concomitante à introdução dos teares elétricos em sua tecelagem. Se não

fosse concomitante, no entanto, isto não significaria que o aumento da

produtividade não tivesse qualquer relação de causalidade com a necessidade de

expansão de mercado para os produtos das tecelagens. O caso particular das

viagens de Zé poderia ser simplesmente a atualização de uma regra geral – a

necessidade de expansão dos mercados devido ao aumento social da

produtividade – e não específico da produtividade da tecelagem de Zé.

As considerações metodológicas que me permitiram perceber uma maior

riqueza de dados empíricos em relação à minha monografia, bem como atentaram

à maneira em que as atividades do ramo de rede poderiam ser distribuídas tanto

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108

Culturalmente focalizada na terra natal, e estrategicamente dependente dos lares periféricos no estrangeiro, a estrutura é assimétrica de duas maneiras opostas. Considerada como uma totalidade, a sociedade translocal está centrada em suas comunidades indígenas e orientada para elas. Os imigrantes identificam-se com seus parentes na região de origem, e é a partir dessa identificação que se associam transitivamente entre si no estrangeiro. Esses habitantes da cidade e do mundo exterior permanecem ligados a seus parentes na terra natal, especialmente por entenderem que seu próprio futuro depende dos direitos que mantêm em seu lugar de origem. Assim, o fluxo de bens materiais favorece em geral os que ficaram em casa: estes se beneficiam dos ganhos obtidos e das mercadorias adquiridas por seus parentes na economia comercial externa. (Sahlins, 1997)

A citação remete a diversas circunstâncias retratadas neste trabalho. A

dependência que a produção das redes, e das pessoas que dela vivem, tem dos

paraibanos e potiguares que se estabeleceram em outros estados; dos fluxos

constantes de bens materiais e de pessoas entre as duas áreas; a importância das

relações entre os parentes e conterrâneos situados no meio de mundo para aí se

manterem e reiterarem os laços que os identificam com sua origem; bem como a

necessidade de se salvaguardar a centralidade do lugar de origem.

As reflexões do segundo capítulo abriram oportunidades de

aprofundamento sobre o que está em jogo nas relações familiares que são

estabelecidas para sustentar as articulações entre os diferentes espaços de

realização do negócio de redes, principalmente no que se refere à distribuição das

atividades entre os familiares. Isso poderia ter levado, no prosseguimento do

trabalho, ao questionamento da maneira como se organiza a distribuição entre

produção, trabalho e consumo no interior de uma dada fronteira familiar. Questão

que se desdobraria no tema da reciprocidade e que poderia ter apontado para um

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campo de relações caracterizado por uma maior alteridade em relação à lógica

capitalista.

Entretanto, pelo tipo de formulações que surgiram nos depoimentos durante

o trabalho de campo, o foco apresentado no terceiro e último capítulo afunilou o

espectro de relações do ramo de rede para o tema do negócio, ou comércio. O

negócio revelou-se, neste contexto, como o principal símbolo da mediação entre

os princípios de autonomia e anonimato (Rubin, 1980), de invisibilidade que

fundamentam as relações mercantis e que de certa maneira se contrapõem às

necessidades de reconhecimento dos laços sociais quando duas pessoas travam

algum tipo de relação, reconhecimento representado aqui pela confiança.

Em seu papel de símbolo, daquilo que permite que a prática se torne

cognoscível entre as pessoas que compartilham um código comum, a prática das

relações comerciais enquanto negócio foi perpassando outras relações, sobretudo

as de parentesco. E o campo de realização da autonomia e do anonimato,

necessário à realização do negócio, precisou incorporar novos espaços, o que foi

simbolizado pela viagem.

A partir desta seqüência de operações e simbolizações concluí, nesta

dissertação, um certo modo de explicar a extensão territorial do ramo de rede.

Como evidenciei anteriormente, esta compreensão não exclui a existência de

outras lógicas que talvez pudessem estar centradas em outros aspectos das

relações familiares e que pretendo que sejam foco do próximo investimento teórico

e empírico sobre o ramo de rede.

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