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FAESA - CENTRO UNIVERSITÁRIO ESPÍRITO-SANTENSE CURSO DE DIREITO ITALO SAMUEL FERREIRA WYATT A INEFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A CONSTRUÇÃO DA SUBCIDADANIA NA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL À LUZ DA CRÍTICA HERMENÊUTICA DO DIREITO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA LITERATURA DE LIMA BARRETO VITÓRIA 2018

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FAESA - CENTRO UNIVERSITÁRIO ESPÍRITO-SANTENSE

CURSO DE DIREITO

ITALO SAMUEL FERREIRA WYATT

A INEFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A CONSTRUÇÃO DA

SUBCIDADANIA NA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL À LUZ DA CRÍTICA

HERMENÊUTICA DO DIREITO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA

LITERATURA DE LIMA BARRETO

VITÓRIA

2018

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ITALO SAMUEL FERREIRA WYATT

A INEFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A CONSTRUÇÃO DA

SUBCIDADANIA NA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL À LUZ DA CRÍTICA

HERMENÊUTICA DO DIREITO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA

LITERATURA DE LIMA BARRETO

Projeto de pesquisa apresentado ao Curso de Direito da FAESA Centro Universitário, como requisito parcial para avaliação na disciplina de Pesquisa Aplicada

Orientador: Profª. M.S.c. Paulo Vitor Lopes Saiter

Soares.

VITÓRIA

2018

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ITALO SAMUEL FERREIRA WYATT

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Direito da FAESA –

Centro Universitário Espírito-Santenses, como requisito parcial para obtenção do

título de Bacharel em Direito.

A INEFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A CONSTRUÇÃO DA

SUBCIDADANIA NA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL À LUZ DA CRÍTICA

HERMENÊUTICA DO DIREITO: UMA ANÁLISE A PARTIR DA

LITERATURA DE LIMA BARRETO

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________ Prof. M.S.c. Paulo Vitor Lopes Saiter Soares Orientador

________________________________

Membro da Banca

________________________________

Membro da Banca

VITÓRIA-ES, ___ DE ________ DE 2018.

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Ao Governador Udelino Alves de Matos, por representar em Capitania Perdida o grito dos subcidadãos à margem da História e ao escritor Adilson Vilaça pelo resgate do Contestado e raiz de minha gente.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus (Meu Senhor) pelo fôlego de vida, inspiração e bravura. À

Mensagem da Cruz escrita em Amor-escarlate. Ao Espírito Santo que me consolara

nos momentos de solidão.

À minha avó Nilda Silva Wyatt por todo amor imerecido e impagável. Pela

providência, ternura e orações.

Aos meus avós que descansam na campa do último repouso o sono dos justos:

Maria das Graças, Emídio Ferreira e Samuel Wyatt.

Aos meu pai Italo Brasil que tanto me honra com o seu nome, exemplo de retidão e

reflexo de Jesus. À minha mãe Clícia Rodrigues pelo afeto e por ser eternamente

minha professora e menininha.

Aos meus irmãos Társis Dellano e Débora Hillary por compartilharem comigo as

alegrias, aspirações e desejos de um mundo melhor.

A todos os meus familiares, indistintamente.

Agradeço aos meus amigos de hoje e sempre: Adryelle, Kezia, Renato, Gabriel,

Pedro, Matheus, Yuri, Isaac, Marcelo, Lucas Moran, Fabio, Leonardo Bermudes,

João Pedro, Erick, Thiago, Mariany, Leticia, Luiza, Caio, Vanusa, Ronald, Bruno,

Francisco, Tadeu, Monise, Camilla, Guilherme Guzzo, Maria Júlia. Falha-me a

memória todos os nomes. Deixo, indistintamente, minha gratidão.

Aos escritores do meu cotidiano: Anaximandro Amorim, Bernadette Lyra, Matusalém

Dias de Moura, Adilson Vilaça, Francisco Aurélio Ribeiro, Horácio Xavier, Sérgio

Blank, Fabio Daflon e outros tantos. Aos membros da Academia de Letras de Vila

Velha e da Academia Espírito-Santense de Letras, por todo incentivo e prestígio.

Às professoras da FAESA Viviane Gramigna, Sayury Ottoni e Patrícia Bersan.

Viviane por ser uma entusiasta de minha poesia, Sayury pelo incentivo e

acolhimento, Patrícia por ser minha mãe na Capital.

Ao meu professor-orientador Paulo Vitor Saiter, por toda inteligência, gentileza,

compreensão e incentivo. Pelo exemplo contínuo de humildade, generosidade e

lealdade.

Ao povo de Mucurici. Em especial, por homenagear-me no Desfile Cívico de Sete de

Setembro, no ano de 2017.

A todos que fizeram deste sonho realidade, minha inefável gratidão.

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"Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio adentro - o rio." (Guimarães Rosa)

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RESUMO

A modernidade periférica na República Federativa do Brasil agravara os abismos

sociais de uma sociedade devastada pela desigualdade, negação de Direitos e

subcidadania. Associada constantemente ao colonialismo, patriarcalismo,

patrimonialismo e personalismo, houve a tomada da res publica aos interesses dos

particulares que detém o monopólio da tomada de decisões estatais. Nesse

contexto, o modelo intervencionista-desenvolvimentista-regulamentador serviu como

mecanismo de garantia do modelo liberal e intransigente à órbita estatal dos

vencidos e exilados de seus direitos. A Crise da Hermenêutica garante a

perpetuidade desse cenário pelo fato do intérprete não utilizar dos recursos

hermenêuticos contemporâneos para a promoção dos direitos fundamentais. Como

resposta à contemporaneidade, a Teoria da Constituição Dirigente propõe um

ordenamento político, social e econômico que propicia dignidade e liberdade aos

milhões de brasileiros esquecidos nas taperas e mucambos.

Palavras-chave: Subcidadania, Constituição Dirigente, Direitos Fundamentais,

Hermenêutica.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 08

1 “POR MARES NUNCA DANTES NAVEGADOS”: O ADVENTO DA

MODERNIDADE NA REPÚBLICA DO BRASIL ....................................................... 10

1.1 A DESIGUALDADE SOCIAL E JURÍDICA NA MODERNIDADE TARDIA .......... 17

1.2 FATOS ATRELADOS À MODERNIDADE TARDIA NO BRASIL ........................ 21

1.2.1 Colonialismo ................................................................................................... 21

1.2.2 Patrimonialismo e Personalismo .................................................................. 23

1.2.3 Patriarcalismo ................................................................................................. 25

1.3 O HOMEM CORDIAL NO PROCESSO DE MODERNIDADE TARDIA .............. 27

2 A SUBCIDADANIA E A MODERNIDADE PERIFÉRICA NA REPÚBLICA DO

BRASIL: UMA ABORDAGEM LITERÁRIA DA OBRA DE LIMA BARRETO .......... 30

2.1 A CONSTRUÇÃO DE UM MODELO TEÓRICO E PRÁTICO DE SUBCIDADANIA

NO BRASIL E A SUBCIDADANIA COMO ELEMENTO DE DOMINAÇÃO SOCIAL . 35

2.3 O MAPA DA SUBCIDADANIA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL ....................... 46

3 HERMENÊUTICA EM CRISE ................................................................................ 51

3.1 A CRISE DE OPERABILIDADE DA HERMENÊUTICA E A INEFICÁCIA DOS

DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL: FATORES E IMPACTOS NA ORDEM

JURÍDICA PÁTRIA .................................................................................................... 60

3.2 O PAPEL DO HERMENEUTA CONTEMPORÂNEO NA CONSTRUÇÃO DE UM

ORDENAMENTO JURÍDICO ABARCANTE E EFETIVO .......................................... 65

3.3 A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE COMO MECANISMO DE

TRANSFORMAÇÃO DA REALIDADE DE INEFICÁCIA DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS E DA SUBCIDADANIA REINANTE NO BRASIL .......................... 71

3.4 POR UMA CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE: UM LONGO CAMINHO .................... 75

4 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 77

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 79

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho se propõe a analisar o advento da modernidade tardia na

República Federativa do Brasil e, por conseguinte, a subcidadania, negação de

direitos fundamentais à luz da crítica hermenêutica do Direito, tendo como retrato o

relato histórico-literário de Lima Barreto.

A dualidade que impera na hermenêutica contemporânea em que os parâmetros de

linguagem ora limita-se a reproduzir num discurso fechado o campo normativo posto

de modo inconteste e noutros momentos perdendo qualquer base sólida de

interpretação conforme os alvedrios do senso comum e teórico dos juristas contribui

para a perpetuação dos graves problemas de modernidade tardia. Nesse contexto,

os reflexos do colonialismo, patriarcalismo e personalismo permanecem a aumentar

o profundo abismo de desigualdade social.

Lima Barreto, notório escritor do realismo nacional apresenta pelas obras

Recordações do Escrivão Isaías Caminha e Triste Fim de Policarpo Quaresma a

denúncia contundente de frustração das promessas da modernidade, outrora tão

sonhada pelo povo brasileiro que acreditava encontrar na República o início de uma

era forjada na democracia e isonomia entre os cidadãos.

O tema é elementar e assenta relevância jurídica e social uma vez que, o modelo

contemporâneo de aplicação hermenêutica mantém a perpetuação do status quo.

Desse modo, é pertinente observar que a realidade de subcidadania e negação de

direitos existente na sociedade brasileira depende, inelutavelmente, de um giro

linguístico na interpretação e confecção do Direito que preencha os abismos sociais.

No primeiro capítulo, será construída e analisada o advento da modernidade na

República Federativa do Brasil sobre o prisma histórico-sociológico. Debruça sobre a

desigualdade social e jurídica na modernidade tardia, os fatos atrelados a esta

conjuntura (Colonialismo, Patrimonialismo, Personalismo e Patriarcalismo) que dão

ensejo e sustentam os quadros aqui revelados. Ademais, utiliza-se da construção

teórica de Sérgio Buarque de Holanda do homem cordial nesta perspectiva.

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No segundo capítulo, utiliza-se o relato da produção literária de Lima Barreto para

demonstrar a realidade de subcidadania e modernidade periférica. Através das

obras Recordações do Escrivão Isaías Caminha e Triste Fim de Policarpo

Quaresma, descreve a construção de um modelo teórico e prático de subcidadania

no Brasil e a subcidadania como elemento de dominação social e desenha o mapa

desta subcidadania no Brasil através de indicadores e entendimentos

jurisprudenciais e doutrinários.

No último capítulo, aborda os fatores e impactos da crise da Hermenêutica e

consequentemente da inoperabilidade dos direitos fundamentais, o papel do

hermeneuta na construção de um ordenamento abarcante, plural, efetivo, que

garanta a promoção da dignidade da pessoa humana e, por fim, apresenta a Teoria

da Constituição Dirigente como mecanismo de transformação em terrae brasillis.

A análise do tema proposto será feita de maneira explicativa perscrutando, assim, as

raízes, conjunturas e reflexos da modernidade periférica e a importância do fazer

hermenêutico na concretização das promessas constitucionais.

Como arcabouço do tema, serão utilizadas as técnicas de pesquisa bibliográfica,

legislativa, doutrinária e estatística, recorrendo aos doutrinadores e estudiosos de

diversas áreas das Ciências Humanas, sobretudo do Direito, dentre eles: Lenio Luiz

Streck, Nelson Camatta Moreira, Rodrigo Francisco de Paula e Luís Roberto

Barroso.

Para um estudo mais completo e atual da problemática ora sustentada, serão

trabalhados conceitos sociológicos, literários, filosóficos (hermenêuticos, sobretudo)

e jurídicos.

O método teórico de abordagem será dedutivo, apresentando os fatores e resultados

da modernidade tardia no Brasil, negação de direitos e subcidadania, bem como a

importância do giro ontológico da linguagem para o enfrentamento da crise

hermenêutica e, por fim, desvelando a Teoria da Constituição Dirigente como

mecanismo de mudança do status quo reinante.

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1 “POR MARES NUNCA DANTES NAVEGADOS”: O ADVENTO DA

MODERNIDADE NA REPÚBLICA DO BRASIL

As estruturas estatais modificaram-se substancialmente no transcurso ininterrupto da

História, conforme uma série de confluências, preponderâncias e acirramentos

ideológicos, sociais, jurídicos e políticos1. Tal perfilamento deu-se em várias nações

ocidentais, dentre elas, na brasileira. Do mais profundo absolutismo medievo à

modernidade. Conforme LENIO LUIZ STRECK:

[...] A modernidade nos legou a noção de sujeito, o Estado, o Direito e as instituições. Rompendo com o medievo, o Estado Moderno surge com um avanço. Em um primeiro momento, como absolutista e, depois, como liberal; mais tarde o Estado se transforma, surgindo o Estado Contemporâneo sob as suas mais variadas faces. Essa transformação decorre justamente do acirramento das contradições sociais proporcionadas pelo liberalismo (ou aquilo que representava um modelo de Estado que atravessa o século XIX e, no século XX, ‘dá de frente com as revoluções’). Veja-se que esse Estado intervencionista não é uma concessão do capital, mas a única forma de a sociedade capitalista preservar-se, necessariamente mediante empenho na promoção da diminuição das desigualdades socioeconômicas. A ampliação das funções do Estado, tornando-o tutor e suporte da economia, agora sob conotação pública, presta-se a objetivos contraditórios: a defesa da acumulação do capital, em conformidade com os propósitos da classe burguesa, e a proteção dos interesses dos trabalhadores.2

Importa considerar que, apesar dos trastes similares, cada sociedade experimenta

uma evolução peculiar. Mesmo com as características comuns que além de

representar as conjunturas temporais da humanidade denotam as práticas e fatores

sociológicos sob o prisma mundial, os traços específicos delimitam o próprio ser de

setores fundamentais como mercado e instituições regulamentadoras da vida social

em várias dimensões, essencialmente diferentes entre si, conforme aspectos de

natureza climática, social, jurídica, econômica.3

1Em todos os campos das Humanidades surgiram pensamentos e teorias objetivando a construção de uma sociedade politicamente organizada em estruturas e sistemas conforme as eras e fenômenos sociais. O Renascimento, o Iluminismo, o Positivismo, o Comunismo e o Constitucionalismo são, dentre outros, importantes nascedouros de pensamentos para o que se entende atualmente por Estado. 2STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 24. 3SOUZA, Jessé. A Construção Social da Subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 2012. p. 91.

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Após as revoluções e guerras mundiais do Século XX, ao Estado incumbiu

proporcionar um novo momento histórico em que a liberdade de capital estivesse

assegurada, todavia, sofrendo as devidas intervenções para garantir a efetivação

dos direitos fundamentais. A modernidade caminhou do feroz liberalismo (em que as

gerências do capital privado eram de pouca importância para o Estado que

minimizava-se a prestar jurisdição e estabelecer políticas mínimas, reforçar o

domínio da propriedade e legiferar) ao Estado Providência (responsável ativo pela

ordem política, econômica e social).4

O Brasil, como várias outras nações ocidentais sofreu mudanças de paradigmas

estatais, principalmente no que tange a chegada do Estado Liberal. Entretanto, a

modernidade brasileira emerge no profundo atraso histórico, uma vez que, as

instituições resguardavam somente as elites brasileira, sem estabelecer políticas

sociais e direitos fundamentais às classes perdidas no processo de evolução.

Países que passaram pela etapa do Estado Providência (período do welfare state)

têm consequências absolutamente distintas das nações em que nunca emergiu um

Estado Social. Efetivamente, no Brasil, o Estado que assumiria uma postura

interventora-desenvolvimentista-reguladora caminhou por veredas que se limitavam

a dar espaço às elites (camadas médio-superiores) que prontamente se apropriavam

e aproveitavam desta estrutura institucional e aparentemente democrática para

privatizar os programas e políticas de distribuição, concedendo ao capital

internacional os monopólios e os oligopólios objetivando, evidentemente, a sua

soberania numa terra em que os mecanismos de produção ainda eram bastante

arcaicos, obsoletos. Esta conjuntura demonstra uma verdadeira quebra de contrato

social sob o viés da modernidade, ante o fato de que, se na Antiguidade e Período

Medievo o Estado compunha de homens notórios (geralmente aristocratas, de

antigas dinastias, homens da nobreza e sacerdotes) na Modernidade, o rol se

expandia para abarcar setores com importante participação na indústria, comércio,

extrativismo manufatureiro.5

4 STRECK, 2014, p. 24 5 Ibid., p. 28

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Tal peculiaridade é fruto da desigualdade na expressão cívica e governamental da

nação brasileira. O Estado, sempre ancorado numa tradição patrimonialista e

personalista reduziu o núcleo político da tomada de decisões a um pequeno grupo

detentor do monopólio econômico-social, aos que Raymundo Faoro, em feliz

denominação chamo-os de “Os donos do poder”.6

Não há, entrementes, o discurso dialético de que a modernidade nas sociedades

ocidentais trouxe um regime estrutural em que as igualdades sociais, econômicas,

de acesso aos frutos e fatores de produção estivessem plenamente assentadas

conforme os quereres comunistas que iluminaram as teorias de grandes pensadores

do século XX7. A ideia central é de que os elementos fundantes das instituições de

Estado e as práticas emergenciais para garantir a efetivação de políticas voltadas ao

homem em sua essência (e não sob o primado da condição socioeconômica)

fossem universais e independentes das classes e conceito público. É, assim, uma

construção de um imaginário comum de representatividade e esforços mútuos para

a efetivação dos programas políticos de cada setor e tempo. Nesse sentido, importa

considerar a inteligência de NELSON CAMATTA MOREIRA e RODRIGO

FRANCISCO DE PAULA:

6FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 11. ed. São Paulo: Globo, 1995. p. 824. 7 Se, por um lado, a tese deste trabalho não sustenta que o comunismo tenha sido protagonista no processo de evolução do imaginário simbólico social quanto à efetivação das políticas estatais e reestruturação das antigas instituições feudais que prolongava o domínio de classes, a usurpação de poder através do patriarcalismo e do personalismo, por outro lado qualquer abordagem deve considerar as efervescências destes ideários como condição sine qua non de impacto e eco na proclamação e desvelamento das desigualdades. Foi neste sentido (e para não cair em anacronismo importa considerar as máculas da era em que o Manifesto do Partido Comunista defendera programas de erradicação do domínio burguês) que as teses demonstraram os interesses da grande massa proletária de Europa: “i) expropriação da propriedade fundiária e aplicação da renda da terra para despesas do Estado; ii) imposto progressivo forte; iii) abolição do direito de herança. iv) confisco da propriedade de todos os emigrantes e rebeldes; v) centralização do crédito nas mãos do Estado por um banco nacional com capital do Estado e monopólio; vi) centralização do sistema de transporte nas mãos do Estado; vii) aumento das fábricas nacionais, dos instrumentos de produção, cultivo e melhoramento da terra segundo um plano comum; viii) obrigação de trabalho para todos, organização de exércitos industriais, especialmente para a agricultura; ix) unificação do trabalho agrícola e industrial, atuação para a superação gradual do antagonismo entre a cidade e o campo; x) educação pública gratuita para todas as crianças. Fim do trabalho fabril de crianças na sua forma atual. Ligação da educação com a produção material etc. etc.” Por fim, no papel timbrado à História arrematam KARL MARX e FRIEDRICH ENGELS que: “no lugar da velha sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classe, surge uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos. MARX; Karl; ENGELS, Friedrich; Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Martin Claret, 2014. p. 55.

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Dito de outra maneira, a igualdade aparece, nas sociedades modernas avançadas, como o imaginário simbólico sobre o qual se edifica a ordem social, política e jurídica. Todas as práticas e instituições orientam-se por esse horizonte simbólico, o qual institui os elos sociais possíveis. Sem os sentimentos criados pela “realidade primária” da igualdade, sem as opiniões e as práticas por ela agitadas ou sugeridas, não há qualquer possibilidade de constituição da comunidade. Por isso, a distinção aqui trabalhada parece tão fundamental e oportuna. Isto porque, no contexto das sociedades modernas centrais, o valor conferido à igualdade aparece, indubitavelmente, como o de um elemento fundante de instituições e práticas associadas às emergências do capitalismo e do individualismo liberal. E é precisamente do faro da igualdade que derivam as visões do poder como expressão da soberania popular, a ideia elevada dos direitos políticos, o respeito pela lei e ainda o importante espírito público presente nas sociedades democráticas, em especial na sociedade americana, objeto de sua análise sociológica [...]8

A sociedade transforma, caminha ou permanece estática de acordo com o

imaginário social que se formula através dos meios de reprodução artísticos,

religiosos, filosóficos e morais. Nesse sentido, as confluências das relações e

imposições que justificam as desigualdades são implícitas mas fortementes

demarcadas nas ações de Estado9. Diferentemente das produções metodológicas

das teorias, a construção do imaginário social significa a convicção imagética e

perceptiva do ambiente social, pouco atrelado à ciência mas formulada mediante a

prática reiterada do arcabouço cultural que se extrai no tempo: imagens, estórias,

lendas, ditos populares, canções, culinária, etc. Esse imaginário absorve a “pré-

condição” (portanto, fatal) das práticas cotidianas que legitimam as estruturas

tradicionais e pouco reversíveis. Nota-se, portanto, uma disposição fática e

normativa em que cada situação particular é informada e incondicionada por uma

pré-compreensão abstrata e generalista, que enrijece a forma dada para cada

situação. Assim é que se articula o comportamento, a fala, a subserviência, o trato

hierárquico desenhado no “mapa social” e na “bula” das condutas adequadas aos

postos e classes10.

Esta construção não é homogênea e nem surge solitária no transcurso da história.

Ao contrário, da bilateralidade e da aceitação de uma organograma social-estatal é

que emerge uma esquematização de mundo em que as dominâncias de setores da

8MOREIRA, Nelson Camatta; PAULA, Rodrigo Francisco de. Lima Barreto: subcidadania, negação do Estado de Direito e Constitucionalismo Dirigente no Brasil. Coleção Direito, Política e Cidadania. v. 35, n.1. p. 39, out/2015. 9SOUZA, 2012, p.92 10Ibid., p. 92/93.

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sociedade estão plenamente justificadas - ainda que implicitamente - como um

contrato social irretorquível. Segundo JESSÉ SOUZA:

Esse ponto é central para todo o meu argumento nesta segunda parte do livro. Precisamente o tema da ‘esquematização’ é que parece dar razão às teorias essencialistas da cultura nas diversas e infinitas variações da teoria tradicional da modernização, inclusive nas suas variações ‘hibridistas’ em moda hoje em dia. O ponto de partida destas teorias é que, se é verdade que houve impacto modernizante nas sociedades periféricas, a força das relações ‘pré-modernas’ anteriores de certo modo ‘esquematizariam’ o dado novo, implicando, ou a dominância das relações pré-modernas sobre as modernas, como ocorre na imensa maioria dos casos, ou ainda a proposição de um dualismo indeciso e cambaleante entre um e outro princípio de estruturação social, gerando uma confusão e indeterminação da análise que, muitas vezes, pela correspondência com a percepção inarticulada de preconceitos do senso comum, é precisamente uma das principais razões do seu poder de convencimento.11

“Por mares nunca dantes navegados”12, observa-se que o processo de

esquematização flui, tão somente, da imposição de fatores e produtos das classes

dominantes que, antes de observarem as vivências de Europa que justificaram a

modernidade no Continente Velho, primeiro determinaram as práticas sociais e

institucionais do século XIX, de tal forma que, há uma ideia implícita de que as

tomadas de decisões (soberanas e essenciais) são unitárias e indeléveis à parcela

da sociedade. Assim, as práticas modernas são anteriores às idéias modernas em

países periféricos como o Brasil. O mercado e a noção morfológica de Estado vão

se desconstruindo e reprogramando de modo paulatino conforme a importação de

fora para dentro no processo europeizante da primeira metade do século XIX. Modo

anacrônico e surrealista por não considerar as vivências da sociedade brasileira,

inexiste um consenso valorativo (e científico) que acompanha o processo de

modernidade na própria Europa e América do Norte. Não havia consenso acerca da

necessidade de homogeneização social e generalização do tipo de personalidade

burguesa sob todos os estratos sociais que, de certo modo, ocorrera em parte da

Europa e América do Norte.13

11SOUZA, 2012, p. 93/94 12A expressão é retirada do célebre Poema de Luís de Camões, “Os Lusíadas”, em que o autor com esmero nunca visto retrata as grandes embarcações portuguesas que atravessaram os sete-mares a procura de um Novo Mundo: “As armas e os barões assinalados, que da Ocidental praia Lusitana, por mares nunca dantes navegados, passaram ainda além da Taprobana, em perigos e guerras esforçados, mais do que prometia a força humana, e entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram [...]” 13SOUZA, op. cit., p. 97, nota 11.

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De fato, insta considerar que a modernidade chegou à Terra Brasillis tardia,

anacrônica e sem relevar o mercado e a vida da sociedade brasileira. Tão somente

tomando os rumos para uma mudança de perspectiva estatal em que os donos do

poder se assentam no trono do Estado numa nova cadeia e proposições políticas, a

mercê dos interesses privados. Menos a presença de uma moral ou religião que

pudesse “esquematizar” o impacto modernizante das instituições e mais uma nova

periferia construída nos quereres de uma classe aristocrata.14

Sobreleva o fator determinante de que, ao contrário dos movimentos sociais

europeus que tiveram ecos nacionais e supranacionais, as manifestações e revoltas

em Colônia e República constituíam traços meramente regionalistas, classistas,

pouco estruturais.

Portanto, o processo de esquematização e construção deste simbolismo deu-se

como meio de domínio e polarização nacional em que uma única vontade (a do

aristocrata/tradicionalista) fundava as ordens de Estado. Nesse sentido, é a lição dos

professores NELSON CAMATTA MOREIRA e RODRIGO FRANCISCO DE PAULA:

A ‘esquematização’ da sociedade brasileira, refletida nos rumos do Estado, estava preparada para favorecer uma determinada classe dominante e, no campo jurídico, as escolhas feitas em cada momento, entre interesses, valores e visões do mundo diferentes ou antagonistas tinham poucas probabilidades de desfavorecer os dominantes, de tal modo o ethos dos agentes jurídicos que está na sua origem e a lógica imanente dos textos jurídicos que são invocados tanto para os justificar como para os inspirar estão adequados aos interesses, aos valores e à visão do mundo dominantes. Com efeito, esse processo de institucionalização e legitimação da ordem social e a partir de um habitus peculiar dá-se de forma completamente distinta nas sociedades modernas centrais e nas sociedades engendradas sob o influxo da expansão do racionalismo e do capitalismo ocidentais. Especialmente quanto aos valores e princípios da igualdade e da dignidade humana, elementos intrínsecos à própria noção de cidadania, essas marcas distintivas são indeléveis. Isso porque, no contexto simbólico das sociedades centrais a “igualdade não é um mero ‘direito’ que pode ser compensado por valores e práticas ‘ benignas’ de assimilação e integração. Igualdade é o valor básico da modernidade ocidental, sendo a fonte de dignidade e reconhecimento individual em primeira instância.15

Especificamente quanto à modernidade brasileira, concluem os mestres que a

disseminação reiterada de um habitus precário confecciona um panorama que

14 MOREIRA; PAULA, 2015, p. 40. 15 Ibid., p. 43-44.

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institucionaliza e legitima práticas sociais e políticas de Estado geradoras de

invisibilidade pública e humilhação social, naturalizando e conformando posições de

desigualdade, prevalência de privilégios entre as camadas sociais, indiferenças em

relação ao inúmeros sujeitos e grupos pertencentes a uma dada coletividade,

esquematizando e desumanizando num quadro em que os princípios constitucionais

da igualdade e da dignidade, apesar das fortes letras dos diplomas normativos, não

transcendem à realidade de forma eficaz, producente.16

Diferentemente das outras nações em que nos primórdios do Estado Moderno o

poderio econômico e político concentrava-se no senhor não-feudal e burguês, no

Brasil, o poder das elites revestiram-se logo da envergadura estatal, privatizando a

res publica ao alvedrio dos fatores determinantes de mercado e às necessidades

dos dominantes. Todos os empreendimentos “esquematizados” em favor das

classes que operam o Estado patrimonialista deu-se exclusivamente por livre

disposição destes setores, conforme suas necessidades e interesses.17

A modernidade serviu-se de ideários propagadores de uma nova ordem estatal em

que o poder absoluto dos governantes eram questionados por uma classe em

ascensão: a burguesia. Todavia, quando do seu ápice em integração das colunas

estatais, ao invés de efetivar o discurso da soberania popular e igualdade, os novos

dirigentes propuseram sérias rupturas sociais, alargando a marginalização e as

desigualdades. Segundo NELSON CAMATTA MOREIRA:

Os indícios de ‘atuação’, visando ao bem comum republicano por parte do Estado brasileiro, remontam ao modelo (autoritário) reformador de 1930, que lança as bases de profundas transformações na economia - com ênfase na indústria de base e na construção de infraestrutura para o crescimento capitalista em grande escala - e na política, com alargamento da ínfima participação então existente, alternando períodos de democracia formal plena e autoritarismo. Contudo, com relação à intervenção social por parte do Estado com, pelo menos, a intenção de se transformar a sociedade, percebe-se a ineficiência e, pior, a contribuição para a intensificação do processo de crescimento do abismo social no Brasil.18

A realidade periférica continuou latente e aberta na sociedade do século XX e desta

quadra de século por contrariar a proposta de transformação social através de

16MOREIRA; PAULA, 2015, p. 44. 17FAORO, 1995, p. 824. 18MOREIRA, Nelson Camatta. Fundamentos de uma Teoria da Constituição Dirigente. Florianópolis: Conceito, 2010. p. 154-155.

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políticas intervencionistas estatais. A personificação do poder alargou o processo de

sedimentação da subcidadania reinante na esfera nacional ampliando e

transformando num fenômeno mais abrangente do que, efetivamente, a promoção

de dignidade e seus direitos fundamentais.19

1.1 A DESIGUALDADE SOCIAL E JURÍDICA NA MODERNIDADE TARDIA

A desigualdade na sociedade brasileira não possui ineditismo e sequer nascera com

a modernidade periférica, excludente. Ao revés, a Antropologia e Sociologia

demonstram que a sua raiz permeia toda a História nacional, da arte à religião, da

política à educação.20

O retrato alarmante é característica desde o processo de colonização portuguesa no

Brasil. A primeira sociedade caminha nesta conjuntura. Formou-se nesta América

Latina uma sociedade agrária em sua dimensão estrutural, com técnicas rústicas de

escravismo na exploração econômica, a priori através da mão-de-obra dos índios

nativos e, mais tarde, mediante os navios negreiros que retiravam de África os seus

filhos tribais. Esta sociedade desenvolve-se pelo exclusivismo religioso desdobrado

num sistema de profilaxia social e política e não por uma consciência de raça pouco

formada entre os portugueses. O braço e a espada do particular são protagonistas

neste processo, com subordinação ao espírito político e de realismo econômico e

jurídico que aqui, tal como em Portugal, foi elemento decisivo de formação nacional,

o quê, entre nós efetivou-se através das grandes famílias proprietárias dos

engenhos e sobrados, que detinham poderes absolutos sobre as senzalas e

mucambos, decidindo de modo irreversível e incontrolável a vida e a morte dos seus

inferiores hierárquicos de modo que os representantes del-Rei e até da Igreja

cumpriam esses veredictos proferidos sem muita excitação.21

19 MOREIRA, 2010, p. 155. 20 A título de elucidação, o mestre Gilberto Freyre perscruta toda a história da Terra Brasillis a procura de desvendar “o que faz do Brasil, Brasil” através dos elementos da vida cotidiana. Suas análises históricas nascem dos estudos sobre louças, receitas de cozinha, cantigas populares e, sobretudo, da Arquitetura donde extrai-se os títulos de suas obras-primas “Casa Grande e Senzala” e “Sobrados e Mucambos”. Pelos títulos já se compreende como arraigada está a desigualdade latente da sociedade brasileira onde a miséria das taperas silenciam-se na sombra de mansões e palacetes. 21 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. 50. ed. São Paulo: Global, 2005. p. 65.

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Num largo momento dos dois primeiros séculos, o senhor de engenho era,

incontestavelmente, o grande protagonista da sociedade colonial tendo poderes

quase soberanos em suas respectivas possessões e sesmarias. A formação

escravocrata e a minimização do Estado-Interventor nos domínios privados fizeram

dos ciclos de cana-de-açúcar, a exploração do ouro e pedras preciosas à

supremacia das famílias centenárias de São Paulo produtoras de café até à época

da República Velha, o apogeu das forças personalistas na tomada de decisão do

que caberia tradicionalmente aos Estados. Conforme GILBERTO FREYRE:

Repita-se que a lavoura no Brasil gozara nos primeiros tempos - principalmente nesse extraordinário século XVI, que marcou o esplendor da atividade criadora de Portugal, ou antes, do colono português, na América - de favores excepcionais. Favores com que a Coroa prestigiou a iniciativa particular dos colonos de posse, concedendo-lhes grandes privilégios políticos e, à sombra desses, privilégios econômicos. Os desbravadores de mato virgem, os desvirginadores de sertões, os fundadores de grandes lavouras viram-se, por mais de um século - por dois séculos inteiros, pode-se dizer - rodeados de mercês dando-lhes domínio político dos senados das câmaras. E com esse domínio, os contratos, a arrecadação de impostos, as obras públicas. Viram-se ao mesmo tempo resguardados dos credores menos pacientes, que se pusessem com afoitezas para os lados das casas grandes. Mas com o desenvolvimento da indústria das minas, com o crescimento das cidades e dos burgos, sente-se declinar o amor del-Rei pelos senhores; enfraquecer-se a aristocracia deles, reduzida agora nos seus privilégios pelo prestígio novo de que vêm investidos aos capitães-generais, os ouvidores, os intendentes, os bispos, o vice-rei. Alguns desses capitães-generais como o conde de Valadares em Minas, fazendo dos mulatos e dos negros oficiais de regimento e desprestigiando assim os brancos da terra.22

Todavia, a decadência da estrutura escravocrata e as mudanças de interesses da

Europa no papel geopolítico das colônias no comércio mundial acentuou o

protagonismo de uma nova classe em ascensão formada por mercadores,

comerciantes, donos de indústrias e fábricas têxteis. Agora, a fortuna e o luxo

centralizaram-se nos logradouros e praças. Tudo, absolutamente tudo, atrelado ao

ciclo dos engenhos era retrógrado, vil, arcaico.

Da análise sociológica e do degringolar da marcha ininterrupta do tempo, a praça

supera em influência o engenho. Todavia, a imagem da força de uma estrutura que

permitiu anos dourados às classes superiores de Casa Grande gerou uma

romantização daquela antiga página da história procurando os novos donos do

22 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. 16. ed. São Paulo: Global, 2005. p 134/135.

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poder, por vezes, até imitá-la, embora houvesse o escárnio público à figura do

fazendeiro atrasado nos seus modos de fala, vestiário, vícios de linguagem, etiqueta

e moral até em séculos, conforme o isolamento geográfico e as influências de outros

povos.23

Não há qualquer incongruência no registro de FREYRE quanto à romantização do

Engenho em oralidades que ofendiam as estruturas de Casa Grande. Ao revés,

considera-se que esta nova classe - a burguesia mercantil - procurava afirmar o

mesmo apogeu que por séculos tiveram os senhores de terra.24 Neste sentido,

lembra-se que a legislação até então servia aos aristocratas e senhores feudais.

Conforme NELSON CAMATTA MOREIRA e RODRIGO FRANCISCO DE PAULA:

Aqui, procuram-se as origens desse fenômeno na fundação da República no Brasil, que trouxe a esperança da extinção dos privilégios de nascimento, dos foros de nobreza, das prerrogativas e regalias decorrentes das ordens honoríficas, dos títulos nobiliárquicos e de conselho (artigo 72, § 2º, da Constituição de 1891). A promessa constitucional, como se sabe, fracassou logo no início, com a reprodução das práticas herdadas do Império (e da Colônia), decorrentes da naturalização da desigualdade, o que forjou o surgimento dos subcidadãos brasileiros, uma gente desprovida de reconhecimento e que, por isso mesmo, revelou-se incapaz de assumir plenamente um sentimento constitucional, muito embora, em várias ocasiões, mesmo diante das adversidades, tenha levantado a voz contra a opressão e a marginalização.25

O “processo de naturalização da desigualdade” agora centralizava no Sobrado e

Mucambo. A arquitetura reproduzia e até produzia a realidade de subcidadania que

assolava parcela considerável da população colonial. A urbanização intensifica os

antagonismos da sociedade brasileira. Modifica-se o modo de conceber e estruturar

as desigualdades entre classes e raças. Nesse contexto, é verdade, entretanto, que

tornam-se mais efervescentes as possibilidades laborais e relacionamentos

intersubjetivos capazes de inserir o homem negro dotado de excelentíssima

qualidade intelectual, física, artística ou sexual em postos melhores do que os

comumente designados aos homens de sua cor e poder aquisitivo.26

23FREYRE, 2005, p. 135. 24Ibid., p. 135. 25MOREIRA; PAULA; 2015, p. 31-32 26FREYRE, op. cit., p. 270, nota 23.

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A observação de FREYRE é oportuna. De fato, a vida no centro urbano possibilitava

um alargamento de relações sociais e atividades. Entretanto, a ascensão de um

negro, escravo ou da mulher ocorria em regime de exceção. Pouco abarcante o

projeto de modernidade, cada vez mais periférico. O mulato e o bacharel galgam

espaços na vida pública. Aqueles, debaixo das varas dos senhores; estes, por

confiança do Rei. No tocante aos bacharéis, leciona FREYRE:

Eram tendências encarnadas principalmente pelo bacharel, filho legítimo ou não do senhor de engenho ou do fazendeiro, que voltava com novas idéias da Europa - de Coimbra, de Montpellier, de Paris, da Inglaterra, da Alemanha - onde fora estudar por influência ou lembrança de algum tio-padre mais liberal ou de algum parente maçom mais cosmopolita. Às vezes eram rapazes da burguesia mais nova das cidades que se bacharelavam na Europa. Filhos ou netos de ‘mascates’. Valorizados pela educação européia, voltavam socialmente iguais aos filhos das mais velhas e poderosas famílias de senhores de terras. Do mesmo modo que iguais a estes, muitas vezes seus superiores pela melhor assimilação de valores europeus e pelo encanto particular, aos olhos do outro sexo, que o híbrido, quando eugênico, parece possuir como nenhum indivíduo de raça pura, voltavam os mestiços ou os mulatos claros. Alguns deles filhos ilegítimos de grandes senhores brancos; e com a mão pequena, o pé bonito, às vezes os lábios ou o nariz, dos pais fidalgos.27

A ascensão se fez logo no meio político.28 Dom Pedro II possuía vocação e idéias

de um reinado formado por uma estrutura cosmopolita, atento às tendências de

Europa. Não mais o senhor de engenho, não mais o comerciante. Agora cintilava na

vida pública os filhos dos senhores de engenho e dos comerciantes.

Toda esta modificação do aparelho estatal não reverteu o processo de concretização

da desigualdade na Colônia do Açúcar ao Império. Ao revés, consolidou o domínio

do privado sobre a res publica garantindo um administração personalista.

Verdadeiramente, um Brasil periférico ainda dormia nas taperas e mucambos. A

esquematização da desigualdade perdura entre os séculos.

27 FREYRE, 2005, p. 712. 28 Ibid., p. 713.

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1.2 FATOS ATRELADOS À MODERNIDADE TARDIA NO BRASIL

1.2.1 Colonialismo

Na “esquematização da modernidade tardia no Brasil nota-se que o Colonialismo, o

Patrimonialismo e o Patriarcalismo foram as ferramentas determinantes para a

realidade de desigualdade.29

Uma análise antropológica da sociedade brasileira parte do pressuposto histórico da

força do Colonialismo engendrado por Portugal. A forma de exploração de um

determinado território não pertencente ao Velho Mundo já era marca presente no

Reinado de D. João III. EDUARDO BUENO, por exemplo, recorda que foi em março

de 1532, época em que Martim Afonso de Souza estava em São Vicente, que D.

João III resolveu empregar em terra brasilis o mesmo sistema de colonização nos

Açores e Ilha da Madeira. A sugestão de Diogo de Gouveia fora atendida uma vez

que, apesar dos sucessos da Coroa de Portugal em descobrir, conquistar,

comercializar, as constantes ameaças da França em tomar as possessões várias

obrigava um regime colonial que permitia ampla povoação das terras. Ademais,

considerou-se que o Tesouro da Corte já havia investido grandes montas com a

conquista de Índia portanto, seria interessante dividir o território brasileiro em

quatorze capitanias hereditárias, totalizando quinze lotes. As terras foram doadas a

figuras importantes da corte que, a partir daí, teriam a incumbência de cuidar da

posse neste processo de colonização.30

São características deste fenômeno o escravismo, o latifúndio, a monocultura, o

domínio da iniciativa privada pelos capitães e a força da violência.31 O Engenho da

29Embora algumas correntes e antropólogos separem estes fenômenos como autônomos no processo histórico-colonial, para os fins deste trabalho, sobreleva analisar como imbricamentos sociais que, por vezes, são quase indistinguíveis. Isto porque, a formação das capitanias hereditárias, a exploração escravocrata que formaram milícias particulares, a pouca interposição da Coroa nos assuntos político-sociais demonstram a força do personalismo e patrimonialismo na sociedade brasileira. Apenas por mero didatismo, trabalharemos os devidos temas em tópicos apartados. 30BUENO, Eduardo. Brasil: uma história: cinco séculos de um país em construção. Rio de Janeiro: Leya, 2012. p.39-41. 31Ibid., p. 44.

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Cana de Açúcar propicia uma luxuriante glória aos senhores feudais que entravam

no comércio mundial como comerciantes do “ouro branco”.32 33

O invadir, subjugar e julgar determinaram, portanto, as práticas no Novo Mundo. As

práticas foram engendradas por uma Nação que possuía espírito aventureiro e força

de naus e barões.34 O trabalhador, o industrial era mais portado ao estabelecimento

sólido em terras beira-mar, diferentemente dos desbravadores essenciais na

construção da indústria. Neste sentido, adverte SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

que a pouca disposição do português para o trabalho sem compensação próxima

evidenciava a aptidão para ações aventurosas como, por exemplo, fretar navios e

cruzar os sete-mares, desbravar terras completamente virgens. Os europeus de

outras nacionalidades, como a Britânica e Holandesa, eram mais propícios à

estabilidade produtiva em um único local trabalhando bravamente naquela atividade

dominante.35

Sérgio Buarque de Holanda chega então à conclusão que importa a este trabalho e

que justifica o reinado de desigualdade na sociedade brasileira durante os séculos.

Segundo o autor:

E essa ânsia de prosperidade sem custo, de títulos honoríficos, de posições e riquezas fáceis, tão notoriamente característica da gente de nossa terra, não é bem uma das manifestações mais cruas do espírito de aventura? Ainda hoje convivemos diariamente com a prole numerosa daquele militar do tempo de Eschwege, que não se envergonhava de solicitar colocação na música do palácio, do amanuense que não receava pedir um cargo de

32BUENO, 2012, p.39-41. 33 É primoroso afirmar que esta estrutura colonial recebera a bênção irrestrita da Igreja de Roma. Em 8 de janeiro de 1454, o papa Nicolau V redigiu a bula Romanus Pontifex que em sua redação apresentava diversos avais: “4 – Por isso nós, tudo pensando com devida ponderação, por outras cartas nossas concedemos ao dito rei Afonso a plena e livre faculdade, dentre outras, de invadir, conquistar e subjugar quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à servidão e tudo aplicar em utilidade própria e dos seus descendentes. Por esta mesma faculdade, o mesmo D. Afonso ou, por sua autoridade, o Infante legitimamente adquiriram mares e terras, sem que até aqui ninguém sem sua permissão neles se intrometesse, o mesmo devendo suceder a seus sucessores. E para que a obra mais ardentemente possa prosseguir.” Já a bula Inter Coetera datada de 04 de maio de 1493, editada pelo Vigário de Roma Alexandre VI dispunha que: “É preciso reconhecer que essa é, ainda hoje, a lei vigente no Brasil. É o fundamento sobre o qual se dispõe, por exceção, a dação de um pequeno território a um povo indígena, ou, também por exceção, a declaração episódica e temporária de que a gente de tal tribo não era escravizável. É o fundamento, ainda, do direito do latifundiário à terra que lhe foi uma vez outorgada, bem como o comando de todo o povo como uma mera força de trabalho, sem destino próprio, cuja função era servir ao senhorio oriundo daquelas bulas” Disponível em: < http://www.baciadasalmas.com/bula-romanus-pontifex/> Acesso em 04 de setembro de 2018. 34HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 45 35Ibid., p. 46.

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governador, do simples aplicador de ventosas que aspirava às funções de cirurgião-mor do reino… Não raro nossa capacidade de ação esgota-se nessa procura incessante, sem que a neutralize uma violência vinda de fora, uma reação mais poderosa; é um esforço que se desencaminha antes mesmo de encontrar resistência, que se aniquila no auge da força e que se compromete sem motivo patente. E, no entanto, o gosto da aventura, responsável por todas essas fraquezas, teve influência decisiva (não a única decisiva, é preciso, porém, dizer-se) em nossa vida nacional. Num conjunto de fatores tão diversos, como as raças que aqui se chocaram, os costumes e padrões de existência que nos trouxeram, as condições mesológicas e climatéricas que exigiam longo processo de adaptação, foi o elemento orquestrador por excelência. Favorecendo a mobilidade social, estimulou os homens, além disso, a enfrentar com o denodo as asperezas ou resistência da natureza e criou-lhes as condições adequadas a tal empresa.36

Portanto, neste processo de sistematização da desigualdade e construção de uma

modernidade periférica, o colonialismo surge como fator determinante uma vez que,

constrói-se a ideia nacional de monopólio do poder em mãos privadas. Os ciclos e

os cultivos modificaram mas a sociedade brasileira permaneceu sem estabelecer

parâmetros concretos entre o público-particular.37

1.2.2 Patrimonialismo e Personalismo

Estão fenômenos estão completamente associados e, por isso, vale a pena abordá-

los conjuntamente. O patrimonialismo constrói o poder-político nas mãos de uma

autoridade, seja republicana, seja monárquica, seja feudal. O personalismo é a

completa associação física, intelectual, geográfica e política deste poder.38

Uma sociedade como a brasileira que teve os domínios entre o público e privado

pouco delimitados possui como marca latente a formação de uma consciência

esquematizada em que os detentores da força de capital e bélica dominavam os

interesses de toda coletividade.

36 HOLANDA, 1995, p. 46. 37 A miséria, a escravidão, ainda que implícita sempre assolou o “Terceiro Mundo”. As palavras de Antonio Vieira encontrando eco em Eduardo Bueno parece reproduzir friamente o passado: “Para os que ficavam, o quadro no Brasil seguia igual e muito similar ao descrito pelo padre Antônio Vieira: “Quem vir na escuridade da noite aquelas fornalhas tremendas perpetuamente ardentes (...) o ruído das rodas, das cadeias, da gente toda de cor da mesma noite, e gemendo tudo, sem trégua nem descanso; quem vir enfim toda a máquina e aparato confuso e estrondoso daquela Babilônia, não poderá duvidar, ainda que tenho visto Etnas e Vesúvios, que é uma semelhança do inferno.” BUENO, 2012, p. 45. 38HOLANDA, op. cit., p. 32, nota 36.

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Considera-se, não obstante, que estas práticas não foram desconhecidas dos

legítimos representantes da Coroa (na Era Monárquica) ou do Povo (no período

republicano). O que sempre houve foi a personalização deste poder, a formação de

uma ideia já admitida como correta e irrefutável dentro da sociedade brasileira.

Nesse contexto, SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA constata a predominância

destes traços.

Os privilégios hereditários, que, a bem dizer, jamais tiveram influência muito decisiva nos países de estirpe ibérica, pelo menos tão decisiva e intensa como nas terras onde criou fundas raízes o feudalismo, não precisaram ser abolidos neles para que se firmasse o princípio das competições individuais. À frouxidão da estrutura social, à falta de hierarquia organizada devem-se alguns dos episódios mais singulares da história das nações hispânicas, incluindo-se neles Portugal e o Brasil. Os elementos anárquicos sempre frutificaram aqui facilmente, com a cumplicidade ou a indolência displicente das instituições e costumes. As iniciativas, mesmo quando se quiseram construtivas, foram continuamente no sentido de separar os homens, não de os unir. Os decretos dos governos nasceram em primeiro lugar da necessidade de se conterem e de se refrearem as paixões particulares momentâneas, só raras vezes da pretensão de se associarem permanentemente as forças ativas.39

A lição de Sérgio Buarque demonstra a força do aparelho estatal para a efetivação

dos interesses singulares (portanto, patrimonialistas e personalistas) na sociedade

brasileira).

NELSON CAMATTA MOREIRA e RODRIGO FRANCISCO DE PAULA em atenção à

obra de Buarque constatam que os laços de amizade e a força do capital privado

interno fizeram a legitimidade das elites na estrutura interna do Estado. Para os

doutrinadores, as relações subjetivas construídas sobre os laços de amizade,

levavam o âmbito privado ao público gerando consequências tenebrosas para toda a

sociedade. O Estado tomou os traços do círculo familiar, uma mera reprodução de

quatro paredes, articulando sempre interesses particularistas como ainda ocorre no

Estado Brasileiro.40

É nesse contexto, portanto, em que a modernidade periférica se propagada.

Continua-se o culto ao particular, ao domínio privado sobre o erário e o aparelho

judicante. Efetivamente, a desigualdade persiste como marca profunda da sociedade

brasileira. O que se vislumbra é um Estado interventor-desenvolvimentista-regulador

39HOLANDA, 1995, p. 32-33. 40 MOREIRA; PAULA; 2015, p. 51.

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contribuindo diretamente para o crescimento de um Brasil pródigo para com as

elites, que se apropriaram, aproveitaram de tudo desse Estado, com força

personalista inconteste, loteando os monopólios e os oligopólios da economia com o

capital nacional funcionando como verdadeiro simulacro para que os donos do poder

pudessem exercitar os seus interesses.41

E nesse sentido “Raízes do Brasil” demonstra-se ainda contemporânea e imortal,

prevalecendo na órbita da sociedade brasileira os traços de submissão através da

propagação cultural desta realidade personalista-patriarcal. Na ciência de SÉRGIO

BUARQUE DE HOLANDA:

Hoje, a simples obediência como princípio de disciplina parece uma fórmula caduca e impraticável e daí, sobretudo, a instabilidade constante de nossa vida social. Desaparecida a possibilidade desse freio, é em vão que temos procurado importar dos sistemas de outros povos modernos, ou criar por conta própria, um sucedâneo adequado, capaz de superar os efeitos de nosso natural inquieto e desordenado. A experiência e a tradição ensinam que toda cultura só absorve, assimila e elabora em geral os traços de outras culturas, quando estes encontram uma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida. Neste particular cumpre lembrar o que se deu com as culturas européias transportadas ao Novo Mundo. Nem o contato e a mistura com raças indígenas ou adventícias fizeram-nos tão diferentes dos nossos avós de além-mar como às vezes gostaríamos de sê-lo. No caso brasileiro, a verdade, por menos sedutora que possa parecer a alguns dos nossos patriotas, é que ainda nos associa à península Ibérica, a Portugal especialmente, uma tradição longa e viva, bastante viva para nutrir, até hoje, uma alma comum, a despeito de tudo quanto nos separa. Podemos dizer que de lá nos veio a forma atual de nossa cultura; o resto foi matéria que se sujeitou mal ou bem a essa forma.42

A realidade nacional é de modernidade periférica. O personalismo e o

patrimonialismo continuam vivos nas estruturas da República.

1.2.3 Patriarcalismo

A família tem uma influência muito grande na construção da sociedade no Brasil

Colonial. É responsável direta pela construção de vários governantes, detentores de

poder político. Sociologicamente analisando a sociedade brasileira, percebe-se que

o patriarca na Colônia detinha o poder de vida e morte sobre os seus familiares e

41 STRECK, 2014, p. 24-32. 42 BUARQUE, 1995, p. 40.

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dependentes.43 Nesse sentido, é oportuna a observação de JESSÉ SOUZA ao

observar a produção sociológica de Gilberto Freyre:

O patriarcalismo de que nos diz Freyre tem esse sentido de apontar para a extraordinária influência da família como alfa e ômega da organização social do Brasil colonial. Dado o caráter mais ritual e litúrgico do catolicismo português, acrescido no Brasil do elemento de dependência política e econômica em relação ao senhor de terras e escravos, o patriarcalismo familiar pode desenvolver-se sem limites ou resistências materiais ou simbólicas. A família patriarcal como que reunia em si toda a sociedade. Não só o elemento dominante, formado pelo senhor e sua família nuclear, mas também os elementos “intermediários” constituídos pelo enorme número de bastardos e dependentes, além da base de escravos domésticos e, na última escala de hierarquia, os escravos da lavoura. É precisamente nesse ambiente saturado de paixões violentas que surge o tema da ‘ambiguidade’ e da ‘imprecisão’ do argumento freyreano apontado por tantos autores. A questão é real e significativa, referindo-se à forma peculiar em que uma sociedade singular vinculava umbilicalmente despotismo e proximidade, enorme distância social e íntima comunicação [...].44

O que se nota é a prevalência do poder do homem patriarca, senhor de engenho ou

grande comerciante difundindo e estabelecendo parâmetros e políticas dentro do

Estado, reproduzindo suas formas de gerência do lar e possessões. Assim é que os

governantes e legisladores nacionais continuam através da esquematização do

poder herdando os cargos políticos de pai pra filho.45

As influências são múltiplas e capazes de engendrar a desigualdade institucional

que se reproduz numa sociedade ainda cheia de diferenças e conflitos. A

consciência legitimadora da desigualdade torna-se mais forte a cada década

enquanto que, a produção legiferante evolui com reduzida eficácia na sociedade

brasileira.

43BUARQUE, 1995, p. 85. 44SOUZA, 2012, p. 101-102. 45A título de informação, a família Bonifácio de Andrada está presente no Congresso Nacional há dois séculos. Um clã que já teve quatorze representantes vivenciou o Brasil Colônia, a Proclamação da República e todos os eventos republicanos e militares do Brasil do século XX. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/especial/noticias/familia-se-perpetua-ha-dois-seculos-no-congresso/.> Acesso em: 04 set. 2018.

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1.4 O HOMEM CORDIAL NO PROCESSO DE MODERNIDADE TARDIA

O brasileiro vive “à flor da pele”. 46

Sérgio Buarque de Holanda procura em “Raízes do Brasil” descobrir quais traços

distinguem o brasileiro de qualquer outro homem do mundo. Perscruta os caminhos

da psicologia coletiva e chega a conclusão de que todo agir deste homem é baseado

na tradição e influência familiar.

Qualidades e vícios de forma no agir. SÉRGIO BUARQUE analisa as características

deste homem e preleciona:

Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade - daremos ao mundo o ‘homem cordial’. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo - ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentença.47

O “homem cordial” age por impulsos e paixões, menos pela razão. Seus programas

e formas de viver não toleram rituais, etiquetas, normas comportamentais. É sempre,

e sempre que possível, avesso a qualquer formalismo, ainda que essencial a

construção institucional.

Se por um lado os entraves burocráticos nas Instituições são tenebrosos, por outro,

a liberalidade que dá espaço ao “jeitinho brasileiro” é nociva à sociedade. O homem

cordial reproduz, então, sua vida em família nos espaços públicos. Conforme

SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA, a vida em sociedade para o “homem cordial” é,

46A expressão “à flor da pele” é retirada da canção “O que será”, de Chico Buarque de Holanda. A título de menção, o cantor popular é filho do sociólogo Sérgio Buarque. Em alusão à obra do pai, a canção demonstra a forma de viver e se auto perder do homem cordial, nos seguintes dizeres: “Que dá dentro da gente e que não devia/ Que desacata a gente, que é revelia / Que é feito uma aguardente que não sacia / Que é feito estar doente de uma folia / Que nem dez mandamentos vão conciliar /Nem todos os unguentos vão aliviar / Nem todos os quebrantos, toda alquimia /Que nem todos os santos, será que será /O que não tem descanso, nem nunca terá /O que não tem cansaço, nem nunca terá /O que não tem limite.” 47BUARQUE, 1995, p. 147.

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de certa maneira, uma libertação do medo e impossibilidade de viver consigo

próprio, ser senhor de sua individualidade, em apoiar-se em si próprio ao tomar as

decisões de sua vida. Assim vai reduzindo o seu indivíduo em detrimento da parcela

social, periférica. Vive, portanto, para os outros por não poder gerir seu bem e mal,

seu futuro e passado, suas características e misérias48. Nisso há, evidentemente, o

domínio familiar que, obsessivamente remodela as funções e preponderâncias

patriarcais de um povo que sofre contínua dominação social.

Cria diminutivos pra tudo subvertendo toda a linguística clássica lusitana na tentativa

de aproximar o outro de si e nenhuma reverência hierárquica pode superar a

intimidade familiar.49

Este homem, portanto, marca as relações intersubjetivas por laços de amizade,

levando esta prática do âmbito patriarcal e privado para o público, gerando

consequências danosas até os presentes dias por ampliar o Estado, encarando-o

como círculo familiar.50

Assim é que o nepotismo tenha tido tanta força no Estado brasileiro e as famílias

centenárias continuam herdando cadeiras políticas. Há uma inquietação emocional

que leva-o a procurar mais o coletivo do que a si mesmo firmando a desigualdade

social para beneficiar os seus familiares e amigos.51

Em sua abordagem final, SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA conclui que:

A exaltação dos valores cordiais e das formas concretas e sensíveis da religião, que no catolicismo tridentino parecem representar uma exigência do esforço de reconquista espiritual e da propaganda da fé perante a ofensiva da Reforma, encontraram entre nós um terreno de eleição e acomodaram-se bem a outros aspectos típicos de nosso comportamento social. Em particular a nossa aversão ao ritualismo é explicável, até certo ponto, nesta “terra remissa e algo melancólica”, de que falavam os primeiros observadores europeus, por isto que, no fundo, o ritualismo não nos é necessário. Normalmente nossa reação ao meio em que vivemos não é uma reação de defesa. A vida íntima do brasileiro nem é bastante coesa, nem bastante disciplinada, para envolver e dominar toda a sua personalidade, integrando-a, como peça consciente, no conjunto social. Ele

48BUARQUE, 1995, p. 147. 49Ibid., p. 148 50MOREIRA; PAULA; 2015, p. 51. 51BUARQUE, op. cit., p. 150, nota 48.

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é livre, pois, para se abandonar a todo o repertório de idéias, gestos e formas que encontre em seu caminho, assimilando-os frequentemente sem maiores dificuldades.52

BUARQUE, admirado com a efervescência das metrópoles e com os crescimentos

dos centros urbanos previa que esta tendência cordial sumiria com os tempos, haja

vista que a família perderia espaço na sociedade. Todavia, em tempos presentes,

com o crescimento dos meios de comunicação, a força ainda ativa da religião,

vislumbra-se que o homem cordial continua procurando formatar em todos os

aspectos a sua família, levando um universo de favores, prioridades e desigualdades

na sociedade e estruturas estatais.

52 BUARQUE, 1995, p. 151.

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2 A SUBCIDADANIA E A MODERNIDADE PERIFÉRICA NA REPÚBLICA DO

BRASIL: UMA ABORDAGEM LITERÁRIA DA OBRA DE LIMA BARRETO

Reconhecer amplo grau de autonomia à Ciência Jurídica é inevitável ao verdadeiro

hermeneuta desta quadra de século. Trata-se de uma compreensão histórica em

que, apesar de considerar as influências culturais, políticas e sociológicas que sofre

o Direito, não despreza o seu valor fundante em si mesmo e a importância de sua

liberdade científica no processo de evolução da Humanidade.53

De fato, o Direito tem a sua autonomia como ciência. Todavia, o que se vislumbra de

modo imprescindível é a fusão de horizontes na construção de um pensamento

plural, aberto e que responda significativamente aos povos, conforme os amplos

aspectos da vida e das Humanidades.

A modernidade, sempre objetivando a certeza e precisão dentro de um racionalismo

como instrumento viabilizador da criação de métodos e fórmulas preestabelecidas,

trouxe um modelo estático e inflexível no ensino oferecendo um saber automático e

virtual.54

Sob o prisma filosófico, tal conjectura fragmentou o homem na formação do

conhecimento dissociando sujeito de objeto, a razão equidistante a emoção, o

indivíduo de sua sociedade. Isto reflete a forma de ser e estar no mundo. 55 Nesse

contexto, refletindo sobre o parâmetro científico-jurídico de distância entre o Direito e

outros ramos do pensamento, lecionam os professores NELSON CAMATTA

MOREIRA e JULIANA FERRARI DE OLIVEIRA:

53Nesse contexto, o professor Lenio Luiz Streck considera que a evolução da consciência sobre a Autonomia do Direito passaram por quatro períodos. No primeiro, há a criação do “Tribunal” que retira a vingança e institucionaliza uma maneira de resolução dos conflitos. No segundo, banhado pela pré-modernidade, o papel interditor da Lei ganha relevo sobremaneira, de modo que fica ainda mais explícita a importância da interdição do Estado e do Direito na vida pública. Na terceira etapa (encampada pelo advento da Revolução Francesa), a expressão popular ganha espaço de modo a desconfiar dos juízos, instituir tribunais populares construindo um positivismo como ideologia para sustentar o próprio direito positivo, colocando-o como forma convencionalista. Por fim, na quarta etapa (pós-guerra), a autonomia do texto constitucional é marca indelével. É necessário reconhecer a autonomia da Carta-Maior como valor normativo fundante e não apenas político. STRECK, Lênio Luiz. Direito e Literatura e os Múltiplos Horizontes de Compreensão Pela Arte. A Autonomia do Direito: das Eumênides ao Capitão Vitorino. 1. ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2015. p. 26-28. 54MOREIRA, Nelson Camatta; OLIVEIRA, Juliana Ferrari de. Direito e Literatura e os Múltiplos Horizontes de Compreensão Pela Arte. 1. ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2015. p. 16. 55Ibid., p. 16.

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Assim, não se pode admitir que o ensino jurídico ainda se baseie na norma pura e simples, como se a letra fria da lei, os preceitos doutrinários e jurisprudenciais - que representam, não raro, um enaltecimento à repetição -, fossem os fios condutores da Ciência Jurídica. Isto se deve ao fato de que vivemos em uma sociedade situada em tempos de modernidade líquida, caracterizada pela instantaneidade, estando o tempo social sempre em descompasso com o tempo do Direito. Os conceitos e categorias não possuem solidez ou durabilidade, diluindo-se no tempo e tornando-se obsoletos com uma velocidade frenética.56

Uma redefinição, portanto, do modelo de ensino do Direito travessa pela

constatação da infinitude interpretativa, pela concepção filosófica da não-

fragmentação do ser humano, valorização do sentido e do pensar diferente.57 A

Literatura apresenta-se como importante ferramenta neste processo construtivo vez

que, a leitura de um conto ou de um poema proporciona impacto mútuo da mente,

alma, corpo e do coração.58

A concepção de um Direito amplo e imbricado às outras ciências é caro ao

pensamento heideggeriano59. De fato, a confecção ontológica do Direito emerge das

centenas de possibilidades que há na clareira e demonstra o que realmente é e

como é a árvore jurídica. Nesse sentido e interpretando as lições de Heidegger,

escreve o professor LENIO LUIZ STRECK

A clareira é a essa região na claridade da qual pode aparecer tudo o que é. A clareira (Litchtung) é essa abertura para a claridade, essa “região livre”, desbastada, um terreno tornado livre, enfim, um espaço desbravado, liberto de suas árvores, que pode, agora, receber e reenviar a luz. Clareira é o espaço que possibilita(rá) olhar em volta. A clareira vem a ser, nesse sentido, a condição de possibilidade da própria floresta. Estabelecer uma clareira no Direito; des-ocultar (novos) caminhos; descobrir as sendas (perdidas) de há muito encobertas pelo senso comum teórico dos juristas (modo cotidiano e inautêntico de fazer-interpretar o Direito), que oculta (vela) a possibilidade de o jurista dizer o novo: é este o objetivo desta obra, atento ao alerta que o próprio Heidegger já fizera nos “Holzwege”, de que “na floresta há caminhos que o mais das vezes, invadidos pela vegetação, terminam subitamente no não trilhado”. Abrir uma clareira é,

56MOREIRA, 2015, p. 16. 57 Ibid., p. 18. 58 Ibid., p. 18. 59 Para Heidegger, a clareira é o local em que tudo pode aparecer como verdadeiramente é. Há, de fato, uma iluminação de todo o espaço sendo o ponto culminante em que qualquer ente pode ser. Para o autor, um rompimento com uma dogmática jurídica (que sustenta um pirâmide completa e equidistante de tudo e todos como efetivamente é) oculta o que realmente é, deixando o aparente como sentido e rosto das coisas e formas. Por isso, para o filósofo, “apenas a clareira garante e certifica aos seres humanos uma passagem para aqueles entes que não somos nós próprios, e acesso ao ser que nós próprios somos.” STRECK, 2014, p. 375.

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assim, propiciar a alétheia (a não ocultação, o isto aí que foi arrancado da ocultação) no campo jurídico.60

Nesse sentido, importa reconhecer o papel imprescindível da Literatura no

desvelamento de uma Ciência que reflete, em primeira instância, o próprio ser

humano.

Segundo HEITOR MEGALE, Literatura é “a invenção, a criação de uma realidade

própria por meio de um processo intencional de elaboração estética do texto.61 O

artista tem a tarefa de, sob o parâmetro da realidade, criar uma realidade imaginária

(ficcional), conforme aspectos de sua existência, talento e forma de se emaranhar

diante à vida.62-63

É de se reconhecer que Direito e Arte durante toda a História caminharam lado a

lado em seus apogeus.64 A Literatura influenciou a Ciência Jurídica na elucidação e

concepção do homem em suas eras e contextos sociais e políticos.

Assim é que se nota o retrato da subcidadania e modernidade periférica na

República Federativa do Brasil além dos textos normativos e políticas

institucionalizadas do Estado. A produção literária deixa clara esta realidade

brasileira.65

60STRECK, 2014, p. 375-377. 61MEGALE, Heitor. Elementos de Teoria Literária. 1. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974. p. 2 62MEGALE, Heitor; MATSUOKA, Marilena. Literatura e Linguagem. 4. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977. p. 10. 63Não se omite que o conceito e fórmulas de se ver a produção artística são ambíguas e daí surgem várias correntes. Para alguns, a Arte reproduz a vida. Para outros, a Arte inventa a realidade. Todavia, para fins deste trabalho, o debate teórico não assenta relevância. 64A título de exemplificação, as seguintes obras demonstram uma correlação espontânea entre Direito e Literatura: Antígona e Rei Édipo (Sófocles), A Divina Comédia (Dante Alighieri), O Mercador de Veneza (Shakespeare), Os Últimos Dias de um Condenado (Victor Hugo), O Processo (Franz Kafka), Crime e Castigo (Fiódor Dostoiévski), Fogo Morto (José Lins do Rego), Grande Sertão, Veredas (João Guimarães Rosa). 65A conjuntura de subcidadania que se desenvolve no decorrer da marcha evolutiva do tempo sempre foi objeto valioso à produção literária em Terra Brasilis. Antes mesmo do apogeu da modernidade, autores como Padre Antônio Vieira (Sermões) e Gregório de Matos (poemas diversos) já descreviam as assimetrias reinantes na sociedade brasileira que jogava às traças da subcidadania parcela significativa da população. José de Alencar (mestre do romantismo nacional) retrata em seus romances urbanos o início do processo de modernidade, completamente imbricado à soberania das Praças e Logradouros (Lucíola, Diva, Senhora). Contemporaneamente ao processo de modernidade, autores da envergadura de Machado de Assis (Trilogia Machadiana: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, Quincas Borba), Aluísio Azevedo (Casa de Pensão, O Cortiço) e Lima Barreto (Triste Fim de Policarpo Quaresma, Recordações do Escrivão Isaías Caminha) dão estética e

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Retrato este, cite-se, fruto de uma intensa esquematização do valor fundante de

aceitação da condição pré-estabelecida, mediante a construção sócio-cultural de um

parâmetro de dominação social. A música, a poesia, a literatura, o dito popular, os

jargões, a moda, enfim, todos os meios de incutir na população o status quo. De ver-

se, portanto, que a Arte (Literária ou qualquer outra) pode servir de mecanismo de

perpetuação da realidade da negação de direitos fundamentais ou contribuir para o

desvelamento de uma conjectura contrária às promessas constitucionais.

É nesse contexto, objetivando retratar multidisciplinarmente o objeto deste trabalho,

que utiliza-se a Literatura como importante mecanismo para “a transgressão por

excelência” e “desvirtuamento de um Direito” que apresenta estanque, fechado e

silente à realidade periférica de um país cheio de contrastes sociais.66

Lima Barreto apresenta-se como um grande mestre no amanho do delicado terreno

da arte literária que demonstra a trágica negação de direitos no Brasil. Portanto, uma

abordagem de sua obra como retrato de subcidadania é indispensável ao valor

hermenêutico da presente discussão. Segundo ALFREDO BOSI:

Lima Barreto é autor da escrita considerada militante, realista e muitas vezes autobiográfica. Por essas e por outras, seus relatos vêm sendo utilizados, também, como importantes documentos e registros acerca do começo do século no Brasil, da época em que a nova capital da República - o Rio de Janeiro - modernizava-se sob o olhar crítico do escritor.67

A produção Literária de Barreto retrata, portanto, a realidade de irregularidades, de

limitações da existência humana mediante a perpetuação da subcidadania. Por isso,

a pertinência temática de sua obra. Reconhece-se a obra do ficcionista como ponto

detalhes da era. Já no século XX, Euclides da Cunha (Os Sertões), Joaquim Nabuco (Minha Formação), Rui Barbosa (Antologia), Monteiro Lobato (Cidades Mortas), Graciliano Ramos (Vidas Secas, Memórias do Cárcere), José Lins do Rego (Fogo Morto), Clarice Lispector (A Hora da Estrela), Carlos Drummond de Andrade (A Rosa do Povo), Ferreira Gullar (Poema Sujo, Bananas Podres), Adilson Vilaça (Cotaxé). No presente século, os registros de subcidadania e negação de direitos são temas abundantes e caros a diversos autores, dentre eles: André Sant’Anna (O Brasil é Bom, A História do Brasil - ensaio), Conceição Evaristo (Vozes-Mulheres), Bernadette Lyra (A Capitoa), Francisco Aurélio Ribeiro (Pelas Mãos dos Avós), Yan Brandemburg (Nós de Sangue), dentre outros. Apesar de todos os louros devidos aos presentes autores, este trabalho prestigia o trato precisamente cirúrgico da ficção de Lima Barreto. 66MOREIRA; OLIVEIRA, 2015, p. 18. 67BOSI, Alfredo. Introdução: figura do eu nas recordações de Isaías Caminha. In: BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. 2. ed. São Paulo: Penguin Classics; Companhia das Letras, 2010. p. 12.

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de partida para a elucidação dos erros da Modernidade, sobretudo, na Primeira

República.68

O que se vislumbra através de Barreto, é a frustração popular das promessas que

foram depositadas na Carta Magna de 1891, em especial no ideário republicano de

igualdade perante a Lei, cravada no art. 72, § 2º, que sustentava o fim de privilégios,

prerrogativas e regalias.6970

O que houve, efetivamente, foi a usurpação de poder, a derrocada de um projeto

que a priori representa o anseio conglobante de uma população esquecida no

processo de modernidade periférica. Houve acentuada apropriação do espaço

público pelo interesse privado pelos favorecidos no processo de esquematização da

desigualdade, mediante a imposição de um modelo estatal de “fora para dentro”,

mantendo viva e cada vez mais acesa a “consciência moral pré-nacional” da

negação de direitos.71

Lima Barreto em Triste Fim de Policarpo Quaresma e Recordações do Escrivão

Isaías Caminha retrata minuciosamente através da ficção toda esta conjuntura de

efervescência política e social. O autor demonstra através das personagens de suas

68MOREIRA, PAULA, 2015, p. 33. 69Ibid., p. 35. 70O Asa de Águia, Rui Barbosa, em atormentante registro de desigualdade na República, relata em sua “Antologia” a frustração de um intelectual com a desigualdade fática em contrariedade às disposições normativas. O relato, devido a sua grandeza e pertinência merece completa transcrição: “Todos são iguais perante a lei. Assim no-lo afirma, no parágrafo seguinte, esse artigo constitucional. Vede, porém, como os fatos respondem à Constituição. Na Grã-Bretanha, sob a coroa de Jorge V, o arquiduque herdeiro da coroa d’Áustria é detido na rua e conduzido à polícia como contraventor da lei, por haver o seu automóvel excedido a velocidade regular. As mesmas normas se observavam no Brasil, sob o cetro de d. Pedro II, quando o carro do imperador era multado, por atravessar uma rua defesa. Num e noutro caso a lei é igual para todos: todos são iguais perante a lei. Mas no Brasil destes dias, debaixo do bastão do marechal Hermes, o seu secretário, por duas vezes, quando um guarda civil lhe acena ao motorista com o sinal de aguardar, enquanto se dá passagem a outros carros, apeia irriminado, toma contas ao agente da lei, nota-lhe o nome, e imediatamente o manda punir com a demissão. Noutra ocasião é um general do Exército, que salta, iracundo e decomposto, do veículo, ameaçando com o seu revólver o policial que ousou exigir do automóvel menor celeridade na carreira. Esses exemplos, da mais alta procedência, verificados e registrados pelos jornais, na metrópole brasileira, desmascaram a impostura da igualdade entre nós, e mostram que valor tem, para os homens da mais eminente categoria, entre as influências atuais, como para os que mais perto estão do chefe do Estado, as promessas da Constituição. Essas potências, no seu insofrimento dos freios da legalidade, nem ao menos evitam os escândalos da rua pública, ou observam a compostura ordinária da boa educação É uma selvageria que nem o verniz suporta do mais leve decoro.” BARBOSA, Rui. Antologia. 1 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. p. 83-84. 71MOREIRA; PAULA. 2015, p. 50.

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obras a frustração do projeto democrático de uma República igualitária que garantia

o fim dos privilégios e regalias. Sua produção literária debruça sobre este lamento

do povo, confeccionando um panorama que contribui em suma para descobrir os

erros hermenêuticos das gerações de juristas. A análise Hermenêutica tem, assim,

um importante relato que desvela todo o contexto de ineficácia das normas e

negação dos direitos. Por isso, o presente trabalho abordará as obras de Lima para,

enfim, chegar às conclusões ontológico-hermenêuticas que respondam

satisfatoriamente à Crise da Hermenêutica contemporânea.

2.1 A CONSTRUÇÃO DE UM MODELO TEÓRICO E PRÁTICO DE SUBCIDADANIA

NO BRASIL E A SUBCIDADANIA COMO ELEMENTO DE DOMINAÇÃO SOCIAL

A construção de um modelo teórico e prático de subcidadania no Brasil é resultado

da certeza epistemológica de que a manutenção ou mudança de status quo

depende, sobremaneira, dos mecanismos intelectuais e institucionais forjados para

tais fins.

Tal conclusão é indelével às práticas de poder durante toda a História da

Humanidade. É possível visualizar tais práxis ainda na Grécia Antiga. Se, por um

lado, as palavras e arremates dos filósofos produziram grandes impactos entre os

povos, por outro, foram os sofistas (senhores da dialética) os grandes pedestais da

sociedade grega.72

Esta observação é de suma importância para compreender a construção de um

modelo teórico e prático de perpetuação da subcidadania.

72 Sócrates, por exemplo, foi o mais prestigiado filósofo de todos os tempos. As suas abordagens filosóficas sempre impactaram o imaginário intelectual de todas as eras posteriores. Por intermédio de seu discípulo Platão, pode a Humanidade conhecer várias teorias e desvelamento da Verdade. Da inteligência de Platão extrai-se “Apologia de Sócrates” e “Banquete”, obras que retratam a existência e os questionamentos do filósofo. Todavia, inelutavelmente, mais venerados foram os sofistas: exímios oradores gregos que, através, da dialética (exposta, sobretudo pelo Teatro) embutiram no povo o fatalismo. Na dramaturgia, havia sempre um coro que, mediante às danças e versos (ritmados, ou não) louvavam os feitos e regências de um grande mestre: o ator. O apogeu do sofismo deu-se com as obras “Édipo-Rei” e “Antígona”, ambas sustentando que do destino não há como livrar-se. O grego em catarse admitia-o como dogma. Nesse mesmo sentido é que surge um modelo teórico da subcidadania e negação de direitos tornando a realidade fatal.

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Aprioristicamente, convém assinalar que criou-se, segundo Bourdieu uma “ideologia

da igualdade e de oportunidades” travestindo formas de agir a dominação mediante

o capital simbólico que reveste-se de um habitus.73 Este habitus trata-se, segundo

JESSÉ SOUZA de um sistema de estruturas cognitivas forjadas em disposições

duráveis que concatenam, desde tenra idade, o fatalismo das possibilidades e

impossibilidades, liberdades e limites de acordo com condições subjetivas e não

diferenciações racionais que servem de mecanismo para a promoção da própria

igualdade substancial.74

Forma, assim, e desde já, uma consciência empírica de que a raiz da desigualdade,

da negação de direitos, da predisposição a condição de subcidadão é inconteste e

digna do habitus da esquematização.

Segundo NELSON CAMATTA MOREIRA e RODRIGO FRANCISCO de PAULA, em

atenta observação à construção teórica de Jessé Souza, arrematam que os

subcidadãos são aqueles que detém um habitus precário e, portanto, seus

comportamentos e vivências justificam a manutenção do status quo. Trata-se de um

desenho em que forja as divisões de classes através das conjunturas em que vivem

as pessoas e não da força normativa da Constituição e concretização da tutela

jurisdicional do Estado (equânime). É, assim, um exercício morfológico de formação

do capital de subjugação e humilhação social. Já, no habitus primário vivem os que,

por condições econômicas, sociais e políticas são dignos de serem cidadãos tendo,

portanto, voz e voto nas estruturas de poder e definição política de Estado.75 Nesse

sentido, asseveram os mestres:

A ‘esquematização’ da sociedade brasileira, refletida nos rumos do Estado, estava preparada para favorecer uma determinada classe dominante e, no campo jurídico, as escolhas feitas em cada momento, entre interesses, valores e visões do mundo diferentes ou antagonistas tinham poucas probabilidades de desfavorecer os dominantes, de tal modo o ethos dos agentes jurídicos que está na sua origem e a lógica imanente dos textos jurídicos que são invocados tanto para os justificar como para os inspirar estão adequados aos interesses, aos valores e à visão do mundo dominantes.76

73MOREIRA, PAULA, 2015, p.42. 74SOUZA., 2012, p. 41-44. 75MOREIRA, PAULA, op. cit., p. 42-43, nota 73. 76Ibid., p. 43.

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Este habitus gera, portanto, invisibilidade pública e humilhação social, naturalizando

a desigualdade, a prevalência de privilégios, estigmatização e desumanização,

enrijecendo a permanente negação dos direitos fundamentais expressos na

Constituição, tais como, o princípio da igualdade e da dignidade da pessoa

humana.77

No plano fático, os professores NELSON CAMATTA MOREIRA e RODRIGO

FRANCISCO de PAULA trazem a tona o trabalho de Fernando Braga da Costa,

materializado numa pesquisa de campo, recolhendo informações e experiências no

decorrer de dez anos de convívio intenso, acompanhando e desempenhando os

serviços de gari da prefeitura da Cidade Universitária da Universidade de São Paulo.

Costa relata ter sentido na pele o tratamento dos intelectuais, abastados e

autoridades sobre os garis. Segundo o autor, a sua experiência serviu para sentir, na

pele o sofrimento político de engrossar uma multidão de “subintegrados” no Brasil.78

Isto evidencia, em primeira instância um sofrimento político. “O sofrimento político

tem a ver com o desprivilegiamento de todo um setor social, gerando, por igual, uma

pobreza política.”79

Assim, portanto, é que se desenha e forja um “manual de concretização de

subcidadania e negação de direitos”. Mediante uma “esquematização” teórica e

fabular da desigualdade e a constante pressão de sofrimento político que humilha e

marginaliza milhões de brasileiros do processo de desenvolvimento democrático.

Uma robusta construção que conduz a República a tornar-se mecanismo de

subjugação entre as classes primárias, secundárias e precárias.

2.2 UM RETRATO DE SUBCIDADANIA E MODERNIDADE TARDIA NAS OBRAS

LITERÁRIAS DE LIMA BARRETO

A Literatura é, conforme já exposto, “a invenção, a criação de uma realidade própria

77MOREIRA, PAULA, 2015, p.43. 78Ibid., 2015, p. 43. 79Ibid., 2015, p. 46.

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por meio de um processo intencional de elaboração estética do texto”.80 Além das

concepções deontológicas, é possível constatar o seu importante papel, como de

todas as Artes, na busca e encontro de sentido e significação para a vida.81

É imperioso constatar que numa narrativa há seis elementos: tempo, espaço, ação,

personagens, foco e discurso. Por meio destes elementos desenvolve-se o texto,

conforme a genialidade e as concepções estéticas e filológicas. Através da narrativa

surgem os gêneros romance, novela e conto.82

A produção literária de Lima Barreto que aqui será objeto de análise trata-se de dois

romances: Recordações do Escrivão Isaías Caminha e Triste Fim de Policarpo

Quaresma.

Segundo HEITOR MEGALE e MARILENA MATSUOKA, Romance:

É a narrativa que pretende nos dar uma visão do mundo mediante o conflito de personagens. O conflito, comumente, é tomado no ponto mais distante. Disto decorre que o romance exija um enredo complexo, naturalidade extrema das personagens e um tratamento cuidadoso do tempo da narrativa. Podemos tomar como exemplo: D. Casmurro de Machado de Assis, São Bernardo de Graciliano Ramos, O cortiço de Aluísio Azevedo.83

É do conflito, de um enredo complexo, de uma naturalidade extrema das

personagens e de um tratamento cuidadoso do tempo da narrativa que surge o

retrato latente de subcidadania e negação de direitos nas obras de Lima Barreto.84

80MEGALE, 1974, p. 2. 81Certa feita, o literato Vladimir Nabokov fora questionado sobre o que é Literatura. No mais autêntico do seu gênio, eis sua resposta: “A literatura nasceu não o dia em que um menino gritou “lobo”, quando um lobo cinzento e grande veio correndo por um vale Neandertal em seus calcanhares: a literatura nasceu no dia em que um menino gritou “lobo”, “lobo” e não havia lobo nenhum atrás dele. Que o coitadinho, por conta de ter mentido muitas vezes, tenha finalmente sido comido por um animal real é algo acidental. Mas aqui está o que é importante. Entre o lobo na grama alta e o lobo na altura de uma história há uma cintilante passagem. Essa passagem, esse prisma, é a arte da literatura.” Nabokov, portanto, apresenta a Literatura como algo irreal, que não faz parte deste mundo em constante metamorfose mas como passagem de encontro ao sentido e significação para a vida. Esta construção é muito cara ao presente trabalho e justifica a abordagem literária da problemática da subcidadania vez que, apresenta as facetas do escritor “narrador”, “professor” e “mago” como alguém que consegue espelhar a vida através da Arte, representando pela ficção a realidade na busca incessante por respostas. Disponível em: < http://atelierdaescritarj.blogspot.com/2016/01/aulas-de-literatura-de-vladimir-nabokov.html> Acesso em 01 de outubro de 2018. 82MEGALE, MATSUOKA, 1977, p. 54. 83 Ibid., p. 54. 84Uma das grandes abordagens da literatura é o chamado “Texto de Informação”. Geralmente atrelado ao gênero crônica, o texto de informação trata de relatos históricos sobre culturas, povos, geografia, clima e biodiversidade. O grande exemplo deste gênero em Terra Brasilis é a Carta de

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Lima Barreto figura, portanto, como autor de uma escrita fortemente militante e, por

vezes, autobiográfica. Seus relatos ficcionais registram o começo do século XX no

Brasil, época em que a nova capital - Rio de Janeiro - modernizava-se sob os

aspectos urbanísticos.85

O escritor, marginalizado pela pele e orfandade, representou em toda sua obra este

Brasil que renascia das efervescências pré-Republicanas defensoras de uma nova

ordem em que a primazia dos valores feudais seria revogada pela igualdade entre

os homens. Discurso esse que nunca representou a real faceta dos donos do poder

e líderes que encamparam o coro das ruas, becos e casebres.

A raiz da negação de direitos advém desta Primeira República e nesses reflexos é

que construíram a subcidadania e os desafios de uma sociedade que defronta com

uma afirmação constitucional-normativa positiva e programática em detrimento de

um quadro fático distinto e trágico.86

A começar por Recordações do Escrivão Isaías Caminha, primeiro romance de

Barreto que fora publicado em folhetins da Revista Floreal e, em 1919, como livro. A

obra retrata a história de Isaías Caminha: jovem pobre, mulato, nascido no interior

que, tal qual outros milhões de brasileiros, deixam a casa dos pais para viver na

capital. Os seus adjetivos eram louváveis, todavia, nada se assemelhava à carta de

recomendação redigida pelo coronel dos redutos em que vivia, a pedido de seu tio,

para que pudesse se apresentar a um deputado na capital e, consequentemente,

construir uma carreira profissional87.

Pero Vaz de Caminha, ao rei D. Manuel, escrita em 1º de maio de 1500. Nela, Caminha descreve os achados do Novo Mundo. Outros exemplos de textos de informação: i) Diário da Navegação da armada que foi à Terra do Brasil em 1500 (1530-32) - Pero Lopes de Sousa; ii) Tratado da Terra do Brasil e a HIstória da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamam Brasil (1576), Pero Magalhães Gândavo; iii) Tratado descritivo do Brasil (1587), Gabriel Soares de Sousa; Diálogos das grandezas do Brasil (1618), Ambrósio Fernandes Brandão; História do Brasil (1627), Frei Vicente do Salvador. A Carta de Caminha, por exemplo, possui linguagem fortemente poética e fluente demonstrando, assim, que Texto de Informação não restringe ao reduto da crônica. Nesse sentido, a ficção pode apresentar-se como texto de informação. Partindo deste pressuposto, é inarredável o reconhecimento das obras de Lima Barreto (que retratam friamente a modernidade tardia, o quadro da subcidadania e negação de direitos) como “Texto de Informação”. 85BOSI, 2010, p. 12. 86MOREIRA, PAULA, 2015, p. 33. 87Ibid., p. 34.

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A tônica da obra está na recomendação do coronel, demonstrando a força do

personalismo e patrimonialismo sobre a coisa pública. Isaías sabia, assim, que a sua

carreira dependia essencialmente da carta. Por isso, logo aproximou-se em suas

relações pessoais para conseguir trilhar um futuro mediante as prerrogativas

decorrentes do cargo político.88

Isaías sabia que este emprego era essencial a mudança de seu status social,

livrando-se de sua realidade penosa de ser pobre e mulato. Sabia que os privilégios

de ser doutor num país de modernidade periférica e negação de direitos

representava, enfim, a garantia de ser tratado como cidadão.89

A sua visão realista é voraz, nos seguintes dizeres narrativos de Barreto:

‘Oh, ser formado, de anel no dedo, sobrecasaca e cartola, inflado e grosso [...]; andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas estradas, pelas salas, recebendo cumprimentos: Doutor, como passou? Como está, doutor? Era sobre-humano! [...]’90-91

Todavia, os sonhos de Caminha foram frustrados diante às dificuldades de ser

jovem pobre e mulato em uma capital tomada pelo preconceito e negação dos

direitos. Sua vida, então, será marcada pela mediocridade de alguém que não

consegue transpor as barreiras da ojeriza social, movimentar-se entre as classes.

Não havia qualquer remédio republicado para tanto.92 O dissabor de Isaías é latente:

[...] Foram de imensa angústia esses meus primeiros dias no Rio de Janeiro. Eu era como uma árvore cuja raiz não encontra mais terra em que

88MOREIRA, PAULA, 2015, p. 34. 89Ibid., p. 34 90BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. 2. ed. São Paulo: Penguin Classics; Companhia das Letras, 2010. 91Oportuna é a constatação “era sobre-humano!”. Isto porque, numa sociedade de modernidade periférica, constante negação de direitos e subcidadania, o tratamento de doutor eleva o homem a um status superior à condição humana. Por exemplo: a História é farta de líderes e instituições que avocavam-se a condição de divindades. Os faraós, os reis babilônicos, o Sinédrio, a linhagem dos césares, a Santa Sé na Idade Média… O aparato estatal reveste o homem de um poder irrepreensível. Assim é que ter este contato com o Estado e gozar do título de doutor representa a sublime afirmação de direitos. Nesse sentido, é célebre a abordagem da obra pelos professores Nelson Camatta Moreira e Rodrigo Francisco de Paula: “[...] Seu objetivo era se tornar doutor e conquistar aquele reconhecimento reservado apenas para essa classe de cidadãos, pessoas superiores em si e por si mesmas. Na verdade, pensava Isaías, “era uma uma outra casta, para a qual eu entraria, e desde que penetrasse nela, seria de osso, sangue e carne diferente dos outros - tudo isso de uma qualidade transcendente, fora das leis gerais do universo e acima das fatalidades da vida comum (p. 76)”. MOREIRA, PAULA, op. cit., p. 34, nota 88. 92Ibid., p. 34.

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se apoie e donde tire vida; era como um molusco que perdeu sua concha protetora e que se vê a toda hora esmagado pela menor pressão.93

É de se considerar, sobre todos os aspectos, que a realidade brasileira de negação

de direitos e subcidadania é sempre pródiga em afirmar o preconceito de pele,

condição social, dentre outros. Assim, muito raramente algum “subcidadão”

consegue elevar-se social e civilmente sem qualquer indicação política, utilização

dos mecanismos e bens públicos na construção de sua imagem e fama.

Inelutavelmente, os drásticos indicadores sociais revelam um Brasil distante das

promessas constitucionais e demais diplomas normativos. Dentro desse contexto de

marginalização e personalismo, é de se asseverar que as evoluções políticas que

ocorreram em todos os poderes do Estado deram-se por concessão das classes de

poder.

Lima quer transmitir a realidade da Primeira República. Demonstrar que menos

importa, num país de modernidade periférica, as qualidades dos indivíduos. Estas

são esmagadas pelo preconceito e outras razões. O que efetivamente importa é a

pluralidade de títulos honoríficos e as relações intersubjetivas de quem pode reger a

máquina pública.94

Esta frustração na Primeira República é, entrementes, uma frustração hermenêutico-

constitucional. Afinal, a igualdade perante a lei, deveras afirmada no art. 72, § 2º do

texto constitucional tornou-se, tão somente, uma folha de papel.95

Ao revés do estilo personalista e patriarcalista que reveste a tônica de Isaías

Caminha, no romance Triste Fim de Policarpo Quaresma (1911) há uma abordagem

nacionalista, de profunda concatenação dos ideais modernos, republicanos, forjados

na ideia suprema de igualdade entre os homens de todas as classes.

Policarpo surge como um grande nacionalista, um exímio conhecedor de todos os

aspectos de Terra Brasilis. Alguém que possui paixão ufanista, profunda admiração

pela cultura nacional, pelo povo brasileiro, pelas armas e brasões do Brasil. Um

93BARRETO, 2010, p. 107. 94BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. 9. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003. p. 41. 95MOREIRA, PAULA, 2015, p. 35.

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major do Exército que, por tamanha simpatia com os ideários nacionalistas, ganhara

o título de “Dom Quixote Nacional”. Mas, muito além de “moinhos e cata-ventos”,

Quaresma propunha e construía projetos e reformas para o Brasil:

Para bem se compreender o motivo disso, é preciso não esquecer que o major, depois de trinta anos de meditação patriótica, de estudos e reflexões, chegava agora ao período da frutificação. A convicção que sempre tivera de ser o Brasil o primeiro país do mundo e o seu grande amor à Pátria eram agora ativos e impeliram-no a grandes cometimentos. Ele sentia dentro de si impulsos imperiosos de agir, de obrar, de concretizar suas ideias. Eram pequenos melhoramentos, simples toques, porque em si mesma (era a sua opinião), a grande Pátria do Cruzeiro só precisava de tempo para ser superior à Inglaterra.96

Há de se entender, entrementes, que Quaresma não era sujeito passivo da História

Nacional, um mero leitor dos fatos e acontecimentos. Quaresma representava os

cidadãos que procuravam construir um projeto de Nação efetivamente amplo, plural,

contextualizado às condições climáticas, sociais, políticas, econômicas, jurídicas, e

antropológicas do Brasil. Acreditava, que o Brasil possuía vocação para ser a Maior

Economia do Mundo se deixasse as efervescências internacionais e passasse a

desenvolver os potenciais da Terra.

É de se considerar também dois aspectos simbólicos já no primeiro capítulo da obra:

“A Lição de Violão”. A priori, a importância (também dada por Isaías Caminha) do

título de doutor como significado de cidadão, de alguém que possui relevo social e

merece, portanto, apreciação coletiva. O brasileiro não formado não merecia sequer,

sob caráter de pedantismo, portar livros em sua casa.97

Outra importante alegoria está na desvalorização de alguns símbolos que

representavam a arte nacional e, sobretudo, a produção das camadas mais pobres

do Brasil. O violão, quase sempre atrelado à ideia de subúrbio (que produzia as

famosas “modinhas”) significa um desprestígio aos cidadãos de classes superiores:

Não foi inútil a espionagem. Sentado no sofá, tendo ao lado o tal sujeito, empunhando o ‘pinho’ na posição de tocar, o major, atentamente, ouvia: ‘Olhe, major, assim’. E as cordas vibravam vagarosamente a nota ferida; em seguida, o mestre aduzia: ‘É ‘ré’, aprendeu?’

96BARRETO, Lima. Triste Fim de Policarpo Quaresma. 1. ed. São Paulo: Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda, 2007. p. 17. 97Ibid., p.7.

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Mas não foi preciso pôr na carta; a vizinhança concluiu logo que o major aprendia a tocar violão. Mas que coisa? Um homem tão sério metido nessas malandragens!98

Isto, por si só, já demonstra o problema da esquematização da negação de direitos e

subcidadania no Brasil. É através de elementos psicológicos que se constrói a ideia

daquilo que representa as classes, as estruturas postas, o bom e o ruim levando o

homem médio a aceitação de sua condição de “malandro”, “favelado”, “subcidadão”.

No sonho de elevar o Brasil à maior potência do mundo, Policarpo chega a

conclusão que deveria restaurar o tupi-guarani como língua oficial do país. Para ele,

a língua emprestada de Portugal não representava a verdadeira identidade nacional.

Por isso, Quaresma apresenta um requerimento ao Congresso Nacional. Tal

conjuntura gera comoção e escárnio por todos os lados. Policarpo, então, traduz, por

descuido, um ofício da repartição para a língua indígena, o que lhe custa a

suspensão e encaminhamento ao hospício. Seu “tratamento” durou seis meses.99

Deixando o hospício, Quaresma foi morar no Sossego. Em sua propriedade

particular, dedicou-se à agricultura nacional, fiel ao conhecimento sobre a fertilidade

do solo brasileiro. Todavia, não logrou êxito ante os ataques das formigas que

provou frágeis as plantações, ainda que trabalhadas com todo afinco patriótico.100

Depois, Quaresma foi convocado a retornar ao Exército para combater uma rebelião

que se instalara. Prontamente atendera ao convite101. Ao encontrar com o Marechal

Floriano, insiste em seus ideários republicanos, nos seguintes dizeres:

Vê Vossa Excelência como é fácil erguer este país. Desde que cortem todos aqueles empecilhos que eu apontei, no memorial que Vossa Excelência teve a bondade de ler; desde que se corrijam os erros de uma legislação defeituosa e inadaptável às condiçõe do país, de tributários, ficaremos com a nossa independência feita Se Vossa Excelência quisesse [...]102

Nota-se que Quaresma procura mediante a representação política eco para as

reformas estruturais que poderiam tornar o Brasil uma grande pátria. E ser grande

98BARRETO, 2007, p. 7. 99MOREIRA, PAULA, 2015, p. 36. 100Ibid., p. 36. 101Ibid., p. 36. 102BARRETO, op. cit., p. 122, nota 98.

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pátria significava construir uma nação em que as classes não estivessem em luta

constante (no sentido marxista da expressão) mas conscientes de que a

concretização da modernidade dar-se-ia mediante a inclusão dos que sempre

estiveram exilados nas noites desgraçadas do Brasil. Interessante observar que,

enquanto Quaresma inflava seu discurso patriótico, Floriano mostrava desdém e

pouca atenção. A passagem, por ser alusiva ao sistema representativo nacional,

merece transcrição:

[...] Mas pensa você, Quaresma, que eu hei de pôr a enxada na mão de cada um desses vadios?! Não havia exército que chegasse… Quaresma espantou-se, titubeou, mas retorquiu: Mas não é isso, marechal. Vossa Excelência como o seu prestígio e poder, está capaz de favorecer, com medidas enérgicas e adequadas, o aparecimento de iniciativas, de encaminhar o trabalho, de favorecê-lo e torná-lo remunerador… Bastava, por exemplo… Atravessavam o portão da velha quinta de Pedro I. O luar continuava lindo, plástico e opalescente. Um grande edifício inacabado que havia na rua parecia terminado, com vidraças e portas feitas com a luz da lua. Era um palácio de sonho. Floriano já ouvia Quaresma muito aborrecido. O bonde chegou; ele se despediu do major, dizendo com aquela sua placidez de voz: Você, Quaresma, é um visionário… O bonde partiu. A lua povoava os espaços, dava fisionomia às coisas, fazia nascer sonhos em nossa alma, enchia a vida, enfim, com a sua luz emprestada [...]103

A conjuntura é alarmante pois evidencia, a todo instante, que as poucas mudanças

estruturais no que tange aos direitos dos cidadãos refletiram uma mera concessão

dos “donos do poder”. Não havia, entrementes, a real participação popular na

construção de uma República. Ao revés, assentava-se uma mera mudança dos

paradigmas de dominação social em que os senhores feudais de casas-grandes e

sobrados eram trocados por militares e coronéis.

Vê-se, doutro modo, que tudo não passou de um sonho, de uma luz emprestada, de

uma espera inglória, de uma simples “folha de papel”. Vê-se que a população não

conseguia exprimir seus anseios na República que nunca ocorreu.104

103BARRETO, 2007, p. 123. 104Interessante notar as palavras imorredouras de Rui Barbosa, preocupado desde já com a construção da República e a possível falência institucional. Barbosa tenta, a todo instante, encorajar o

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Pouco após o diálogo, Policarpo teve de aceitar ofício de carcereiro. A rebelião

chegava ao fim e o saldo das práticas do governo eram tenebrosas e sanguinárias

no sentido de sufocar o levante. Policarpo, então, escreve uma carta para narrar sua

tristeza com a conjuntura e, dada a veemência do texto subversivo, é levado à

prisão. Lima Barreto então, demonstra o quão triste (e aí concatena a trama ao título

da obra) foi o fim de Policarpo: preso e desiludido e aponta, então todas as

desilusões da personagem principal.105

A decepção de Quaresma é a grande denúncia de Lima que demonstra a

modernidade periférica em Terra Brasilis e, sobretudo, o fracasso da Primeira

República. Quaresma era um visionário que representava as ideias sociais e

políticas que foram abafadas pelos vitoriosos republicanos. Tanto Quaresma quanto

Isaías (sob abordagens e enfoques diferentes) foram fracassados e subcidadãos.

Tais fracassos ilustram que as promessas fundantes da República Velha foram

natimortas e, portanto, incapazes de transformar, republicanamente, a sociedade do

século XX.106

Os professores NELSON CAMATTA MOREIRA e RODRIGO FRANCISCO de

PAULA, lecionando as doutas considerações de Paul Ricoeur clarificam a proposta

de unificar Literatura ao Direito ao expressar que a tarefa da hermenêutica está em

reconstruir as operações fáticas pelas quais uma obra se destaca e demonstra o agir

e o sofrer, porque assim e muito assim, o leitor considera, constrói e muda o seu

agir.107

povo à luta: “[...] Saia a opinião pública de dentro de si mesma: declare-se, levante-se, e vença. Onde quer que apareça, reinará, como divindade esperada que se revela. A democracia, o governo do povo pelo povo, não é outra coisa: o império da opinião, cercada e servida pelos órgãos da sua soberania. E, onde a opinião pública entrar, espancaram-se as trevas, raiou a luz meridiana, sumiram-se vampiros e reptis, entrou a grande higiene, a competência, a virtude, a moralidade assumem o poder. Marchemos para aí, pois, senhores. Para aí, em direitura. Para aí, a passo ousado. Para aí, firmes, resolutos, certeiros. Para aí, erguendo o nosso grito de paz ou de luta. Com Deus, na Constituição e pela Pátria. Toda a minha alma está nestas palavras. Obrigado, meus concidadãos, e avante! Viva a nação brasileira!” BARBOSA., 2013, p.182. 105MOREIRA, PAULA, 2015, p. 37. 106Ibid., p. 37. 107Ibid., p. 37.

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Ponderam que é possível redesenhar uma relação entre teoria narrativa e teoria da

ação, mediante uma pressuposição e transformação, uma vez que, a narrativa

pressupõe uma familiaridade do auditório com a produção do narrador, não se

limitando, todavia, a isso, porque traz consigo outros elementos dos discursos, que

compõem ordem sintagmática à história narrada.108

A abordagem da obra de Lima Barreto é pertinente por estas razões. Por desvelar

um Brasil marginal e longe do processo de modernização das estruturas de poder,

da construção normativa e produção hermenêutica. Desvela os milhares de

brasileiros que nunca tiveram voz, nem eco na República Velha e em momento

algum da vivência nacional.

2.3 O MAPA DA SUBCIDADANIA CONTEMPORÂNEA NO BRASIL

O mapa da subcidadania contemporânea no Brasil é fruto da constante

esquematização teórica e prática da desigualdade. É, deste modo, um ser no mundo

fatalmente posto às conjunturas da vida que justificam as assimetrias nas estruturas

de poder.

Evidentemente, muitas conjunturas e mudanças de perspectivas estatais conforme

ideologias e programas de suas épocas geraram grandes mudanças na postura do

Estado. Mas, o que se vê em todo momento na República do Brasil foi uma postura

intervencionista mais propícia às desigualdades, parcela dos mínimos direitos

sociais não sendo cumprida e o Projeto Constitucional de 1988 ineficaz ante uma

“baixa constitucionalidade” (conforme douta lição de Streck) e, sobremaneira, as

impossibilidades de acesso à Justiça pelo povo brasileiro.109110

108MOREIRA, PAULA, 2015, p. 38. 109Ibid., p. 48. 110A título de exemplo, para demonstrar a frustração dos projetos constitucionais brasileiros, vale mencionar as palavras de Ulysses Guimarães, quando da promulgação da Constituição de 1988: “[...] Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora, será luz ainda que de lamparina na noite dos desgraçados. É caminhando que se abrem os caminhos. Ela vai caminhar e abri-los. Será redentor o caminho que penetrar nos bolsões sujos, escuros e ignorados da miséria. A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou o antagonismo do Estado [...]”. Nota-se, assim, que as efervescências da época tornaram-se meras palavras de encorajamento caídas ao solo. Na realidade das taperas, das noites cálidas do sertão, a vida Severina (pra lembrar João Cabral de Melo Neto) continuara em constante negação de direitos, subcidadania. Disponível em: <

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É possível estabelecer estreita conexão entre o intervencionismo estatal tendencioso

aos “donos do poder” com a negação de direitos e consequente subcidadania. Isto

porque, num país de modernidade periférica, as estruturas de poder (aparentemente

republicanas) serviram-se a garantir privilégios e status quo. Analisando a história do

intervencionismo estatal em Terra Brasilis é a dicção de OCTÁVIO IANNI:

Desde o declínio do regime de trabalho escravo, ela passou a ser um ingrediente cotidiano em diferentes lugares da sociedade nacional. A despeito das lutas sociais que envolve, e das medidas que se adotam em diversas ocasiões, para fazer face a ela, continua a desafiar os distintos setores da sociedade. Ao longo das várias repúblicas formadas desde a Abolição da Escravatura e o fim da Monarquia, a questão passou a ser um elemento essencial das formas e movimentos da sociedade nacional. As várias modalidades de poder estatal, compreendendo o autoritarismo e a democracia, defrontam-se com ela. Está presente nas rupturas políticas ocorridas em 22, 30, 37, 45 e 64, para mencionar algumas. Dentre os impasses com os quais se defronta a Nova República iniciada em 1985 destaca-se também a relevância da questão social. As controvérsias sobre o pacto social, a toma de terras, a reforma agrária, as migrações internas, o problema indígena, o movimento negro, a liberdade sindical, o protesto popular, o saque ou a expropriação, a ocupação de habitações, a legalidade ou a ilegalidade dos movimentos sociais, as revoltas populares e outros temas da realidade nacional, essas controvérsias sempre suscitam aspectos mais ou menos urgentes da questão.111-112

De fato, em maior ou menor intensidade, todos os grandes eventos da vida nacional

sofreram forte intervencionismo tendencioso do Estado. O que houve, efetivamente,

foi a construção de um modelo de dominação social ou de redesenhamento das

esferas pessoais em prol das classes dominantes, mediante o aparelho estatal.

http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/camara-e-historia/339277--integra-do-discurso-presidente-da-assembleia-nacional-constituinte,--dr.-ulisses-guimaraes-%2810-23%29.html> Acesso em: 09 out. 2018. 111IANNI, OCTÁVIO. Pensamento social no Brasil. Bauru, SP: Edusc, 2004. p. 103-104. 112Exemplo deste intervencionismo tendencioso que ocorrera no Brasil do século XX, pode-se citar a “Guerra do Contestado”. Em “Cotaxé” (Editora Chiado, 2015), o escritor e pesquisador Adilson Vilaça resgata a História do Efêmero Estado União de Jeovah. Num contexto bélico em que os Estados do Espírito Santo, Minas Gerais e Bahia disputavam as possessões do Norte (além Rio Doce até as divisas com o Sul da Bahia), Udelino Alves de Matos proclama o famigerado Estado de Jeovah. A capital deste último Eldorado do Brasil seria Cotaxé, distrito de Ecoporanga-ES. De fato, por alguns meses, Udelino tivera o poder e mando de governador numa terra múltipla habitada por cotochés, aimorés e os valentes botocudos, mineiros, baianos, capixabas. Todavia, as tropas dos três estados uniram-se, então, para acabar com o movimento. O resultado sanguinário ficara evidenciado no Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito, da Assembleia Legislativa do Espírito Santo (1953). De fato, há que se considerar que forças maiores derrubaram um movimento legítimo, assassinando (embora Vilaça não diga expressamente em sua obra) o líder messiânico Udelino. Terminou com muito alarido, dor e rendimento a “Canudos Mirim” e, desde então, o norte do Espírito Santo persiste com várias assimetrias e parcelas de personalismo e patriarcalismo dos tradicionais currais eleitorais de interior. Há também interessante documentário a respeito do tema: <https://www.youtube.com/watch?v=DDmBAiMi2Ac>. A título de curiosidade e importância da obra que redesenhou a história do Espírito Santo e do Brasil, Adilson Vilaça fora eleito em 2018 membro da Academia Espírito-Santense de Letras, sucedendo Ivan Borgo na cadeira nº13.

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Vê-se, portanto, que o projeto de construção da nação sob o poder de um Estado

soberano foi marcado no Brasil, pela brutal apropriação de todo espaço público

pelos interesses privados mediante a constante e intensa “esquematização” da

desigualdade, seja sob o prisma jurídico, político ou social.113

É de se notar, por exemplo que, a atuação do Estado Intervencionista Brasileiro

alcançou seu apogeu nos anos de 1930, sob o ideia de “bem comum republicano”.

Apesar das grandes reformas estruturais e de certos avanços em algumas classes

de direitos, a década marcou-se, sobremodo, pelo forte autoritarismo getulista que

reduziu sobremaneira as liberdades, havendo pouco espaço para a cidadania e

participação popular na construção política nacional. Esta conjuntura, ao invés de

transformar a sociedade, reproduziu e contribuiu para a negação de direitos e

abismo social.114

Nota-se, portanto, que mesmo diante aos “booms” econômicos que constaram na

História do Brasil, nunca houve, efetivamente, distribuição de renda, diminuição dos

níveis de desigualdade, uma política efetiva de transformação social.115

Analisando o Brasil da redemocratização sob o prisma econômico e da

desigualdade, IANNI arremata:

A distribuição permaneceu marcadamente desigual. Das pessoas que recebiam renda, os 40% mais pobres detinham 9, 7% da renda total, enquanto os 10% mais ricos detinham 47, 9% - esse é o problema da pobreza no Brasil. Mesmo após 45 anos de progresso e desenvolvimento acelerado, cerca de 50 milhões de brasileiros sofrem as dificuldades agudas da fome, desnutrição, falta de habitação condigna e de mínimas condições de saúde.116

O cenário de abismo social se agravou no final do século 20 e nesta quadra de

século 21, embora tenha havido mudança nos indicadores que apontam diminuição

da diferença. Todavia, o precipício ainda é tão profundo que, apesar das políticas

implantadas persiste o quadro de subcidadania, de negação de direitos. Porque,

113MOREIRA, PAULA, 2015, p.50. 114Ibid., p. 52. 115Ibid., p. 52. 116IANNI, 2004, p. 105.

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efetivamente, numa sociedade de modernidade periférica, mais que alimentação e

moradia, é preciso elevar o homem à condição de cidadão de uma república

igualitária.117

Há, entrementes, uma luta hermenêutica a ser travada para garantir a concretização

dos objetivos da República expressos no art. 3º da Constituição Federal, visando a

promoção da dignidade da pessoa humana.

É possível ainda considerar alguns indicadores recentes e alarmantes.

Segundo o relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas

para o Desenvolvimento (Pnud), dentre 140 países do mundo, o brasil é o 10º mais

desigual.118 162 milhões de Brasileiros vivem ainda com uma renda per capita

inferior a dois salários mínimos mensais, enquanto o 1% mais rico do país vive com

renda superior a 40 mil reais mensais.119

Demonstrando ainda a realidade tenebrosa de diferença em razão da etnia, vê-se

que somente em 2089 haverá equiparação salarial entre brancos e negros:

Considerando todas as rendas, brancos ganhavam, em média, o dobro do que ganhavam negros, em 2015: R$ 1.589,00 em comparação com R$ 898,00 por mês. Em vinte anos, os rendimentos dos negros passaram de 45% do valor dos rendimentos dos brancos para apenas 57%. Se mantido o ritmo de inclusão de negros observado nesse período, a equiparação da renda média com a dos brancos ocorrerá somente em 2089.120

O quadro de diferenças entre homens e mulheres também demonstra o quão é

preciso avançar na erradicação das desigualdades:

A renda média do homem brasileiro era de R$ 1.508,00 em 2015, enquanto a das mulheres era de R$ 938,00. Mantida a tendência dos últimos 20 anos, as mulheres terão equiparação salarial somente em 2047.121

117MOREIRA, PAULA, 2015, p. 54. 118MAPA da desigualdade 2017. Disponível em: <https://www.nossasaopaulo.org.br/portal/arquivos/mapa-da-desigualdade-2017.pdf>. Acesso em: 10 out. 2018. 119Ibid., 120Ibid., 121MAPA da desigualdade 2017. Disponível em: <https://www.nossasaopaulo.org.br/portal/arquivos/mapa-da-desigualdade-2017.pdf>. Acesso em: 10 out. 2018.

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Enfim, há muito que se modificar para a concretização da dignidade da pessoa

humana e também mudança no paradigma da igualdade jurídica. Mas, sob qualquer

ótica é necessário ainda uma mudança radical no abismo social que coloca milhões

de brasileiros nos quadros da subcidadania e negação de direitos. Há ainda uma

República a se construir.

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3 HERMENÊUTICA EM CRISE

A Hermenêutica está em crise122. A presente afirmativa funda-se nas incertezas

ontológicas e deontológicas que sofre o fenômeno da prestação jurisdicional, a

vagueza do que é norma e a dualidade permanente entre o positivismo exegético e

o neoconstitucionalismo, ambos, na linguagem contemporânea, ineficazes para a

promoção dos direitos fundamentais.

Tal constatação é caríssima ao presente trabalho. Porque, no giro linguístico dos

parâmetros normativos desta primeira quadra de século, indubitavelmente, deve-se

reconhecer que a Hermenêutica Jurídica é o sustentáculo para a construção (e

perceba que a palavra é construção) de um ordenamento jurídico capaz de efetivar

as promessas constitucionais dos direitos fundamentais e, consequentemente,

encerrar o problema da “esquematização” da desigualdade que leva milhões de

brasileiros aos quadros tenebrosos de subcidadania, negação de direitos e vexame

social.

O professor LENIO LUIZ STRECK demonstra mediante a lucidez de Humboldt,

Hamann, Herder e Gadamer a relevância da linguagem e suas mudanças de

perspectivas para a compreensão de uma Hermenêutica capaz de romper com

velhos paradigmas.123-124

122A propósito do tema que ora será analisado no presente trabalho, é de se ressaltar a importância da obra “Hermenêutica Jurídica e(m) Crise” do douto Lênio Luiz Streck para a compressão dos problemas enfrentados no direito real, que se aplica, que incide e modifica substancialmente o mundo fático. Streck com sua peculiar ciência propõe a necessidade de uma adaptação hermenêutica ao Estado que, outrora liberal pós-revoluções e guerras pretende assegurar sua natureza social. Para tanto, defende veemente o fim da errônea jurisprudência dos valores por ser tão impreciso, mais pretensamente construção ideológico-social-política-filosófica do jurista que do Direito e as incertezas do neoconstitucionalismo como fruto desse esvaziamento do próprio Direito. 123STRECK, 2014, p. 214-216. 124Exemplo da linguagem que constrói e reconstrói o Direito como produto antropológico e, portanto, reflexo do homem em sociedade; de linguagem que humaniza e opera a norma ao plano fático sendo pioneira por desbravar as penúrias do passado e projetar a ciência jurídica ao futuro, ao papel de pioneira e protagonista no rompimento das lamúrias de subcidadania e negação de direito, eis trecho de célebre decisão proferida pelo Juiz de Direito João Baptista Herkenhoff, no famoso caso Edna, em que por uma bagatela, uma gestante penava (desproporcionalmente) na cadeia: “A acusada é multiplicadamente marginalizada: por ser mulher, numa sociedade machista; por ser pobre, cujo latifúndio são os sete palmos de terra dos versos imortais do poeta; por ser prostituta, desconsiderada pelos homens, mas amada por um Nazareno que certa vez passou por este mundo; por não ter saúde; por estar grávida, santificada pelo feto que tem dentro de si, mulher diante da qual este Juiz deveria se ajoelhar, numa homenagem à maternidade, porém que, na nossa estrutura social, em vez de estar recebendo cuidados pré-natais, espera pelo filho na cadeia. É uma dupla

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Para Gadamer, a linguagem surge como experiência de mundo. Segundo o filósofo,

é de se reconhecer através da tinta de Humboldt que a linguagem traça uma

acepção de mundo, uma realização viva de falar, é dizer, na energia linguística.

Neste ponto rompe-se com os gramáticos tradicionais que traça as origens da

linguagem pelas concepções teológicas. A linguagem para Gadamer é humana

desde o começo e isto cria uma base para a antropologia de largo alcance.125 Eis

que não se trata de mero instrumento do homem que está no mundo mas, o próprio

estar no mundo decorre da constituição linguística.126

Portanto, a linguagem representa, em primeira instância, ter mundo. E ter mundo

significa relacionar-se com o mundo. Desta forma é que se reconhece que a origem

do mundo para o homem dá-se desde a linguisticidade originária, uma construção

antropológica.127 128

STRECK permeia por todo este labirinto a concatenar os estudos de linguagem e de

filosofia por reconhecer que a abordagem hermenêutica que permitirá a superação

da inoperabilidade dos direitos travessa, inexoravelmente, por uma mudança de

perspectiva linguística. Não há, assim, como dispensar ao hermeneuta deste século

da tarefa de construir, mediante tais paradigmas, o caminho do abstrato ao concreto

sem a superação de tais óbices.

liberdade a que concedo neste despacho: liberdade para Edna e liberdade para o filho de Edna que, se do ventre da mãe puder ouvir o som da palavra humana, sinta o calor e o amor da palavra que lhe dirijo, para que venha a este mundo tão injusto com forças para lutar, sofrer e sobreviver. Quando tanta gente foge da maternidade; quando milhares de brasileiras, mesmo jovens e sem discernimento, são esterilizadas; quando se deve afirmar ao Mundo que os seres têm direito à vida, que é preciso distribuir melhor os bens da Terra e não reduzir os comensais; quando, por motivo de conforto ou até mesmo por motivos fúteis, mulheres se privam de gerar, Edna engrandece hoje este Fórum, com o feto que traz dentro de si. Este Juiz renegaria todo o seu credo, rasgaria todos os seus princípios, trairia a memória de sua Mãe, se permitisse sair Edna deste Fórum sob prisão. Saia livre, saia abençoada por Deus, saia com seu filho, traga seu filho à luz, que cada choro de uma criança que nasce é a esperança de um mundo novo, mais fraterno, mais puro, algum dia cristão." 125 Ibid., 2014, p. 215. 126 Ibid., 2014, p. 215. 127 STRECK., 2014, p. 216. 128 A filósofa Viviane Mosé, no Programa “Café Filosófico CPFL” profere interessante palestra: “O que pode a palavra?”. Em trecho importantíssimo, destaca que a raça humana chega ao estágio de homo sapiens quando o homem descobre um saber: a morte. Tal conjuntura leva-o a uma crise existencial profunda e quase insustentável. É nesse contexto que surgem as artes, as filosofias e as religiões. Para dar ao homem uma resposta significativa, porém transcendental, a respeito deste novo saber. Todos esses desvãos e questionamentos surgem e são enfrentados mediante a linguagem. Ir “à terceira margem do rio” (na pena inconfundível de Guimarães Rosa) passa pela constatação de que o homem só existe e se completa mediante a linguagem. Por isso, a importância de enfrentamento hermenêutico de todos os paradigmas. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=YuQ8sXoTCbQ>. Acesso em: 16 de outubro de 2018.

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Nesse contexto, é importante debruçar-se sobre teorias que surgiram na história do

Direito.

O positivismo objetivava separar definitivamente o direito da moral, estabelecer

bases seguras para a prestação jurisdicional e a cientificidade do Direito. Para tanto,

procurava um fechamento semântico do Direito, a extinção da discricionariedade do

jurista e, sobretudo, delimitar as condições lógicas-deônticas de validade das

normas jurídicas.129

STRECK assim descreve a evolução do positivismo jurídico130:

Mais pacientemente: positivismo exegético (que era a forma do positivismo primitivo) separava direito e moral, além de confundir texto e norma, lei e direito, ou seja, tratava-se da velha crença - ainda muito presente no imaginário dos juristas - em torno da proibição de interpretar, corolário da vetusta separação entre fato e direito, algo que nos remete ao período pós-revolução francesa e todas as consequências políticas que dali se seguiram. Depois veio o positivismo normativista, seguido das mais variadas formas e fórmulas que - identificando (arbitrariamente) a impossibilidade de um “fechamento semântico’ do direito - relegou o problema da interpretação jurídica a uma ‘questão menor’ (lembremos, aqui, de Kelsen). Atente-se: nessa nova formulação do positivismo, o problema do direito não está(va) no modo como os juízes decidem, mas, simplesmente, nas condições lógicodeônticas de validade das ‘normas jurídicas’.131

STRECK, todavia, chama atenção ao fato de que “o pamprincipiologismo”132, ao

invés de modificar as perspectivas do positivismo, se adequa à finalística desta

corrente uma vez que, prestigia a irracionalidade, homenageando o positivismo

discricionarista de Herbert Hart”.133 Arremata o notório autor:

129STRECK, 2014. p. 50. 130O positivismo jurídico foi uma escola do pensamento jusfilosófico no final do século XIX que propôs uma nova forma de conceber a norma jurídica e a sua interpretação. Preocupado com o exegetismo das escolas pretéritas e, sobretudo, da não-cientificidade do Direito (sempre atrelado à moral), defendeu a ideia de um Direito Puro (tendo como principal representante o Hans Kelsen) liberto das amarras de outras ciências e elementos sociais. Valorizava, sobretudo, a literatura normativa e o ofício silogístico como praxe do Poder Judiciário. 131STRECK, op. cit., p. 50, nota 129. 132O douto professor, utiliza-se desta nomenclatura para designar a criação desenfreada de princípios jurídicos que, bem verdade, são mais expressões da humanidade e outros valores do jurista que expressão da ordem jurídica. O pamprincipiologismo, certamente fere de morte o fazer jurídico e, sobretudo a ciência jurídica uma vez que, fixa mandamentos basilares a todo um setor do Direito ou até mesmo a todo o direito sem qualquer escoro no sentido jurídico da sociedade. 133 STRECK, op. cit., p. 50, nota 129.

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Dito de outro modo, o que sempre caracterizou o positivismo é o fato de que a postura metodológica por intermédio da qual se analisa o fenômeno jurídico é marcada pela restrição à análise das fontes sociais, a cisão / separação - epistemológica - entre direito e moral ( o que faz com que alguns autores - p. ex., Robert Alexy - lancem mão da razão prática, eivada de solipsismo, para ‘corrigir’ o direito) e a ausência de uma teoria da interpretação, que acarreta uma aposta na discricionariedade (ou seja, não se conseguiu superar a herança - ou maldição - kelseniana da cisão entre ciência do direito e direito ou entre observador e participante, no caso hartiano). [...] O elemento interpretativo que caracteriza mais propriamente a experiência jurídica pode, e deve, ser aglomerado fenomenologicamente. É possível oferecer limites ou anteparos à atividade interpretativa, na medida em que o direito não é concebido a partir de um reducionismo fático. Isso é uma questão de controle democrático das decisões.134

O pós-positivismo (pensamento jurídico que objetiva superdimensionar o fazer

jurídico ao romper com a noção do direito puro e alargar o campo de

discricionariedade do Estado-Juiz quando do labor hermenêutico) e o

neoconstitucionalismo (movimento que objetivava a hegemonia da constituição, a

abertura hermenêutica dos intérpretes da constituição e a inserção no bojo

constitucional de direitos fundamentais), ao contrário do que parece, agrava o

problema da incerteza metodológica do positivismo quando, além de forjar a

compreensão da norma numa fenomenologia adequada do Direito, constrói suas

bases em uma vagueza axiológica oriunda do senso comum teórico dos juristas e da

jurisprudência de valores.135 Embora venha com o intuito de romper com o

positivismo familiariza-se e agrava a crise da Hermenêutica.136

É de se afirmar que o neoconstitucionalismo representou, sobre vários aspectos, um

avanço para um mundo destruído, sobretudo, pelas Duas Grandes Guerras. Weimar

representa, em primeira instância, a superação de um modelo que fora essencial e

basilar aos regimes nazifacistas e também comunistas que dizimaram milhões de

pessoas em todo mundo justificados no apego normativo em que nada escapava à

força silogística de um sistema fechado e propício ao totalitarismo. Todavia, o

grande surto desse novo sistema e forma de se organizar o Direito está em permitir

uma vagueza axiológica nas mãos de juristas pouco comprometidos

134STRECK, 2014. p. 50 135Juristas contemporâneos (dentre eles, Lenio Luiz Streck) preferem designar “Constitucionalismo Contemporâneo” o fenômeno que, alicerçado em notórias premissas da força normativa da constituição e abertura da sociedade de intérprete, além da inserção no bojo constitucional dos direitos fundamentais, procuram não esvaziar a própria ordem jurídica como consequência da jurisprudência dos valores e o senso comum teórico dos juristas. 136STRECK, op. cit., p. 81, nota 134.

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verdadeiramente com a pirâmide dos direitos e com o “dado normativo”, mas

entretidos com suas convicções pessoais capazes de levar a lei à fossa abissal.

“Alguns juristas compreenderam mal o sentido do novo Constitucionalismo”.137 O

Estado Social, apesar de fortemente alicerçado em novos paradigmas e desafios,

não pode perder o sentido axiológico do próprio Direito em detrimento do

pensamento valorativo dos juristas. Seria sepultar a ordem democrática constituída

através da soberania popular expressa pela população no ofício legiferante e

derrogar os ditames fenomenológicos da própria ciência jurídica.

STRECK elucida a deficiência do neoconstitucionalismo na seguinte lição:

[...] Explicando melhor: por não terem compreendido o problema da diferença entre o velho positivismo exegético (sintático) e o positivismo normativista (semântico), pensaram que o ‘neoconstitucionalismo’ seria a forma de superar o exegetismo. E, para isso, apelaram para a busca de valores que estariam ‘escondidos’ por debaixo dos textos legais. Com isso, não foram além de Kelsen. E esse é o ponto fulcral do problema. Talvez por isso o neoconstitucionalismo seja subdividido em metodológico, ideológico e normativo. Ora, pensar assim é apenas colocar o neoconstitucionalismo como uma continuidade do velho positivismo, e não como autêntica ruptura. Esse problema também se repetiu na equivocada compreensão do sentido dos princípios, conceituados como ‘positivação’ de valores” ou a ‘sofisticação’ dos velhos princípios gerais do direito, que, como se sabe, não passavam de axiomas.138

Seja o positivismo jurídico clássico, seja o “neoconstitucionalismo positivista”

mergulham os direitos fundamentais em profunda ineficácia. Aquele por

impossibilitar a compreensão do fenômeno jurídico como um todo organizado dentro

de uma estrutura cada vez mais aberta, plural; este, por transmutar a densidade

valorativa presente no próprio Direito pelos valores próprios dos juristas, valores

correlacionados às ideologias, posicionamentos políticos, sociais, enfim, conforme

suas abstrações de mundo, longe da fenomenologia do Direito.139

O resultado é a ineficiência do compromisso constitucional no que se refere aos

direitos fundamentais140. Sendo assim, a modernidade persiste tardia, anacrônica,

137Ibid., p. 81. 138STRECK., 2014. p. 81. 139Ibid., p. 85. 140A Constituição da República Federativa do Brasil sela o fim de uma era ditatorial em que os direitos políticos e civis foram completamente relaxados por decretos-leis, atos institucionais, resoluções, perseguições políticas, exílios e matança. A redemocratização depara-se com um Brasil de milhões

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de profunda subcidadania. Interpretar o espírito das leis, fazer o justo direito, a

Constituição prevalecer e ter eficácia não é tarefa fácil.

A realidade aponta para uma Hermenêutica que está, verdadeiramente, em crise.141

Apesar das graves condições, o Direito instrumentalizado por um discurso

dogmático surge ao operador do Direito como técnico e justo (às vezes, os sentidos

de tecnicismo e justiça amplamente confundidos). Isto gera um universo de um texto

que sabe tudo, que é capaz de sondar e responder a todas as perguntas, dando

pontualmente todas as respostas.142

STRECK chama atenção ao fato de que “ou se acaba com a estandardização do

direito, ou ela acaba com o que resta da ciência jurídica”143. O autor percebe que a

crise da Hermenêutica só se resolve com: a) construção de um modelo de ensino

que “supere” a leitura de leis e códigos comentados144; b) a doutrina procure sua

autonomia e liberdade de discernimento, uma vez que “está dominada por

produções que buscam nos repositórios jurisprudenciais, ementas que descrevem,

de famintos, altos índices de analfabetismo, natalidade, criminalidade e, sobretudo, subcidadania. O Constituinte percebe e é prolixo em arrolar uma série de normas programáticas, direitos fundamentais, princípios inerentes à condição humana (numa concepção aristotélico-tomista) e as discriminações numa concepção de igualdade substancial para impulsionar a diminuição da pobreza-extrema, da marginalização e subcidadania. Entretanto, apesar dos louváveis feitos da Assembleia, a fragilidade hermenêutica, o esbulho dos poderes (principalmente do Judiciário) e as imprecisões de um neoconstitucionalismo no Estado Social (e deve ser social num país da modernidade tardia) tornaram os direitos fundamentais meros corolários ideológicos, pouco eficazes. 141 O que aí está é um sistema jurídico esquizofrênico. O que aí está é um sistema que não mais se sustenta ante a crise institucional que oxida a República, que detém os compromissos constitucionais, que transmuta a vontade da lei para a vontade do homem. É nesse contexto que os principais constitucionalistas brasileiros do presente século debruçam suas produções científicas a estudar, por exemplo, o ativismo judicial. Se é certo que numa República Democrática o Judiciário é a Função de Estado que zela pelos direitos fundamentais e pela própria Carta Magna, por outro, em nenhum panorama democrático é de aceitar um colégio de togas que usurpa as funções legiferantes e administrativas. Quando isso ocorre, duela-se a lei e a política, as vontades, os desígnios sombrios e autônomos. Isso levou, por exemplo, em 2016, o Presidente do Senado Renan Calheiros a recusar cumprir ordem judicial expedida liminarmente pelo Ministro do STF Marco Aurélio que determinava a sua saída imediata das funções de presidente da Casa Legiferante. Renan sequer atendeu ao Oficial de Justiça. Nesse ato, posteriormente ratificado pelo próprio Pretório Excelso para amenizar a crise institucional, o que se ouviu foi um político gritar para os anais da História ser ele o homem mais poderoso de uma República em ruínas. Disponível em:< https://oglobo.globo.com/brasil/presidente-do-stf-critica-recusa-de-renan-de-cumprir-ordem-judicial-20607190>. Acesso em: 17 de outubro de 2018. Problematiza-se: qual seria a resposta do Judiciário caso um cidadão comum descumprisse ordem de tamanha envergadura? 142STRECK, 2014. p. 110. 143Ibid., p. 110. 144Ibid., p. 110.

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de forma muito breve, o conceito do texto enquanto enunciado linguístico”145; c) fim

da “proliferação da cultura estandardizada (ementários e comentários simplificados)

que vem acompanhada por um fenômeno que pode ser denominado de

neopentecostalismo jurídico” cuja função é “vender” facilidades aos estudantes e aos

profissionais que pretendem passar em concursos públicos”146; d) corrigir o desvio

das temáticas monográficas nos cursos de especializações147; e) elaboração de um

novo modelo de provas de concursos públicos, que seja contemporâneo e

progressista, longe da fórmula Caio e Tício148; f) um modelo de decisão judicial que

não possua apenas a fundamentação restrita à citação da lei, súmula ou verbete

mas que justifique as decisões, conforme os direitos fundamentais e sociais, além do

espírito do Estado Democrático de Direito149; g) “as decisões devem estar

justificadas, e tal justificação deve ser feita a partir da invocação de razões e

oferecendo argumentos de caráter jurídico”150.151

É necessário superar a visão míope que constrói a postura de um Direito que tem

como veredas hipóteses, categorias e enunciados assertóricos-performativos.152

Nessa quadra de século, o maior desafio do Constitucionalismo Contemporâneo

está em construir a eficácia dos direitos fundamentais, alinhando-os ao espírito do

Estado Social que procura combater a subcidadania latente na sociedade

brasileira.153 Nos dizeres de INGO WOLFGANG SARLET:

[...] Para encerrar este segmento, cremos ser possível afirmar que os direitos fundamentais - de modo particular os sociais - não constituem mero capricho, privilégio ou liberalidade, engendrados que foram (no caso dos direitos sociais a prestações) no contexto de um constitucionalismo dirigente fracassado”, mas sim, premente necessidade, já que a sua desconsideração e ausência de implementação fere de morte os mais

145STRECK, 2014. p. 110. 146Ibid., p. 111. 147Ibid., p. 111. 148Ibid., p. 112. 149Ibid., p. 112. 150Ibid., p. 112. 151Todos estes pontos serão enfrentados posteriormente no presente trabalho. 152STRECK, op. cit., p. 113, nota 145. 153Não há mais que se falar neoconstitucionalismo quando, o pensamento eivou-se dos valores contingentes dos juristas, de um sincretismo filosófico suspeito e do fazer hermenêutico longe do próprio Direito.

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elementares valores da vida e da dignidade da pessoa humana, em todas as suas manifestações [...]154

Nesse contexto é que se assevera, portanto, a necessidade de uma postura

hermenêutica em que as bases para uma construção normativa reconheçam a

importância de um giro de linguagem, atentando-se para a ciência de que o “dado

normativo” é construção dentro de uma perspectiva e parâmetros sólidos, que o

silogismo não é onisciente e que a efetivação das leis depende de um contato direto

com o mundo empírico. Juristas fechados em escritórios e gabinetes, formados por

manuais de esquematização e intransigentes em suas paixões e convicções

pessoais não acompanham os fatos sociais, muito menos possuem protagonismo na

concretização do Projeto Constitucional de 1988.155156

154SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015. p. 382 155Exemplo latente desta afirmativa é dado por Lenio Luiz Streck na senda de José Eduardo Faria ao perceber a forma do modelo liberal-individualista na aplicação do Direito. Streck aborda aprioristicamente que o modelo jurídico brasileiro é essencialmente forjado para resolver direitos transindividuais mas e não os interesses coletivos presentes, por exemplo, nas normas de direito ambiental (deveras inefetivo nesta República tardia). O autor põe em voga, por exemplo, as fragilidades da magistratura nacional, nos seguintes dizeres: “A magistratura é treinada para lidar com as diferentes formas de ação, mas não consegue ter um entendimento preciso das estruturas socioeconômicas onde elas são travadas. Já o formalismo decorre do apego a um conjunto de ritos e procedimentos burocratizados e impessoais, justificados em norma da certeza jurídica e da ‘segurança do processo’. Não preparada técnica e doutrinariamente para compreender os aspectos substantivos dos pleitos a ela submetidos, ela enfrenta dificuldades para interpretar novos conceitos dos textos legais típicos da sociedade industrial, principalmente os que estabelecem direitos coletivos, protegem os direitos difusos e dispensam tratamento preferencial aos segmentos economicamente desfavorecidos.” STRECK., 2014. p. 112. 156Não despiciendo é considerar que, de fato, o aplicador do Direito perdera em muito o seu conceito e boa-fama no decorrer do século XX e da primeira quadra do século XXI. Antes mesmo de Weimar e do “boom” neoconstitucionalista do século passado, juristas brasileiros apresentavam comportamento e conhecimento cosmopolita transitando por vários saberes, de várias ciências. Desde o Império de D. Pedro II (Império dos Bacharéis), vê-se que nomes como Joaquim Nabuco e Rui Barbosa foram prodigiosos na Literatura, Ciência Política, Sociologia e Antropologia. Da Faculdade do Largo de São Francisco e da Universidade do Recife, além das universidades do exterior, muitos excelentes juristas redesenharam a Terra de Cabral. Hoje, contudo, o que se vê é cada vez mais juristas com formação tecnicista, formalista, restrita e forjada para resolver questões individuais (“Caio versus Tício”) e incapaz de construir a norma olhando as possibilidades e realidade. Numa sociedade cada vez mais dinâmica, propensa às crises, aos desgastes e aos começos de novas relações (sobretudo, coletivas) é insustentável e desprestigiante ao Direito operadores do Direito forjados em métodos tayloristas. É de se indagar: i) se uma barragem de rejeitos de mineração controlada por uma multinacional romper e devastar cidades, dizimar populações, envenenar um rio doce que abastece vários municípios de dois estados da Federação extinguindo espécies aquáticas e acabando com a economia popular, os operadores do Direito estão prontos a dar uma resposta satisfatória à sociedade e às partes do processo? Possuem formação capaz de encontrar na Constituição e Leis Ambientais a reta aplicação da Lei? ii) diante a um crime virtual, de fake news e outras ilegalidades contra o consumidor, o aplicador da lei consegue encontrar respostas no ordenamento e tornar a norma à realidade diante ao Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e outras normas? iii) numa conjuntura de estado de coisas inconstitucionais no sistema carcerário brasileiro, juízes e cortes tomam atitudes normativas ou apenas declaram o óbvio ao cidadão mais leigo deste país?

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Nota-se, assim, um contraponto. De um lado, uma sociedade ainda em negação de

direitos fundamentais e de poucas garantias constitucionais acessíveis no plano

fático e, de outro lado, uma Carta Maior que garante os direitos e os remédios

constitucionais e processuais da forma mais ampla possível. Nesse contexto,

precisa-se considerar que o Estado Democrático de Direito tem a característica de

vencer a formação posta de Estado Liberal de Direito, como também ultrapassar ao

Estado Social de Direito vinculado ao Welfare State neocapitalista - impondo à

ordem jurídica pátria e às atividades rotineiras do Estado um conteúdo de própria

transformação da realidade. O Estado deve ser Democrático de Direito, possuir ao

seu lado um núcleo liberal agregado à questão social tendo como questão

fundamental a incorporação efetiva para uma busca de igualdade através do

asseguramento de condições mínimas de vida à comunidade. Ou seja, a lei passa

no Estado Democrático de Direito a ser um instrumento de ação concreta do Estado

(e não um maquinário acessório) tendo métodos assecuratórios de sua efetividade

forjados em ações pretendidas pela própria ordem jurídica.157 Nesse contexto, é a

senda imorredoura de STRECK:

O Estado Democrático de Direito representa, assim, a vontade constitucional de realização do Estado Social. É nesse sentido que ele é um plus normativo em relação ao direito promovedor-intervencionista próprio do Estado Social de Direito. Registre-se que os direitos coletivos, transindividuais, por exemplo, surgem, no plano normativo, como consequência ou fazendo parte da própria crise do Estado Providência. Desse modo, se na Constituição se coloca o modo, é dizer, os instrumentos para buscar / resgatar os direitos de segunda e terceira dimensões, via institutos como substituição processual, ação civil pública, mandado de segurança coletivo, mandado de injunção (individual e coletivo) e tantas outras formas, é porque no contrato social - do qual a Constituição é a explicitação - há uma confissão de que as promessas da realização da função social do Estado não foram (ainda) cumpridas.158

Diante a tais conjunturas e, sobretudo, ao grau de negação dos direitos

fundamentais, das rupturas e desfazimentos da ordem jurídica constitucional pátria e

da fetichização do direito (ainda “puro”) construído pelo senso comum de juristas e

lições esquematizadas, é inelutável considerar que a Hermenêutica está em Crise.

Todavia, a própria Hermenêutica possui soluções para desoxidação desta realidade.

157STRECK, 2014. p. 112. 158Ibid., p. 47-48.

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3.1 A CRISE DE OPERABILIDADE DA HERMENÊUTICA E A INEFICÁCIA DOS

DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL: FATORES E IMPACTOS NA ORDEM

JURÍDICA PÁTRIA

A questão da esquematização das desigualdades no Brasil, negação de direitos

fundamentais e subcidadania numa República de modernidade tardia fora

exaustivamente perscrutada neste trabalho. O que se pretende é demonstrar que o

fazer hermenêutico contemporâneo movimenta a velha válvula de manutenção do

status quo.

Não olvide que desde a Constituição de 1988, o Brasil enfrentou várias

problemáticas sociais, políticas e jurídicas elementares à promoção da dignidade da

pessoa humana.

Sob o prisma institucional, considere-se que, apesar dos embates, o Brasil vive o

seu maior momento de estabilidade democrática. Nesse período, por exemplo, o

país enfrentou hiperinflação, a derrocada de sucessivos planos econômicos, a

destituição por impeachment de dois presidentes da República eleitos após a

redemocratização e diversos escândalos de corrupção como, por exemplo, os

“Anões do Orçamento”, o “Mensalão” e o “Petrolão”. Mas essas crises foram

enfrentadas e superadas dentro da legalidade constitucional, conjuntura inusitada

para uma nação que sofrera tantos golpes de Estado e rupturas. Portanto,

inelutavelmente, sob o prisma institucional, o Brasil avançou.159

LUÍS ROBERTO BARROSO elenca também que o Brasil avançou em matéria

monetária e em políticas de inclusão social. No tocante à inclusão, o autor apresenta

os seguintes indicadores:

A pobreza e a desigualdade extrema são marcas indeléveis da formação social brasileira. Apesar de subsistirem indicadores ainda muito insatisfatórios, os avanços obtidos desde a redemocratização são muito significativos. De acordo com o IPEA, de 1985 a 2012, cerca de 24,5 milhões de pessoas saíram da pobreza, e mais 13,5 milhões não estão mais em condições de pobreza extrema. Ainda segundo o IPEA, em 2012 havia cerca de 30 milhões de pessoas pobres no Brasil (15,93% da população),

159BARROSO, Luís Roberto. BRASIL + 30: O LEGADO DE 30 ANOS DE DEMOCRACIA E OS DESAFIOS PELA FRENTE. Disponível em:< http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2017/09/trinta-anos-democracia-port.pdf>. Acesso em: 21 out. 2018. p. 3 – 4.

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das quais aproximadamente 10 milhões em situação de extrema pobreza (5,29% da população. O Programa Bolsa Família, implantado a partir do início do Governo Lula, em 2003, unificou e ampliou diversos programa sociais existentes. Trata-se de um programa de transferência condicionada de renda, em que as condicionalidades são: crianças devem estar matriculadas nas escolas e terem frequência de no mínimo 85%; mulheres grávidas devem estar em dia com os exames pré-natal; crianças devem estar com as carteiras de vacinação igualmente atualizadas. O Bolsa Família, conforme dados divulgados em 2014, retratando uma década de funcionamento, atende cerca de 13,8 milhões de famílias, o equivalente a 50 milhões de pessoa, cerca de um quarto da população brasileira.160

BARROSO assevera, contudo, que dois pontos foram negativos nos trinta anos pós-

Constituição. A constitucionalidade excessiva e a instabilidade do Texto

Constitucional representou a concretização constitucional de vários temas ordinários

à vida nacional. Isso gera, inelutavelmente, instabilidades e enrijecimento de uma

Constituição prolixa. De igual modo, viu-se erigir um sistema político deficiente em

representatividade, propício à corrupção e centralizador do dinheiro.161

O autor constrói um excelente panorama da evolução dos direitos constitucionais no

Brasil nas últimas décadas. Todavia, ele mesmo é enfático em demonstrar que

muitas vicissitudes fazem prevalecer o abismo da desigualdade no Brasil.162

LUIS ROBERTO BARROSO e ALINE RESENDE PERES OSÓRIO apresenta a

igualdade em três dimensões: i) igualdade formal, ii) igualdade material e iii)

igualdade como reconhecimento.163 A título de exemplo e importância ao presente

trabalho, no tocante à igualdade formal, ainda há no Brasil tratamento diferenciado

pelo Estado às pessoas sem quaisquer fatores legítimos de diferenciação que os

justifique. Segundo os professores:

[...] O Brasil é um país no qual relações pessoais, conexões políticas ou hierarquizações informais ainda permitem, aqui e ali, contornar a lei, pela ‘pessoalização’, pelo ‘jeitinho’ ou pelo ‘sabe com quem está falando’. Trata-se de uma disfunção decrescente, mas ainda encontrável com certa frequência. Paralelamente a isso, as estatísticas registram que os casos de

160BARROSO, Luís Roberto. BRASIL + 30: O LEGADO DE 30 ANOS DE DEMOCRACIA E OS DESAFIOS PELA FRENTE. Disponível em:< http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2017/09/trinta-anos-democracia-port.pdf>. Acesso em: 21 out. 2018. p. 5. 161Ibid., p. 5-6. 162BARROSO, Luís Roberto., OSÓRIO., Aline Rezende Peres. “SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?”: ALGUMAS NOTAS SOBRE O PRINCÍPIO DA IGUALDADE NO BRASIL CONTEMPORÂNEO. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2017/09/SELA_Yale_palestra_igualdade_versao_fina.pdf>. Acesso em: 21 out. 2018. p. 4-5. 163Ibid., p. 3.

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violência policial injustificada têm nos mais pobres a clientela natural. Sem mencionar que certos direitos que prevalecem no ‘asfalto’ nem sempre valem no ‘morro’, como a inviolabilidade do domicílio e a presunção de inocência.164

Mais alarmante, todavia, é a denúncia apresentada a seguir pelos mestres:

É inegável, todavia, que no plano normativo também subsistem resquícios aristocráticos e pouco republicanos. Cabe lembrar que até a Constituição de 1988, juízes e militares eram imunes ao pagamento de imposto de renda . Já sob a vigência da nova Constituição, e até a aprovação da Emenda Constitucional nº 35/2001, não era possível instaurar ação penal contra parlamentares, independentemente de qual fosse o crime, sem prévia licença da casa legislativa a que pertencesse. Atualmente, não é possível a decretação de prisão, salvo em caso de flagrante delito, mesmo quando presentes os requisitos da prisão preventiva. Por fim, com intensa gravidade, subsiste o foro privilegiado para diversas autoridades e para parlamentares, que respondem a ações penais perante o Supremo Tribunal Federal. Nesse particular, uma jurisprudência leniente do STF tem permitido a manipulação corriqueira da jurisdição, com renúncias e eleições para cargos diversos, fazendo com que processos subam e desçam, gerando prescrição e impunidade.165

Estes apontamentos demonstram, portanto, que ainda há um caminho a ser trilhado

para a efetivação de direitos fundamentais na República Federativa do Brasil.

Sobretudo, o direito de igualdade ainda apresenta forte ineficácia. De fato, ainda a

ineficácia de direitos presentes na Carta Maior redesenha um modelo de

personalização e patriarcalismo dentro das vísceras do Estado Brasileiro a produzir

e reproduzir negação de direitos e subjugação da coisa pública aos interesses

escusos.166

164BARROSO, Luís Roberto., OSÓRIO., Aline Rezende Peres. “SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?”: ALGUMAS NOTAS SOBRE O PRINCÍPIO DA IGUALDADE NO BRASIL CONTEMPORÂNEO. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2017/09/SELA_Yale_palestra_igualdade_versao_fina.pdf>. Acesso em: 21 out. 2018. p. 4. 165Ibid., p. 5. 166Há lacunas e ignomínias em diversos direitos fundamentais. Inácios e não Inácios do Brasil cumprem pena de reclusão após condenação em segunda instância em confronto com as disposições da própria Carta Magna que apresenta a presunção de inocência como direito pétreo e caro ao ordenamento jurídico. Num sistema penal que elege a pena de reclusão como a mais grave, a sua concretização antes do trânsito em julgado é flagrantemente ofensora a tal princípio. Vê-se, nesse contexto, um Supremo Tribunal Federal construíndo o Direito mediante senso comum teórico dos juristas e da opinião público, apartando por completo da Lei das Leis ao decidir o Habeas Corpus (HC) 126292. De igual modo, a razoável duração do processo, importante vetor ao devido processo legal é deficiente no Judiciário brasileiro. A título de exemplo, somente no STF há mais de 260 processos abertos no milênio passado ainda pendentes de julgamento. Disponível em:< https://www.metropoles.com/brasil/justica/stf-tem-260-processos-em-aberto-ainda-do-milenio-passado>. Acesso em: 21 de outubro de 2018.

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Pelo viés da Hermenêutica, é de se considerar que a dogmática jurídica tem

obstaculizado a efetivação dos direitos fundamentais. Este obstáculo funda-se em

dois pilares: o primeiro, nos limites das reflexões como paradigma de modelo liberal-

individualista de Direito, e o segundo, por desenhar e desenhar ininterruptamente o

plano imaginário gnosiológico dos juristas, num mix de posturas assentadas na

anciã filosofia da consciência e no objetivismo (realismo filosófico).167

Nesse sentido, é que precisa-se repensar a dogmática jurídica. Posta em uma forte

crise de paradigma(s), que sustenta a esquizofrenia do sistema e disfuncionalidade

do Direito no plano prático, retroalimentada por um campo jurídico no qual o

operador do Direito “conhece”, “contempla” e “assume” o seu lugar, a dogmática

deve prestigiar e ser trabalhada em uma perspectiva de criação.168 Não mais ser o

operador um mero reprodutor de conceitos, fórmulas, parâmetros e silogismos mas,

a partir de um princípio (ou seja, de um parâmetro realmente existente), construir a

norma ao caso concreto tornando o direito aplicável e satisfatório à sociedade.169

Nessa aceitação total da dogmática jurídica, o operador do Direito entra num dilema.

Ou opta pela insegurança de um mundo representado por dispositivos textuais

jurídicos que apresentam inúmeras possibilidades, ou opta pela “segurança

hermenêutica”, que representa um consenso forçado/extorquido que a dogmática

jurídica põe à disposição de todos os súditos.170-171

167STRECK, 2014, p. 334. 168Ibid., p. 334. 169STRECK, utilizando-se da expressão síndrome de Abdula, de Italo Calvino, chega ao apogeu das considerações a respeito da crise da Hermenêutica, nos seguintes dizeres: “[...] Assim como o personagem Abdula não tinha consciência de seu poder (e de seu papel), os “operadores jurídicos” também não conhecem as suas possibilidades hermenêuticas de produção do sentido. Em sua imensa maioria, prisioneiros das armadilhas e dos grilhões engendrados pelo campo jurídico, sofrem dessa “síndrome de Abdula”. Consideram que sua missão e seu labor é o de - apenas - reproduzir os sentidos previamente dados/ adjudicados / atribuídos por aqueles que possuem o skeptron, isto é, a fala autorizada! Não se consideram dignos-de-dizer-o-verbo. Perderam a fé em si mesmos. Como órfãos científicos, esperam que o processo hermenêutico lhes aponte o caminho-da-verdade, ou seja, a “correta interpretação da lei”! Enfim, esperam a fala-falada, a revelação da verdade!”. Ibid., p. 334-335. 170Ibid., p. 335. 171“Como na metáfora do contrato social, o jurista acaba, na maior parte do tempo, por delegar o seu “direito à produção do sentido”, ficando violado, desse modo, flagrantemente aquilo que, no âmbito da compreensão hermenêutico-jurídica, pode-se denominar de ‘direito ao devido processo enunciativo”. Ibid., p. 335-336.

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A “delegação” do direito “à produção de sentido” é feito em favor de uma dogmática

com caráter positivista, que constrói seus sentidos de forma discricionária-arbitrária.

Assim, surge um assujeitamento de segundo nível, a dogmática estabelecendo

sentidos a partir das concepções subjetivas, axiológicas, pragmatistas e tal produto

é consumido freneticamente nas cátedras, tribunais e pela doutrina dos standards.

Insurge, assim, “uma política jurídica” em que acontece uma (con)fusão de modelos:

a dogmática determinando que acatem sua construção discricionária-arbitrária, de

forma acrítica, subsuntiva-dedutiva…!172

Nesse contexto, adverte LENIO LUIZ STRECK:

Configura-se, assim, um círculo vicioso, que, paradoxalmente, é rompido a partir do próprio positivismo. Quando interessa, a dogmática jurídica (refiro-me, é claro, àqueles que detêm o skeptron no âmbito do establishment jurídico-dogmático) assume posturas exegéticas, apegando-se, muitas vezes, à literalidade dos textos legais. Em outras oportunidades - e isso é absolutamente corriqueiro - são assumidas posturas que desconectam arbitrariamente “texto” e ‘norma’. Afinal, os assim denominados “casos difíceis” ao lado das cláusulas gerais (Código Civil), do poder inquisitivo do juiz no Processo Penal, da aposta no protagonismo judicial no Processo Civil e da pretensa abertura interpretativa dos princípios, tornar(am)-se terreno fértil para atribuições de sentido ad-hoc, em que o que vale são as posturas pragmaticistas dos Tribunais (que por vezes, convalidam teses doutrinárias ad hoc) Como consequência, tem-se um ‘estado de exceção hermenêutico’ em que, a partir de um ‘grau zero de sentido’, são atribuídos sentidos aos textos, de acordo com a vontade do intérprete. Soçobra, com isso, a integridade do direito e, não raras vezes, o próprio texto legal-constitucional.173

Vê-se, por todos, que ocorre a reconstrução de um campo jurídico em que o trabalho

está rigidamente dividido: num primeiro plano, os intérpretes que possuem fala

autorizada na dogmática dominante em labor intelectual, e, noutro plano

(secundário) operadores que fazem o trabalho de reprodução do sentido instituído e

instituinte. Há nesse processo, assim, um poder implícito de nomeação, geralmente

correlacionados ao establishment e poder.174

Diante a tantas negações de direitos, o hermeneuta contemporâneo deve apresentar

criatividade e liberdade em sua tarefa de construção do Direito sem organizar suas

produções num convencimento pouco racional, de acordo com os seus próprios

172STRECK, 2014, p. 336. 173Ibid., p. 336. 174Ibid., p. 337.

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axiomas. O hermeneuta contemporâneo é, portanto, importante construtor de um

projeto jurídico abarcante e efetivo.

3.2 O PAPEL DO HERMENEUTA CONTEMPORÂNEO NA CONSTRUÇÃO DE UM

ORDENAMENTO JURÍDICO ABARCANTE E EFETIVO

Para a construção de um ordenamento jurídico abarcante, o hermeneuta

contemporâneo deve(ir) à terceira margem do rio.175

O processo hermenêutico permeia a interpretação. Interpretar é dar sentido,

construir os significados das coisas, tornando possível a sua concretização. Nesse

sentido, o intérprete não pode estar em frente ao texto normativo sem qualquer pré-

compreensão, porque a pré-compreensão representa precipuamente a existência de

uma história que não pode ser emudecida. O texto normativo precisa ser

interrogado, reclamado, trazido à tona dentro das conjunturas atuais, para então

encontrar as potencialidades e o seu sentido176

“Detectar / entender / influir (n)esse processo é tarefa que se impõe à crítica do

Direito.”177 O texto não possui por si só o seu próprio sentido. Portanto, a norma é

produto de uma atribuição de sentido dado ao texto que não pode ser forjado no

completo vão da consciência pessoal do jurista que o leva a proferir respostas

judiciais em desajuste ao que é por estar “de acordo com a lei” ou em completo

desarranjo à lei.178 Nesse sentido, é a lição do Professor LENIO LUIZ STRECK:

175Em “Primeiras Estórias” (Contos, 1962), Guimarães Rosa narra, dentre outras estórias sertanejas, o conto “A Terceira Margem do Rio”. Nele, um pai de família deixa o conforto de sua casa, constrói uma canoinha e enfrenta as águas instalando-se ao centro do rio. Vive ali, até a morte, conforme as providências naturais e o alimento deixado num barranco pelo filho. Críticos literários e diversos autores chegam à conclusão de que a terceira margem é o local em que o homem encontra sentido e significação para sua existência através da Religião, da Arte e da Filosofia (âmbito onde se estuda a Hermenêutica). A comparação é alusiva: o hermeneuta precisa ir além da primeira margem em que reina o sincretismo das formas e o “dado normativo” é irredutível para atravessar um giro ontológico de linguagem em que a sua própria concepção - de linguagem - faz surgir o mundo como é, encontra sentido e significação para as coisas. A terceira margem do rio é, portanto, um ambiente de construção. 176STRECK, 2014, p. 338. 177Ibid., p. 340. 178Ibid., p.340-341.

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Como o texto não ‘carrega’ o seu próprio sentido - sendo a norma o produto da atribuição de sentido ao texto - deixam de existir (de forma stricto sensu) julgamentos ‘de-acordo-com-a-lei’ ou ‘em-desacordo-com-a-lei’. Parafraseando Lacan, é possível dizer que o que vivenciamos (como lei) não é a própria coisa (lei), mas, sim, é alguma coisa sempre já simbolizada, constituída e estruturada por mecanismos simbólicos. A lei (uma vez apreendida enquanto realidade, é dizer, simbolicamente estrutura) nunca é ‘em-si-mesma’, nunca é ‘ela mesma’, porque somente se apresenta / aparece para nós mediante sua simbolização (pela linguagem). Isto sem esquecer a advertência de que ‘nunca se sabe o que pode acontecer com uma realidade até o momento em que se a reduziu definitivamente a inscrever-se numa linguagem’.179-180

Nesse giro de perspectiva hermenêutica, é imperioso reconhecer que o Direito deve

ser entendido como uma construção que tem como alicerce a palavra. Mas uma

estrutura vai além de alicerces. O Direito é comportamento, símbolo, conhecimento

que se expressa sempre por uma linguagem. Nesse panorama é que se

compreende que o Direito é lei, é a interpretação das togas, é o argumento da

advocacia, é a voz viva das partes, é a ciência dos teóricos, é a produção

legiferante, as análises dos doutrinadores.181 “É, enfim, um discurso constitutivo,

uma vez que designa / atribui significados a fatos e palavras.”182

Nesse estágio do pensamento científico é que se atrela a importância do

hermeneuta na construção de uma sociedade em que os direitos fundamentais são

eficazes, em que a subcidadania não tem margem frente ao Direito e estrutura

Judiciária, em que os graves reclames de uma modernidade tardia são cicatrizados

conforme a profusão de decisões racionais e criativas, com a confecção de normas

que desvelam e velam aquilo como é, que ilumina becos, favelas e cárceres. O

mercado que está já faliu. O Direito produzido atualmente não pode durar porque as

suas bases estão em crise, porque o seu modelo não serve aos desafios da

contemporaneidade. Sempre firme em STRECK:

Com isso se explica a crise paradigmática denunciada no decorrer destas reflexões: o ‘mercado’ brasileiro de Direito gerou demandas / expectativas que não têm mais condições de ser atendidas pelo modo liberal-individualista-normativista de produção de Direito. Tal modo de produção é, ao mesmo tempo, instituinte e instituído de e por um dado campo jurídico,

179STRECK, 2014, p. 340 341. 180“Para a hermenêutica aqui trabalhada, o conteúdo de um texto jurídico (que somente passa a existir na applicatio) está na literalidade de além dela (e, também nos silêncios produzidos pelo texto). Para não perdermos a perspectiva histórica, é importante referir que, nesta quadra do tempo, lutamos para incluir na lei (texto jurídico) as promessas incumpridas (até aqui) da modernidade. Parece que já alcançamos muitos avanços.” Ibid., p. 341-342. 181Ibid., p. 342-343. 182Ibid., p. 344.

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que sustenta as práticas dogmático-jurídicas que não permitem a realização dos direitos sociais e fundamentais. Assim, o campo jurídico e o habitus por ele produzido não se constituem, à evidência, como (meros) reflexos do modo de produção de Direito prevalecente, impulsionado pelo e impulsionador do devir histórico-social. Dito de outro modo, o campo jurídico é, também, produto das relações de forças que operam no interior da própria dogmática jurídica.183

Por todo exposto, há um papel a ser cumprido pelo jurista-hermeneuta na

construção de uma República que opera os direitos fundamentais, legitimam o

Estado Providência que é Democrático de Direito. Para tanto, há importantes

mecanismos a serem engendrados neste processo de real modernidade da

sociedade brasileira.

Primeiramente, é de suma importância reconhecer a Constituição como o grande

pacto social entre Estado e Sociedade. Nesse contexto, a violação por omissão ou

ação à Constituição significa um atentado e ruptura ao mais importante produto de

operacionalização das relações democrática e garantia dos mais vitais valores de

um povo.184 O hermeneuta reconhece a importância da Constituição, aplica-a e

essencialmente dá o devido valor a cada norma. Entende que trata-se - a Carta

Maior - do topos hermenêutico que conforma a interpretação de todo sistema

jurídico.185

Sobremaneira preocupado com a inteligência dessa interpretação de todo o corpo

jurídico frente à Constituição, leciona STRECK:

Consequentemente, a Constituição passa a ser, em toda a sua substancialidade, o topos hermenêutico que conformará a interpretação do restante do sistema jurídico. Alerte-se, entretanto, que a Constituição não pode ser entendida como um ente disperso ‘no mundo’. Tampouco pode ser entendida como uma espécie de topos conformador/subsuntivo da atividade interpretativa, o que igualmente seria resvalar em direção à metafísica, ocultando a diferença ontológica. Dizendo de um modo mais simples: é preciso ter claro que o sentido do ser de um ente não pode ser constitutivo do sentido do ser de outros entes A Constituição é, assim, a materialização da ordem jurídica do contrato social, apontando para a realização da ordem política e social de uma comunidade, colocando à disposição os mecanismos para a concretização do conjunto de objetivos traçados no seu texto normativo deontológico. Por isto, as Constituições Sociais devem ser interpretadas diferentemente das Constituições Liberais. O plus normativo representado pelo Estado Democrático de Direito resulta como um marco

183STRECK, 2014, p. 344. 184Ibid., p. 344-345 185Ibid., p. 345.

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definidor de um constitucionalismo que soma a regulação social com o resgate das promessas da modernidade.186

É preciso alçar à compreensão de que os “princípios são deontológicos e ‘governam’

a Constituição, o regime e a ordem jurídica.”187 É de se reconhecer aos princípios,

assim, tratar-se de normas jurídicas com ampla força normativa que institucionalizam

o mundo prático no Direito.188 Uma violação a um princípio é mais grave que a

transgressão de uma regra jurídica, tendo consequências mais sérias que a violação

até mesmo de um dispositivo constitucional.189-190

Precisa o hermeneuta compreender que as normas infraconstitucionais precisa

passar pelo filtro constitucional para ter validade, isto é, é preciso estar o texto

contaminado pelo dizer e querer da Constituição. Caso contrário, havendo uma

irregularidade insanável, é dever do juiz reconhecer a inconstitucionalidade do

texto.191-192 Portanto, inderrogável ao intérprete reconhecer a força normativa da

Constituição. Não é o Pergaminho Constitucional apenas uma carta política, um

vetor na elucidação, algo distante. A Constituição é a principal fonte normativa do

ordenamento e importante instrumento de concretização dos mais elementares

instrumentos, valores e programas de uma sociedade.193 Dessa forma, mister

reconhecer que a interpretação conforme a Constituição trata-se, nesta quadra de

século de um princípio constitucional imanente da Constituição. A própria Carta

Magna utiliza-se deste princípio para invocar e sustentar a obrigação dos outros

textos normativos observarem o seu corpo, intenção e sentido.194

Ganha especial relevo a próxima observação. A Constituição aponta para o futuro

mas não retira os olhos do passado. Ela é, nesse sentido, ou ao menos procura, ser

186STRECK, 2014, p. 346. 187Ibid., p. 346. 188Ibid., p. 346. 189Ibid., p. 347. 190Importa assinalar que este princípio sequer precisa estar expresso na Constituição para ter a devida importância. Até porque, conforme tão exaustivamente já trabalhado, a norma jurídica não depende de um dispositivo. Trata-se de uma construção. 191STRECK, op. cit., p. 349, nota 186. 192Bastante pertinente esta observação e deveras cara ao presente trabalho. A Teoria da Constituição Dirigente será apontada como importante mecanismo de transformação da realidade de ineficácia dos direitos fundamentais e da subcidadania reinante no Brasil. Para tanto, é de suma importância reconhecer que nenhuma norma que não passe pelo filtro constitucional tenha valor ao ordenamento jurídico vigente. 193STRECK, op. cit., p. 350-351, nota 186. 194Ibid., p. 351.

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onipresente.195 Seu compromisso com os direitos fundamentais faz com que a sua

principiologia constitucional inadmita o retrocesso. Conforme STRECK:

[...] Por outro lado, a Constituição não tem somente a tarefa de apontar para o futuro. Tem, igualmente, a relevante função de proteger os direitos já conquistados. Desse modo, mediante a utilização da principiologia constitucional (explícita ou implícita), é possível combater alterações feitas por maiorias políticas eventuais, que, legislando na contramão da pragmaticidade constitucional, retiram (ou tentam retirar) conquistas da sociedade [...].196

O hermeneuta reconhece que é necessária uma mudança de postura

processualística brasileira. É de se reconhecer que o instrumentalismo do processo

civil, o modelo inquisitivo do processo penal e o solipsismo dos paradigmas refletem

a filosofia da consciência. É inegável que tais posturas afrontam a Constituição vez

que, ofendem diretamente a principiologia constitucional do verdadeiro processo.

Princípios como o contraditório, isonomia e ampla defesa são seriamente

abalados.197 O hermeneuta deve sempre se atentar à norma constitucional na

construção da tríade. Nessa conjuntura, deve-se ter meios para que o direito

material seja mais efetivo e não morra diante aos procedimentos e formalidades que

impedem sua concretização. Faz-se necessária a aplicação - pelo juiz - “do princípio

da adequação ou adaptação do processo à correta aplicação da técnica

processual.”198

O intérprete reconhece que o agir deve estar pautado numa construção

compartilhada que se dá entre a principiologia posta pela e na Constituição em que

o contraditório, ampla defesa, isonomia e integridade do Direito concatenam a

perspectiva contemporânea de Estado Democrático de Direito.199

A Hermenêutica, assim, constrói, adjudica e produz o sentido do texto,

ultrapassando as concepções metafísicas, tornando mecanismo concreto de

realização normativa.200 Não se pode tolerar uma abordagem hermenêutica que

considera a existência de conceitos de textos normativos em si mesmos e conceitos

de eficácia de dispositivos constitucionais também em si mesmos. Tal abordagem 195STRECK, 2014, p.352-353. 196STRECK, 2013, p. 352 - 353. 197Ibid., p. 352-354. 198Ibid., p. 352-354. 199Ibid., p. 355-356. 200Ibid., p. 356.

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esconde o objeto como é, torna a produção normativa (que nem produção é nesta

hipótese) em algo que não representa a essência daquilo que é, precisa ser e

responde à realidade.201

Não se admite, de igual modo, a existência de uma hermenêutica constitucional.

Hermenêutica é Hermenêutica. Ela perscruta todo o edifício jurídico extraindo dele

os sentidos das normas conforme os paradigmas e parâmetros históricos.

Reconhecer uma hermenêutica constitucional levaria à cerrar os campos jurídicos e

albergar as distâncias entre os ramos. Existiria, assim, hermenêutica penal, do

direito processual, civil, entre outras. Claro que a abordagem hermenêutica da

Constituição exige análise de diversas especificidades. Mas isso não encerra

divisões rígidas, muito menos põe o intérprete num ritual antropofágico.202

Todas estas coisas evidenciam, assim, que o hermeneuta, para superar a crise de

operabilidade do Direito precisará enfrentar um giro ôntico da linguagem, reconhecer

a força normativa da constituição, ser criativo na construção da norma, não se limitar

a ser mero reprodutor e utilizar dos meios postos à concretização da força normativa

da Constituição. Tarefa árdua. Ainda mais quando se pretende uma Teoria de

Constituição Dirigente.

Nesse contexto, é o jurista nesta quadra de século importante personagem na

concretização do Estado Democrático de Direito. Do juiz ao Pretório Excelso. Do

advogado ao procurador da república, dos promotores aos acadêmicos. É preciso

erigir um novo Direito. Mais concreto, mais real, mais acessível e plural. Longe do

fetichismo teórico e irracional das vontades particulares, longe do apego excessivo

às disposições das letras. É preciso, conforme o entendimento heideggeriano, abrir

uma clareira.

201STRECK, 2013, p. 357. 202STRECK, 2014, p. 357-358.

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3.3 A TEORIA DA CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE COMO MECANISMO DE

TRANSFORMAÇÃO DA REALIDADE DE INEFICÁCIA DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS E DA SUBCIDADANIA REINANTE NO BRASIL

É preciso ratificar que jurisdição e política não se desvencilham por completo no

atual estágio da problemática sobre as funções de poder os nascedouros de

legitimação democrática nesta quadra de século. O binômio política-jurisdição não

enrijece mais a estrutura de Estado. Evidentemente, que cada um possui seu campo

de maior protagonismo, todavia, sem encarcerar-se nos portões e cancelas de

congressos, planaltos e supremos. Há de se reconhecer que a Constituição não

elimina a política, apenas apresenta-lhe uma moldura. De modo paralelo, a política

transformada por completa em jurisdição seria reduzir as relações democráticas e de

escolhas da pólis em mera administração por forças detentoras do aparato

jurídico.203

A presente afirmativa é cara a este trabalho e à própria raiz do problema. Isto

porque, a completa jurisdicização da política tende a descambar para o ativismo

judicial e profilaxia do discurso dos intérpretes abertos da constituição. De modo

distinto, a política sem limites constitucionais representaria um furioso Leviatã204

que, utilizando-se dos interesses escusos, poderia construir ou desconstruir os seus

interesses conforme os devidos interesses de um soberano, um colégio, de uma

minoria ou de uma maneira avessa aos direitos fundamentais. Encerrar-se-ia, assim,

a esperança democrática de estabilidade institucional.

Delimitadas as bases modernas do Estado que emerge como Estado Democrático

de Direito e Providencial é de se considerar que não pode mais ser vista a Carta

Magna como um mero rascunho liberal de delimitação das estruturas orgânicas de

Estado. É preciso reconhecer e ir além na construção de um constitucionalismo

dirigente afirmando um Estado Social em uma era altamente dinâmica que se

desenha e redesenha conforme os fatos da tecnologia, globalização e até, assuste-

se por ausências de previsões, da re-nacionalização em que as fronteiras de países

203MOREIRA, 2010, p . 77. 204A expressão Leviatã é, evidentemente, retirada da inteligência de Thomas Hobbes que apresenta o Estado mediante o mito do monstro Leviatã.

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tornam turvas as relações internacionais, sobretudo, diante aos movimentos

imigratórios de refugiados por todo o mundo.205

Nesse contexto é que emerge o problema da Constituição em suas novas

perspectivas. Segundo JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO:

[...] O problema da legitimação não consiste só num debate filosófico-jurídico sobre a fundamentação última das normas, mas também na justificação da existência de um ‘poder’ ou ‘domínio’ sobre os homens e aceitação desse domínio por parte destes. O aprofundamento do primeiro sentido, isto é, a ‘justificação’ ou ‘crítica’ da ‘legitimidade interna’ do direito (e, portanto, também do direito constitucional) impor-se-á como uma necessidade jurídico material quando se quer defender o ‘direito’ contra a instrumentalizações arbitrárias e se tenta assegurar-se-lhe um ‘apoio’ ou ‘fundamento específico’, fonte da sua dignidade e garante das suas pretensões.206

Vê-se, assim, que a raiz do Constitucionalismo Dirigente repousa na problemática da

legitimação. Todavia, no atual estágio do Constitucionalismo Dirigente é de se

reconhecer que as Cartas Magnas ganharam fôlego nesta quadra de século

representando uma postura aberta e plural, sobretudo na confecção e manuseio de

arsenais no combate às assimetrias postas pelos modelos liberais, sobretudo em

países de modernidade tardia, como o Brasil. A Constituição Dirigente emerge,

assim, como um programa de modificação da realidade reinante numa dada

sociedade.207

Lecionando sobre a nova postura dirigente da Constituição, leciona o mestre de

Coimbra:

‘Construir’ normativamente a organização estatal, ‘racionalizar’ e ‘limitar’ poderes, ‘fundamentar’ juridicamente a organização da ‘res publica’ diz, porém, pouco, sobre a natureza da constituição como ‘ordem fundamental material’. Independentemente da função substantiva que resulta do ‘dar forma’ e ‘processo’ ao actuar estadual, a ‘constituição jurídica’ é também uma ‘constituição política’: a fixação de formas ou processos adquire sentido material quando relacionada com determinados fins. Não sendo nenhuma organização neutra quanto aos fins, também a organização constitucional só alcançará dignidade material quando superar definitivamente as ‘sequelas’ de descrédito do Estado de Direito Formal. ‘Ela deve ser uma ordem fundamental material’.208

205CAMATTA, 2010, p. 81. 206CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador: Contributo para a Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editores, 2001. p. 15. 207MOREIRA, op. cit., p. 82, nota 205. 208CANOTILHO, op. cit., p. 83, nota 206.

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NELSON CAMATTA MOREIRA elucidam a tônica da questão apresentando o

constitucionalismo dirigente como um aparelho direcionado ao futuro, mudança de

status quo. Todavia, prescreve que o sentido normativo da Constituição não encerra

e fecha o processo histórico, isto é, não tergiversa para as conquistas já admitidas

na ordem constitucional.209

O apogeu dos princípios jurídicos, apresenta maior relevância do que meramente a

discussão a respeito de suas fontes. Nesta quadra de século, compreende que nos

princípios há compromissos políticos de mudança radical do status quo, sendo

canais poderosos de sondagem, aplicação e impactação social.210-211

Reconhece-se, nesse contexto, a Constituição Dirigente como o grande bloco de

normas constitucionais que encerra a estrutura do Estado, prescreve seus fins e

tarefas, além de estabelecer direções e estatuir novas imposições tendo sempre, a

partir da legitimidade constitucional, objetivo de mudança do status quo.212

A Constituição Dirigente é uma Carta-Compromissária que não se resume a um

mero ordenamento político, mas é também ordenamento econômico e

social.213214Surge com o objetivo primário de retratar a realidade vigente, superando

os modelos fortemente orgânicos de Constituição inspirados na separação

milimétrica das competências estatais e pouco no que tange ao enfrentamento dos

desafios de uma modernidade tardia.215

209MOREIRA, 2010, p. 83 210Ibid., p.83-84. 211É de se ressaltar que trata-se, nesse giro de perspectivas constitucionais, de uma nova maneira de admitir e portar-se a Constituição. Canotilho, sempre preocupado com o Dirigismo Constitucional elucida que o problema é, precipuamente, de legitimação. NELSON CAMATTA MOREIRA, ao analisar posicionamentos teóricos de Peter Lerche e do Mestre de Coimbra, assim ressalta: “ De outro lado, há uma diferenciação patente entre as teorias desses dois autores no que concerne à amplitude da pretensão (ao alcance da teoria) do autor português. “A proposta de Canotilho é bem mais ampla e profunda que a de Peter Lerche: seu objetivo é a reconstrução da Teoria da Constituição por meio de uma Teoria Material da Constituição, concebida também como teoria social. Trata-se de uma proposta de legitimação material da constituição pelas finalidades e atribuições contidas no próprio texto constitucional. Assim, o problema apresentado por Canotilho sobre a Constituição Dirigente consiste num problema de legitimação, cujo principal objetivo é ofertar subsídios jurídicos e força para a mudança social, na medida em que esse modelo de constituição busca a racionalização da política, incorporando, ainda, uma esfera materialmente legitimadora, ao fundamentar constitucionalmente a política.” MOREIRA., 2010, p. 87. 212MOREIRA, 2014, 87. 213MOREIRA; PAULA, 2015. p. 56. 214CANOTILHO, 2001, p. 152-153. 215MOREIRA; PAULA, op. cit., p. 56, nota 123.

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Para o impacto da sociedade em busca de promoção da dignidade humana, ensina

NELSON CAMATTA MOREIRA que:

A transformação do status quo passa pela superação de três violências geradas pela modernidade política, cujas respostas estão numa constituição dirigente compromissária: a) falta de segurança e de liberdade (necessidade de imposição de ordem e de direito - o Estado de direito contra a violência física e o arbítrio); b) resposta à desigualdade política alicerçando liberdade e democracia (Estado democrático); c) combate à pobreza, mediante esquemas de socialidade.216

Canotilhos e não Canotilhos entendem que a Constituição Dirigente é ainda

essencialmente importante mecanismo na promoção das promessas da

modernidade, sobretudo pós welfare state. Porque, em suma, não há como cogitar a

morte deste referencial teórico num país em que as normas programáticas ainda são

meramente quereres constituintes e, apesar de ser prolixa, a Carta Maior derroga

um extenso campo para o enrijecimento institucional sem asseverar com robustez os

deveres normativos de mudança da realidade socioeconômica em terras brasileiras.

A realidade histórico-factual ainda sustenta a necessidade de uma constituição

dirigente. No atual estágio da vida nacional, não pode tratar-se apenas de um mero

instrumento técnico-jurídico, nem corolário de interesses momentâneos, celeiro de

necessidades contingenciais.217

Considera-se que as teorias das constituições representam, em primeira instância,

os estágios sociais e políticos de uma nação. Albergar as raízes do povo e promover

mudanças no status quo é tarefa cara ao projeto dirigente. Assim, com precisão

cirúrgica arrematam os professores NELSON CAMATTA MOREIRA e RODRIGO

FRANCISCO de PAULA:

Com essa concepção, alcan-se a convicção de que a Constituição não pode ser entendida como entidade normativa independente e autônoma, sem história e temporalidade próprias. Não há uma teoria da Constituição, mas várias teorias da Constituição, adequadas à realidade concreta. A Constituição não deve estar apenas adequada ao tempo, mas também ao espaço. Afora o núcleo universal, capaz de ensejar “a” teoria geral da Constituição, ‘há um núcleo específico’ - que se amolda historicamente e espelha anseios variados em diversos Estados - e que pode chamar de núcleo de direitos sociais fundamentais plasmados em cada texto que atendam ao cumprimento das promessas da modernidade.218

216MOREIRA, 2010, p. 96. 217Ibid., p. 97. 218MOREIRA, PAULA, 2015, p. 58.

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Somente uma Constituição-Compromissária, na plenitude da eficácia dos seus

direitos fundamentais será capaz de atender as propostas da modernidade, tornando

os direitos fundamentais eficazes. Somente uma Carta que estabeleça

eficientemente os direitos fundamentais e os opere será capaz de modificar o

alarmante status quo de subcidadania reinante no Brasil. Elemento vital e obrigatório

a presente geração de juristas-hermeneutas e de toda sociedade.

3.4 POR UMA CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE: UM LONGO CAMINHO

As promessas da modernidade, tão sonhadas desde os primórdios de República e

ainda tão pouco cumpridas num Brasil de modernidade periférica depende em muito

da atuação criativa, séria e fundamentada dos hermeneutas. Não há possibilidade

de licenciar o jurista desta função.

É de se assentar que vozes e vultos durante a História da República Brasileira

apresentaram suas inteligências e teorias para a erradicação das desigualdades

reinantes ainda em terrae brasillis. Todavia, nada se aproxima, ao menos no plano

jurídico, da importância de uma Constituição Dirigente.

O Poder Constituinte de 1988 resultou de uma soma de forças ideológicas, políticas

e jurídicas em Assembleia. Evidentemente, as múltiplas proposições e conflitos

democráticos representavam as diversas aspirações. Todavia, com inspiração em

postulados humanistas, ratificou-se vários direitos sociais e sedimentou o ideário

democrático.219

Os compromissos assumidos pela Constituição Cidadã reconhecem a opção

soberana por uma Constituição Dirigente, isto é, que não se resume a um mero

ordenamento político, mas compõe-se também do campo econômico e social, na

tentativa de romper com o status quo, tão alarmante pós-ditadura.220 Nas sempres

seguras lições de NELSON CAMATTA MOREIRA e RODRIGO FRANCISCO DE

PAULA:

219MOREIRA, PAULA, 2015, p. 56. 220Ibid., p. 56.

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O modelo de Constituição Dirigente inspirou diversos membros da Assembleia Constituinte Brasileira. Por isso, a atual Constituição não almeja simplesmente retratar a realidade política vigente, como em modelos ultrapassados do século 20, mas também cuida da inserção de objetivos programáticos que não poderiam ser aplicados no momento da elaboração do texto constitucional. Em termos simples, os agentes do poder constituinte originário submetem os futuros governos e a sociedade à realização de princípios constitucionalmente aventados para a transformação da realidade social.221

Nesta quadra de século, é de se reconhecer a importância dos programas sociais e

econômicos expressos na Constituição da República, tendo em vista o

enfrentamento da desigualdade, subcidadania e negação de direitos. Não há como o

jurista escusar-se de cumprir as promessas constitucionais dirigentes sobre o

argumento inflexível da “separação política dos poderes”. A Constituição da

República apresenta objetivos à concretização dos valores fundantes da sociedade

brasileira:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.222

Diante aos princípios jurídicos que permeiam toda órbita dirigente constitucional e da

força normativa da constituição, requer-se do hermeneuta aplicação direta dos

programas constitucionais. É preciso afirmar e reafirmar a Carta Magna, não omitir-

se do projeto republicano.

Há um longo caminho. E a afirmação cotidiana dos fóruns, dos jurisconsultos, das

cátedras, dos defensores, dos órgãos essenciais à concretização da Justiça é que

fará com que a Modernidade chegue e abra uma “clareira” desconstruindo, vez por

todas, o triste retrato de negação de direitos na República Federativa do Brasil.

221MOREIRA, PAULA, 2015, p. 57. 222BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 23 out. 2018.

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4 CONCLUSÃO

A pesquisa deste trabalho buscou perscrutar a História do Brasil República sob a

perspectiva da modernidade tardia que naturalizou a desigualdade, a negação de

direitos e, consequentemente, a proliferação da subcidadania. Através das técnicas

dedutivas, explicativas bem como, mediante as lições de jurisconsultos e da doutrina

mais autorizada, adentrou numa temática ainda cara ao Direito Constitucional e à

Hermenêutica Jurídica.

Para tanto, utilizou-se das metáforas, palavras e elipses da produção literária de

Lima Barreto, notório escritor do realismo (pré-modernismo) nacional que retratara

pelas obras Recordações do Escrivão Isaías Caminha e Triste Fim de Policarpo

Quaresma o esvaziamento das promessas republicanas depositadas na nova forma

de governo e na Carta Magna de 1891.

Diante aos fatos, papeis e letras de lei, é de se refletir a importância do Direito e do

hermeneuta na construção de uma ordem jurídica capaz de modificar o status quo,

tornar a Constituição efetiva e capaz de iluminar taperas e mucambos, propiciar os

direitos fundamentais, além de erradicar a subcidadania no Brasil.

Vê-se que o problema hermenêutico está na postura ortodoxa dos juristas

contemporâneos seguirem um discurso fechado, geralmente atrelado ao senso

comum teórico dos juristas que, baseados no formalismo normativista operam uma

máquina incapaz de transformar o Direito e emancipar a hermenêutica gerando, por

conseguinte, distanciamento do saber jurídico da realidade social. São - os juristas -

meros reprodutores de normas pré-definidas, equidistantes aos fatos sociais e à

vivência nacional, pouco criativos na construção da norma sob a ótica ontológica e

deontológica. Nesse contexto, vê-se, por exemplo, a estandardização do Direito via

manuais para concursos, as cátedras a reproduzirem o tecnicismo dos tribunais, os

conceitos de “dentro” e “fora” da lei a garantir uma satisfação anêmica e pouco

fundamentada à sociedade.

A Ciência Jurídica requer, nesta quadra de século, hermeneutas que abram

“clareiras” isto é, reconheçam a linguagem como fundadora do mundo vez que, ter

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linguagem significa ter o próprio mundo. Esta perspectiva ilumina a construção da

norma ao caso concreto fazendo vez e curando as cicatrizes de um sistema

engendrado a propiciar desigualdades e permanência da negação de direitos.

Requer um giro linguístico-ontológico que reconheça um papel criativo ao jurista

sendo ele, diante à realidade, um garantidor da efetivação da Carta Maior. Em suma,

sendo a Constituição da República uma norma jurídica que possui ordenamento

político, social e econômica, diante à certeza de que princípios e objetivos

constitucionais possuem indiscutivelmente força além de meros “mandados de

otimização”, não há como o intérprete das leis se omitir de sua função de aplicador

da órbita constitucional nas lacunas e abismos de uma sociedade periférica.

Operadores jurídicos que apenas reproduzem fórmulas antigas de um sistema

fadado à opressão torna o Direito ferramenta de garantia da supremacia social

mediante os reflexos de colonialismo, patriarcalismo, personalismo e

patrimonialismo, ainda tão nítidos em terrae brasillis.

O hermeneuta deve está pronto a modificar esse triste quadro através da Teoria da

Constituição Dirigente. O Pergaminho Constitucional assume, assim, a postura

compromissária dirigente e urgente, tendo suas metas já definidas (e, por exemplo,

nos seus objetivos isto já possui muito valor e força) em favor das mudanças

estruturais que são essenciais ao presente século. O sincretismo teórico e político

sob a perspectiva privilegiadora do dirigismo financeiro mantenedor apenas dos

interesses privados deve ser superado pelo dirigismo social que prestigia os anseios

da contemporaneidade. A Constituição Dirigente emerge muito além de uma Carta

Política. Ela ordena e preocupa-se, em primeira instância, com as políticas públicas,

garantias e direitos fundamentais aptos ao processo de transformação.

Portanto, conclui-se que há um papel a ser trilhado pelo hermeneuta. É ele

depositário das aspirações dos subcidadãos e dos silenciados na História. Deve ser

criativo na construção normativa, aplicar a Constituição de modo dirigente sob a

perspectiva social e buscar mecanismos de tornar operante os direitos fundamentais

consagrados na Constituição Federal de 1988.

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