família, sexualidade e religião*

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Análise Social, vol. XXI (86), 1985-2.°, 345-389 José Machado Pais Família, sexualidade e religião* 1. INTRODUÇÃO O itinerário do estudo cujos resultados me proponho aqui apresentar afasta-se, de certo modo, da tradicional sucessão de etapas de um processo de investigação. Com efeito, não tendo participado na discussão das hipóte- ses de investigação que terão estado na base da elaboração do Inquérito sobre os Valores e Atitudes dos Jovens Portugueses, levado a cabo pelo Insti- tuto de Estudos para o Desenvolvimento, vejo-me constrangido a tomar como «factos» os resultados desse mesmo Inquérito. Quer isto dizer que mais não posso fazer do que argumentar sociologicamente sobre esses mesmos resultados, ao mesmo tempo que, por vezes, tentarei contrariar o velho afo- rismo segundo o qual «contra factos não há argumentos». Algumas interpretações e hipóteses de investigação não confirmadas e que ousei alinhavar devem ser tomadas a titulo meramente especulativo, sujeitas, pois, a uma validação posterior. O tipo de quadros estatísticos utiliza- dos e que servem de suporte à comunicação referem-se a distribuições per- centuais multivariáveis que permitem, por conseguinte, examinar a distribui- ção percentual de uma variável (dependente) em cada uma das diferentes categorias de outra variável (independente) l . Optamos, entretanto, por quadros multivariáveis com base em percenta- gens, em vez de frequências absolutas, uma vez que tal opção facilita a reali- zação de comparações numéricas entre as distribuições condicionais que se desejem comparar. Por outro lado, recorreu-se fundamentalmente a qua- dros cujas percentagens foram calculadas no sentido do factor «causal» ou da variável «independente». Tudo isto quer dizer que as percentagens * Quero exprimir os meus agradecimentos ao Prof. A. Sedas Nunes por muitas observações e criticas que pacientemente dirigiu a aspectos mais controversos de uma primeira versão inicial deste artigo, que, em alguns casos, não tive engenho de ultrapassar. Do mesmo modo, quero agradecer à Dr. a Eduarda Cruzeiro algumas sugestões aportadas ao presente trabalho. 1 Uma distribuição bivariável ou multivariàvel permite o exame directo não apenas da dis- tribuição global de uma variável dependente, como também das condições que influenciam essa distribuição. Isto é, um quadro de distribuição bivariàvel ou multivariàvel permite relacionar uma série de distribuições condicionais com uma distribuição global de uma variável dependente. Cf. Manuel Garcia Ferrando, Socioestadística, Centro de Investigaciones Sociológicas, Madrid, 1982, pp. 201-211, e H. J. Loether e D. G. Mctavish, Descriptive Statistics for Sociolo- gists, Boston, Ally & Bacon, 1974. 345

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Page 1: Família, sexualidade e religião*

Análise Social, vol. XXI (86), 1985-2.°, 345-389

José Machado Pais

Família, sexualidade e religião*

1. INTRODUÇÃO

O itinerário do estudo cujos resultados me proponho aqui apresentarafasta-se, de certo modo, da tradicional sucessão de etapas de um processode investigação. Com efeito, não tendo participado na discussão das hipóte-ses de investigação que terão estado na base da elaboração do Inquéritosobre os Valores e Atitudes dos Jovens Portugueses, levado a cabo pelo Insti-tuto de Estudos para o Desenvolvimento, vejo-me constrangido a tomarcomo «factos» os resultados desse mesmo Inquérito. Quer isto dizer que maisnão posso fazer do que argumentar sociologicamente sobre esses mesmosresultados, ao mesmo tempo que, por vezes, tentarei contrariar o velho afo-rismo segundo o qual «contra factos não há argumentos».

Algumas interpretações e hipóteses de investigação não confirmadas eque ousei alinhavar devem ser tomadas a titulo meramente especulativo,sujeitas, pois, a uma validação posterior. O tipo de quadros estatísticos utiliza-dos e que servem de suporte à comunicação referem-se a distribuições per-centuais multivariáveis que permitem, por conseguinte, examinar a distribui-ção percentual de uma variável (dependente) em cada uma das diferentescategorias de outra variável (independente)l.

Optamos, entretanto, por quadros multivariáveis com base em percenta-gens, em vez de frequências absolutas, uma vez que tal opção facilita a reali-zação de comparações numéricas entre as distribuições condicionais que sedesejem comparar. Por outro lado, recorreu-se fundamentalmente a qua-dros cujas percentagens foram calculadas no sentido do factor «causal» ouda variável «independente». Tudo isto quer dizer que as percentagens

* Quero exprimir os meus agradecimentos ao Prof. A. Sedas Nunes por muitas observações ecriticas que pacientemente dirigiu a aspectos mais controversos de uma primeira versão inicialdeste artigo, que, em alguns casos, não tive engenho de ultrapassar. Do mesmo modo, queroagradecer à Dr.a Eduarda Cruzeiro algumas sugestões aportadas ao presente trabalho.

1 Uma distribuição bivariável ou multivariàvel permite o exame directo não apenas da dis-tribuição global de uma variável dependente, como também das condições que influenciam essadistribuição. Isto é, um quadro de distribuição bivariàvel ou multivariàvel permite relacionaruma série de distribuições condicionais com uma distribuição global de uma variável dependente.Cf. Manuel Garcia Ferrando, Socioestadística, Centro de Investigaciones Sociológicas,Madrid, 1982, pp. 201-211, e H. J. Loether e D. G. Mctavish, Descriptive Statistics for Sociolo-gists, Boston, Ally & Bacon, 1974. 345

Page 2: Família, sexualidade e religião*

somam 100% por cada categoria do factor causal ou da variável independente,ou seja, as percentagens de cada coluna devem somar 100%.

As técnicas estatísticas que permitem a descrição quantitativa e sintéticade uma população — neste caso, a população dos jovens portugueses dos 15aos 24 anos — podem conduzir o investigador que dessas técnicas se serve ainterpretações incorrectas. Aliás, é arriscado, a partir de uma amostra restrita,como aquela em que se baseia o presente estudo, fazer generalizaçõesdesprovidas de uma razoável margem de dúvida. Daí a justificação do pudorcom que encaro o recurso sistemático aos resultados estatísticos do Inquérito.Pudor que todavia não me inibe de a eles recorrer como via confirmativade algumas hipóteses de investigação que tentarei lançar à discussão, interes-sado como estou, para além do mais, em contrariar o ponto de vista daquelefamoso político conservador, primeiro-ministro da rainha Vitória, Benja-min Disraeli, para quem existiam três classes de mentira: «mentiras, menti-ras desprezíveis e estatísticas»...

Dizia Durkheim, nas suas Regras do Método Sociológico, que a estatísticaexpressa um certo «estado de alma colectiva»2. É neste e apenas nestesentido — tomados os dados estatísticos enquanto indicadores sociais — queprocurarei analisar os resultados estatísticos do Inquérito. Espero que essesresultados espelhem de alguma forma o «estado de alma colectiva» dajuventude portuguesa dos inícios da presente década.

Entretanto, há que salientar que os resultados do Inquérito não foram,no seu conjunto, exaustivamente tratados. Privilegiou-se o tratamento maisaprofundado de alguns desses resultados em detrimento de uma análiseextensiva de todos eles, que, a ser feita no âmbito deste pequeno trabalho, teriade ser necessariamente superficial.

Numa primeira parte deste artigo é debatida a posição dos jovens perantea família e o casamento. Uma questão que estará presente nesse debate refe-re-se à discutida passagem, nas sociedades contemporâneas, de um modelode casamento comandado pela «razão» a um outro modelo em que predominao «amor-paixão». O estudo desta questão será desenvolvido a partir daanálise das atitudes dos jovens em relação à sexualidade e da distribuição dastarefas domésticas entre os jovens casados.

Numa segunda parte do artigo, e com base nos resultados do Inquérito,ensaia-se uma abordagem sociológica do amor e do namoro — fenómenosque habitualmente são, ao nível do senso comum, considerados de uma formaidealista. Veremos então como as relações entre os namorados estãosujeitas a um manto de legitimações e de normas socialmente instituídas. Estatese será ilustrada discorrendo-se sobre a linguagem corporal e ritualizadaentre os namorados. Veremos como as carícias estão sujeitas a um controlopaterno e como a própria destapagem do sexo se encontra associada à instru-mentalização do corpo biológico enquanto corpo social. Finalmente, discu-te-se o controlo exercido pela religião sobre a atitude dos jovens em relação àsexualidade.

2, E. Durkheim, Las Regias del Método Sociológico, Buenos Aires, La Pléyade, 1972,346 P. 38, citado por M. G. Ferrando, Socioestadística[...]

Page 3: Família, sexualidade e religião*

2. «AMOR-PAIXÃO» OU «AMOR-RAZÃO»?

2.1 O REACENDER DE UM VELHO DEBATE

Em recentes estudos sobre família contemporânea debate-se a passagemde um modelo de casamento comandado pela «razão» a um outro modeloem que predomina o «amor-paixão». Este debate pode equacionar-se nosseguintes termos3:

Para uns, o casamento de «amor» é não apenas incompatível com afamília tradicional, como o continua a ser em relação à famíliacontemporânea4. O casamento de «razão» é, para os que defendemesta posição, o modelo-padrão de todas as uniões institucionalizadas;

Para outros, o casamento tem sido assaltado por uma verdadeira ondade explosão de sentimento amoroso5. Aliás, um dos dogmas da orto-doxia familiar contemporânea consiste em sustentar que o casamentoé, hoje em dia, um casamento de amor, que obedece à pura lógica dossentimentos, por oposição ao casamento de «putros tempos», deter-minado por alianças de grupos, de status, de capitais.

As posições dominantes, atrás descritas — sobre se p casamento, nas socie-dades contemporâneas, é comandado pela «razão» ou pelo « coração» —,enfermam de um pressuposto ideológico segundo o qual, em cada socie-dade, em cada momento histórico, domina um e um só determinado tipo decasamento. Do nosso ponto de vista, a resposta à questão levantada pelodebate não pode ser dada em termos de «cara» ou «coroa». Esta é uma ques-tão de «mais» ou «menos» — consoante os casos —, e não de «tudo» ou«nada». De facto, a análise sociológica tem de proceder a partir do reconhe-cimento de vários tipos de casamento: civil, religioso, «união livre», etc.A atitude dos jovens perante cada um destes tipos de casamento encontra-se,por outro lado, socialmente condicionada e, sendo assim, nem todos osjovens se pautam pelo mesmo tipo de comportamento. Com efeito, muitoembora se possa afirmar que os jovens portugueses optam maioritariamentepelo casamento religioso, essa opção tem raízes sociais. À modalidade do casa-

3 A polémica que está na origem deste debate não é nova. Spencer tivera já oportunidadede desenvolver a, tese da implantação progressiva do casamento de afeição, por oposição àunião institucionalizada (union by law). Durkheim, por seu lado, contrapôs a solidariedadefamiliar «pessoal», baseada na dedicação, à coesão implicada pelo desejo de conservação de for-tunas familiares. Cf. E. Durkheim, «La Famille Conjugale», in Revue Philosophique, 1921,vol. 46, n.° 9, pp. 1-14. Recentes investigações no âmbito de uma sociologia «futurologista»têm, por outro lado, admitido que o processo de «desencantamento» do matrimónio e da fami-lia fará desaparecer o «amor romântico» como fundamento daquele. Cf. Leo Davids, «NorthAmerican Marriage», in The Futurist, vols. 5/3, pp. 190-195, cit. por Juan González-Anleo,«Los Jóvenes Espanoles y la Familia», in Informe Sociológico sobre la Juventud, Madrid, Fun-dación Santa Maria, 1984, p. 94.

4 R. Pillorget, La Tige et le Rameau — Familles Anglaises et Françaises. XVI-XVIII Siè-cles, Paris, Calmann-Lévy, 1979, e Louis Roussel, Le Mariage dans la Société Française Con-temporaine, PUF, 1975.

5 C. L,. Kruithof, «L'Amour, Phénomène Sociale», in Revue de L'Institut de Sociologie deL'Université de Bruxelles, n.os 1-2, 1978, pp. 7-73, e Louis Roussel, «Générations Nouvelles etMariage Traditionnel», in Population, Janeiro-Fevereiro de 1979. 347

Page 4: Família, sexualidade e religião*

Atitude dos jovens em relação ao casamento, segundo «habitat», estrato social, posição perante a religião e posição perante a política

IQUADRO N.° 1-A]

Atitude em relação aocasamento

Casamento civilCasamento religioso ...União «livre»N/R

Total

18,563,710,57,3

Rural

1,378,0

5,95,8

Habitat

Urbano

24,053,214,38,6

Intermédio

15,770,9

7,46,0

Alto//médio

alto

19,855,320,74,2

Estrato social

Médio

20,661,310,18,0

Baixo

12,574,2

6,36,9

Posição perante a religião

Católico

7,2 •B7,2

2,43,2

pradcLe

16,966,29,77,2

42,028,818,410,7

o u t r a

28,131,126,314,5

12,770,39,97,0

Posição perante a política

20,862,4

9,37,5

21,962,710,74,7

.ouerda

19,258,712,39,9

Page 5: Família, sexualidade e religião*

mento religioso aderem maioritariamente os jovens dos meios rurais (78%),dos mais baixos estratos sociais (74,2%), os jovens católicos praticantes(87,2%), os que no espectro político se situam mais à direita (70,3%), osjovens trabalhadores (77,6%), os de mais baixas habilitações literárias(78,7%), os jovens de mais baixo escalão etário (70,6%), os jovens quenamoram (88,1%), aqueles que no casamento privilegiam a relação sexual(73,1%) e, finalmente, aqueles cujos pais são assalariados agrícolas(74,2%), casados pela Igreja (66,5%), ou que, simplesmente, vivem juntos(81,6%) (quadro n.° 1). Largos sectores da população jovem portuguesamostram, deste modo, uma forte tendência a seguir um modelo de famíliaque Sara Taubin e Emily Mudd caracterizaram sob a designação de famíliatradicional contemporânea6. A grande maioria dos jovens portugueses con-tinuam a desejar casar tradicionalmente pela Igreja, o que não invalida queas famílias que venham a constituir tendam a readaptar as velhas tradiçõesàs novas realidades, ao mesmo tempo que criam novas tradições.

Atitude dos jovens perante o casamento, segundo situação em relação ao trabalhoe habilitações

[QUADRO N.° 1-B]

Situação em relação ao trabalho HabilitaçõesAtitude em relação ao T t 1

casamento °

Casamento civil 18,5Casamento religioso .. 63,7União «livre»... 10,5N/R 7,3

Sóestuda

20,758,712,28,4

Sótrabalha

13,477,66,12,9

Trabalhador--estudante

25,855,215,83,2

Outra

18,358,511,012,2

Básico

9,778,74,76,9

Secundário

20,159,412,77,8

Superior

26,552,014,86,7

Atitude dos jovens em relação ao casamento, segundo idade, namoro e atitude sexual

[QUADRO N.° 1-q

Idade Namoro Atitude sexual

T o t a l Só 1 ** 0 Sotaiio - . , • Privilegia15-17 18-20 21-24 com sem J í ^ S L reIação

namorada namorada cação s e x u a j

Casamento civil 18,5Casamento religioso .. 63,7União «livre» 10,5N/R 7,3

O facto de a maioria dos jovens portugueses (63,7%) preferir o casamentoreligioso não nos permite, contudo, tomar qualquer posição clara no alu-dido debate — casamento de razão ou de coração? Com efeito, não é fácilsustentar que, entre os jovens portugueses, o casamento religioso seja o

15,270,6

7,17,1

17,867,07,77,5

22,653,217,17,1

14,188,110,87,0

23,959,110,96,0

18,862,211,47,7

16,073,18,12,8

6 Sara B. Taubin e Emily H. Mudd, «Contemporary Traditional Families: The UndefinedMajority», in Eleanor D. Macklin e Roger H. Rubin (eds.), Contemporary Families and Alter-native Lifestyles. Handbook on Research and Theory, Califórnia, Sage Publications, 1983,cap. 12, pp. 256-268. 349

Page 6: Família, sexualidade e religião*

A realidade dos factos não deve, portanto, ser confundida com a ideolo-gia da família conjugal actualmente dominante. Esta ideologia estabeleceum tipo ideal de família conjugal, no sentido weberiano do termo, que,nomeadamente, afirma o princípio da igualdade contra as barreiras de classe,casta ou sexo; defende o direito de cada um eleger o seu companheiro/a e olocal de residência, seleccionando as obrigações com os seus familiares queserão respeitadas independentemente das decisões do grupo familiar; afirmao valor do individual contra os elementos controlados por laços de parentesco,de riqueza, ou etnia; proclama o direito de cada um a mudar o rumo dasua própria vida familiar se esta não lhe é inteiramente agradável; e, final-

Atitude dos jovens em relação ao casamento segundo a profissão dos pais e o casamentodos pais

[QUADRO N.° 1-D]

. . , Profissão do pai(úr) Casamento dos pais(6)Atitude em relação ao T ,

casamento l o t a l II III IV V I II III IV

17,466,59,46,7

5,481,68,74,3

58,510,930,6—

18,833,622,325,3

Casamento civil 18,5 23,0 17,6 18,3 18,9 10,8 31,9Casamento religioso 63,7 53,4 61,4 66,6 64,8 74,2 35,3União «livre» 10,5 16,7 13,6 6,0 10,0 9,3 20,4N/R 7,3 • 6,9 7,4 9,1 6,4 5,7 12,4

I — Proprietários, quadros superiores, quadros médios e profissões liberais.IIi — Empregados de escritório e comércio.

(d) III — Operários (especializados e não especializados).IV — Trabalhadores independentes.V — Assalariados agrícolas.

I — Casados por civil.II — Casados por Igreja.

(b) III — Vivem juntos.IV — Separados, mas casados por civil.V — Separados, mas casados por Igreja.

corolário de atracções irresistíveis, de sentimentos amorosos mais ou menosincontroláveis. É possível que nalguns casos isso aconteça. Contudo, a preten-dida primazia subjectiva do sentimento de amor não invalida a importânciade outros factores que, de facto, condicionam o casamento. A maioria dosjovens portugueses reconhecem, como adiante se verá, que a família é ummeio de garantia de segurança económica.

Posição dos jovens perante a família

[QUADRO N.° 2]

«A família é o meio «A família é uma «A família é indispensávelPosição dos jovens de garantia da nossa fachada social para a nossa

segurança económica?» sem sentido?» segurança afectiva?»

Discorda totalmente 2,4 18,3 1,0Discorda 19,3 60,8 9,4Não concorda nem discorda 22,6 9,7 15,1Concorda 49,0 7,2 59,1Concorda totalmente 4,4 0,8 12,9N/R...- 2 ! 3 3 ^ 2 , 4

Page 7: Família, sexualidade e religião*

mente, apoia o amor como um direito, por oposição ao matrimónio acordadopelas famílias de origem7.

E qual a realidade dos factos? Qual a atitude dos jovens portugueses emrelação à família? Pensarão a família como uma fachada social sem sentido?Um meio de garantia de segurança económica? Ou um instrumento indis-pensável de segurança afectiva?

À primeira vista, se o casamento de «amor» predominasse sobre o casa-mento de «razão», os jovens encarariam a família como um instrumentoindispensável de segurança afectiva. Em contrapartida, poucos seriam os que

Atitude dos jovens em relação à sexualidade, segundo o estado civil

[QUADRO N.° 3]

Estado civil

Atitude em relação à sexualidade Sexo Total Solteiro Solteiro Casado oucom sem vivendo

namorada namorada acompanhado

«A sexualidade significa apenas ter Mrelações sexuais» F

«A sexualidade é uma reacção glo- Mbal entre duas pessoas» F

«O mais importante na sexualidade Msão as relações sexuais» F

«A sexualidade é uma forma de co- Mmunicação entre H e M» F

Não sabe/não responde p

8,67,5

39,736,4

5,74,9

44,548,0

1,53,2

10,06,7

36,131,1

7,16,1

45,453,0

1,43,1

7,45,3

42,244,9

4,42,5

44,244,3

1,83,0

6,414,9

64,132,4

2,66,5

26,841,9

4,3

considerariam a família como «garantia de segurança económica», ou, purae simplesmente, como uma «fachada social sem sentido». Ora — indepen-dentemente do habitat, do estrato social de origem, das posições perante areligião e a política, da situação em relação ao trabalho e do grau de habilita-ções literárias — apenas 21,7% dos jovens portugueses não concordam comque a família seja um meio de garantia e de segurança económica (quadron.° 2). E tanto assim é que não hesitam, em 79% dos casos, em discordar daopinião que postula que «a família é uma fachada social sem sentido».Naturalmente que, como corolário destas atitudes, 74% dos jovens portugueses

7 Uma satisfatória caracterização da ideologia da familia conjugal é desenvolvida por Wil-liam J. Good, «The Theoretical Importance of Love», in American Sociology Review, xxiv,Fevereiro de 1959, pp. 38-47. Do mesmo autor pode ainda consultar-se «Industrialización yCambio Familiar», in Bert F. Hoselitz e Wilbert E. Moore, Industrialización y Sociedad,Madrid, Euramérica, S. A., s. d. Contudo, o modelo da familia conjugal foi pioneiramente carac-terizado por Alexis Tocqueville, La Democracia en América, México, Fondo de Cultura Econó-mica, 1978, parte iii, pp. 541-557 (título original: De la Démocratie en Amérique, 1835). Toc-queville descreve a ideologia individualista da família típica de uma «sociedade democrática»,evocando o recolhimento afectivo e normativo da família nuclear sobre ela mesma e a sua faltade fidelidade em relação às gerações antepassadas. Tocqueville inaugura, assim, o tema da pri-vatização, à qual se associam os sentimentos de liberdade e de solidão, tema que posteriormentehaveria de ser retomado por correntes sociológicas próximas da escola de Francoforte. 351

Page 8: Família, sexualidade e religião*

são levados a considerar que a família é indispensável para se atingir a segu-rança afectiva.

A partir dos resultados do Inquérito parece sensato afirmar que osjovens portugueses dão mostras de aderir à instituição social da família tantopor motivos de ordem racional, como por motivos de ordem afectiva. Con-tudo, nem sempre o bom senso nos conduz por bons caminhos. O facto deos jovens portugueses considerarem maioritariamente a família como uminstrumento indispensável de segurança afectiva não significa que a famíliacontemporânea esteja a rebentar pelas costuras com a pretendida explosãode amor.

2.2 «FAZER AMOR» OU «TER RELAÇÕES SEXUAIS»?I

Que se passará, por exemplo, na alcova de um jovem casal —. porventurao refúgio mais íntimo e idealizado de uma relação marcada pela «paixão»?Esta curiosidade tem apenas a ver com o facto de, num número devastadora-mente grande de casos, a expressão «fazer amor» aparecer como a metáforacontemporânea de «ter relações sexuais». Haverá mesmo um equivalentefuncional entre estas duas expressões? Em caso negativo, qual a atitude dosjovens portugueses perante a sexualidade? «Fazem amor» ou «têm», sim-plesmente, «relações sexuais»?

Pode-se dizer que a maioria dos jovens portugueses (cerca de 84%)— independentemente do habitat, do estrato socieconómico, do estado civil, daidade, da situação em relação ao trabalho e das posições religiosa e política —encaram abertamente a sexualidade como «uma relação global entre duaspessoas» ou como «uma forma de comunicação entre homem e mulher».Apegas uma minoria (14% dos rapazes e 12% das raparigas) considera que«o mais importante na sexualidade são as relações sexuais» ou que «a sexua-lidade significa apenas ter relações sexuais» (quadro n.° 3). É difícil inter-

352

Posição dos jovens perante as relações sexuais, segundo o estado civil

[QUADRO N.° 4]

«A relação sexual é apenas umamanifestação de amor»

Discorda totalmente

Discorda

Não concorda nem discorda..

Concorda ,

Concorda totalmente

N/S, N/R

Sexo

MF

MF

MF

MF

MF

MF

Total

1,31,4

20,819,7

20,214,8

49,151,0

5,65,0

3,18,1

Solteirocom

namorada

0,21,6

19,817,2

21,616,1

50,851,5

3,85,8

3,77,7

Estado civil

Solteirosem

namorada

3,02,0

18,321,0

18,015,5

51,050,2

7,64,9

2,16,2

Casado ouvivendo

acompanhado

45,320,4

16,19,3

33,555,2

3,7

5,111,4

Page 9: Família, sexualidade e religião*

Posição dos jovens perante as relações sexuais, segundo a atitude em relação à sexualidade, a posição religiosa e o estado civil

[QUADRO N.° 5]

«A relação sexual é sobretudouma forma privilegiada de prazer»

Atitude em relação àsexualidade Posição religiosa Estado civil

Sexo Total

JSS. •& ssz Solteiro Solteiro Casado ouOutra com sem vivendo

namorado namorado acompanhado

Discorda totalmente p

Discorda f

Não concorda nem discorda p

Concorda p

MConcorda totalmente p

N/S, N/R ^

1,02,5

22,528,7

24,218,5

45,041,7

2,11,6

5,17,0

0,92,4

24,030,5

24,118,3

45,341,9

2,01,9

3,65,1

1,82,4

15,524,0

27,117,1

46,951,8

2,9

5,84,6

1,7

22,322,6

23,120,5

2,41,9

41,441,0

9,812,2

1,52,3

19,833,3

28,917,8

1,41,9

45,439,9

3,14,8

1,78,4

24,229,8

13,96,4

3,2

53,653,2

3,42,1

0,3

30,030,0

20,028,6

3,0

39,241,0

7,50,4

0,12,8

22,629,1

26,221A

43,537,2

1,61,2

6,08,2

2,53,6

23,530,0

25,117,8

41,743,6

2,90,6

4,24,4

9,928,9

5,313,9

78,243,1

1,44,4

5,19,6

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pretar estes dados e concluir apressadamente que, no seu conjunto, osjovens privilegiam a comunicação ou o amor em detrimento do sexo. É certoque, maioritariamente, os jovens concordam que «a relação sexual ê apenasuma manifestação de amor» (quadro n.° 4). Contudo, não deixa de ser sig-nificativo verificar que os jovens do sexo masculino casados, ou vivendocom uma companheira, se afastam desta linha: cerca de 45% dos jovens quese encontram nesta situação discordam que a relação sexual seja apenas umamanifestação de amor (quadro n.° 4).

Mas o que significa para os jovens considerar a relação sexual apenasuma manifestação de amor? Significa que o amor é empregado como umaferramenta para demonstrar destreza e identidade? Que o sexo é anestesiadopara actuar melhor? Que a sensibilidade é usada para pcultar a sensualidade?Que o sexo aparece mutilado, vazio ou, pelo meigos, insípido? Que háum comportamento ascético por parte dos jovens em relação à sexualidade,tomada esta não tanto como uma forma de comunicação, mas como umaprática de dominio quase exclusivo do sexo?

Ora, mesmo os jovens cuja atitude em relação à sexualidade vai no sentidode privilegiar a comunicação em detrimento da relação sexual não deixamde estar de acordo com o facto de a relação sexual ser sobretudo uma formaprivilegiada de prazer (quadro n.° 5). Ou seja, a comunicação pode fazeruso do prazer sexual da mesma forma que o veleiro faz uso do vento. Aliás,neste campo, a posição dos jovens que professam uma qualquer religião— católica ou não — não se afasta muito da posição dos jovens ateus (qua-dro n.° 5). Parece não haver, portanto, entre os jovens portugueses uma éticasexual católica muito distinta da ética sexual dominante entre os outrosjovens. O que não quer dizer que os jovens católicos não comunguem, de facto,de atitudes específicas quanto à sexualidade. Para a maioria dos jovenscatólicos, a sexualidade apenas é encarada no contexto de uma relação durá-vel, institucionalizada através do casamento — onde a fidelidade é uma con-dição da relação sexual e o ciúme, talvez, uma consequência. Para as raparigascatólicas, em particular, o tempo de amor-aventura termina com o casa-mento. Enquanto, antes do casamento, a jovem católica pode exercer umcerto domínio ou controlo sobre a relação afectiva — ela é, pelo menos, livrede rejeitar qualquer carícia mais afoita ou atrevida do namorado —, umavez casada passa a estar submetida ao poder e querer do marido, que tem odireito de dela exigir prazer, entre outras múltiplas coisas, muito mais pelaforça do que pelo amor. Entre o conjunto das jovens, são as católicas (prati-cantes ou não) que mais concordam com o facto de a relação sexual ser,sobretudo, uma necessidade dos homens (quadro n.° 6) — facto que, aliás, étambém assumido pelos jovens católicos do sexo masculino. Mas o maiscurioso e o mais evidente é que são as jovens que não admitem uma vez sequerter relações sexuais aquelas que, na sua esmagadora maioria (cerca de 70%),alimentam o fantasma traduzido na opinião de que «a relação sexual ésobretudo uma necessidade dos homens» (quadro n.° 6).

Atendendo, agora, ao estado civil, são os jovens casados, ou vivendocom companheira, aqueles que mais estão de acordo com ser a relaçãosexual sobretudo uma «forma privilegiada de prazer»: cerca de 80% dosjovens que se encontram nesta situação pensam assim, contra apenas poucomais de 40% dos jovens solteiros que pensam de igual modo. Também ape-nas cerca de 40% das raparigas — independentemente do estado civil — con-cordam com ser a relação sexual sobretudo uma forma privilegiada de pra-

354

Page 11: Família, sexualidade e religião*

zer (quadro n.° 5). Sendo assim, os verdadeiros obreiros do prazer do sexoserão os jovens do sexo masculino casados ou vivendo com companheira.

Em que assenta este aparente «imperialismo masculino» exercido sobre amulher através do sexo no domínio de uma relação conjugal estável, namaior parte dos casos institucionalizada através do casamento religiosocatólico? Qual a validade das teses de Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut8,que apontam para o facto de a pornografia constituir o instrumento dessanova forma de poder machista descaradamente exercida quando se praticamrelações sexuais ou quando apregoadamente se faz amor?

2.3 A PORNOGRAFIA NO LEITO CONJUGAL

Da observação dos resultados do Inquérito relativos ao tema da porno-grafia ressalta uma evidência flagrante: os rapazes são, de facto, manifesta-mente mais tolerantes do que as raparigas no que respeita tanto à literaturacomo aos filmes pornográficos. Poder-se-ia argumentar que as raparigas

Posição dos jovens perante as relações sexuais, segundo posição religiosa e experiênciade relações sexuais

[QUADRO N.° 6]

«A relação sexual é sobretudouma necessidade dos homens»

Posição religiosa Experiência de relações sexuais

pAteu Outra Teve

prat.

Admite Nãovir a ter admite

Discorda totalmente

Discorda

Não concorda nem discorda

Concorda

Concorda totalmente

N/S, N/R

MF

MF

MF

MF

MF

MF

5,35,9

36,136,3

17,717,8

31,2

25,3

1,03,1

8,811,7

8,013,5

38,244,9

17,510,0

31,124,9

3,41,8

1,74,9

10,420,3

54,947,4

10,08,8

22,6

21,1

1,4

2,11,0

20,45,7

44,365,3

6,712,7

19,9

16,4

5,6

3,0

10,212,7

43,547,8

12,77,8

29,8

23,9

2,33,4

1,54,5

6,411,1

37,344,7

20,215,1

26,1

21,8

3,21,3

6,76,0

13,8—

35,016,7

34,08,6

17,2

60,5

8,0

6,2

estão muito mais sujeitas do que os rapazes a constrangimentos de ordemmoral ou religiosa. Contudo, se assim fosse, como se justificaria o facto de, emconjunto, as jovens católicas (praticantes ou não) lerem ligeiramente maisliteratura pornográfica do que as não católicas (quadro n.° 7)?

Não estamos em condições de provar satisfatoriamente a tese que defendeque a pornografia é o remate perfeito do imperialismo masculino sobre asmulheres, no domínio das relações sexuais. Todavia, é pelo menos admissi-

8 Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut, Le Nouveau Désordre Amoureux, Paris, Éditionsdu Seuil, 1977 (edição portuguesa; A Nova Desordem Amorosa, Livraria Bertrand, Amadora,1981). 355

Page 12: Família, sexualidade e religião*

vel que, quando algumas jovens recusam submeter a sua vida erótica amodelos pornográficos impostos pela literatura ou pelo cinema, seja a preten-são fantasmática masculina que esteja a ser posta em causa. Ou seja, ê possí-vel que o desejo feminino em matéria de sexualidade reconheça outros crité-rios de satisfação que não aqueles que são impostos pelo homem a partir daadopção de modelos importados da literatura e do cinema pornográficos. Seé verdade que a pornografia é um instrumento através do qual o corpo mas-culino pretende anexar o corpo feminino à sua própria fantasmática — ver-dadeira banda desenhada de modelos pornográficos —, então o que está emjogo é, de acordo com as teses de Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut, aencenação de uma forma de poder: aquela que o corpo masculino sonha exer-cer sobre a feminilidade pela sujeição do real aos seus fantasmas.

Tratando-se de um poder imposto, nomeadamente no âmbito da esferaconjugal, não admira que, enquanto 45,4% dos jovens solteiros com namo-rada e 44,2% dos solteiros sem namorada admitem que a sexualidade é umaforma de comunicação entre o homem e a mulher, apenas 26,8% dos jovenscasados, ou vivendo acompanhados, concordem com tal afirmação (quadron.° 3). Por outro lado, se a maioria (cerca de 55%) dos jovens (com ou semnamorada) encaram a relação sexual como uma manifestação de amor, doscasados apenas 33,5% o admitem (quadro n.° 4).

Será que — tomada como transgressão, deleite dos sentidos, deliciosopecado ou, ainda, resultado de um empreendimento libertino — a pornogra-fia está em vias de se transformar num processo ao mesmo tempo tecnológico,disciplinar e racionalizador das relações sexuais conjugais institucionali-zadas pelo casamento? Não exageremos. Contudo, são as jovens casadasaquelas que mais parecem aderir aos modelos pornográficos. Pelo menossão aquelas que mais contacto têm com a literatura e os filmes pornográficos(quadro n.° 7). A percentagem das jovens casadas que vêem filmes porno-gráficos é quase dupla daquela que se refere às solteiras com namorado.Ora, quando não se dá o caso de ser o esposo a fazer girar no video domésticoo filme pornográfico, é de supor que as jovens esposas ocorram aos cine-mas de duvidosa reputação, especializados na projecção de filmes pornográ-ficos, acompanhadas e fortemente sugestionadas por seus maridos. Se assimé, a adesão das jovens casadas à pornografia pode tratar-se de uma adesãoimposta. Uma coisa é certa: para a maioria dos jovens casados ou vivendocom companheira (65%), a afirmação segundo a qual «uma mulher que dámuita importância à vida sexual tem pouco interesse como mulher» merece--lhes inteira discordância. Em contrapartida, o número de jovens solteirosque discordam de tal afirmação é ligeiramente inferior (quadro n.° 8). Tal-vez devido ao facto de encararem a relação amorosa de uma forma mais«romântica».

Levando mais por diante as insinuações levantadas: do ponto de vista dodesejo sexual masculino é sensual toda a mulher que possa provar que gozacomo um homem e que se parece com as imagens fantasmatizadas pelo desejomasculino. Se assim não acontece, a mulher não é sensual. A aderênciadas jovens casadas à pornografia poderia, assim, ser interpretada como umdesejo de reabilitação frente ao domínio de normas relativamente universaisde sexualidade impostas pela pornografia. Ao recusarem ser reprovadas, oupor disformidade em relação a essas mesmas normas, ou por frigidez — comose queira —, a jovem casada aderiria à aprendizagem dessas normas

356

Page 13: Família, sexualidade e religião*

Posição dos jovens perante os filmes e a literatura pornográficos, segundo estado civil e posição perante a religião

[QUADRO N.° 7]

Posição dos jovens Solteirocom

namorado

74,427,2

14,632,2

9,433,8

1,66,8

67,019,3

20,531,8

11,042,4

1,56,5

Estado civil

Solteirosem

namorado

85,537,0

7,628,6

6,4

32,5

0,51,8

86,3

24,7

9,230,5

4,043,0

0,51,8

Casado ouvivendo

acompanhado

63,040,3

4,417,7

32,639,8

2,2

72,138,7

10,918,3

17,039,4

3,6

Católicopraticante

72,028,3

13,824,4

11,440,6

2,86,8

58,815,6

23,825,3

14,6

52,2

2,87,0

Posição pen

Católiconão

praticante

76,938,9

13,529,5

8,729,1

1,0

2,5

77,932,7

14,928,6

6,436,2

0,8

2,5

mte a religião

Ateu

89,3

37,3

5,228,9

5,532,8

1,1

85,435,9

8,633,0

5,930,1

1,1

Outra

81,2

24,7

6,8

32,2

11,9

37,6

5,5

78,220,3

10,240,5

11,5

33,7

5,5

«Ler literatura pornográfica»

«Ver filmes pornográficos»

Jáfez M

M

Não fez, mas admite vir a fazer p

Não fez, nem admite vir a fazer p

N/R M

Jáfez ^

Não fez, mas admite vir a fazer p

Não fez, nem admite vir a fazer p

N/R M

Page 14: Família, sexualidade e religião*

— verdadeira gramática elementar da sexuaiidade dominante e institucionali-zada — através da literatura e dos filmes pornográficos. E assim participariano culto sistemático de posições e técnicas esteriotipadas da linguagem disci-plinarizada, única, racionalizada e bem gestionada que o modelo de sexuali-dade dominante impõe.

Posição dos jovens perante as relações sexuais, segundo o estado civil

[QUADRO N.° 8]

Estado civil

Solteirocom

namorado

5,810,6

47,450,3

27,515,6

14,614,4

0,6

4,29,0

Solteirosem

namorado

7,17,3

49,358,0

20,612,0

20,013,9

0,8

3,08,1

Casado ouvivendo

acompanhado

4,06,9

60,856,8

11,710,0

18,415,3

5,111,5

«Uma mulher que dá muita importância à ç S lt 'vida sexual tem pouco interesse como mulher» ° '

MDiscorda totalmente p

MDiscorda p

Não concorda nem discorda p

Concorda p

MConcorda totalmente p

N/S, N/R

Quanto à forma como a pornografia é vivida pelos rapazes, há aindaalguns aspectos interessantes a considerar. Um deles tem a ver com a relaçãoentre a posição religiosa dos jovens portugueses e a sua atitude em relação àpornografia. À primeira vista, essa relação deveria ser no sentido de a reli-gião católica resfriar o entusiasmo dos jovens considerados católicos relati-vamente a tudo o que tenha a marca de pornográfico. Com efeito, são osjovens que professam alguma religião, católica ou não, quem mais defendeque «a sociedade deveria proibir a pornografia» (quadro n.° 9). Contudo, osresultados do Inquérito também provam a relativa indiferença de algunsjovens religiosos èm relação à moral ferida e escandalizada pela explosão dapornografia. Assim, enquanto 45,6% dos jovens católicos praticantes pen-sam que a sociedade deveria proibir a literatura pornográfica, 72% dessesjovens já leram alguma coisa pornográfica e 13,8% admitem que o possamvir a fazer (quadros n.os 9 e 7). Em relação aos filmes pornográficos, o pano-rama é relativamente semelhante (quadros n.os 9 e 7). E aqui temos umasituação aparentemente paradoxal. A religião poderá, sem querer, estar a for-necer à pornografia um dos seus mais excitantes elementos publicitários.Pode-se dizer — utilizando uma linguagem mertoniana — que a função mani-festa dos discursos repressores contra a pornografia provenientes dos círcu-los religiosos pode desencadear uma função latente de sentido literalmenteinverso. Os mecanismos de censura que actuam sobre o ilícito poderão estar,

358 deste modo, a contribuir para a sua explicitação, para a sua divulgação.

Page 15: Família, sexualidade e religião*

Posição dos pais perante os diferentes aspectos da relação entre os dois sexos

[QUADRO N.° 10]

Diferentes aspectos da relação ^entre os dois sexos

«Sair à noite com o/a namorado/a» ....

«Sair à noite com uma pessoa do sexooposto que não se namora»

1

«Ir sozinho a um baile com o/a namora-do/a»

«Ir sozinho a um baile com uma pessoa dosexo oposto que não se namora»

Concorda

Tolera

Discorda

N/S, N/R

Concorda

Tolera

Discorda

N/S, N/R

Concorda

Tolera

Discorda

N/S, N/R

Concorda

Tolera

Discorda

N/S, N/R

Sexo

MF

MF

MF

MF

MF

MF

MF

MF

MF

MF

MF

MF

MF

MF

MF

MF

p

Católicopraticante

69,632,7

21,029,6

6,928,4

2,59,3

63,221,8

18,620,0

14,249,0

4,09,1

72,939,9

19,225,2

5,325,9

2,58,9

63,326,4

21,520,8

12,744,3

2,58,5

:>sição perante a religião

Católiconão

praticante

83,944,8

11,926,6

2,125,4

2,13,3

78,530,9

14,932,2

4,633,2

2,13,6

85,851,2

10,822,9

1,422,1

2,13,8

80,234,6

14,927,6

2,934,2

2,13,6

Ateu

85,861,2

6,513,7

2,823,2

4,91,9

78,248,0

13,121,0

1,829,1

7,01,9

87,870,5

5,512,6

1,815,1

4,91,9

83,554,4

8,719,7

3,022,4

4,93,5

Outra

72,939,0

22,123,4

35,2

5,02,5

69,335,7

24,923,2

0,838,6

5,02,5

79,945,8

15,116,5

35,2

5,02,5

72,039,6

21,219,5

0,838,4

6,02,5

359

Page 16: Família, sexualidade e religião*

2.4 «EM CASA MANDA ELA E NELA MANDO EU»

Não será, então, que aquilo que está a ser tomado como «explosão deamor» nos casamentos contemporâneos, designadamente entre os jovens, seesteja a confundir, por exemplo, com a hipertrofia das actuais funçõesexpressivas familiares? De facto, a família poderá ter deixado de constituir aparcela de uma região particular da vida social para se afirmar como umrefúgio idealizado, privatizado, onde a segurança da existência material podeser concomitante do pretendido amor marital. Não estamos de maneiranenhuma a sugerir que o ideal da intimidade conjugal e a consideração dafamília como refúgio idealizado sejam características da família nuclear. Doponto de vista estrutural, a família nuclear não é um fenómeno exclusivo dasociedade contemporânea. Murdock conseguiu detectar o modelo de famílianuclear em várias sociedades primitivas9 e Flandrin assegura que a difusãodesse mesmo modelo foi muito anterior à ascensão do industrialismo 10.Contudo, antes do industrialismo, o modelo de família dominante caracteri-zava-se por uma relativa abertura ao exterior, designadamente expressa numacerta dependência em relação aos laços de vizinhança que intervinham atodo o momento nos mais variados tipos de interacção familiar n . As mani-festações de sociabilidade que partiam da esfera familiar estavam ainda vira-das para o exterior, embora para espaços socialmente bem demarcados, doponto de vista social, etário ou sexual12.

É possível que na sociedade contemporânea, designadamente nos meiosurbanos, a família se tenha privatizado e constituído num lugar de refúgioem consequência do declínio de um certo tipo de «vida pública», usada esta

Posição que a sociedade deveria tomar em relação à pornografia, segundo a posiçãodos jovens perante a religião

[QUADRO N.° 9]

Filmes pornográficos Literatura pornográficaPosição perante a religião Sexo

Permitir Proibir N/S, N/R Permitir Proibir N/S, N/R

^ p r a t i c a n t e Ç 53,9 41,6 4,5 50,, 45,6 4,3

Católico nâopraticante J gj g» g gj gj %

A. M 77,2 19,8 3,0 76,3 20,4 3,3A t e u F 51,8 44,9 3,4 49,0 49,5 1,5

n . a M 65,6 31,2 3,2 61,2 38,8 -u u l r a F 44,9 52,2 2,8 43,6 48,0 8,4

9 G. P. Murdock, Social Structure, Nova Iorque, The Free Press, 1974.10 J.-L. Flandrin, Famille, Parente, Maison, Sexualité dans l'Ancienne Société, Paris,

Hachette, 1976.11 Cf., designadamente, Ph. Aries, L'Enfant et Ia Vie Familiale Sous l'Ancien Regime,

Paris, Seuil, 1973.360 n L. Roussel, Le Mariage[...]

Page 17: Família, sexualidade e religião*

expressão no sentido dado por Richard Sennett13. Aliás, antes de Sennett,P. Aries conseguira demonstrar como, de facto, a separação progressiva entrelocal de trabalho e local de residência se traduziu numa erosão das «sociabi-lidades públicas» 14. Sendo assim, a representação da família como espaçoexclusivo da afectividade pode ocultar a ideologia produtora dessa represen-tação movida pelo interesse de moralizar os indivíduos e de os afastar doslocais tradicionais de solidariedade e sociabilidade extrafamiliares.

Voltemos, contudo, à questão inicial. Estará o casamento de «razão»dando lugar ao casamento de «amor»? Ou — corno os resultados do Inqué-rito parecem sugerir — será que razão e amor tendem a convergir pacifica-mente no doce aconchego familiar? Mas será que o amor é mesmo compatí-vel com a razão?

A natureza intrigante de todas estas interrogações levou alguns sociólo-gos a desenvolver um ponto de vista verdadeiramente radical e polémico emrelação ao casamento. Segundo esse ponto de vista — fenomenológico egoffmaniano15 —-, o casamento é definido como um «acto dramático» emque se juntam dois «desconhecidos» com o propósito de redefinirem as suasvidas. O drama, lúdico, começa logo no namoro, quando os noivos embar-cam na aventura da construção de um novo mundo a compartilhar16.

Para além dos riscos que, de facto, o acto de «casar» pode envolver— um «passo perigoso», «a ponderar cautelosamente», na opinião dos maiscépticos —, é de elementar bom senso considerar que o casamento não é pro-priamente um jogo de cabra-cega. Muito embora o matrimónio possa darlugar à construção de «um mundo novo» — usando e abusando da terminolo-gia tão do agrado de Peter Berger —, também é verdade que esse mundo seconstrói através da reconstrução dos anteriores, isto é, do fabrico de umamemória comum que integra as recordações de dois trajectos de vida passa-dos, autónomos, independentes, mas que, ao fim e ao cabo, terminam— não por acaso — por convergir.

Para aqueles que acham simpática a definição do casamento como um«acto dramático» é prioritário pensar que o drama não reside tanto no«acto» momentâneo de casar como, acima de tudo, nas implicações que esseacto acarreta, isto é, no que está para além desse actp. Explicitando melhor, ou

13 Richard Sennett, El Declive del Hombre Público, Barcelona, Ediciones Península, 1979.As interessantes teses de Sennett devem, apesar de tudo, ser tomadas com uma certa precaução.De facto, confundindo causa e efeito, há quem, como Richard Sennett, pretenda atribuir aoculto da esfera privada uma evolução que é dada pela desintegração da «vida pública». Ora asmanifestações de natureza pública podem também fazer sentir-se na instituição social que é afamília. Desejoso de estabelecer uma distinção entre «vida pública» e «vida privada», Sennettparece ignorar as formas de interpenetração entre esses dois modos de vida, ao mesmo tempoque parece não se dar conta de que a determinadas formas de «vida pública» sucedem novasformas de estar em público. Na sociedade contemporânea, e tomando um exemplo dado porChristopher Lasch, a «vida privada» está também sujeita a forças de dominação organizada,públicas. Cf. Christopher Lasch, The Culture of Narcisism, Nova Iorque, W. W. Norton &Company, Inc., 1979 (versão francesa: Le Complexe de Narcise, Paris, Éditions Robert Laf-font, 1980, p. 51).

14 P. Aries, «D'Hier à Aujourd'hui, d'une Civilizacion à l'Autre», in Couples et Famillesdans la Société d'Aujourd'hui, Lião, Chroniques Sociales de France, 1973.

15 Peter Berger e Hansfriel Kellner, «Marriage and the Construction of Reality», in Pat-terns of Communication Behavior, Recent Sociology, Londres, MacMillan, n.° 2, 1970, p. 50.

16 Cf., a propósito deste assunto, Peter Berger e Thomas Luckman, La ConstrucciónSocial de la Realidad, Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1979. 361

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levantando o véu de uma hipótese: as relações entre marido e mulher não sãoidênticas em cada um dos dois modelos de casamento (casamento de«razão» e casamento de «amor»). Sendo assim, o amor pode considerar-se umvalor afectivo com um impacte e uma intensidade diferenciados segundo aorganização social familiar e a distribuição das tarefas domésticas na vidafamiliar quotidiana17.

Aqueles que descrevem a família actual como um paraíso encantado18,corolário de um casamento de amor, são os mesmos que, com um fervorexageradamente funcionalista, defendem a integração familiar, tanto emtermos de integração de papéis como de consenso. Antes de cair nesta tenta-ção há que examinar o problema de um modo mais preciso. Como evolui acarreira de cada um dos cônjuges no plano profissional após o casamento?Como é feita a divisão de tarefas domésticas na vida familiar quotidiana? Seé certo que o casamento assinala o contacto de duas «carreiras», haverá umaigualdade de oportunidades e de resultados em relação ao rumo e bom êxitode cada uma delas?

As normas de igualdade com que determinados sectores da juventudeportuguesa parecem encarar o casamento traduzem-se, na prática, por fla-grantes desigualdades. Há um hiato radical entre as aspirações igualitáriasde amplos sectores da juventude portuguesa e as desigualdades de destinoverificadas na prática. Pode ser que os papéis instrumental e expressivo deque nos falava Parsons19 já não apareçam totalmente identificados com osexo20. Pode ainda acontecer que haja uma maior, predisposição dos cônju-ges para encararem com mais flexibilidade a distribuição das tarefas domés-ticas, Na prática, contudo, estas continuam a repartir-se em função do sexo.Segundo os resultados do inquérito, 98,6% dos jovens portugueses casadosadmitem que são as suas jovens esposas que têm a responsabilidade de com-prar as coisas para o dia-a-dia, de limpar a casa e de fazer as refeições. Poroutro lado, quando os filhos têm de ir ao médico, em 85% dos casos, osjovens esposos continuam a admitir serem as mães que os acompanham.Nenhum dos jovens esposos inquiridos vai, quando necessário, falar com osprofessores dos filhos. Das jovens esposas inquiridas, 69% admitem que sãoelas a desempenhar essa tarefa. Apenas quando se tem de vender ou comprarum bem familiar (casa, terra, máquina, automóvel, etc.) há uma decisãoconjunta. Quando tal não acontece, 11% dos jovens esposos respondem quea decisão é unilateralmente sua, enquanto apenas 6,1% das jovens esposasadmitem ter a última palavra. Isto é, se não se pode refutar a metade do ditadoque diz «quem manda nela é ele», não se confirma a outra metade, quenos faz crer que «em casa manda ela».

17 Esta hipótese foi já levantada por Martine Segalen, Mari et Femme dans la Société Pay-sanne, Paris, Flammarion, 1980.

n Se o sentimento de amor dominasse a intimidade conjugal, como se justificaria a exis-tência de um modelo de repressão e violência familiar que mais não faz do que contrariar a ideiasegundo a qual a afectividade é a base de toda a relação conjugal? Cf., a este propósito, M. D.A. Freeman, Violence in the Home — A Socio-Legal Study* Lexington, Saxon House, 1978.

19 T. Parsons e R. F. Bales, Family, Socialization and Interaction Process, Ilinóis, TheFree Press, 1955.

20 Esta é a posição de autores como: Michael Young e Peter Willmott, La Família Simétrica:Un Estúdio Sobre el Trabajo y el Ócio, Madrid, Tecnos, 1975, e Andrée Michel, ActivitéProfessionelle de Ia Femme et Vie Conjugale, Paris, Centre National de la Recherche Scientifi-

362 que, 1974. „ -

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A maior parte dos jovens portugueses não estão, pois, preparados paraharmonizarem, em família, uma «dupla carreira» profissional com a suacompanheira, isto é: a mulher casada não tem possibilidades de progredirnuma carreira profissional tão facilmente como o seu marido21. Nas famíliasonde impera o modelo da «dupla carreira», a participação da mulher na vidaprofissional não a liberta das principais e mais rotineiras tarefas domésticas:é ela que faz as compras do dia-a-dia, que limpa a casa, que confecciona asrefeições. Enquanto o papel central do esposo continua a ser claramenteprofissional e exercido fora da esfera familiar, o papel da mulher continua aser claramente familiar, independentemente do exercício de uma actividadeprofissional, que, portanto, adquire o estatuto de uma actividade suplemen-tar, secundária, subordinada. E natural que a crescente inserção da mulherno mercado de trabalho, em condições cada vez mais igualitárias com ohomem, produza conflitos na vida familiar dos jovens portugueses. É aindanatural que estes conflitos assumam uma proporção considerável em famí-lias onde, pelo facto de ambos os cônjuges participarem em actividadesprofissionais de responsabilidade e prestígio, o esposo tende a manter umaposição de privilégio que lhe é dada pela divisão tradicional de tarefas. Asprincipais vítimas deste conflito serão com certeza as mulheres, pelo menosenquanto a sua participação em actividades profissionais estiver subjugadapelo desempenho de tarefas domésticas e/ou de maternidade.

Alguns sociólogos insinuam, no entanto, que a inserção da mulher nomercado de trabalho tem correspondido a uma maior participação mascu-lina nas tarefas domésticas22. Ninguém duvida da benevolência masculina,especialmente por parte dos jovens, no que toca a dar uma «pequena ajuda»nas pequenas lides domésticas. Pode acontecer. Mas uma participação esfor-çada — pano do pó numa mão, ferro de engomar na outra — é francamenteduvidosa e difícil de comprovar, à parte os casos excepcionais que confir-mam a regra. Em contrapartida, a participação da mulher no mercado detrabalho — nomeadamente da mulher das camadas sociais mais baixas quenão pode recorrer à empregada doméstica ou à «mulher a dias» — acarreta--lhe uma acumulação de trabalho consagrada na actual noção de «dupla jor-nada de trabalho». Essa acumulação de trabalho agrava-se com o nascimentodo primeiro filho, que tem uma importância estratégica crucial na vidadas mulheres jovens, já que, ao terem de cuidar do filho, mesmo com ajudade amas, vêem afectada a sua vida profissional23. Más, num campo de estudo

21 Vários sociólogos norte-americanos têm discutido a possibilidade de existência de uma«dupla carreira» em determinados modelos de família. Cf. os contributos recentes de S. S.Petersen, J. M. Richardson e G. V. Kreuter, The Two-Career Family: Issues and Alternatives,Washington, University Press of America, 1978, e Mary W. Hicks, Sally L. Hansen e Leon A.Christie, «Dual-Career/Dual-Work Families: A Systems Approach», in Eleanor D. Macklin eRoger H. Rubin (eds.), Contemporary Families and Alternative Lifestyles. Handbook onResearch and Theoryt Califórnia, Sage Publications, 1983, cap. 7, pp. 164-179.

22 A. Michel (ed.), Les Femmes dans la Société Marchande, Paris, PUF, 1978, e J. Keller-hals, J.-F. Perrin, G. Steinauer-Cresson, L. Vonèche e G. Wirth, Mariages au Quotidien: Iné-galités Sociales, Tensions Culturelles et Organization Familiale, Lausana, Ed. Favre, 1982.

23 A favor desta tese está, por exemplo, A. A. Campbell, «The Role of Family Planning inthe Reduction of Poverty», in Journal of Marriage and the Family, n.° 60, Maio de 1968. Umponto de vista distinto é defendido por Phillips Cutright, «Timing the First Birth: Does it Mat-ter?», in Journal of Marriage and the Family, Novembro de 1973. Um bom artigo sobre esteassunto é o de France Prioux-Marchal, «Les Conceptions Prenuptiales en Europe Occidentaledepuis 1955», in Population, vol. 29, n.° 1, Janeiro-Fevereiro de 1975, pp. 61-88. 363

Page 20: Família, sexualidade e religião*

repetidamente abordado na literatura sociológica sobre a família, respei-tante à satisfação dos cônjuges com o matrimónio e utilizando o conceito de«ciclo Vital»24, tem-se chegado à conclusão de que a satisfação segue ao longodo ciclo vital uma curva ascendente bastante pronunciada entre os jovenscasais, que, no que respeita à mulher, desce depois do nascimento do primeirofilho25. Resumindo, as formas de repartição das tarefas domésticasdependem efectivamente de quem detém o poder na família26. Ao contráriodas teses machistas, satíricas ou idealistas de sociólogos com tão bom espí-rito de humor como Blood e Wolfe27, a participação do jovem marido nastarefas domésticas continua efectivamente regulada por uma socialização detipo tradicionalista28. .

3. O AMOR E O NAMORO COMO ACTOS SOCIALMENTE LEGITI-MADOS

3.1 AMOR E NAMORO: OBSTÁCULOS À SUA EXPLICAÇÃO SOCIOLÓGICA

Vimos que as posições dominantes no debate da passagem de um modelode casamento comandado pela «razão» a um outro modelo em que predominao «amor-paixão» enfermam do pressuposto ideológico segundo o qual,em cada sociedade, em cada momento histórico, domina um, e um só, deter-minado tipo de casamento. Da mesma forma, vamos agora ver que outrograve pressuposto ideológico dessas posições consiste no desenvolvimento deuma interpretação idealista do amor. Ora, para evitar que, nos seus aspectosessenciais, o fenómeno do amor se nos escape à observação há que contra-riar aquela arraigada mitologia popular que faz do amor uma emoção decarácter violento e irresistível que ataca ao acaso; um mistério que constitui ameta da maioria dos jovens e que os mais idosos também não renegam.Segundo essa mitologia popular, o enamoramento estaria sempre engatilhado,pronto a disparar-se cegamente.

24 Sobre o conceito de «ciclo vital», de novo em moda, cf. o original estudo de Paul C.Glick, «The Family Cycle», in American Sociological Review, vol. xii, Abril de 1974, pp. 164-174.

25 Boyd C. Rollins e Harold Feldman, «Marital Satisfaction over the Family Life Cycle»,in Journal of Marriage and the Family, Fevereiro de 1970.

26 O poder é aqui definido numa perspectiva weberiana, como o da capacidade de um indi-víduo influenciar a capacidade de outro.

27 Para Blood e Wolfe, a distribuição das tarefas domésticas é determinada por critérios deordem pragmática e racional. Cf. R. O. Blood e D . H. Wolfe, Husbands and Wives: The Dyna-mics of Married Life, Nova Iorque, The Free Press, 1960. As propostas de Biood e Wolfe sãolevadas ao extremo por B. Lemennicier, que se atreve a explicar o grau de segregação das tare-fas domésticas conjugais a partir da teoria ricardina dos «custos de oportunidade compara-dos». Segundo Lemennicier, a distribuição sexual das tarefas domésticas teria por funçãooutorgar aos membros da família uma rendabilidade maior na distribuição das tarefas assegura-das pela «especialização da mulher» nos trabalhos domésticos. Cf. B. Lemennicier, «The Eco-nomics of Conjugal Roles», in L. Levy-Garboua (eds.), Sociological Economics, Londres, Sage,1978, pp. 189-217. Estas posições conservadoras são de certa forma reforçadas por autoresque inesperadamente pretendem valorizar as tarefas domésticas tradicionalmente desempenha-das pela mulher. É o caso de E. Sullerot, «Des Changements dans le Partage des Roles», inInformations Sociales, n . o s 6-7, 1977.

28 Esta é, aliás, a tese defendida por R. E. Cromwell e D . Olson, Power in Families, Nova364 Iorque, Wiley, 1975.

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Na concepção idealista, o amor aparece como um ímpeto que emerge doque mais subterrâneo há no indivíduo: é uma manifestação do seu recôndito.Fala-se até, com astrológica teimosia, em corações incontrolados, palpi-tando de amor, adstritos a uma órbita sideral determinada pela movimenta-ção dos astros. Esta concepção idealista de amor faz com que, hoje em dia,os astrólogos sejam, por vezes, tomados como os grandes «entendidos» emquestões de amor...

Ora é já tempo de reivindicar para a sociologia o estudo de um fenómenocujas determinantes sociais são por de mais evidentes. Nos rituais que envol-vem uma relação amorosa há uma interiorização, por parte dos amantes, deum conjunto de normas socialmente instituídas, podendo mesmo dizer-seque essas mesmas normas exercem uma violência simbólica e até policiadorasobre os indivíduos. Essas normas, socialmente impostas, tipificadas, são,por assim dizer, educativas à sua maneira e em si mesmas29. Se, seguindo adefinição proposta por Duvignaud, «a instituição é o lugar onde se articu-lam, se falam, as formas que assumem as determinações das relaçõessociais»30, então pode dizer-se que a linguagem do amor é uma linguagemsocialmente institucionalizada.

A vigilância social e policiadora que incide sobre o namoro, por exem-plo, estabelece padrões previamente definidos de comportamento entre osnamorados. Este carácter controlador é inerente à própria institucionaliza-ção do namoro. Daqui deriva, como justamente refere Peter Berger, que àordem institucional corresponde um manto de legitimações que são apreen-didas durante o processo que as socializa31. Como adiante se verá, é, destemodo, legítimo para um rapaz beijar a namorada na boca; já não é tão legí-timo que o mesmo tipo de carícia seja desenvolvido pela rapariga; é legítimo

Ar a um baile com a pessoa com quem se namora; já não é legítimo que umarapariga saia durante a noite com um desconhecido; é legítimo que duas pes-soas do sexo oposto andem pela rua de braço dado; já não é tão legítimo quepasseiem de mão dada, a menos que sejam namorados...

3.2 O CONTROLO PATERNAL SOBRE AS CARÍCIAS AMOROSAS

Se a sexualidade não fosse um fenómeno social, não valeria a pena arejarsobre ela uma curiosidade sociológica. Andar na rua de mão dada, sair ànoite com alguém, ir a um baile ou, simplesmente, beijar na boca uma pes-soa do sexo oposto quando há o risco de se ser observado são atitudes que osjovens tomam, conscientes de que praticam actos sujeitos a normas mais oumenos restritivas, mais ou menos permissivas. Dado o seu carácter social,estas normas variam de contexto para contexto social. A própria posição dospais sobre os diferentes aspectos da relação entre os dois sexos aparecesocialmente condicionada, como adiante se verá.

Se as carícias entre os dois sexos fossem manifestações meramente natu-rais ou espontâneas, como se justificaria a carga de pudor que as acompa-

29 Esta linha de interpretação é desenvolvida, com algum «economicismo» à mistura, porJean Duvignaud, Sociologia. Guia Alfabético, Rio de Janeiro, Forense Universitária, pp. 209-217.

30 Jean Duvignaud, op. cit., p. 217.31 Peter Berger, A Construção Social da Realidade, Petrópolis, Ed. Vozes, 1976, pp. 88-89. 365

Page 22: Família, sexualidade e religião*

nha? Ora, em relação ao beijo, por exemplo, o pudor não é directamenteproduzido por quem beija. O pudor aparece no trânsito do olho alheio. É agastronomia do olho alheio que gera o pudor. Quando um par de namora-dos se beija em público e às tantas se sente objecto — literalmente objecto —da atenção alheia, a ruborização das faces da rapariga ou o ar de enfado dorapaz são sinais que exprimem a natureza social do sentimento de pudor.

Sentimentos sociais como a vergonha ou o pudor manifestam-se inteira-mente no campo do visível, do público. E, porque assim é, esses sentimentosdiferenciam-se de acordo com os contextos sociais em que são produzidos.Assim, a posição dos pais sobre os diferentes aspectos da relação entre osdois sexos é condicionada por variáveis sociais como o habitat, o estratosocial, a idade, as habilitações escolares, a posição perante a religião e outras.À posição perante a religião, por exemplo, marca a atitude dos pais em rela-ção ás saídas nocturnas e à frequência dos bailes por parte dos jovens. As ra-parigas cujos pais são católicos ou que professam qualquer outra religiãosão aquelas que mais dificuldades têm em sair à noite, mesmo que seja emcompanhia do namorado (quadro n.° 10). Os pais são mais condescendentesse, entretanto, têm a certeza de que as suas filhas vão a um baile (quadro n.° 10).Neste caso, são ainda mais tolerantes quando estão seguros de que a filhavai ao baile acompanhada do respectivo, namorado. As filhas de paisateus têm francamente mais liberdade do que as filhas de pais que professamqualquer religião, católica ou não, tanto nas saídas nocturnas como nas idasao baile.

A maioria dos rapazes, independentemente da posição dos pais perante areligião, não enfrentam os entraves que as raparigas sofrem quando preten-dem sair à noite ou ir a um baile. Daqui se depreende que um forte índice dereligiosidade não determina directamente uma posição escrupulosa por partedos pais em relação aos bailes ou às saídas nocturnas. Os escrúpulos maisseveros aparecem dirigidos às raparigas cujos pais se mostram pouco contem-porizadores em relação às diversões nocturnas e dançantes. A preocupaçãodos pais católicos que têm filhas é, portanto, originada por pressão sociale consiste na antecipação, por parte dos pais, das represálias moraisimpostas socialmente.

Por outro lado, em relação ao beijo, a posição dos pais é também muitomais permissiva em relação aos rapazes do que em relação às raparigas.O sexo deve aqui ser tomado não enquanto variável biológica, evidentemente,mas enquanto variável social. Se o sexo funcionasse como variável biológica,todos os pais com filhas seriam igualmente punitivos em relação à práticado beijo. Assim não acontece. Se atendermos ao habitat, os pais dos meiosurbanos que têm filhas são mais permissivos do que os pais dos meios ruraisem relação ao beijo na boca entre namorados; o mesmo já não acontece tantoem relação às pessoas do sexo oposto que não namoram (quadro n.° 11).Por outro lado, os pais católicos praticantes são os que menos concordamcom o beijo: enquanto apenas cerca de 30% dos pais católicos praticantesconcordam com o beijo entre namorados, cerca de 50% dos católicos nãopraticantes e dos ateus nada têm a opor a tal forma de carícia (quadro n.° 11).Isto para já não falar do beijo na boca entre não namorados, em relaçãoao qual a rejeição por parte dos pais católicos é praticamente total. Os rapa-zes e raparigas com idades mais baixas (15/17 anos) são, por outro lado, osjovens cujos pais encaram o beijo com mais pavor (quadro n.º 11). Enfim,

366

Page 23: Família, sexualidade e religião*

Posição dos pais perante os diferentes aspectos da relação entre os dois sexos

[QUADRO N.° 11]

O beijo

«Beijar na boca o/a namo-rado/a»

«Beijar na boca uma pessoado sexo oposto que nãose namora»

Posiçãodospais

Concorda

Tolera

Discorda

N/S, N/R

Concorda

Tolera

Discorda

N/S, N/R

Sexodos

filhos

MF

MF

MF

MF

MF

MF

MF

MF

Rural

73,738,1

15,624,6

6,929,0

3,88,3

49,64,6

20,19,3

25,975,5

4,410,6

Habitat

Urbano

74,947,5

18,126,2

4,020,2

3,06,2

37,05,0

23,66,3

35,983,4

3,55,3

Intermédio

80,428,9

14,132,2

4,036,4

1,52,5

48,53,8

30,210,4

19,082,0

2,23,8

Católicopraticante

62,830,6

23,931,8

10,028,1

3,39,5

27,23,8

29,36,7

40,180,4

3,39,2

Posição perante a religião

Católiconão

praticante

83,047,5

12,522,8

2,925,6

1,64,1

50,95,3

20,39,5

26,479,8

2,55,5 f

Ateu

72,651,1

15,929,2

4,817,9

6,71,8

42,88,4

22,51,9

28,087,8

6,71,8

Outra

71,241,7

21,227,3

4,727,5

2,93,5

40,0

31,113,4

24,884,1

4,12,5

15/17 anc

69,224,6

19,831,0

7,434,0

3,610,4

30,23,4

28,26,2

37,482,8

4,27,5

Idade do próprio(filho)

>s 18/20 anos 21/24 anos

76,344,9

17,730,1

3,818,8

2,26,2

42,05,0

24,29,1

31,277,8

2,78,1

79,749,0

13,121,7

4,126,8

3,12,4

53,85,1

20,68,1

21,883,1

3,83,7

Page 24: Família, sexualidade e religião*

se a posição dos pais é mais punitiva em relação ao beijo dado pela rapariga,esta posição deve ser explicada por razões sociais.

Tanto nos meios urbanos como nos meios rurais, o beijo entre namora-dos tem uma concordância quase total por parte dos pais que têm filho (qua-dro n.° 11). Os pais que têm filha já têm uma posição distinta: os pais citadi-nos são mais abertos do que os provincianos em relação ao beijo entrenamorados: 48% dos pais que vivem na cidade concordam com o beijo entrenamorados, enquanto apenas 38% dos pais que têm filha e que vivem nosmeios rurais concordam integralmente com tal manifestação de amor. Poroutro lado, os pais católicos praticantes têm duas morais, consoante tenhamfilho ou filha: se têm filho, concordam plenamente (em 62,8% dos casos) outoleram (em 23,9% dos casos) que os namorados se beijem na boca. Con-tudo, se têm filha, apenas 30,6% dos pais concordam abertamente com talcarícia (quadro n.° 11). Aliás, esta dupla moral é tão flagrante que, enquantomais de 80% dos pais que têm filha discordam do beijo na boca entre pes-soas que não se namoram, mais de 56% dos pais católicos praticantes quetêm filho não vêem nisso nada de anormal. Como explicar estas atitudes tãodistintas entre si?

Para dar resposta a esta interrogação há que considerar o beijo como umfenómeno social, sujeito como está a uma censura pública. De facto, beijar éuma acção social sujeita a constrangimentos, a regras e mecanismos de con-trolo social. Comparando os meios urbanos com os meios rurais, verifica-mos que, nestes últimos, as relações entre os dois sexos estão mais expostas àobservação de uma censura pública. Também aí os filtros repressivos religio-sos são mais intensos. Beijar na boca um namorado ou um amigo representapara a rapariga de um meio rural um risco cujo preço se pode reflectir seria-mente na sua reputação. O mesmo não acontece com os rapazes, que, pelomenos na opinião dos pais, podem beijar não apenas a namorada, como,embora com mais restrições, qualquer outra rapariga com a qual não mante-nham qualquer vínculo de comprometimento (quadro n.° 11).

Entretanto, se pudor existe em relação às carícias entre sexos, não deixade ser curioso verificar como os pais católicos (praticantes ou não), ou aque-les que professam outra religião, concordam significativamente mais com obeijo entre namorados do que com o «dar as mãos» entre pessoas de sexosdiferentes que não namoram — isto, independentemente de serem pais derapazes ou de raparigas (quadros n.os 11 e 12). Por outro lado, os pais católi-cos que têm filho mostram-se relativamente indiferentes em relação ao factode as pessoas de sexo oposto andarem na rua de braço dado ou de mão dada;em contrapartida, os pais católicos que têm filha mostram-se ligeiramentemais abertos ao «dar o braço» do que em relação ao «dar a mão» (quadron.° 12). Como interpretar este facto aparentemente tão insólito de a mão serconsiderada um pouquinho mais perversa do que o braço? A resposta a estaquestão só é possível explorando empiricamente os vários significados doidioma ritual, que consiste em «dar a mão» ou «dar o braço», investigandoestas práticas como se faz em relação a qualquer actividade socialmenteestruturada.

Na verdade, dar a mão, dar o braço ou beijar são signos de vinculaçãoem que se afirma a validade de uma relação. Não obstante, os seus significa-dos são distintos. «Beijar» ou «fazer amor» são, não apenas actividadesprincipais absorventes, como, para além do mais, não permitem geralmenteparticipações marginais simultâneas. Em contrapartida, ir de braço dado é,

368

Page 25: Família, sexualidade e religião*

por natureza, uma actividade marginal, subordinável a algumas outras ou,pelo menos, sustentável com outras actividades marginais, como «fumar»ou «andar». O mesmo se poderia dizer em relação ao acto de dar a mão.Contudo, vendo bem as coisas, a mão é mais irrequieta e comunicativa doque o braço e as carícias em que participa são mais emotivas, mais intencio-nais. É certo que é possível «fumar» ou «andar» tanto de braço dado comode mão dada. No entanto, embora ambos os actos possam ser tomadoscomo signos de vinculação a um idioma ritual, nem sempre tais actos arrastama mesma carga comunicativa, expressiva ou emotiva. Dar a mão é um acto

Posição dos pais sobre os diferentes aspectos da relação entre os dois sexos

[QUADRO N.° 12]

Comunicação corporal:braços e mãos

Posiçãodospais

Posição perante a religião

Sexo Católico Católico

A t e uOutra

«Andar de mãos dadas corr*uma pessoa do sexo oposto!que não se namora»....

«Dar o braço a uma pessoado sexo oposto que nãose namora»

Concorda

Tolera

Discorda

N/S, N/R

Concorda

Tolera

Discorda

N/S, N/R

MF

MF

MF

MF

MF

MF

MF

MF

48,118,5

27,923,8

19,250,1

4,87,6

50,221,2 •

29,425,9

16,544,8

4,08,1

66,126,7

25,825,7

6,845,3

1,42,3

67,028,4

27,629,4

4,138,5

1,43,7

72,329,6

17,833,6

5,235,0

4,71,8

66,729,5

22,745,2

5,821,9

4,73,4

54,710,8

33,732,6

7,554,0

4,12,5

50,718,6

38,830,2

6,348,8

4,12,5

que pode ter um forte significado emocional ou afectivo. Em contrapartida,dar o braço ratifica uma intimidade consumada, adquirida. O mesmo se passa,aliás, com algumas formas de dar a mão, onde o sentido emocional desseacto se perde em detrimento do estabelecido, do ritual, do circular32. Nestecaso, dar a mão ou dar o braço, são actos organizados de maneira tão simul-tânea, tão rotinarizada, tão formal, que perdem todo e qualquer significadoemocional. Podemos assim concluir que os pais que professam uma qual-quer religião (católica ou não) e que têm filha manifestam uma atitude ligei-

32 Uma manicura que arranja as mãos dum cliente ou uma cigana que lê a sina na mão deuma cliente podem não experimentar as mesmas vibrações emocionais que experimenta um parde namorados que afanosamente se deleitam na contemplação de uma embrulhada de dedos. 369

Page 26: Família, sexualidade e religião*

ramente mais aberta em relação ao braço dado, na medida em que o dar amão é um acto socialmente mais comprometedor para a rapariga.

Esta educação levanta, contudo, um problema de interpretação em rela-ção a outros resultados do Inquérito (quadros n.os 11 e 12) que mostram queos pais religiosos concordam mais com o beijo na boca entre namorados doque com o dar a mão entre pessoas do sexo oposto, mas que não namoram.Isto é, se a maior rejeição de determinadas carícias sexuais, por parte dospais católicos cuja filha foi entrevistada, é uma atitude que leva em conta omaior ou menor grau de comprometimento em relação a quem participa nes-sas carícias, não é verdade que o beijo na boca é muito mais comprometedordo que o simples acto de dar a mão?

A primeira vista, assim se poderia pensar. Contudo, há que atender aofacto de o beijo ser frequentemente um acto fugaz, fugidio, repentino,nomeadamente quando os namorados têm consciência de que, quando beijam,podem estar sujeitos a uma censura pública, como acontece nos meiosrurais. Aliás, conscientes deste facto, os jovens que mais sujeitos estão aos fil-tros repressivos terão certamente o cuidado de não se expor publicamentequando beijam. Será certamente o caso dos jovens habitantes dos meiosrurais, que tenderão a restringir os limites visíveis do território pessoal ou daintimidade33. Em contrapartida, nos meios urbanos, carícias eróticas, comoo beijo, podem manifestar-se abertamente no campo do visível, do público.Porquê? Por várias razões. Em primeiro lugar, porque os filtros repressivose religiosos cumprem nos meios urbanos um papel bem mais tolerante emrelação a determinadas carícias sexuais. Em segundo lugar, porque — quemsabe? — haverá uma motivação eventualmente narcisista, por parte dosjovens dos meios urbanos, para beijar em público. Não quer isto dizer que osjovens citadinos se sintam obcecados com a ideia de exibir carícias eróticaspara atrair um público pervertido. Sentir-se-ão, sim, possivelmente obceca-dos com a ideia solipsa da auto-afirmação. Em terceiro lugar, nos meiosurbanos, onde predomina um certo anonimato, beijar na rua é tão naturalquanto simples é para quem beija abstrair-se do meio social anónimo circun-dante. Talvez seja esta a razão que leva os pais dos meios urbanos e que têmfilha a considerarem com mais naturalidade o beijo na boca entre namora-dos, coisa que já não é tão evidente entre os pais que têm filha e que habitamnos meios rurais (quadro n.° 11).

Como quer que seja, porque os pais sabem que as suas filhas escolherãolocais pouco expostos à observação pública para beijar a boca dos seusnamorados, consideram o beijo menos comprometedor do que o acto de dar amão, em público, a uma pessoa que não se namora. Com efeito, os namora-dos não irão escolher locais reservados, fora da observação pública, parasimplesmente tactearem as mãos. Aí aproveitarão o ensejo para desenvolve-rem carícias mais profundas e íntimas como o beijo. Supondo, por outrolado, que aos ouvidos de um pai, católico e praticante, chega a notícia de que asua filha foi apanhada com «a boca na botija», isto é, com a boca colada àboca do namorado, o pai tem sempre a oportunidade de se socorrer de umajustificação que geralmente é bem aceite pela sociedade: o facto de um par

33 Sobre os «territórios da intimidade» cf. A. Montagu e F. Matson, El Contacto Humano,370 Barcelona, Paidós Studio, 1983, pp. 31-37.

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de jovens participar num ritual socialmente legitimado como o namoro fazcom que uma das mais frequentes manifestações desse ritual, que é o beijo,seja relativamente tolerado. O mesmo não se pode dizer em relação ao actode dar as mãos entre pessoas do sexo oposto que não namoram. É que esteacto não está legitimado senão entre namorados ou pessoas casadas. Mesmoentre estas, é difícil ver um casal de idosos de mãos dadas e tremeliqueiras.Quando muito, darão o braço para se apoiarem mutuamente. Os que seacham em idade idónea para andar de mãos dadas são pessoas do sexo opostoentre as quais é possível uma relação sexual plena.

E aqui temos como beijar, dar a mão ou dar o braço são acções que seorientam segundo «ordens» socialmente aceites e legitimadas. Como refereWeber34, a legitimidade de uma ordem pode ser assegurada de uma formapuramente íntima, afectiva — por entrega sentimental —, ou por conven-ção. Neste caso, a acção social, tal como a define Weber — e aqui confluicom Durkheim —, é uma acção regulamentada por representações colectivasque prescrevem certos tipos de comportamentos sujeitos a observação eaprovação social, quando não a uma coacção que pode ser psíquica (quando,por influência religiosa, os pais manifestam desagrado em relação à prá-tica de determinadas carícias sexuais por parte das suas filhas) ou física(quando esse desagrado se traduz num bofetão).

3.3 O CONTROLO SOCIAL À EXIBIÇÃO DO NU

Fazendo as carícias parte de uma linguagem corporal ritualizada, tenta-remos agora ver como a própria destapagem do sexo está associada à instru-mentalização do corpo biológico como corpo social. Com efeito, não é poracaso que a prática do nudismo se encontra fortemente condicionada pelareligião católica. Ainda que relativamente tolerantes em relação à prática donudismo, são os jovens católicos — e, entre estes, os do sexo feminino —aqueles que assumem uma atitude mais restritiva em relação a tal prática:60,5% das jovens católicas praticantes pensam que a sociedade deveria proi-bir o nudismo. Entre os jovens católicos (praticantes), apenas 10,6% dosrapazes e 1,6% das raparigas praticaram alguma vez nudismo; por outro lado,48,1% dos rapazes e 65,1% das raparigas não admitem, uma única vez queseja, exibirem-se em público como Deus os lançou ao mundo (cf. quadrosn.os 13 e 14). Predominando os interditos religiosos nos meios rurais, nãoestranha que sejam os jovens dos meios rurais aqueles que revelam mais pudi-cícia em relação à prática do nudismo (quadros n.os 13 e 14). Como vemos,para melhor apreendermos as atitudes dos jovens em relação ao nudismo énecessário compreender não apenas as diferentes formas de uso social queesses jovens fazem do corpo, mas também as variáveis de natureza cultural esocial que determinam esses distintos usos do corpo.

Entretanto, se é verdade que os jovens católicos (praticantes) e os jovensdos meios rurais se mostram mais renunciantes em relação à prática donudismo, há largos sectores da juventude portuguesa que, pelo menos, admi-tem alguma vez poder vir a fazer nudismo — com larga vantagem para osrapazes» acrescente-se (quadro n.° 14). Pode mesmo dizer-se que a larga maio-

34 Max Weber, Economia y Sociedad, México, Fondo de Cultura Económica, 4.a ed.,1979, p. 27. 371

Page 28: Família, sexualidade e religião*

Posição que a sociedade deveria tomar sobre o nudismo

[QUADRO N.° 131

Posição que a sociedadedeveria tomar

sobre o nudismo Rural

55,628,7

40,863,3

3,68,0

Habitat

Urbano

75,248,4

23,349,6

1,52,1

Intermédio

72,242,0

25,556,8

2,21,1

Alto//médio alto

81,559,8

18,538,1

2,1

Estrato social

Médio

70,643,2

27,055,3

2,41,5

Baixo

56,332,3

40,659,9

3,17,9

Solteirocom

namorado

70,443,7

27,352,5

2,23,8

Estado civil

Solteirosem

namorado

' 67,543,8

30,354,1

2,12,2

Casado ouvivendo

acompanhado

61,831,3

38,264,2

4,5

Católicopraticante

55,732,8

38,860,5

5,56,7

Posição perante

Católiconão

praticante

71,745,5

27,053,0

1,41,5

a religião

Ateu

71,459,7

26,639,6

2,00,7

Outra

72,844,6

25,954,4

1,31,0

Permitir....

Proibir

N/S, N/R

Page 29: Família, sexualidade e religião*

Posição dos jovens em relação ao nudismo

IQUADRO N.° 14]

«Praticar nudismo»

Já fez

Não fez, mas admitevir a fazer

Não fez, nem admitevir afazer

N/R

Sexo

MF

MF

MF

MF

Rural

16,62,0

44,321,4

35,064,8

4,211,7

Habitat

Urbano

37,29,5

43,138,9

19,048,1

0,73,6

Intermédio

25,65,9

47,329,6

27,261,0

3,5

Estrato socieconómico

Alto//médio alto

35,421,2

43,943,3

18,831,3

1,94,2

Médio

29,95,5

45,836,2

22,955,1

1,53,2

Baixo

20,83,8

40,519,8

37,065,1

1,811,3

Solteirocom

namorado

25,35,8

42,731,3

29,254,8

2,88,1

Estado civil

Solteiro

namorado

31,210,5

48,136,8

20,450,1

0,32,6

Casado ou

acompanhado

25,50,7

43,726,5

30,867,8

5,0

Católicopraticante

10,61,6

38,524,8

48,165,1

2,88,4

Posição perant

Católiconão

praticante

28,66,2

45,935,1

23,554,5

2,14,2

e a religião

A,eu

42,419,3

41,854,3

15,925,3

1J

Outra

38,919,4

50,526,7

10,648,4

5,5

Direita

24,95,0

52,034,9

22,955,5

0,34,6

Posição política

Centro--direita

28,27,5

47,430,1

23,654,9

0,87,6

Centro--esquerda

29,38,3

42,132,3

27,155,4

1,53,9

Esquerda

31,06,9

36,333,0

28,854,4

3,95,8

Page 30: Família, sexualidade e religião*

ria dos rapazes — mas em particular os que se encontram politicamente maisà direita, os católicos não praticantes, os que professam outras religiões eateus, os solteiros, os jovens dos estratos sociais mais elevados e os residen-tes nas zonas urbanas e intermédias — defendem que «a sociedade deveriapermitir o nudismo» (quadro n.° 13). Quer isto dizer que, dada a aberturade largos sectores da juventude portuguesa em relação ao nudismo, o corpo— tomado no sentido de representação social — está em vias de se nudifi-car? Estaremos, de novo, na margem natural do corpo?35

Ainda que, correntemente, o nudismo seja identificado com naturismo,não é fácil considerar o nudismo, tal como hoje o vemos (ou vivemos), umaprática naturista. E não o é por uma simples razão: o nu, na sociedade con-temporânea, é um fenómeno dotado de uma forte carga cultural. O nu mos-tra-se ou, melhor, exibe-se nos limites de um quadro institucional dado,onde predomina a forma, o culturismo, o bronzeado, etc. O corpo, mesmodesnudado, participa na construção de uma identidade, de um reconheci-mento. Se na praia aparece um nudista lula, como se diz na gíria dos banhis-tas, isto é, «branquinho», mas com os antebraços bastante queimados, podeser identificado como camionista; se apenas da cintura para cima se apresentaqueimado, pode ser socialmente identificado como operário da construçãocivil. Como quer que seja, as praias frequentadas por nudistas encontram-sesocialmente bem demarcadas. Sem carro, por exemplo, é difícil ir ao Meco36.Não estranha, então, que sejam os jovens dos estratos sociais mais elevadosos que mais se entregam à prática do nudismo (quadro n.° 14). Entre asraparigas, são também as dos estratos sociais e económicos mais elevados asque exibem o nu do seu corpo: 21,2% das jovens desses estratos fizeram jánudismo contra apenas 5,5% das jovens do estrato médio e 3,8% das doestrato social mais baixo (quadro n.° 14). Aliás, a maioria dos jovens deambos os sexos dos estratos sociais alto e médio pensam que a sociedade deveriapermitir o nudismo, pensamento que não é compartilhado pelos jovens doestrato social mais baixo (quadro n.° 13).

Sendo assim, o que se verifica na chamada prática naturista é a instru-mentalização do corpo biológico como corpo social. Na sua parecença, nos

35 Com efeito, o corpo humano é uma ponte estreita entre a natureza e a cultura. Mesmousado de forma ritualizada, o corpo tem um odor natural: o corpo veste-se de fibras vegetais, delã, de seda; come legumes, carne, peixe. Na praia, como em qualquer outro espaço público, ocorpo é o cadinho, o crisol do reencontro entre a natureza e a cultura; é a base sobre a qual sefundamenta toda a acção simbólica; é o intermediário entre a Terra e o Céu, entre o real e oimaginário, entre o material e o espiritual. Contudo, muito embora o corpo se possa paisagisti-camente comparar a uma ponte que une o natural ao cultural, ê também comparável a umafronteira que separa o «ser» (natural) do «como deve ser» (cultural). Ora o vestuário, ao deixarde ser um instrumento de protecção do corpo, para passar a ser um meio simbólico de reconhe-cimento social, marca decisivamente a passagem do natural ao cultural. Nas sociedades primiti-vas, o corpo repousava muito mais na sua margem natural porque o homem se encontrava maisdirectamente ligado à natureza, afrontando-se quotidianamente com o seu corpo, instrumentoprincipal de protecção e sobrevivência. Cf., designadamente, Françoise Loux, Le Corps dans laSocitété Traditionnelle, Paris, Berger-Levrault, 1979. Com o aparecimento dos interditos reli-giosos, o corpo abraça a sua margem cultural, o que quer dizer que o corpo passa a estar sujeitoa uma educação moral. A aprendizagem do pudor, das maneiras de «estar em público», etc, éum processo que está associado à necessidade de reprimir as manifestações «naturais» do corpo.Na educação infantil são exemplares expressões como: «Põe-te direito!», «Caminha deva-gar !», « Olha em frente!».

374 36 Afamada praia, frequentada por nudistas, nas proximidades de Lisboa.

Page 31: Família, sexualidade e religião*

seus gestos, nas suas posturas, o corpo desnudo é um produto social namedida em que se inscreve num modelo cultural que socialmente o impõe e oritualiza: aquele modo de bambolear o corpo, de abanar os seios e o traseiro,de mergulhar na água, etc. É nestas formas estéticas de estar em público quese manifestam as culturas somáticas, que, por sua vez, produzem os diversosusos sociais do corpo e respectivos sistemas de classificação e de valori-zação/depreciação (é másculo!, é frasco!, só tem banhas!, é tetuda!).

Um aspecto paroxístico do nudismo, na sociedade contemporânea, está,sem dúvida, ligado à vivência do sexo e do nu como espectáculo. O nudismoassume-se como uma prática espectacular com uma eficácia simbólica inegá-vel. É o espectáculo do nu, do sexo, do proibido. É o espectáculo dum corpopretendidamente acrisolado, puro, sem adornos artificiais — pretensão que,como atrás sugerimos, pode não corresponder à realidade. A liberalizaçãodo corpo que actualmente se vive tem pouco de natural, arrastando, pelocontrário, novas formas religiomaniacas: nutricismo, exercícios corporais,sauna e massagens, meditação transcendental, astrologia, quirologia, guiasde cuidados com o corpo, etc. A neurasténica preocupação pelo corpo pareceser um traço a sublinhar fortemente o carácter narcisista da sociedadecontemporânea.

A espectacular destapagem do sexo é, com efeito, uma captação da vidasexual pela ordem do espectáculo. O sexo — entidade tradicionalmentereservada para domínios privados — é, com a prática do nudismo, integradonum circuito colectivo. Nestes termos, a exibição do nu em público pode serconsiderada uma prática narcisística — não um narcisismo espontâneo, deque nos falam os psicanalistas, mas um narcisismo dirigido por um certocontrolo social, que, no caso vertente, corresponde a uma exaltação funcio-nal da beleza nua. O corpo assume desta forma um valor, função de signosmediatizados por ritos de prestígio ou modelos de massa37. Enquanto valor,o nu do corpo pode ser tomado como instrumento de conquista, de sedução.Com efeito, a percentagem dos jovens solteiros sem namorado/a que prati-cam nudismo é francamente superior à percentagem dos jovens nudistascasados ou solteiros com namorado/a (quadro n.° 14). Aliás, são os jovenscasados os que mostram mais relutância em relação à prática do nudismo (qua-dro n.° 14). Se não se pode afirmar com absoluta garantia que sejam osjovens solteiros sem namorado/a os mais interessados no jogo da sedução, tal-vez sejam, pelo menos, os que mais apreciam o espectáculo do nu.

A exaltação funcional da beleza nua só é possível na medida em que anudez não é imediata. Desapossado da roupa, o nudismo aparece (re)vestidocom todo um verniz social. O nudista não é, então, um verdadeiro nu: enco-bre-se de vulnerabilidade, de defesas, de disfarces, de tiques. O espectáculodo nu está sempre associado à instrumentalização do corpo biológico comocorpo social38,

37 Não é por acaso que os nudistas, contrariando a exposição «natural» do corpo ao sol, obezuntam com cremes e óleos dos mais variados índices de protecção.. .

38 U m a hipótese interessante de desenvolver, mas que não cabe no âmbito deste trabalho, éa seguinte: será que o nudismo acarreta uma simbolização do corpo menos complexa relativa-mente a outras formas de utilização pública do corpo? É possível que os mistérios associados aosexo e à sexualidade se estejam transformando, entre os jovens, num estado cristalizado em formade corpo. É também admissível que os que exibem o corpo desnudo e os que o observam deno-tem uma crescente dificuldade em imaginarem o corpo em termos metafísicos, isto é, notar--se-á um empobrecimento na actividade cognoscitiva e poética de criar um símbolo a partir deum objecto físico — seja o corpo de mulher. 375

Page 32: Família, sexualidade e religião*

3.4 O CONTROLO DA RELIGIÃO SOBRE A SEXUALIDADE

Uma das variáveis que mais parecem condicionar a atitude dos jovens noque respeita tanto à sexualidade como ao casamento é a sua posição perantea religião. Assim, não admira que a maioria dos jovens católicos praticantes(87,2%) estejam a favor do casamento religioso. Apenas 7,2% dos jovenscatólicos praticantes apoiam o casamento civil, enquanto uma minoria de2,4% alinha no chamado «modelo europeu de matrimónio»39 ou na «uniãolivre». Esta é principalmente apoiada pelos jovens ateus ou por aqueles queprofessam outra religião que não a católica (quadro n.° 1-a). Por outro lado,no que toca às relações sexuais, os jovens católicos praticantes, emboranão ocultando uma certa vulnerabilidade à tentação do sexo, mantêm-semais fiéis à castidade do que os restantes jovens. Com efeito, enquanto ape-nas 54,3% dos jovens católicos do sexo masculino tiveram alguma vez rela-ções sexuais, mais de 70% dos jovens católicos não praticantes e mais de80% dos ateus tiveram essa experiência (quadro n.° 15). Quanto às jovensraparigas, apenas 22,1% das católicas praticantes perderam a sua virgindade— provavelmente as casadas —, enquanto 32,6% das jovens católicas nãopraticantes e 47,7% das que não professam qualquer religião experimenta-ram já o prazer do sexo (quadro n.° 15).

Poder-se-ia admitir que os jovens e as jovens católicas comungam deuma rígida e convicta abstinência em relação a tudo o que tem a ver comsexo, ou que em relação a ele manifestam desinteresse, falta de entusiasmo.Pura ilusão. Com efeito, entre os jovens de ambos os sexos que nunca tive-ram relações sexuais, são os católicos praticantes os que mais se mostram

Posição dos jovens perante a prostituição, segundo a posição em relação à religião e ao «habitat»

[QUADRO N.° 15]

Já fez

Não fez,

Não fez,

N/R

«Ter relações sexuais»

mas admite vir a fazer

nem admite vir a fazer ....

Sexo

MF

MF

MF

MF

Posição perante a religião

Católicoprat.

54,322,1

37,464,3

0,85,6

7,58,0

Católiconãoprat.

72,632,6

22,461,7

1,81,7

3,24,0

Ateu

82,547,7

16,250,6

1,3

1,7

Outra

70,042,4

23,546,6

4,63,0

1,98,0

Rural

68,535,6

24,847,7

2,56,8

4,29,9

Habitat

Urbano Intermédio

69,132,6

25,161,7

1,41,6

4,44,1

74,522,0

23,471,3

2,12,3

4,4

39 Foi Hajnal quem começou por caracterizar o «modelo europeu de matrimónio». Umadás características deste modelo tem a ver com o facto de uma elevada percentagem de pessoasrejeitar o casamento tradicional e optar pela chamada «união livre». Cf. J. Hajnal, «EuropeanMarriage Patterns in Perspective, in D. V. Glass e D. E. Eversley (eds.), Population in History,Londres, 1965. Veja-se também B. Cachinero, «El Modelo Europeo de Matrimonio. Evolu-ción, Determinantes y Consecuencias», in Revista Espaãola de Investigaciones Sociológicas,

376 n.° 15, Julho-Setembro, Madrid, 1981, pp. 33-58.

Page 33: Família, sexualidade e religião*

tentados a quebrar o prolongado jejum sexual, nomeadamente as raparigas:64,3% das virgens que assiduamente vão à missa admitem, mais tarde oumais cedo, perder a virgindade e apenas 5,6% mostram uma férrea vontadede transportar para a eternidade ou para o leito conjugal a marca de umapureza irrepreensível.

Para além do mais, é justo acrescentar que as jovens que regularmentevão à missa não se declaram sexualmente pior informadas do que aquelasque não estão para perder tempo em orações (quadro n.° 16). Argumentarãoalguns que, na boa tradição religiosa, a verdade do sexo, pelo menos no querespeita ao essencial, parece estar fundamentalmente ligada ao confessioná-rio. O confessionário seria assim uma instância de dominação da sexualidadeque ali seria interrogada, questionada, confidenciada, murmurada. Será,contudo, um exagero, nos dias que correm, afirmar categoricamente que sãoos padres que fornecem às jovens católicas meios de conhecimento em maté-ria sexual. Sabemos, sim, que apenas uma pequena percentagem das jovenscatólicas praticantes recebem informação sexual dos familiares, dos namo-rados ou dos professores. Grande parte das jovens católicas praticantes(50,5%) recebem informação sexual dos amigos. As mães também aparecemfrequentemente (38,7% dos casos) como conselheiras (quadro n.° 17), mas,

Informação/educação sexual recebida, segundo a posição perante a religião e o «habitat»

[QUADRO N.° 16]

Posição perante a religião Habitat

A informação/educação s Católicosexual ,ue recebeu foi * » CatóUco C a ^ c

A t e u O u , r a Rura, U r b a n 0 h , ^ , ^' prat.

Q ~ . , M 46,8 52,0 54,8 59,6 50,8 52,5 54,5òuiiciente F 529 49Q 2SQ 499 5QS 4S5 4 5 4

T f . . . M 24,7 29,5 31,1 32,1 24,4 30,7 32,4insuficiente F 2 3 4 246 392 2 ? ^ 2Q1 24Q 362

NâorecebeueduCaÇãosexua. Ç 24,4 15,3 13,7 « 18,0 15,5 11,9

NSosabe/nâo responde " g % % j * g M U

francamente, nada sabemos sobre a natureza dos conhecimentos veiculados.Provavelmente, restringir-se-ão a esclarecimentos sobre menstruação, alémde meia dúzia de conselhos a respeito de tomarem cuidado com os homens ecom a própria virgindade.

Se bem que a maioria das jovens católicas praticantes se considerem sufi-cientemente informadas sobre a sexualidade, o certo é que, talvez sobinfluência da Igreja, é à família conjugal que é atribuída a capacidade deabsorver e confiscar por inteiro tudo o que tenha a ver com a sexualidade, res-tringida está — bem entendido — à seriedade da função reprodutora. Talvezpor esta razão, apenas 10,9% das jovens católicas praticantes usaram algumavez contraceptivos, enquanto apenas 0,5% declararam ter recorridoalguma vez à prática do aborto (quadro n.° 18).

Como vemos, a atitude dos jovens em relação à sexualidade encontra-sefortemente condicionada pela sua atitude perante a religião. Pode mesmo 377

Page 34: Família, sexualidade e religião*

Meios de conhecimento em matéria sexualsegundo a posição em relação à religião

[QUADRO N.° 17]

Posição perante a religião

Meios de conhecimento ç r .... Católicoem matéria sexual *» SSl J^

Irmãos p

T . MIrmãs p

Pai p

Mãe *?

A ' M

Amigos p

MNamorado/a p

MFamiliares p

MLeitura pessoal p

MProfessores p

MExperiência/prática p

Outros T-<

dizer-se que o papel da religião como agente regulador da sexualidade é parti-cularmente tenaz. Contudo, quando pensamos na influência coerciva que areligião pode exercer sobre a atitude dos jovens em relação à sexualidade,não podemos, ha prática, estabelecer entre elas uma relação determinista.

Seguindo de perto as teses de Foucault *, quer isto dizer que a sexualidade,ao encontrar-se sujeita a um poder coercivo por parte da Igreja, aparecetambém sob um regime binário que balanceia entre o lícito e o ilícito, entre opermitido e o proibido. Ou seja, a Igreja prescreve ao sexo uma ordem que,por sua vez, funciona como forma de inteligibilidade da sexualidade. Quandoos mecanismos de censura actuam sobre o ilícito, poderão estar, ao mesmotempo, a contribuir para a sua explicitação, para a sua divulgação.

4,92,2

2,86,4

11,813,8

11,038,7

77,150,5

6,69,7

5,54,5

35,432,8

4,86,8

3,61,8

0,82,6

6,44,1

0,26,6

11,111,4

7,632,1

67,855,6

12,215,9

2,94,0

49,633,2

5,59,2

4,54,1

2,63,1

7,34,3

5,3

15,211,7

10,929,4

65,961,9

10,418,8

6,15,3

47,631,7

12,65,7

3,98,5

2,01,8

2,0

4,4

17,43,8

9,626,9

62,755,5

15,330,0

7,43,2

58,836,7

6,711,5

4,7

4,62,4

40 Michel Foucault, Historia de Ia Sexualidad. La Voluntad de Saber, Madrid, Siglo XXI378 de Espana Editores, 1980, 3.a ed., p. 101.

Page 35: Família, sexualidade e religião*

Estas teses podem ser relativamente confirmadas, analisando e confron-tando a atitude perante a sexualidade dos jovens que habitam os meiosrurais — onde ainda se faz sentir uma forte influência da Igreja em relação àsquestões que dizem respeito à sexualidade —, frente aos jovens habitantesdos meios urbanos, onde a sexualidade não aparece tão fortemente condicio-nada por imperativos religiosos.

Nos meios rurais, todos os interditos, exclusões, limites, valorizações,liberdades e transgressões da sexualidade — em suma, todas as suas manifes-tações — se encontram vinculados ao controlo social da aldeia ou da igreja.De acordo com os imperativos de ordem religiosa que dominam nos meiosrurais, o prazer sexual é apenas tolerável para efeitos de procriação; circuns-crito, portanto, ao matrimónio. O dever conjugal, a capacidade para o cum-prir, a maneira de o observar, as exigências e violências que o acompanham,as carícias inúteis ou indevidas às quais serve de pretexto — tudo está pres-crito pelos códigos religiosos dominantes. A própria relação matrimonialparece constituir um foco intenso de coacções.

A este modelo de família e sexualidade são os jovens católicos pratican-tes e os jovens habitantes dos meios rurais os que mais aderem. Não se tratade uma adesão maciça. Mas, enfim, mais de 50% dos jovens católicos prati-cantes e mais de 60% das raparigas católicas praticantes defendem que «asociedade deveria proibir as relações extraconjugais» e todas as formas mar-ginais de sexualidade: homossexualidade, sexo em grupo e prostituição (qua-dro n.° 19). Esta é também a posição genericamente defendida pelos jovensdos meios rurais (quadro n.° 20). Por outro lado, enquanto há uma certaabertura dos jovens dos meios urbanos, e também daqueles que têm ummaior grau de instrução, às formas de acasalamento não oficiais, como a«união livre»41, os jovens dos meios rurais {78%), católicos (87,2%) e combaixo índice de escolarização (78,7%) aderem maciçamente ao casamentoinstitucionalizado pela igreja católica (quadros n.os 1-a e 1-b). Finalmente,são os jovens católicos habitantes dos meios rurais e os jovens católicos pra-ticantes que mais concordam com a afirmação segundo a qual «a relaçãosexual é sobretudo uma forma de ter filhos» (quadro n.° 21). Para estesjovens, o prazer sexual aparece, portanto, subordinado a efeitos de procria-ção. Ou seja, os pontos de vista eclesiástico e biológico têm, neste caso, posi-ções comuns ao fazerem do sexo um simples mecanismo de reprodução.

Contudo, se a influência coerciva da Igreja se manifesta na atitude ideo-lógica dos jovens católicos e dos jovens dos meios rurais em relação ao casa-mento e à sexualidade, quer isto dizer que, na prática, para os jovens habi-tantes dos meios rurais, a sexualidade só é reconhecida, utilitária e fecundano leito conjugal?

Parece que não. É possível que, nos meios urbanos, os jovens experimen-tem uma sexualidade distinta daquela que é vivida nos meios rurais. Distinta,pois, sem ser deveras independente da temática do pecado, escapa, no essen-cial, às instituições eclesiásticas. É também admissível que a urbanizaçãodemográfica e cultural registada nos meios não rurais e também a difusão

41 A relativa abertura dos jovens dos meios urbanos a esta forma de vivência conjugalcoloca uma questão interessante, à qual por agora não podemos dar resposta: será que esta práticaaparece como forma alternativa ao casamento tradicional — religioso ou civil —, ou, pelo con-trário, como uma forma de aprendizagem de vida em comum, uma fase experimental quedesemboca, mais cedo ou mais tarde, no casamento tradicional? 379

Page 36: Família, sexualidade e religião*

Posição dos jovens perante o aborto e o uso dos contraceptivos,segundo a posição em relação à religião

[QUADRO N.° 18]

Posição dos jovens

Posição em relação à religião

Católico Católico

3 2 2 . pr * „ . «- <*»

Aborto .

«Uso de contraceptivos»

Jáfez 0,5

Não fez, mas admite vir•• afazer 21,9,i

jNão fez, nem admite vir

afazer 67,9

N/R 9,7

Jáfez 10,9Não fez, mas admite vir

afazer 41,9

Não fez, nem admite virafazer 31,6

!N/R 15,6

1,5

40,4

53,0

5,1

18,4

2,5

70,3

25,4

1,9

32,0

5,5

51,5

29,6

13,4

17,0

52,1

22,9

6,6

53,8

10,6

3,7

68,4

3,3

11,3

dos métodos contraceptivos (quadro n.° 22) tenham modificado relativa-mente o contexto das relações pré-matrimoniais — quer no que respeita àfrequência das relações sexuais, quer no que se refere à coabitação pré--matrimonial, especialmente entre jovens de camadas etárias mais elevadas. Emcontrapartida, a vida sexual dos jovens habitantes das zonas rurais parece,de facto, enfrentar mais dificuldades, nomeadamente porque a actividadesexual aparece apenas legitimada, como vimos, no matrimónio. Ora, segundoinvestigações levadas a cabo por Ana Nunes de Almeida, referidas a1970, é na faixa litoral do continente que se concentram as maiores percenta-gens de jovens que casam antes dos 25 anos42, o que poderá significar que ocaudal de jovens celibatários é mais elevado nas zonas rurais do que naszonas urbanas. Como quer que seja, coloca-se sempre a questão de saber quetipo de vida sexual experimentam os jovens dos meios rurais. A esta questão— de tal modo embaraçante que as fontes disponíveis para a investigar sãoraras e discretas —, duas e apenas duas hipóteses são de admitir: castidadeou fornicação. Na primeira hipótese, a consolidação do casamento tardioapareceria como corolário de um modelo de austeridade sexual. Na segundahipótese, o casamento tardio teria outras determinantes que não a austeri-dade sexual.

A austeridade sexual pode muito bem estar associada à castidade, sociale moralmente imposta às raparigas solteiras. Nos meios rurais, a «honestidade»das raparigas solteiras parece ser um elemento importante para efeitos

380

42 Ana Nunes de Almeida, Comportamentos Demográficos e Estratégias Familiares noContinente Português: 1900-1970, «Estudos e Documentos I. C. S. », Lisboa, Instituto de Ciên-cias Sociais, 1985, p. 33.

Page 37: Família, sexualidade e religião*

Posição que a sociedade deveria tomar sobre relações sexuais e formas marginais de prostituição, segundo a posição perante a religião

[QUADRO N.° 19]

Posição perante a religião Sexo

Permitir

26,311,1

26,38,1

30,020,1

25,713,8

Prostituição

Proibir

68,682,7

71,889,3

70,079,9

69,681,5

N/S, N/R

5,06,2

1,82,5

4,74,8

Relaçõe:

Permitir

40,127,3

59,544,3

62,261,6

69,064,4

s extraconjugais

Proibir

51,962,5

36,150,6

31,833,4

29,733,1

N/S, N/R

8,010,2

4,55,0

6,05,0

1,32,4

Homossexualidade

Permitir

27,626,2

40,844,2

51,167,7

56,856,3

Proibir

67,363,2

55,350,7

47,631,0

37,843,7

N/S, N/R

5,210,6

3,95,1

1,31,4

5,4

Sexo em grupo

Permitir

32,78,8

35,319,9

60,234,1

56,423,1

Proibir

61,883,0

62,176,5

33,863,5

38,276,9

N/S, N/R

5,58,2

2,63,6

6,02,5

5,4

Católico praticante p

Católico não praticante p

Ateu M

Outra M

Page 38: Família, sexualidade e religião*

8S

Posição que a sociedade deveria tomar sobre relações sexuais e formas marginais de prostituição, segundo o «habitat»

[QUADRO N.° 20]

Habitat

Rural

Urbano

Intermédio

Sexo

M

M

MF

Permitir

32,77,5

21,413,0

30,49,6

Prostituição

Proibir

62,983,2

76,084,7

69,689,1

N/S, N/R

4,49,3

2,62,4

1,2

Relações extraconjugais

Permitir

55,326,0

56,845,0

61,049,2

Proibir

40,059,8

37,149,8

36,248,3

N/S, N/R

4,714,2

6,25,1

2,82,5

Homossexualidade

Permitir

30,424,8

48,049,5

44,037,7

Proibir

65,559,9

47,046,5

54,260,3

N/S, N/R

4,115,3

5,04,0

1,42,0

Sexo em grupo

Permitir

35,511,7

43,719,1

45,319,8

Proibir

60,575,5

51,278,2

52,978,6

N/S, N/R

4,012,7

5,12,7

1,81,7

Page 39: Família, sexualidade e religião*

Posição dos jovens perante as relações sexuais, segundo a posição religiosa e o «habitat»

[QUADRO N.° 21]

«A relação sexual é sobretudouma forma de ter filhos» Sexo Católico

prat.

5,85,4

35,830,1

16,4

28,6

s\i

7,811,4

Posição religiosa

Católiconão

prat.

7,29,4

39,350,5

25,9

20,9

5,54,8

5Í3

Ateu

11,425,2

47,637,5

14,8

23,4

Outra

24,617,7

39,251,0

16,6

17,8

Rural

8,94,8

29,824,6

21,2

28,0

4,37,2

7,818,4

Habitat

Urbano Intermédio

11,513,7

50,747,4

18,6

15,9

1/7

3Í6

7,97,4

29,646,4

26,3

29,1

%

3Í3

Discorda totalmente Ç

n . , MU l s c o m a F

Nao concorda nem discorda p

M. p

Concorda totalmente ^

M

F

conjugais, e por isso se encontra socialmente vigiada. E, por ser assim, é pos-sível que a desonra resida menos na perda de virgindade, que pode ser ocul-tada com relativa facilidade aos olhos da censura vigilante, do que na gravi-dez, muito mais difícil de dissimular. Com efeito, segundo os resultados doInquérito, quando, nos meios rurais, uma rapariga solteira tem relaçõessexuais, em apenas cerca de 10% dos casos não se importa de falar natural-mente sobre isso (quadro n.° 23). Os próprios rapazes procuram, em cercade 40% dos casos, que as suas relações sexuais passem despercebidas, preo-cupação que os jovens dos meios urbanos não evidenciam de forma tão fla-grante (quadro n.° 23).

O facto de as pulsões sexuais dos jovens habitantes dos meios rurais seencontrarem sujeitas a uma maior coerção pode também dever-se à estreitarelação entre matrimónio e propriedade nos meios rurais. Ser proprietárioou ter um bom quinhão de terras é uma condição necessária para contrairmatrimónio. A independência económica precede o casamento. Nos meiosrurais, os celibatários que nada ou pouco possuem encontram-se em oposi-ção aos homens casados, que monopolizam não apenas o poder económico,mas também o poder sexual. Uma coisa é certa: em matéria sexual, os «casa-dos» não podem proteger a virtude de suas mulheres e filhas sem colocaremà disposição dos celibatários um bom número de prostitutas. Ora, contraria-mente ao que à primeira vista se poderia supor, é interessante verificar comoos jovens habitantes dos meios rurais são mais tolerantes com a prostituiçãodo que os jovens dos meios urbanos (quadro n.° 20). Aliás, enquanto apenas11,4% dos jovens dos meios urbanos recorreram alguma vez à prostituição,mais de 20% dos habitantes dos meios rurais pagaram para ter relaçõessexuais. Por outro lado, a percentagem daqueles que admitem recorrer àsprostitutas é também mais elevada entre os jovens dos meios rurais (quadron.° 24). 383

Page 40: Família, sexualidade e religião*

Assim, se, por um lado, se pode afirmar que os jovens dos meios urbanosse mostram relativamente mais abertos à prática de uma sexualidade hetero-génea, perversa, periférica (quadro n.° 20), é difícil sustentar que os jovensdos meios rurais centrem a sexualidade exclusivamente no matrimónio.É certo que nos meios rurais, e por influência da Igreja, aparecem na lista dospecados graves o estupro, o adultério, o rapto, o incesto espiritual ou carnal,a sodomia, a própria carícia recíproca. Contudo, os jovens dos meios urba-nos não tiveram o condão de inventar ou descobrir vícios inéditos que osjovens dos meios rurais desconhecem. É perfeitamente admissível que estestambém os desenvolvam no domínio da sexualidade periférica e de igualmodo ultrapassem as barreiras divisórias entre o lícito e o ilícito. Que os jovenshabitantes dos meios rurais declarem, em entrevista, não estar de acordocom a liberalização das formas marginais de sexualidade não significa que aelas não adiram. Pode dar-se o caso de se limitarem a reproduzir ao entrevis-tador a moral dominante e coerciva. Aliás, mesmo reportando-nos aos resul-tados do inquérito, é capaz de ter algum significado verificar que, por exem-plo, entre os jovens habitantes dos meios rurais, 30,4% dos rapazes e 24,8%das raparigas são a favor da liberalização da homossexualidade, da mesmaforma que 35,5% dos rapazes e 11,7% das raparigas o são a favor do sexoem grupo (quadro n.° 20). Ou seja, é provável que também nos meios ruraisse desenvolva um mundo de perversão e de infracções, não obstante os impe-rativos morais dominantes.

Posição que a sociedade deveria tomar sobre o usode contraceptivos, segundo o «habitat» dos jovens

[QUADRO N.° 22]

Habitat

Rural

Urbano

Intermédio

Sexo

Mp

Mp

Mp

Contraceptivos

Permitir

59,453,4

83,082,8

74,073,9

Proibir

31,729,9

15,415,1

23,023,5

N/S, N/R

8,816,7

1,62,1

2,92,6

Aliás, dizer que, nos espaços sociais rurais, a sexualidade se encontrasujeita a um regime moral de austeridade socialmente imposto não significaque o meio social rural seja completamente «protector» desse regime. Os jo-vens adolescentes são, desde cedo, iniciados nos «mistérios de amor», queratravés da orelha (e esta hipótese poderia ser devidamente comprovada estu-dando a distribuição das zonas dormitórias das casas das famílias rurais),quer através do olho (através do espectáculo familiar do acasalamento deanimais domésticos, por exemplo). Os dados do inquérito acabam por mos-trar que os jovens dos meios rurais não se consideram sexualmente piorinformados do que os jovens citadinos (quadro n.° 16). Essa informação, maisdo que nos meios urbanos, é veiculada através dos amigos, tanto no caso das

384 raparigas como no caso dos rapazes (quadro n.° 25).

Page 41: Família, sexualidade e religião*

Posição dos jovens perante as relações sexuais, segundo o «habitat»

[QUADRO N.° 23]

HabitatPosição dos jovens Sexo

Rural Urbano Intermédio

Quando uma rapariga solteiratem relações sexuais

Como se sente.

Quando um rapaz solteiro temrelações sexuais

Como se sente.

Procura que isso passe desperce- M 79,7bido F 76,3

Não se importa de falar natural- M 11,2mente sobre isso F 9,9

Não sabe/não responde p «~'Q

Sente-se satisfeita ^ ^ ' 4

Sente que procedeu mal p ~*\

Não sabe/não responde *£ ^ 5

Procura que isso passe desperce- M 50,2bido F 55,3

Não se importa de falar natural- M 42,6mente sobre isso F 26,9

Não sabe/não responde c ' «-'or • 1 /,o

Sente-se satisfeito ^ .**'*

Sente que procedeu mal p l g ' 2

Não sabe/não responde F 24'n

70,7 72,775,3 81,5

22,6 21,918,1 15,6

6,76,6

15,715,5

4,310,7

5,42,8

68,3 63,357.7 52,1

16,0 19,726.8 32,2

17,015,7

35,9 45,241,5 45,7

59.7 51,847.8 47,5

3,06,7

84,6 85,269,6 64,6

9,5 11,214,5 15,5

6,0 3,715,9 20,0

Ainda no campo da austeridade sexual, cabe dizer que a percentagem devirgens é semelhante nos meios rurais e urbanos, rondando os 30% (quadron.° 15). Enfim, é perfeitamente admissível que os jovens rurais tenham antesdo casamento uma actividade sexual, não diremos regular, mas, pelo menos,esporádica. É também admissível que essa actividade revista formas diver-sas, para além das mais convencionadas: certos rapazes podem praticar oadultério, que tem a vantagem de permitir a imputação ao marido enganadodo filho feito à respectiva mulher; outros, como vimos, recorrerão ao amorvenal.

4. CONCLUSÃO

Não verificamos entre os jovens católicos uma ética sexual muito distintada dos outros jovens. É certo que, para a maioria dos jovens católicos, asexualidade apenas é encarada no contexto de uma relação durável, institucio- 385

Page 42: Família, sexualidade e religião*

nalizada através do casamento (católico). Contudo, e embora defendam, nageneralidade, uma atitude repressiva da sociedade sobre todas as práticassexuais fora da esfera conjugal, na prática, os jovens católicos — designada-mente os não praticantes — sentem-se incitados a ultrapassar os mecanismosde censura que religiosamente apoiam.

No que respeita às atitudes dos jovens em relação à familia, ao casamentoe ao amor, pode concluir-se que a maioria dos jovens portugueses reco-nhecem a familia como um meio de garantia de segurança económica. Mesmoassim, os jovens concordam, maioritariamente, que «a relação sexual éapenas uma manifestação de amor». Contudo, como tivemos oportunidadede salientar, uma significativa percentagem dos jovens casados ou vivendocom companheiro/a afasta-se desta linha. Ainda em relação aos jovens casa-dos, também podemos concluir que não estão preparados para harmonizar,em familia, uma «dupla carreira» profissional. Apesar da crescente partici-pação da jovem esposa na vida profissional, o seu papel continua a ser clara-mente familiar, não se tendo ainda libertado das principais e mais rotineirastarefas domésticas.

Posição dos jovens perante a prostituição, segundo o «habitat»

[QUADRO N.° 24]

«Pagar para terrelações sexuais»

Já fez

iSíão fez, mas admite vir a fazer

Não fez, nem admite vir a fazer ....

Não responde

Sexo

MF

MF

MF

MF

Rural

21,90,3

17,82,3

56,785,9

3,611,4

Habitat

Urbano

11,41,3

10,22,8

76,393,5

2,02,4

Intermédio

20,21.1

15,01,1

63,389,9

1,57,9

Não havendo uma divisão equilibrada de tarefas nas famílias que osjovens constituem, poder-se-ia levantar a dúvida: «Pois bem, aí temos como oamor pode tornar secundários todos esses aspectos insignificantes que seprendem com a divisão do trabalho familiar.» Nada mais equívoco do quepensar desta maneira. Com efeito, quanto mais intensa é a divisão do traba-lho familiar, mais coesa e solidária é a família, mas nada nos permite afir-mar que tal coesão e solidariedade sejam manifestações de «amor». Ou nãoé verdade que é nos jovens casais que há um maior espírito de colaboraçãona distribuição das tarefas domésticas que o divórcio surge, geralmente, comofenómeno mais frequente? Aliás, a Durkheim se deve a tese segundo aqual «o laço que prende o indivíduo à sua família é tanto mais forte, maisdifícil de quebrar, quanto mais dividido estiver o seu trabalho doméstico»43.E isto porque, ainda segundo Durkheim, as diferentes partes do agregado

386 43 E. Durkheim, A Divisão do Trabalho Social /, Lisboa, Editorial Presença, 1977, p. 174.

Page 43: Família, sexualidade e religião*

Meios de conhecimento em matéria sexual,segundo o «habitat» dos jovens

[QUADRO N.° 25]

Meios de conhecimentoem matéria sexual

Irmãos

Irmãs

Pai

Mãe

Amigos ,

Namorado/a ,

Familiares

Leitura pessoal ,

Professores

Experiência/prática ,

Outros ,

Sexo

Mp

Mp

MF

MF

MF

Mp

MF

MF

Mp

MF

Mp

Rural

3,41,0

0,66,5

10,46,8

8,528,7

73,955,8

7,513,0

4,17,0

43,822,4

4,33,6

6,25,0

2,97,7

Habitat

Urbano

6,03,6

1,17,2

12,013,4

7,937,8

64,352,3

14,517,1

4,52,8

46,136,8

8,310,2

4,43,0

2,80,3

Intermédio

8,04,1

3,7

16,313,1

12,730,2

71,357,7

8,712,0

5,34,6

56,636,3

6,28,1

1,12,3

0,83,3

familiar, na medida em que desenvolvem funções diferentes, não podem serfacilmente separadas. A divisão do trabalho familiar aparece, portanto, comouma das origens da solidariedade conjugalu. O que, por outro lado,também é discutível é pretender reflectir nessa solidariedade um estado de«amor-paixão». A solidariedade conjugal é apenas um factor essencial decoesão social. E, como toda a solidariedade, também a conjugal tem um carác-ter moral, porque a necessidade de ordem, de harmonia, passa geralmentepor ser moral. Esta solidariedade aparece entre os jovens portugueses rela-tivamente reforçada, na medida em que, na sua grande maioria, os jovensportugueses constituem uma população essencialmente católica, sujeita aformas de conduta moralmente estabelecidas.

44 Opina Durkheim:

Fazei regredir para além de um certo ponto a divisão do trabalho sexual, e a sociedadeconjugal esboroa-se, para apenas deixar subsistir as ligações eminentemente efémeras.[E. Durkheim, A Divisão do Trabalho Social /, cit., p. 76.] 387

Page 44: Família, sexualidade e religião*

Quanto à posição dos pais sobre os diferentes aspectos da relação entreos dois sexos, ela encontra-se fortemente condicionada pela religião. As fi-lhas de pais ateus têm francamente mais liberdade do que as filhas de paisque professam qualquer religião, católica ou não, tanto nas saídas nocturnascomo nas idas aos bailes. Por outro lado, os pais católicos praticantes são osmenos indulgentes em relação a carícias amorosas como o beijo. Contudo,como vimos, não se pode dizer, sem mais nem menos, que um forte índice dereligiosidade determina uma posição escrupulosa por parte dos pais em rela-ção aos diferentes aspectos da relação entre os dois sexos. De facto, a preo-cupação dos pais católicos que têm filhas é uma preocupação originada porpressão social que consiste na antecipação das represálias morais impostassocialmente.

Uma vez que os sentimentos de reprovação fazem parte de um tipo colec-tivo, tudo o que contribui para os abalar abala, ao mesmo tempo, um certotipo de coesão social determinado por esses mesmos sentimentos. Eis por-que, em geral, os actos que os ofendem não são bem tolerados. De um certoponto de vista, não há razão para que uma sociedade reprima o beijo entrenamorados ou o acto de as pessoas passearem de mão dada. Mas, uma vezque o pudor que estes actos produzem se tornou parte integrante de uma«consciência comum»45 — à qual os ideais religiosos não são estranhos —,essa vontade repressiva não pode desaparecer sem que os vínculos sociais sedistendam, o que vai acontecendo, como vimos, nos meios urbanos. Eis por-que, do ponto de vista da moral católica ou religiosa, todos os movimentosde libertação sexual aparecem como subversivos da ordem social.

Pode portanto dizer-se, sem paradoxo, que os sentimentos repressivosque nos meios sociais mais controlados pela Igreja se desenvolvem em rela-ção às carícias sexuais, como acontece nos meios rurais, estão sobretudodestinados a actuar sobre pessoas pudicas. De facto, uma vez que esses senti-mentos repressivos servem, sobretudo, para curar as feridas feitas nos senti-mentos colectivos, não podem desempenhar esse papel senão onde existamesses sentimentos e na medida em que esses sentimentos se articulem de formasolidária46. É esta solidariedade que o pudor repressivo configura mate-rialmente. O papel que tem na integração geral da sociedade depende eviden-temente da amplitude maior ou menor da vida social que a «consciênciacomum» abarca e regulamenta. Ora é nos meios rurais, onde essa «consciênciacomum» mais se faz sentir, que ela mais cria também os laços que prendem oindivíduo à comunidade; consequentemente, mais a coesão social deriva destacausa e dela traz a marca. Apesar de tudo, como também foi demonstrado,se é verdade que a sexualidade se encontra, sujeita a um poder coercivopor parte da Igreja, também é verdade que a Igreja prescreve ao sexo umaordem que funciona como forma de inteligibilidade da sexualidade. É isso oque temos de concluir quando se demonstra que, para os jovens habitantesdos meios rurais, em relação aos quais mais se faz sentir a influência coercivada Igreja, a sexualidade não se encontra exclusivamente centrada nomatrimónio, ao contrário do que se poderia pensar. Há também nos meiosrurais lugar para uma sexualidade «periférica» e oportunidades reais parasuperar as barreiras divisórias entre o «lícito» e o «ilícito».

45 Empregamos esta expressão com o exacto sentido que lhe é dado por E. Durkheim,A Divisão do Trabalho Social I, cit.

46 Trata-se de uma «solidariedade mecânica», conforme Durkheim a definiu em A Divisão388 Social do Trabalho, cit.