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Sonia Sellin Bordin Fala, Leitura e Escrita: encontro entre sujeitos Tese apresentada ao curso de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Linguística na área de Neurolinguística Discursiva Orientadora: Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry Bolsista CAPES Campinas Instituto de Estudos da Linguagem 2010

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Sonia Sellin Bordin

Fala, Leitura e Escrita: encontro entre sujeitos

Tese apresentada ao curso de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Linguística na área de Neurolinguística Discursiva Orientadora: Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry Bolsista CAPES

Campinas

Instituto de Estudos da Linguagem

2010

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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca do IEL - Unicamp

B644f

Bordin, Sonia Sellin.

Fala, leitura e escrita : encontro entre sujeitos / Sonia Maria Sellin Bordin. -- Campinas, SP : [s.n.], 2010.

Orientador : Maria Irma Hadler Coudry. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto

de Estudos da Linguagem. 1. Neurolinguistica discursiva. 2. Fala. 3. Leitura. 4. Escrita. 5.

Dislexia. 6. Família. 7. Escola. I. Coudry, Maria Irma Hadler. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.

tjj/iel

Título em inglês: Speech, writing and reading: the meeting between the subjects.

Palavras-chaves em inglês (Keywords): Neurolinguistics; Speech; Reading; Writing; Dyslexia; Family; School.

Área de concentração: Linguística.

Titulação: Doutor em Linguística.

Banca examinadora: Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry (orientadora), Prof. Dr. Sírio Possenti, Profa. Dra. Vera Lucia Trevisan Sousa, Profa. Dra. Fernanda Maria Pereira Freire e Profa. Dra. Alessandra Caneppele. Suplentes: Profa. Dra. Rosana do Carmo Novaes Pinto, Profa. Dra. Célia Regina Carneiro e Profa. Dra. Maria Cecília Marconi Pinheiro Lima.

Data da defesa: 31/08/2010.

Programa de Pós-Graduação: Programa de Pós-Graduação em Linguística.

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Ao Gil, André e Adriana

por tornarem minha vida tão plena.

Às crianças e às mães

- porque a língua é mesmo materna –

minhas companhias nesses trinta anos

de fonoaudiologia.

A Angelo e Rosalina Sellin,

In memorian.

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Agradecimentos

À Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry, por ser um feliz encontro na minha vida e por partilhar sua sabedoria comigo.

Aos professores que participaram nas etapas de qualificação da tese - Sírio Possenti e Vera Lucia Trevisan de Sousa -, bem como da banca examinadora - Sírio Possenti, Vera Lúcia Trevisan de Sousa, Fernanda Maria Pereira Freire e Alessandra Caneppele - pela generosidade e colaboração com esta produção.

À Profa. Dra. Vera Lúcia Trevisan de Sousa, agradeço, mais uma vez, bem como aos seus alunos, por me acolherem de uma maneira tão gentil e delicada, desde 2009, no curso de pós-graduação de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas na disciplina Estudos Avançados do Desenvolvimento. Às Profas. Dras. Maria Ester Scarpa, Célia Regina Carneiro, Silvana Perotino, pela leitura atenta e indicações valiosas na qualificação de área.

A Janete Stela Domenica, pela amizade e pelo valioso apoio, não só em dividir o peso da escrita, mas por me lembrar das coisas da alma.

A Francine Marson Costa e Giovana Dragone Rosseto Antonio pelas leituras críticas que realizaram de diferentes capítulos dessa tese e pelo carinho e atenção preciosos que demonstram comigo.

Aos cuidadores, meninas e meninos do CCazinho, por terem me ajudado tanto nesses anos todos em que partilhamos reflexões teóricas e práticas da ND, brincadeiras, muitas risadas, emoções e também indignação, porque a vida para algumas crianças e famílias que conhecemos no CCazinho é mais do que difícil, é triste.

A Ana Laura Nakazoni e Juli C. Pereira pela importante ajuda com a organização dos dados em ambiente digital.

Às amigas Catarina, Sonia, Fernanda, Ana Paula, Carla, Bia, Cleusa, Denise, Sandra, porque quem tem amigos é mais feliz. Obrigada pela escuta, café e risadas.

E de novo ao Gil, André e Adriana, pelo amor, paciência e por torcerem por mim.

À família que passou a existir a partir de Angelo e Rosalina Sellin, a cada um a seu modo.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES, pelo apoio e financiamento por meio da bolsa de doutorado.

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Adormeci e sonhei que a vida era alegria;

despertei e vi que a vida era serviço;

servi e vi que o serviço era alegria.

(Rabindranath Tagore)

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Resumo

Trata-se de um estudo longitudinal fundamentado em uma abordagem discursiva da

Neurolinguística e realizado com crianças/jovens, com e sem lesão cerebral, que apresentam

dificuldades no eixo “fala, leitura e escrita” e são avaliadas e acompanhadas no Centro de

Convivência de Linguagens (CCazinho/IEL/Unicamp) e/ou na clínica fonoaudiológica. É a

partir da materialidade da escrita apresentada pelas crianças que são realizadas análises

linguísticas, baseadas em uma perspectiva heurística. Essa análise se assenta em autores-

âncora para a teorização da Neurolinguística Discursiva, quais sejam: Vygotsky, Luria e

Freud. O acompanhamento realizado com essas crianças se dá, então, a partir do trabalho

linguístico que realizam com a fala, leitura e escrita e da consciência que desenvolvem diante

desses processos, como constructos sociais e históricos na relação linguagem-cérebro-mente e

aprendizagem. A análise da materialidade linguística (oral e escrita) da criança/jovem revela

marcas de sua mediação com diferentes interlocutores: Escola, Família, Estado, Diagnósticos

Médicos (como Dislexia, Transtorno do Déficit de Atenção, Distúrbio de aprendizagem etc)

na área de leitura e escrita e, ainda, de como essas diferentes mediações interfere na

materialidade de fala, leitura e escrita da criança/jovem e nos seus processos em aprendizado.

Palavras-chave: Neurolinguística Discursiva; Fala, Leitura, Escrita; Dislexia; Família; Escola

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Abstract

This is a longitudinal study based on the discursive neurolinguistical approach, done with

children/youngster, with or without brain damage, that shows issues on the “speech – reading

and writing” axis. Those subjects are evaluated and follow up on the Centro de Convivência

de Linguagens (CCazinho/IEL/Unicamp) and/or on the speech therapist office. Based on the

written material developed and delivered by the subjects, linguistic analysis are done,

supported by the heuristics perspective. This analysis are set by anchors-authors on the

discursive neurolinguistics theory, those being: Vygotsky, Luria and Freud. The follow up

done with those children starts on a linguistically work that consists on speech, reading and

writing, aiding to develop a consciously process as social construction, historical relations

between speech-brain-mind and learning. The analysis on the linguistic material (speech and

written) of the children/youngster reveals marks facing different interlocutors: School,

Family, Estate, Medical Diagnosis (as dyslexia, attention deficit (DDA), learning curve

disturbance etc.) on the speech and writing areas and this may interfere on this materiality as

on the process it is involved.

Keywords: Neurolinguistics; Speech, Reading, Writing; Dyslexia; Family; School

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SUMÁRIO Apresentação ........................................................................................................................................... 1

1. CCazinho: um espaço de (con)vivência de sujeitos ........................................................................... 9

1.1 O CCazinho na prática ................................................................................................................ 10

1.2 O CCazinho na teoria .................................................................................................................. 18

1.3 Metodologia ................................................................................................................................ 37

2. Um determinado percurso escolar ..................................................................................................... 39

2.1 Abrindo um universo de questões ............................................................................................... 41

2.2 O sujeito e a materialidade da sua escrita.................................................................................... 48

2.3 Sujeitos, Escola e Diagnósticos ................................................................................................... 57

3. Uma menina caminha... .................................................................................................................... 67

3.1 A copista ...................................................................................................................................... 70

3.2 A cópia como um equívoco ......................................................................................................... 72

3.3 LS no CCazinho .......................................................................................................................... 76

3.4 LS em grupo e com seus cuidadores ........................................................................................... 77

4. Campo Minado .................................................................................................................................. 93

4.1 O que dizem os pais sobre as dificuldades de ler e escrever de seu filho ................................ 102

4.2 Olhar para o filho como possível leitor/escrevente ................................................................... 103

4.3 Sobre o diagnóstico dado ao filho ............................................................................................. 105

4.4 Sobre a escola como falta de sentido para diferentes gerações ................................................. 106

4.5 Escola e Família: queda de braços ............................................................................................ 106

5. Uma fala em espera ......................................................................................................................... 109

5.1 Duas meninas, duas histórias .................................................................................................... 109

5.2 Dois desenhos, duas produções escritas .................................................................................... 116

Considerações finais ............................................................................................................................ 125

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Apresentação

Este estudo nasce no Centro de Convivência de Linguagens –

CCazinho/IEL/Unicamp, entre os anos de 2006 e 2010, com crianças e jovens que se

apresentam com problemas no eixo fala, leitura e escrita. A prática por mim exercida

remonta a de uma experiência de trinta anos como fonoaudiológica. Trata-se, então, de uma

pesquisa que se constitui na interdisciplinaridade entre a Linguística, mais especificamente, a

abordagem teórico-metodológica da Neurolinguística Discursiva (abreviada como ND), e uma

Fonoaudiologia por ela iluminada.

Meu percurso fonoaudiológico se iniciou na década de 1980 e sempre abrangeu o

atendimento1 de crianças/jovens com problemas de fala e/ou de leitura e de escrita, trazidas à

clínica por uma demanda familiar ou escolar. Os pais, frequentemente, reportavam diferentes

causas para as dificuldades apresentadas pelos filhos: Disfunção Cerebral Mínima (DCM),

atualmente reconhecida com o nome de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade

(TDAH), Retardo do Desenvolvimento Neuropsicomotor (de causa orgânica ou social),

Síndromes (diversas) com retardo mental associado ou não e ainda crianças com problemas de

fala com repercussão na escrita, ou com problemas apenas na escrita.

Nesse início de minha prática, eu observava que, além de ao fonoaudiólogo,

também era comum o encaminhamento das crianças para pedagogos ou professores

particulares. Além disso, por parte de profissionais da medicina e/ou da educação,

frequentemente, havia a solicitação para que a criança passasse por avaliação psicológica de

cunho intelectual e psicomotor. Isso revelava, na visão organicista2, a importância atribuída à

época aos aspectos quantificadores da inteligência e do desempenho motor como

determinantes da relação da criança com os processos de leitura e escrita.

Na década de 1990, o que vi na prática fonoaudiológica foi que os pais além de

apontarem as dificuldades escolares dos filhos passaram a apresentar também ao 1 Embora tenha me concentrado em descrever minha experiência com crianças e jovens na área de leitura e escrita, também tenho atendido na clínica fonoaudiológica ao longo desses anos crianças e adultos em diferentes áreas: linguagem, fala, voz, motricidade oral (envolvendo o trabalho com a musculatura orofacial e as funções do sistema estomatognático que inclui a respiração, a mastigação e a deglutição). 2 A visão organicista tem a característica de ser técnica e centrada na biologia. Iniciada com Galeno (129-200) propõe que o corpo humano seja dividido em partes para que possa se tornar conhecido pelo homem. Desse método de estudo derivou as especialidades médicas em que o especialista se ocupa de estudar um órgão ou sistema, desenvolvendo para isso recursos técnicos na sua área de atuação.

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fonoaudiólogo um diagnóstico médico e isso foi fazendo com que termos como “Dislexia”,

“TDAH” e “Distúrbio de Aprendizagem” saíssem do repertório médico e começassem a ser

disseminados entre os leigos. Nessa mesma época, tornou-se mais comum que crianças com

problemas de fala e/ou leitura e escrita fossem cuidadas por diferentes profissionais

simultaneamente: psicólogo, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo, psicomotricista

(geralmente psicólogo), além do pediatra e neurologista. A esses profissionais, anos mais

tarde, somou-se o psicopedagogo.

As áreas de leitura e de escrita se mostraram, então, nesses últimos anos, como

áreas profícuas quanto à ocorrência de novos diagnósticos, além daqueles já apontados. Assim

começaram a aparecer outros termos como “Alteração de Processamento Auditivo” e

“Disfunção executiva”. O interessante é observar que a maioria dos casos diagnosticados

com TDAH passou a incluir também o diagnóstico de Alteração do Processamento Auditivo.

Isso se deve, como veremos mais adiante, ao fato de que as avaliações diagnósticas de

Processamento Auditivo e de TDAH apresentam critérios comuns, como por exemplo, a

atenção. Paralelamente a esses diagnósticos, entrou em cena o uso de fármacos à base de

metilfenidato, com os nomes comerciais de Ritalina e Concerta.

A relação da área da Fonoaudiologia com as questões de leitura escrita, a meu ver,

ficou atrelada também aos diagnósticos médicos, na medida em que essa disciplina incorpora

da área médica grande parte de seus conhecimentos. Além disso, a fonoaudiologia mantém

com a medicina uma relação de subserviência: como exemplo disso, uma avaliação e/ou

acompanhamento fonoaudiológico em pacientes com plano de saúde ou convênios médicos,

na sua grande maioria, só pode ser realizado se houver o encaminhamento médico com

suspeita ou confirmação de diagnóstico indicando essa necessidade.

Na prática clínica, se, por um lado, estive em contato com as crianças, por outro,

houve também minha aproximação com famílias e escolas e pude observar, então, que essas

instituições sofreram profundas modificações durante esses anos. Em relação à família, houve

um rearranjo no interior da estrutura e da dinâmica familiar, nos tipos de configuração

familiar, no tempo e na qualidade de atenção dada à criança, e, especialmente, no fato de a

família ter delegado à escola não só a responsabilidade pela educação formal, mas também a

responsabilidade pelo controle do comportamento da criança.

A escola, por sua vez, também passou por alterações em sua estrutura e dinâmica

de funcionamento em decorrência de um histórico de políticas públicas que contribuíram para

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a sua perda de identidade como espaço coletivo em que se partilham saber e conhecimento.

No quadro atual, a queixa dos pais de estudantes de escola pública em relação à questão de

leitura e escrita do filho é complementada com a queixa contra a escola como um todo e, mais

especificamente, contra o professor, com raras exceções. Os pais tomam o ensino público

como gratuito e se esquecem de que, assim como os pais de crianças de escola particular,

também pagam impostos e que seus filhos, portanto, têm direito a um ensino de qualidade.

Em relação à escola particular, a queixa que muitas vezes escuto no consultório

parte do professor e é dirigida aos pais, que se mostram exigentes com o ensino que é

oferecido ao filho, mas isso nem sempre se estende ao comportamento que o filho deveria

apresentar em relação ao professor e à escola que frequenta. Situações relatadas pelos

professores dão conta de que, por exemplo, quando a criança apresenta algum problema de

comportamento na escola, duas situações são possíveis: algumas vezes, quando chamados

para conversar a respeito, os pais lembram à escola de que estão pagando para que ela eduque

seu filho e que não acham tão relevante o fato em questão; ou o professor pode se sentir

pressionado, em algumas ocasiões, pela coordenação da escola para não arranjar problemas

com os alunos e, muito menos, com os pais deles, que afinal são os que pagam a mensalidade.

Nesses últimos anos, comecei a perceber no consultório um fenômeno interessante

que põe em relação Escola e Família. Trata-se do aumento de casos de crianças, professores e

mães com diagnóstico de Disfonia Funcional devido a abuso vocal. A particularidade desse

fenômeno em relação às crianças é que elas chegam ao consultório cada vez com menos

idade, com 3a8m de idade, por exemplo. O motivo mais comum apontado pelos adultos

(mães e professores) é que gritam muito com os filhos e alunos porque eles não “escutam”.

Esse foi o percurso da minha prática clínica que suscitou reflexões que puderam

ser melhor compreendidas e analisadas a partir do meu encontro, em 2000, com os

pressupostos teórico-metodológicos da ND em relação ao sujeito, à linguagem e ao cérebro.

A ND assume, para avaliar e acompanhar os processos de que se ocupa, uma

concepção de linguagem de natureza social e dialógica, em que o sentido não está dado a

priori , mas na situação pragmática, em meio a práticas com a linguagem (FRANCHI, 1977).

Além disso, a ND valoriza o caráter indeterminado de processos ideológicos e históricos que

produzem efeitos na sociedade, na língua e no cérebro/mente (VYGOTSKY, 1926; LURIA,

1976).

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Decorre dessa concepção de linguagem uma concepção de sujeito com ela

afinada, ou seja, constituído na e pela linguagem, histórico, incompleto (COUDRY, 1988) e

que circula em diferentes sistemas de linguagem (verbal e não verbal). O cérebro para a ND é

tomado em seu funcionamento intersemiótico, o que possibilita ao sujeito produzir e

interpretar diferentes materialidades na sua relação com o outro no mundo em que vive: fala,

leitura, escrita, imagem, figura, foto, música, dança etc.

Os autores-âncora para a teorização na ND são: Vygotsky, Luria e Freud. Do

primeiro e do segundo autor, privilegia-se a natureza social e histórica da linguagem e do

cérebro, o que se contrapõe à visão de que apenas o orgânico é explicativo dos fenômenos

humanos. Deles partilha-se também a ideia de que a consciência do homem (onto e

filogeneticamente) sobre o próprio conhecimento – advindo da linguagem, leitura, escrita,

raciocínios lógicos – promove mudanças na plasticidade cerebral e transformações no

comportamento humano e, consequentemente, na cultura e na sociedade. Em relação a Freud,

seu estudo sobre as afasias contribui grandemente para esta pesquisa e para o modo como a

ND tem considerado a relação entre fala, leitura e escrita, aproximando afásicos de crianças

em processos de aprendizagem.

A problemática central desta tese diz respeito ao estudo do eixo fala, leitura e

escrita como acontecimento que evidencia no cérebro um funcionamento holístico

(JACKSON, 1879) e intersemiótico, possibilitado pela linguagem. O objetivo principal é,

então, mostrar que a fala, a leitura e a escrita são lugares de encontro entre sujeitos e que esses

modos de a linguagem se apresentar não se substituem entre si, mas podem ampliar as

possibilidades de trabalho com crianças em que a linguagem está presente e a fala não, bem

como com crianças/jovens com problemas na leitura e na escrita, mas não na fala e que, ainda

assim, ficam fora do sentido que passa pela língua, como será apresentado nesta tese.

Com base nisso, este trabalho se ocupa dos seguintes sujeitos:

- crianças e jovens considerados normais que frequentam a escola brasileira todos os dias e

que, ainda assim, não dominam a leitura e a escrita, o que os coloca em condições de

vulnerabilidade social mantidas pelas impossibilidades de participar de diferentes

socializações a partir da escrita;

- duas crianças que, por razões diferentes, apresentam-se com problemas na fala: RD, 7a7m,

que não fala e faz uso da leitura e da escrita tanto para se comunicar como para iniciar sua

produção de sons que se caracterizam como vocalizações com intenção comunicativa; FS,

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7a5m, que iniciou a produção de sons da fala juntamente com a escrita aos 4a2m, usando a

materialidade de escrita para fazer ajustes na fala.

Em função dessa problemática central, surgem objetivos específicos:

- o que essa criança/jovem consegue dizer sobre a sua leitura e escrita e que uso social fazem

delas? Quais são os interlocutores desses sujeitos e como favorecem (ou atrapalham) para que

sua leitura e escrita se apresentem assim?

Essas questões serão apreciadas a partir do reconhecimento de que falar, ler e

escrever são atividades humanas socialmente motivadas e, portanto, dependentes das

condições em que acontecem, daí a importância de que a história de vida dos sujeitos

presentes nesta tese seja também reproduzida.

Apresentação dos capítulos:

Essa tese se compõe de cinco capítulos.

O capítulo 1, “CCazinho: um espaço de (con)vivência de sujeitos”, tem como

proposta, na sua primeira parte, apresentar o CCazinho e seu funcionamento prático, ou seja,

como as crianças/jovens são avaliadas e acompanhadas, como sua família é inserida nos

processos de leitura e escrita por elas desenvolvidos e como se dá a relação CCazinho/escola.

Na segunda parte desse capítulo, há a exposição do método empregado na obtenção de dados

apresentados nesta tese e do suporte teórico dos autores-âncoras da ND (VYGOTSKY,

LURIA e FREUD) a respeito de como a fala, a leitura e a escrita são consideradas a partir

deles. Os estudos de Vygotsky e Luria explicam a história da escrita e da pré-escrita na

criança e dá relevância aos processos de leitura e de escrita como possibilidades de

transformações neuropsíquicas e sociais no homem e na espécie. Ler e escrever o mundo

impõem ao homem transformações internas (percepção, memória, raciocínios, consciência,

atenção), bem como externas, favorecendo sua emancipação e ampliação das possibilidades

nas formas de vida social e econômica. O estudo de Freud (1891) embasa a busca da

compreensão do que acontece com a criança em seus primeiros contatos com a tecnologia da

linguagem escrita quando entram em jogo processos sofisticados de percepção (motora,

auditiva, visual) que se apresentam simultaneamente demandando, inclusive, memorização

por parte da criança. A relevância de referenciar essa teoria está na busca de se compreender a

heterogeneidade dos caminhos que as crianças percorrem para entrar no mundo da leitura e da

escrita, reconhecendo que nem todas entram nele da mesma maneira e no mesmo ritmo. Para

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este autor, quando a criança aprende a letra, ela aprende um som novo acompanhado de uma

imagem visual nova, a qual só ganha existência se ancorada no sentido da imagem sonora da

palavra antiga, já conhecida, ou seja, presente na língua falada. A partir desses pressupostos

propomos o esvaziamento do que é chamado comumente de “dislexia”. Ainda nesse capítulo,

fazendo uso do conceito de involução de Jackson (1879), procuro estabelecer uma relação

entre crianças e afásicos com problemas nos processos de leitura e escrita.

O capítulo 2, “Um determinado percurso escolar”, expõe a trajetória de crianças

que apresentam dificuldades nos processos iniciais de leitura e escrita, tornando-se potenciais

indivíduos alfabetizados funcionais por ocasião da sua saída da escola. A experiência de ser

aprovado na escola, mesmo sem saber, de fato, ler e escrever; a realização de diagnósticos em

crianças sem problemas orgânicos ou de aprendizagem marcando no corpo sua

impossibilidade de leitura e de escrita; a falta de consciência desses sujeitos sobre os próprios

processos de leitura e escrita – são alguns pontos da construção social do trajeto escola/

alfabetizados funcionais. Dessa construção participa a figura do professor que ora se apaga e

apaga a identidade do aluno, o que torna impossível qualquer relação de aprendizagem. Como

contraponto a esse determinado percurso escolar que leva ao fracasso do aluno, trago autores

como Abaurre, Possenti, Alkmim (entre outros), que olham para a escrita como determinada

por fatores históricos, sociais e políticos, e para o “erro” como lugar de descobertas sobre a

língua, sobre a variedade linguística, sobre a continuidade e descontinuidade desses

processos. Por fim, apresento, ainda neste capítulo, estudos sobre o aumento da realização de

diferentes diagnósticos na infância (Transtorno Bipolar e Depressão), assim como o aumento

exorbitante da venda dos psicofármacos Ritalina e Concerta, relacionando-o com a ocorrência

de morte súbita em crianças/jovens e a futura possibilidade de drogadição entre os usuários de

tais medicamentos.

O capítulo 3, “Uma menina caminha”, conta a história de LS que, pela condição

de não ser vista pela escola com qualquer possibilidade de aprender a ler e a escrever (mesmo

sem nenhum problema real que a incapacitasse para isso), fica relegada à condição de copista.

Essa prática de escrita reforça em LS uma percepção de leitura e escrita como reprodução da

imagem visual de letras e cindida do sentido presente na sua fala ou da função social da

leitura e escrita. O reconhecimento do quanto é comum a atividade da cópia nas escolas me

levou a considerar criticamente a pertinência dessa prática. Esse capítulo dá visibilidade ao

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trabalho realizado com LS no eixo da fala, leitura e escrita e, principalmente, deixa ver a

emersão de LS como um sujeito que amplia sua história pela leitura e escrita.

O capítulo 4, “Campo minado”, trata da relação Escola-Família, quase sempre um

lugar de tensão. Ambas as instituições refletem o funcionamento da sociedade e,

aparentemente, se apresentam também falhando ao mesmo tempo: a família clama por uma

escola ideal e a escola por um aluno ideal, com uma família ideal. Nesse capítulo, busco

evidenciar a relação da família com a imagem que tem de leitor e escrevente do filho com

problemas para ler e escrever; a compreensão que a família tem da nomenclatura do

diagnóstico apresentado pelo filho; o conflito permanente entre a escola e a família mesmo

quando a família demonstra interesse pelo estudo do filho.

O capítulo 5, “Uma fala em espera”, é sobre a história de duas meninas com idade

em torno de sete anos e meio que não se apresentam na fala por ocasião de suas entradas no

mundo das letras. O tema central desse capítulo é estudar a relação entre a ausência de fala e a

presença de linguagem, a qual se deixa ver de diferentes maneiras. RD não fala, mas faz uso

sofisticado de gestos representativos. Sua escrita e desenhos cheios de detalhes assumem,

muitas vezes, a função de fala na sua relação com o outro. RD partilha de diferentes relações

sociais, inclusive situações de humor. FS, diferentemente de RD, fez uso até os quatro anos de

vocalizações contínuas em que não se reconhecia palavra alguma, além disso, não faz uso de

gestos representativos, o que a impedia, muitas vezes, de ser compreendida pelo outro. A falta

da fala de FS acaba por reduzir, no período primordial de sua aquisição de fala, as

possibilidades de ela partilhar socialmente diferentes relações mediadas pela linguagem. Além

disso, quando FS passa a falar, apresenta questões relativas à sintaxe da língua. Buscar

compreender o trabalho linguístico realizado por essas duas crianças põe em relevância

diferentes relações: linguagem e fala, fala egocêntrica e fala interior (VYGOTSKY, 1987),

meio social e subjetividade dos sujeitos.

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1. CCazinho: um espaço de (con)vivência de sujeitos Brincadeira, choradeira Pra quem vive uma vida inteira Mentirinha, falsidade Pra quem vive só pela metade Quando alguém me desaponta Paro tudo e dou um tempo Dali a pouco eu me dou conta Que ninguém é cem por cento Seja um príncipe ou um sapo Seja um bicho ou uma pessoa Até mesmo um pé de nabo Tem alguma coisa boa (Trecho da música “Pé de Nabo” de Sandra Peres e Luiz Tatit)

Este capítulo dá visibilidade às estruturas prática e teórica do trabalho realizado

no Centro de Convivência de Linguagem - CCazinho - IEL/Unicamp com crianças/jovens

diagnosticadas com alguma patologia de leitura/escrita que se apresentam com dificuldades

em sua entrada para o universo das letras. Além dessa estrutura, irei apresentar a metodologia

utilizada nesta pesquisa no item 1.3. Entretanto, ressalto que tal apresentação também será

feita na própria descrição do funcionamento teórico e prático do CCazinho.

A partir de 2006, comecei a participar desse centro como aluna de doutorado e

como fonoaudióloga nas diferentes atividades desenvolvidas com crianças/jovens e

familiares: processo avaliativo inicial, acompanhamento longitudinal individual e coletivo

destinados a crianças e seus familiares, visita a escolas, formação de novos cuidadores3 como

parte das atividades do Programa de Estágio Docente nas disciplinas AM 035 e AM 045

destinadas à formação de cuidadores, participação em estudos de casos acompanhados por

eles.

Por questões didáticas, essa apresentação será dividida em duas partes. A primeira

cuidará da exposição do funcionamento da dinâmica do CCazinho, através de quadros

descritivos das diferentes práticas que acontecem neste centro, identificando em cada uma

delas sua principal finalidade. A segunda parte apresentará a Neurolinguística Discursiva

(ND), que articula um conjunto de autores para teorizar sobre fenômenos patológicos e não

3 Cuja definição será apresentada mais adiante.

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patológicos em que a linguagem (fala, leitura e escrita) está envolvida. A ND assume, por um

lado, a linguagem “como histórica e cultural e o caráter previamente indeterminado dos

processos de significação, assumindo-se que a língua resulta da experiência e do trabalho dos

falantes com e sobre a linguagem” (FRANCHI, 1977, COUDRY & MORATO, 2002); por

outro, assume o caráter determinado de processos ideológicos e históricos que produzem

efeitos na sociedade, na língua e no cérebro/mente (VYGOTSKY, 1926; LURIA, 1976).

Esta pesquisa se vincula ao Projeto Integrado em Neurolinguística: práticas com

a linguagem e documentação de dados (CNPq – processo 301726/2006-0) sob orientação da

Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry e tem como fonte de dados o Centro de Convivência

de Afásicos (grupo II) e o CCazinho, os quais constituem o Banco de Dados da

Neurolinguística4 (BDN). O referido Projeto foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa

(CEP) da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp tendo obtido o parecer favorável de

número 326/2008. O mesmo procedimento ético em relação à prática e aos sujeitos

acompanhados nesta pesquisa foi realizado por mim, obtendo o parecer favorável de número

909/2009.

1.1 O CCazinho na prática

O CCazinho nasceu em outubro de 2004, como proposta da Profa. Dra. Maria Irma

Hadler Coudry, docente do Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da

Linguagem – IEL/Unicamp, para acompanhar crianças que receberam diagnósticos de (uma

ou mais) patologias na área de leitura e escrita. E a história desse centro se iniciou como

desdobramento do Centro de Convivência de Afásicos (CCA).

O CCA existe desde 1989, por um convênio entre IEL e a Faculdade de Ciências

Médicas. Trata-se de um grupo com pessoas afásicas e não afásicas que se reúnem

semanalmente e, tendo como tema acontecimentos do mundo, interagem em práticas

discursivas que os identificam como sujeitos históricos, enfim, sujeitos da linguagem. Os

afásicos adultos do CCA apresentam uma lesão cerebral (em consequência de Acidente

Vascular Cerebral/AVC, Traumatismos Cranianos, Tumores Cerebrais, Doenças

Neurológicas Progressivas etc.) e, em função disso, passaram a ter dificuldades de fala, leitura

4 O BDN reúne dados de acompanhamentos de sujeitos em fala, leitura e escrita e pode ser acessado por diferentes profissionais de diferentes áreas.

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e escrita. Os adultos são acompanhados em grupo e individualmente, e seus familiares

participam desse processo.

Entretanto, a Profa. Coudry5 também se envolveu, desde 1985, com questões de

diagnósticos na área de leitura e escrita, fazendo o acompanhamento individual de algumas

crianças, especialmente, com diagnósticos de dislexia (1985, 2005, 2007, 2009a). Em razão

disso, passou a existir uma demanda crescente de famílias procurando no Laboratório de

Neurolinguística um suporte para lidar com crianças com problemas de leitura e escrita.

Surge, então, o diminutivo de CCA, lugar de gente grande, o CCazinho, destinado a gente

miúda.

A proposta principal deste centro é constituir, para crianças e jovens com

dificuldade nos processos de leitura e escrita, um grupo de convivência de linguagem. Nesse

espaço, encontram-se, uma vez na semana, por duas horas, adultos e crianças/jovens com

dificuldade de ler e escrever (alguns também com problemas na fala), com ou sem diagnóstico

médico ou de outra especialidade clínica.

Seguindo os mesmos princípios de funcionamento do CCA, no CCazinho, além

dos encontros em grupo, também é realizado, por cuidadores, o acompanhamento individual e

longitudinal de cada uma das crianças/jovens participantes do grupo. Em 2004, o grupo inicial

era composto de seis crianças com supostos problemas de leitura e escrita e de alunos de

graduação e de pós-graduação que participavam como cuidadores.

O uso do termo “cuidador” se inspira em pressupostos vygotskyanos (20076,

1926) que caracteriza a aprendizagem como um processo dinâmico e contínuo em relação ao

qual a criança tem uma posição ativa e um ritmo a percorrer nesse processo. Para Vygotsky, a

aprendizagem modifica os processos internos maturacionais da criança que se constitui como

base para novas aprendizagens. Nesse processo, a criança se apresenta com uma área

potencial de desenvolvimento cognitivo (zona proximal de desenvolvimento), definida como a

distância entre o seu nível real de desenvolvimento, determinado pela sua capacidade atual de

resolver problemas individualmente, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado

através da resolução de problemas, sob a orientação de adultos ou em colaboração com pares

5 Trabalho realizado em parceria com a Profa. Dra. Maria Laura Mayrink-Sabinson. 6 O livro A formação social da mente é, na verdade, um conjunto de textos que Vygotsky produziu em diferentes momentos de sua vida. Utilizo, neste trabalho, a edição brasileira de 2007 e de 1991.

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mais capazes. Para a ND, o cuidador é aquele que ocupa o lugar desse adulto7 e na mediação

com a criança favorece que esta desenvolva a consciência (este conceito será retomado mais

adiante), nos termos de Vygotsky (1924-1934/2004b), sobre o trabalho linguístico que o

aprendiz realiza com a leitura e a escrita e a função social desses processos.

Podem tornar-se cuidadores os alunos de diferentes cursos de graduação da

Unicamp e de outras universidades matriculados como estudantes regular ou especial. Até o

presente momento, participaram/participam do CCazinho como cuidadores alunos dos cursos

de matemática, artes, física, química, filosofia, fonoaudiologia, letras, linguística, psicologia,

pedagogia, música, geologia e também alunos de pós-graduação em linguística. A condição

para se integrar ao grupo de cuidadores é manifestar o desejo de trabalhar com

crianças/jovens na área de leitura e escrita, ou com familiares, e buscar formação para isso

na(s) disciplina(s) eletiva(s): AM 035 e AM 045.

A disciplina AM 035 - Ler e escrever: acompanhamento de crianças e jovens I,

inserida em 2006 na grade dos cursos de graduação do IEL, oferece formação teórico-

metodológica, com base na ND, privilegiando o estudo da relação fala, leitura e escrita, bem

como a análise e discussão dos casos acompanhados. A disciplina AM 045 - Ler e escrever:

acompanhamento de crianças e jovens II, inserida em 2009 no referido catálogo, aprofunda a

formação em Neurolinguística dos alunos cuidadores com foco no estudo do funcionamento

do cérebro, mente, linguagem e corpo na relação fala, leitura e escrita, incluindo também a

análise e discussão dos dados dos casos acompanhados. Essas disciplinas são ministradas pela

Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry e contam também com a minha participação, por meio

do Programa de Estágio Docente (PED), desde 2007, e com a da psicanalista Dra. Alessandra

Caneppele, responsável, desde 2006, por ministrar, nessas disciplinas, o conteúdo da área de

psicologia. Para a organização logística do centro, em cada início de semestre, compatibiliza-

se a grade de horários dos alunos matriculados nas disciplinas (ou seja, os novos cuidadores),

dos cuidadores que já se encontram no CCazinho, das crianças que já o frequentam e daquelas

que acabam de ingressar.

Desde 2004, crianças e jovens continuam chegando ao CCazinho por

encaminhamentos diversos: famílias, professores da rede pública/particular, profissionais de

diferentes áreas que cuidam dessa parcela da população e pessoas que, conhecendo o trabalho

7 A partir de 2010, surgiu o termo “cuidador mirim”, aplicado àquelas crianças/jovens que, tendo obtido sucesso nos processos de leitura e escrita, manifestaram o desejo de participar do acompanhamento de outras crianças.

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ali realizado, indicam-no. Deste modo, este centro tem recebido crianças/jovens a quem foi

atribuído um diagnóstico e se apresentam com problemas de fala e/ou de leitura e de escrita

ou ainda aquelas com sequelas decorrentes de alterações cerebrais funcionais congênitas ou

adquiridas, como, por exemplo, acidente vascular cerebral e traumatismo craniano, havendo

ainda crianças/jovens portadores de síndromes genéticas do tipo X-frágil8 e Down9.

O CCazinho está estruturado, atualmente, da seguinte maneira:

1. O nome da criança é inserido por alguém da família ou responsável na agenda de avaliação do CCazinho (através de contato telefônico ou pessoalmente).

2. A criança/jovem é chamada para Avaliação, acompanhada pelo familiar ou responsável. Essa avaliação se subdivide em: a- Avaliação de linguagem realizada por linguista e/ou fonoaudióloga. Avalia-se: Fala, leitura e escrita, bem como o comprometimento da família com o acompanhamento da criança. b- Avaliação Psicológica realizada por psicanalista. Avaliam-se aspectos psicológicos da criança e da família.

3. Critérios de seleção: a. Para frequentar o CCazinho, a criança/jovem precisa apresentar questões de leitura e de escrita (só questão de fala não é critério). b. Participação da família (pelo menos um familiar) no acompanhamento da 8 Para a Fundação Brasileira da Síndrome do X-frágil, a expressão “X-Frágil" deve-se a uma anomalia causada por um gene defeituoso localizado no cromossomo X (presente no par de cromossomos que determinam o sexo - XY nos homens e XX nas mulheres). Esta falha ou “fragilidade do x” causa um conjunto de sinais e sintomas clínicos, ou seja, a Síndrome do X-frágil (SXF). A principal manifestação dos problemas do SXF revela-se no comprometimento da área intelectiva ou cognitiva (graus: leve a profundo). Disponível em: http://www.xfragil.com.br/duvida_01.html Acesso: dez. 2009. 9 Síndrome de Down ou trissomia do cromossoma 21. Distúrbio genético de ocorrência mais comum, cerca de 1 a cada 600 nascimentos, causado pela presença de um cromossomo extra ligado ao par 21(trissomia, trissomia por translocação, mosaico total ou parcial). Esta síndrome é associada a rebaixamento mental e inclui características comuns: prega palmar transversa, olhos com formas que lembram os da raça mongol, hipotonia muscular, problemas coronários e visuais etc. Disponível em http://www.fsdown.org.br/site/pasta_72_0__sindrome-de-down.html. Acesso: mar. 2010.

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criança/jovem. c. Quando as questões psicológicas se mostram prioritárias, é realizado pela psicóloga o encaminhamento da criança e/ou da família para este tipo de atendimento.

4. Tipos de Acompanhamentos: a. Em grupo e individual. b. Exclusivamente individual. c. Familiar: c1. Em grupo e/ou c2. Individual.

5- Critérios de Desligamento da criança/jovem: a. Quando a criança/jovem se torna leitor e escrevente. b. Não cumprimento, por parte da família, dos acordos estabelecidos por ocasião da avaliação inicial.

6. Cuidadores a. Encontros semanais nas disciplinas AM 035 e AM 045. b. Mensal. c. Emergencial.

7. Escola Visitam-se as escolas uma vez por ano, mas disponibiliza-se horário para os professores/escola o ano todo.

8. Registros dos encontros com crianças/jovens em grupo e individual. a. Diário de pesquisa. b. Filmagem. c. Registro de encontros familiares: anotações.

9. Registro geral

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São arquivados em pastas individuais da criança/jovem: avaliação, xerox de exames e do caderno escolar (as cópias podem ser feitas no início ou meio do ano), diário de frequência, relatórios semestrais feitos pelos cuidadores sobre os acompanhamentos realizados, produções (escritas, desenhos, artes manuais) da criança/jovem. Os dados são arquivados no BDN.

A partir do esquema apresentado, acrescento mais algumas informações em

relação à prática do CCazinho: na avaliação de fala, leitura e escrita feita com a criança/jovem

(quadro 2), procura-se identificar se este sujeito se reconhece com algum problema em

alguma dessas áreas e como o descreveria. Nesta ocasião, seu caderno escolar é xerocado

(com a autorização dos responsáveis) com o objetivo de fornecer informações sobre o

contexto de educação formal no qual a criança/jovem está inserida/o.

Com a família ou responsáveis, busca-se compreender a queixa que apresentam

em relação aos processos de leitura e de escrita da criança e o que já foi feito em relação a

isso. A família costuma apresentar um diagnóstico do problema da criança/jovem e, quando o

tem por escrito (avaliação ou exame), levam-no por ocasião da avaliação. Mesmo quando não

há o diagnóstico formal, a família formula um com base no senso comum, na divulgação da

mídia e por conselho de professores e profissionais ligados à escola. Diante disso, pergunta-se

aos pais o que sabem a respeito desses diagnósticos, o quanto esse diagnóstico explica as

questões apresentadas pelo filho e o que esperam do CCazinho.

Em relação à avaliação psicológica de cunho psicanalítico, realizado pela Dra.

Alessandra Caneppele, quando esse aspecto da avaliação se revela necessitando de mais

atenção do que as próprias questões de leitura e escrita, ocorre de a psicanalista agendar

encontros com os pais para esclarecer e assegurar que procurem atendimento psicológico para

o filho ou para a própria família. Há casos em que a inclusão da criança/jovem no CCazinho

é absolutamente condicionada à frequência da criança ou de seus pais ao atendimento

psicológico. Esse acordo entre CCazinho e família é critério de permanência da criança em

acompanhamento.

As decisões, a partir da avaliação inicial, em relação ao que será oferecido à

criança/jovem são discutidas em reunião dos profissionais participantes do processo

avaliativo.

Os tipos de acompanhamentos proporcionados pelo CCazinho (quadro 4) são:

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a1. Em grupo: ocorre uma vez por semana, com a duração de duas horas. Trata-se de um

espaço de interação compartilhado por diferentes sujeitos (crianças/jovens e cuidadores) com

diferentes histórias. Neste espaço, acontecem diversas atividades envolvendo fala, leitura,

escrita, desenho, leitura dramatizada, teatro, canto, dança, lanches comunitários. Além disso,

visitam-se na Unicamp exposições, praças, diferentes centros de estudos (matemática,

computação) e, posteriormente, as crianças/jovens fazem registros dessas atividades culturais

através de desenhos e/ou da escrita, dando visibilidade à interação sócio-cultural que essa

experiência possibilita. Além dos cuidadores habituais, há também a participação especial de

profissionais como pintores, veterinários, Clown10, alunos de diferentes cursos que

apresentam oficina sobre assuntos que estudam ou pelos quais se interessam (geologia,

química, arte visual, por exemplo). As sessões em grupo sempre são filmadas e essas

filmagens são compiladas no Banco de Dados da Neurolinguística (BDN), além disso, são

realizados registros escritos de cada uma dessas sessões.

a2. Individual/longitudinal : ocorre uma vez por semana (geralmente em dias diferentes do

encontro em grupo), com duração de uma hora e é realizado por um ou mais cuidadores com

cada uma das crianças/jovens que frequentam o grupo. Nesses encontros, são focalizadas as

questões individuais de fala e/ou de leitura e de escrita através de atividades orientadas, tais

como as realizadas em grupo, norteadas pelas necessidades observadas na criança/jovem e os

interesses demonstrados por ela. Nos casos em que a criança apresenta problemas na fala, o

acompanhamento individual é feito por uma fonoaudióloga ou por aluno do curso de

fonoaudiologia. Diferentemente das sessões em grupo, as sessões individuais nem sempre são

filmadas, pois não há equipamentos suficientes para isso, já que muitos acompanhamentos

ocorrem simultaneamente. Nesses casos, o registro escrito dos acontecimentos julgados

relevantes pelo cuidador e as produções realizadas pela criança/jovem configuram-se como

documentos e são conservados em pastas individuais de cada sujeito acompanhado.

b. Individual longitudinal : frequentam esse tipo de acompanhamento11: jovens com mais

idade do que a média dos participantes do grupo (entre 7 e 14 anos) e adultos; crianças que

10 A palavra Clown, desde o século XVI, remete à ideia de representação do campônio que é visto pelas pessoas da cidade como um indivíduo desajeitado e engraçado. Disponível em: http://clownelinguagem.blogspot.com/p/disciplinas-am-034-e-am-044.html (Profa. Dra. Ana Elvira Wuo e Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry). Acesso: maio 2010. 11 Em 2010, frequentam esse tipo de acompanhamento dois adolescentes com idade entre 16 e 17 anos, um adulto de 39 anos, duas crianças sem condições para permanecer em acompanhamento coletivo e cinco crianças que cursam a escola no período da tarde.

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não se apresentam com condições psíquicas e/ou neurológicas para participar das atividades

propostas no grupo; e ainda crianças que cursam a escola no período da tarde, permanecendo

em acompanhamento individual de manhã.

c1. Familiares em grupo: desde o segundo semestre de 2009, as reuniões com familiares

acontecem em paralelo aos encontros em grupo do CCazinho, portanto, são semanais, com 2

horas de duração. Dessas reuniões, participamos a Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry, que

intercala sua participação com o grupo do CCazinho, eu e os pais (ou responsáveis).

c2. Familiar individual : trata-se de encontros com familiares que não podem frequentar o

grupo por diferentes motivos (horário de trabalho, impossibilidade de trazer os outros filhos

etc.) ou daqueles que, mesmo frequentando o grupo, recorrem a este tipo de acompanhamento

em função de uma questão particular. Para o acompanhamento familiar individual, uma

agenda se mantém aberta o ano inteiro.

A relação CCazinho-Escola (quadro 7) se dá com anuência da família e da escola,

conforme nosso pressuposto ético. Nessa relação, interessa-nos conhecer o discurso que a

escola tem sobre o que ensina à criança/jovem, seu aluno que frequenta o CCazinho, e o

contexto formal de ensino no qual a criança está inserida.

As informações sobre as histórias de vida das crianças e das famílias (quadro 8 e

9) só estão acessíveis ao próprio cuidador da criança, à Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry

e aos pesquisadores envolvidos nos estudos de caso. Tais informações estão protegidas pelo

Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) submetido, como me referi antes, ao

Comitê de Ética em Pesquisa (CEP).

Participam do CCazinho, atualmente, cerca de 19 crianças/jovens e um adulto, 18

familiares e, aproximadamente, 20 cuidadores. Essa população produz, nos meses que

compõem o calendário do ano letivo da universidade, uma média de 160 encontros em grupo

com crianças e jovens, 160 encontros em grupo com os familiares, 600 acompanhamentos

individuais de crianças/jovens, 50 encontros individuais com familiares. Já passaram por

avaliação e/ou acompanhamento no CCazinho mais de 120 crianças/famílias.

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1.2 O CCazinho na teoria

Nessa parte do capítulo, tratarei do conjunto de teorias e de autores que estão na

base da composição teórica desta tese e na análise de dados (de fala, de leitura e de escrita)

aqui apresentados.

Esta pesquisa tem origem em reflexões suscitadas a partir de uma determinada

prática com crianças/jovens. Tal prática se constitui teoricamente na relação interdisciplinar

entre a Linguística, mais especificamente entre a Neurolinguística Discursiva e uma

Fonoaudiologia por ela iluminada12.

Como vimos, a concepção de linguagem adotada nesta tese se dá a partir da ND e

se sustenta em reflexões teóricas de natureza social e dialógica que tomam a linguagem como

atividade – em que o sentido não é dado a priori, mas em contingências sócio-históricas, ou

seja, uma visão discursiva da linguagem; a gramática como uma necessidade antropológica e

cultural; a interação como um trabalho conjunto em que esse sujeito se constitui na ação com

o outro, sobre o outro e com o mundo (FRANCHI, 1977).

Sob o viés teórico da ND, o trabalho fonoaudiológico13 realizado com a fala,

leitura e escrita acontece no espaço de interlocução (oral e escrita) entre sujeitos, entendo-se

por interlocução

[...] as relações que nela se estabelecem entre sujeitos falantes de uma língua, dependentes das histórias particulares de cada um; as condições em que se dão a produção e interpretação do que se diz; as circunstâncias histórico-culturais que condicionam o conhecimento partilhado e o jogo de imagens que se estabelece entre os interlocutores (COUDRY & FREIRE, 2007).

Decorre dessa concepção de linguagem uma concepção de sujeito com ela

afinada, ou seja, histórico, heterogêneo, constituídos na e pela linguagem e que não escapa,

em função disso, da determinação ideológica e psíquica.

A problemática central desta tese diz respeito ao estudo do eixo fala, leitura e

escrita como acontecimento que indicia no cérebro um funcionamento holístico (JACKSON,

12 A ND tem caracterizado como tradicional a Neurolinguística e a Fonoaudiologia isentas das reflexões dos diferentes domínios da Linguística. Essa abordagem se contrapõe à visão organicista de cérebro/mente e a-histórica de língua que acompanha a visão tradicional. 13 Tal concepção de linguagem e de sujeito interfere para que a avaliação fonoaudiológica dos processos de fala, de leitura e de escrita se dêem a partir de uma abordagem discursiva de linguagem. Além disso, diferentemente de uma perspectiva tradicional, do processo avaliativo também participa o sujeito avaliado.

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1879; VYGOTSKY, 1934; FREUD, 1891) e intersemiótico, desencadeado exclusivamente

pela linguagem. O homem de sociedades letradas se constitui pelas práticas humanas e sociais

que regulam sua consciência, seus comportamentos e sua relação com o outro e com o mundo,

o qual se apresenta cada vez mais pela escrita, pelo visual, pela conexão global, ou seja,

acontecimentos com base na linguagem e em diferentes linguagens.

Várias pesquisas, concluídas e em andamento, realizadas no interior da ND têm

observado que escrever ajuda afásicos a falar, como também falar os ajuda a escrever e a ler

(COUDRY, 2010). Sabe-se também que, em relação a crianças autistas de alto

funcionamento, o fenômeno da hiperlexia, ou seja, a presença da escrita antes de ocorrência

da fala torna-se um acontecimento que amplia a possibilidade de se trabalhar a linguagem

junto a essas crianças (BORDIN, 2006).

O objetivo com isso é mostrar que a fala, a leitura e a escrita são lugares de

encontro de sujeitos e consideramos que esses modos de linguagem não se substituem entre si,

mas podem ampliar as possibilidades de trabalho com crianças em que a linguagem está

presente e a fala não, bem como com crianças/jovens com problemas na leitura e na escrita,

mas não na fala e que, ainda assim, ficam fora do sentido que passa pela língua, como será

apresentado nesta tese. O que está na base dessa proposta é o reconhecimento da qualidade de

funcionamento intersemiótico do cérebro humano, porque a realidade é intersemiótica e

convoca no homem (social, cultural e histórico) interpretações de sentido suscitadas em

função de como ele se relaciona consigo mesmo, com o mundo e com o outro a partir de

diferentes materialidades: fala, escrita, leitura, imagem, figura, foto, música, dança etc.

Esta tese acontece a partir de estudos teóricos que englobam o eixo fala, leitura e

escrita e, como já dissemos, envolve na prática:

- crianças e jovens considerados normais que frequentam a escola brasileira todos os dias e

que, ainda assim, não dominam a leitura e a escrita, o que os coloca em condições de

vulnerabilidade social mantidas pelas impossibilidades de participar de diferentes

socializações a partir da escrita;

- duas crianças que, por razões diferentes, apresentam-se com problemas na fala: RD, 7a7m,

que faz uso da leitura e da escrita para apoio de sua comunicação e para a produção de sons da

fala que se caracterizam apenas como vocálicos com intenção comunicativa; FS, 7a5m, que

iniciou a produção de sons da fala juntamente com a escrita aos 4a2m, usando a materialidade

de escrita para fazer ajustes na fala.

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Em função dessa problemática (ou objetivo) central nesta tese, surgem os

objetivos específicos, elencados a partir de agora.

Em relação às crianças/jovens com problemas nos processos de leitura e escrita, as

reflexões concernentes ao eixo fala, leitura e escrita têm como ponto de partida a atitude

desses sujeitos frente à leitura/escrita que se concretiza em uma materialidade. Por

materialidade estou considerando, então, o que a criança/jovem lê/escreve (ou os movimentos

que faz nessa direção) em casa, no CCazinho e ainda o que aparece de escrita em seu caderno

escolar.

No olhar que dirijo a essa materialidade, objetiva-se, por um lado, dar visibilidade

ao trabalho linguístico realizado pela criança/jovem quando escreve espontaneamente e, por

outro, procurar indícios da presença dos diferentes interlocutores da criança/jovem em seus

processos de leitura e escrita. Esses objetivos demandam diferentes perguntas: o que essa

criança/jovem consegue dizer sobre a sua leitura e escrita e a quem são dirigidas? Quais são

os interlocutores desses sujeitos e como favorecem que sua leitura e escrita se apresentem

assim?

Enfim, busca-se compreender como a escola, reprodutora do saber acumulado

historicamente, perdeu o sentido para a criança e como crianças, as quais não entram da

mesma maneira e ao mesmo tempo que outras nos processos de leitura e escrita, também

perderam o sentido para a escola.

Retomo agora a apresentação do suporte teórico que sustenta as reflexões

realizadas nesta tese, porém ressalto que algumas considerações acerca de alguns autores e

suas teorias estão presentes em diferentes análises dos capítulos subseqüentes.

Nos estudos das afasias (COUDRY, 1986/1988), o acompanhamento de sujeitos

afásicos realizado pela ND privilegia a relação linguagem-cérebro-mente. Porém não se trata

de privilegiar a priori qualquer face dessa relação, mas aquela que se deixa ver na prática da

linguagem em exercício, pelo seu aspecto discursivo e que revela a história do sujeito, suas

lembranças e esquecimentos, suas possibilidades de recomeço. Nesse sentido, o sujeito é

afásico

[...] quando escapa a linguagem e a língua, o sentido, o reconhecimento do eu e do outro, do corpo, a possibilidade de dizer de novo com as mesmas ou outras palavras, de selecionar e/ou combinar traços, sons, palavras, argumentos e textos. Escapa também a relação na língua entre aquilo que é familiar, conhecido e mesmo automatizado e o que é da ordem da vontade, da iniciativa, da atitude voluntária – que se apresenta como novo e onde a afasia mais se manifesta (COUDRY, 2009, p.1).

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Para além da demonstração de uma dada hierarquia cerebral e de uma

determinada plasticidade que evolui do simples para o complexo, a relação entre linguagem,

prática social e funcionamento cerebral possibilita reflexões sobre sistemas novos e

estabelecidos, ou seja, entre o novo como aprendizagem, o velho como memória, o voluntário

como uma iniciativa e o comportamento automatizado como o resultado de aprendizagens

que, devido às inúmeras repetições no uso que o sujeito faz delas, acabam por se estabilizar

(por exemplo: andar, escovar os dentes, ato motor da escrita, dirigir carros etc).

O mesmo processo que acontece na fala do afásico pode repercutir na sua leitura e

escrita. A afasia se caracteriza, do ponto de vista neurológico, por um processo que o

neurologista J. H. Jackson14 (1879/1977) chama de involução, ou seja, em consequência de

um sofrimento neurológico, o cérebro pode responder perdendo os registros mais complexos

(mais atuais, superassociados aos mais antigos) e conservando os mais simples (antigos ou

menos associados). Nesse sentido, o afásico pode se apresentar com um funcionamento de

linguagem falada e escrita semelhante ao de uma criança que se encontra em desenvolvimento

em relação a esses processos, com a diferença de já ter sido um adulto sem afasia.

Observe esses dois dados de escrita:

Dado 1: Em 15/03/2010, CZ escreve na sua agenda:

14 Os estudos do médico e filósofo John Hughlings Jackson (1835-1922) consideram o cérebro como um órgão que se modifica com a evolução da espécie possuindo níveis que regulam hierarquicamente suas funções cerebrais (níveis superiores - funcionamento voluntário/menos organizado - e os níveis inferiores - funcionamento automático/mais organizado). Esse autor privilegia a linguagem como uma das funções mais complexas do cérebro humano. A grande contribuição desse neurologista foi a de considerar no cérebro um funcionamento holístico e hierárquico que o dispõe como capaz de entrar em relação como um todo influenciado pela vivência do sujeito. Com esse argumento, Jackson ressalta a plasticidade cerebral e desestabiliza a ideia de localizacionismo vigente na ciência médica do século XIX. O localizacionismo assume a noção biológica de um cérebro com funções repartidas e estanques em que cada região cerebral responde pontualmente por uma determinada função independentemente das experiências do sujeito.

Bolo de de iorgute

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Dado 2: Em 11/04/2007, EM anota a frase ditada por um adulto: “Eu caí do caminhão”.

“eu balta od patara”

Análise: As duas produções são de sujeitos que têm contato com a escrita há mais de quatro

anos. No dado 1, observamos o processo de estabilização da seleção das letras permeado pelas

dúvidas demonstradas nas rasuras das tentativas feitas e pela repetição da palavra “de”. Na

palavra “iogurte”, ocorre o deslocamento da letra “r” se antecipando à sílaba a que pertence

de fato. Uma explicação possível para isso é a da prevalência da oralidade sobre a escrita: esse

sujeito fala “iorgute”, o que é possível em Português Brasileiro, em palavras cujo

deslocamento do “r” não altera o seu sentido: “cadarço/cardaço/cardarço”, por exemplo. No

dado 2, a presença da palavra “eu” parece ter se dado mais pela memória de sua forma, do que

como resultado de uma hipótese demonstrando o conhecimento de escrita do sujeito. Essa

ideia de memória da forma escrita parece persistir no “od” no lugar de “do”. Nesse caso,

parece que o sujeito se lembra da forma da letra, mas não consegue reproduzir a ordem

esperada no sistema ortográfico para a composição da palavra. Entretanto, apesar da distância

entre a frase falada e a escrita, há indícios de que esse sujeito, em alguma medida, encontra-se

na relação fala-escrita: observe que a frase intencionada se compõe de 4 palavras, número de

segmentos que se mantém na sua produção.

Parece-me ser o caso de perguntar ao leitor: a partir dessas produções escritas,

qual dado seria da criança e qual seria do afásico? Essa pergunta é motivada porque, de um

sujeito cérebro-lesado, espera-se que sua escrita tenha problemas, enquanto que, de uma

criança normal, espera-se muito menos.

A resposta é a de que o dado 1 é de uma mulher afásica, de 38 anos de idade,

empregada doméstica, exímia cozinheira, portadora de uma afasia verbal, segundo a

classificação freudiana (1891), que afeta a relação entre segmentos para formar palavras e

palavras para formar frases e, além disso, tem a iniciativa verbal comprometida. Ao longo

desses quatro anos em que participa do CCA (grupo II), CZ conseguiu retomar mais seus

processos de leitura e de escrita do que os da própria fala. O dado de número 2 é de uma

criança, EM, de 10 anos, que frequenta escola há quatro anos e não apresenta referência

médica e familiar de problemas quanto ao desenvolvimento neuropsicomotor ou cognitivo. À

época em que produziu esse dado, refazia pela segunda vez a segunda série do ensino

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fundamental em uma nova escola. Transferir EM de escola foi a única maneira encontrada

pela mãe de evitar a aprovação automática do filho para a terceira série, mesmo escrevendo

assim, o que havia sido determinado pela escola anterior. A materialidade escrita de EM

revela que, embora ele frequentasse a escola por quatro anos, ele foi abandonado a si mesmo.

A apresentação dos dados de escrita desses dois sujeitos tem o propósito de

refletir sobre o fato de que se um sujeito afásico pode retomar seu percurso no mundo da

escrita apenas quando inserido em práticas com a linguagem (verbal e não verbal) por que a

criança também não?

O que há de comum entre esses dois sujeitos para que essa pergunta seja possível?

Nos dois casos, temos um drama humano que, tanto no afásico quanto na criança,

repercutirá por toda a sua vida. Além disso, o conceito de involução de Jackson baliza um

ponto de encontro entre o afásico e a criança, ou seja, o afásico tem sua condição de

linguagem (falada e escrita) modificada, assemelhando-se à criança, que está entrando na

escrita.

Há diferenças intrínsecas entre o sujeito com afasia e a criança que enfrenta

problemas na aquisição de leitura e escrita e, portanto, diferentes questionamentos são

possíveis: será que a relação fala, leitura e escrita, como trabalho neurológico e demonstração

de plasticidade cerebral, pode ser considerada apenas em contextos patológicos? A

materialidade do que a criança/jovem produz repetidamente por anos seguidos na escola

(cópias e produções escritas tão distante da convenção ortográfica e tão próximas da falta de

sentido) não favoreceria um trabalho cerebral menor comparável com aquele que sustenta a

noção de aprendizagem envolvendo sistemas intersemióticos tais quais os exigidos pelo

mundo das letras?

Ou seja, o percurso dessa criança/jovem em relação aos processos de leitura e de

escrita não possibilita que ela ascenda a outro lugar em relação à cultura lida/escrita, o que a

distancia cada vez mais do saber veiculado pelo discurso padrão de grupos sociais em que

circulam o saber valorizado (GNERRE, 1991).

As questões apresentadas até agora reconhecem que a materialidade do que um

sujeito lê e escreve pressupõe sua própria história em meio a um sistema complexo e

sofisticado de funcionamento que envolve a linguagem, o cérebro, a consciência e a

aprendizagem e esses são conceitos presentes na obra de Vygotsky, que passo a apresentar a

partir de agora.

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Fundamentalmente, busca-se em Vygotsky uma ideia de escrita que se distancia

de uma visão técnica de alfabetização com predomínio de atividades facilitadoras da

memorização do sistema ortográfico da língua escrita, em detrimento da construção de textos

com sentido. Nessa concepção de escrita, o aluno não sabe quando acerta ou quando erra e,

muitas vezes, o erro fica caracterizado para a criança/jovem apenas como um sinal de que fez

algo diferente do que a escola espera. Nessas condições, a escola tem produzido adultos que

não dominam a leitura e a escrita, ou seja, não alfabetizados/analfabetos funcionais15.

Vygotsky16, em seus estudos, apresenta uma concepção de cérebro partilhada

com a teoria de Jackson (citado anteriormente), porém avançando em relação a este quanto à

preponderância do social sobre o orgânico, não só quanto ao cérebro, mas no que envolve

processos de aprendizagem. Para Vygotsky, o cérebro é entendido como um órgão biológico

de funcionamento holístico, dinâmico e plástico que, em constante interação com o meio, tem

suas estruturas e funcionamento transformados pela sua característica plástica de se adaptar às

diferentes necessidades que o homem (onto e filogeneticamente) experimenta ao longo de sua

história.

Na busca da compreensão dos processos psicológicos presentes na relação

homem-meio, os conceitos de Consciência e Mediação se tornam estruturais na teoria

desenvolvida por Vygotsky.

O conceito de consciência (1924-1934), na obra do autor, evolui de uma

concepção biológica tal qual um sistema reflexo para uma ideia de consciência de natureza

social. E faz isso com base em estudos de fisiologia de Pavlov, de reflexologia de Bekhterev e

de reactologia de Kornilov (estudos do final do século XIX e metade do XX).

No processo evolutivo do conceito, a consciência passa a ter características de

pensamento, afeto, motivação e é submetida à sua condição de se dar a partir da relação

15 O uso desses termos será retomado no capítulo 2.

16 Para Molon (1995), Vygostky é influenciado, principalmente, por pensadores como Marx e Engels (materialismo histórico), Hegel (dialética: método que pressupõe a contradição, analisando o movimento dos contrários em que, para cada tese, há uma negação (antítese), a qual gera uma síntese, que, por sua vez, será negada) e Darwin (evolucionismo). Sob essa influência, estabelece os princípios para a teoria histórico-cultural em que a psicologia é uma ciência do homem histórico e não do homem abstrato e universal; a origem e o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores no homem é social (interpsíquico), antes de ser individual (intrapsíquico); a origem da sociedade resulta do surgimento do trabalho, através do qual, ao mesmo tempo em que o homem transforma a natureza para satisfazer as suas necessidades, transforma-se também. Entretanto, todo processo de transformação do homem conserva também o que ele já foi (sua gênese); para o homem, há três classes de mediadores: signos e instrumentos, atividades individuais e relações interpessoais, o desenvolvimento de habilidades e funções específicas.

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mediada pela linguagem entre o homem e o outro. Assim, tanto quanto a linguagem, a

consciência é social, cultural, histórica e passível de interiorização (fala interior),

individualizando no homem o que antes era social.

Nesse sentido, no homem, os processos psicológicos que promovem o

reconhecimento de si mesmo se dão através do reconhecimento do outro. O conceito de

mediação, no entanto, não se explica apenas pela presença de um outro falando, mas diz

respeito à possibilidade de (inter) subjetividade entre o Eu e o Outro, o que só é possível na

unidade da palavra, nos signos, no significado e nos sentidos como “caminho do pensamento

para a palavra” em que “não refere o pensamento, mas toda a consciência (2004b, p. 179 e

189).

Para o autor, “a consciência está estruturada como sistema” e “a análise semiótica

é o único método adequado para estudar a estrutura” desse sistema e o seu conteúdo (op. cit.,

p. 187 e 188).

Em relação a isso, Pino considera que:

[...] Ao analisar a ação dos signos na atividade humana, Vygotsky faz do significado das palavras a “unidade de análise”. Isso porque a palavra constitui, segundo ele, o “microcosmo” da consciência, aquilo em que ela se reflete, como o universo se reflete no átomo. Apesar das dificuldades que esta escolha coloca, este modelo não só ajuda a explicar a função mediadora da linguagem (a significação e o elemento que circula e unifica todos os processos psíquicos), como ajuda a esclarecer a natureza das funções psicológicas (conteúdo e forma) e sua origem social (Pino, 1991). A importância desta análise é que ela mostra as relações estreitas que ligam o pensamento humano à linguagem, uma vez que os significados das palavras, socialmente constituídos, cumprem uma dupla função: de representação e de generalização, o que permite a reconstrução do real ao nível do simbólico, condição da criação de um universo cultural, e a construção de sistemas lógicos de pensamento que tornam possível a elaboração de sistemas explicativos da realidade. Por outro lado, esta dupla função permite a comunicação da experiência, individual e coletiva. A introdução da mediação semiótica no modelo psicológico permite superar antigos dualismos e explicar certos paradoxos que marcaram a história da psicologia (corpo/mente, natureza/cultura, indivíduo/sociedade, espaço privado/espaço público, etc). Por outro lado, a mediação semiótica torna compreensível origem e a natureza social da vida psíquica, o caráter produtivo da atividade humana e o processo da produção social do conhecimento e da consciência, a qual, como diz Luria (1987), é uma “estrutura semântica” (PINO, 1990, p. 66).

Do interior da semiótica, Vygotsky diferencia o que chama de significado

(público, dicionarizado, próprio do signo, mais estável) de sentido (particular da instância

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dialógica, ligado ao contexto, mais instável) tendo este um alcance mais amplo que aquele,

cuja formação muda em relação ao motivo17 do sujeito.

Sendo assim, a palavra tem uma constituição (significado/sentido) dinâmica

passível de ser transformada continuamente, ou seja, “o próprio significado da palavra evolui

em função da mudança de consciência” (2004b, p. 185), assim como a evolução da palavra

“modifica todas as relações e todos os processos” (op. cit., p. 187) da própria consciência.

Para o autor, essa relação palavra/consciência é visível na criança (e na história da

humanidade) quando “com seu aparecimento, a fala modifica, por princípio, a consciência”

(op. cit., p. 187).

O sujeito se constitui, então, na discursividade da linguagem e na língua, em meio

a relações sociais estabelecidas por significações sustentadas historicamente, o que

determinou, segundo Vygotsky, a transformação no homem das funções elementares de

origem biológica (reações involuntárias/reflexas, imediatas/automáticas, associações simples)

em funções psicológicas superiores mediadas.

Entretanto, a transformação das funções elementares em superiores não deriva de

processos maturacionais do sistema nervoso ou do desenvolvimento cognitivo do sujeito; de

outro modo, acontecem dependentemente da evolução social e histórico-cultural representada

pelo outro, bem como da história do sujeito constituída em meio a relações sociais mediadas

pela linguagem (papéis e funções sociais, conhecimento, práticas sociais), cujo mecanismo de

partida e realização é a vontade do sujeito, a necessidade, o afeto.

Dessa maneira, o homem singulariza o cultural e o histórico na combinação da

fala, da inteligência prática e no uso que faz do signo como instrumento18 do pensamento, o

que acaba por favorecer a formação das Funções Psicológicas Superiores - percepção,

memória, linguagem e pensamento, generalização e abstração, atenção e imaginação. Parece

possível inferir que para Vygotsky a consciência e a mediação se tornam fundamentalmente

associadas às funções psicológicas superiores como explicação de como o social se integra à

natureza humana e a modifica (filogenética e ontogeneticamente), revelando-se como impulso

para o desenvolvimento e aprendizagem contínua do humano. 17 Para Vygotsky, “[...] para entender o discurso do outro, nunca é necessário entender apenas umas palavras; precisamos entender o seu pensamento. Mas é incompleta a compreensão do pensamento do interlocutor sem a compreensão do motivo que o levou a emiti-lo.” (VYGOTSKY, 1926/2004a, p. 481). 18 A noção de instrumento para Vygotsky advém da noção de instrumentos técnicos, ferramentas criadas historicamente para facilitar a mediação do homem e do mundo, conhecimento repassado na cultura. Como instrumentos de pensamento poderiam ser citados: contar, lembrar, comparar, explicar a realidade percebida.

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A apresentação teórica de Vygostky nesta tese visa estabelecer a relação entre

consciência, mediação, funções psicológicas superiores e movimento contínuo de

aprendizagem, tomando como sujeitos as crianças e jovens em idade escolar. Na referida

teoria, a aprendizagem não se dá linearmente, mas aos saltos, em movimento de espiral, ou

seja, o saber não se estrutura de uma única vez, é preciso que uma série de conhecimentos se

relacione para, então, uma informação ou ensino fazer sentido para o sujeito; além disso, para

aprender o novo, o sujeito passa pelo antigo do conhecimento prévio. A aprendizagem

interfere no desenvolvimento, e não o contrário, e, nesse sentido, para este autor, o ensino

bom é aquele que serve de base para novas aprendizagens.

Vygotsky compreende a escrita como um fenômeno filo e ontognético em que a

relação de desenvolvimento pré-histórico da escrita com o desenvolvimento da linguagem

escrita nas crianças está na descoberta de que “a fala pode ser desenhada. Foi somente esta

descoberta que levou a humanidade ao brilhante método da escrita por letras e frases, a

mesma descoberta conduz as crianças à escrita literal” (1991, p. 131).

Para este autor, o caminho dessa conquista tanto na criança quanto na história tem

origem no gesto representativo (função simbólica), presente nas brincadeiras da criança e

executado pelos desenhos, como um signo visual que “contém a futura escrita da criança”

(1991, p. 121).

Nesse início, o processo de escrita (simbolismo de segunda ordem) guarda a

particularidade de ter sua compreensão baseada inteiramente na linguagem falada

(simbolismo de primeira ordem), mas gradualmente “a linguagem escrita adquire o caráter de

simbolismo direto, passando a ser percebida da mesma maneira que a falada” (op. cit., p.

120), momento crítico do desenvolvimento cultural e psicológico em que se intensificam as

funções psicológicas superiores. Segundo ainda este autor, o trajeto percorrido pela criança

em direção ao domínio da leitura e escrita se caracteriza por ser pleno de descontinuidade,

como também é a relação entre aprendizagem e desenvolvimento da criança iniciada no

nascimento e, no caso da escrita, muito antes de ela frequentar a escola.

Nesse sentido, Vygotsky retoma a experiência de Tolstói, cujos dizeres

exemplificam como deve ser cuidada a relação entre mediação e consciência no ensino.

Tolstói tinha a intenção de aproximar crianças camponesas da linguagem literária, entretanto,

havia uma distância muito grande entre a realidade dessas crianças e o mundo literário. Em

relação à criança, ele diz:

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Quando ela ouve ou lê uma palavra desconhecida numa frase, de resto compreensível, e a lê novamente em outra frase, começa a ter uma idéia vaga do novo conceito: mais cedo ou mais tarde ela sentirá necessidade de usar essa palavra e uma vez que a tenha usado, a palavra e o conceito lhe pertencem. Mas transmitir deliberadamente novos conceitos ao aluno é, estou convencido, tão impossível e inútil quanto a ensinar uma criança a andar apenas por meio das leis de equilíbrio (Apud: VYGOTSKY, 1934, p. 72).

Os estudos de Vygotsky sobre a relação pensamento e linguagem escrita (1934)

apresentam importantes considerações sobre a maior proximidade da fala interior com a

linguagem escrita do que com a fala externalizada (entretanto, esse tema não será tratado aqui,

pois será retomado em situações de análises de dados e, mais especificamente, no quinto

capítulo).

Outro autor a quem recorro para a compreensão dos processos de escrita na

criança é Luria (1987, 1988, 2001). Em sua pesquisa sobre os tempos primordiais da escrita,

Luria privilegia a antecipação da função social da escrita como sendo de registro e de

memória. Para este autor, duas condições devem ser preenchidas pela criança para que

escreva: as relações com as coisas ao seu redor devem ser diferenciadas (as coisas

representam algum interesse para ela e os objetos têm um significado funcional; assim, a

criança pode fazer um traço, por exemplo, para que se lembre de uma palavra) e a criança

deve ser capaz de controlar sua própria atitude de atenção.

O autor discrimina o desenvolvimento da escrita na criança em fases, não no

sentido de delimitar um tempo para cada uma delas, mas se preocupando em reunir as

observações por ele realizadas:

Nossos experimentos garantem a afirmação de que o desenvolvimento da escrita na criança prossegue ao longo de um caminho que podemos descrever como a transformação de um rabisco não-diferenciado para um signo diferenciado. Linhas e rabiscos são substituídos por figuras e imagens, e estas dão lugar a signos. Nesta sequência de acontecimento está todo o caminho do desenvolvimento da escrita, tanto na história da civilização como no desenvolvimento da criança (LURIA, 1988, p. 161).

Os estudos de Vygotsky e Luria foram considerados nessa tese para explicar a

história da escrita e da pré-escrita na criança e dar relevância aos processos de leitura e de

escrita como possibilidades de transformações neuropsíquicas e sociais no homem e na

espécie. Ler e escrever o mundo, portanto, impõem ao homem transformações internas

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(percepção, memória, raciocínios, consciência, atenção), bem como externas favorecendo sua

emancipação e ampliação das possibilidades nas formas de vida social e econômica.

Essas transformações no homem possibilitadas pela leitura e escrita são, antes de

tudo, uma questão política, que determina sobre o modo como o saber é aplicado em uma

sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído

(FOUCAULT, 1996, p. 17).

A partir de agora, passo a apresentar o estudo, pré-psicanalítico, de Freud (1891)

com o qual finalizo a apresentação do arcabouço teórico desta tese.

Sigmund Freud, neuropatologista e neurologista19, apresenta As afasias, em 1891,

como realização de sua monografia. Com esse estudo e análise de casos clínicos de afásicos

inaugura uma nova interpretação para fenômenos psicológicos em função da formulação do

conceito de dependência concomitante existente entre o aspecto neurológico e psicológico das

palavras/vivências humanas. Com isso, Freud amplia a noção de cérebro, subvertendo o valor

dado pela ciência da época (localizacionista) à supremacia do neurológico sobre o psicológico

no cérebro/mente humana.

Freud altera também a noção de fronteira entre o que é da ordem do normal e do

patológico quando reconhece a presença do que é descrito como sintoma na afasia em pessoas

normais. É o caso do que ele chama de “parafasia” verbal. Trata-se de uma dificuldade que a

pessoa afásica experimenta em dizer/lembrar o nome (de pessoas, coisas, lugares). Entretanto,

esse fenômeno também se apresenta em pessoas normais sob determinadas condições de

fadiga mental, quando o funcionamento da neurodinâmica cerebral fica rebaixado e, então,

elas podem ter dificuldade para dizer/lembrar nomes.

Esse autor descreve os tipos de afasia, partilhando com Jackson (op. cit.,1879) as

noções de cérebro e de involução no estado afásico. A partir dessa consideração, o autor busca

descrever os problemas de leitura e de escrita do afásico, reconhecendo neste o mesmo

trabalho feito pela criança, por ocasião de sua entrada nesses processos.

Na pesquisa que apresento, busco focalizar no estudo de Freud um momento

muito particular dessa entrada da criança. Trata-se dos primeiros contatos dela com a

tecnologia da linguagem escrita. Nesse espaço e tempo, entram em jogo processos

19 Como neurologista Freud já se dedicava a neuropatologias, tendo estudado, em 1897, crianças com paralisia cerebral que apresentavam problemas de ordem motora devido à lesão no sistema nervoso central.

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sofisticados de percepção (motora, auditiva, visual) que se apresentam simultaneamente

demandando memorização por parte da criança.

A relevância de retomar essa teoria, nesta tese, está em buscar compreender a

heterogeneidade dos caminhos que as crianças percorrem para entrar no mundo da leitura e da

escrita, reconhecendo que nem todas entram nele da mesma maneira e no mesmo ritmo.

Em diferentes reflexões com crianças/jovens com problemas de leitura e de

escrita, eles contam sobre as dificuldades em lembrar: o desenho da letra, e/ou o som da letra,

e/ou o nome da letra, ou ainda em traçar a mão a forma da letra. Todas essas questões incidem

no acesso da criança à tecnologia da escrita alfabética do português brasileiro (mas, não só), o

que exige certa sistematização (uma letra, uma forma), ainda que a relação entre som e letra

possa ser não unívoca (o som “s”, por exemplo, pode ser escrito com diferentes letras).

Quando a criança não se filia a essa convenção, a escrita e a leitura ficam barradas para ela e

impossível de acontecer.

Retomarei, portanto, do estudo de Freud, seus pontos centrais no tocante a esta

questão.

Para compreender a análise que Freud faz da leitura e da escrita, especialmente,

do período inicial desses processos, é preciso compreender que a criança entra na linguagem

pelo sentido veiculado na fala do outro e que a dependência concomitante entre o aspecto

neurológico e psicológico das vivências no corpo do sujeito se estabilizam na memória como

associação. Freud constrói, hipoteticamente, um aparelho de linguagem destinado a associar

as palavras a partir das experiências de sentido do sujeito no corpo e na língua.

É a partir do conceito de associação que Freud analisa a fala, a leitura e a escrita,

porém sua noção de associação não é a de uma ligação estática entre uma palavra e outra, mas

de característica dinâmica. A prova disso é que ele mantém sempre a “idea (concepto) del

objeto” em aberto, pois um mesmo objeto pode ser percebido e experimentado de maneiras

diferentes, em situações diferentes ao longo da vida do sujeito.

O autor se preocupa também em analisar como a fala, que veicula sentidos da

linguagem na língua, materializa-se em aspectos físicos, os quais suscitam diferentes

percepções por parte da criança em sua entrada na fala/linguagem, e que, posteriormente,

tornam-se automáticas. Com isso, Freud parece esclarecer sua concepção de que a

fala/linguagem não é de origem natural, inata, mas construída nas relações sociais do sujeito,

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a partir de um outro que fala com ele em determinados contextos, sob determinadas

condições.

Freud descreve a palavra como unidade de sentido

[...] un concepto complejo, construido a partir de distintas impresiones; es decir, corresponde a un intrincado proceso de asociaciones en el cual intervienen elementos de origen visual, acústico y cinestésico. Sin embargo, la palavra adquiere su significado mediante su asociación con la “idea (concepto) del objeto”, o por lo menos esto es lo que sucede si consideramos exclusivamente los substantivos. La idea, o concepto, del objeto es ella misma otro complejo de asociaciones integrado por las más diversas impresiones visuales, auditivas, táctiles, cinestésicas y otras. (FREUD, 1891, p. 90).

Para apresentar o complexo de palavra, Freud acrescenta duas outras associações

ao complexo de objeto: “imágenes visuales para lo impreso e imágenes visuales para lo

manuscrito” (op. cit., p. 91). Assim, Freud incorpora a leitura e a escrita ao sentido veiculado

pela palavra falada.

O autor situa a entrada da criança ouvinte na fala/linguagem pela primazia do

ouvir e do repetir. Aprendemos a falar “asociando una ‘imagen sonora de la palabra’ con una

‘impresión de la inervación de la palabra’. Cuando hemos hablado, estamos em posesión de

una ‘imagen cinestésica de la palabra’” (op. cit., p. 87); ou seja, a palavra que vem do outro

promove na criança a tentativa de produção de sons e ela percebe essa cinestesia.

Além disso, continua Freud, aprendemos a linguagem dos outros procurando

adequar “todo lo posible la imagen sonora producida por nosotros a la que há servido de

estímulo para el acto de inervación de nuestros músculos del linguaje” (op. cit., p. 87), ou

seja, aprendemos a repetir.

Aparentemente, Freud centraliza a entrada da criança na linguagem pela fala e

isso se dá entre dois acontecimentos: “ouvir” e “repetir”. Ele pressupõe para isso a presença

do outro incitando na criança a cinestesia da movimentação dos órgãos de fala na repetição do

movimento motor, objetivando o sentido pela aproximação da imagem sonora ouvida20. Essa

relação do movimento motor, somada à imagem sonora ligada ao contexto de sentido de sua

20 Há aqui, aparentemente, uma ideia de oposição entre linguagem e língua. Não se pode perder de vista, porém, que este aparelho dito de linguagem formulado por Freud, em 1891, está mais próximo de um aparelho de memória. Nesse sentido, o cérebro, entendido inicialmente como um organismo que se faz para a linguagem, acabou se constituindo em relação à língua. Desse modo, nesse texto das afasias, para Freud, o próprio cérebro é um produto de relações sociais e históricas.

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ocorrência, vai sofrer um processo de associação neuropsicológica e a diferença agora é que a

criança se percebe falando.

Nessa condição, a criança fala uma palavra que retorna para ela como imagem

motora e sonora. A palavra é composta pelo retorno motor e sonoro ao mesmo tempo em que

é controlada pelo falante por esses mesmos retornos21. Isso é esperado para se chegar à

palavra seguinte do que se pretende dizer; assim, corrige-se a palavra pelo motor e pelo

sonoro, o que continuamente fazemos quando, por exemplo, percebemos que falamos uma

palavra com produção motora distorcida22.

Freud aproxima, então, a fala da leitura e da escrita e isso se dá a partir da

soletração privilegiando o motor e o sonoro presentes na fala, que agora também se

apresentam na área das letras.

[...] Aprendemos a deletrear asociando las imágenes visuales de las letras con nuevas imágenes sonoras que inevitablemente recuerdan sonidos de palabras ya conocidos. Inmediatamente repetimos el sonido verbal característico de la letra. Asi, al deletrear em voz alta, también a letra aparece determinada por dos impresiones sonoras que tiendem a ser idénticas, y por dos impresiones motoras que se correspondem estrechamente la una com la outra (op. cit., p. 88).

Assim, é no intervalo entre o que Freud chama de novo da escrita e antigo da fala

que ele situa o sentido da leitura/escrita. Ele nos diz que, quando a criança aprende a letra, ela

aprende um som novo acompanhado de uma imagem visual nova, a qual só ganha existência

se ancorada no sentido da imagem sonora da palavra antiga, já conhecida, ou seja, da fala. A

letra segmenta a palavra e, quando a criança soletra a letra em voz alta, também a letra

aparece determinada por duas impressões sonoras, que tendem a ser idênticas, e pelas

impressões motoras, que não coincidem, mas se correspondem estreitamente umas com as

outras.

Esta é também uma exigência da tecnologia da leitura e da escrita que me parece,

por vezes, absolutamente desprezada nas práticas de ensino dos anos iniciais de alfabetização.

O fato é que, quando uma criança fala o nome de uma letra, há que existir a simultaneidade e

coincidência (mais próxima possível) entre a fala do nome e o som da letra, por isso,

21 Os estudos sobre o controle da produção da fala pelo retorno sonoro estão na base do invento de aparelhos (como o SpeechEasy/Microsom) com o objetivo de ajudar pessoas que gaguejam a ouvir suas próprias palavras. Nesses estudos, acredita-se que a gagueira surge da dificuldade do sujeito em lidar com o retorno da própria fala. 22 Posteriormente, Freud retomará, nos estudos psicanalíticos, esse fenômeno de fala como “ato falho”. Neste caso, não se trata mais de um “engano” na produção física das palavras, mas de uma formação do inconsciente ao lado de outras como o chiste e o sonho, por exemplo.

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intuitivamente dizemos a ela: essa letra é o /b/, /b/ de “bola”. Fazemos isso procurando tornar

a impressão sonora e motora da fala coincidente com a impressão sonora e motora da letra

através de um som possível de ser recuperado em uma palavra já conhecida. Isso é o que cria

a materialidade inicial da leitura e da escrita como tecnologia.

Portanto não se trata de uma convenção de ordem visual - desenho da letra +

desenho do objeto que começa com essa letra - tão comum em práticas educacionais visando

sistematizar a ortografia só pelo visual. Antes de tudo, essa experiência é de ordem motora e

sonora, proprioceptiva, acontece no corpo da criança. Por este motivo, o soletrar é uma

importante atividade para a criança na sua entrada na leitura e escrita: ela precisa brincar de

fazer coincidir a produção motora e sonora da fala com o nome da letra.

Observe o seguinte caso:

VM, 8a, 3ª série, em 2007, apresentava a seguinte queixa da escola e da família:

“Ele troca na escrita e na leitura muitas vezes o ‘p’ pelo ‘t’ e ‘q’ por ‘v’, mas, às vezes,

também por outras letras. A mesma coisa acontece com o ‘d’ que ele troca por ‘v’ e, às vezes,

por outras letras”. Quando solicitei a VM palavras iniciadas com essas letras, ele demorou

muito tempo para recuperar uma palavra. O que se vê nessas trocas é que a assistematização

da sua ocorrência não indicia como possibilidade de compreensão a repetição de um vínculo

(sonoro, visual) entre elas. Entretanto, a dificuldade de VM em recuperar as palavras

solicitadas me levou a questioná-lo quanto ao sentido das palavras que ele lia e escrevia.

Então, ele me contou que na leitura não tentava aproximar as palavras de nenhum sentido. Ele

entendia que não conhecia a palavra. Na escrita, ele percebia menos ainda a questão do

sentido das palavras, justamente porque não lia o que escrevia. O que está na base do trabalho

realizado por VM é a não aproximação entre o novo da escrita com o antigo da fala na língua.

VM não se “preocupava” em fazer este ajuste e, assim, a imagem sonora da palavra

escrita/lida não precisava estar em correspondência de sentido, porém fora do sentido, a letra

não tem importância.

Como já mencionei, o estudo de Freud remete à passagem da fala do outro pelo

corpo da criança, isto é, na reprodução que esta faz do movimento motor e da imagem

acústica buscando uma aproximação com a fala que escuta, pois é a língua do outro que lhe dá

o sentido.

Deste modo, à medida que vai se tornando um falante, o movimento motor da fala

e sua imagem sonora se apagam em função do sentido. Ou seja, um falante não se preocupa

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em como pronuncia os sons, um falante fala. Em relação à leitura e escrita, Freud reconhece o

mesmo processo, porque se trata de uma instância representativa tanto quanto a fala.

Em relação à leitura, Freud a considera mais próxima da fala do que a escrita. Para

ele, a leitura é a realização do movimento da fala sem voz, é apagamento das letras e

vozeamento de significados. É também submissão a certas regras pertinentes à leitura. A

palavra na leitura passa por dois momentos: um em que se descobre o som daquele conjunto

de letras e outro em que se reconhece sua identidade na fala. Freud segue conceituando que há

diferentes tipos de leituras e que a facilidade ou dificuldade de realizar a leitura determina seu

grau de compreensão. Além disso, considera que fatores distintos interferem nisso: influência

do interesse que o material desperta no leitor; manutenção do foco de atenção que, desviado

para a imagem sonora, impede a compreensão (quando ouvimos alguém lendo e não

prestamos atenção no sentido veiculado nessa leitura, mas em como esse alguém lê);

velocidade de sua realização.

Para Freud, lemos sentidos, lemos a palavra inteira, e é por isso que podemos ler

uma palavra mesmo quando misturada a números (para ser decifrada) ou ainda quando faltam

“pedaços”, como em mensagens de estilo econômico (antes os telegramas, agora as

mensagens digitais). E, justamente, essa leitura significativa expõe a oposição entre ler e

soletrar.

Freud reconhece a escrita como um processo muito mais complexo do que a

leitura, por vários motivos: a não coincidência entre o som e o nome da letra; o fato de

enquanto na leitura o movimento do olho busca juntar as letras, na escrita o movimento do

olho a decompõe (na fase inicial da aprendizagem) para a mão reproduzir a letra com os

movimentos aprendidos (impressões cinestésicas). Além disso, no geral, as figuras produzidas

ao escrever são somente parecidas com as percebidas ao ler e estão superassociadas entre si,

já que aprendemos a ler letras impressas, mas teremos que usar caracteres diferentes quando

escrevemos a mão.

A complexidade desses processos nos faz enxergar a sofisticação do que é

exigido de uma criança ao ler e escrever: a associação entre a imagem visual e motora do

nome da letra; a associação entre a imagem visual e motora da fala da letra; a imagem visual

da letra (manuscrita, caixa alta e as variações maiúscula e minúscula); o movimento das mãos

para reproduzir os traços, curvas e pontos que compõem as letras; a busca do sentido que

transforma o conjunto de letras em uma palavra. A criança conhece, então, algumas letras que

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remetem a algumas coisas que são significativas para ela e, quando consegue identificar um

conjunto de letras (aprendendo o novo), precisa conseguir associá-lo a uma palavra conhecida

na fala, o que inclui sua entonação, sua variedade linguística (velho da fala), chegando, enfim,

ao sentido da palavra. Na criança a relação entre os processos de fala e de leitura se compõe,

por um lado, do fato de a fala da criança ser a repetição das palavras da língua, possibilitada

pelo outro e que envolve, em seu corpo, a inervação motora e a percepção sonora dessa

produção de fala na convenção da língua. Por outro, a leitura como interpretação também se

dá como reprodução no corpo da criança do que vem da relação com o outro (linguagem,

língua e convenção) e que decorre de diferentes experiências de percepções, sensações,

repetições, memórias de corpo e sentido.

Para Freud, a repetição é um contexto favorável para a ocorrência de memória

entendendo-se esta como associação entre memórias continuamente compostas, decompostas

e recompostas pelo próprio processo que as atualiza como lembranças. Desse modo, não há o

que se recorda, mas modos de construir o que se recorda.

O esquema neuronal envolvido em memórias repetidas promove no cérebro o que

Freud denominou de encurtamento ou abreviação funcional. Trata-se de processos

automatizados pela repetição em que não é mais necessário repetir todo o caminho

neuropsíquico para a realização de uma atividade, ou seja, a experiência com a escrita

possibilita ao escrevente que ele não pense mais na letra ou no movimento das mãos para

escrever uma palavra. Nesse sentido, os processos de leitura e de escrita sofrem o apagamento

da representação geométrica da letra; como na fala, apaga-se a propriocepção da produção dos

sons. Lemos e escrevemos sentidos.

Baseado nessa concepção de memória motivada, Freud diz sobre a leitura:

[...] sería imposible si la lectura después de cierta práctica no se hubiera hecho independiente de las imágenes de las letras. La autoobservacion, a mi juicio, muestra también que al escribir espontáneamente no nos apoyamos en el elemento visual, exceto cuando escribimos palabras extranjeras, nombres propios y palabras que hemos aprendido solamente mediante la lectura (op. cit., p. 107).

A apresentação da teoria de Freud é considerada nesta tese, então, como relevante

para o acompanhamento de crianças que não conseguem entrar na tecnologia da escrita, ou

seja, em situações em que se esperam delas a leitura e a escrita, elas permanecem barradas na

letra.

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Diante dessas reflexões, pode-se pensar que, entre as possíveis dificuldades que o

não acesso da criança à tecnologia da escrita provoca, está a chamada dislexia em sua

definição mais comum23: uma dificuldade apresentada pela criança em relacionar o desenho

da letra com o som, envolvendo ou não dificuldade no reconhecimento visual da letra para ler

e escrever.

Autores como Vygotsky, Luria e Freud - cujos conceitos sobre a relação

linguagem, cérebro e mente são articulados pelo movimento teórico que a ND tem realizado

ao longo dos anos - iluminam as análises da materialidade da fala, leitura e escrita e

possibilitam a conclusão de que o termo “dislexia” é um equívoco. Isso porque, em suas

várias definições, aparecem como sintomas24 características de muitas crianças em processo

de aprendizado de leitura e escrita: dificuldades em escrever, dificuldades com a ortografia,

disgrafia (letra feia), dificuldades para compreender textos escritos, confusão entre esquerda e

direita, troca de letras na escrita, dificuldade em manusear mapas, dicionários, listas

telefônicas etc. Ou seja, para quaisquer dificuldades escolares que envolvam leitura e escrita,

o termo “dislexia” é aplicado e não há substituto para ele. E, além disso, como veremos, esse

termo recobre como sintoma aquilo que interpretamos como dificuldades que barram a

entrada da criança nesse universo.

Os trabalhos realizados em consultório e no CCazinho, iluminados teórico-

metodologicamente pela ND, têm mostrado que crianças entram de maneiras e ritmos

diferentes nos processos de leitura e escrita. Dada a complexidade desses processos, são

esperadas, portanto, dificuldades naturais da criança em lidar simultaneamente com as

diferentes percepções exigidas no momento inicial de sua entrada no universo das letras.

Quando isso acontece, as crianças demoram mais para conseguir, por exemplo, fazer a

associação entre a presença da letra e do som no interior25 desse par (não há coincidência

entre a imagem motora e sonora da letra e a imagem motora e sonora da fala da letra) e nem

no exterior com a próxima letra (não há a concatenação entre uma letra e outra, inviabilizando

a palavra). Como já vimos, há a necessidade de simultaneidade entre a duplicação da imagem 23 O tema dislexia, conforme suas diferentes definições, voltará no próximo capítulo. 24

Disponível no endereço eletrônico: www.ibge.gov.br . Acesso: out. 2007. 25 Faço uso dos termos “interior” e “exterior” da letra relacionando-os com os dois eixos da cadeia verbal propostos por Jakobson (1954/1981). No eixo paradigmático (interior) ocorre a seleção da letra, da fala, do seu nome e dos traços que a compõem, no caso da escrita; ou a seleção da fala, do nome, da letra, no caso da leitura. No eixo sintagmático (exterior), ocorre a contiguidade, a concatenação necessária para a sequência da palavra tanto na escrita quanto na leitura.

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motora e sonora da fala e da imagem motora e sonora da letra. Pode-se pensar, então, que

parecem existir casos em que essa simultaneidade não ocorre e a dificuldade da criança se

localizaria no intervalo da associação dupla da fala e da letra. Isso funciona como

impedimento para que a criança, tanto no caso da leitura quanto da escrita, realize uma

associação, por meio da linguagem, entre o nome da letra e o som da fala de forma que se

mantenham sempre simultâneos e coincidentes. Como a cada momento essa criança faz uma

fugaz associação, não há repetição, não há construção de memória em relação a isso. Como

consequência, o fato de a criança não conseguir chegar à palavra impossibilita que o conjunto

de letras recupere o sentido presente na sua fala na língua, aumentando a possibilidade da

letra permanecer solta, sem sentido, na medida em que é a língua que estabiliza o som.

Se isso não for observado pelo professor ou pessoas que lidam com a criança,

muitas atividades propostas a fim de que ela leia e escreva ficam sem sentido,

impossibilitando relações neuropsicológicas que também promovam condições de a criança

vir a conferir sentido para as práticas de leitura e escrita.

Assim, o referido trabalho com crianças tem também possibilitado o

reconhecimento de que diferentes crianças podem apresentar diferentes dificuldades em

diferentes momentos do processo normal de leitura e de escrita, como será visto no próximo

capítulo. Entretanto, essas dificuldades serão maiores quando surgirem no início desses

processos, isto é, quanto mais cedo a criança for barrada na entrada do mundo das letras,

maiores serão suas dificuldades. Se retomarmos Vygotsky e sua consideração sobre o

processo em espiral em que se dá a aprendizagem, é possível entender por que isso ocorre:

essa criança barrada inicialmente nos seus processos de leitura e escrita tem maiores

dificuldades em fazer avançar esses processos porque não sedimentou, naquelas condições

oferecidas pelo professor e pessoas que lidam com ela, conhecimentos prévios específicos

para entrar na tecnologia da escrita.

1.3 Metodologia

Considero que a metodologia usada nesta tese vem sendo apresentada desde a

parte 1 deste capítulo, como já havia mencionado e como demonstrei na exposição do

funcionamento tanto teórico quanto prático do trabalho desenvolvido no CCazinho.

A ND, metodologicamente, tem orientado a análise dos dados por um olhar que

retoma a cena enunciativa em busca do dado-achado “produto da articulação de teorias

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sobre o objeto que se investiga com a prática de avaliação e acompanhamento clínico dos

processos linguísticos-congnitivos” (COUDRY, 1996, p. 183). Esse tipo de metodologia,

heurística, privilegia a interação entre investigador e sujeito e se diferencia da busca pela

falta e pelo dado-evidência, foco da Neurolinguística Tradicional.

Acrescento ainda que a questão do método adotado pela ND se configura, antes de

tudo, pelo olhar que dirige à linguagem, ao sujeito e à história deste, na confluência de teorias

que se posicionam como críticas. Cada um em seu tempo, tanto Freud, quanto Vygotsky e

Luria posicionaram-se criticamente em relação às teorias vigentes na medicina, na educação e

na neuropsicologia. A ND, nos estudos das afasias (COUDRY, 1988), marca o seu

posicionamento contra a aplicação de testes psicométricos na avaliação de linguagem (como

código) de sujeitos afásicos. Tais procedimentos quase sempre desprezam o sujeito, sua

história e as diferentes maneiras de lidar com fala e linguagem (verbal e não verbal), o que

acaba por incidir em suas possibilidades de reorganização terapêutica e de vida.

Nesta concepção, sabe-se que, na afasia, a história do sujeito é fundamental para o

que será sua reorganização após o acidente cerebral, mais importante do que a própria

natureza da lesão. De um ponto de vista metodológico da abordagem da ND de sujeito, isso se

evidencia como a recusa de uma posição determinística, privilegiando-se com isso uma

posição ética da abordagem do sujeito. Diante da criança/jovem/adulto em processo de

aquisição de fala, leitura e escrita, mantém-se essa mesma condição ética da recusa

determinística de um diagnóstico relativo também a esses processos quando não são

conhecidos os critérios e os protocolos que influenciam sua realização. Além disso, a ND

pressupõe um sujeito que erra e que tem o direito, se quiser, de saber o que faz quando erra e

quando acerta e isso tem efeito sobre este sujeito (CANEPPELE, a sair).

Não se trata de negar a existência de diagnósticos, mas de remontar suas

condições de produção e verificar sua resistência como hipótese de fala, leitura e escrita na

singularidade do sujeito.

A opção por essa posição metodológica repousa na constatação de que se abre ao

novo em oposição a qualquer determinismo, porque permite que tanto o investigador quanto o

sujeito em acompanhamento ocupem lugares de constituição de sentidos na interlocução - e,

justamente por isso, esses lugares se tornam novos quando desestabilizados pela recusa

determinística.

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2. Um determinado percurso escolar

[...] a escola ideal deve ser tão boa que professores e alunos desejem aulas aos sábados, domingos e feriados. Hoje, temos exatamente o contrário. [...] Um menino, que aos 12 anos acha que não é ninguém na vida, não tem mais auto-estima. Ele não é ele. Ele vai ser. É sempre um projeto adiado para o futuro (Tião Rocha, 2007).

JL, 11 anos, 5ª série, esteve em processo avaliativo no CCazinho em 2009.

Durante esse processo, sua mãe trouxe o relatório escolar da filha, o qual informava: “JL é

uma menina tímida, escreve pouco, tem pouca compreensão do que lê. Será aprovada para a

6ª série em 2010”.

A experiência de ser aprovado na escola, mesmo sem saber, de fato, ler e escrever

faz parte da história da maioria das crianças e jovens, tanto do ensino fundamental quanto do

médio, avaliada no CCazinho. Esse é o caso também de IS, 15 anos, 1º ano do ensino médio,

avaliada em 2007. Sua mãe me contou sobre o percurso escolar da filha: “Ela tem dificuldade

desde os primeiros anos de escola. Ela chegou até o primeiro colegial e vai passar para o

segundo, devido aos trabalhos que a escola pede e ela faz com a ajuda dos outros, porque ela

lê, mas não entende o que lê”.

No CCazinho, essas histórias são comuns, mas existem outras, também

recorrentes, como as de crianças portadoras de diagnósticos médicos na área de leitura e de

escrita.

NT, mãe de RF, 3ª série, 8 anos, avaliado em 2007, disse-me que não sabia o que

fazer, pois seu filho recebera do pediatra o diagnóstico de disléxico, confirmado também pela

escola; entretanto, relatou-me ela: “Ele lê bem e escreve bem, só troca o ‘d’ pelo ‘t’ e o ‘v’

pelo ‘f’ quando escreve”. Já, SF, mãe de TO, 10 anos, avaliado em 2007, disse que seu filho é

muito agitado e o médico o diagnosticou como hiperativo (laudo médico de Transtorno do

Déficit de Atenção com Hiperatividade/TDAH) e “A escola não entende que, por causa disso,

ele não lê e nem escreve bem. Ele é muito desatento, está tomando remédio, mas não

adianta”.

A percepção que as crianças e jovens têm sobre seus próprios processos de leitura e

escrita também são considerados desde a avaliação inicial, quando converso com eles sobre o

que reconhecem como suas dificuldades: DS, 16 anos, e DC, 21 anos: “Não entendo nada do

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que é para fazer”; EM, 10 anos: “Estou na quarta série, sei copiar”; LP, 9 anos: “Eu não

escrevo, mas eu queria...”; MS, 9 anos: “Minha mãe pediu para a escola me deixar na mesma

classe e todo mundo, que não sabe nada, vai passar de ano”.

Já dos professores26, nas visitas realizadas nas escolas, quando converso com eles

sobre seu aluno que acompanho no CCazinho, frequentemente, ouço: “Não sei mais o que

fazer para ele entender” (2008)27; “Passo a maior parte da aula controlando o comportamento

dele e da classe” (2007); “Acho que não falamos a mesma língua, falo hoje e amanhã não

lembram mais, entra por um ouvido e sai por outro” (2009). Os comentários dos professores

giram em torno de suas próprias dificuldades de lidar com as crianças, ao invés de se

dirigirem para as questões de leitura e escrita, e se restringem, portanto, a generalidades. Na

sua fala, o professor se apaga e apaga a identidade do aluno, o que torna impossível qualquer

relação de aprendizagem.

Neste capítulo, a exposição dessas histórias de crianças e jovens com queixa de

dificuldade nos processos de leitura e escrita e que não apresentam problema orgânico e de

aprendizagem tem o propósito de estruturar a problemática central que será tratada e que, no

limite, diz respeito a motivar crianças e jovens a ler e a escrever, dando visibilidade a um

universo de questões que se entrecruzam nas queixas das mães, crianças e professores.

No universo delineado a partir do recorte das avaliações realizadas no CCazinho,

observa-se, frequentemente, que a escola se mostra esvaziada de sua autoridade para ensinar e

avaliar. Além disso, o excesso de diagnósticos realizados por diferentes profissionais

despreparados para avaliar a linguagem em funcionamento (fala, leitura e escrita) acaba por

patologizar processos normais, o que resulta em diagnósticos que não se confirmam

(COLLARES e MOYSÉS, 1996; COUDRY, 1985, 2001, 2007, 2009; LIMA, 2005;

MOYSÉS, 2001; MOYSÉS e COLLARES, 2007; PATTO, 1990; BORDIN, 2008, 2009).

Outra constatação é a de que está se tornando comum a medicalização de crianças com

psicofármacos, como Ritalina e Concerta (HORWITZ e WAKEFIELD, 2007; GARCIA, 2009;

MOYSÉS e COLLARES, 2009), para que consigam frequentar a escola, o que acaba por

colocar a formação do professor em cheque, da mesma forma que deixa a ver que a relação

professor-aluno-escola, na maioria desses casos, está deformada, sem sentido.

26 Em diferentes ocasiões, tive a experiência de conversar com professores que, certificando-se de que não estão sendo gravados e nem terão sua identidade revelada, contam que não recebem apoio de coordenadores e diretores de sua escola; pior ainda, descrevem situações autoritárias e ambientes escolares hostis. 27 Para preservar a identidade dos professores, apenas indico o ano em que os ouvi.

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Quero dar relevância, ainda, ao fato de que os sujeitos apresentados, mesmo com

idades variando entre 8 e 21 anos, têm em comum um determinado trajeto escolar. A

diferença entre eles está no fato de que alguns estão iniciando esse percurso e são chamados

de crianças com dificuldades escolares ou portadoras de diferentes diagnósticos, outros estão

terminando o seu ciclo escolar obrigatório e não conseguem fazer uso de materiais escritos

(textos de diferentes gêneros, gráficos, mapas etc.) no seu cotidiano e, por isso, são chamados

de analfabetos funcionais28 ou são julgados moralmente como desinteressados, malandros,

marginais.

Tal reconhecimento marca a importância dos primeiros anos escolares como

determinantes para a entrada da criança na linguagem escrita e não apenas na correspondência

mecânica possível entre som e letra. Isso se ajusta com a reflexão de Vygotsky sobre a escrita

como uma nova forma de linguagem para a criança, o que pressupõe que

[...] o ensino tem que ser organizado de forma que a leitura e a escrita se tornem necessárias às crianças. [...] uma necessidade intrínseca deve ser despertada nelas e a escrita deve ser incorporada a uma tarefa necessária para a vida (VYGOTSKY, 2007, p. 141/143).

2.1 Abrindo um universo de questões

A problemática que acabo de expor está no cotidiano do país e é veiculado

diariamente pela mídia. Para focalizar apenas os indicadores29 ENEM, PISA, Prova Brasil e

28 Os estudos de Ribeiro (1997, 2003) indicam que o termo analfabetismo funcional teve seu uso instituído pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) no final dos anos de 1950 e passou a ser usado no Brasil, desde a década de 90, por pesquisadores participantes do programa sobre a educação na América Latina e Caribe (UNESCO). Trata-se de um termo de difícil definição porque tanto pode ser encontrado na sua antítese, alfabetismo funcional, como na sua aproximação com o conceito de letramento. Minha proposta não é a de entrar no mérito dessa questão e, para quem se interessar, sugiro a leitura completa dos artigos de Ribeiro (1997, 2003, 2006) nos endereços eletrônicos: www.scielo.br, www.ibope.com.br/inaf, www.ipm.org.br (Acesso: jul. de 2009). Nesta tese, importa saber que o Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF) considera três níveis de alfabetização funcional. O Nível 1 é o da alfabetização rudimentar, isto é, quando o sujeito consegue ler e compreender títulos de textos e frases curtas e, apesar de saber contar, apresenta dificuldades em compreender operação básicas de matemática. O Nível 2 é denominado alfabetização básica, ou seja, quando o indivíduo consegue ler textos curtos, porém só é capaz de extrair informações esparsas no texto e não consegue tirar uma conclusão a respeito dele; além disso, realiza operações matematicas básicas. Já o Nível 3 é o da alfabetização plena, quando o sujeito tem pleno domínio da leitura, da escrita, dos números e das operações matemáticas de diferentes complexidades.

29 ENEM (Exame Nacional de Ensino Médio); PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), que avalia alunos na faixa de 15 anos de idade com ênfase em leitura, matemática e ciências (cada edição do exame recai sobre uma área de conhecimento) e que envolve escolas públicas e privadas; Prova Brasil, a qual avalia o ensino de leitura e escrita nos primeiros anos escolares. Neste caso, os resultados são contextualizados no âmbito

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SAEB, utilizados pelo Ministério da Educação para avaliar o ensino público e, em alguns

casos, também o privado, temos notícias como: “Piores escolas no Enem têm 60% dos

alunos” (TAKAHASHI, 2009). Trata-se do ENEM de 2008 em que, das quase 26 mil escolas

avaliadas, 89% das pertencentes à rede pública obtiveram resultados inferior à média. Em

contrapartida, no topo das escolas com melhores resultados, estão 15 particulares e 5 públicas

ligadas a universidades ou Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefets)30. Quando,

entretanto, o desempenho da escola particular passa a ser considerado em amostra

internacional, como o PISA, seu desempenho também fica rebaixado, como se constata em:

“O Brasil é reprovado, de novo, em matemática e leitura” (GOIS e PINHO, 2009), referindo-

se à 53ª posição do Brasil, em 2006, entre os 57 países participantes na avaliação PISA. Já

“Os resultados preocupantes do SAEB” (DALLABRIDA, 2007) dão conta de que a

universalização do ensino melhorou, mas a escolarização piorou; enquanto que “País tem

11,5% de crianças analfabetas” (GOIS, 2009) faz alusão ao resultado da Prova Brasil. Em

relação ao ensino médio, encontra-se ainda: “Alunos do 3º ano (do ensino médio) têm nota de

8ª série” (TAKAHASHI, 2007), que aponta que 43% dos estudantes mostram conhecimentos

de leitura e escrita esperados para a 8ª série.

No que concerne à formação do professor e a sua valorização profissional, as

notícias também são preocupantes porque giram em torno do aumento de violência na escola

com agressões de ambas as partes. Entretanto, geralmente, a imagem do professor é a que fica

colada ao ensino de má qualidade, como única explicação possível. Isso ocorre mesmo

quando não se sabe de que professor se fala. Observa-se ainda que, dificilmente, é citada a

figura do diretor, coordenador ou gestor - para usar um termo bastante em alta hoje em dia em

algumas esferas de ensino.

Souza (2005, 2009, 2010), baseada na concepção de sujeito sócio-histórico da

perspectiva de Wallon e Vygotsky, tem como projeto de pesquisa “A Constituição Identitária

de Professores e suas Representações sobre seu Papel na Promoção do Desenvolvimento do

Aluno e no Atendimento à Diversidade”. A importância desse trabalho está em considerar o

da localização da escola (município, estado e país). O SAEB (Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Básico) é destinado a alunos da 4ª a 8ª série do ensino fundamental e 3º ano do ensino médio.

30 Considerei resultados do ENEM de 2008 porque o ENEM de 2009 teve sua realização comprometida por questões de quebra de sigilo e, por isso, foram retardados sua realização, resultado e análise. Os dados que obtive do ENEM 2009 indicam que, dentre as 27 mil escolas participantes na classificação dos dez melhores resultados, estão apenas escolas particulares, sendo que as públicas que conseguiram boa classificação são ligadas a universidades e escolas técnicas. Consulta no endereço www.inep.gov.br Acesso em: jul.2010.

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professor na relação com os seus pares e o funcionamento do contexto escolar como grupo,

aparecendo o sofrimento como condição de trabalho (ANDRADA e BILBAO, 2010). Nesse

estudo, a partir das relações do contexto escolar, há a constatação de que os afetos interferem

“[...] nos processos de ensino e aprendizagem, constituindo-se como barreira às ações de

professores e alunos, impedindo, muitas vezes, o desenvolvimento e a aprendizagem de

ambos e provocando o adoecimento de professores” (SOUZA, 2010, p.1).

Assim como Souza, a pesquisa realizada com professores pela APEOESP e

DIEESE31 (2007) sobre os motivos do alto índice de faltas de professores no trabalho também

indica o adoecimento como principal causa, sendo que as seguintes referências aparecem de

forma combinada: nervosismo (61%), disfonia vocal (57%), angústia (44%). Isso ratifica,

uma vez mais, o predomínio de causas psíquicas dentre as enfermidades apresentadas pelo

professor. Nesse sentido, estudo feito pelo Centro de Atendimento Psico-Social (2008)

aponta que a profissão de professor está entre as três mais atingidas por quadros depressivos

juntamente com agente penitenciário e policial.

Se, por um lado, o professor se defronta com as questões de violência e de

comprometimento de sua saúde, por outro, como já foi enunciado, notam-se cada vez menos

ações que reflitam sua relação com o conhecimento. Deste modo, pode-se dizer que a

identidade do professor também está adoecida - daí a necessidade de uma nova identidade

profissional como nos propõe Geraldi (2004):

[...] a nova identidade a ser construída, não é a do sujeito que tem as respostas que a herança cultural já deu para certos problemas, mas a do sujeito capaz de considerar o seu vivido, de olhar para o aluno como um sujeito que também tem um vivido, para transformar o vivido em perguntas. O ensino do futuro não estará lastreado nas respostas, mas nas perguntas (GERALDI, 2004, p. 19).

Esse sujeito capaz de considerar o seu vivido também está presente no estudo de

Sartori (2008), “Os Professores e sua Escrita: o gênero discursivo ‘memorial de formação’”,

com base na teoria delineada pelo círculo de Bakhtin. A autora toma o memorial de formação

do professor como um instrumento importante em que o sujeito pode pensar sobre o próprio

percurso, reconhecendo através desse ato uma necessária responsabilização sobre o próprio

31 APEOESP - Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo; DIEESE - Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos.

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processo de aprendizagem - não é o outro que me forma, sou eu que me formo com os outros

(p. 186). Para Sartori, quanto mais o professor falar, mais conheceremos “[...] sua forma de

pensar e agir na profissão e os sistemas de referência de interpretação dessas experiências” (p.

187).

Não podemos deixar de considerar que, especialmente, a forma de pensar e de agir

do professor está condicionada também pelas ações de políticas públicas do Estado na área de

educação. Assim, em relação ao governo atual do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva,

percebe-se que há um destaque para a busca da universalização do ensino em território

brasileiro, através da criação32 da bolsa escola; da aplicação da lei (PEC 134/07) que pune

agentes públicos que deixarem crianças fora da escola; da obrigatoriedade legal dos pais

matricularem seus filhos na escola; da aplicação de indicadores avaliativos quanto ao ensino

praticado em diferentes níveis educacionais (fundamental, médio e superior); da manutenção

e ampliação dos programas de formação continuada (a distância) de professores e, por fim, da

implantação do sistema de inclusão, que colocou em escolas regulares um grande número de

crianças sem atividade escolar alguma ou provenientes de escolas especiais.

Porém, universalizar33 o ensino brasileiro com atitudes, por vezes, precipitadas

acaba por colaborar com a situação do grande índice de alfabetismo/analfabetismo funcional

no país. Dentre os diversos motivos para que isso ocorra, o principal deles é a transferência

para o professor de responsabilidades para as quais, muitas vezes, ele não se encontra

preparado. Outros motivos ainda são: o consentimento governamental para a proliferação de

faculdades particulares sem qualidade de ensino, com professores que se limitam a dar aulas e

com grades curriculares que deixam de fora conhecimentos básicos sobre a linguagem e a

língua (fala, leitura e escrita); a conivência com o baixo salário do professor 34 (praticado na

grande maioria dos estados brasileiros), principalmente, da rede estadual; o grande número de

alunos em uma sala de aula; o fato de o Estado interferir na prática (responsabilidade e

32 Nem todas essas medidas foram criadas no governo Lula (Ministério da Educação/Ministro Fernando Haddad); algumas foram implantadas em governos anteriores e mantidas pelo governo atual. 33 A universalização do ensino é uma questão social e política e interfere na identificação do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de um país, o qual é medido pela taxa de alfabetização de pessoas com 15 anos de idade ou mais, taxa de escolarização, longevidade e renda medida pela paridade de poder de compra. O IDH é considerado na decisão do investimento econômico do Banco Mundial nos países. 34 Uma relação, frequentemente, estabelecida como explicação para o baixo desempenho do professor em sala de aula tem sido o baixo salário, no entanto, na realidade que conhecemos a partir do CCazinho, observa-se que professores de escola pública (municipal) e particular que recebem bons salários se apresentam analisando de forma muito parecida as dificuldades das crianças e a sua própria relação com a profissão.

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autoridade) do professor em sala de aula, por meio da criação de leis (estaduais) como a

“Progressão continuada”35, que, deslocada do propósito inicial de democratizar o ensino

fundamental, passou a regulamentar a “aprovação automática”, desvalorizando a relação de

aprendizagem, em nome de estatísticas governamentais que contribuem para a queda do

número de evasão de alunos e, principalmente, de repetência.

Apesar de tanto esforço do Estado para minimizar os problemas do ensino público

no Brasil, vimos que os indicadores avaliativos do próprio governo mostram o insucesso

dessas soluções, embora venha se mantendo um decréscimo do número de analfabeto no país.

E se, na relação aluno e professor, esse conjunto de ações não trouxe resultados consistentes

do ponto de vista do aluno, o estado de São Paulo propôs nova resolução paliativa e

equivocada destinada ao professor: a oferta de Bônus36 para quem (professor/escola) aprovar

mais alunos de fato.

Resoluções como as que acabaram de ser apontadas não são novas na história da

educação brasileira. Outras aconteceram. Promover o hábito de ler entre os estudantes é uma

busca do Estado desde a década de 1960, por ocasião do ingresso de crianças de camadas

populares na escola pública, frequentada antes pelas classes mais favorecidas. A escola

passou, assim, a ocupar o papel de ter de inserir esses alunos no universo da leitura, o que

acabou por exigir um aumento da oferta de livros, favorecendo a entrada do Estado no

mercado editorial. Segundo Castro (2005), a Comissão do Livro Técnico e do Livro Didático

(COLTED) do Ministério de Educação e Cultura (lei 59.355/1966), resultante do convênio

entre o Sindicato Nacional de Editores de Livros (SNEL) e a United Agency for Internacional

Development (USAID), foi criada para resolver o conflito existente, por razões econômicas,

entre as editoras privadas e o governo, que também passou a produzir livros. A participação

do governo no mercado editorial provocou a diminuição do lucro de mais de 50 editoras.

35 No estado de São Paulo, essa é a Lei Estadual 10.403 com fundamento no artigo 32 da Lei Federal 9.394 (1996). Municípios de diferentes estados no Brasil também fazem uso do programa de progressão continuada. 36 A Lei Complementar nº 1.078, de 17 de dezembro de 2008, instituiu bonificação por resultados no âmbito da Secretaria da Educação, que pode ser consultada na íntegra no endereço eletrônico: http://idesp.edunet.sp.gov.br/ Para o secretário da Educação (SP), Paulo Renato Souza (governo José Serra/PSDB): “O valor expressivo do Bônus mostra a valorização e o respeito que o Governo do Estado tem pelos professores e profissionais da educação.[...] São prêmios expressivos até mesmo para grandes empresas que valorizam os seus resultados, e no nosso caso o resultado é o mais nobre de todos: a melhoria do aprendizado nos nossos alunos”. Disponível no endereço eletrônico: http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/lenoticia.php?id=208646 Acesso: mar. 2010.

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Apesar do aumento de oferta de livros, não houve adesão por parte do público,

revelando uma “crise na leitura”. Nesse sentido, Lajolo (1993) considera que

[...] se a crise efetivamente existe, ela ocorre sobre o signo da contradição entre o crescimento numérico dos consumidores potenciais e da oferta de obras, de um lado, e a recusa do leitor em tomar parte nesse acontecimento cultural e mercadológico, de outro (LAJOLO, 1993, p.16).

Desde então, novos programas foram idealizados com o objetivo de atingir o aluno

e seu entorno, ou seja, a família, a comunidade e o professor37.

Na pesquisa que efetuei, não encontrei estudos realizados pelo governo brasileiro que

avaliasse como, quanto e o que a população lê. Por este motivo, faço uso de uma pesquisa38,

que, apesar de ter sido feita pela iniciativa privada, produziu resultados que descrevem o

fenômeno da leitura no Brasil.

Trata-se da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, do Instituto Pró-Livro,

realizada entre 29 de novembro e 14 de dezembro de 2007 com a população brasileira (a

partir de cinco anos de idade) e que atingiu 172.731.959 milhões de pessoas, apresentando

indicadores como: mulheres (55%) leem mais que homens (45%); uma em cada quatro

pessoas não faz ideia sobre o papel da leitura; no seu tempo livre, o brasileiro prefere ver

televisão (77%) a ler (35%); quem gosta de ler com frequência tem formação superior; 75%

dos leitores estão na região dos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul; as

preferências dos leitores são: revistas (52%), livros (50%), jornais (48%), livro digital (3%);

quanto ao gênero mais lido: Bíblia (45%), livro didático (34%), romance (32%). As maiores

limitações que interferem na realização da leitura são: 17% não compreendem o que leem; 7%

não têm paciência para ler; 11% não têm concentração; 7% leem devagar. O perfil brasileiro

de leitura é o de 1,3 livros por ano, subindo para 3,4 livros quando inclui livros indicados pela

escola; entre os anos de 2000 e 2007, houve um aumento no número de livros lidos pelo leitor

brasileiro, passando de 1,8 por leitor para 3,7.

Diante dessas constatações, parece-me possível perguntar: por que o

estabelecimento de programas governamentais não é determinante para a mudança efetiva da

situação da leitura no Brasil? Talvez uma explicação para isso se encontre nas considerações

37 Alguns desses programas foram: PROLER (1992), Pró-leitura, (1992); Programa Nacional de Biblioteca do Professor (1994); Programa Biblioteca na escola (1997); Política Nacional do Livro (2003); Programa Fome de Livro (2004); Criação do BNDES Pró-livro (2005); Plano Nacional do Livro e Leitura-PNLL (2006); Programa Mais Cultura (2007); Colegiados Setoriais de Livro e Leitura (2008). 38 A íntegra da pesquisa está no endereço eletrônico www.prolivro.org.br Acesso: 30 out. 2009.

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de Bakhtin (1988), para quem o sentido do texto se define como um diálogo entre

interlocutores e pelo diálogo com outros textos (não possíveis de serem repetidos e

reproduzidos), na intertextualidade e contexto de escrita e de leitura. Para esse autor, a

linguagem é valorizada como fenômeno heterogêneo que não se restringe à conversa, mas se

estende à leitura e à escrita enquanto formas de se produzirem sentidos possíveis no texto, tal

qual um diálogo constituído dialeticamente em que não se tem uma única direção nem de

emissor (escritor/autor), nem de receptor (leitor/autor). A compreensão do que se lê e do que

se escreve resulta de práticas descontínuas que se cruzam na cultura, na contextualização

interna e externa do texto – o que não se verifica nos programas governamentais, os quais,

aparentemente, mantêm o imaginário de uma resolução automática: colocar um livro na mão

do estudante é torná-lo leitor.

Sustentada por este procedimento governamental que regula os programas

destinados a promover a leitura é que se deu também a entrada do computador na escola

pública, de forma efetiva, a partir do final da década de 1980. Dentre os objetivos dessa ação,

observa-se, aparentemente, uma preocupação do governo quanto a modernizar a escola e

diminuir a distância entre o aluno brasileiro e estudantes de partes mais desenvolvidas

economicamente do mundo através da disseminação do uso dessa tecnologia, favorecendo,

assim, uma nova organização política e social no Brasil. Entretanto, explica Boehme (2003):

[...] para isso, se faz necessário uma mudança qualitativa em todo o processo de aprendizagem, o papel do professor se amplia significativamente, transformando-o de informador, que dita conteúdos, em orientador de aprendizagens, em orientador/mediador capaz de estabelecer formas democráticas de pesquisas e comunicações dentro e fora da sala de aula, um parceiro que valoriza mais a busca do que o resultado pronto, o estímulo mais do que a repreensão, o apoio mais do que a crítica (BOEHME, 2003, p. 33).

A importância desse tópico para esta tese está em, por um lado, explicitar a ideia

de que as ações governamentais privilegiam garantir a presença da criança no ambiente físico

da escola, mas não a escolarização ou a universalização do ensino e, por outro, que as queixas

de leitura e escrita trazidas no início desse capítulo, bem como o que povoa o universo

discursivo relacionado a elas, fazem parte de uma construção social historicamente datada,

demonstrando o perfeito equilíbrio entre o presente e o passado.

Retomando a história da escrita no Brasil desde a sua entrada, em 1549, pelas

mãos dos Jesuítas, temos o seguinte percurso quanto a busca pela universalização do ensino:

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assinatura, em 1821, por parte de João VI, do primeiro decreto favorecendo a instrução

primária gratuita para todos, que começou a ser conjeturada em 1824 e não ocorreu; novas

tentativas de universalizar a educação primária em 1827 e 1891, que não foram efetivadas;

envio ao Congresso Nacional, em 1948, do Projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional, aprovado apenas em 1961, mas que também não resolveu a questão que persiste

ainda hoje, em 2010.

2.2 O sujeito e a materialidade da sua escrita

Nos tópicos anteriores, referi-me a queixas de familiares e de professores em

relação a sujeitos com dificuldades de leitura e escrita e, além disso, ao que os próprios

sujeitos pensam sobre seus processos de leitura e escrita, o que abriu um universo de questões

históricas, políticas e socialmente relacionadas. Neste tópico, procuro me aproximar do que

existe na escrita do sujeito e se materializa como representação de sua dificuldade, o que se

dará a partir de dados de sujeitos que frequentam o CCazinho e de um arcabouço teórico

compatível com a perspectiva discursiva abrangendo diversos autores que privilegiam

diferentes aspectos da linguagem escrita.

De acordo com Souza (2010), no ambiente escolar da educação básica, a leitura e

a escrita aparecem, muitas vezes, como algo mágico: os professores não sabem explicar como

as crianças aprendem a ler e a escrever, pois parecem considerar que as crianças, apenas por

estarem na escola, irão naturalmente aprender a ler e a escrever. Pelo mesmo motivo, também

não entendem e não sabem explicar quando isso não acontece. Em decorrência desses

pressupostos, se existem crianças que aprendem a ler e a escrever, então, quando uma criança

não o faz, o problema só pode estar nela. Em tal visão, não há espaço para relações baseadas

em aprendizagem e os processos de leitura e de escrita perdem seu referencial histórico, assim

como os próprios sujeitos.

Abaurre, em seus estudos (1997) sobre aquisição de linguagem escrita, estabelece

uma relação interessante entre a aquisição da fala e a da escrita, reconhecendo que, nos

primeiros estudos da área de Aquisição de Linguagem, a fala da criança era vista como

imperfeição da fala do adulto e hoje tal comparação deixou de ser estabelecida. Porém, em

relação à escrita, ainda se espera que a criança escreva logo de início de forma correta, ou

seja, próxima da forma do adulto, o que revela uma descaracterização de sujeitos reais da

aprendizagem (p. 17). Para a autora, os dados de aquisição de linguagem oral e de escrita são

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instáveis devido ao fato de a linguagem ser contínua e rapidamente reelaborada pela criança

e essa natureza cambiante da linguagem (op. cit., p. 18) se dá na sua forma oral e escrita.

Abaurre considera que, na fala da criança, essa natureza cambiante é visível na

provisoriedade de suas conclusões quanto ao uso de diferentes hipóteses para falar uma

mesma palavra e, depois, nas possibilidades que experimenta de generalização até chegar à

sistematização do significado das palavras no uso que faz delas. Em relação à escrita, o texto

produzido espontaneamente pela criança é a fonte para se verificar a relação do sujeito com a

linguagem; além disso, nele, a natureza cambiante é visível através da reflexão da criança,

que deixa nesse texto escrito marcas observáveis de operações de reelaboração como

apagamentos, refacção, reescrita, hiper e hipo segmentação, correção ortográfica,

substituição lexical, aspectos morfossintáticos (concordância de gênero e número). Quando a

criança reelabora algo em sua produção escrita, revela também que lê o que escreveu,

marcando, assim, “a presença do leitor no texto em construção” (op.cit., p. 80).

Essa abordagem teórica redimensiona a noção de “erro” da criança na fala e na

escrita, passando-se a considerá-lo como indício de hipóteses que a criança possivelmente

elabora e utiliza. Trata-se, portanto, de um lugar valioso de descobertas sobre processos de

fala e de escrita.

Essas hipóteses são construídas, então, na relação com o outro e, nesse sentido,

quando o professor risca uma palavra em vermelho, ou corrige por cima, e não explica para a

criança o porquê disso, acaba por não desestabilizar a hipótese utilizada pela criança. Essa

hipótese, então, continuará sendo usada e, devido à repetição, irá se tornar memória. Portanto,

somente em mediações diferentes dessas é que as crianças desenvolverão consciência

(VYGOTSKY, 2007) do fato e poderão modificar seu comportamento e sua relação com a

escrita.

É assim que a não consideração das hipóteses usadas pela criança pode ser tomada

como uma dificuldade de escrita, descaracterizando o processo normal de sua aquisição, como

se verá no dado abaixo:

Dado1: Em dezembro de 2009, MV, 8 anos, 2ª série, apresenta a queixa de “problema na escola e dificuldades de escrita”.

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hotem fui ao super mercado e compre 5 de rasão para passarinho.

Ontem fui ao supermercado e comprei 5 (pacotes, sacos, quilos) de ração para passarinhos.

Análise: MV está no início de seu processo de leitura e escrita e, por isso, transita com

instabilidade entre fala e o uso convencional da escrita. Neste dado, há a hipótese de que

“hotem” seja escrito com “h”, provavelmente, porque “hoje” se escreve assim; há duas

ocorrências de refacção (o “a” em cima do “o” feito anteriormente, na palavra “mercado” e a

inserção de mais um “s” na palavra “passarinho”). Há também a ausência da primeira marca

de nasalidade na palavra “hotem/ontem”, o que, entretanto, não altera o sentido; a hiper

segmentação em “super mercado” é guiada, possivelmente, pelo conhecimento que a criança

tem de outras expressões: super homem, super legal. Em relação ao uso da convenção

ortográfica, MV dá mostras de que está entrando no sistema da escrita, já que se, em “rasão”,

faz uso de “s” no lugar de “ç”, em “passarinho”, a refacção indica o conhecimento de que, na

escrita, o som de /s/ precisa ser registrado, neste caso, com “ss”. Já a omissão da palavra

“pacote” (ou alguma outra equivalente), no fragmento da frase “5 de rasão”, parece mostrar a

relação mais forte que MV mantém com a fala interior39 nesse início de processo (2ª série).

Este tipo de fala sofre uma abreviação em relação à fala externa e a omissão de palavras na

frase e a ausência de sintaxe é possível porque, quando pensamos, sabemos sobre o que

pensamos. Para Vygotsky (1934), a fala interior é falar para si mesmo (p. 124) e está mais

intimamente relacionada com a escrita do que a fala externa, da qual não é antecedente.

O dado de MV revela, portanto, que ele não tem problema de escrita. Ele está na

segunda série e sua produção escrita pode ser reconhecida como um texto que retrata sua

experiência de vida: ele havia avisado, antes de escrever, que faria remissão ao que havia feito

no dia anterior. Além disso, seu texto também dá indícios de que houve reflexão sobre a

escrita que pratica. No entanto, MV foi encaminhado pela escola para avaliação no CCazinho,

porque esta não fugia à regra de valorizar os erros ortográficos da criança, afinal o domínio da

língua escrita é considerado prova de escolaridade e quem não domina a ortografia e escreve

“errado” é ignorante ou é portador de patologia, motivo pelo qual a escola insiste tanto na

39 Esse conceito de Vygotsky (1934/1987), que será retomado em diferentes momentos nesta tese, remete ao fato de que, para o referido autor, é no significado da palavra que a fala e o pensamento unem-se em pensamento verbal. O trajeto dessa união envolve fala social, passa pela fala egocêntrica, e, por fim, chega na fala interior como pensamento reflexivo. A fala interior é dirigida ao próprio sujeito (linguagem interna), não é dirigida ao outro, e, portanto, caracteristicamente, abreviada.

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ortografia (CAGLIARI, 2003, 2005; POSSENTI, 2005; ALKMIM, 2009), o que quase

sempre é ratificado pela família, como neste caso. E, enquanto isso, deixa escapar o que é

mais importante, ou seja: o aprender a ler com compreensão e escrever com sentido.

Para Possenti (2005), “os alunos vão à escola para aprender a ler e a escrever

segundo as regras ou normas de sua época” (p. 6) e têm na reescrita a forma mais eficaz de

todas para aprender a escrever e dominar normas de gramática e textualidade: “domínio

efetivo, mesmo que não consciente e explícito, das regras de uma língua e das regras de

construção de textos escritos” (p. 6). Para esse autor, o domínio da escrita pelo aluno é

facilitado se a escrita escolar levar em conta o funcionamento da escrita em sociedade, certas

características que a escrita tem na sua prática social e se a escrita for abundantemente

praticada dentro e fora da escola.

Considero que levar as crianças/jovens a ler e a escrever com frequência é a maior

dificuldade encontrada no CCazinho e também uma das mais importantes e constantes

buscas. Vygotsky, reiteradamente, esclarece que a escrita não é uma necessidade imediata da

criança e, para que ela escreva, é preciso que tenha, antes, um motivo. A criança/jovem do

CCazinho, costumeiramente, não vê sentido em ler e escrever porque, por repetidos anos, vem

fazendo a mesma coisa na escola, sem ter desenvolvido consciência sobre o que faz: ela não

sabe quando acerta ou quando erra. Não é por acaso que, quando xerocamos cadernos e pastas

de trabalho escolares das crianças/jovens, é raro encontrar algum tipo de correção comentada,

textos escritos espontaneamente, e, principalmente, sua reescrita. Há, em contrapartida, o

predomínio de atividades como a cópia de textos e perguntas a serem respondidas de acordo

com um texto-base, ou seja, tarefas sem sentido e que promovem a escola também como

produtora de déficit (COUDRY, 1987, 2005, 2009; COUDRY e MAYRINK-SABINSON,

2003). E isso só parece possível porque a escola enxerga também o desfavorecimento social

de suas crianças como déficit, considerando-as menos capazes para aprender a ler e a

escrever, oferecendo-lhes, como consequência, menos oportunidades para isso (PATTO,

1990; COLLARES e MOYSÉS, 1996).

Um outro aspecto relevante é que a escrita não se dá sem mediação e essa

mediação é também uma forma de interferência no texto da criança. Fiad (1997), a partir da

análise de textos representativos de diferentes momentos da aquisição da escrita, observa que

a escola não favorece a constituição da individualidade na relação da criança com a sua escrita

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porque visa à homogeneização e apaga, no aluno, a concepção de estilo como resultado do

trabalho que o sujeito alcança com a língua, ou seja, a partir das escolhas realizadas (p.155).

Ainda em relação a isso, para Possenti (op. cit.), o ideal é que o aluno produza

textos que façam sentido para ele – o que a cópia aparentemente não oferece. Para o autor, é

importante que a criança tenha motivação para escrever, mobilizando informações e opiniões

que julgue relevantes sobre o que vai escrever. De tal modo, é importante que o aluno tenha a

prática de leitura de materiais variados (jornais, revistas, textos literários etc), práticas

constantes de escrita (narrativas, comentários, resumos, paródias, paráfrases, diários, cartas,

bilhetes, entre outros), afinal o aluno não inventa o texto a partir do nada (p. 10). Além disso,

novamente, há que se considerar a importância do processo de reescrita, pois é ele que

permite o deslocamento, por parte do sujeito, de autor a leitor de sua produção, inserindo-o

cada vez mais no sistema de escrita ou, para retomar Vygotsky, possibilitando que sua escrita

se reverta em um simbolismo de primeira ordem.

O que está sendo reafirmado até o momento é que a escrita e a leitura não ocorrem

naturalmente; trata-se de processos distintos, de representação de sentidos e que, quando são

vistos sob uma determinada mediação, constituem-se como lugar de trabalho linguístico,

histórico e social. Sob essa perspectiva, os problemas e as dificuldades de leitura e de escrita

ganham validade a partir de suas descrições, da reflexão mediada que a criança consegue

fazer a esse respeito e do seu uso em práticas sociais. Quando isso acontece, como tem

mostrado a realidade do CCazinho, os diferentes discursos - médico, clínico, familiar e

escolar - sobre a escrita da criança/jovem deixam de fazer sentido.

A motivação e o trabalho na leitura e escrita da criança precisam ser cuidados com

responsabilidade familiar, escolar e governamental, principalmente, nos primeiros anos

escolares. Quando isso não acontece, um percurso sofrido pode ser reservado a ela. Observe

os seguintes dados colhidos a partir da escrita espontânea durante o processo de avaliação que

conduzi:

Dado 2: Em dezembro de 2009, LV, 12 anos, 6ª série, apresenta queixa de dificuldade na fala (dessonorização), na leitura e na escrita.

hoje eu agordei escovei o dendi si arrumei e mais nada Hoje eu acordei, escovei os dentes, me arrumei e mais nada.

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Dado 3: Em janeiro de 2009, JL, 11 anos, 5ª série, apresenta queixa de dificuldade na leitura e na escrita.

eu levater nove horas tome cafe fui pra casa da minha vó brique tome banho vim pra ca. Eu me levantei nove horas, tomei café, fui para a casa de minha avó, tomei banho e vim para cá.

Dado 4: Em maio de 2008, DS, 16 anos, 7ª série, apresenta queixa de dificuldade na leitura e na escrita. O texto abaixo foi recortado de uma atividade de escrita em que DS contava para sua colega sobre um trabalho escolar.

“Emtão porque voce esta tiste? a eu esquece de fazer o trabaio do porfessor. Deiche eu te ajuda a fase na ora do recreio disse maiara” Então, por que você está triste? Ah, eu me esqueci de fazer o trabalho do professor. Deixe que eu te ajude a fazer na hora do recreio, disse Maiara.

Análise: Nesses dados de crianças/jovens que se encontram na quinta, sexta e sétima séries,

nota-se que os problemas apresentados são tanto de escrita quanto de texto e se mostram

compatíveis com a produção de alunos mais novos que estão no início do processo de escrita.

Veja que, desprezando as ocorrências de projeção da dessonorização da fala para a escrita no

dado 2, todos os três dados apresentam hipóteses de escrita muito parecidas, as quais incidem

em regras ortográficas da língua (grafia correta das palavras, relação som/letra - “ch”, “x”;

“j”, “g”; “ss”, “s”, “c”, “ç” etc -, uso de maiúscula e minúscula, uso de acento e pontuação),

como mostra, por exemplo, o dado 4: deiche/deixe, fase/fazer (relação som/letra), a omissão

do “r” do verbo no infinitivo fase/fazer como marca da oralidade na escrita, a

assistematização da escrita de sílabas complexas como em tiste/triste e porfessor/professor. Já

no dado 3, há a omissão da marca de nasalidade em brique/brinquei. Há também alterações

morfossintáticas (flexão de nomes e de verbos, regências e concordâncias verbais), como no

dado 3: levater/levantei, brique/brinquei, tome/tomei e no dado 4: esquece/esqueci,

ajuda/ajude, dado 2: si arrumei/me arrumei, no dado 3: levater/me levantei.

O objetivo não é analisar todas as ocorrências possíveis quanto às regras desrespeitadas, mas

explicitar que as propostas de escrita espontânea desses sujeitos resultaram em textos de

conteúdos simples, colados na realidade e sem que revelem, pelas suas estruturas, a presença

de intertextos. Além disso, apesar de todos frequentarem a escola por mais de seis anos, ainda

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não lêem o que escrevem e suas produções são, predominantemente, marcadas pela oralidade.

Essa predominância revela, aparentemente, uma determinada variedade linguística de um

certo grupo com realidades de escrita e de leitura muito próximas, mas distantes da variedade

padrão.

De acordo com Alkmim (2005), sob o olhar da sociolinguística, o estabelecimento

da ortografia de uma língua escrita responde à necessidade de uma comunidade linguística, do

seu grupo letrado, de uniformizar a grafia40 e, para isso, pauta-se no princípio da

convencionalidade de uma relação estável entre som e letra. Há justificativa histórica para

essa convenção e, no caso da língua portuguesa, é o princípio histórico de sua origem latina.

Nesse sentido, usa-se “o ch para representar a evolução dos grupos consonantais latinos pl, cl,

fl. Por exemplo: pluvia-chuva; pleno-cheio; clave-chave [...]” (p. 21).

Para a autora, “a escrita e a oralidade navegam mares diferentes, pois atendem a

funções sociais também diferentes” (p. 24). Além disso, a relação fala e som é uma

“abstração” devido à diferença entre as realidades de fala dos falantes. Desse modo, todas as

comunidades têm equivalentes no plano linguístico e o próprio indivíduo falante tem sua fala

modificada em função do tema da conversação, do ambiente, do interlocutor, por exemplo. De

acontecimentos como esses, surgem expressões organizadoras como: dialeto regional ou

variedade regional: dialetos (ou variedades) baiano, gaúcho, carioca, curitibano; dialeto

social ou variedade social: grupos sociais, grupos etários, diferentes ocupações (dialeto das

classes altas, dos adolescentes, dos caminhoneiros); variedade estilística: registro formal,

culto, coloquial, familiar.

Entretanto, existe uma determinada variedade do português brasileiro escrito e

falado chamado de língua culta (língua padrão) praticada pelos grupos sociais de maior

prestígio e poder em que são veiculados os conteúdos sócio-culturais valorizados. Alkmim

reitera que a norma culta não é adquirida no convívio social, mas resulta da instrução formal,

sendo responsabilidade da escola levar os alunos a essa variedade linguística, sem esquecer a

origem social e regional desses alunos.

40 As primeiras regras de ortografia na língua portuguesa datam de 1574 e 1576 e do português brasileiro foi o vocabulário ortográfico de 1943 (ALKMIM, 2009, p. 20). Em 1990, foi retomado um acordo Brasil-Portugal que preconiza a adoção de uma ortografia comum, unificando e simplificando a grafia em países lusofônicos. Em 2008, foram assinadas, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, as mudanças ortográficas da língua portuguesa no país, que passaram a ser implantadas em janeiro de 2009.

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Não se trata de ensinar uma variedade “neutra”, um instrumento de comunicação, oral ou escrito, considerado apenas em suas características formais - pronúncia, léxico, regras gramaticais, grafia. Muito mais do que isso, trata-se de fazer com que os alunos aceitem adquirir uma variedade linguística que, em princípio, contrasta com a variedade linguística aprendida e utilizada na experiência cotidiana (ALKMIM, 2009, p. 45).

A relevância da presença do estudo de Alkmim nesta tese é a de refletir sobre

como o professor pode passar a perceber que a fala de uma criança conta mais do que ela quer

dizer e se estabelece para o outro como informações de onde ela vem, como vive e o que é

privilegiado como conhecimento e uso social de leitura e escrita no interior de sua

família/grupo.

Ainda de acordo com Alkmim (baseando-se nos estudos de Labov41, 1964), na

realidade brasileira, há diferenças marcantes entre a norma culta (oral e escrita) e algumas

variedades regionais e sociais (oral e escrita) como, por exemplo: ditongos nasais

transformados em ão e am: órfão/órfo, Estevam/Estevo; terminados com em: coragem/corage;

ditongos orais como io e ia: relógio/relojo, notícia/notiça; ditongos orais como al e el:

coronel/coroné, jornal/jorná; grupos consonantais: plano/prano, blusa/brusa; consoante palatal

como lh: velha/véia, palha/paia; proparoxítona: fósforo/fosfo, córrego/corgo; consoante [ñ]

escrita como nh: caminho/camim, bonitinho/bonitim; léxico: uso de forma arcaica como:

preguntar, despois; características gramaticais: dupla negação: eu nem não fui, ninguém não

quis; concordância nominal e verbal de número: as pessoas fugiram de lá/As pessoa

fugiu/fugiro de lá; construções relativas: a casa em que nasci/ a casa que nasci nela, O homem

que encontrei/ O homem que encontrei com ele.

Entretanto, as análises da escrita não se baseiam apenas nos fenômenos

linguísticos descritos a partir da variedade linguística, mas também a partir da própria língua

do português brasileiro, conforme nos apresenta Possenti (op. cit.) apoiando-se, para isso, no

estudo de Câmara42 (1957). Essas descrições desvalorizam a aleatoriedade como explicação

para os erros cometidos pelos alunos, mostrando que esses erros são “determinadas por

fatores históricos, sociais e políticos” (p. 16).

41 LABOV, W. (1964) Estágios na aquisição do inglês standart. In: FONSECA, M. E. V. e NEVES, M. F. (orgs). Sociolingüística. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974. 42 CÂMARA, JR. J. M. Erros de escolares como sintomas de mudanças no português do Rio de Janeiro In: Dispersos. Rio de Janeiro: FGV, 1957.

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Dentre esses fenômenos linguísticos, têm-se ocorrências como: em sílabas átonas,

a tendência de oposição entre “e/i”, como no caso de “denti/dente” (dado 2), e entre “o/u” se

anular em favor de [i] e de [u], o que explica também a ocorrência de, por exemplo, mininu e

curuja; redução de en- a in-, como insolarados e imbarcação; ausência de contraste entre

[ow] e [o], como loro (louro); ocorrência da neutralização do [l] e [w], como em autas (altas),

causa (calça); ditongação da vogal diante de consoante fricativa treis (três), mais (mas -

conjunção), mais (mais - soma); desaparecimento do r final como está (estar). Além desses

casos, deve-se citar ainda a confusão entre uma consoante surda intervocálica com uma

consoante sonora (possível porque as vogais são sonoras), o que explica porque, em muitos

casos, apesar de a criança não ter problema algum de fala, pode ocasionalmente escrever trejo

(trecho), sigue-sague (ziguezague). Já para a escrita de fazenta (fazenda), pentidos (pendidos),

taqueles (daqueles), a explicação seria a presença da consoante forte depois de nasal.

Ainda segundo Possenti, há outras possibilidades que explicam a ocorrência de

erros que se baseiam na busca que o aluno faz, por vezes, de uma relação integral entre língua

escrita e língua falada: no português brasileiro, é possível, na fala, fazer o acréscimo de uma

vogal em sílabas que terminam em consoante: adivogado (advogado), opição (opção), áfita

por (afta); a separação ou não de certas partículas (porventura/de repente; em cima/embaixo)

ou no caso de super mercado/supermercado do dado 1. O autor considera como “erros”

normais e previsíveis no processo de aprendizado da escrita os seguintes acontecimentos:

“letras que faltam, letras que sobram, letras trocadas, palavras que se separam ou se juntam,

acentos de mais ou de menos, letras invertidas, em espelho” (p. 17).

Não é plausível e nem é meu objetivo no espaço deste capítulo apresentar todas as

possibilidades de descrições existentes para as questões ortográficas, morfológicas e

gramaticais presentes na materialidade de escrita de um sujeito e encontradas na bibliografia43

dos autores consultados; no entanto, se é importante saber que há possibilidades de reflexão

diante do erro, mais importante é assegurar mediações com esse sujeito/aluno que

possibilitem “o esclarecimento da natureza do erro e sua eliminação progressiva”

(POSSENTI, 2005, p. 37).

43 O fascículo Aprender a escrever (re)escrevendo, de Sírio Possenti (2005), faz parte de uma coleção do Centro de Formação Continuada de Professores do Instituto de Estudos da Linguagem – CEFIEL - e pode ser encontrado no endereço: http://www.iel.Unicamp.br/cefiel/imagens/cursos/12.pdf Acesso: maio 2010.

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Estive me referindo, no início deste capítulo, ao reconhecimento que faço quanto

à singularidade dos trajetos escolares de crianças que estão iniciando sua escolaridade e de

jovens que a estão terminando. Vimos a semelhança da escrita nos dados expostos e ouso

dizer que a criança do dado 1, MV, aparentemente, tem chances de chegar com melhores

condições na 7ª série do que DS (do dado 4) teve44. O que marca a possibilidade de diferença

de percursos me parece que está na consciência que cada criança constrói mediada pelo outro.

A consciência, para Vygotsky (2004), como já vimos, é sempre consciência

socialmente mediada de alguma coisa que inicialmente se dá na relação com o meio e, depois,

na relação consigo mesmo. Nesse sentido, a consciência supõe um deslocamento do sujeito

para que uma reflexão seja possível e o uso das formas complexas de escrita contribui para

isso, provocando uma transformação qualitativa nas funções psicológicas superiores, o que

amplia as possibilidades de compreender e participar da sociedade em que se vive.

Vimos que o domínio da fala padrão, da leitura e escrita (por uma

criança/jovem/adulto) está subordinado à vontade política de grupos de prestígio e poder em

que se veiculam os conteúdos sócio-culturais valorizados (ALKMIM, op. cit.). E, para aqueles

que conseguem esses domínios, estes se constituem como sua possibilidade de mudança

dentro do meio social em que vivem e de expansão de participação social, política e

econômica. Da mesma maneira, a falta desses domínios (de fala, leitura e escrita) como

possibilidade de transformação de consciência e de realidade afeta a identidade do sujeito e

interfere negativamente na sua evolução sócio-cultural.

2.3 Sujeitos, Escola e Diagnósticos

Nos tópicos anteriores, a materialidade da escrita se constituiu como lugar de

visibilidade do trabalho do sujeito, dando mostras de como ele se relaciona com a linguagem

e de como a qualidade de mediação interfere nos processos de leitura e de escrita. Porém,

desde as últimas décadas, nota-se um movimento das famílias e das escolas em buscar as

causas dos problemas de leitura e escrita fora de sua materialidade e dentro dos critérios

médicos e de avaliações específicas (como a de processamento auditivo45, por exemplo)

44 DS abandonou os estudos nesse mesmo ano de 2008 porque sua escola comunicou-lhe que não o aprovaria para a 8ª série. No final da 7ª série, ele estava animado em cursar a série seguinte, porque receberia o diploma e poderia, então, parar de estudar e procurar um emprego. Quando DS completou 17 anos, iniciou um supletivo correspondente à 5ª série, junto com sua mãe, que voltou a estudar. 45 Alteração do Processamento Auditivo é uma avaliação do processamento auditivo central de um sujeito e é também uma modalidade de terapia fonoaudiológica. Nela são avaliados, por exemplo: dificuldade de

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utilizados por diferentes profissionais (neurologistas, pediatras, psiquiatras, psicólogos,

fonoaudiólogos, psicopedagogos) que diagnosticam os problemas escolares como sintomas de

diferentes patologias.

Como vimos neste capítulo, a partir da escrita de diferentes sujeitos, o termo

“dificuldades de escrita” se expande para questões que são internas e externas à materialidade

da produção escrita. Como questões internas, considero aquelas que caracterizam a escrita

pela presença de erros gramaticais ou de erros ortográficos como uso inadequado de letras na

correspondência som/letra, omissão de letras, sílabas ou palavras e pontuação. Essas

características também estão presentes nos diagnósticos médicos de Transtorno da Expressão

Escrita e Dificuldade de Aprendizagem ou Transtorno de Aprendizagem (todas classificadas

sob o código F81.8/CID-10, 315.2/DSM-IV)46, e no distúrbio ou transtorno de aprendizagem

chamado de Dislexia pela Associação Brasileira de Dislexia47 (ABD).

Dentre as questões externas, considero aquelas que incidem no sujeito com

dificuldade de leitura e escrita: atenção reduzida, dificuldade de memorização, desmotivação,

dificuldade de organização, dificuldade para compreender textos escritos, dificuldade para ler,

características comuns em diagnósticos como o de Transtorno de Déficit de Atenção com ou

sem Hiperatividade (F.90/CID-1048, 314.01/DSM-IV), Distúrbio ou Transtorno de

memorização; erros de sintaxe na fala; tempo de atenção reduzido; dificuldade em seguir ordens, inversões de letras; dificuldade em compreender o que é lido; hiperatividade; alterações na escrita, leitura, gramática e ortografia. Disponível no endereço eletrônico: www.brasilfonoaudiologia.com.br/Processamento%20auditivo Acesso: out. 2008. 46 CID-10 e DSM-IV são manuais médicos. CID-10: Classificação Estatística Internacional de Doenças (10ª revisão, 1992/2006)/Organização Mundial de Saúde. DSM-IV (4ª revisão, 1994/2000): Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais/Associação Americana de Psiquiatria (APA). Esses manuais exibem uma classificação nosológica de doenças (uma grande variedade de sinais, sintomas etc) agrupadas em diferentes categorias. No CID-10, a categoria Transtornos Escolares inclui transtorno específico de leitura, de soletração, habilidade em aritmética, habilidades escolares, entre outras. No DSM-IV, a categoria Transtorno de Apredizagem inclui transtorno de leitura, de expressão escrita, de matemática. A nomenclatura “Dislexia” está incluída como sintoma desse último transtorno, mas não existe como classificação. Os referidos manuais são encontrados no endereço: www.datasus.gov.br/cid/10/v2008/cid10.htm Acesso: 20 jan. 2006. 47 A ABD, criada em 1983, está disponível no endereço: www.dislexia.org.br Acesso: ago. 2006. 48 O TDAH (CID-10) está na categoria Distúrbios da atividade e da atenção, que inclui também a Síndrome de Déficit da Atenção com Hiperatividade e o Transtorno de Hiperatividade e Déficit da Atenção. No DSM-IV, esse transtorno se subdivide em Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade, tipo combinado, Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade, tipo predominantemente desatento, Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade, tipo predominantemente hiperativo-impulsivo.

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Aprendizagem (já mencionado), Alteração do Processamento Auditivo e na descrição do

TDAH da Associação Brasileira do Déficit de Atenção49 (ABDA).

Diferentes profissionais de áreas distintas vêm estudando, nas últimas décadas, o

excesso da realização de diagnósticos na área escolar (COLLARES e MOYSÉS, 1986, 1996;

COUDRY e MAYRINK-SABINSON, 1985; COUDRY e SCARPA, 1991; COUDRY, 1987,

2005, 2009) e a medicalização dos problemas de leitura e escrita (COLLARES e MOYSÉS,

1997, 2009; LIMA, 2005). Tais estudos, no entanto, não negam a existência de reais

portadores dessas patologias.

No que segue, irei me concentrar brevemente nos três diagnósticos de ocorrência

mais comuns - Distúrbio de Aprendizagem (DA), Dislexia e Transtorno e Déficit de Atenção

(com ou sem) Hiperatividade (TDAH) - e no uso de medicação, especialmente, por crianças

portadoras das patologias dos dois últimos diagnósticos.

O termo Distúrbio de Aprendizagem tem diferentes significados em diferentes

áreas, cujos profissionais atuam com crianças. Quanto à diversidade de nomenclatura, Rotta

(2006) considera que o termo Transtorno ou Distúrbio de Aprendizagem implica a presença

de uma lesão ou desordem orgânica, enquanto que Déficit de Aprendizagem sugere um atraso

em relação àquilo que a criança deveria apresentar em determinada idade.

Por “Dificuldade de Aprendizagem”, entende-se a dificuldade específica que uma

criança pode apresentar diante de um determinado saber, como, por exemplo, aprender a

contar ou aprender um certo conceito; mais recentemente, o termo “Discapacidade” (com

sentido similar à falta de capacidade) tem sido referido notadamente na psicopedagogia para

discriminar uma determinada dificuldade da criança. As diferenças estruturantes dos termos

aqui apontados são resultantes das diferentes perspectivas que representam (biológica,

psíquica, cognitiva) e interferem, certamente, na realização dessa classe de diagnóstico.

Para o diagnóstico de Distúrbio de Aprendizagem, sob o nome de Transtorno de

Aprendizagem (DSM-IV e CID-10), chega-se ao indicador de 2 a 10% da população, mas não

foi possível balizar um índice propriamente dito devido às diferentes nomenclaturas.

O termo “Dislexia” já aparecia na medicina em 1872, com Berlim, e em 1896,

com o neurologista Morgan, na publicação do caso de um menino com inteligência normal,

mas incapaz de ler, fato descrito como “cegueira verbal”.

49 A ABDA, criada em 1999, está disponível em: www.tdah.org.br. Acesso: jul. 2006.

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A dislexia50 obteve uma extensa variedade de descrições e, de maneira geral, é

definida pela Associação Brasileira de Dislexia (ABD), inspirada no comitê de Dislexia da

Inglaterra, como um distúrbio ou transtorno de aprendizagem na área da leitura, escrita e

soletração a despeito de inteligência média ou acima da média e dos métodos de ensino

convencionais. A literatura específica traz uma infinidade de definições e descrições de

diferentes tipos de Dislexia: de evolução, adquirida, visual, auditiva, fonética, fonológica, de

desenvolvimento, superficial, profunda.

Topczewski (2005) reúne três características para a Dislexia: falhas na

discriminação auditiva, o que incide na relação som e letra; falhas na discriminação visual, o

que resulta em inversões, rotações e confusões das letras; e a combinação dessas duas

anteriores.

Entretanto, quase sempre, a definição de Dislexia é generalista. Nesses termos, a

Dislexia de evolução está relacionada com a imaturidade neurológica da criança, que

apresenta, em função disso, de forma transitória, dificuldades no início de seu processo de

leitura e de escrita. A dislexia do tipo adquirida é descrita como um problema que afeta a

aquisição da leitura e escrita e está associada à presença de uma lesão cerebral, o que a coloca

como uma questão neurológica.

Os índices apontados como incidência do diagnóstico de Dislexia na literatura em

relação à população em idade escolar são: 0,4%, segundo DSM-IV-TR (2000) (sob outra

denominação); 17%, de acordo com a Associação Brasileira de Dislexia (2009) e 25%,

conforme Cappovilla (2002). O estudo de Silva (2004), realizado no sul do Brasil com alunos

de 3ª série de ensino fundamental, indica a prevalência de 7,4% para as meninas e 19% para

os meninos, estabelecendo uma relação de 2,4 meninos para cada menina. Portanto, a variação

constatada na incidência da Dislexia é de 0,4% a 25%.

Como se vê “Dislexia” é um termo de difícil definição e, no CCazinho, as

reflexões realizadas a partir da materialidade da escrita de crianças diagnosticadas (por

diferentes profissionais) como disléxicas, resultaram, como apontei no capítulo 1, no

esvaziamento desse termo nas práticas ali assumidas.

Em relação ao Transtorno do Déficit de Atenção, no ano de 1947, os médicos

neurologistas Strauss e Lehtinen publicaram um estudo sobre crianças que se apresentavam

com retardo mental, hiperatividade e dificuldade em manter a atenção. Esse conjunto de sinais

50 Os primeiros estudos no Brasil sobre Dislexia foram realizados por Cacilda Cuba dos Santos (1974/1975).

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passou a ser conhecido, na época, com o nome de “Síndrome de Lesão Cerebral Mínima”.

Esse estudo se apoiava em outro feito anteriormente por Strauss, na década de 1910, que

considerava a existência de uma pequena alteração nas funções neurológicas que

comprometiam a atenção e, por consequência, a aprendizagem.

Em 1962, Clement e Peters, a partir de uma descrição próxima desta última,

chegaram à nomenclatura de “Disfunção Cerebral Mínima” (DCM), por considerar que nem

sempre era encontrada uma lesão, mas um funcionamento cerebral alterado. Durante toda a

década de 1960 e 1970, estudos de crianças diagnosticadas com DCM realizados nos Estados

Unidos e Europa cada vez mais destacaram a inteligência normal, a desatenção, a

hiperatividade e os leves problemas de coordenação motora fina como critérios da presença da

referida patologia.

No início da década de 1980, a DCM teve o seu nome alterado para “Déficit de

Atenção”, o que, em 1983, foi modificado mais uma vez para “Transtorno do Déficit de

Atenção”, podendo ser acompanhada ou não do sintoma de Hiperatividade. Foi esse o nome

incorporado ao DSM/APA. Em 1993, essa patologia foi incluída na CID/OMS na categoria

dos “Transtornos Hipercinéticos”.

Na descrição do TDAH, presente em ambos os manuais aqui citados, há a

observação de que essa patologia/transtorno está presente na criança nos primeiros cinco anos

de vida. Não se trata, portanto, de um problema que começa na criança quando ela entra na

escola, embora essa associação seja comumente feita.

O Transtorno do Déficit de Atenção51 com ou sem Hiperatividade, tanto na

indicação do DSM-IV-TR (2000) quanto na da Associação Brasileira do Déficit de Atenção,

apresenta incidência de 3 a 5% da população em idade escolar. Guardiola et al. (1998)

indicam a variação entre 3 a 10% para essa mesma população.

Tanto para o TDAH quanto para a Dislexia, consideram-se causas de ordem

genética e hereditária, o que se evidencia pela presença de outras pessoas com esses

problemas na família. Não há, entretanto, uma relação segura de presença de lesão ou

alteração nos genes. Essa concepção despreza as questões emocionais e sociais envolvidas na

dinâmica familiar.

51 É importante lembrar que esse diagnóstico, mais do que os outros citados aqui, guarda a particularidade de se apresentar associado a outros transtornos como, por exemplo, Transtorno Bipolar, Síndrome Frontal, Deficiência Mental Profunda.

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Diante do diagnóstico de TDAH “puro” ou do comportamento hiperativo

associado à Dislexia, perde-se de vista que a atenção é construída socialmente a partir da

experiência da criança em diversos ambientes sociais, com regras e convenções próprias, que

lhe são transmitidas, especialmente por ocasião de sua entrada na escola, pela família e pela

instituição escolar. Fora dessa consideração, a atenção passa a ser vista unicamente como uma

marca orgânica ou de personalidade da criança e, por isso, não passível de mudança.

É importante, por isso, nesse momento, retomar Vygotsky, que, em seus estudos

(1926), considera que a atitude de atenção deve ser entendida como um sistema de reações de

atitude, ou seja, reações preparatórias do organismo que colocam o corpo na devida posição e

no devido estado que o preparam para a atividade a ser desenvolvida. Para isso, precisam ser

considerados: a existência do estímulo do impulso (impressão interna ou externa, uma palavra

não pronunciada, um desejo, uma emoção); a elaboração central desse impulso, ou seja, a

forma assumida por essas reações na relação com o sistema nervoso central; e o efeito

responsivo. Todas as reações de atitudes e a sua medida (mais intensa, menos intensa) variam

de acordo com a singularidade do sujeito em função do sexo, idade, habilidades e

experiências emocionais. Vygotsky explica que “[...] quanto maior é a força da atenção tanto

maior é força da distração” (p. 158), ou seja, para este autor, ser atento a alguma coisa

pressupõe, necessariamente, ser distraído em relação a tudo o mais “[...] do ponto de vista

científico, será mais correto falar não na educação da atenção e da luta com a distração, mas

de uma educação correta e simultânea de ambas” (p.158).

Os estudos vygotskyanos sobre atenção mostram que, do ponto de vista biológico,

menos de 0,01% das reações de atitude de atenção se mantêm inatas, todas as demais são

modificadas pela adaptação do homem ao meio. A atenção é a mais importante função de

proteção do homem e, para isso, desenvolve uma complexidade incomum devido a suas

participações nas mais diferentes atividades humanas. Surge, por isso, a necessidade, também

por parte da criança/jovem, da administração social e culturalmente construída do próprio

organismo sobre seu comportamento de atenção nos diferentes jogos sociais de que participa,

seja para assistir à televisão, para assistir à aula, para esperar sua vez em uma longa fila etc.

Porém, a partir do que discutimos, percebe-se que, nos diagnósticos médicos, não

são nas relações sociais que se buscam as causas do transtorno de atenção, mas apenas no

plano orgânico. Sendo assim referidas como de ordem neurológica: assimetria de neurônios

no plano temporal e ectopisas neuronais em córtex, tálamo e cerebelo (GALABURDA, 1993,

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2006) e alterações nas áreas occipital, temporal, parietal e cerebelo (SEGENREICH e

MATTOS, 2007), que também apontam esses achados neuroanatômicos no Autismo Infantil.

Entretanto, nenhuma dessas causas são conclusivas para o TDAH.

Moysés e Collares (2009), estudiosas dessas patologias a partir dos campos da

medicina e da educação, avançaram em relação a essas descrições e consideram outros

estudos que demonstram a falta de sustentabilidade nas causas/critérios/sintomas como

indicadores dos diagnósticos de TDAH e Dislexia: critérios vagos; ausência de qualquer

evidência laboratorial, por imagem e por eletroencefalograma, das causas desses transtornos;

exames realizados em cérebros post-mortem de portadores de TDAH e de Dislexia que

mostraram as mesmas evidências encontradas na população normal. Além disso, as autoras

refutam os estudos de Galaburda et al. relativos à ausência da assimetria hemisférica do plano

temporal (onde ocorre o processamento da fala), porque essa afirmação se baseou em uma

amostragem de apenas cinco cérebros humanos, insuficiente para a generalização pretendida.

Contudo um acontecimento de ordem médica de origem social vem se dando

paralelamente à realidade do aumento de diagnósticos de TDAH e Dislexia. Trata-se do

crescente consumo no Brasil da substância metilfenidato52 (MPH), com o nome comercial de

Ritalina (Novartis) e Concerta (Janssen-Cilag). A venda desses medicamentos passou de 71

mil caixas em 2000 para 731 mil caixas em 2004, estimando-se que, entre 2004 e 2008 (dados

da Agência Nacional de Vigilância Sanitária/ANVISA, 2008), houve um aumento de 930%

no uso desse produto, ministrado primariamente para regular a atenção de crianças em idade

escolar. Em função disso, estive em contato com a ANVISA, em março de 2010, buscando

mais detalhes sobre o uso desses fármacos. Essa agência me indicou os índices de venda

desses medicamentos nos anos de 2008 e 2009, no entanto, não me autorizou a fazer uso

desses dados nesta tese.

Para nortear mais detalhadamente o alcance e o risco do uso indiscriminado

desses medicamentos, então, remeto-me novamente aos estudos de Moysés e Collares (2009),

que fizeram uma pesquisa minuciosa quanto ao uso desse medicamento em diferentes países e

no Brasil. O objetivo das autoras com essa pesquisa é demonstrar que a utilização desse

remédio não é segura e que o que está na base da realização dos diagnósticos é o lucro dos

laboratórios.

52 A diferença entre eles é que o Concerta age no corpo por mais tempo (até 12 horas), por isso, tem custo mais alto, enquanto o Ritalina tem efeito mais rápido (entre 4 a 6 horas) e custo mais baixo.

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As autoras apontam que 30% do lucro da indústria farmacêutica no Brasil - que

em 2008 foi de R$ 28 bilhões - são destinados a oferta de jantares, brindes, congressos etc.

para médicos que prescrevem os medicamentos em questão (p. 27). Elas demonstram também

o aumento do consumo de MPH em vários países, como Espanha e Portugal, sendo maior nos

Estados Unidos. No Brasil, em 2008, foram vendidas 1.147.000 caixas (Ritalina e Concerta),

o que soma cerca de 88 milhões de reais com a compra de metilfenidato53 (p. 35). Quanto ao

mecanismo de ação da substância MPH, as autoras54 relatam que, segundo os estudos55 de

Chatterjee (2009), há um aumento do número de morte súbita em crianças e adolescentes

usuários desse medicamento (p. 31). Além disso, sua ação é similar à da cocaína (p. 29) e

[...] 30 a 50% dos jovens em tratamento em clínicas para drogaditos relatam o uso abusivo de Ritalina®, que tem se tornado droga de escolha para adolescentes, por ser relativamente barata, acessível e, principalmente, por ser percebida como segura, uma vez que é prescrita por médicos. Confrontados com esses dados, os autores que defendem a existência dessa entidade e necessidade de tratamento, pretendem que a tendência à drogadição e comportamento delinqüente seriam sinais de TDAH. A Ritalina®, em altas doses, ou se injetada ou inalada, é tão aditiva quanto à cocaína. Conforme o cérebro se adapta à presença contínua da droga, afeta áreas cerebrais responsáveis por memória, aprendizagem e julgamentos; essas regiões começam a se alterar fisicamente. A procura por droga torna-se quase reflexa, mecanismo pelo qual um usuário de droga torna-se drogadito. (COLLARES e MOYSÉS, 2009, p. 34 e 35)

Entretanto a proliferação de diagnósticos em crianças não se restringe à área

escolar: na Austrália, houve um grande acréscimo de diagnóstico de depressão em crianças

(CALLIGARIS, 2007); nos Estados Unidos, entre 1994 e 2003, houve um aumento em 40

vezes no número de diagnósticos de Transtorno Bipolar, o que o classifica como uma doença

comum na infância, especialmente entre os meninos, disparando o uso infantil de

psicofármacos (HORWITZ e WAKEFIELD, 2007). A esse respeito, David Goldberg (2009),

53 As autoras creditam esses dados ao Instituto de Defesa dos Usuários de Medicamentos/IDUM que se encontram disponíveis em www.idum.org.br. 54 Collares e Moysés declaram que buscaram trabalhos sobre esse tema nas seguintes bases de dados: MEDLINE, PsycINFO, EMBASE, AMED, ISI Web of Science, ISI Web of Knowledge, Dissertações, Current Controlled Trials meta-register (mRCT), CenterWatch, NHS, National Research Register e clinicaltrials.gov. Além disto, foram contatados indústrias farmacêuticas e especialistas na área. A relação TDAH e drogadição pode ser encontrada no seguinte endereço: http://learn.genetics.utah.edu/content/addiction/issues/ritalin.html Acessado por elas em 03 abr. 2009. 55 Os estudos de Chatterjee citados pelas autoras são: A medical view of potential adverse effects. Nature 29; 457 (7229): 532-3, 2009.

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referência mundial na área de Psiquiatria, propõe mudanças no DSM56 e no CID. Sua opinião

é a de que se criou um excesso de nomenclatura para doenças, o que ele considera uma

estupidez, sendo necessário que a psiquiatria abandone o hábito de subdividir transtornos

como depressão e ansiedade em uma infinidade de subtipos e evitar listar comportamentos

normais como sintomas de doenças.

Diante do panorama das incidências de tais diagnósticos, temos que considerar

suas condições de realização que, via de regra, ocorre pelo relato de alguém (pais,

responsável, professor) sobre os processos de leitura e escrita e atitude de atenção ou

desatenção da criança. Pouco ou nada se fala a respeito de como é sua escola, família ou

ainda, como aponta Ohlweiler (2006), sobre o fato de a criança ter ou não garantida a

satisfação de suas necessidades de atenção afetiva, alimentação e saúde. As questões

emocionais presentes como critérios desses diagnósticos remetem quase sempre à frustração

da criança em não ser bom aluno.

O que acaba de ser descrito não parece ser um fenômeno isolado, parece que se

trata de um fenômeno mundial na busca de, por um lado, uma causa no corpo e, por outro, a

invenção de um remédio lucrativo que, supostamente, evita as dores inerentes à condição

humana.

56 O novo DSM, que valerá a partir de 2013, põe a birra infantil dentro da classificação de “Distúrbios” e, dentre os transtornos, inclui novas síndromes como “Síndrome de Risco de Psicose”, “Distúrbio de Desregulação de Temperamento”. Agência de notícias, Folha de São Paulo, C7, 28 de julho de 2010.

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3. Uma menina caminha... E caminhando chega no muro E ali logo em frente A esperar pela gente O futuro está... E o futuro é uma astronave Que tentamos pilotar Não tem tempo, nem piedade Nem tem hora de chegar Sem pedir licença Muda a nossa vida E depois convida A rir ou chorar... Nessa estrada não nos cabe Conhecer ou ver o que virá O fim dela ninguém sabe Bem ao certo onde vai dar

(Trecho da música “Aquarela” de Toquinho/Vinicius de Moraes/G. Morra/M. Fabrizio)

No estudo aqui apresentado, compreende-se a instituição Escola como

responsável por ensinar a ler e a escrever e dar a educação formal, cujas “ações correspondem

a dois objetivos principais: promover a apropriação pelos alunos dos conhecimentos

socialmente elaborados pela humanidade e formar os alunos para o exercício da cidadania”

(SOUZA, 2009, p. 135).

No ambiente do CCazinho, nos encontros com crianças, cuidadores e familiares, a

noção de leitura e escrita está para além dos limites físicos da escola, entende-se que são

processos históricos e sociais (VYGOTSKY, 1926) presentes na vida da criança “muito antes

da primeira vez em que o professor coloca um lápis na sua mão e lhe mostra como formar

letras” (LURIA, 1995, p. 143). De acordo com essa visão, busca-se, nesse centro, possibilitar

que crianças e familiares observem e percebam a função social que a leitura e a escrita têm na

vida cotidiana, e que sua prática não deve se resumir a acontecimentos na/da escola (ler livros,

escrever e resolver cálculos matemáticos, apenas para cumprir determinada tarefa escolar),

como eles próprios reconhecem.

Nesse contexto de valorização de leitura e de escrita, pretende-se fortalecer a

noção de escola como aquela que transmite conhecimentos formais e que se constitui como

um importante espaço coletivo de partilha de conhecimento e de relações em grupo.

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Entretanto, sempre que essas crianças/jovens são convidadas a falar sobre esse espaço,

demonstram resistência e preferem falar sobre o que assistem na televisão.

Essa é uma forte tendência no Brasil. E por quê?

Por diferentes razões, o povo brasileiro, na sua maioria, não frequenta programas

culturais como cinema, museu, exposição, peças de teatro e musicais, sendo a televisão o

entretenimento cultural, de baixo custo e de fácil acesso, presente em 93% dos lares

brasileiros (PNAD, 2006)57. Uma pesquisa privada sobre o hábito de brincar, realizada em 77

cidades no Brasil, em 2003, com meninos e meninas entre 6 e 12 anos (entrevistando 31,5

milhões de pais e 24,3 milhões de crianças), concluiu que crianças brasileiras são as que mais

vêem televisão em relação aos países participantes da pesquisa58: Estados Unidos, México,

Canadá, França, Alemanha, Itália, Espanha, Reino Unido e China. Diferentemente de crianças

de outras nacionalidades, as brasileiras consideram que ver televisão é brincar. Em

contrapartida, essa mesma pesquisa indica que apenas 14% dos pais brasileiros reconhecem

que partilhar com os filhos situações de brincar juntos é uma fonte de prazer.

Apesar de o tema “televisão” ser preferência nacional entre as crianças brasileiras,

é preocupante a resistência das crianças/jovens do CCazinho em falar de suas próprias escolas

e, na primeira sessão de março de 2009, esse assunto retornou no grupo como tema. Todos

foram convidados a falar sobre sua escola. E, mais uma vez, os relatos remetiam aos casos de

brigas entre os alunos, aos professores que gritam muito e, por fim, aos amigos. Nessa sessão,

o relato de LS foi o seguinte:

Igd: E você LS, o que conta sobre sua escola? LS: Nada, não tenho nada para contar... Igd: Nossa, mas você não acha nada da sua escola? LS: (rindo) Ah, acho... é grande, tem um monte de gente, tem um muro enorme e o sinal bate tão forte que todo mundo sai correndo. Minha escola parece um presídio. LS é a personagem deste capítulo. Assim a apresentação e análise de seus dados de

escrita serão permeadas pela sua biografia. O motivo desse estilo de apresentação é o de que

as práticas dos sujeitos são determinadas socialmente e, portanto, datadas historicamente, o

57 Disponível no endereço eletrônico: www.ibge.gov.br . Acesso: out. 2007. 58 A pesquisa foi realizada pelo Instituto IPSOS e está disponível no seguinte endereço eletrônico: http://veja.abril.com.br/210207/p_088.shtml. Acesso: abr. 2008.

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que se estende aos modos constituídos de ler/leitores, conforme os dizeres de Vóvio (2007),

que tomo a liberdade de estender também para a escrita na relação escrever/escreventes:

É no jogo social, em que sujeitos ocupam posições peculiares que se pode ascender a essa maneira de fazer e as significações dessas práticas. As práticas de leitura variam segundo o tempo, o lugar, os grupos sociais e as circunstâncias em que são realizadas, as condições de possibilidade, as modalidades e as significações e os efeitos que essas práticas podem ter para os envolvidos. (VÓVIO, 2007, p.78).

LS entrou no CCazinho em abril de 2005, com quase 9 anos, cursando a segunda

série do ensino fundamental pela segunda vez. Sendo uma criança miúda e muito magra,

aparentava ter menos idade.

Na ocasião da avaliação, a queixa apresentada por Dona L, avó que assume o lugar

de mãe de LS, foi a de que “Ela não sabe ler, nem escrever e fala errado”. Antes disso, LS

esteve em avaliação em novembro de 2004 no CEPRE59, que realizou nela uma avaliação de

processamento auditivo em março de 2005. A conclusão dessa avaliação foi a de “alteração de

memória para sons instrumentais e verbais; reconhecimento de sons verbais; alteração de

processamento auditivo do tipo decodificação e organização”. Exames audiométricos de 2003

e 2005 resultaram normais. Além disso, havia o diagnóstico médico de “distúrbio de

aprendizagem” (DA) e LS estava em acompanhamento psicológico no posto de saúde do

bairro em que mora.

Quem conta sobre LS é Dona L, que assumiu o papel de mãe no lugar da própria

filha, dependente química, de quem tirou a guarda de LS quando esta era ainda bebê e sofria

maus tratos. LS nasceu com sífilis60 e suspeita de neurofibromatose tipo 1 (NF1). A sífilis foi

tratada e quanto à NF1, LS foi mantida em observação com avaliação médica anual de seu

estado de saúde e, quando atingiu a puberdade, passou a apresentar os neurofibromas,

59 Centro de Estudo e Pesquisa em Reabilitação “Prof. Dr. Gabriel Porto” – CEPRE, vinculado ao curso de Fonoaudiologia da UNICAMP. 60 Sífilis (Lues) é uma doença sexualmente transmitida (bactéria treponema pallidum) que, em estágio mais avançado, pode provocar cegueira, paralisia, doenças cardíacas, neurológicas e até a morte. Neurofibromatose (NF) é uma doença genética e pode ser do tipo 1 e 2, sendo mais comum a do tipo 1. As manifestações variam, mas em todos os casos de NF1, há presença de manchas de cor café com leite espalhadas pelo corpo. Quando a criança atinge a puberdade, podem surgir alguns “altos” por baixo da pele, os neurofibromas (tumores associados aos nervos situados ao longo de todo o corpo, em locais como o sistema acústico ou na coluna vertebral, incidindo nos nervos que controlam os músculos de braços e pernas), outras manifestações incluem dificuldades de aprendizagem e problemas ósseos.

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confirmando assim a doença. Nesse contexto, a questão escolar pareceu ser o problema mais

simples enfrentado por ela desde que nasceu e conseguiu sobreviver

3.1 A copista

Se, como conta Dona L, LS ainda não escreve e nem lê, como ela se relaciona com

as coisas da escola nesse começo de sua vida escolar?

Dado 1: Em maio de 2005, LS, cursando a 2ª série do ensino fundamental, fez a seguinte atividade:

Copiando tudo

Análise: LS copia, no caderno, a instrução escrita na lousa e o texto do livro, ou seja, trata-se

de diferentes gêneros de escrita e, ainda assim, ela se mantém fiel ao traçado de escrita

original dos dois modelos: reproduz o traçado da escrita manuscrita da instrução dada pela

professora e o de forma decorrente da impressão tipográfica do texto do livro.

LS copia: Consultando seu livro, escreva o trecho da carta que Pero Vaz de Caminha

escreveu para Pedro Alvares Cabral contando seu primeiro encontro com os índios tupi

guaranis aqui no Brasil em 1500.

Neste trecho da cópia, LS refaz o traçado da letra “m” na palavra “com” e um leitor

desavisado de que se trata de uma cópia poderia olhar para essa atitude de LS como um ato de

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refacção, no sentido de Abaurre (1997), conceito referido no cap. 2, mas não é o caso. Na

refacção, entende-se que há um distanciamento do sujeito em relação à escrita com sentido.

No caso, LS aparentemente busca corrigir um traço da letra que não condiz com a forma que

confere visualmente.

Depois de melhorar o traçado do “m”, LS segue escrevendo na linha seguinte, sendo que

ainda havia espaço para a frase naquela mesma linha, demonstrando que o tempo gasto pela

correção pode ter interferido na sua atenção e coordenação viso-motora. Essa relação parece

possível porque esse foi o único episódio envolvendo inadequação em aproveitamento de

espaço da linha. Há uma ocorrência na quarta linha, quando LS escreve a palavra “Álvares”,

a qual caberia na linha 3, que me leva a pensar que LS não separa as palavras em sílabas e,

possivelmente, desenvolveu uma estratégia visual para fazer caber as palavras na linha

seguindo o modelo original. Aparentemente, para o copista, o que está no início e no final da

linha funcionam como marcadores importantes para que ele não se perca na sua tarefa de

reprodução de um modelo.

O cuidado que LS tem com o desenho das letras parece demonstrar sua preocupação com o

fato de que sua escrita será considerada por alguém. Provavelmente, ela espera o olhar da

professora e ele, de fato, ocorre: no final da cópia, há um “C”, de “Certo”, feito pela

professora e, no parágrafo que reproduz as palavras de Pero Vaz de Caminha, uma correção

na palavra “parrda”, cortando-se o “R” a mais com um traço. Estas são as marcas da presença

da professora na escrita de LS.

Em sua cópia, LS busca retratar fielmente as palavras, incluindo o acento, a pontuação, a

aberturas das aspas, pertencentes ao sistema ortográfico da escrita, mesmo que isso não se dê

o tempo todo: o acento é reproduzido na palavra “índio”, ainda que omitido em “Álvares”.

A seguir, LS copia: A feição deles é parrda, um tanto avermelhada, com bons rostos e bons

narizes, bem feitos. Percebe-se aqui que há ainda uma mistura de letras maiúsculas e

minúsculas, sendo que a letra “R” sempre aparece como maiúscula, indicando, talvez, a

dificuldade de LS em fazer a variação minúscula dessa letra, tal como faz, neste trecho, com

“A/a” e “E/e”. Pode-se inferir, portanto, que LS demonstra ter conhecimento de que aquilo

que vê escrito em minúsculo equivale ao que ela reproduz em caixa alta. Neste sentido, então,

ela não é apenas copista, pois demonstra fazer o reconhecimento da letra.

Seguindo com a cópia de LS: Andam nus, sem nenhuma cobertura. Não fazem o menor caso

de encobrir ou mostrar suas vezgonhas, e nisso têm tanta inocência como em mostra o rosto

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[...] deram-lhes comida pão e peixe cozido, doces, bolos, meie figos passdos. Não quisera

comer qoces nada disso, e, se alguma comer qoce spiam. Trouxeram-lhes vinho numa taça-

maio puseram naca. Não bebram. Apenas bochecharam e logo a lançaram fora [...] não

comem senão desse inhame, de que há muito aqi, e dessas sementes e frutos que a terra e as

arvores produzem.

Notam-se, nesse trecho, as omissões de algumas letras de palavras, como “bebram”, quando

omite o segundo “e”; “passdos”, quando omite o “a”; “qe”, ao invés de “que”; “spiam” no

lugar de “cuspiam”; além disso, os traçados de algumas letras, bem definidos anteriormente,

desestabilizam-se, como é o caso da letra “d”, que parece como “q” em “qoce/doce”. No

entanto, apesar das alterações descritas, pouquíssimas palavras, como “maio”, “meie”, “naca”,

mostraram-se irrecuperáveis quanto ao sentido. A maior preocupação de LS, na produção

apresentada, parece ser a de transpor as letras e os sinais gráficos para o caderno e segue fiel a

lei do espaço físico do papel, como em “quiseram”, que, para caber na mesma linha, tem o

“m” final omitido. Este recurso foi usado com mais frequência na última parte da cópia, o que

parece demonstrar que, no trecho final dessa longa cópia, LS entra em fadiga mental,

perdendo a qualidade de sua concentração e, consequentemente, sua atenção a detalhes, o que

no início não aconteceu.

Sabe-se que a cópia é uma prática recorrente nas escolas; por este motivo, abro

um espaço para reflexão sobre tal atividade.

3.2 A cópia como um equívoco

O que o ato de copiar representa para a relação da criança com a leitura e a escrita?

Para Freud, o ato de copiar

[...] consiste en una transposición de letras impresas a letras manuscritas. Esta transposición es posible porque aprendemos a leer, pero no a escribir textos impresos, en letra de imprenta común o en bastardilla, y no hace diferencia el que sean o no comprendidas las palabras que se leen (FREUD, 1891, p.106).

Freud descreve o exercício da cópia como lugar de transposição motora de letras,

o que é possível tanto com ou sem a leitura e compreensão de nenhuma das palavras copiadas.

Trata-se, portanto, de privilegiar na cópia um aspecto motor da escrita, o que exige do sujeito

um alto grau de concentração que, por si só, não provoca o desenvolvimento da leitura ou da

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escrita. Ainda para este autor toda escrita é cópia quando não há leitura e a complexidade da

escrita se instaura no ato de sua leitura.

Uma queixa comum de boa parte das crianças que frequentam o CCazinho é a de

que todos os dias têm cópia na escola e que elas ficam atrasadas em relação aos colegas de

sala, o que acaba gerando tensão porque a professora reclama e os demais alunos satirizam a

situação. Além disso, mesmo as crianças que ainda não escrevem, reconhecem a cópia como

atividade diária de sala de aula.

Por este motivo, a atividade da sessão de grupo do CCazinho do dia 29 de abril de

2008 foi para conhecer o que as crianças pensam sobre a cópia. A atividade proposta consistiu

em copiar no papel uma frase da lousa. Depois discutimos sobre as estratégias usadas por

cada um para copiar e se as crianças/jovens tinham lido/compreendido o que tinham acabado

de copiar.

Dentre as 12 crianças/jovens presentes, apenas uma fez a interpretação do sentido

da frase copiada. Os demais usaram diferentes estratégias para copiar: letra por letra,

segmentos de palavras mais extensos do que uma sílaba, duplas de sílabas, palavra inteira, de

duas em duas palavras. Duas crianças que não liam e nem escreviam copiaram corretamente a

frase toda e explicaram que era o mesmo que copiar um desenho.

Depois, foi apresentada também para a cópia uma palavra em russo e uma em

francês e todos, cuidadores e crianças, copiaram sem nenhum problema. Passamos, então, a

refletir sobre o que era mais difícil para cada um de nós no exercício da cópia e, a partir disso,

foi possível perceber que as crianças demonstraram dificuldades para diferenciar o que

chamamos de letras e palavras e alguns percebiam a importância do espaço em branco

separando as palavras. Em relação à cópia de palavras em russo e em francês, houve o

reconhecimento de que, quando não conhecemos o traçado motor das letras, podemos

demorar mais na realização da cópia. Outras percepções que ficaram evidentes foram o fato

de que há diferentes ritmos de copiar e que uma mesma letra é escrita de maneiras diferentes

por diferentes pessoas e até pela mesma pessoa, o que interfere no tempo gasto em seu

traçado.

Enquanto as crianças copiavam, nós, os cuidadores, cronometramos o tempo

gasto por cada uma. Observamos, entre crianças que leem e escrevem, uma variação entre 2

minutos e 30 segundos e 13 minutos e, entre crianças que não escrevem, a variação foi entre 6

e 11 minutos e 30 segundos. Com o objetivo de se buscar estratégias para diminuir o tempo

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gasto na cópia, dentre as crianças/jovens que escrevem, de modo a instrumentalizá-los para

dar conta de copiar mais rápido, focalizamos a observação e análise dos movimentos

(próprios e de outros) envolvidos no traçado motor das letras, na coordenação visual mão-

olho, na maneira de pegar o lápis, na postura do corpo, no manuseio do papel. Refletimos

juntos, ainda, sobre o fato de que copiar lendo é mais rápido do que copiar segmentos ou

sílabas, o que funcionou também como motivação para o acontecimento da leitura com

compreensão.

Considerando a cópia dessa perspectiva, o movimento motor da escrita, por si só,

não realiza a escrita com sentido, apenas melhora a condição motora para transpor letras de

forma em manuscrita, ajuda a sistematizar visualmente o desenho das letras, diminui o tempo

gasto pela criança na realização motora da escrita das palavras na cópia e na escrita

espontânea, ajuda a melhorar o contorno gráfico dos traços da letra, tornando-a legível para o

outro e para a própria criança. Isso tudo é necessário apenas no início do processo de escrita

porque facilita que a criança memorize e, posteriormente, automatize o conjunto de

movimentos necessários para fazer as curvas, retas e pontos presentes no traçado das letras.

Mas se é assim, por que a criança copia tanto na escola?

Estudo realizado em 2005 sobre as atividades em sala de aula61 de escola pública

de método construtivista verificou que, embora os professores soubessem que a cópia não

configura uma atividade de geração de conhecimento, na prática de muitos deles, essa

atividade é predominante: “[...] em dia de aula dupla alunos de 5ª série chegam a copiar ‘10

lousas’” (MELO et al., 2005). Os professores relatam que explicam a matéria enquanto os

alunos copiam. É comum que os alunos copiem da lousa o que pode ser encontrado em seu

próprio livro. As autoras do trabalho, entre outras análises, concluíram que, para dar conta de

sua jornada, o professor tem que buscar alternativas de ação que não sejam tão desgastantes e

a cópia serve bem a esse propósito.

Acrescento mais algumas considerações sobre a cópia. Ela cumpre a função de

encher o caderno do aluno de escrita e, muitas vezes, a partir dessa imagem de caderno

escrito, os pais inferem que os filhos escrevem de fato. Uma queixa muito comum de pais de

61 A leitura e escrita nas vozes dos futuros professores é um trabalho realizado, em 2005, pelas professoras da PUC-RJ Melo, Souza e Mello e Frangella sobre atividades em sala de aula. Disponível em: www.anped.org.br. Acesso: 8 maio 2008.

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crianças de diferentes idades que frequentam o CCazinho é: meu filho vai na escola e não

copia nada, o caderno dele é vazio. Quando os pais percebem a não correspondência entre o

caderno cheio de escrita e saber ler e escrever, eles não se conformam: mas ele copia tudo,

escreve tudo da lousa, como é que depois, sozinho, ele não escreve nada, nem lê nada?!!!

Do que foi exposto, parece possível afirmar que, na realidade de sala de aula, a

cópia ora se caracteriza como uma estratégia de controle do comportamento da classe, ora

como resposta aos pais.

LS é uma vítima, como tantas outras crianças, do equívoco que a cópia mal

dirigida pode acarretar, e nos primeiros anos escolares, todos os dias, semanas, meses, ela

segue copiando o desenho das letras da lousa e do livro para o caderno. LS atualiza a sua

imitação de escrita enquanto o sentido do que copia segue inexistente para ela. Para completar

esse quadro, ela é “beneficiada” pelo regime de progressão continuada e, no final de 2005, LS

foi aprovada para cursar a 3ª série em 2006.

No ano de 2006, LS segue copiando. Em dia de avaliação, assim como seus

colegas de classe, recebe a prova que precisa responder e, juntando todos os recursos de

conhecimento que tem, corresponde como aluna ao que se espera dela: responde as questões

não deixando nenhuma em branco.

Dado : Em março de 2006, LS fez uma prova.

Respondendo tudo

O que acontece no estado de fusão da água?

Resposta: Fora do seongisigqsfsinco eoisesati

O que acontece no estado de vaporização da água?

Resposta: Comdos De sia uieDieisfdes iesnõa

Análise: Essa é a escrita espontânea de LS e se mostra como uma justaposição aleatória de

letras traçadas como maiúsculas ou minúsculas em que não se reconhece sequer a presença do

padrão da estrutura silábica CV, sílaba canônica do português brasileiro. Estão presentes,

nessa produção, a pontuação, o uso do til e acentos, ou seja, o sistema suprassegmental da

escrita, assim como os espaços maiores ou menores entre um conjunto de letras. Percebem-se

também partes de palavras copiadas de outros textos: a expressão “Fora do” faz parte da

instrução de uma questão anterior, o mesmo se dá com a terminação da última palavra da

primeira linha “sati”.

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Se alguém olhasse para as produções escolares de LS, como um todo, saberia que ela não teria

condições, apesar do tanto que suas mãos trabalham com o lápis, de responder por escrito,

porque ela não lê e nem escreve. Nesse caso, entendo que a “prova” feita por LS é para a

escola um indício da existência real dessa aluna, já que não é vista como alguém com quem

possa ser partilhado algum tipo de conhecimento. Alguma coisa precisa dar prova da

existência de LS na estatística da educação que se importa em contar o número de crianças

brasileiras do ensino fundamental.

3.3 LS no CCazinho

Vimos que LS se constitui como uma copista e vimos também em que jogo social

e circunstância isso se deu. Se as análises realizadas a partir dos dados revelam o que LS faz,

a proposta agora é compreender o que esses mesmos dados dizem quanto ao que ela ainda não

faz.

Retomando o estudo de Freud (1891) mais uma vez, tem-se que, para que uma

criança fale, é preciso que um outro fale com ela e que este falar torne-se, a princípio, uma

possibilidade de repetição e depois de diferença62. E se, no caso da fala, há que se ter uma

filiação a uma determinada língua que orienta os gestos motores e vocais, no caso da escrita,

há também a exigência de um saber tecnológico, relativo aos sistemas visual e motor, do qual

a criança se apropria como um corpo que (re)produz letra (CANEPPELE, 2006).

Em relação à escrita, a criança também terá que se submeter a um trabalho

específico relativo ao funcionamento tecnológico da leitura e da escrita presente no contexto

histórico cultural de que faz parte.

Esse saber tecnológico pressupõe que a criança, tal qual fez em relação ao som da

fala, também consiga apagar o nome da letra para que o sentido possa acontecer na palavra.

Quando isso acontece, a criança reconhece que o sentido do que é lido/escrito coincide com o

que está presente em sua fala e na do outro, enfim, na língua.

Voltando a LS, observa-se, então, que ela mantém-se fora da ideia de letra como

representação. Não consegue atribuir ao conjunto de letras um sentido, como sendo a ponte

62 Por repetição da criança, entende-se o ato motor de repetir e o fato de a criança manter, para uma determinada palavra, o sentido dado pelo outro. Já a diferença seria a ampliação desse sentido pela criança como consequência da singularidade de sua experiência de vida.

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que une a sua fala e sua escrita. São letras silenciosas, sem voz, congeladas como desenhos na

reprodução de traçados motores aleatórios.

LS, por um lado, não entra na tecnologia que o processo de leitura e escrita exige,

por outro, não se aproxima da ideia de que a escrita traz, no seu acontecimento como

linguagem, marcas de uma função social e cultural capaz de suprir uma necessidade na

pressuposição de um motivo, como nos explica Vygotsky (1934/1987).

3.4 LS em grupo e com seus cuidadores

O acompanhamento longitudinal63 de LS se inicia com Imc. A proposta inicial de

Imc é visitar com LS diferentes lugares da Unicamp (cantina, ruas, prédios de institutos etc)

para observar o que há de escrito no entorno do IEL. Nesses lugares em que há diferentes

tipos de escrita (cartazes, murais, placas etc), o propósito é levá-la a perceber na escrita sua

função social. Dada a presença constante da cópia em sua vida escolar, e em conformidade

com esse conhecimento prévio, Imc propõe a LS o uso de uma agenda para que ela passe a

colar figuras que escolhe e recorta para, em seguida, a investigadora escrever o nome de cada

uma das figuras, a fim de que LS copie. Além disso, passa a desenhar o que ela queria

escrever. Deste modo, LS vai montando uma espécie de dicionário ilustrado ao qual recorre

quando quer escrever uma palavra.

Percebeu-se com o tempo que a principal função desse recurso utilizado por LS

era o de servir como uma memória de escrita, motivada por escolhas próprias, uma forma de

entrar no sistema alfabético. Assim, quando LS precisava escrever alguma palavra, voltava-se

para a agenda procurando a figura ou desenho correspondente e a copiava. Desse modo, com

os recursos que tinha, LS seguia o processo de entrada para o mundo das letras partilhando

com o outro sua precária condição de ler e escrever, mas já estabelecendo uma relação

motivada de escolha envolvendo letras e figuras.

63 Participo, juntamente com a Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry (Imc), do estudo de caso de LS e do acompanhamento familiar com a sua responsável, desde 2006. Realizei o acompanhamento individual de LS, com a participação de outros cuidadores, no segundo semestre de 2007, segundo semestre de 2008 e parte do primeiro semestre de 2009. Diferentes cuidadores (Imc, Ieo, Igs, Ifm, Ibs, Iss, Ign, Ibn) participaram do acompanhamento individual com LS. Uma dessas cuidadoras, Graciele Sgobin, em 2006, orientada pela Profa. Dra. Maria Irma Hadler Coudry realizou sobre o caso de LS sua monografia de conclusão de curso (Fonoaudiologia/Unicamp): Processos e Práticas de Leitura e Escrita: um estudo de caso.

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No seguimento do acompanhamento, observou-se que as indicações feitas sobre a

função social da leitura e da escrita não produziam imediatamente um resultado na

materialidade da escrita de LS, que seguia valorizando as figuras. Vygostsky e Luria (1987,

1995) explicam que a criança passa por uma fase de transição entre o que conhece (cópia) e o

que não conhece (leitura/escrita), cuja extensão depende da singularidade da criança e da

qualidade da mediação com o interlocutor adulto.

Afinal, esse é o seu conhecimento prévio construído na escola através da cópia e

do acesso a cartilhas. Encontramos frequentemente em cartilhas a mesma disposição visual

reproduzida por LS em sua agenda, por exemplo: letra “A” - figura do anel - seguida da

escrita da palavra “Anel” (em letra de forma e cursiva) com a letra “A” de “anel” em negrito.

Para Cagliari (2002), fixar a ortografia pelo visual é uma das metas mais importantes na

metodologia das cartilhas. De tal modo, a cartilha, por um lado, apaga a singularidade do

sujeito quando determina um único modo de apreensão dos processos de leitura e de escrita e,

por outro, a distancia da noção de textos, já que frequentemente observa-se que a escrita na

cartilha não são textos, porque, em detrimento do sentido, privilegia-se a repetição da letra,

facilitando a memorização pela criança.

Conhecendo-se o caderno de escola de LS e comparando-o com a agenda que ela

usa no CCazinho, pode-se constatar que a diferença entre os dois está no fato de que,

enquanto na agenda LS escolhe figuras baseadas nos contextos partilhados nesse

acompanhamento e na sua vida, no caderno escolar, LS faz a cópia da cartilha e de

atividades determinadas pela escola, nas quais não vê sentido.

Se essa é a situação de LS na escrita, qual é o contexto social e cultural de sua

fala?

Quando começou a frequentar o CCAzinho, a postura corporal de LS era a de se

debruçar sobre a mesa, manter a cabeça baixa e falar muito baixo. Sua fala era marcada

fortemente, nos anos de 2005 e 2006, pela ausência do traço de sonoridade em fonemas como:

/b/, /d/, /g/, /v/, /z/ e /dj/. Apesar disso, sua fala era inteligível.

Como já visto, Freud estabelece a relação íntima existente entre a produção de

sons na fala e de letras na escrita. Na mesma direção, Cagliari explica que isso não se dá de

forma transparente. Este autor considera que a criança formula hipóteses sobre a escrita

baseada em sua experiência de falante nativo e que isso demanda um tempo diferente para

cada um.

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[...] O ato de ensinar pode ser feito por um professor diante de alunos; neste sentido, é um ato coletivo. A aprendizagem, porém, será sempre um ato individual. Cada pessoa aprende por si, de acordo com suas características pessoais (CAGLIARI, 1998, p. 63).

A fala de LS, nesse início de seu processo de leitura e escrita, poderia ser um

complicador64, pois, como vimos, nessa fase, a escrita é baseada na oralidade.

A avaliação de sua motricidade oral resultou no reconhecimento da integridade

dos órgãos fonoarticulatórios. Nessa avaliação, LS demonstrou não perceber que a troca de

sons, na sua fala, poderia produzir alteração no sentido da palavra para seu interlocutor. Da

mesma forma, não percebia que, na leitura e escrita, a troca das letras levava a diferenças de

sentido. Para LS era tudo igual.

Quando se busca retratar histórias de crianças/jovens com dificuldades de leitura e

escrita e que, muitas vezes, são consideradas deficientes mentais ou com problemas de

aprendizagem, corre-se o risco de valorizá-las apenas como alguém “bonzinho”, passivo,

vítima de um sistema equivocado de educação. De fato, eles quase sempre são essas vítimas,

mas o sujeito que aparece na interação, conforme propõe a Neurolinguística Discursiva, é

também o resultado do seu passado reinterpretado pelo presente. Nesse espaço, considera-se,

nos moldes de Vygotsky (1926), que aprender exige um movimento em espiral: vai-se para o

novo, passando pelo antigo, pelo conhecimento prévio. “O aprender se dá em saltos

qualitativos”, diz o autor, e assim provoca o desenvolvimento.

Muito frequentemente, essas crianças e jovens, quando começam a participar das

atividades do CCazinho, dizem “não sei” antes mesmo de que se explique a elas o que vamos

fazer juntos. Nos primeiros encontros, elas se mostram interessadas pelas atividades

propostas, porém, quando percebem que terão que escrever e ler, resistem. Isso, talvez, revele

que suas experiências prévias de leitura e escrita, sobretudo na escola, podem ter sido

desprazerosas e sem sucesso e, por isso, devem ser evitadas.

Antes de chegar ao CCazinho, LS desenvolveu estratégias para entrar na

“escrita”: copiar desenhos de letras e juntá-los aleatoriamente e reproduzir, sob forma de

cópia, textos inteiros. Essas estratégias, de alguma forma, protegiam-na do julgamento de sua

escrita pelo professor de tal modo que, independentemente do que escrevesse, LS ganhava um 64 A relação alteração na fala e sua reprodução na escrita não pode ser vista de forma definitiva. Vygotsky (1934), como já foi mencionado, estuda que a relação da escrita se dá mais fortemente marcada com a fala interior, portanto, as marcas da fala externa podem não interferir na escrita.

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C de Certo. Este gesto, ao mesmo tempo que impede que LS aprenda alguma coisa, por

ocultar sua condição de sujeito, também revela que, para o professor, LS é meramente uma

aluna boazinha que não apresenta problemas de comportamento, como se nem existisse.

O trabalho com LS, no CCazinho, foi marcado inicialmente por uma tentativa de

ajudá-la a refletir sobre sua fala e o que pensava sobre a leitura e escrita. Partia-se do

pressuposto de que, para que a criança mude de posição, “é preciso que ela tome consciência

e sinta profundamente sua insuficiência” (VYGOTSKY 1997, p. 135). Porém, ao se realizar

essa prática com LS, sua atitude frequente era a de não querer fazer nada diferentes do que

fazia na escola, de chorar por não saber o que fazer, de não mostrar interesse, de se ver sem

lugar. O que LS tinha de “escrita” servia para a sua escola e não servia nesse novo ambiente

de interação, entretanto, ainda assim, ela precisava pegar no lápis para escrever. Neste

sentido, a participação para LS foi e é ainda fundamental porque faz com que LS assista a

outras crianças passando por situações como a que ela experimenta.

No acompanhamento individual, o levantamento do interesse de LS foi

fundamental porque ela precisava olhar para a leitura e escrita de outro modo e, nesse

momento, deslocada da cena escolar. Não se trata de começar de novo, mas de gerar na

criança motivação e expectativas que alteram sua atitude de atenção (VYGOTSKY, 1926) em

relação à leitura e escrita. LS já havia construído um olhar sobre a escrita que passava pela

cópia e que se, por um lado, era a negação do seu direito de saber sobre a leitura e escrita, por

outro, era a sua ligação com a escola, com o ser estudante, com o pertencimento a um grupo

social. O que Luria (1995) explica sobre as condições que uma criança precisa preencher para

poder ler e escrever se aplica a LS apenas no tocante ao controle do próprio comportamento,

mas não em relação ao caráter social, de representatividade e de registro de ideias que a

escrita tem: essa passou a ser a hipótese de trabalho com LS que fazia sentido para seus

cuidadores naquele momento.

É preciso observar que, quando essa hipótese é considerada, outras deixam de ser

valorizadas: a possibilidade de atraso mental, as questões de fala, o processamento auditivo,

as questões emocionais, entre outras. Tais fatos não foram, portanto, tomados como

explicações para o que LS apresentava em relação à escrita e leitura porque considerávamos a

hipótese de que ela tivesse sido mantida socialmente (pela família e pela escola) como

impossibilitada de atribuir sentido para leitura e escrita, pois sua relação com esses processos

colocava em suspenso a presença da letra como representação de algo na relação com a fala.

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O trabalho com LS, então, pauta-se no fato de que ela precisava ler e escrever,

mas antes precisava falar. Falar para escrever, no sentido de Vygotsky (1934), falar para

planejar sobre o que quer escrever e o que vai ser escrito, falar o que conhece sobre isso, falar

sobre o que quer perguntar. Trata-se de construir um rascunho mental refletindo seu processo

mental. Em grupo, LS se via, cada vez mais, em situações de dar a sua opinião sobre as

brincadeiras partilhadas, as histórias ouvidas, o que via na televisão.

No acompanhamento individual, o trabalho fonoaudiológico feito com LS

retomava sistematicamente o processo de entrada de LS para o mundo da escrita pela leitura,

justamente por esta se aproximar mais da fala. Esse princípio foi incorporado na teorização da

ND por contribuição da reflexão sociolinguística de Alkmim (2009), indicando que é pela

variedade de fala que a criança lê com compreensão reconhecendo o sentido.

Nesses acompanhamentos (com diferentes cuidadores) envolvendo fala, leitura e

escrita em situações interativas, o objetivo era levar LS a compreender que a tecnologia da

leitura e da escrita exige uma relação entre letras e sons da fala. As relações que LS

desenvolveu nesse ambiente discursivo possibilitaram que ela assumisse uma posição de

escuta em relação à própria fala, percebendo que só produzia sons desvozeados. Por isso, suas

produções de fala que causavam estranhamento no ouvinte, mas não em LS, passaram a ser

consideradas por ela, suscitando transformações na sua fala. Em relação à escrita, o

procedimento era o cuidador escrever enquanto LS falava, o cuidador lia o livro que tinha

chamado a atenção dela (pela capa, pela cor, pela ilustração) e ela seguia com o dedo e com

os olhos. Uma história lida vivamente ganha o brilho de uma história contada e, quando a

criança percebe a relação íntima entre leitura e fala, o caminho para a escrita fica mais

acessível.

LS precisa descobrir, ainda, a partir das letras que vai conhecendo, o ritmo da

palavra, como termina a palavra ouvida, quantos pedaços tem, quais nomes são compridos e

quais são curtos, o que pode antecipar em cada texto a partir das letras, das figuras, do

formato do texto, qual o significado da palavra, qual sentido atribuir.

Nas relações estabelecidas entre LS e os cuidadores, diferentes movimentos vão

acontecendo; por um lado, ela se filia de forma cada vez mais estável ao mundo da escrita, a

partir do contato que estabelece com diferentes gêneros discursivos: carta, listas, bilhetes,

cartões, convites, jogos digitais de escrita, murais, capa de revistas, documentos, placas etc.

Por outro lado, LS passa a experimentar no corpo a fala, a leitura e a escrita pela dramatização

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de situações cotidianas e de leitura feitas para ela. Ela passa a fazer, por exemplo, uma receita

de bolo em grupo e a ajudar a fazer a lista do que precisa ser comprado, isto é, passou a

descobrir que tem conhecimento sobre o uso social da leitura e da escrita.

Essas situações que motivam a escrita e a leitura se misturam no dia a dia dos

encontros. Há dias absolutamente felizes em que tudo transcorre tranquilo e alegre. Há dias

em que tudo é resistência e tentativa de permanecer no velho e conhecido “não sei!”. Para

qualquer pergunta, uma resposta:“Não sei, não!”. A cada nova proposta: “Ah, de novo!”. A

cada tentativa de levá-la a refletir sobre uma escolha, muitas evasivas: Iss: “Mas por que você

escolheu essa letra para por agora?”. LS: “Porque sim!”. Iss: “Então, fala de novo a

palavra. Que letra você acha que ficaria melhor?”. LS: “Sei lá!”. Iss: “Tá bom, para

terminar vamos ler esse bilhete que a PA mandou para você?”. LS: “Ah, não!”.

Nesse intervalo, LS vai se movimentando em direção à leitura e à escrita e

permitindo, na relação com o outro, que a leitura e a escrita se aproximem dela.

Dado 3: Em 25 de agosto de 2006, LS estava em sua sala de 3ª série e a solicitação da professora era que os alunos escrevessem uma redação com o título: O passeio na chácara da vovó.

Escrevendo sozinha

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Análise: Infelizmente, por ser uma produção feita em sala de aula, não foi possível recuperar

com LS o que ela estava querendo dizer. No entanto, alguns indicadores mostram diferenças

em relação à produção anterior do dado 2: observam-se palavras oriundas de seu contato com

diferentes textos em diferentes gêneros: “casa”, “mãe” (bilhetes escritos para a mãe assinar

em casa), “Prof” (cabeçalho diário de seu caderno), “Brasil” (textos escolares), “kokó”

(literatura infantil), por exemplo. O tema dado pela professora já recorta um universo

subjetivo que possivelmente inclui palavras como “mãe”, “avó”, “casa”. Do ponto de vista do

leitor, não é possível estabelecer relações de sentido entre essas palavras e o restante da

produção, o que impede o reconhecimento de um texto. Entretanto, a inexistência de um texto

não apaga as marcas de escrita de LS nessa produção, o que se dá a ver pela repetição, por

quatro vezes, do seu nome, revelando seu envolvimento na tarefa escolar, sua presença no

texto e na língua. Essa apreensão da língua se nota também em uma certa organização em que

se nota a sílaba canônica do português brasileiro, sugerindo a aproximação de palavras da

língua, como: “Mia” (minha), “cas” (casa), “comide” (comida), “porc” (porco).

Reconheço, ainda, a presença de refacção como indício de reflexão sobre a escrita feita por

LS na sequência seguinte: CAS AO KOKÓ F (riscado com que parece um o) OSDJSIA

VOVÓ A KÓKO. Parece que LS tinha antecipado o “O” que pretendia escrever, refletiu que

O passeio chácara da vovó E Q PIMA CAS MIA VOVÓ EAGIOHO FOS FOTMOC- DETOMTCHVOVÓ E LS E MAE COECOTOMTCHVOS= E MÃE DE AFIE DO FISELOJAC DE SODO LS SE LEVES. VOVÓ SO DMEOUSOMLC Q O VOVO E. SOFOMESSRORSO VOVÓ LS E VPAS ASP OC. MOA QUEMEDA O ESOE O DE FISROUDOS. GOMOS ASDEIMS DE ISPISSROSR ÓMEI. CASAPSMCS DE STO DE BRASIL. VOVÓ A Prof KOKÓ O L (com x em cima) DO SÃO VOVO LS CAS AO KOKÓ F(riscado com que parece um o) OSDJSIA VOVÓ A KÓKO. BRASIL E VOPEJACIS PROF KOKO. EJASDE ASMODE J´CIS MVOVÓ COMIDE VESC DE PORC

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teria que colocar o “F” antes e, aí sim, repetir a letra “O”, mas, como já havia escrito o “O”,

teve que riscar essa letra e escrever o “F” em cima, repetindo a letra almejada.

Finalizando a análise, outro recorte dessa escrita mostra que LS saiu da cópia e realizou

algum tipo de reflexão sobre o que escreveu: a palavra “kokó” aparece grafada de três

maneiras diferentes: “kokó”, “kóko”, “koko” – revelando a dúvida que LS tem quanto à

realização dessa acentuação que, a cada momento, julga estar em determinado lugar.

Ainda neste mesmo ano, a cuidadora Igs escreve sobre outra reflexão de LS sobre a escrita,

demonstrando que ela está fazendo a ponte entre o novo da letra e o velho da língua presente

na sua fala (COUDRY, 2008), o que mostra que está dominando a tecnologia.

Durante a sessão de grupo no dia 22/08/2006 em que foi apresentado um novo integrante do CCazinho, a coordenadora Imc escreveu o nome do garoto na lousa. LS, voltando-se para a cuidadora sentada a seu lado disse: “Tem L né? e C?... agora é o A e o S, né?”, e escreveu LUCAS. Apesar da letra inicial do nome do garoto ser o mesmo que o seu, as demais letras LS buscou através da fala: “Lucas... LU...” (SGOBIN, 2006, p, 10).

Além dos dados apresentados, outros indicadores revelam que LS está implicada

na relação fala, leitura e escrita e isso não se dá apenas com o vetor apontando para reflexões

de escrita, mas também de fala. Suas tentativas de escrita, “dissecando e analisando as

palavras” (VYGOTSKY, 1934), favorecem sua tomada de consciência do que antes estava

automatizado na sua produção de fala. Na escrita, LS consegue juntar o trabalho

fonoaudiológico realizado com ela - quanto à presença e ausência da sonoridade nas

produções de sons por meio da propriocepção laríngea e da indicação da diferença de sentido

das palavras – com a implicação do uso de determinado grafema, por exemplo: faca/vaca;

pode/pote/bode/bote; capelo/cabelo/capela. Neste caso, a reflexão que LS fazia para escrever

acelerou a normalização de sua fala. Já em relação à escrita, no ano de 2006, LS está em

transição e ainda mantém sua agenda de memória da escrita, ou seja, continua colando figuras

e perguntando como se escreve o nome das figuras.

Para continuar a análise do percurso de LS, neste momento, darei destaque para o

trabalho em paralelo que foi realizado com sua avó-mãe, afinal, conforme já foi dito no cap.1,

o acompanhamento da criança só é feito, no CCazinho, se houver comprometimento de

participação da família.

Em 2005, quando LS começou a frequentar o CCazinho, tiveram início também as

sessões individuais com a sua avó-mãe. O motivo desses encontros feitos por mim e/ou por

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Imc era o de conversar com Dona L sobre a escola, leitura e escrita. Nessa época, ainda que

nossa proposta fosse a de entender o papel atribuído à escola pela família e às questões

específicas de LS, a maior parte das reuniões foi destinada à demanda de Dona L em relação

às dificuldade de LS e de seu irmão, principalmente as questões psiquiátricas dele.

Com o tempo, Dona L começou a falar sobre a sua relação com a escola, a qual

via como um lugar em que fora desrespeitada e discriminada socialmente, desde a época de

estudante de sua filha, mãe de LS, vista nessa mesma escola como um problema. Dona L

trazia uma concepção de escola como um lugar de não pertencimento: sua neta, LS, não

estava lendo e escrevendo como o esperado, sua filha, mãe de LS, acabou por abandonar a

escola e ela própria não era formalmente alfabetizada, ainda que conseguissem transitar, com

muita dificuldade e à custa de um letramento “sofrido”, pelo universo de escrita: pagava

contas, marcava consultas, comprava remédio, cuidava dos papéis de sua aposentadoria e

acompanhava os resultados escolares de LS.

É nesse cenário que se deu, no CCazinho, a aproximação de Dona L com o que

vinha sendo feito com LS na relação fala, leitura e escrita, sendo que ela mesma, dona L, não

dominava essa tríade. Observamos que dona L se apresentava mais distante da escrita que LS

e, por isso, não mantinha qualquer relação sistemática entre a oralidade da palavra e sua forma

escrita, parecendo não perceber auditivamente nem quando uma palavra terminava com o som

de /a/ ou /o/.

Igs e eu trabalhamos com ela essa questão devido ao fato de que, se no CCazinho

LS tinha um outro intervindo junto a sua fala, era necessário que em casa alguém também

assumisse esse papel, o que seria feito por Dona L. A relevância desse trabalho se deve ao

fato de que LS, em seu processo de aquisição de linguagem, havia automatizado sua produção

de fala com instabilidade na relação surda/sonora dos fonemas. Agora essa automatização

havia se quebrado, mas a sua preferência pela produção sonora antiga ainda se interpunha em

muitos momentos. Era preciso que alguém, em casa, fizesse o papel de intervir em suas

produções como acontecia na prática do CCazinho. A orientação para isso era a de que, diante

da produção de fala ensurdecida de LS, Dona L a desestabilizasse mostrando a relação de sua

produção com o significado pretendido, ou com a impossibilidade de seu interlocutor atribuir

o sentido esperado por ela.

Dona L, desde o final de 2006, manteve-se com sucesso nessa proposta,

relacionando fala e escrita. Fazendo uso das reflexões realizadas nos encontros no CCazinho,

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ela proporcionava condições para que LS estabelecesse cada vez mais a relação entre fala e

escrita: Dona L conversava com LS sobre o seu cotidiano e sobre o que assistia na televisão,

dava-lhe diferentes livros da biblioteca do CCazinho, recorria a LS para que lhe orientasse

quanto às informações escritas com as quais a própria Dona L tinha que se relacionar.

Neste ano de 2006, as mães que se reúnem em frente ao CCazinho, embaixo do pé

de Flamboyant, resolveram ajudar Dona L a se alfabetizar. Duas outras mães se ocupariam

desse intento que não deu certo porque ela se esquivava com muita facilidade da missão de ler

e escrever. Por outro lado, as mães “alfabetizadoras” não se sentiam muito à vontade para

exigir dela as “lições” de casa. Em reunião geral com as mães, essa questão veio à tona e

Dona L ganhou um cuidador.

No final de 2006, estive, juntamente com as cuidadoras de LS, em reunião com a

professora dela na escola e esta se mostrou surpresa com o interesse demonstrado por LS pela

leitura, pelos assuntos que surgiam na aula e por sua evolução na escrita. LS naquele

momento já reconhecia palavras de sílabas simples. A professora contou ainda que LS

também fazia reforço escolar, mas não sabia nada sobre as atividades que eram realizadas

nessas aulas.

No entanto, apesar dessas dificuldades de LS e com a produção escrita que

constatamos a partir dos dados-achados anteriormente analisados, LS foi aprovada para cursar

a quarta série em 2007.

Dado 4: Em dezembro de 2006, no acompanhamento individual, LS e suas cuidadoras criaram falas para os personagens de uma história.

Escrevendo mesmo

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Análise: O texto de LS revela que ela tem alguma experiência com a prosa (faz uso de

recursos que indicam a fala de dois interlocutores), com a poesia (escreve a poesia com título

e obedece ao formato de uma estrofe) e com o tema amoroso (fala do amor entre dois jovens

com um final comum de histórias de fada). Sua escrita, no entanto, por vezes, distancia-se

mais da oralidade e traz problemas próprios da linguagem escrita do tipo ortográfico entre

letras parecidas, como o traçado da letra “m”, colocando em seu lugar o “n”: “neu dia” (meu

dia) e “caninho” (caminho). Em “Maneuela” parece que LS fala enquanto escreve e talvez

soletre o “n” como “ne” esquecendo-se de apagar o “e”, o que demonstra que, nesse

momento, fixa-se mais na oralidade.

Podemos inferir que a palavra “darigdido” representa “obrigado” e, neste caso, seria plausível

considerar que houve um fenômeno muito parecido com a epêntese que ocorre na oralidade -

quando a produção de uma sílaba complexa do tipo CCV é regularizada por CVCV, ou seja,

há uma hipótese de escrita em que se percebe um desdobramento do que seria “obrig” em

“darig”. É possível, redirecionando o olhar, ver também, na escrita da palavra “obrigado”, a

forma “obrigdido”, porém, não parece confiável interpretar deste modo por, pelo menos, dois

motivos: nesta palavra, há duas ocorrências da letra “d” no final com características quanto à

forma que favorecem a interpretação de que se trata da letra “d” também no início da palavra;

o outro motivo é que LS optou por escolher escrever cada letra com uma cor diferente e se for

considerada a segunda letra como “b”, ela teria sido realizada com dois lápis de cores

diferentes.

Em “beijon/beijan/beijion” no lugar de “beijam”, há a marca de uma possibilidade de

nasalidade que LS finaliza com “n” no lugar de “m”; também é possível pensar que pode ter

havido uma tentativa de regularizar o plural e, além disso, o que se observa na escrita dessa

palavra é uma reflexão de LS em relação à escolha da(s) letra(s) escrita(s) entre o “j” e o “n”

final.

Comparando os dados-achados 3 e 4 produzidos na mesma época por LS, observam-se entre

eles grandes diferenças. No dado 3, na medida em que não havia ainda um texto, a presença

Cauã: quero falar uma poesia

MEU AMOR Voce é o sol e neu dia, a luz do meu caninho Maneuela: darigdido eles se beijon/beijan/beijion

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de LS se fazia notar apenas pela repetição escrita de seu nome, já no dado 4 pode-se

reconhecer marcas de sua escrita presentes no que agora se percebe como a produção de um

texto.

Na reunião que fiz com Dona L, em março de 2007, encontrei-a reticente em

relação a tudo o que já tinha sido feito com LS no CCazinho. Dizia ela: LS é preguiçosa, não

gosta de fazer a lição e se for negócio de ler, piorou. Quando ela fala errado e corrijo, ela

chora e emburra. E a professora dela já avisou que vai dar aula para quem sabe ler e

escrever.

É interessante observar o movimento que a família faz, às vezes. Para a família, é

muito difícil mudar de lugar, e Dona L mostra bem isso: quando LS não escreve na escola, a

culpa é da escola, mas se não escreve em casa, a culpa é de LS por ser preguiçosa; quando

Dona L tem que manter uma orientação dada pelo CCazinho em relação à fala de LS, o

problema é de LS, que não colabora; e em relação ao fato de a escola se propor a ensinar

apenas quem já sabe ler e escrever, o recado que Dona L transmite pode ser entendido como:

o trabalho que está sendo feito no CCazinho com LS não a tem ajudado quanto as suas

questões de fala, leitura e escrita e, em decorrência disso, na escola ela continuará excluída. A

postura de Dona L revelou o descompasso entre a forma como a família, a criança e o próprio

CCazinho olham para o ler e o escrever.

O “desabafo” de Dona L revela sua dificuldade em reconhecer a potencialidade do

vir a ser de LS e, quando faz isso, assume um discurso semelhante ao da escola e, ao mesmo

tempo, acaba culpando a escola, LS e o CCazinho, eximindo-se da própria implicação nesse

processo. Não obstante, não se pode deixar de reconhecer que situações como essas

promoveram reflexões e mudanças em Dona L.

No CCazinho, LS continuava falando, lendo e escrevendo. E em paralelo, sua avó,

demonstrando mais uma vez sua capacidade de ultrapassar as dificuldades, decidiu aprender a

ler e a escrever frequentando uma escola de jovens e adultos (EJA), o que fez com que LS,

muitas vezes, assumisse o lugar de professora de Dona L.

Neste ano de 2007, também começaram a ficar mais evidentes as constantes dores

nas costas de LS, razão pela qual ela faltou várias vezes no CCazinho e na escola. No final

desse mesmo ano, entramos em contato com a professora de LS. Ela estava preocupada e

constrangida porque, apesar dos problemas de saúde de LS e suas constantes faltas, o

desempenho de LS foi o que mais mostrou evolução na classe e, mesmo assim, ela teria que

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ser reprovada porque não tinha atingido as exigências necessárias para cursar a quinta série. É

interessante notar que a professora de LS não queria que ela reprovasse, apesar de essa

melhora de LS não significar a recuperação do conhecimento quanto ao conteúdo das

disciplinas de todos os anos escolares anteriores. A professora, apostando na capacidade de

LS, optou por aprová-la, no entanto, Dona L se posicionou contrária a essa decisão e LS foi

reprovada.

De maneira análoga, o posto de saúde queria suspender LS do atendimento

psicológico por julgar que ela estava muito bem. Posicionamo-nos contra, mas não fomos

ouvidos.

No final deste mesmo ano, LS não conseguia mais permanecer muito tempo sentada,

pois sentia muitas dores nas costas. Como já vimos, LS é portadora de Neurofibromatose tipo

1 e agora estava atingido a puberdade, período em que começou a desenvolver os

neurofibromas na coluna vertebral. Em virtude disso, em fevereiro de 2008, LS foi submetida

à cirurgia permanecendo quase que o primeiro semestre todo em casa. Ela retornou no

segundo semestre ao CCazinho e à escola. Nessa época, LS nos contou que jogou fora sua

“agenda de memória” alegando não precisar mais dela.

Dado 5: Em 30 de setembro de 2008, a proposta de atividade para o grupo foi a comparação visual do gibi da Mônica e do Cebolinha, personagens de Maurício de Souza, quando os personagens eram crianças e quando eles já tinham crescido e se tornaram adolescentes.

Olhando bem

UM É COROLIDO E O UTRO E PRETO A DURMA DA MÔNICA ERA PEQUENO E A GORA É GRANDE A GORA O OLHO É REDONDINHO E TEM SOBRANCELHA NO MANGA COMEÇA FALANDO SOBRE A TURMA DA MÔNICA A ROUPA É DIFERENTE O CORPO É DIFERENTE QUANDO ERA PEQUENO NÃO TINHA DEDO NO PÉ

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Análise: Nessa produção de LS, não há dúvidas quanto à presença de refacção em

“redondinho”, “sobrancelha”, por exemplo. Além disso, esse dado é privilegiado porque nos

oferece uma possibilidade de refletir, por um lado, sobre o distanciamento que ela já opera

entre fala e escrita e, por outro, sobre marcas na escrita de um enfrentamento que se deu no

plano da fala. Se anteriormente LS dessonorizava as obstruintes sistematicamente, agora em

sua fala isso não acontece mais, no entanto, sua escrita revela quanto a isso uma certa

instabilidade. Essa análise se torna possível com Vygostsky (1934): LS não apresenta mais

alterações em sua fala externalizada, no entanto, sua escrita revela essa presença em sua fala

interior. Assim, observa-se que em “durma” ela não percebe a substituição de “t “de “turma”

por “d”, porém em “Dinha” corrige para “tinha”. Ou seja, a questão da escolha de sons que

esteve na fala externalizada vem para a superfície nas suas escolhas de grafema para a escrita,

não importando a direção que segue, isto é, se é da sonora para a surda ou da surda para a

sonora. A palavra “colorido” sofreu uma inversão nas líquidas resultando em “corolido”,

muito próximo de sua variedade de fala, uma líquida menos lateral, o tepe, no lugar da líquida

mais lateral, o /l/, o que na escrita pode ocorrer também pela proximidade desses dois

segmentos.

Os dados apresentados até este momento focalizam a escrita, mas como já adiantei

o trabalho com LS se iniciou pela leitura. O domínio da leitura por LS se deu em um processo

que passou por ler apenas figuras, descobrir palavras, dramatizar leituras feitas para ela e,

finalmente, ler efetivamente65. Sua leitura, antes que a escrita, mostrou-se mais estabilizada e

as possíveis alterações sonoras que ela trazia na fala não aconteciam mais. Uma explicação

plausível é a de que a leitura já traz selecionados os grafemas, o que preserva LS do trabalho

linguístico de escolher a associação adequada entre som e letra. Nesse caso, a letra que já está

dada favorece a produção do som que se encontra nesse momento estabilizado na fala. E,

nesse percurso, LS vai assumindo sua identidade de estudante, como comprova o dado que

segue.

Dado 6: No dia 18 de novembro de 2008, a atividade proposta para o grupo foi a de que cada um dos presentes inventasse uma máquina mágica, deixando claro qual seria a sua função.

65 Não me parece possível afirmar com exatidão o tempo cronológico que LS levou para se apresentar lendo, mas no dado de número 6, registrado em agosto de 2006, ou seja, menos de um ano depois de sua entrada no CCazinho, ela já se mostrava com reflexões de leitura e de escrita.

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Máquina máxima

Máquina Masima

Uma maquina que faz lição e resposta À maquina masima ela faz muitas lições Lição Resposta

Análise: A máquina proposta por LS é o sonho de todos os estudantes. Trata-se de uma

máquina que faz lição e, por isso, é máxima - que LS escreve “masima”, apresentando um

erro ortográfico comum na correspondência entre um som que pode ser representado por

diferentes letras. Nota-se também que LS desenha um retângulo simbolizando uma máquina,

porém, essa máquina adquire características antropomórficas (olhos, nariz, pernas) que recebe

a lição e a transforma em resposta, como se vê no desenho. Interessante é observar que a

forma do nariz se assemelha a um ponto de interrogação e que há um outro ponto de

interrogação mais abaixo, o que pode dar a ideia de que, na representação de LS, a fala, a

leitura e a escrita são espaço em que ocorrem dúvidas porque demandam escolhas. Observe-se

que, no lugar da boca e, portanto, como boca, aparece escrito “maquina masima”.

Se, na leitura e na escrita, LS estava obtendo sucesso, fazendo conquistas

importantes, no dia a dia as coisas não iam bem. As dores em sua coluna que motivaram a

primeira cirurgia retornaram de forma consistente nesse ano de 2008. Em março de 2009, ela

foi submetida a uma nova cirurgia, o que interrompeu novamente, por alguns meses, sua vida

escolar e a sua frequência no CCazinho. Em maio e junho, foi viabilizado por mim e por Igl

seu acompanhamento domiciliar. LS retornou no segundo semestre desse mesmo ano para o

CCazinho e um pouco antes para a escola. O quadro de saúde de LS é crônico e as cirurgias

realizadas não são definitivas, o que significa que ainda pode haver outras.

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Em 2009, LS estava na quinta-série e conseguia refletir sobre suas dificuldades

escolares, por isso pediu para sua cuidadora lhe ensinar matemática, que era o que ela estava

achando mais difícil. E assim tem sido até o momento: números e enunciados de problemas,

como se fossem pequenas histórias, entraram em questão. De vez em quando, LS não quer

fazer o que proposto. Quando faz e dá certo, fica feliz. Sua avó frequenta agora o supletivo no

período da tarde e, por isso, LS vai sozinha para o CCazinho e, no final da tarde, Dona L vai

buscá-la.

Em 2010, LS, na 6ª série, estuda à tarde, o que a impede de frequentar o grupo do

CCazinho. Por essa razão, ela e outras crianças do CCazinho que também mudaram de

período escolar, formaram com Imc um grupo de leitura que funciona às quintas-feiras de

manhã na biblioteca do IEL.

LS caminha em seus processos de leitura e escrita tendo o CCazinho como um

interlocutor privilegiado que buscou olhar para o que ela conseguia fazer, promovendo de fato

um encontro de LS com outra possibilidade de fala, de leitura e de escrita.

Retomando as análises dos dados-achados deste capítulo em um tempo posterior

ao de seu acontecimento, observa-se que LS entra para o mundo da escrita propiciando à avó

o mesmo movimento. E essa observação deflagra uma particularidade no trabalho realizado

no CCazinho com LS: buscando, nas produções dela, o que havia de letras, o CCazinho

acabou por não perceber, em certa medida, a possível identificação de LS com o

“analfabetismo” de Dona L. Para LS, no princípio, cada desenho representa uma palavra,

cumprindo a função social de memória da escrita. Dona L, na sociedade letrada a que

pertence, sempre pagou contas, comprou remédios, marcou consultas e, quando fazia isso,

também se guiava pelas figuras, desenhos e números que conhecia, e não pelas letras. O fato

de essa observação ter sido feita a posteriori não invalida, em nenhum aspecto, o trabalho

realizado com LS, apenas mostra a fecundidade da Neurolinguística Discursiva, que permite a

constante dialogia entre a prática e a teoria, um exercício de reflexão sobre o próprio

conhecimento, mais ou menos nos moldes de Bachelard: “Não podemos nos orgulhar de um

espírito científico enquanto não estivermos seguros, em todos os momentos da vida reflexiva,

de reconstruir todo nosso saber” (BACHELARD, 1971).

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4. Campo Minado Se disparada pelo amor Palavra-bala Na boca do ditador Toda palavra cala Ô, mama Cala palavra Ô, mama, ô, mama Mama palavra Quando não se quer ouvir Palavra-mala Quando não se faz sentir Pobre palavra rala Ô, mama Rala palavra Ô, mama, ô, mama (Trecho da música “Mama palavra”, composição de João Bosco e Francisco Bosco)

O nome desse capítulo nasceu da observação que faço da relação Escola-Família a

partir da realidade do CCazinho e, de fato, em muitas ocasiões, a imagem que me parece

compatível com essa relação é a de um campo minado - a cada tentativa de buscar aproximar

a Escola ou a Família dos processos de leitura e escrita da criança - arma-se a possibilidade de

uma explosão. Isso demonstra, infelizmente, a dificuldade de ambos, Escola e Família, em

olhar para a mesma direção: para o sujeito e a sua materialidade de escrita.

Como vimos no capítulo 1, o CCazinho e as famílias partilham encontros em

grupo e/ou individuais. Essa proposta surge como parte do acompanhamento da

criança/jovem e decorre da necessidade de compreender quais são os discursos dos pais sobre

os processos de leitura e escrita dos filhos66, o que fazem em relação a isso e o que esperam

do CCazinho.

Interfere nesses discursos o lugar de onde os familiares falam. Refiro-me ao fato

de que a estrutura familiar tem-se modificado muito nas últimas décadas e se o mais comum

era o tipo nuclear (casal e filhos biológicos ou adotados morando juntos), atualmente, existe o

predomínio de outros tipos de estrutura familiar que são reconhecidas, em muitas culturas

ocidentais, também como comuns: monoparental (em função de separação, divórcio, óbito,

não reconhecimento de parternidade e abandono, uma só pessoa se responsabiliza pelos

66 O termo “filho” está sendo usado para referenciar o parentesco da criança/jovem em relação ao adulto responsável por ela, nem sempre o pai ou a mãe.

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filhos); ampliada (composta de pais, filhos e netos), homossexuais67 (duas pessoas do mesmo

sexo, podendo incluir filhos biológicos de um ou ambos os parceiros e/ou adotados).

No CCazinho, a maioria das famílias é de estrutura do tipo nuclear; em seguida,

vêm a estrutura familiar em que os avós (frequentemente apenas a avó) são os responsáveis

pelos netos (cujos pais, embora vivos, estão ausentes por diferentes motivos: prisão,

abandono, constituição de nova família); e, em terceiro lugar, as famílias são do tipo

monoparental. Porém, em geral, o que se percebe, com raras exceções, é que são as mulheres,

mães/avós, que tomam para si as dificuldades escolares dos filhos/netos e isso ocorre

independentemente do tipo de estrutura familiar. O que se observa a partir dessa realidade,

portanto, é que a figura do homem, pai/avô, tem se mostrado muito ausente.

Não é propósito dessa tese entrar na discussão desse fato, mas, diante de situações

como essa, entendo que, muitas vezes, as mães/avós enfrentam, especialmente no início do

acompanhamento da criança, um conflito doméstico: elas passam a olhar para as dificuldades

apresentadas pelos filhos/netos a partir da realidade dos processos de leitura e escrita deles,

enquanto que seus parceiros ainda olham para essas mesmas dificuldades a partir de

julgamentos morais, do tipo: esse menino é esperto, manda ele jogar vídeo-game para ver se

ele tem problema (MT, pai de VT, 2007); ele não pode ser contrariado e com essa história de

problema, vai enrolando a mãe dele (SS, pai de DS, 2008).

Para Minuchin (1990), a família atende a objetivos diferentes em relação aos seus

membros na medida em que, externamente, assegura-lhes a acomodação e a transmissão de

uma determinada cultura e, internamente, a proteção psíquica, afetiva e econômica. Desse

ponto de vista, a família está sempre em transformação porque se inscreve em contextos

históricos (tempo/espaço social). Ainda para este autor,

[...] À medida em que as sociedades ficam mais complexas e são adquiridas novas habilidades, diferenciam-se estruturas societárias. A moderna civilização industrial urbana impõe ao homem duas exigências conflitantes: a capacidade de desenvolver habilidades altamente especializadas e a capacidade de adaptação rápida a uma situação sócio-econômica constantemente em mudança (MINUCHIN, 1990, p. 52).

67 Esse tipo de estrutura familiar está se tornando tão comum que, na Espanha, a Lei Orgânica de Educação (LOE) determinou a criação da disciplina “Educação Cívica”, em vigor desde 2007, para ampliar, entre os alunos do último ano da escola primária e do primeiro ano da escola secundária, a noção, a tolerância, o respeito e a convivência de diferentes tipos de família, incluindo aquelas formadas por casais homossexuais. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u18808.shtml Acesso: jan. 2007.

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Entretanto, é também função da família, na qual se constituem os primeiros

sentidos, dar aos seus membros o registro de identidade:

[...] Somente a família, a menor unidade da sociedade, pode mudar e, apesar disso, manter suficiente continuidade para criar filhos que não serão estrangeiros numa terra estranha, que estarão firmemente enraizados, o suficiente para crescerem e se adaptarem [...] a experiência humana de identidade tem dois elementos: um sentido de pertencimento e um sentido de ser separado. O laboratório em que estes ingredientes são misturados e administrados é a família, a matriz da identidade (MINUCHIN, 1990, p. 52 e 53).

A família, interna e externamente, é, portanto, um contexto de aprendizagem em

que a criança vive funções sociais pertinentes à língua, à cultura e à sociedade, além de regras

e noções de valores, enfim, funções internas à família.

Aparentemente, cada família pode ser pensada, então, como uma matriz de

identidade distinta que determina também o modo como identifica e soluciona seus

problemas. Assim, não surpreende que os discursos entre os familiares e entre as famílias

sobre a dificuldade de leitura e escrita apresentada pela criança/jovem sejam tão distintos.

Grosso modo, os encontros entre CCazinho e familiares se devem a questões de

leitura e de escrita apresentadas pelas crianças/jovens que frequentam este centro. Porém,

raramente, os pais/familiares dizem o que os mobiliza diante do que o filho lê ou escreve,

falando apenas superficialmente sobre isso.

Na maioria dos casos, os pais deslocam o motivo pelo qual procuram este centro

ao que a escola “falou” sobre o seu filho, ao que avaliaram diferentes profissionais (médico,

fonoaudióloga, psicóloga, psicopedagoga de serviços particulares ou, na grande maioria dos

casos, do serviço público). É muito comum também os pais perguntarem sobre o que fazer

quando seu filho é medicado com o psicofármaco Ritalina ou ainda quando o filho faz uso do

remédio e não percebem nenhuma mudança em função disso. Alguns pais contam sobre o

quanto se sentem apreensivos em dar e, também, em não dar o remédio ao filho. Outros

declaram que o filho faz uso do remédio há muito tempo e que, mesmo avaliando que não

houve mudança nenhuma em seu comportamento, não conseguem abandonar o remédio

porque a escola relata que ele está mais quieto em sala de aula.

Entre as razões pelas quais os pais procuram o CCazinho, estão também aquelas

consideradas cíclicas, ou seja, quando assuntos como Dislexia e TDAH são veiculados pela

mídia, avaliações são marcadas porque os pais reconhecem nos filhos os sintomas desses

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supostos transtornos - quase sempre descritos sem nenhum cuidado, em programas68 que

buscam apenas aumentar sua audiência.

Em se tratando dos motivos apresentados pelos pais, o que se mantém como regra

é que, em algum momento, responsabilizam a própria criança e a escola pela dificuldade de

leitura e de escrita apresentada. Nesse caso, a queixa se estende, muitas vezes, ao

comportamento apresentado pela criança/jovem, como, por exemplo: desatenção,

desobediência, desinteresse etc - responsabilidades que recaem tanto sobre a escola pública

quanto particular, porém de modos diferentes. Em relação à escola pública, os pais

interpretam como causas desencadeadoras do comportamento e dificuldades do filho a má

qualidade do ensino e o tratamento que o aluno recebe do professor; em relação à escola

particular, mais frequentemente, identificam a boa qualidade da escola que o filho não

consegue acompanhar. Assim, no primeiro caso para os pais, o problema é a escola e, no

segundo, a criança/jovem.

Visivelmente, os pais esperam do CCazinho coisas diferentes em relação aos

filhos e a eles próprios: a confirmação de um diagnóstico; a explicação das dificuldades

apresentadas pelo filho em leitura e escrita; o contato do CCazinho com a escola para mostrar

que a criança está em acompanhamento “na Unicamp”, porque julgam que, assim, a escola

dará mais atenção à criança ou porque acreditam que a escola passará a olhar para esses

mesmos pais como pessoas interessadas; em caso de pais separados em litígio, a solicitação

do atestado de frequência da criança nesse tipo de acompanhamento pode revelar cuidado

daquele que tem a sua guarda; que o CCazinho resolva o problema da criança sem envolver a

família etc.

E o que o CCazinho espera das famílias? As atitudes tanto de se predisporem a

refletir sobre as questões apresentadas pelo filho, partindo da materialidade de sua escrita,

quanto de se assumirem como um contexto de aprendizagem praticando com a criança/jovem

a leitura e a escrita como funções sociais.

Para promover a possibilidade dessa prática junto aos pais (e utilizando uma

linguagem adequada para o objetivo pretendido), tentamos aproximar o que Vygotsky (1934,

1926) considera como motivação e necessidade de leitura e de escrita na vida da

68 Em uma novela da rede Globo (2008), havia uma personagem disléxica. Por esse motivo, crianças com 6 anos que cursavam a pré-escola e ainda não escreviam foram trazidas pelos pais para avaliação porque estes já “reconheciam” nelas sintomas indicativos da patologia, segundo o que viam na novela.

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criança/jovem com a noção de letramento, baseada em Street69 (1984, 2003), desenvolvida

por Kleiman70 (1995, 2005):

O letramento é um conceito criado para falar dos usos da língua escrita não somente na escola, mas em todo lugar. Porque a escrita está por todos os lados, fazendo parte da paisagem. No ponto de ônibus, anunciando produtos, serviços e campanhas. No comércio, anunciando as ofertas... No serviço público, informando, ou orientando a comunidade... na igreja, no parquinho, no escritório. E o conceito de letramento surge como uma forma de explicar o impacto da escrita em todas as esferas de atividades, não somente nas atividades escolares, para se referir a um conjunto de práticas de uso da língua escrita que vinham modificando profundamente a sociedade, mais amplo do que as práticas escolares de uso da escrita, incluindo-as, porém (KLEIMAN, 2005, p.1-3).

A proposta com os pais se dá na direção de que valorizem a presença da escrita71

nas práticas sociais do cotidiano, em que uma variedade de textos se torna possível na medida

em que partilham com os filhos as atividades do dia a dia: listar compras de supermercado;

escrever bilhetes (avisando o horário em que se vai chegar ou o que precisa ser feito em casa

enquanto os pais estão fora); procurar receitas de comida para fazer (com o adulto); ler e

entender as informações que estão nos rótulos das embalagens de alimentos e nos produtos de

limpeza e de higiene; observar pichações e, se possível, também os grafites; perceber os

diferentes tipos de aviso presentes em lugares, como: próximo ao fio de alta tensão, em caixa

de força elétrica, residência com cachorro; notar que há letreiros para diferentes

69 Para Street, “[...] devemos falar em letramentos, e não de letramento, tanto no sentido de diversas linguagens e escritas, quanto no sentido de múltiplos níveis de habilidades, conhecimentos e crenças, no campo de cada língua e/ou escrita” (1984, p. 47). Este autor propõe os modelos de letramento autônomo e ideológico: 1- Modelo autônomo: a leitura e a escrita são consideradas como práticas neutras, não sendo responsáveis pela formação do sujeito, mas pelo progresso e ascensão social com base na capacidade de desenvolvimento cognitivo desse sujeito. 2- Modelo ideológico: admite-se a pluralidade das práticas letradas, em que são valorizados o seu significado cultural e o contexto de produção. Este modelo ideológico envolve o modelo autônomo e considera que a marca do ideológico está também no fato de que “[...] a leitura e a escrita vêm em si mesmas enraizadas em conceitos de conhecimento, de identidade [...]” (2003, p. 5). 70 O fascículo Preciso ensinar o ‘letramento’? Não basta ensinar a ler e escrever?, de autoria de Angela B. Kleiman (2005), compõe o conjunto de fascículos do curso CEFIEL/IEL/Unicamp, destinado à formação de professores. Disponível em: http://www.iel.Unicamp.br/cefiel/alfaletras/biblioteca_professor/arquivos/57pdf Acesso: mar. 2009.

71 O termo “escrita” compreendido como “representação” permite que desenhos sejam utilizados com a finalidade de registro. De tal modo, em casos de crianças pequenas ou crianças/jovens que ainda não escrevem atividades cotidianas, como listas e lembretes (entre outros), podem ser representados com desenhos ou misturando desenhos, letras e números. A relevância dessas atividades é promover na criança/jovem a criação de uma nova relação no campo do significado, entre situações imaginadas e reais (Vygotsky, 1987).

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locais/produtos/comércio, placas de rua, crachás, camisetas com escritos. E, por fim, levar em

conta que há textos como, por exemplo, propagandas de televisão, que combinam diferentes

modos de representação - imagens, música, cores, língua escrita, língua falada - e são

chamados de textos multimodais ou multissemióticos (Kleiman, op. cit., p. 10). Ainda em

relação à propaganda de televisão, ajudar a criança/jovem a pensar sobre qual seria o produto

que ela imagina que está sendo vendido em cada uma.

Em relação à leitura, ler para os filhos desde quando são muito pequenos parece

ser a recomendação possível mais simples. Perguntamos aos pais do CCazinho se era

importante ler para os filhos, todos consideraram que sim e todos conseguiram dizer pelo

menos um motivo para isso. No entanto, dentre 10 pais, apenas uma única mãe lê para o seu

filho, o que mostra um distanciamento entre o que os pais consideram adequado sobre leitura

e o que fazem de fato. Tão importante quanto ler é partilhar brincadeiras de rima, de variação

de ritmo, de inventar palavras, de descobrir palavras, de inventar histórias. Criar histórias com

problemas hipotéticos em que a criança deve antecipar o que ela faria em determinada

situação para tentar resolvê-la. Pintar, desenhar, modelar, embrulhar coisas são atividades

possíveis em casa, e incluir a criança, desde cedo, em atividades seguras que podem ser feitas

por ela para manter a ordem e a limpeza da casa (arrumar uma gaveta, guardar suas roupas e

sapatos etc.) são acontecimentos importantes que levam a criança a considerar, por exemplo,

o planejamento do uso de espaço.

Todavia não são só as atividades envolvendo a fala, o ler e o escrever que podem

ser privilegiadas no dia a dia, a matemática também está no cotidiano de todos e, assim,

também deve ser inserida nas práticas com as crianças/jovens.

Para Murta et al. (2008), o conceito de número ajuda a identificar, por exemplo,

um objeto de uma coleção, contagem de figurinhas, número de telefone e de ônibus. A criança

deve aprender a “contar enquanto conta” e, para isso, precisa fazer uso de coisas que são

significativas para elas: lápis, brinquedo, bolinhas de gude etc. Ajudar a criança a comparar e

a estabelecer a noção de igualdade é possível de ser feito utilizando coisas muito simples,

como, por exemplo, vasilhas plásticas de cozinha com tampa: basta que se dê para a criança

uma quantidade de potes e de tampas e perguntar a ela se há mais potes que tampas. Enfim,

pode-se ajudar a criança a observar o que é igual, mais e menos em relação à quantidade. Para

os autores referidos, a primeira grande estratégia para aprender a contar é a de promover o

raciocínio de agrupamento, e um bom começo para isso é possibilitar que a criança participe

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de situações em que isso se torne possível, primeiramente, de maneira intuitiva e depois de

maneira mais elaborada.

Os problemas de matemática, antes de tudo, envolvem questões de linguagem e de

metalinguagem, assim associar os termos de “adição”, “subtração”, “divisão” e

“multiplicação” com outras palavras que façam mais sentido para a criança, a partir de seu

cotidiano, pode favorecer a trajetória dela entre os números.

Pode-se pensar criticamente que as atividades propostas só são possíveis para os

pais que tenham um bom nível de ensino. Não se trata disso. Pelo contrário, trata-se de tornar

possível, na interação com os pais, a aproximação destes com o que o filho vem fazendo na

escola e ajudá-los a compreender que pais e filhos, muitas vezes, vivenciam esse mesmo

conteúdo formal dado pela escola em seu cotidiano, que foi o que ocorreu na seguinte

situação exemplo:

Em abril de 2010, RD, 7a7m, não compreendia o que estava sendo solicitado na

sua lição de matemática que envolvia figuras geométricas e Imc a ajudava em relação a isso.

O exercício matemático era o de discriminar, nas sombras dos sólidos geométricos, quais

figuras geométricas estavam presentes. ES (madrasta de RD) contou que ela não podia ajudar

porque não sabia o que queria dizer “sólido geométrico” e, além disso, não sabia também a

quais figuras geométricas o problema se referia, já que ela só conhecia o triângulo, o círculo e

o quadrado. Apesar de a formulação do problema estar mal feita, nessa situação foi possível

fazer um ajuste entre os objetos que RD e ES conheciam e os nomes dos “sólidos

geométricos” exigidos pelo problema. Depois disso, ES pode retomar o problema junto com

Imc e RD. O que ficou em suspenso tanto para RD quanto para ES foi relacionar as coisas

concretas do mundo da criança com os conceitos e formas exigidas pelo exercício.

Em relação a jovens, além de tudo o que foi relatado sobre o letramento, há a

possibilidade de motivá-los a: conhecer as letras das músicas de cantores ou do estilo

preferido; conhecer a biografia de atores, cantores, jogadores, enfim, de pessoas que lhes

chamam a atenção por diferentes motivos; assistir a filmes em grupo e depois discutir com os

colegas; analisar com os amigos as propagandas de televisão, tentando entender a que público

é dirigido, quais produtos vende, os apelos que são feitos a favor do produto e o que eles

podem pensar como crítica disso; montar um jornal entre amigos ou na escola; descobrir os

eventos culturais gratuitos que estão acontecendo na cidade e participar deles; visitar uma

rádio, um jornal ou cinema e observarem que profissionais trabalham com isso e o que fazem;

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visitar quaisquer outros profissionais por quem tenham interesse; desenvolver um trabalho

voluntário; cumprir tarefas em casa incluindo-os o máximo possível na rotina de vida da

família; ler jornais grátis de carro, de venda de apartamento etc. Enfim, essas são algumas

sugestões que podem ajudar a ampliar o conhecimento de mundo por parte dos jovens e de

seus familiares.

Outra crítica que pode ser feita às sugestões dadas, talvez, seja referente ao fato de

que jovens de cidades pequenas têm menos chance de conhecer tudo isso. De fato, talvez, não

seja possível acolher essas sugestões todas, mas outras, tão importantes quanto essas, podem

ser plausíveis, como, por exemplo: descobrir o que falta na cidade; discutir sobre isso;

participar da política da cidade; saber sobre os recursos naturais da região; montar grupos de

interesse; levantar a história da cidade com os moradores mais antigos; assistir a filmes em

grupo etc.

Nesta tese, o cuidado de listar propostas de atividades põe em relevância que essas

experiências se tornarão um conhecimento prévio para a aquisição e uso da leitura/escrita, o

que é compatível com a hipótese de Luria (1988) e de Vygotsky (1991) de que uma criança

não chega sem saber nada na escola, ou seja, ela já se relaciona com a leitura, com a escrita,

com a matemática antes de entrar na escola. Entretanto, não se pode desconsiderar que esse

conhecimento está presente no cotidiano sendo proveniente do meio social em que a

criança/jovem vive; enquanto que da escola espera-se o conhecimento formal e a

possibilidade de uso da língua padrão em diferentes gêneros discursivos. E, nesse sentido,

deve-se destacar que a escola terá sucesso no ensino do conteúdo formal se puder incorporar o

conhecimento prévio dos seus alunos.

Estive considerando até esse momento a importância de que os pais valorizem a

função social da escrita e de como essa valorização pode interferir no conhecimento prévio da

criança/jovem. Fiz também referência ao fato de que o discurso dos pais quanto às dificuldade

dos filhos, na maior parte dos casos, se ancoram nos discursos médico, escolar etc. E, em

função de tudo isso, o objetivo maior do CCazinho junto aos pais é o de que conheçam a

materialidade da leitura e escrita dos filhos e o contexto em que ela ocorre.

Com esse objetivo, o CCazinho mantém três condutas fundamentais em relação à

família: a primeira diz respeito ao esclarecimento de que não emitimos ou lidamos com

diagnósticos vagos ou determinísticos, mas com sujeitos e sua relação com a fala, a leitura e a

escrita. Na perspectiva da ND, considera-se que, na base dos diagnósticos, estão: os trabalhos

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linguísticos realizados pelas crianças que não culminam na sua entrada na leitura e na escrita;

a concepção partilhada com Vygostky (1997) de que o atraso nos acontecimentos desses

processos na vida da criança pode se dever ao fato de que diferentes crianças trilham, em

diferentes tempos e de diferentes maneiras, o percurso normal de leitura e escrita; e,

finalmente, a importância da escrita se constituir como uma atividade motivada socialmente

para a criança, o que inclui a participação da família.

A segunda conduta busca esclarecer aos familiares que não podemos interferir no

uso de remédios tomados pela criança/jovem, sejam quais forem, uma vez que isso é de

alçada médica. No entanto, insistimos para que se informem muito e sempre sobre isso.

Explicamos também aos pais, por um lado, sobre a realização excessiva de diagnósticos na

área de leitura e escrita e, por outro, sobre o excesso de medicação (Ritalina e Concerta) que

está sendo ministrada sem que haja estudos médicos e laboratoriais definitivos quanto aos

efeitos colaterais desses psicofármacos.

A terceira conduta abrange a participação dos pais no trabalho que é realizado

com a criança/jovem no CCazinho, o que pressupõe a sua reflexão sobre um conjunto de

questões que se relacionam com os processos de leitura e escrita do filho, assim como os dos

próprios pais, sobre a noção de escola partilhada por ambos.

A primeira conduta é um forte divisor da demanda familiar. Há famílias que não

aceitam a não valorização do diagnóstico de leitura e escrita do filho e, diante da nossa

postura, desistem do acompanhamento no CCazinho. Outras entram no processo de

acompanhamento e, por muito tempo, demandam informação sobre o que consideram a causa

do problema do filho, responsabilizando o diagnóstico, e/ou os professores e/ou os próprios

filhos. Porém, assim que esses familiares começam a lidar com as questões reais de leitura e

escrita do filho, esses temas deixam de ser tratados dessa forma.

Nos encontros realizados com os familiares no CCazinho, todas essas questões

acabam sendo retomadas a partir dos discursos dos pais, que também suscitam outras, como,

por exemplo: o que você (pai, mãe, avó) considera como sendo a dificuldade de leitura e

escrita da sua criança/jovem? Como você se relaciona com a escola da criança/jovem? Você

acha que seu filho tem condições de vir a ler e a escrever? O que você sabe sobre o

diagnóstico de seu filho?

Algumas reflexões decorrentes dessas perguntas serão os temas abordados a partir

de agora. A relevância dessa apresentação está em dar visibilidade a não existência de um

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caminho direto entre avaliação da criança/jovem e seu acompanhamento. Grande parte do

trabalho realizado no CCazinho diz respeito a desenvolver a consciência de pais,

crianças/jovens, cuidadores sobre questões suscitadas pela leitura e escrita no contexto

histórico atual, em que tanto a família quanto a escola encontram-se, frequentemente,

desprotegidas no exercício de suas funções.

4.1 O que dizem os pais sobre as dificuldades de ler e escrever de seu filho

Nos encontros com os pais, conhecemos diferentes imaginários sobre as

dificuldades dos filhos e sobre como explicam essas dificuldades.

Por um ano inteiro, CP, mãe de EP, perguntou-me, todas as vezes em que se

encontrava comigo, sobre o exame de eletroencefalografia do filho, cujo resultado é normal.

CP, mesmo sabendo pelo médico sobre a normalidade do resultado, acreditava que havia

alguma coisa alterada no exame de EP que justificaria o fato de ele ser inteligente, normal

para tudo, menos para ler e escrever (CP, 2008). Nos encontros com CP, individuais e em

grupo, ela começou a trazer informações diferentes sobre como EP entrou cedo e imaturo no

primeiro ano escolar. Além disso, CP passou a contar o quanto seu filho faltava nas aulas e

resistia em frequentar a escola; o quanto ela permitia que isso acontecesse; o quanto ele

chorava quando a professora falava mais alto com ele ou com outros alunos e o quanto ela não

conseguia fazer nada com ele em relação à escrita. Segundo ela, quando sentavam juntos para

ler e escrever, eles começavam bem, mas logo a situação ficava insuportável: EP começa a

chorar e eu fico aflita, nervosa. Eu não sei o que ele sabe escrever. Eu sei que ele não

suporta escrever (2008).

Em meio a essas reflexões, CP se aproximou da leitura e da escrita de EP e passou

a ver o problema do filho como uma construção social, e não biológica - constatação que

abriu para o novo, isto é, a possibilidade de diferenciar a realidade partilhada por CP e EP em

relação às questões de leitura e escrita. Nesse novo lugar, passou a fazer parte da relação entre

mãe e filho a ideia da função social da escrita, enquanto acontecimento cotidiano, ou seja,

desvinculado das atividades escolares. Desse modo, a tensão existente nas práticas de escrita

realizadas por eles foi se atenuando.

Refletir com os pais sobre a sua aproximação do filho, a partir dos processos de

leitura e escrita deste, significa também pensar sobre o quanto acreditam que suas

crianças/jovens se tornarão leitores e escreventes. Essa é uma questão que se mostrou muito

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importante nos encontros em grupo e individuais com pais e também e, ao mesmo tempo,

como uma questão difícil de ser debatida, porque, frequentemente, as respostas eram: eu

nunca duvidei disso; na vida nada é impossível; tem que acreditar, não podemos desistir etc.

Entretanto, esse tipo de resposta não dá margem para abrir a questão e refletir de fato sobre

isso.

4.2 Olhar para o filho como possível leitor/escrevente

Na tentativa ainda de se buscar subsídios para entender se estes pais olham para

seus filhos como possíveis leitores e escreventes, outras questões foram formuladas: o que

vocês fazem com eles em casa; qual uso social vocês fazem da escrita; naquilo que seu filho

participa socialmente, há o envolvimento de leitura e de escrita; sobre que assuntos vocês

conversam mais? Por meio das respostas dadas a essas perguntas, o que se viu foi que a

maioria dos pais não se aproxima do filho através da leitura e da escrita. E essa postura não se

deve, necessariamente, às questões sociais. Diferentes pais de diferentes classes sociais e com

diferentes níveis de formação agem de maneira parecida: a leitura e a escrita são dificuldades

e, por isso, devem ser evitadas e reservadas para a escola e para o CCazinho.

A sistematização dos encontros colabora para que questões como essas sejam

exploradas de diferentes maneiras, ainda que retornem sempre porque o grupo muda tanto em

relação a seus participantes quanto ao fato de que as pessoas se encontram em momentos

diferentes de reflexão. O que será exposto abaixo demonstra o quão difícil pode ser para uma

mãe experimentar se observar em relação ao que acredita com referência à possibilidade de

ler e escrever do filho.

JS é mãe de AS, 14 anos, portador da Síndrome de X-frágil, que frequentou uma

escola particular por cinco anos. Os cadernos produzidos em ambiente escolar durante esses

anos todos são iguais: cadernos inteiros de cópia de letras e de números. AS parecia ser muito

tímido e conversa muito pouco com outras pessoas, além disso, não escrevia, não lia. No

início de seu acompanhamento no CCazinho, em 2009, ele respondia ao outro de forma

monossilábica sem contato de olho, com a cabeça sempre abaixada. Quando JS, mãe de AS,

começou a frequentar o grupo de familiares, no segundo semestre de 2009, ela também quase

não falava e, muitas vezes, mesmo estando no IEL aguardando o acompanhamento do filho,

nem sempre entrava na sala em que estava sendo realizado o encontro de famílias. Mas, ainda

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assim, ela esteve presente na maior parte dos encontros em que o tema sobre olhar para o filho

como possível leitor/escrevente foi discutido, mesmo não dando sua opinião sobre isso.

Entretanto, essa situação mudou em um dos encontros do mês de novembro de

2009, quando JS tomou a palavra: Ontem eu saí e quando voltei eram quase 3 horas da tarde

e o AS me disse que uma amiga minha havia ligado e deixado o número para que eu ligasse.

AS me deu um papel com o número do telefone escrito. Eu peguei o papel e achei que não

adiantava ligar, porque AS não sabe anotar o número de um telefone, mas também não

consegui jogar fora o papel. Fiquei com aquele papel no bolso da calça e, enquanto fazia

uma coisa e outra na cozinha, eu voltava a olhar para aquele papel e conferia se tinha o

tanto de número que um número telefônico tem, se começava com o prefixo da minha cidade.

Não conseguia ligar e nem jogar o papel fora. O papel já estava ficando amarrotado e suado

na minha mão. Eram quase 8 horas da noite e eu decidi. Liguei. Minha amiga atendeu.

Nossa, eu não sabia o que era para falar. Eu descobri que ele sabe fazer coisas. Valeu a pena

essas cinco horas de sofrimento (JS, nov. de 2009).

As reflexões de JS abriram um importante espaço de mudança para AS. No ano

de 2009, JS tirou AS da escola particular quando se conscientizou de que tudo o que ele fazia

lá era cópia. Em seguida, ela o matriculou na APAE da cidade onde moram e ele passou a se

interessar pelas oficinas (trabalhos diversificados realizados em grupo sob a supervisão da

APAE). Neste ano de 2010, AS entrou em uma oficina oferecida para aprender a profissão de

padeiro. AS se apaixonou pela cozinha, por fazer pão, esfihas e outras massas. No segundo

semestre de 2010, AS não participará mais do CCazinho em grupo, apenas no individual

(acompanhamento realizado por Ima), porque a padaria funciona no período da tarde e ele não

admite faltar nenhum dia no trabalho assistido da APAE. Ele e a mãe estão mais falantes e

alegres. Ele quer ser padeiro e, por conta própria, foi pedir um emprego para o dono da

padaria perto de sua casa, mas, não tendo ainda 18 anos de idade, não pode trabalhar. Então,

AS decidiu que quer fazer salgados para vender e a família está apoiando a sua ideia.

Aparentemente, a descoberta de JS sobre AS foi a de que ele poderia fazer coisas,

ter mais independência, desenvolver sua própria estratégia para ler e escrever, já que ele

conhece o estilo receita, entende números etc. Nesse caso, parece que, quando JS procurou o

leitor e escrevente no filho, descobriu o próprio filho e ele correspondeu a isso.

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4.3 Sobre o diagnóstico dado ao filho

Como já referi, os diagnósticos realizados na área de leitura e escrita mobilizam

um conjunto de questionamentos. E, na relação assimétrica entre quem avalia e quem é

avaliado (COUDRY, 1988), não costuma ser considerada, muitas vezes, a importância da

família (ou do próprio paciente) entender o que quer dizer a conclusão de uma avaliação ou

exame realizado. Condutas assim possibilitam que a família repita o nome de uma

patologia/transtorno sem saber de fato do que se trata. Esse é o caso do senhor AC, avô de

KC.

No processo avaliativo de KC, 8 anos, 3ª série, encaminhada pela escola em 2007,

ela estava acompanhada de seu avô, que é quem a cria. Trata-se de um senhor aposentado

como soldado da polícia militar. O senhor AC se mostra muito afetivo com KC e também

muito preocupado com os problemas de leitura e escrita da neta. Ele conta que ela esteve em

avaliação em outro setor na Unicamp em 2006 e que foi constatado um problema.

AC: Eles levaram quase 3 meses para fazer a avaliação nela e o resultado foi que ela tem essa doença. Iss: Que doença, senhor AC? AC: (Emocionado) Eu não gosto nem de falar, mas ela tem um problema na cabeça. Me explicaram que a cabeça dela funciona diferente de outras crianças. Iss: Diferente como? AC: Ela vai ser assim para o resto da vida. Iss: Assim como? AC: Não vai aprender nada. Iss: O senhor tem o nome disso? O Senhor AC se lembrou que trouxe uma pasta com documentos de KC e nela havia a conclusão da avaliação. O resultado referia o diagnóstico de Distúrbio de Aprendizagem. Iss: O que o senhor poderia me dizer de sua neta? AC: É uma menina esperta, cuida da irmã mais nova, é conversadeira e curiosa sobre tudo. Aprende rápido tudo o que eu ensino para ela. Iss: E quanto à escola, como ela está? AC: KC entrou na primeira série aos 6 anos de idade e ela não conseguiu aprender a ler e a escrever, mas depois eles foram passando ela de ano.

Novamente explico para o senhor AC que a referida avaliação considerou apenas

a leitura e a escrita de KC, avaliando, justamente, o que ela ainda não sabe, deixando de

avaliar o que ela sabe, e por isso constatou esse problema.

Já no início do acompanhamento de KC, por Ims, percebeu-se que suas questões

não eram de ordem biológica e ela se mostrou capaz de superar suas dificuldades nos

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processos de fala, leitura e escrita. KC permanece em acompanhamento (com Ijd e, mais

recentemente, também com Ibf) no CCazinho. Ela lê e escreve, continua se interessando por

tudo e demonstra, sem nenhuma possibilidade de dúvida, que um dia lhe impuseram um

diagnóstico, que se mostrou falso.

4.4 Sobre a escola como falta de sentido para diferentes gerações

Uma das grandes dificuldades encontradas no CCazinho em se trabalhar a função

social da escrita com crianças e famílias é a própria exclusão da família dessa prática.

GS, mãe de BS, 11 anos, em encontro familiar individual em dezembro de 2009,

falou sobre a dificuldade que tem em fazer BS se interessar pelas coisas de escola. Um tema

que acabou se impondo naquele dia foi o da presença da escola na vida da própria GS. Ela

contou, então, que ninguém na sua família tinha conseguido estudar e obter um diploma

incluindo a geração dos pais dela, a sua e a dos irmãos, inclusive da sua irmã mais nova de 18

anos, que tinha oportunidade para estudar, mas não se mobilizou, e, finalmente, dos seus

sobrinhos e sua filha, que também não gostam de estudar. A escola aparece nessa fala com um

lugar sem sentido. GS disse ainda que as profissões de seus familiares são, na maior parte dos

casos, de ajudante de limpeza, pedreiro e empregada doméstica. Nesse dia, perguntei-lhe se

queria estudar, ela disse que era tudo o que mais queria, mas também não sabia nem o que

fazer para isso, porque nunca se informou.

O relato de GS é relevante para mostrar que essa é a história de muitas famílias do

CCazinho, as quais, por gerações, mantiveram-se excluídas dos processos de leitura e de

escrita enquanto patrimônio cultural, social e político, e, talvez a reflexão sobre a dificuldade

de leitura e escrita apresentada pela filha, em acompanhamento no CCazinho, possa vir a ser

uma possibilidade da quebra da repetição da exclusão como tradição nessa família e, enfim,

poder fazer diferente.

4.5 Escola e Família: queda de braços

Indagados sobre a relação que mantêm com a escola do filho, especialmente as

públicas, as respostas dos pais relatam insatisfação em relação a quase tudo: o tratamento que

recebem de professores ou outros participantes da escola, da qualidade de ensino, da falta de

educação das crianças, do ambiente de violência e de como o que a criança ou a mãe fala não

é valorizado.

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Encontrei poucas referências na literatura sobre a interação entre Escola e Família

e destaco o nome da professora Armanda Álvaro Alberto, participante do movimento da

Escola Nova72, como a pioneira da proposta de unir Família e Escola realizada no ano de 1921

no Rio de Janeiro (em Duque de Caxias); a LDB de 1966, que também privilegia o lugar da

Família na instrução da criança e a parceria entre a Organização das Nações Unidas para a

Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e o Ministério da Educação (MEC), que busca

criar e desenvolver, desde 2008, projetos e políticas de interação Escola-Família com o

objetivo de garantir aos alunos o direito de aprender.

A Escola e a Família são instituições que sofreram grandes mudanças nas últimas

décadas e juntas desgastaram sua função comum: educar. Ambas as instituições, refletem o

funcionamento de uma sociedade, e, aparentemente, falharam ao mesmo tempo: a família

clama por uma escola ideal e a escola por um aluno ideal, com uma família ideal. O “não

saber” da criança/jovem e o “não saber” da escola quebram esses ideais, sobrando decepção

para ambas as partes.

E, assim, se a família reclama da escola, os professores também têm muito a

dizer: Agora tudo é desatenção ou falta de atenção, tudo é Transtorno e Déficit de Atenção.

Eles (os alunos) só prestam atenção no que querem e isso nunca é a matéria que estou dando.

Sabe do que eles sofrem? De falta de educação (SI, 2008). Outra professora completa: eu

tenho medo de meus alunos e isso não tem importância para ninguém. Eles gritam comigo,

me dizem palavrão. Vou chamar os pais deles! Quem disse que eles vêm? Você acha que

meus alunos têm quantos anos? 16, 17, 18 anos? Não, apenas 9 anos (SN, 2008).

A estruturação familiar não é condição única, mas em muitas situações é condição

fundamental para o sucesso das crianças na aquisição de leitura e escrita, enfim, para o bom

desempenho escolar, como nos esclarece o sociólogo francês Bernard Lahire (1997). Ele

estudou crianças de bairros pobres da periferia da França que se saíam bem nos estudos,

72 O movimento Escola Nova surgiu na década de 1920 e se estabeleceu na década de 1930, após o Manifesto da Escola Nova (1932), e pleiteava a universalização do ensino de base laica e gratuita no Brasil. Seus precursores foram: Anísio S. Teixeira, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Cecília Meireles, Darci Ribeiro e Florestan Fernandes.

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destoando da grande maioria dos alunos da mesma escola, e descobriu que a diferença que

essas crianças traziam era o fato de que suas famílias tinham um projeto de vida que incluía o

saber da criança. Lahire considera, ainda, que a existência de um projeto de futuro impõe uma

organização à família e isso foi percebido, inclusive, pela melhor arrumação e cuidado com a

casa dessas crianças em detrimento das outras.

Entretanto, até quando os pais demonstram interesse pode gerar uma situação

litigiosa entre Família e Escola. Foi o que se viu em um encontro de grupo de familiares

realizado em março de 2010. SP, mãe de LP, 10 anos, entrou na sala indignada e contou que

tinha ido até uma escola (pública) do seu bairro para tentar transferir seu filho. SP era uma

mãe bastante determinada e a prioridade para ela e o marido é o estudo dos 3 filhos.

O motivo de ela ter buscado essa mudança foi a onda de violência que ocorria na

escola de seu filho desde o final de 2009. Frequentemente, a polícia tinha que intervir para

resolver conflitos entre os alunos do ensino fundamental. Na nova escola que procurou,

conversou com o diretor e explicou a ele a situação. O diretor perguntou-lhe se o filho tinha

alguma dificuldade na escola e ela explicou que ele tinha tido algumas dificuldades na escrita,

mas estava em acompanhamento e estava melhor nesses aspectos No mesmo instante, o

diretor lhe disse que não poderia matricular LP com esses problemas, porque o nível da escola

cairia e poderia prejudicar o recebimento do Bônus (conforme foi referido no capítulo 2)

oferecido pelo governo estadual de São Paulo para a escola e professores. SP recorreu à

Secretaria de Ensino, pedindo ajuda para resolver a situação, e a sua questão agora era: se a

secretaria autorizar a matricula do seu filho na nova escola, como ele será recebido nesse

lugar? Ou seja, ela continuava com medo tanto da violência presente na escola do filho quanto

das palavras do diretor da possível nova escola.

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5. Uma fala em espera Pirulito que bate bate Pirulito que já bateu Quem gosta de mim é ela Quem gosta dela sou eu Pirulito que bate bate Pirulito que já bateu A menina que eu gostava Não gostava como eu (Domínio Público)

Escolhi essa cantiga de roda para abrir o último capítulo, inspirada na alegria das

duas crianças que apresento agora. Trata-se de duas meninas, RD e FS, quase da mesma

idade, em torno de sete anos e meio, que, por motivos diferentes, entram no eixo fala, leitura e

escrita subvertendo a ordem esperada entre os componentes desse eixo.

Vygotsky (2007), em seus estudos sobre o desenvolvimento do simbolismo no

desenho, entende o desenho como atividade da pré-escrita na criança (e da história da

humanidade). Este autor considera que, quando uma criança começa a desenhar a linguagem

falada, já alcançou grande progresso com a linguagem que já se tornou habitual nela e modela

a maior parte de sua vida interior (pensamento, imaginação) e, obviamente, quando a criança

entra para a escrita, a fala é de seu pleno domínio.

Freud, na sua apresentação sobre como a leitura e a escrita acontecem na vida da

criança, considerou unicamente as crianças que falam e escutam, pois sua explicação sobre

esses processos se pautou, principalmente, na presença da imagem sonora e motora da fala.

Entretanto, as duas crianças que passo a apresentar, mesmo sendo ouvintes, não

tinham fala à época que se iniciaram na leitura e escrita (uma delas continua não tendo). E

embora apresentassem o mesmo sintoma de não falar, cada uma delas teve uma motivação

diferente para entrar no mundo das letras.

5.1 Duas meninas, duas histórias RD, 7a10m, 3ª série de escola pública, teve dois acidentes vasculares cerebrais

antes de completar seu primeiro ano de vida. Como sequela dos episódios neurológicos, ela

apresenta cerebralmente: “dilatação discreta de ventrículos; dilatação de sulcos e

encefalomalacia lacunar no parênquima adjacente com provável etiologia sequelar a evento

isquêmico prévio no hemisfério direito; lesões lacunares talâmicas e no pólo temporal

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esquerdo, também aparente sequelar” (exame de tomografia computadorizada em

03/06/2003). Diferentes exames realizados posteriormente indicaram também padrão de

deglutição imaturo (17/05/2005) e avaliação audiométrica normal (2005).

A avaliação fonoaudiológica que realizei, em 2006, quanto aos órgãos

fonoarticulatórios do ponto de vista funcional indicou: dificuldade acentuada para engolir

saliva, com sialorreia constante, e pouca elevação de língua e nenhum movimento para as

laterais (ainda assim comia os mesmos alimentos que sua família). Sua musculatura facial se

mostrava enrijecida, não havia aproximação dos lábios em nenhuma situação, o reflexo de

vômito era bastante presente e não havia emissão de som. RD não demonstrava dificuldade

para andar, sentar ou correr, era bastante atenta a tudo o que acontecia a sua volta e muito

interessada em brincar comigo com as miniaturas de utensílios domésticos recriando cenas do

cotidiano. Contudo, ela se apresentava bastante resistente a qualquer toque meu em seu rosto

ou boca, o que se devia, segundo a sua mãe, aos períodos de internação e constantes consultas

médicas.

Iniciado o acompanhamento fonoaudiológico com RD, contou-se também com a

participação da mãe, a quem eram explicados os procedimentos fonoaudiológicos e como ela

poderia reproduzi-los em casa com a criança. Depois de quatro encontros, a mãe dizia que não

conseguia fazer em casa os exercícios fonoarticulatórios. Ela começou a faltar ao

acompanhamento e em 4 meses desistiu completamente. Nessa mesma época, ela também

estava sob risco de perder a guarda da filha para o ex-marido.

Em 16 de setembro de 2009, RD retornou ao CCazinho, aos 7 anos e 1 mês, na

companhia da atual esposa do seu pai (ED) que, junto com ele, cuida de RD. A mãe perdeu a

guarda. RD frequenta a escola, faz leitura silenciosa, escreve com a mão esquerda, interessa-

se por histórias e continua muito participativa e alegre. A outra avaliação fonoaudiológica que

realizei em RD, nesse ano, mostrou uma diferença em relação a 2006 quanto à emissão

ocasional da vogal /a/ e o fato de sua alimentação agora ser pastosa porque ela se engasga

com frequência. RD não apresentava iniciativa para falar e comparativamente apresentava

iniciativa para escrever o que queria falar, sendo que seu contexto familiar e social não via a

fala como uma possibilidade. RD se mostrou fazendo rico uso de gestos, muito ativa, porém,

silenciosa, não emitindo nenhum som. RD frequenta também o acompanhamento

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fonoaudiológico em Comunicação Alternativa73 na Faculdade de Fonoaudiologia da

Unicamp.

O trabalho realizado com RD no CCazinho envolve o acompanhamento individual

e coletivo, sendo que no individual ela é acompanhada por mim e por Imc. Nos

acompanhamentos individuais, há a participação também de ED e, do ponto de vista

fonoaudiológico, os objetivos se estendem às questões do sistema estomatognático74

(respiração, deglutição, mastigação) e do empenho com ela para que faça uso das pregas

vocais75, dentre outras orientações. O trabalho com a fala de RD objetiva a produção de sons

relacionando parte dos órgãos envolvidos na fala com os que também participam da

deglutição, da mastigação e da respiração, sem deixar de considerar o comprometimento

neurológico que incide gravemente em seus órgãos fonoarticulatórios, o que impede a fala.

Apesar do pouco tempo de acompanhamento, RD está apresentando mudanças

significativas em relação ao maior controle da sialorreia, melhora na mastigação, diminuição

de engasgos, reflexo de vômito mais anteriorizado. Com vistas à fala, RD tem apresentado

vocalizações que funcionam como uma vivência da fala no corpo, que reúne o que é da ordem

da propriocepção e possibilidade de intenção para falar. RD está se mostrando mais motivada

para fazer uso de sons, já que para sua sobrevivência psico-afetiva e social ela desenvolveu

um uso criativo de gestos, realizados com rapidez e vivacidade de olhar, além de desenhos

cheio de detalhes e de uma escrita eficiente - todos com função de fala, ou seja, de se

relacionar pela linguagem com o outro.

Para mostrar a iniciativa nascente na fala de RD, relato um dado entre ela e uma

das cuidadoras (Ifo). Ao final de uma sessão coletiva do CCazinho, todos diziam o mês e o

dia de seu aniversário. Chegando a vez de RD, ela disse /ao/ e todos imediatamente 73 O termo Comunicação Alternativa e Ampliada (CAA) define outras formas de comunicação como o uso de gestos, língua de sinais, expressões faciais, pranchas de alfabeto ou símbolos pictográficos, sistema de computador com voz sintetizada (GLENNEN, 1997). A comunicação é considerada Alternativa quando o indivíduo não apresenta outra forma de comunicação e Ampliada quando o indivíduo possui alguma comunicação, mas essa não é suficiente para suas trocas sociais. No Brasil, a CAA vem sendo traduzida de diferentes maneiras: Comunicação Alternativa e Aumentativa, Comunicação Alternativa e Suplementar, Comunicação Alternativa e Ampliada. Para a American Speech-Language-Hearing Association (ASHA, 1991), um sistema de Comunicação Alternativa é “o uso integrado de componentes incluindo símbolos, recursos, estratégias e técnicas utilizados pelos indivíduos a fim de complementar a comunicação”. Disponível em: http://www.comunicacaoalternativa.com.br/adcaa/ca/oquee.asp. Acesso em: nov. 2009. 74 Por sistema estomatognático, entendem-se as funções de respiração, mastigação e deglutição que participam das relações de equilíbrio miofuncional dos órgãos fonoarticulatórios. 75 Em novembro de 2009, foi realizada pela fonoaudióloga Dra. Ana Lúcia Spina a avaliação das condições vocais de RD, que se encontram normais.

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reconheceram o mês de agosto. Esse acontecimento, de uma certa maneira, reflete uma nova

fase na vida de RD, passando a fazer uso de sons que promovem no outro possibilidade de

atribuição de sentido.

A outra menina que analiso é FS, 3ª série de escola pública, 7a6m, primeira filha

de um jovem casal. Segundo o relato de sua mãe em relação a sua saúde (pré, peri e pós-natal)

e desenvolvimento neuropsicomotor, a questão da fala/linguagem é a única intercorrência

importante. Por essa razão, FS foi submetida, aos 2a6m de idade, a eletroencefalograma,

obtendo resultado normal, e, aos 3 anos, ao B.E.R.A. (audiometria de respostas elétricas

evocadas) para avaliar a condução eletrofisiológica do estímulo auditivo da porção periférica

até o tronco cerebral, também com resultado normal.

Meu primeiro contato com FS se deu em 31 de agosto de 2006 em avaliação

fonoaudiológica em consultório. Na ocasião, brincamos juntas com diferentes miniaturas de

utensílios domésticos, recriando cenas do cotidiano. FS se mostrou interessada pelo que

fazíamos, ela estava alegre e produzia uma fala ininteligível. Apesar de uma entonação

marcando contornos prosódicos da língua (pergunta, narrativa, por exemplo), eu não

conseguia compreender nada do que ela me falava. Havia ali vocalização, mas não

verbalização.

Continuando com a avaliação fonoaudiológica, mostrei a FS o gravador que usava

para gravar a sessão e lhe disse que ela iria ouvir tudo o que “conversamos” e voltei a fita para

o início da gravação. Quando ela começou se ouvir, pareceu não entender o que estava

acontecendo ali, então, fui pausando a gravação com a intenção de levá-la a perceber a minha

fala e a dela. Sua reação, enquanto ouvia a gravação, foi a de indicar o gravador (ou a voz

saindo dele) e girar o dedo indicador ao redor do ouvido, fazendo o gesto de “biruta”. Esta

cena ficou marcada para mim como representativa da particularidade desse caso, dando

indício para diferentes reflexões: provavelmente FS não se reconheceu ali; aparentemente,

esta foi uma possibilidade diferente de FS ouvir a própria fala e voz; FS fez uso de um gesto

socialmente construído na nossa cultura nas situações em que uma pessoa se encontra fora da

realidade. Surpreendeu-me o fato de uma criança tão nova, e que fala como fala, fazer uso de

um gesto que, em princípio, não seria coerente com a natureza de sua fala naquele momento.

Surpreendeu mais ainda a reação distinta de FS em situação em que ocupa o lugar de quem

fala, de quem escuta a própria fala e de quem escuta a fala do outro, quando aparenta

interpretar com compreensão o que escuta.

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FS, estando próxima de completar 4 anos de idade, parecia apresentar problemas

justamente para realizar o trabalho linguístico de segmentar, delimitar, diferenciar a massa

fônica em partes analíticas, ou seja, em significantes (SCARPA, 1992, 1999a). E,

aparentemente, isso ocorria quando produzia sua fala e não quando escutava a fala do outro,

conforme mencionado. Assim, ouvindo a gravação de FS, descrevo apenas os sons por mim

percebidos: /k,/d,/g/, /a/,/ã/,/i/,/o/,/õ/,/u/.

Nos encontros subsequentes com FS, realizei a avaliação cuidadosa de seus

órgãos fonoarticulatórios (OFA) e constatei, por um lado, a preservação e funcionalidade do

sistema estomatognático e, por outro, em relação à fala, boa capacidade para execução de

movimentos isolados na repetição de sons asseguradamente presentes nas suas produções.

Porém, o mesmo não acontecia quando esses sons estavam combinados em uma sequência

simples, ainda que fosse produzida espontaneamente. Trata-se, então, de um quadro de

apraxia? De acordo com Luria (1977), na apraxia a dificuldade está no comando do

movimento, mais precisamente na ordenação dos componentes do movimento, o que

compromete sua realização (FEDOSSE, 2000).

Para compreender um pouco mais sobre a produção de sequências de sons na fala,

recorro a Rodrigues (1989), que se apóia em Luria e que, nos seus estudos sobre o controle da

produção da fala a partir de exames eletromiográficos76, descreve que o trabalho do sistema

nervoso central do ponto de vista da coordenação dos gestos articulatórios pressupõe um

grande número de comandos motores predeterminados e implicados na armazenagem

(memória) e seleção de cada um desses gestos. Para este autor, a posição dos órgãos

fonoarticulatórios não pode ser zerada após cada gesto articulatório, sendo que os gestos

articulatórios adjacentes apresentam certo grau de sobreposição espaço-temporal. Além disso,

o contexto da ocorrência da fala também interfere e altera o comando motor de um mesmo

gesto articulatório. Rodrigues conclui que, dada uma combinação de configurações espaciais

dos OFA em contexto fonético, “dela emerge uma organização temporal a ela intrinsecamente

associada e que mudanças em uma delas implicaram reorganização da outra e vice-versa”

(1989, p. 28).

Para além das questões envolvendo os gestos articulatórios, notei, nas atividades

com propostas de desenho, que FS não desenhava. Obviamente, não pode ser desconsiderado

76 Grosso modo, o exame de eletromiografia é realizado para avaliar função, força, reação de músculos, o que é feito com o auxílio de agulhas acopladas a eletrodos.

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o fato de FS, segundo sua mãe, nunca ter frequentado a escola e de, em casa, preferir brincar

com bonecas e assistir à televisão a desenhar. Colocando em suspenso a apreciação de sua

impossibilidade de desenhar, FS não apresenta nenhum problema para andar, correr ou pegar

objetos. Diante dessas constatações, fiz seu encaminhamento para avaliação com neurologista

e com terapeuta ocupacional. Como a família não conseguiu esses serviços na rede pública e

não tinha convênio médico e nem condições para pagar, nenhuma dessas duas avaliações foi

realizada.

O trabalho que passei a realizar com FS, juntamente com a sua mãe, então, deu-se

em duas frentes: aproximar a vocalização da criança da língua77 e ampliar sua inserção social,

já que suas únicas interlocutoras eram a mãe e a avó, e trabalhar seus gestos motores de fala

sob a pressuposição da ocorrência de alguma instabilidade neurológica orgânica/funcional que

interfere na fala e na linguagem de FS (LURIA, 1984, 1991).

Dando-me conta de que FS não desenhava, não gesticulava, não falava e

tampouco escrevia e lia, como conduzir FS para externalizar o que tinha de linguagem, dado

que, aparentemente, ela compreendia o que se falava com ela? Brincar foi um caminho.

Vygotsky (1991) compreende que a utilização de objetos como brinquedo

possibilita o desenvolvimento do simbolismo na criança porque se trata de gestos

representativos que têm como chave a função simbólica.

Para este autor (1987), a fala na criança começa sucedendo ou acompanhando a

ação e, de característica egocêntrica, tem como referência a situação presente. Entretanto, aos

poucos, a fala passa a preceder a ação, assumindo a função organizadora/planejadora.

Concomitantemente, a criança continua em interação com o outro, o que vai possibilitando a

ela a internalização dos mediadores simbólicos e da própria relação social, ou seja, a fala

egocêntrica se transforma em fala interior. A fala interior tem como característica ser

abreviada, reduzida em relação à fala externa. A internalização da fala ocorre na criança

aproximadamente entre 3 e 7 anos de idade e possibilita o pensamento reflexivo, o

comportamento voluntário e o controle do próprio pensamento (VYGOTSKY, 1987).

O que sustentava, então, a proposta das atividades desenvolvidas com FS era a sua

entrada na relação com o outro. O foco é a busca da materialidade da fala, em um

cérebro/mente de natureza inter-semiótica, e isso se deu em várias frentes: desenhar, contar,

77 Por esta “aproximação”, entende-se um movimento terapêutico que interfere na arbitrariedade das vocalizações de FS. O objetivo é propiciar que ela faça o ajuste dessas vocalizações à possibilidade de repetição da língua (imagem motora e sonora da palavra).

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ouvir histórias lidas, fazer/imitar gestos de fala etc. Foi desse modo que a escrita, por

iniciativa de FS, aconteceu; essas vivências funcionaram como experiências de letramento

para ela.

Em fevereiro de 2008, a mãe de FS conseguiu, finalmente, uma consulta com um

determinado neurologista. O objetivo de minha indicação para essa avaliação com este

neurologista de devia às questões que interpretei como provável apraxia motora (fala e mãos).

A orientação do neurologista, feita para mim por telefone, quando o contatei a seu pedido, foi

a de que eu deveria desenvolver com ela uma comunicação alternativa (descrita

anteriormente) porque FS dificilmente falaria. Isso porque, segundo ele, existiria uma lesão

cerebral localizada em um lugar tão imbricado do cérebro que os atuais exames por imagens

ainda não permitem a visualização. Entretanto, nem eu e nem a família de FS pensávamos

assim ou reconhecíamos esse diagnóstico como pertinente e continuamos o trabalho que vinha

sendo realizado.

Deste modo, em meio a desenhos, letras e sons, FS começou a falar. E a sua fala

trazia uma questão importante de sintaxe que ela, estrategicamente, resolvia reduzindo um

enunciado a seus elementos fundamentais, ou seja, preferencialmente usava nomes e formas

nominais (verbos no infinitivo). Parece que a fala de FS se apresentava colada na situação

vivida e, nesse sentido, aproximava-se da fala egocêntrica, entretanto as características de

uma fala predicativa, sem sintaxe, em que o sujeito reduz a extensão de sua fala, também

aproxima a fala de FS do conceito de fala interior descrita por Vygotsky.

Com essa qualidade de fala, FS, cada vez mais, dá mostras de sua subjetividade,

resultante de sua relação com o outro. Porém isso se dá de forma singular, porque nem sempre

é compreendida pelo outro, o que a impede de jogar com mais liberdade o jogo social que a

fala possibilita.

É a interlocução e os diferentes papéis discursivos que FS pode experimentar que

a ajudam a ir modificando essa situação, preparando-a para as transformações na organização

da língua, motivadas especialmente pelo aprendizado da leitura e da escrita que amplia sua

experiência verbal no contato com modelos mais expandidos de fala. Mas, ainda assim, sua

fala se apresenta com particularidades relativas à sintaxe e, ocasionalmente, isso se dá tanto

em relação à palavra quanto à frase.

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5.2 Dois desenhos, duas produções escritas Apresentarei a seguir desenhos e dados de escrita de RD e FS, procurando mostrar, através das análises, como essas crianças - cada uma a seu modo - transitam no eixo fala, leitura e escrita. Primeiramente, analisarei três dados de RD e, em seguida, passo a considerar três dados de FS.

Dado 1: Em 16/03/2010, RD, 3ª série, contou-me pela escrita sobre o que havia feito naquele dia.

A perua passou

A perua passou hoje na minha casa, eu fui na escola. Depois eu voltei para minha casa. Comi e eu tomei um banho. E vou na fono. E fiz muitas coisas.

Dado 2: Em 08 de junho de 2010, no acompanhamento individual, falávamos sobre ter coisas com o símbolo do time pelo qual torcemos. RD nos fez entender que torce pelo time do Corinthians e que não tem nenhum objeto com o símbolo deste time e, em seguida, escreveu um bilhete endereçado a uma pessoa, fazendo um pedido.

Torcendo por um time

A PERURA PASO HOJE NA MINHA CASA. EU FUI NA ESCOLA. DEPOIS EU VOUTE PARA MINHA CASA. COME E EU TOME UM BAIRO. E VOU NA FONÔ E FI MUITAS COISAS.

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Meu nome é RD. Eu tenho 7 anos. Eu torco para o Corinthians. Eu queria ganha uma coisa ou duas do Corinthians. Para: Dois beijos para

Análise: As produções de RD mostram que se trata de textos, dirigidos a um interlocutor e

com as características de uma escrita normal de quem está em início do processo de

aprendizado. As hipóteses de escrita que faz se parecem com as de outras crianças que falam.

Ou seja, RD está na linguagem fazendo hipóteses de como se escreve: no dado 1,

“paso”(passou), “voute”(voltei), “bairo”(banho), “fi”(fiz); e, no dado 2, “torço”(torco),

“ganha”(ganhar). Apesar de RD não falar, nessa última palavra, a retirada do /r/ do infinitivo

poderia ser interpretada como sendo uma marca da oralidade, como fazem comumente

crianças e jovens com prática insuficiente de escrita. Além disso, quando acentua a palavra

fono (“fonô”), ainda que de maneira inadequada, revela com o uso que faz desse acento

gráfico – específico da escrita – sua tentativa de representação de uma imagem sonora da fala.

Nesse movimento, parece que ela conta com a imagem sonora da letra e da palavra que está

na fala do outro e da imagem motora que tem como memória da realização que o outro faz,

uma vez que, na fala, RD parece apenas não ter a própria imagem motora da realização da

letra e do som. Importa ressaltar que a palavra /fono/ apresenta, na fala desse outro que RD

ouve (dialeto do interior paulista), duas vogais distintas [o] e [w]. Ou seja, RD parece

perceber essa diferença e sentir a necessidade de, na escrita, marcar isso.

Dado 3: RD faz a minha caricatura em 08/06/2010.

Minha caricatura

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Análise: RD faz este desenho em uma atividade no encontro coletivo do dia 08/06/2010, cujo

tema era “Caricaturas”. O cuidador, Ihm (aluno do curso de Artes), explicando a atividade

para as crianças disse que para fazer uma caricatura seria preciso pensar em uma pessoa e dar

relevância para uma característica dela. Outros assuntos também foram comentados nesse dia:

a aproximação do dia dos namorados, o comentário feito por uma mãe, perto de RD, sobre os

anéis que costumo usar. Uma semana antes desse encontro, RD havia levado seu livro de

matemática para Imc. E, em um problema de matemática do livro havia o desenho de um

menino que se chamava André e quando vi isso falei para ela que esse também era o nome de

meu filho. E, além disso, nos diferentes encontros que tenho com RD conversamos,

eventualmente, sobre coisas de nossas vidas.

No desenho que RD fez de mim, surpreendeu-me a riqueza de detalhes verbais e

não verbais, ou seja, multimodais, remetendo a tantos aspectos de minha vida que, reunidos,

compõem a minha caricatura. O Dia dos Namorados é dirigido à minha família toda; o anel de

amor aparece no canto esquerdo do desenho provavelmente devido à conversa que ouviu

entre mim e uma mãe; o desenho de minha língua para fora parece representar tanto meu

papel de fonoaudióloga (que toca em sua língua e a coloca para dentro da boca para impedir o

excesso de salivação) quanto a própria fala que circula entre nós; e o guarda-chuva sobre

minha cabeça parece indicar que, faça sol ou chuva, estarei prevenida e protegida.

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Nessa caricatura, RD demonstra que circula na cultura e na história e está em

relações de intersubjetividade porque consegue entrar em processos de mediação.

Passo a apresentar agora, dados de FS.

Dado 4: Uma das atividades que eu e FS fazemos juntas nesses anos em que nos encontramos é a de escrever livro de histórias. Começamos com livros bem simples apenas com desenhos e depois as letras foram fazendo parte deles até chegar ao ponto de FS escrever sozinha seu próprio livro. Esse recorte de escrita que apresento faz parte do livro “A princesa foi ao shopping”, escrito por FS, em sua primeira versão, em novembro de 2009. Trata-se do momento final do livro, quando o cavalo (Tor) encontra-se com a outra personagem (Poney).

Tor encontra Poney

TOR A CO A PONY MUTO BONITA. E AR TOAR VIVE LOR FELIZES PARA CEPE.

Tor achou a Poney muito bonita . Então viveram felizes para sempre .

Análise: Destacam-se nesse texto marcas de outros textos que FS incorpora (“Felizes para

sempre”) e marcas de uma escrita em construção com palavra de difícil compreensão:

“ar”/“toar” (“então”) e outras, como “muto” (muito) e “cepe” (sempre), escritas do mesmo

modo que crianças normais também fazem no início desse processo. Em relação à fala, FS se

encontra do mesmo modo, ou seja, está no intervalo entre ter a sua fala aproximada da fala do

outro e, em outros momentos, de se distanciar muito disso, a ponto de não ser compreendida e

quando isso ocorre refaz sua fala de outro modo até que o outro chegue ao sentido pretendido

por ela.

Dado 5: No encontro do dia 24 de junho de 2010, FS faz uma atividade de escrita que envolve três situações diferentes:

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5a: FS escreve espontaneamente e, enquanto escreve, fala.

A BOLA E REDONDA O SAPO E VERDE O MININO CAIU DA BICICLETA E MAXUCOL O ONTE EU DUMI CASA DA VOVÓ (mas fala vó) E COMER

A bola é redonda. O sapo é verde. O menino caiu da bicicleta e se machucou. Ontem eu dormi na casa da vovó e comi.

5b: Ela escreve espontaneamente e não fala.

O PATO ESTÁ CATÃO DO PARA PATA O MACACO ESTÁ COMER DO BANANA O JOAN ESTÁ VUANDO O HOJE EU VOU NA ESCOLA

O pato está cantando para a pata. O macaco está comendo banana. O anjo está voando. Hoje eu vou na escola.

5c: Eu falo frases que FS escreve.

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A MAEAN VOL COMPLA UMA BOLSA E UM VISTIDO NOVO. PALO VIAZA PARA ALOPA. NO MEU ANIVELSAIRO VOU COMER MOITO BOLO

Amanhã eu vou comprar uma bolsa e um vestido novo. Quero viajar para a Europa. No meu aniversário vou comer muito bolo.

Análise: A proposta das três atividades em que a relação fala/escrita se dá de formas distintas

– FS fala e escreve, FS não fala e escreve, eu falo e FS escreve – deve-se a minha busca de

compreensão da questão de internalização e externalização na fala de FS, a partir das questões

de sintaxe que FS apresenta na fala e na escrita. Como foi explicado antes, é também na

escrita que FS se apóia para estender sintaticamente suas frases na fala.

Os três últimos dados mostram que FS, aparentemente, encontra-se em transição entre a fala

interna e a sua externalização, efeito das relações intermediadas de que participa. Entretanto

falar para o outro implica um desdobramento de relações morfossintáticas, que ela ainda não

faz com regularidade. Quando escreve, com apoio da fala, textos descritivos em estilo

cartilhesco (“A bola é redonda” e “O sapo é verde”, no dado 5a), a escrita vem quase pronta,

prendendo-se a um modelo memorizado e, por isso, aproxima-se da forma convencional da

escrita. Quando ela escreve uma frase/texto de natureza narrativa em que tem que escolher e

combinar palavras, aparentemente esse trabalho de seleção interfere em como as palavras são

escritas, havendo mais desacordos em relação às formas canônicas da língua (“Ontem eu

dormi na casa da vovó e comi”, no dado 5a; “O pato está cantando para a pata”, no dado 5b).

FS realiza ainda na escrita outros trabalhos linguísticos: por exemplo, para escrever anjo, ela

teria que selecionar segmentos combinando-os ordenadamente, entretanto sua escrita

apresenta uma ordem invertida das sílabas (“JOAN”). Ainda em relação à marcação da

segmentação da palavra, chamo a atenção para “comer do” e “catão do”, do dado 5b. FS

segmenta essas palavras em duas partes. Em relação ao primeiro exemplo, surgem “comer” e

“do”, que podemos interpretar como comer + (n)do, que é o modo como se constrói o

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gerúndio em português. Essa segmentação pode ter sido guiada pelo sentido da palavra comer

e desse segmento do, que ela pode ter recuperado de suas experiências com a leitura e com a

fala, nas quais a preposição “do” é muito presente. Em “catão do”, FS faz esse mesmo

processo de segmentação, porém não apresenta o verbo no infinitivo mas realiza a marcação

de uma nasalidade entre as duas presentes na palavra. A esse propósito, observando todo o

dado 5b, nota-se que há instabilidade na marcação da nasal, o que é de fato algo complexo no

Português do Brasil.

Continuando com a análise, observa-se que, para escrever a palavra “para”, FS escreveu antes

“pata”, antecipando a próxima palavra, a qual é mais carregada de sentido do que uma

preposição. Em seguida, FS leu em voz alta o que escreveu e, então, corrigiu para “para”,

revelando, com esta refacção, que faz reflexões no eixo fala, leitura e escrita.

Relacionando esses três recortes do dado 5, constata-se que o último é o que apresenta maior

distanciamento em relação às convenções da escrita e até mesmo em relação ao que

demonstrou ser capaz de fazer nas duas partes anteriores.

Esses dados suscitam outras análises, mas darei relevância a dois aspectos. O

primeiro deles é a dificuldade de FS em explicitar elos sintáticos entre os constituintes da

frase (faltam palavras de relação, como preposições e conjunções), o que atrapalha a

elaboração da textualidade. O segundo aspecto é que FS apresenta maior dificuldade

ortográfica quando escreve a fala do outro (dado 5c), embora apresente menor dificuldade de

segmentação das palavras, talvez porque o limite entre elas já vem grandemente marcado pela

fala do outro.

Se, para a criança falar, segundo Vygotsky, ela precisa fazer um movimento em

direção ao social (interpsíquico) e retornar para si (intrapsíquico) e novamente para o social,

no caso de RD, ela toma um caminho que passa pela fala do outro representada em suas

linguagens (gestos, desenhos, olhar, sorriso, escrita), enquanto que FS parece estar na

transição entre o social e o psíquico, percorrendo esse caminho em um ritmo próprio em que o

que é da ordem da fala interior se mistura com o que é da ordem da fala externa, incidindo em

sua sintaxe. Provavelmente, concorreram também para isso diferentes acontecimentos: sua

dificuldade aparente de encadear os gestos articulatórios da fala e sua dificuldade em fazer

uso da representação da linguagem através de gestos (mímicas) e desenhos, o que

compromete sua discursividade. Isso pode ser também observado no desenho que FS fez para

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mim, em 16/12/2009, no qual me representa e que traz apenas aspectos generalizantes, uma

vez que seus detalhes revelam pouco da singularidade da intersubjetividade de nossa relação.

Um desenho de presente

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Considerações finais

Finalizo esta tese que acontece no eixo fala, leitura e escrita destacando seus

pontos cruciais. Os sujeitos desta pesquisa deixaram uma trilha, em seus dados, que foram

achados no movimento teórico constante que a ND possibilita. Essa abordagem teórico-

clínico-metodológica se configura, antes de tudo, pelo olhar que dirige à linguagem, ao sujeito

e à história deste, na confluência com autores (FREUD, VYGOTSKY e LURIA) que se

posicionaram criticamente em suas áreas de atuação. A ND, através do trabalho precursor de

Coudry, marca também o seu posicionamento crítico nos estudos das afasias e do excesso de

patologização realizado na área de leitura e escrita. Assim, o ponto de vista metodológico da

abordagem de sujeito feita pela ND se evidencia como a recusa de uma posição

determinística, privilegiando-se com isso uma posição ética da abordagem do sujeito - que se

abre ao novo em oposição a qualquer determinismo porque permite que tanto o investigador

quanto o sujeito em acompanhamento ocupem lugares de constituição de sentidos na

interlocução.

O ponto de encontro entre o investigador e a criança/jovem, nesta tese, foi a

materialidade do eixo fala, leitura e escrita que suscitou a pergunta: que dificuldades a

criança apresenta e quais foram os seus interlocutores para que essa materialidade se

apresentasse assim?

Como respostas a essas questões, chega-se à Escola, ao Estado, à Família, ao

Diagnóstico Médico e ao CCazinho.

Para entender o papel de cada um desses interlocutores, é preciso não perder de

vista que o que está no cerne da questão da fala, leitura e da escrita é o sentido.

Para Vygotsky, o sentido é da ordem do privado, é singular, relacionado às

experiências do sujeito, é dinâmico, fluído e de base afetivo-volitivo. É por meio da

configuração de sentidos que o sujeito se torna singular, isto é, torna-se sujeito único, e é por

meio do acesso a esses sentidos que é possível a emergência do sujeito – sempre a partir do

outro. De tal modo, a relação da criança com a fala, leitura e a escrita se modifica em função

do interlocutor dessa relação, que nesta tese se revelaram com as seguintes configurações:

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Interlocução Criança-Escola: A escola não faz sentido para a criança, assim como a criança

não faz sentido para a escola e, ao mesmo tempo, esta vem perdendo sua identidade como

lugar de conhecimento, saber e de relações pessoais e em grupo. Nessa Escola, uma criança

com dificuldades na leitura e na escrita, torna-se um problema que a instituição não toma para

si, como vimos no relatório escolar de JL: “[...] escreve pouco, tem pouca compreensão do

que lê. Será aprovada para a 6ª série em 2010”. Há, portanto, a desconsideração do sujeito da

aquisição que erra e acerta e que, por vezes, entra, em diferentes tempos e de diferentes

modos, na fala, leitura e escrita.

Interlocução Criança-Estado: A relação Criança-Escola revela o abandono do Estado,

sobretudo, no que se refere à formação do professor para ter condições de enfrentar as

diversidades normais de sala de aula. O termo formação não remete apenas à capacitação

profissional, mas a todo processo escolar de uma criança que um dia pode se tornar um

professor. Na mídia, o Estado aparece oferecendo diferentes soluções: curso de formação

específica para a disciplina que o professor leciona; bônus para professores, coordenadores e

diretores; bolsa-escola etc. Além disso, há diversos programas governamentais que

preconizam uma resolução automática, como, por exemplo, a ideia de que colocar um livro na

mão do estudante é torná-lo leitor. No entanto, o Estado fecha os olhos para o que de fato

acontece na Escola e, como consequência, a criança sai dela sem saber ler com compreensão e

escrever com sentido, ou seja, um alfabetizado funcional, fadado ao fracasso profissional e

sem grandes possibilidades de transformar socialmente a sua vida.

Interlocução Criança-Família: A família como matriz de conhecimentos, saberes e valores

tem se mostrado tão frágil quanto a escola em cumprir esse papel. As duas não valorizam o

que a criança faz e olham para ela, muitas vezes, diante das dificuldades, como responsável

pelos seus próprios problemas. A família, à deriva, não sabe que significado dar a fala, leitura

e escrita que seus filhos apresentam. Não há o que ser compartilhado entre os pais e os filhos

e o trabalho com as famílias, busca, justamente, o valor nessa partilha. Este valor, por vezes,

resume-se no nome de uma patologia que explique os problemas no corpo da criança.

Quando isso acontece - e acontece cada vez mais -, perde-se de vista, por exemplo, que o

TDAH, um dos diagnósticos mais realizados atualmente em crianças/jovens e adultos e que

tem como critério o “nível” de atenção, despreza o fato de que apenas 1% das reações de

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atenção mantêm-se inatas e 99% são modificadas pela adaptação do homem ao meio. Que

meio é esse? Principalmente, a família e a escola. A atenção é construída socialmente a partir

da experiência da criança (jovem/adulto) em diversos ambientes sociais com regras e

convenções próprias que lhe são transmitidas pela família e instituição escolar. Nessa situação

de desamparo da família, a escola vira vilã e o diagnóstico médico torna-se a salvação.

Interlocução Criança-Diagnósticos Médicos: Se a causa dos problemas escolares da criança e

jovem está em seu corpo, a solução, então, pode estar nos remédios disponíveis no mercado

que “controlam a atenção” e “resolvem a dislexia”. Aceitar facilmente esse tipo de raciocínio

contribuiu para que a indústria farmacêutica no Brasil e no mundo aumentasse fabulosamente

seus lucros com a venda da substância metilfenidato sob a denominação de Ritalina e

Concerta (cerca de 1.147.000 caixas no Brasil em 2008). Dados como esse continuam

crescendo, ainda que tenha havido um aumento do número de morte súbita em crianças e

adolescentes usuários desses medicamentos ou que se investigue uma relação entre esses

psicofármacos e o uso de cocaína por provocarem a mesma reação no cérebro, com o adendo

de que a Ritalina é mais barata.

Interlocução Criança-CCazinho: No CCazinho, privilegia-se um trabalho com fala, leitura e

escrita que envolve o sujeito, em seus motivos e desejos, para possibilitar a emergência de si e

a configuração de novos sentidos. O que significa também que o outro da criança precisa

mudar a forma como vê e age com esse sujeito, assumindo uma posição ética de abordagem, o

que pode contribuir para que o sujeito passe a olhar para si mesmo. Entretanto, não se trata de

se colocar no lugar de um interlocutor como causa do sujeito, mas sim lugar de possibilidade

do sujeito deixar de ser falado pelo outro e passar a falar por si sobre suas questões de fala,

leitura e escrita. É justamente com base em todos esses aspectos teórico-práticos que esta tese

tem o título que tem: Fala, Leitura e Escrita: encontro entre sujeitos.

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