famigerado - conto de guimarães rosa

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Conto de Guimares Rosa-Famigerado

FamigeradoGuimares Rosa

Foi de incerta feita o evento. Quem pode esperar coisa to sem ps nem cabea? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranqilo. Parou-me porta o tropel. Cheguei janela.

Um grupo de cavaleiros. Isto , vendo melhor: um cavaleiro rente, frente minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, trs homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse o oh-homem-oh com cara de nenhum amigo. Sei o que influncia de fisionomia. Sara e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazo; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dvida.

Nenhum se apeava. Os outros, tristes trs, mal me haviam olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos coagidos, sim. Isso por isso, que o cavaleiro solerte tinha o ar de reg-los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avanava a cerca, formava-se ali um encantovel, espcie de resguardo. Valendo-se do que, o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, no dispunham de rpida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os trs seriam seus prisioneiros, no seus sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, s podia ser um brabo sertanejo, jaguno at na escuma do bofe. Senti que no me ficava til dar cara amena, mostras de temeroso. Eu no tinha arma ao alcance. Tivesse, tambm, no adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo a extrema ignorncia em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.

Disse de no, conquanto os costumes. Conservava-se de chapu. Via-se que passara a descansar na sela decerto relaxava o corpo para dar-se mais ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que no estava doente, nem vindo receita ou consulta. Sua voz se espaava, querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez so-franciscano. Sei desse tipo de valento que nada alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranho, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um s-no-s. Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:

"Eu vim preguntar a vosmec uma opinio sua explicada..."

Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal. Desfranziu-se, porm, quase que sorriu. Da, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazo era para paz. O chapu sempre na cabea. Um alarve. Mais os nvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se: estava em armas e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturo, que usado baixo, para ela estar-se j ao nvel justo, ademo, tanto que ele se persistia de brao direito pendido, pronto menevel. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se achar, na regio, pelo menos de to boa feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenes. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de rvore. Sua mxima violncia podia ser para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um caf, calmava-me. Assim, porm, banda de fora, sem a-graas de hspede nem surdez de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem certeza.

"Vosmec que no me conhece. Damzio, dos Siqueiras... Estou vindo da Serra..."

Sobressalto. Damzio, quem dele no ouvira? O feroz de estrias de lguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosssimo. Constando tambm, se verdade, que de para uns anos ele se serenara evitava o de evitar. Fie-se, porm, quem, em tais trguas de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava:

"Saiba vosmec que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moo do Governo, rapaz meio estrondoso... Saiba que estou com ele revelia... C eu no quero questo com o Governo, no estou em sade nem idade... O rapaz, muitos acham que ele de seu tanto esmiolado..."

Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter comeado assim, de evidente. Contra que a estava com o fgado em ms margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as feies. Se que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, no me encarava, s se fito meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.

O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do So o, travados assuntos, inseqentes, como dificultao. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as mnimas entonaes, seguir seus propsitos e silncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava: E, p:

"Vosmec agora me faa a boa obra de querer me ensinar o que mesmo que :fasmisgerado... faz-megerado...falmisgeraldo...familhas-gerado...?

Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presena dilatada. Detinha minha resposta, no queria que eu a desse de imediato. E j a outro susto vertiginoso suspendia-me: algum podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa quele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatria satisfao?

"Saiba vosmec que sa ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis lguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro..."

Se srio, se era. Transiu-se-me.

"L, e por estes meios de caminho, tem nenhum ningum ciente, nem tm o legtimo o livro que aprende as palavras... gente pra informao torta, por se fingirem de menos ignorncias... S se o padre, no So o, capaz, mas com padres no me dou: eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz merc, vosmec me fale, no pau da peroba, no aperfeioado: o que que , o que j lhe perguntei?"

Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:

Famigerado?

"Sim senhor..." e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhes da raiva, sua voz fora de foco. E j me olhava, interpelador, intimativo apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. Famigerado? Habitei prembulos. Bem que eu me carecia noutro nterim, em indcias. Como por socorro, espiei os trs outros, em seus cavalos, intugidos at ento, mumumudos. Mas, Damzio:

"Vosmec declare. Estes a so de nada no. So da Serra. S vieram comigo, pra testemunho..."

S tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroo: o verivrbio.

Famigerado inxio, "clebre", "notrio", "notvel"...

"Vosmec mal no veja em minha grossaria no no entender. Mais me diga: desaforado? caovel? de arrenegar? Farsncia? Nome de ofensa?"

Vilta nenhuma, nenhum doesto. So expresses neutras, de outros usos...

"Pois... e o que que , em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?"

Famigerado? Bem. : "importante", que merece louvor, respeito...

"Vosmec agarante, pra a paz das mes, mo na Escritura?"

Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, ento eu sincero disse:

Olhe: eu, como o sr. me v, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado bem famigerado, o mais que pudesse!...

"Ah, bem!..." soltou, exultante.

Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num desafogaru. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles trs: "Vocs podem ir, compadres. Vocs escutaram bem a boa descrio..." e eles prestes se partiram. S a se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d'gua. Disse: "No h como que as grandezas machas duma pessoa instruda!" Seja que de novo, por um mero, se torvava? Disse: "Sei l, s vezes o melhor mesmo, pra esse moo do Governo, era ir-se embora, sei no..." Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietao. Disse: "A gente tem cada cisma de dvida boba, dessas desconfianas... S pra azedar a mandioca..." Agradeceu, quis me apertar a mo. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazo, no pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto.

Texto extrado do livro "Primeiras Estrias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pg. 13.

Joo Guimares Rosa