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FAE Centro Universitário Rev. Justiça e Sistema Criminal Curitiba v. 8 n. 14 p. 1-238 2016

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FAE Centro Universitário

Rev. Justiça e Sistema Criminal Curitiba v. 8 n. 14 p. 1-238 2016

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PresidenteFrei Guido Moacir Scheidt, ofm

Diretor-GeralJorge Apóstolos Siarcos

FAE Centro UniversitárioReitor da FAE Centro Universitário|Diretor-Geral da FAE São José dos Pinhais

Frei Nelson José Hillesheim, ofmPró-Reitor Acadêmico|Diretor Acadêmico|Diretor de Legislação e Normas Educacionais

Everton DrohomeretskiPró-Reitor Administrativo

Régis Ferreira NegrãoDiretor de Campus – FAE Centro Universitário

Cleonice Bastos PompermayerDiretor Acadêmico da Faculdade FAE São José dos Pinhais

Elcio Douglas Joaquim

Diretor de Pós-GraduaçãoJosé Vicente Bandeira de Mello Cordeiro

Secretário-GeralEros Pacheco Neto

Diretor do Instituto de Ciências JurídicasSérgio Luiz da Rocha Pombo

OuvidoriaSamar Merheb Jordão

Diretor de Relações CorporativasPaulo Roberto Araújo Cruz

EditorPaulo César Busato

Editoração FAECláudia Mara Ribas dos Santos (Revisão de texto) Edith Dias (Normalização)Maristela Ferreira de Andrade Gomes da Silva (Coordenação)Marcela Narvaéz Botero (Revisão de linguagem espanhol)Ticiane de Farias Pietro (Diagramação)

Coordenador do curso de DireitoKarlo Messa Vettorazzi

Coordenador do Grupo de Estudos Modernas Tendências do Sistema CriminalPaulo César Busato

Pesquisadores do Grupo de Estudos Modernas Tendências do Sistema CriminalAdriana Maria Gomes de Souza Spengler Airto Chaves Junior Alex Wilson Duarte Ferreira Alexandre Ramalho de FariasAlexey Choi CarunchoAline MacohinAlmério Vieira de Carvalho JúniorAmanda GehrAna Maria Lumi Kamimura MurataAnne Carolina Stipp Amador KozikoskiAntonio José Franco de Souza PêcegoBibiana Caroline FontellaBruno Augusto Vigo MilanezBruno Hauer DoetzerCamila Rodrigues ForigoCarolina de Freitas PaladinoClara Moura MasieroDaniel Fauth Washington MartinsDaniel Ferreira FilhoDaniel Rogério de Carvalho VeigaDanubia Andrade da Silva SantosDanyelle da Silva GalvãoDenise LuzDécio Franco DavidEmília Merlini GiulianiFabiano OldoniFernando Antônio Carvalho Alves de SouzaFrederico Manso BrusamolinFábio André Guaragni Fábio da Silva BozzaGabriel Ribeiro de Souza LimaGabriel Rodrigues de CarvalhoGustavo Britta ScandelariHeloísa Tabalipa PerussoIuri Victor Romero MachadoJacson Luiz ZilioJosé Roberto Wanderley de CastroJoão Guilherme Holzmann Duarte

Revista Justiça e Sistema Criminal. v. 1, n. 1, jul./dez. 2009 - Curitiba: FAE Centro Universitário, 2009 - v. ilust.

Semestral ISSN 2177 - 4811

1. Direito penal - Periódicos. I. FAE Centro Universitário

CDD 341.5

Os artigos publicados na Revista Justiça e Sistema Criminal são de inteira responsabilidade de seus autores. As opiniões neles emitidas não representam, necessariamente, pontos de vista da FAE Centro Universitário.

A Revista Justiça e Sistema Criminal tem periodicidade semestral e está disponível em www.sistemacriminal.org.Endereço para correspondência:

FAE Centro Universitário Rua 24 de Maio, 135 – 800230-080 – Curitiba – PR – Tel.: (41) 2105-4098

João Luiz de Carvalho BotegaJoão Paulo ArrosiJúlia Flores SchüttLarissa Horn ZambiaziLeandro Ayres FrançaLeandro Garcia Algarte AssunçãoLeonardo Henriques da SilvaLuiza Borges TerraLuiza Isfer RavanelloMaria Fernanda LoureiroMariana Andreola de Carvalho SilvaMarlus Heriberto Arns de OliveiraMatheus Almeida CaetanoMichelangelo Cervi CorsettiMárcio Soares BerclazOdoné Serrano JúniorPatrícia Possatti FerrigoloPedro Paulo Porto de SampaioPriscilla Placha SáRegina Lúcia Alves CarneiroRodrigo da Silva BrandaliseRodrigo Jacob CavagnariRodrigo Leite Ferreira CabralRodrigo Régnier Chemim GuimarãesSandra Regina Sbizera da Silva BusatoSilvia de Freitas MendesStella Maris PiegelStephan Nascimento BassoSérgio Valladão FerrazSílvia Neves MayerTahena Vidal AndradeTatiana Sovek Oyarzabal Yuri Frederico Dutra

Conselho Editorial e ConsultivoAdriana Maria Gomes de Souza Spengler (Univali)Alexandre Ramalho de Farias (MPPR)Alexey Choi Caruncho (FEMPAR)Alexis Couto de Brito (Universidade McKenzie)Alfonso Galán Munoz, Dr. (Universidad Pablo de Olavide) Ana Carolina Carlos de Oliveira (IBCCrim)Bernardo Feijoo Sánchez (Universidad Autónoma de Madrid/Espanha)Carlos Roberto Bacila, Dr. (UFPR)Carmen Gomez Rivero, Dra. (Universidad de Sevilla)Cezar Roberto Bitencourt, Dr. (PUC - Porto Alegre)Diego Araque (Universidad de Medellín, Colômbia)Dino Carlos Caro Coria (Pontificia Universidad Católica del Perú/Peru)Edgar Hernán Fuentes Contreras (Universidad Jorge Tadeo Lozano, Colômbia)Eduardo Demetrio Crespo (Universidad de Castilla-La Mancha/Espanha)Elena Nunez Castano, Dra. (Universidad de Sevilla)Fábio André Guaragni (Unicuritiba)Fernando Antonio Carvalho Alves de Souza (Universidade Maurício de Nassau)Francisco Munoz Conde, Dr. (Universidad Pablo de Olavide) Jacinto Nélson de Miranda Coutinho (UFPR)Ignacio Flores Prada (Universidad Pablo de Olavide/Espanha)Inigo Ortiz de Urbina Gimeno (Universitat Pompeu Fabra/Espanha)Isidoro Blanco Cordero (Universidad de Alicante/Espanha)José Manuel Damião da Cunha (Universidade Católica Portuguesa/Portugal)Leandro Ayres França (UCS) Leandro Gornicki Nunes (Univille)Manuel Maroto Calatayud (Universidad de Castilla-La Mancha/Espanha)Marcus Alan de Melo Gomes, Dr. (UFPA)Mauricio Stegemann Dieter, Msc (FAMEC)Michelângelo Cervi Corsetti (UCS)Nilo Batista (UFRJ)Patricia Faraldo Cabana (Universidade da Coruna/Espanha)Pricilla Placha Sá (UFPR, PUC-PR)Renato Vargas Lozano (Universidad Sergio Arboleda/Colômbia) Ricardo Rabinovich-Berkmann (UBA, Argentina)Rodrigo Régnier Chemim Guimarães, Msc (FAE, Unicuritiba) Rodrigo Sánchez Rios (PUC-PR)Salo de Carvalho (UFRGS)Sérgio Cuarezma Terán, Dr. (Universidad Politécnica de Nicaragua)Sérgio Valladão Ferraz (Proc. da República)Vera Malaguti Batista (ICC)

DistribuiçãoComunidade científica: 300 exemplares

Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus

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Apresentação

A Revista Justiça e Sistema Criminal chega ao número 14 refletindo uma maturidade de conteúdo que evidencia conjugar sua vocação internacional com uma já intensa produção do próprio Grupo de Pesquisas Modernas Tendências do Sistema Criminal e, ainda, uma penetração importante no cenário dogmático nacional, na medida exata do crescimento das atividades do grupo.

O volume inicia, em seu bloco internacional, pelo excelente trabalho do Catedrático de Direito Penal da Universidade de Alcalá, Madrid, e presidente da Fundación Internacional de Derecho penal, o Prof. Diego-Manuel Luzón Peña, tratando da polêmica questão da inexibilidade de conduta diversa e sua posição na teoria do delito, entre excludente de culpabilidade ou de antijuridicidade ou, até mesmo, de tipicidade. Em seu vertical estudo, o Prof. Luzón Peña defende que o fundamento da inexigibilidade é duplo, fático e normativo, e, por isso, devem ser duplos seus pressupostos: uma situação anormal de quase impossibilidade para determinar-se ou motivar-se pela norma, e uma valoração social e jurídica que não seja totalmente negativa da atuação escolhida. No trabalho se explora a parte geral do Código Penal Espanhol, comparando-o com o Código Penal Alemão, na discussão de tais fundamentos.

Completando a sessão internacional, o trabalho de Silvino Vergara reúne um conjunto de impressões sobre a polêmica questão do estado de intoxicação que é hoje fonte indireta de incriminações que se revelam como as responsáveis pelo maior nível de encarceramento do cenário penitenciário brasileiro. Daí a necessidade de pensá-lo desde um ponto de vista macro, como propõe o autor.

O segundo bloco, referente à doutrina nacional, começa com os trabalhos de membros do grupo de pesquisa, é aberto por minha contribuição e trata de uma das discussões mais polêmicas surgidas no Brasil em matéria criminal neste primeiro semestre de 2016: a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de admitir a execução de pena a partir da condenação havida em segundo grau, ainda que o caso esteja pendente de recursos às instâncias superiores. No artigo, saindo da comum polêmica inconstitucionalidade x efetividade, proponho um olhar sobre as verdadeiras razões da decisão da Corte e sobre as omissões nos discursos tanto daqueles que aplaudiram quanto os que execraram a decisão.

Na sequência, o trabalho de Ana Paula Kosak e Bruno Vigo Milanez sobre os limites aos poderes de investigação parlamentar. Outra vez, mostrando-se uma grande adição à linha de pesquisas de processo penal, o Prof. Bruno, neste escrito, acompanhado por sua pupila Ana Paula, trata da problemática questão da investigação parlamentar de inquérito, instrumento que tem se revelado importante para as minorias parlamentares e que permite o desempenho de funções fiscalizatórias pelo Poder Legislativo em conflito com os limites

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ao exercício de tal poder investigativo, uma vez que este também resta submetido às balizas constitucionais que regem, de modo geral, a referida atividade.

Fechando o bloco, o trabalho do Prof. Leandro Gornicki Nunes, especialista no tema da culpabilidade, apresenta um interessantíssimo estudo no qual propõe a formulação de um novo fundamento material para a culpabilidade, a partir da intersecção da lógica da Etica do Discurso na construção de consensos nos processos de criminalização e a Etica da Alteridade de Lévinas, acompanhada das mediações filosóficas da Etica da Libertação de Dussel.

Ainda no bloco de doutrina nacional, recebemos, outra vez, excelentes contribuições externas ao grupo. A primeira delas, o trabalho do Professor Felipe Vittig Ghiraldelli, do Centro Universitário da Fundação Educacional Guaxupé (UNIFEG), que, acompanhado de Ruano Fernando da Silva Leite, analisa o conflito de atribuições de polícia judiciária nas investigações dos crimes de homicídios dolosos praticados por policiais militares contra vítimas civis. A falta de tecnicidade das sucessivas alterações da legislação que trata da matéria demonstra a necessidade de uma adequação frente à Constituição Federal e às convenções internacionais de direitos humanos.

Na sequência, o trabalho de Marcelo Ortolan discute o novo modelo de responsabilização de pessoas jurídicas introduzido pela Lei n. 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção Empresarial, que instituiu o marco da responsabilidade objetiva da pessoa jurídica, tratando principalmente da natureza jurídica do instituto, que vagueia entre a natureza meramente administrativa com elementos de direito penal material. A análise se faz a partir dos parâmetros de culpabilidade fixados pela Constituição Federal, pretendendo constituir um contributo para a discussão do tema da “culpabilidade da pessoa jurídica” entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador.

O tema, naturalmente, reveste-se de importância na medida em que a situação jurídica da referida lei se aproxima muito do modelo legislativo italiano, onde uma lei de caráter administrativo trata de matéria similar, mas é reconhecida amplamente na doutrina como legislação penal.

O terceiro artigo deste bloco é oferecido por Ricardo Juozepavicius Gonçalves, tratando de fazer, segundo suas próprias palavras, “uma defesa nietzschiana ao abolicionismo penal de Louk Hulsman”. Para tanto, Ricardo, desde uma perspectiva abolicionista penal na linha adotada por Louk Hulsman, seleciona algumas das críticas de Luigi Ferrajoli dirigidas àquele, respondendo-as através da filosofia moral de Friedrich Nietzsche. Desse modo, demonstra as semelhanças do pensamento entre os dois autores, principalmente no que tange à “transvaloração de todos os valores”, visando que os sujeitos se tornem efetivos criadores dos seus próprios valores e recuperem sua autonomia perante os conflitos sociais.

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O artigo de Tatiane Imai Zanardi apresenta um estudo sobre a necessidade de existir a concreta possibilidade de defesa do imputado na investigação preliminar, por meio de defesa técnica. Para tanto, aborda a estrutura do inquérito policial, onde o acusado é tratado como um mero expectador. A autora pretende demonstrar a crise do modelo investigatório brasileiro – que é ainda inquisitório – com utilização das provas produzidas nele em posterior ação penal e não valorados apenas como elementos de informação. Traça, ainda, um paralelo com a investigação criminal defensiva existente no Direito Italiano e Norte-Americano, bem como com o Projeto de Lei n. 8.045/2010 que pretende introduzir o tema no ordenamento jurídico pátrio e o que efetivamente mudou com a edição da Lei n. 13.245/2016 que alterou o Estatuto da Ordem dos Advogados no Brasil.

Finalizando o bloco e concluindo a revista, o trabalho de Jaiza Sâmmara de Araújo Alves, Professora de Direito Penal da Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina-PE, apresenta original estudo sobre a indeterminação das medidas de segurança no ordenamento jurídico brasileiro, demonstrando como esta condição compõe uma grave violação do princípio de legalidade. Para tanto, realiza estudo comparativo entre as normas sobre as medidas de segurança no Brasil e na Argentina.

Com este conjunto de artigos alcança-se o escopo permanente da revista, de trazer trabalhos escritos em espanhol e português sobre temas de Direito penal material, Processo penal e Criminologia.

Mais uma vez, nossos agradecimentos à direção da FAE Centro Universitário Franciscano e ao coordenador do curso de Direito, Prof. Karlo M. Vettorazzi, por permitir, incentivar e viabilizar a produção desta revista, contribuindo muito para o engrandecimento do cenário jurídico penal brasileiro.

Curitiba, junho de 2016.

Paulo César Busato

Editor e Coordenador do Grupo de Pesquisas Modernas

Tendências do Sistema Criminal

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Índice

SEÇÃO I – DOUTRINA INTERNACIONAL

Exculpación por Inexigibilidad Penal Individual

Excuse by Criminal Law Unimposing

(Diego Manuel Luzón Pena) ________________________________________________________________ 9

Estado Tóxico

Toxic State

(Silvino Vergara Nava) _____________________________________________________________________ 37

SEÇÃO II – DOUTRINA NACIONAL

O que Não se Disse sobre a Decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) a Respeito do Habeas Corpus 126.292 e a Antecipação da Execução da Pena

What Left Unsaid About the Decision of the Supreme Court in the Habeas Corpus 126.292 About the Advance

of the Penalty’s Execution

(Paulo César Busato) ______________________________________________________________________ 55

Limites Fundamentais aos Poderes de Investigação ParlamentarFundamental Limits to the Congressional Powers of Investigation(Ana Paula Kosak, Bruno Augusto Vigo Milanez) ____________________________________________ 77

Culpabilidade e Alteridade: Limites da Criminalização em um Direito Penal HumanoCulpability and Alterity: Limits of Criminalization in a Human Criminal Law(Leandro Gornicki Nunes) _________________________________________________________________ 105

As Atribuições de Polícia Judiciária no Bojo das Investigações de Homicídios Dolosos Praticados por Policiais Militares contra CivisThe Duties of Judicial Police in Bunt of Homicide Investigation Intentional Commited by Police Military Against Civilian(Felipe Vittig Ghiraldelli, Ruano Fernando da Silva Leite) _____________________________________ 129

A Responsabilidade Objetiva da Pessoa Jurídica pela Prática de Atos de Corrupção: Norma Penal ou Administrativa?No-Fault Liability of Legal Entities for Corruption Practices: Criminal or Administrative Law?(Marcelo Ortolan) ___________________________________________________________________ 151

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O “Crepúsculo dos Ídolos” da Justiça Penal: Uma Defesa Nietzschiana ao Abolicionismo Penal de Louk HulsmanThe “Twilight of the Idols” of Criminal Justice: A Nietzschean Defense to the Louk Hulsman’s Penal Abolitionism(Ricardo Juozepavicius Gonçalves) ______________________________________________________ 167

Investigação Criminal Defensiva: Uma Prática a Ser DifundidaDefensive Criminal Investigation: Practice to be Promoted(Tatiane Imai Zanardi) ________________________________________________________________ 191

A Violação do Princípio da Legalidade Frente à Indeterminação Temporal das Medidas de SegurançaThe Violation of the Principle of Legality Front of the Temporary Indeterminación of the Security Measures(Jaiza Sâmmara de Araújo Alves) ________________________________________________________ 217

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9Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 8, n. 14, p. 9-36, jan./jun. 2016

EXCULPACIÓN POR INEXIGIBILIDAD PENAL INDIVIDUAL1

EXCUSE BY CRIMINAL LAW UNIMPOSING

Diego Manuel Luzón Pena2

RESUMEN

La inexigibilidad de otra conducta que puede exculpar o excluir la culpabilidad no es inexigibilidad general, que excluiría la antijuridicidad o al menos la tipicidad penal, sino una inexigibilidad penal subjetiva, es decir, inexigibilidad individual a efectos penales o criminales, que da lugar a que la conducta, aunque prohibida, se considere comprensible, explicable y por ello disculpable. Su fundamento es doble, fáctico y normativo, y por ello han de ser dobles asimismo sus presupuestos: una situación anormal de práctica imposibilidad o al menos enorme dificultad para el sujeto para determinarse o motivarse por la norma, y una valoración social y jurídica no totalmente negativa de la actuación en tal situación motivacional. Existen causas de exculpación por inexigibilidad penal subjetiva legalmente reconocidas, distintas según los ordenamientos: en la Parte general el miedo insuperable en el CP español, o en otros Códigos el exceso en la legítima defensa motivado por miedo, turbación o confusión, aunque no sean invencibles, o en el Código alemán el estado de necesidad disculpante causando incluso males mayores para salvar intereses vitales propios o de allegados; o en la Parte especial p. ej. el encubrimiento de parientes, o la exención personal de la embarazada en algunos abortos punibles. Y también son admisibles concretas causas supralegales de exculpación por inexigibilidad subjetiva, como el estado de necesidad que desborda los límites de proporcionalidad del CP español, pero disculpable por la situación personal extrema, o la obediencia no debida o el conflicto de conciencia no justificante, pero disculpables en ambos casos por la misma razón.

Palabras clave: Exigibilidad. Inexigibilidad. Culpabilidad. Exculpación. Miedo insuperable. Emociones o Afectos Asténicos. Encubrimiento o Favorecimiento de Parientes. Estado de Necesidad Disculpante. Obediencia Sólo Disculpante. Conflicto de Conciencia.

1 El trabajo ha sido elaborado en el marco del proyecto de investigación DER2014-58546-R, que dirijo en la Universidad de Alcalá, financiado por el Ministerio de Economía y Competitividad (antes Ciencia e Innovación) del Gobierno de España, Subdirección General de Proyectos e Investigación.

2 Catedrático de Derecho penal (Universidad de Alcalá, Madrid). Presidente de honor de la Fundación Internacional de Ciencias Penales (FICP). E-mail: [email protected]

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ABSTRACT

The unenforceability of another behavior is not a general unenforceability, which would exclude the illegality or at least the correspondence between the behavior and the legal description of a crime, but a subjective criminal unenforceability, that is to say, individual unenforceability to penal or criminal effects, which gives place to that the behavior, although prohibited, it is considered to be understandable, explicable and, for this reason, excusable. Its foundation is double, factual and normative, and for it its premises must be double: an abnormal situation of practical impossibility or at least enormous difficulty so that the individual is motivated by the norm,r den and not completely negative social and juridical evaluation of the behavior in such a situation. Causes of exculpation legally recognized exist for subjective criminal unenforceability, different according to the legislation: the insurmountable fear in the general part of the Spanish criminal code, or in other codes the excess in the self-defense motivated by fear, disturbance or confusion, although they are not invincible, or in the German code the state of necessity causing even major harm to save proper vital or of close persons interests; or in the special part, for example, the relatives concealment, or the personal exemption of the pregnant woman in some punishable abortions. And also there are admissible specific supra-legal causes of exculpation due to subjective unenforceability, like the state of necessity that exceeds the limits of proportionality of the Spanish criminal code, but excusable due to the extreme personal situation, or not due obedience or the not justifying conflict of conscience, but excusable in both cases owing to the same reason.

Keywords: Enforceability. Unenforceability. Culpability. Exculpation. Insurmountable Fear. Asthenic Emotions. Relatives Concealment. Excusable State of Necessity. Excusable Obedience. Conscience Conflict.

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11Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 8, n. 14, p. 9-36, jan./jun. 2016

1 INEXIGIBILIDAD PENAL INDIVIDUAL Y EXIGIBILIDAD INDIVIDUAL (FRENTE A LA GENERAL)

1.1 ORIGEN Y EVOLUCIÓN DE LOS CONCEPTOS: ENCUADRAMIENTO SISTEMÁTICO

El origen de la utilización de los conceptos exigibilidad e inexigibilidad se remonta, como es conocido, a la llamada “concepción normativa de la culpabilidad” desarrollada por Frank y otros desde 1907 y sobre todo desde la segunda década del siglo XX, según la cual para la culpabilidad es precisa reprochabilidad de la conducta al sujeto, y para ello no basta con la imputabilidad y con el dolo o la culpa, o incluso con la libertad o poder de actuar de otro modo, sino que es precisa la no anormalidad de la situación, lo que desde Goldschmidt y Freudenthal se denomina la exigibilidad de otra conducta y por tanto de abstenerse de realizar la conducta típica. Según esta concepción si hay exigibilidad, o sea, si al sujeto se le podía exigir jurídicamente tal abstención, habrá culpabilidad, pero si, dadas sus circunstancias personales y ambientales, le fuera inexigible la abstención, habrá exculpación y por tanto inculpabilidad.

Para la concepción normativa de la culpabilidad, formulada en las primeras décadas del siglo XX y que posteriormente se ha convertido en teoría dominante, la culpabilidad es la “reprochabilidad” (“Vorwerfbarkeit”) del hecho al sujeto, la posibilidad de hacerle a éste un reproche individual por su acción desde valoraciones y criterios normativos. Es Frank quien en 1907 idea el concepto de reprochabilidad3 (posibilidad de reprochar al sujeto por haber emprendido el hecho) como caracterización de la culpabilidad, según la cual la culpabilidad es el elemento que permite hacer un juicio de valor basado en el mandato de la norma sobre la parte interna del hecho; porque, por mucho que haya dolo en un hecho, o sea plena conexión psíquica con el acto, éste no es culpable si no le es reprochable al disculparse por un estado de necesidad o por inimputabilidad4.

3 FRANK, Reinhard von. Über den Aufbau des Schuldbegriffs. Berlin: BWV Verlag, 1907. p. 11-14. En p. 12 destaca que ello requiere tres elementos:1) la disposición espiritual normal del sujeto o imputabilidad, 2) la relación psíquica concreta del sujeto con el hecho o la posibilidad de tal relación: ver completamente el alcance del hecho o poder verlo (dolo o imprudencia) y 3) la disposición normal de las circunstancias en que obra el sujeto.

4 Cfr. Ibidem. p. 6 y ss. p. 12-15: en resumen se puede decir que criticó y rechazó con éxito la concepción psicológica porque puede haber casos de pleno nexo psíquico de unión con el hecho y sin embargo faltar la culpabilidad.

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Tal concepto normativo de la culpabilidad como reprochabilidad, que evidentemente parte de la premisa de la libertad o poder actuar de otro modo5 del sujeto, es desarrollado por Goldschmidt, que destaca que lo que importa no es el juicio de reproche sobre la disposición o cualidad subjetiva del hecho (juicio externo al hecho), sino la propia disposición defectuosa de la voluntad de la acción que posibilita el juicio de reproche6, y que basa la reprochabilidad en la contrariedad a deber (Pflichtwidrigkeit, o sea infracción de una implícita norma de deber para la conducta interna) y en la adicional exigibilidad (Zumutbarkeit)7: pues según él una infracción de una norma de deber puede sin embargo suponer una actuación sin culpabilidad en la medida en que el sujeto pueda invocar una causa de exculpación, y las causas de exculpación se basan en la no exigibilidad8, no sólo en el caso del estado de necesidad, sino también en el de las que denomina “otras causas de exculpación”9. El concepto normativo de culpabilidad también

5 Premisa sobreentendida (pues de lo contrario no se le puede reprochar el hecho al sujeto) en el propio concepto de reprochabilidad empleado por Frank y Goldschmidt, y formulada expresamente como punto de partida por Hegler (Die Merkmale des Verbrechens. Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, v. 36, n. 1, jan. 1915. p. 184 y s. – 19 ss., 184 ss.), y Freudenthal (Schuld und Vorwurf im geltenden Strafrecht. Tubingen: Mohr, 1922. p. 25); posteriormente Frank (Strafgesetzbuch für das Deutsche Reich. 18. ed. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1931), antes del § 51 II, relaciona expresamente la reprochabilidad con la “libertad” como elemento positivo de la culpabilidad. En la doctrina alemana se utiliza, más aún que el concepto de “libertad de voluntad” (Willensfreiheit), como equivalente el término “poder actuar de otro modo” (Anders-handeln-können); pero también la expresión “poder para ello” o “poder al respecto” (dafür-können), que en alemán es exactamente sinónimo de ser culpable, y a la inversa, no tener poder para ello o no poder hacer nada al respecto equivale a no ser culpable: er kann nichts dafür, que literalmente es “él no puede (hacer) nada al respecto” (o no tiene poder para ello), se traduce también como “él no tiene la culpa o no es culpable de ello”. WELZEL, Hans. Das deutsche Strafrecht. 11. ed. Berlin: W. de Gruyter, 1969. p. 140, señala que él mismo (Persönlichkeit und Schuld. Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, n. 60, 1941. p. 456) con su teoría final de la acción precisó el objeto de la reprochabilidad, “enlazando con una larga tradición filosófica y jurídica, como el ‘poder para ello, poder al respecto’ (‘Dafür-Können’) de la persona por su antijurídica formación de la voluntad”.

6 GOLDSCHMIDT, James. Der Notstand, ein Schuldproblem: mit Rücksicht auf die Strafgesetzentwürfe Deutschlands, Österreichs und der Schweiz. Wien: Manz, 1913. p. 161; Id. Normativer Schuldbegriff. Festgabe für Reinhard von Frank zum 70. Geburtstag 16. August 1930. Tübingen: J.C.B. Mohr, 1930. p. 432.

7 Cfr. Ibidem, p. 129 y ss. (en p. 162 y ss. se refiere al estado de necesidad ante peligro para la vida, en el que el ordenamiento no exige el heroísmo); Id. Normativer Schuldbegriff... op. cit. p. 428 y ss.

8 Ibidem. p. 162 y ss.; en p. 162: las causas de exculpación encuentran su fundamento “en una, por decirlo con Frank ‘motivación anormal’, en una situación en la que ‘según las circunastancias no se podía exigir al autor’ ajustarse al motivo del deber”; cfr. ACHENBACH, Hans. Hystorische und dogmatische Grundlagen der strafrechtssystematischen Schuldlehre. Berlin: Schweitzer, 1974. p. 118.

9 Así GOLDSCHMIDT, James. Gegenentwurf zu den Abschnitten „Die Straftat“ und „Täter und Teilnehmer“ des Strafgesetzentwurfs von 1919. Jurist Wochenschr, p. 252-258, 1922; cfr. ACHENBACH, Hans. Op. cit. p. 145. Tb. dice resumiendo GOLDSCHMIDT, James. Normativer Schuldbegriff... op. cit. p. 442: el no dejarse motivar por la representación del deber a pesar de su exigibilidad es contrariedad a deber (cit. por ROXIN, Claus. Strafrecht: Allgemeiner Teil. 4. ed. München: Beck, 2006. v. 1, § 19/13; Id. Derecho penal... op. cit., § 19/11).

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13Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 8, n. 14, p. 9-36, jan./jun. 2016

fue desarrollado ulteriormente por Hegler, que sostiene que en cuanto a su contenido material la reprochabilidad o posibilidad de reproche se basa en el dominio del hecho por el sujeto, en que el sujeto haya sido dueño del mismo en su disposición de ese modo10; y por Freudenthal, que amplía el concepto de inexigibilidad (Unzumutbarkeit) de conducta conforme a la norma como causa general (supralegal, aunque a veces legal) de exclusión de la culpabilidad11. A partir de entonces la teoría normativa de la culpabilidad se convierte con bastante rapidez en totalmente mayoritaria en Alemania y fuera de ella y continúa siéndolo, aunque con muchas variantes en la concreta formulación de su fundamento o fundamentos y en cuanto al alcance de la exclusión de la reprochabilidad por inexigibilidad u otros motivos12.

1.2 UBICACIÓN SISTEMÁTICA DE LA INEXIGIBILIDAD

Aunque el concepto de inexigibilidad se concibe en sus inicios – Goldschmidt, Freudenthal – con carácter subjetivo, individual: circunstancias excepcionales o muy difíciles eliminan en el sujeto el poder evitar la comisión del hecho, sin embargo esos mismos autores a veces se refieren a que el ordenamiento en esas circunstancias no puede exigir normalmente a nadie el heroísmo u otro comportamiento, y manejan por tanto un concepto generalizador de inexigibilidad13. En el desarrollo doctrinal posterior fue más frecuente considerar que la concepción subjetivista de la inexigibilidad era peligrosa para la igualdad y la seguridad jurídica y defender por ello un concepto generalizador de inexigibilidad como

10 HEGLER, August. Op. cit. p. 184-197. Cfr. detalladamente al respecto ACHENBACH, Hans. Op. cit. p. 106 y ss.

11 Cfr. FREUDENTHAL, op. cit. passim; tb. GOLDSCHMIDT, James. Normativer Schuldbegriff... op. cit. p. 428-442. Partiendo de que el poder individual del sujeto, de si había estado en situación y condiciones de actuar de otro modo, o sea conforme a las exigencias del Derecho, es presupuesto de la posibilidad de reproche, FREUDENTHAL, Berthold. Op. cit. p. 25 y ss., sostiene que no es reprochable y no merece pena “quien según las circunstancias del hecho no podía evitar su comisión”, bien por peligros para la existencia económica y social o por coacción amenazante que fuerza a infringir la norma, o, dicho en otros términos (7 y ss.), falta el poder y con ello el reproche de culpabilidad cuando para no cometer un delito “habría hecho falta una fuerza y capacidad de resistencia como normalmente no se puede exigir a nadie”.

12 Sobre las diversas posiciones cfr. p.ej. JESCHECK, Hans Heinrich. Lehrbuch des Strafrechts: Allgemeiner Teil. 4. ed. Berlin: Duncker & Humblot, 1988. p. 378 y ss., 454 y ss.; JESCHECK, Hans Heinrich. Tratado de derecho penal: parte general. Trad e ad. de direito espanhol por Santiago Mir Puig e Francisco Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, 1981. p. 578 y ss. p. 653 y ss.; ROXIN, Claus. Strafrecht... Op. cit., § 19/18 y ss., § 22/1 y ss., 142 y ss.; Id. Derecho penal... Op. cit., § 19/16 y ss., § 22/ 1 y ss. p. 138 y ss.; LUZÓN PEÑA, Diego Manuel. Lecciones de Derecho penal: parte general. 3. ed. amp. y rev. Valencia: Tirant lo Blanch, 2016. p. 26/17 y ss. p. 28/20 y ss.

13 Cfr. las citas al respecto de GOLDSCHMIDT y FREUDENTHAL en notas 6-9 y 11.

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causa (para algunos supralegal) de exculpación basada en la capacidad de motivación del hombre medio14. Por otra parte ha habido mucha discusión sobre si la inexigibilidad es una causa general, incluso supralegal, de exculpación, o, como argumentan otros, es inadmisible por enormemente imprecisa e insegura y atentatoria contra la eficacia preventivo-general del Derecho penal, o si es admisible solamente como un simple principio regulativo15.

Sin embargo, desde Henkel se ha puesto de manifiesto, y así lo sostiene con razón parte de la doctrina, que la inexigibilidad es un criterio regulativo jurídico general, que además de en otros campos jurídicos en Derecho penal opera en los diversos elementos de la estructura general del delito; y que, si es inexigibilidad sólo individual, excluirá ciertamente la culpabilidad, pero si es inexigibilidad general, afecta a la antijuridicidad16.

Y personalmente, dando un paso más, he desarrollado la concepción de que, si se trata de no exigibilidad por circunstancias particulares de un sujeto concreto, es una mera causa de inculpabilidad o de exculpación17, pero que si se trata de inexigibilidad

14 Así p.ej. WEGNER, Arthur. Kriminelles Unrecht, Staatsunrecht und Völkerrecht. 7. ed. Hamburg: Verlag, 1925 col. 581 y ss.; GOLDSCHMIDT, James. Normativer Schuldbegriff... op. cit. p. 448 y ss.; HENKEL, Heinrich. Der Notstand nach gegenwärtigem und künftigen Recht. München: Beck, 1932. Cfr. al respecto ACHENBACH, Hans. Op. cit. p. 147 y ss.; tb. JESCHECK, Hans Heinrich. Lehrbuch des Strafrechts... op. cit. p. 454 (Id. Hans Heinrich. Tratado de derecho penal... op. cit. p. 687), destacando que así se acogió en el § 25 del Proyecto 1930 de StGB y con cita tb. de jurisprudencia del RG acogiendo esa posición.

15 Cfr. sobre las diversas posiciones ACHENBACH, Hans. Op. cit. p. 143 y ss.; JESCHECK, Hans Heinrich. Lehrbuch des Strafrechts... op. cit. p. 454 y ss. (PG, 1981, p. 686 y ss.); ROXIN, Claus. Strafrecht... Op. cit., § 22/142 y ss.; Id. Derecho penal... Op. cit., § 22/138 y ss. La concepción de la exigibilidad e inexigibilidad como principio regulativo ha tenido desde HENKEL, Heinrich. Zumutbarkeit und Unzumutbarkeit als regulatives Rechtsprinzip. Festschrift für Mezger, Munchen und Berlin, p. 249-309. 1954, mucha aceptación.

16 Cfr. HENKEL, op. cit. p. 303 y ss.; siguiéndole ROXIN, Claus. „Schuld” und „Verantwortlidikeit” als strafreditlidie System-Kategorien. In: ROXIN, Claus; BRUNS, Hans-Jürgen; JÄGER, Herbert. Grundfragen der Gesamten Strafrechtswissenschaft: Festschrift für Heinrich Henkel zum. 70 Geburstag. Berlin; New York: W. de Gruyter, 1974. (p. 171 y ss.) p. 184; Problemas básicos del Derecho penal. Trad. e notas por Diego-Manuel Luzon Peña. Madrid: Reus, 1976, p. 210 y ss., 221 y ss.; LUZÓN PEÑA, Diego. Aspectos esenciales legítima defensa. Barcelona: Bosch, 1978. p. 22 y s. Aceptando también que la exigibilidad puede operar dentro de la tipicidad y la antijuridicidad, SAINZ CANTERO, José A. La exigibilidad de conducta adecuada a la norma en Derecho penal. Granada: Universidad de Granada, 1965. p. 65 y ss. p. 122 y ss.; Id. Lecciones de Derecho penal: parte general. 3. ed. Barcelona: Bosch, 1990. p. 724 (p. 723 y ss.); CUELLO CONTRERAS, Joaquin. El Derecho penal español: parte general. 3. ed. Madrid: Dickinson, 2002, XI/281.

17 Uso los términos como sinónimos, porque no creo que haya que seguir estrictamente la distinción excusión de la culpabilidad o inculpabilidad / exculpación. Una parte importante de la doc. alemana divide las causas de inculpabilidad en “causas de exclusión de la culpabilidad” (Schuldausslieβungsgründe) en sentido estricto, que serían los supuestos de inimputabilidad y el error de prohibición invencible, y “causas de exculpación o disculpa” (Entschuldigungsgründe), donde estarían las causas de inexigibilidad subjetiva como el estado de necesidad disculpante o impulsos pasionales asténicos como el miedo; la diferente denominación responde a la idea de que en las primeras está excluida de entrada la culpabilidad porque

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general, o sea que no se puede, no se quiere o no conviene exigir a nadie en ciertas circunstancias que se abstenga de cometer un hecho, ello excluye la antijuridicidad o al menos la antijuridicidad penal o tipicidad penal. En efecto, hay que precisar que, si se trata de inexigibilidad jurídica general, entonces efectivamente excluirá toda la antijuridicidad y constituirá una causa de justificación supralegal; pero que puede haber supuestos en que jurídicamente (extrapenalmente) sí sea exigible abstenerse del hecho, pero no sea exigible bajo amenaza de pena a nadie tal comportamiento, porque no merezca la pena o no convenga exigir con tanta dureza la conducta totalmente correcta, sacrificada, solidaria, etc.: inexigibilidad penal general, que es una causa de exclusión de la tipicidad penal o del injusto penal, pero no de la responsabilidad jurídica extrapenal18.

Tal exigibilidad o no exigibilidad, general o individual, se decide conforme a criterios sociales y jurídicos – jurídicos generales o jurídicopenales –, unas veces plasmados expresamente en la ley, y otras derivados de principios generales jurídicos o jurídico-penales.

el sujeto inimputable o en error de prohibición invencible no podía actuar de otro modo o, según otro punto de vista, tiene totalmente excluida la posibilidad de motivación por la norma, pero en las segundas habría en principio posibilidad de culpabilidad ya que se podría actuar de otro modo, pero la dificultad situacional da lugar a la disculpa, a la comprensión e indulgencia: así JESCHECK, Hans Heinrich. Lehrbuch des Strafrechts... op. cit. [JESCHECK, Hans Heinrich. Tratado de derecho penal: parte general. Trad e ad. de direito espanhol por Santiago Mir Puig e Francisco Muñoz Conde. Barcelona: Bosch, 1981], § 43 II; JESCHECK, Hans Heinrich; WEIGEND, Thomas. Lehrbuch des Strafrechts: Allgemeiner Teil. Berlin: Duncker & Humblot, 1996 § 43 II; SCHONKE, Adolf Schonke et al. Strafgesetzbuch: Kommentar. 28. ed. München: C.H. Beck, 2010, antes del § 32 108 y s.; en la doc. española la recoge CEREZO MIR, José. Curso de Derecho penal español: parte general. Tomo II. 6. ed. Madrid: Tecnos, 1998. v. 6. p. 273, nota 121; Curso de Derecho penal español: parte general. Tomo III. Madrid: Tecnos, 2001. v. 2. p. 34, nota 89 (pero III, 34 y ss. prefiere llamarlas a todas causas de inculpabilidad); exponiendo meramente la distinción LUZÓN PEÑA, Lecciones... op. cit., 2016, p. 28. Cfr., aunque críticamente, ROXIN, Claus. Claus. Strafrecht... op. cit., § 19/56 y s.; Id. Derecho penal... Op. cit., § 19/48 y ss. En contra de esa bipartición SCHMIDHÄUSER, at Lb, 2. ed. 1975, 458 n. 1.

18 Esta distinción la he propuesto en trabajos anteriores desde LUZÓN PEÑA, Diego Manuel. Indicaciones y causas de justificación en el aborto. Cuadernos de Política Criminal, n. 36, p. 629-662, 1988; La relación del merecimiento de pena y de la necesidad de pena con la estructura del delito. Anuario de Derecho penal y Ciencias Penales, v. 46, n. 1, p. 21-34, 1993.; en: LUZÓN PEÑA, Diego Manuel; MIR PUIG, Santiago (Ed.). Causas de justificación y de atipicidad en Derecho penal. Pamplona: Arazandi, 1995. p 31 y s.; LUZÓN PEÑA, Diego Manuel; MIR PUIG, Santiago (Ed.). Causas de justificación y de atipicidad en Derecho penal. Pamplona: Arazandi, 1995, p. 989, p. 3552 y ss.; en LUZÓN PEÑA, Diego Manuel (Dir.). Enciclopedia Penal Básica. Granada: Comares, 2002. p. 831 y ss. Y la he desarrollado ampliamente en diversos grupos de casos y con bastantes ejemplos primero en Curso PG I, 1. ed. 1996. p. 568 y ss., 648 y ss.; después en Lecciones... op. cit., 2012 y 2016, p. 20/50 y ss. p. 22/231 y ss., y desarrollando tb. la inexigibilidad penal individual en la culpabilidad y en todas las causas de exculpación en 26/40 y ss., 28/22 y ss. ROSO CAÑADILLAS, Miedo insuperable, en LUZÓN PEÑA, Enciclopedia... op. cit. p. 952 y s., comparte en general y para el miedo insuperable mi concepción de la “inexigibilidad penal individual” como fundamento de las causas de exculpación frente a la inexigibilidad jurídica general (causas de justificación) y la inexigibilidad penal general (causas de exclusión de la tipicidad penal), ya anticipada por mí en: Curso derecho penal: parte general. Madrid: Editorial Universitas, 1996. p. 568 y ss. p. 648 y ss.

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2 LA EXCULPACIÓN POR INEXIGIBILIDAD PENAL INDIVIDUAL

2.1 LA CONCEPCIÓN PROPIA

A mi juicio, la formulación de la inexigibilidad dada por sus creadores (especialmente Goldschmidt y Freudenthal) y repetida habitualmente por la doctrina que acepta el criterio19, hay que matizarla para que sea un criterio general que, aunque precise ulteriores concreciones en el fundamento de las situaciones concretas, resulte adecuado para explicar de modo suficiente y coherente la no reprochabilidad de una conducta y por tanto la exclusión de la culpabilidad Por una parte, como acabo de anticipar, es inexacto utilizar el baremo de la inexigibilidad general o al hombre medio para explicar la no culpabilidad o disculpa, sino que hay que partir como principio de la inexigibilidad subjetiva-individual (v.gr. por miedo subjetivamente insuperable)20. Además tampoco se puede fundamentar la exculpación en la no exigibilidad sin más. No se puede decir que en situaciones anormales o extremas el Derecho no puede exigir al sujeto otra conducta, o argumentar que no se puede exigir el heroísmo, puesto que, cuando, por mucho que lo motive una situación de gran dificultad, se va a lesionar intereses superiores (preponderantes) a los salvaguardados y por eso jurídicamente no se permite hacerlo, es decir que no hay justificación, el ordenamiento ya no considera heroico, sino debido, cumplir esa prohibición, y por tanto el Derecho sí puede (lícitamente) exigir al sujeto cumplir la conducta ordenada o abstenerse de realizar la prohibida por mucho que sea difícil hacerlo. Así que en tales casos sigue habiendo exigibilidad jurídica general. Pero subjetivamente no hay exigibilidad penal frente a ese individuo en tales condiciones.

En efecto, lo que ocurre en estos supuestos es: 1º) Que, como ya hemos visto, la norma jurídico penal fácticamente no puede motivar o determinar normalmente, sino con enormes dificultades, al sujeto en una determinada situación especial o anómala; hay que precisar que no es que no se pueda motivar al sujeto y éste haya perdido totalmente su libertad, es que resulta en esas circunstancias extremas muy difícil, sumamente difícil

19 Cfr. supra I.1 y 2 y doctrina cit. en notas 6-9, 11-14.20 Así p.ej. he defendido (en LUZÓN PEÑA, Diego Manuel. Lecciones… op. cit., 2012 y 2016. p. 28/49-52),

respecto de la causa de exculpación de miedo insuperable del art. 20, 6º, que como base de partida lo decisivo es la insuperabilidad subjetiva del miedo para el sujeto concreto en sus circunstancias concretas, aunque p.ej. sea una persona muy miedosa y en cambio el hombre medio normal pudiera superar perfectamente ese miedo; pero que excepcionalmente se puede utilizar a continuación el criterio de lo esperable del sujeto normal para en el caso concreto ampliar el concepto de lo insuperable en sujetos expcepcionalmente duros y fríos.

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motivarle al comportamiento jurídicamente correcto y por ello no es adecuado ni posible exigírselo bajo amenaza de pena y con un reproche criminal, porque desde luego tiene su libertad y capacidad de determinación enormemente coartada; resumidamente: suma dificultad motivacional para la exigibilidad jurídica individual significa e implica la posibilidad de inexigibilidad penal individual. Y 2º) ocurre que normativamente la situación anormal que produce la gran dificultad motivacional (como miedo o similar, obediencia a órdenes, parentesco próximo a la persona ayudada), jurídica y socialmente se valora, si no positivamente, no de modo totalmente negativo y se considera humanamente entendible. Por eso se comprende, se explica y se disculpa al sujeto si infringe la norma en una situación así, aunque la conducta siga estando objetivamente desvalorada, reprobada y prohibida (es decir, aunque jurídicamente se exija objetivamente a cualquier ciudadano no cometerla), y por ello se considera que individualmente no le es penalmente exigible no cometerla, es decir no procede exigírselo bajo amenaza de pena y considerándolo un delincuente culpable de la infracción. Por ello debe insistirse en que en el elemento culpabilidad la inexigibilidad no es sólo individual o subjetiva, frente a la inexigibilidad general-objetiva de la exclusión de la tipicidad y la antijuridicidad, sino que además no es inexigibilidad jurídica individual, ya que jurídicamente, en el conjunto del ordenamiento sí se exige al individuo, pese a la dificultad, no cometer la conducta ilícita y por eso su comisión es antijurídica, prohibida; en la (exclusión de) la culpabilidad se trata de la inexigibilidad penal individual21.

2.2 FUNDAMENTO

Su fundamento es, como se ha visto, fáctico (gran dificultad o cuasi imposibilidad de la motivación normal por razones situacionales extremas) y normativo o valorativo (valoración no negativa de la concreta dificultad motivacional situacional); y por ello la admisión de la inexigibilidad penal subjetiva como eximente se basa en el principio de

21 Cfr. LUZÓN PEÑA, Diego Manuel. Curso de Derecho penal. Madrid: Editorial Universitas, 1996. p. 568 y s.; Lecciones... op. cit., 2016, p. 28/22 y ss., tb 20/50, 26/40. ROSO CAÑADILLAS, Raquel. Miedo insuperable In: LUZÓN PEÑA, Diego Manuel (Dir.). Enciclopedia Penal Básica. Granada: Comares, 2002. p. 952 y s., comparte en general y para el miedo insuperable mi concepción de la “inexigibilidad penal individual” como fundamento de las causas de exculpación frente a la inexigibilidad jurídica general (causas de justificación) y la inexigibilidad penal general (causas de exclusión de la tipicidad penal), ya anticipada por mí en Curso PG I, 1996. p. 568 y ss. p. 648 y ss. Sin llegar a esas precisiones MORALES, en QUINTERO OLIVARES, Gonzalo; MORALES PRATS, Fermín. Comentarios el Código penal español. 6. ed. Cizur Menor: Thomson-Aranzadi, 2011, p. 238 y ss.; QUINTERO OLIVARES, Gonzalo e MORALES PRATS, Fermín. Parte general del derecho penal. 4. ed. Cizur Menor: Thomson-Aranzadi, 2010. p. 594 y ss., sí que habla con claridad de que en la ausencia de culpabilidad por no exigibilidad, frente al extendido criterio objetivo-generalizador, se trata de inexigibilidad subjetiva o exigibilidad subjetiva, defendiendo (Coment, 238; PG, p. 595) un “fundamento que, en cualquier caso, reclama un juicio individual normativo anclado en el criterio de inexigibilidad subjetiva”.

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eficacia o idoneidad y en el principio de culpabilidad – entendida conforme a la concepción normativa – con sus correspondientes fundamentos jurídico-constitucionales22.

2.3 SIMILITUDES Y DIFERENCIAS CON OTRAS CONCEPCIONES

La concepción propia aquí expuesta evidentemente constituye una perspectiva divergente en algunos aspectos de las opiniones usuales, pero ciertamente tiene algunos puntos de contacto y ciertas similitudes con otras concepciones defendidas en la doctrina. Es cierto que la precisión de que la inexigibilidad subjetiva ha de ser inexigibilidad penal, por lo que alcanzo a ver, no se encuentra entre los numerosos defensores de la inexigibilidad como base común de las causas de exculpación o disculpa. Pero en cuanto a los dos fundamentos materiales de la inexigibilidad penal individual sí que existen ciertas coincidencias con otros puntos de vista.

Respecto del fundamento fáctico de la inexigibilidad, es decir, la dificultad y disposición anormal de la situación que perturba una determinación normal por la norma, en general existe una coincidencia bastante amplia. Ya antes de la aparición de la idea de (in)exigibilidad Frank incluía – además de dolo e imprudencia – entre los elementos de la culpabilidad no sólo la disposición normal del autor, sino también la “disposición normal de las circunstancias en las que el autor obra” y por ello afirmaba que la culpabilidad desaparece en caso de disposición mental anormal y de configuración o disposición anormal de las circunstancias concomitantes, así ante una motivación anormal por estado de necesidad o por otras circunstancias reguladas legalmente23. De ese modo estaba ampliando la idea de von Liszt de la normalidad de la determinabilidad o motivación como fundamento de la concurrencia o ausencia de ‘responsabilidad’ – una idea que sin embargo Liszt concentraba en la imputabilidad24. Y desde la introducción del criterio de la exigibilidad o inexigibilidad por Goldschmidt y Freudenthal se repìte tal caracterización25, tanto entre los

22 Así LUZÓN PEÑA, Diego Manuel. Lecciones... op. cit. 2012 y 2016, p. 28/24: fundamento material de la inexigibilidad penal subjetiva en el principio de efectividad y el de culpabilidad con su base constitucional. En general sobre los principios de efectividad y culpabilidad y sus respectivos fundamentos constitucionales cfr. LUZÓN PEÑA, Diego Manuel. Lecciones... op. cit. 2012 y 2016, p. 21 y ss. p. 26.

23 Cfr. FRANK, op. cit. p. 12 y ss, p. 14 y s.24 Cfr. LISZT, Franz von. Strafrechtliche Aufsätze und Vorträge, 2 Bde, Berlin, 1905. p. 43 y 85: la

responsabilidad exige salud mental, o sea ube“determinabilidad normal por motivos”; p. 48: “Quien reacciona de modo anormal, es decir, distinto al del hombre medio normal, no es imputable”.

25 Cfr. GOLDSCHMIDT, James. Der Notstand, ein Schuldproblem... p. 162 y ss.; p. 162: las causas de exculpación encuentran su fundamento “en una, por decirlo con Frank, ’motivación anormal’, en un “motivo subjetivamente preponderante...”; FREUDENTHAL, op. cit. p. 7 y ss.; v. para más detalles supra notas 7-9, 11.

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partidarios como entre los no partidarios de la inexigibilidad como fundamento material de las causas de exculpación. No obstante, las caracterizaciones divergen en cuanto al punto de si la configuración anormal de la situación por presión, necesidad, peligro etc. excluye o al menos perturba totalmente el poder o posibilidad de determinación por la norma, interpretación que era más usual en las primeras concepciones26, o si por el contrario en muchos casos la motivabilidad sólo está considerablemente alterada y por ello en primer lugar sólo atenúa la culpabilidad, a lo que se suma una segunda atenuación o disminución de la culpabilidad por reducción del injusto debida a la salvación de otros bienes jurídicos en el estado de necesidad exculpante o por otros motivos valorados positivamente, lo que como resultado conduce a la exculpación: así la hoy dominante teoría de la doble disminución o atenuación de la culpabilidad27. A mi juicio, las causas de inexigibilidad penal subjetiva a veces excuyen totalmente o de modo prácticamente total la determinabilidad por la norma, mientras que en otros casos dichas causas ciertamente sólo perturban muy profundamente esa determinabilidad normal, pero la valoración no negativa o no totalmente negativa de la situación permite la comprensión, indulgencia y disculpa del hecho. Por tanto, sentada esa salvedad (o sea, que aveces la motivabilidad normal está ya suprimida) es preferible la segunda concepción.

No es tan frecuente, en cambio, en la doctrina la exigencia adicional de algo similar a una valoración no negativa de la situación motivacional anormal, pero sí cabe mencionar algunos ejemplos en este sentido.

1) Así Goldschmidt sostuvo ya la opinión de que las causas de exculpación o disculpa, que implican una motivación anormal y excluyen la exigibilidad, hallan su fundamento en un “motivo subjetivamente preponderante y aprobado” 28. A mi juicio esto va demasiado lejos, pues el motivo y la situación motivacional no necesitan estar aprobados (ello se correspondería más bien con la posibilidad de una exclusión de la antijuridicidad o al menos de la tipicidad penal), sino que basta con que social e incluso jurídicamente tal situación no esté totalmente desaprobada o valorada negativamente

26 Esto es especialmente claro p.ej. en FREUDENTHAL, op. cit. p. 7 y ss. p. 25 y ss.: es disculpable quien según las circunstancias del hecho no pudo evitar cometerlo.

27 Cfr. con más detalles p.ej. BERNSMANN, Klaus. Entschuldigung durch Notstand, Köln, 1989. p. 204 y s.; ROXIN, Claus. Strafrecht: Allgemeiner Teil. 4. ed. München: Beck, 2006. v. 1. [Id. Derecho penal... Op. cit.], 2006, § 22/9; SCHÖNKE, Adolf et al. Strafgesetzbuch für das Deutsche Reich. 28. ed. 2010, antes del § 32 111.

28 GOLDSCHMIDT, James. Der Notstand, ein Schuldproblem... op. cit. p. 162. V. tb. supra nota 9; cfr. ACHENBACH, Hans. Op. cit. p. p. 118.

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para que pueda ser considerada como disculpable. 2) Mucho más habitual es utilizar los calificativos “comprensible, entendible” o “explicable” y por ello excusable o disculpable para la comisión de un hecho en una situación muy difícil y anormal para el agente29; pero la fundamentación – que no se suele explicitar – de que un hecho sea explicable o comprensible es por una parte la comprensión para con la debilidad humana ante una situación de necesidad, coacción o muy difícil por otras razones, y por otro lado el hecho de que se trate de una situación valorada no negativamente o al menos no de modo totalmente negativo. 3) Finalmente cabe ghacer referencia a que la concepción de Roxin, según la cual la exclusión de la “responsabilidad” como categoría adicional tras la culpabilidad se basa en la falta de necesidades tanto preventivo generales como preventivo especiales de pena30 – concepción que Schünemann, nuestro admirado homenajeado, comparte plenamente31, si bien parte de otra perspectiva, sin embargo materialmente coincide de modo bastante amplio con el punto de vista aquí defendido: pues si frente a una acción no existe ninguna necesidad preventiva (general ni especial), es seguro que esa acción no está valorada negativamente o al menos no de modo totalmente negativo. Pero mi concepción permite una exculpación más amplia: puede haber una valoración no negativa o no totalmente negativa, por una parte por razones (p.ej. éticas, sociales, antropológicas) primariamente distintas de las necesidades preventivas; y por otra parte la valoración de la situación puede no ser totalmente negativa incluso en casos de subsistir en principio una cierta aunque reducida necesidad preventiva.

29 Tales calificativos se emplean con tanta frecuencia que no hacen falta las citas; a título de ejemplo cabe mencionar solamente a ROXIN, Claus. Strafrecht... Op. cit., § 22/33 (“motivo comprensible”, indulgencia), 88 (“lógico o comprensible”, “disculpable”), 30, 35, 50, 135 [ROXIN, Claus. Derecho penal... Op. cit. p. 131] (“comprensión” en la opinión pública o en la colectividad).

30 Concepción ya esbozada por ROXIN, Claus. Kriminalpolitik und Strafrechtssystem. 2. ed. Berlin: W. de Gruyter, 1973, p. 33 y ss.; Política criminal y sistema del Derecho penal. Barcelona: Bosch, 1972. p. 67 y ss.; luego desarrollada por él a partír de su artículo en FS-Henkel, 1974. p. 182 y ss. = Problemas básicos del derecho penal. Madrid: Reus, 1976. p. 210 y ss.; FS-Bockelmann, 1979, p. 279 y ss.; Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft 96 1984, 641 y ss.; SchwZStr 104 1987, p. 356 y ss.; JuS 1988, p. 425 y ss.; FS-Arth.Kaufmann, 1993, p. 519 y ss.; FS-Kaiser, 1998, p. 885 y ss.; FG-Brauneck, 1999, p. 385 y ss.; FS-Mangakis, 1999, p. 237 y ss.; y totalmente completada en AT I, 4. ed. 2006 [ROXIN, Claus. Derecho penal... Op. cit.], §§ 19-22.

31 Cfr. Schünemann en: SCHÜNEMANN (Ed.). Grundfragen des modernen Strafrechtssystems. Berlin; New York: W. de Gruyter, 1984. p. 169.

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2.4 CRITERIOS Y CARACTERÍSTICAS DE LA INEXIGIBILIDAD PENAL INDIVIDUAL SEGÚN LOS SUPUESTOS

La inexigibilidad penal individual o subjetiva, y la correlativa atenuación por menor exigibilidad penal individual, se decide conforme a criterios sociales y jurídico penales – ciertamente basados en valoraciones sociales –, unas veces en supuestos plasmados expresamente en la ley, y otras como eximentes supra legales derivadas del principio general jurídico-penal de exigibilidad/inexigibilidad penal individual y por ello análogas en su fundamento a las legales.

En las causas de inexigibilidad penal subjetiva legalmente reconocidas, aunque se atiende a la situación motivacional individual, hay muchas veces una cierta generalización y se puede producir una presunción legal de dicha inexigibilidad subjetiva: así sucede p.ej. en Derecho español en la exención personal para la embarazada en ciertos casos de aborto, en el encubrimiento de parientes próximos (infra III. 2); o en las regulaciones del estado de necesidad disculpante por peligro para la vida, integridad o libertad o del exceso en la legítima defensa por determinados estados afectivos en los sistemas que las recogen expresamente como eximentes; o en muchos casos de error de prohibición considerados como errores invencibles32 (pero no hay dicha generalización y presunción p. ej. en el miedo insuperable, donde el art. 20, 6º CP esp. o el 32.9 CP colomb. exigen la comprobación individual de la insuperabilidad).

En cambio, en los supuestos de aplicación del criterio de la inexigibilidad penal

subjetiva o individual como causa supralegal de exculpación (infra IV) no hay generalización y presunción legal de inculpabilidad y por tanto ha de constatarse en el sujeto y hecho

concretos la concurrencia de tal situación de inexigibilidad, aunque ciertamente el juez partirá de la constatación de que una dificultad situacional así generalmente produce o no a las personas enorme dificultad motivacional, que es además valorativamente entendible, pero habrá de confirmarlo en el sujeto concreto y hecho concreto.

32 Tb. se puede ver una cierta generalización de la inexigibilidad en el caso del error de prohibición invencible si, junto con un sector doctrinal en creciente avance, se va paulatinamente ampliando de modo más generoso el ámbito de la invencibilidad (cfr. ROXIN, Claus. Strafrecht... § 21/39; Id. Derecho penal... Op. cit., § 21/38; DÍAZ Y GARCÍA CONLLEDO, Miguel. Libro Homenaje al Profesor Doctor Don Ángel Torío López. Dirigido por Carlos María Romeo Casabona. Granada: Comares, 1999. p. 358 y s.; El error sobre elementos normativos del tipo penal, 2008, 174 y s.).

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3 SUPUESTOS DE INEXIGIBILIDAD (PENAL) INDIVIDUAL LEGALMENTE RECONOCIDOS

3.1 EN LA PARTE GENERAL

Ello se produce ya en la parte general de la mayoría de los CP, aunque los supuestos pueden ser distintos según las decisiones legislativas del correspondiente CP.

La inexigibilidad subjetiva es la base del legalmente denominado estado de necesidad disculpante o exculpante del § 35 StGB alemán: según este precepto en caso de peligro inminente para la vida, integridad corporal o la libertad se disculpa no sólo la salvación de un interés meramente algo superior pero no sustancialmente preponderante33 o de un interés equivalente, sino incluso la salvación de un interés que, aunque se trate de la integridad o la libertad, sea de inferior valor al interés lesionado (por tanto superior). En cambio, en el art. 20, 5º CP esp. la exención sólo abarca la lesión como máximo de un interés equivalente, pero no la de un interés superior (“que el mal causado no sea mayor que el que se trata de evitar”); la doctrina mayoritaria considera el estado de necesidad por conflicto entre intereses equivalentes o iguales como una causa de exculpación, aunque en vista de la existencia de una regulación unitaria de todo el estado de necesidad una parte considerable de la doctrina acepta que hay justificación o exclusión del injusto en todos los supuestos34. Pero en todo caso la lesión de intereses superiores no encaja en el art. 20, 5º, por lo que la misma sólo podría disculparse de modo supralegal por inexigibilidad si es comprensible o entendible por la necesidad para el sujeto de salvar (aunque sea inferior) un interés vital o sumamente importante propio o de una persona muy próxima (v. infra IV).

Exculpación por inexigibilidad individual a efectos penales es claramente el fundamento de la exención del miedo insuperable, que se reconoce dentro del catálogo de eximentes en el art. 20, 6º CP esp. 1995 35 (que a diferencia de los anteriores CP españoles

33 A diferencia de lo que se interpreta o se regula expresamente en otros ordenamientos, en el § 34 StGB, de acuerdo con la doc. dom. alemana, para que el estado de necesidad sea justificante no basta que el interés salvado sea simplemente preponderante o superior al lesionado, sino que ha de ser “sustancialmente preponderante”: cfr. por todos ROXIN, Claus. Strafrecht... [Id. Derecho penal... Op. cit.], § 16/7.

34 Cfr. por todos la exposición de las diversas posiciones en CEREZO MIR, José. Derecho penal: parte general. Buenos Aires: B. de F., 2008. p. 577 y ss.; 9. ed. 2011. p. 17/21-24, subraya con especial énfasis que, a diferencia de la regulación del § 35 StGB, el art. 20, 5º CP no ampara la lesión de un interés superior.

35 Para una exposición de las diversas posiciones cfr. VARONA, GÓMEZ, Daniel. El miedo insuperable: una reconstrucción de la eximente desde una teoría de la justicia. Granada: Comares, 2000 p. 67 y ss.; ROSO CAÑADILLAS, Miedo insuperable, en LUZÓN PEÑA (Dir.). Enciclopedia... op. cit. p. 951 y s.; MIR PUIG, Santiago. Derecho penal: parte general. 9. ed. Barcelona: Reppertor, 2011. p. 24/17-24.

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ya no exige que sea miedo de un mal igual o mayor, subjetivizando aún más la regulación) y en otros CP iberoamericanos – como en el art. 32. 9 CP colomb 200036 o el art. 34. 6 nicar. CP 2008; algo distinto en el art. 34.2 CP argentino37. Otros Códigos limitan la operatividad de la exención por miedo a la disculpa del exceso en la legítima defensa cometido por miedo o terror, conmoción, turbación o perturbación, pánico, espanto o susto: así sucede en el § 33 del StGB alemán o en el art. 33, 2º CP portugués y lo hacía también excepcionalmente en Derecho español el art. 59 del CP 1928 38 (no los restantes CP españoles). Se exime pues en caso de exceso de una causa de justificación por afectos asténicos, y por cierto sin exigir que los mismos sean insuperables; y aunque, justamente por ese dato, un sector los entiende como causas personales de exclusión de la punibilidad, parece más correcto considerarlos como causas de exculpación por inexigibilidad subjetiva39.

Pero, con carácter general o particular, se puede observar que normalmente los Códigos acogen como exculpantes bajo ciertas condiciones emociones, pasiones o los denominados “afectos”, pero normalmente que pertenezcan a los estados pasionales o afectos llamados “asténicos”, es decir, débiles o no violentos, pero no a los denominados “esténicos”, es decir, fuertes, violentos o agresivos40 (el término proviene del griego “stenos”, fuerza), cómo la ira, furia o cólera, los celos, la venganza, etc. La influencia al menos debilitadora de la libertad de voluntad y sobre la capacidad de determinación por la norma podría ser ciertamente similar en unos y otros, pero sin duda a efectos de inexigibilidad penal y disculpa por comprensión hacia la conducta prohibida la valoración penal es más generosa con las emociones o pasiones de debilidad (hasta el punto de que en los CP que las incluyen en el exceso de la legítima defensa no se exige que su efecto sea insuperable o invencible), que con las violentas, que suscitan mayor preocupación y rechazo por su

36 En el nº. 8 se reconoce también como eximente la “insuperable coacción ajena”.37 “El que obrare violentado [...] por amenazas de sufrir un mal grave e inminente”. Si violentado por esas

amenazas muy graves supone o no un miedo insuperable es ciertamente interpretable.38 Así el art. 33, 2º CP portug.: el sujeto no será punido “si el exceso resultara de perturbación, miedo o

susto no censurables”. El art. 59 del CP esp. 1928 disponía: “El exceso en la legítima defensa no será punible cuando resulte del terror, o del arrebato y obcecación del momento, atendidas las circunstancias del hecho, las del lugar en que se efectúe y las personas del agresor y el agredido”.

39 Cfr. sobre el fundamento y requisitos de la exención en esos preceptos del StGB y del CP portugués, respectivamente, ROXIN, Claus. Strafrecht: Allgemeiner Teil. 4. ed. München: Beck, 2006. v. 1. [ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Madrid: Civitas, 1997. v. 1], § 22/68 y ss.; DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral.Tomo I. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. 2. ed. 2007. v. 1. p. 622 y ss.

40 Así lo interpreta la doc. dom. alemana: cfr. ROXIN, Claus. Strafrecht... Op. cit. [ROXIN, Claus. Derecho penal... op. cit.], § 22/75 y s.; en contra HIRSCH, Hans-Joachim Strafgesetzbuch: Leipziger Kommentar. 11. ed. Berlin: W. de Gruyter, 2011. § 33 58 y ss., que cree que la “turbación”, aunque casi siempre la desencadena un estado pasional asténico, a veces puede producirla uno esténico como la justa cólera que pone fuera de sí.

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peligrosidad41 y por tanto menor comprensión; en una emoción asténica, de debilidad o inseguridad, a diferencia de las pasiones o emociones esténicas o violentas, el sujeto no toma la iniciativa para hacer daño, sino que sólo reacciona asustado o confuso cuando siente la amenaza de un daño42; y además, valorativamente en el exceso en la legítima defensa hay ya una disminución del injusto debido a que pese al exceso se defiende legítimos bienes jurídicos y el orden jurídico frente al injusto.

En algunos CP se admiten como eximentes algunos supuestos de obediencia no debida, que hay que entender disculpada, o incluso se puede encontrar una causa general de exculpación por inexigibilidad43. Y para un sector ya la regulación del error de prohibición considerado normativamente invencible es un caso de exculpación o disculpa por inexigibilidad subjetiva44.

41 En este sentido ROXIN, Claus. „Sdiuld” und „Verantwortlidikeit” als strafreditlidie System-Kategorien”. In: ROXIN, Claus; BRUNS, Hans-Jürgen; JÄGER, Herbert (Org.). Grundfragen der Gesamten Strafrechtswissenschaft: Festschrift für Heinrich Henkel zum. 70 Geburstag. Berlin; New York: W. de Gruyter, 1974. p. 189 = “Culpabilidad” y “responsabilidad” como categorías sistemáticas jurídico penales, en ROXIN, Claus. Problemas básicos del Derecho penal. Trad. e notas por Diego-Manuel Luzon Peña. Madrid: Reus, 1976. p. 217, que también añade como argumento que, en cambio, quien se excede en la leg. defensa por un estado pasional asténico está socialmente integrado y no es necesaria tampoco la prevención general.

42 Dichos estados pasionales esténicos o violentos en el CP español no se recogen expresamente como eximentes, sino precisamente como atenuantes de la culpabilidad, concretamente la atenuante del art. 21,3. ed.: “obrar por causas o estímulos tan poderosos que hayan producido arrebato, obcecación u otro estado pasional de entidad semejante”.

43 Así En Portugal admite tb. el art. 37 CP la obediencia indebida disculpante como causa de exculpación para todos los funcionarios bajo el presupuesto de no conocer la ilicitud penal no evidente del hecho: “actúa sin culpabilidad el funcionario que cumple una orden sin conocer que ésta conduce a la práctica de un crimen, no siendo eso evidente en el cuadro de las circunstancias representadas por él”. Restringido al ámbito militar, en Alemania el § 5 de la Wehrstrafgesetz o Ley penal militar regula de modo similar ese caso de obediencia en error. Cfr. respectivamente DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral. Tomo I. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. p. 645 y ss.; ROXIN, Claus. Strafrecht: Allgemeiner Teil. 4. ed. München: Beck, 2006. v. 1, § 21/74; Id. Derecho penal... Op. cit., § 21/70. Peculiar es la regulación del art. 34. 10 CP nicar. 2008, que, tras otros supuestos concretos, recoge con carácter general una eximente de inexigibilidad de otra conducta: está exento quien “Realice una acción u omisión en circunstancias. en las cuales no sea racionalmente posible exigirle una conducta diversa a la que realizó”.

44 Pues la exculpación está apoyada en una cierta generosidad normativa, más que en ausencia o exclusión absoluta de culpabilidad por total imposibilidad de motivación por la norma. Así p.ej. ROXIN, Claus. Strafrecht..., § 19/57; Derecho penal... op. cit. § 19/49; BUSTOS RAMÍREZ, Juan J. Derecho penal: parte general. 4. ed. rev., ampl. e atual. Barcelona: PPU, 1994. p. 481 y ss., p, 489 y ss., 509 y ss.; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho penal: parte general. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. p. 723 y ss.; LUZÓN PEÑA, Lecciones... op. cit. 2012 y 2016. p. 28/1, 4, 9 y ss.

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3.2 EN LA PARTE ESPECIAL: EMBARAZADA, PARIENTES EN ENCUBRIMIENTO Y OTROS DELITOS

A diferencia de las anteriores causas legales de exculpación por inexigibilidad subjetiva previstas en la Parte general en principio para cualquier delito, existen otras causas de inexigibilidad individual ya en la Parte especial, es decir con alcance limitado sólo a algún delito o grupo de delitos.

Así en Derecho español se prevé para el aborto, por las mismas razones expuestas sobre el estado de necesidad disculpante, en la eximente personal para la embarazada en el caso del aborto por imprudencia grave conforme al art. 145 bis. 3 CP: “la embarazada no será penada a tenor de este precepto” (eximente personal que ya se preveía para la mujer en caso de incumplimiento de requisitos formales de las indicaciones del art. 417 bis.2 CP 1944/7345, que ha estado vigente hasta la reforma de la regulación del aborto en el actual CP por LO 2/2010, de 3-3). E igualmente en la Parte especial se puede considerar como causa de exculpación por inexigibilidad subjetiva, dada la proximidad y la especial relación que supone el parentesco, la impunidad del encubrimiento o favorecimiento entre parientes cercanos del art. 454 CP (ya en el art. 18 CP 1944/73 y de los anteriores CP), eso sí, excluyendo el favorecimiento real lucrativo del favorecido del 451, 1º46. Otra opinión mantiene que sería una causa personal de exclusión de la punibilidad por razones de política de protección familiar (similar a la impunidad personal de parientes próximos en delitos patrimoniales no violentos del art. 268) ya que el precepto no requiere comprobar una efectiva relación de afectividad entre los parientes47. Es cierto que aquí la ley no requiere,

45 Con esa regulación del art. 417 bis.2 del CP anterior ya defendía (LUZÓN PEÑA, Diego Manuel. Indicaciones y causas de justificación en el aborto. Cuadernos de Política Criminal, n. 36, p. 629-662, 1988 = Poder Judicial, n. 13, p. 27-56, 1989.), de entre las posibles interpretaciones sobre su ubicación sistemática de la eximente – exclusión de la culpabilidad, causa personal de exclusión de la punibilidad, o incluso exclusión de la antijuridicidad – que era una causa de exculpación personal por razones de inexigibilidad individual dada la difícil o angustiada situación de la embarazada ante el hecho de una indicación.

46 Cfr. ampliamente sobre ese y otros límites legales a la exculpación del encubrimiento de parientes CEREZO MIR, José. Curso de Derecho penal español: parte general. Tomo III. Madrid: Tecnos, 2001. v. 2. p. 144-146; Derecho penal... op. cit. p. 865-867; tb. SAINZ CANTERO, José. La exigibilidad... op. cit. p. 128 y ss.; Lecciones... op. cit.,. 3. ed. 1990, 743 y s.

47 Así lo mantienen desde SILVELA, Luis. El derecho penal estudiado en principios y en la legislación vigente en España. Madrid: Manuel G. Hernández, 1879-1884, p. 252 y s. p. ej. QUINTANO RIPOLLES, Antonio. Comentarios al Código Penal. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1946. p. 301; QUINTANO RIPOLLES, Antonio. Curso de derecho penal. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1963. p. 407; CÓRDOBA RODA, Juan; RODRÍGUEZ MOURULLO, Gonzalo. Comentarios al Codigo penal. Barcelona: Ariel, 1972. p. 944 y s.; BAJO FERNÁNDEZ, Miguel. El parentesco en Derecho penal. 1973. 399 f. Tese (Doutorado em Direito) – Departamento de Derecho penal, Universidad Autonoma de Madrid, Madrid, 1973. p. 217 y ss.; FARALDO CABANA, Patricia. Las causas de levantamiento de pena. Valencia: Tirant lo

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a diferencia de otras causas de exculpación, examinar la situación personal de dificultad motivacional para el pariente; pero parece más correcto pese a todo entender que prima el aspecto de enorme presión y dificultad motivacional para los parientes próximos ante la perspectiva de que su pariente sea capturado y sancionado por la justicia, lo que explica la disculpa por considerarse una situación de inexigibilidad48 penal subjetiva y que en este caso se trata de una presunción legal iuris et de iure de no culpabilidad, que no admite prueba en contrario49. Fuera del CP se pueden mencionar los supuestos de los arts. 261y 416, 1º y 418 LECr, que reconocen, respectivamente, la no obligación de denunciar de determinados parientes próximos, o la de declarar de dichos parientes que se niegan a prestar testimonio o a contestar a alguna pregunta que pueda perjudicar en causa criminal a sus parientes, en los que la razón material de la exención en los correspondientes delitos contra la administración de justicia parece nuevamente la inexigibilidad individual 50.

Blanch, 2000. p. 186 y ss.; Sentencia del Tribunal Supremo español (STS) 24-4-1970; 25-1-1999; MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho penal: parte general. 8. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010. p. 392, que, aun reconociendo que también es posible la perspectiva de la inexigibilidad, se inclinan más bien por la causa personal de exclusión de la pena; GONZÁLEZ RUS, en MORILLAS CUEVA, Lorenzo (Coord.). Sistema de Derecho penal español: parte especial. Madrid: Dykinson, 2011. p. 1022 (aun reconociendo que por las relaciones de afecto no le es penalmente exigible al encubridor actuar de otra forma); tb. vacilante ANTÓN ONECA, José. Derecho penal. Tomo I. Madrid: Reus, 1949. p. 318 al mismo tiempo que la incluye entre las excusas absolutorias reconoce que hay inculpabilidad y presunción legal de inculpabilidad.

48 Así, oponiéndose a considerarla excusa absolutoria, en el CP anterior (art. 18 CP 1944): Notas a MEZGER, Edmund. Tratado de derecho penal. 2. ed. Trad e notas de José Arturo Rodríguez Muñoz. Madrid: Edersa, 1946. v. 2. p. 6 y ss., p. 15 y s.; FERRER SAMA, Antonio. Comentarios al Código penal. Tomo II. Murcia: Sucesores de Nogués, 1947, 1947. p. 99 y ss.; ANTÓN ONECA, op. cit. p. 318 (aunque vacilante: al mismo tiempo la incluye entre las excusas absolutorias); NAVARRETE, José María. El encubrimiento entre parientes. Anuario de Derecho penal y Ciencias Penales, v. 13, n. 2, p. 229-241, 1960.; JIMENEZ DE ASÚA, Luis. Tratado de derecho penal. Tomo IV. Buenos Aires: Losada, 1962. p. 1012 y ss. (citando en 1013 la regulación en los CP iberoamericanos); SAINZ CANTERO, La exigibilidad... op. cit. p. 127 y ss.; Lecciones... op. cit. 3. ed. 1990, p. 743 y s.; CUELLO CALÓN, Eugenio. Derecho penal: parte general 18. ed. Barcelona: Bosch, 1981. p. 640, 685; QUINTERO OLIVARES, en QUINTERO OLIVARES, GONZALO; MUÑOZ CONDE, Francisco. La reforma penal de 1983. Barcelona: Destino, 1983. p. 99; STS 24-2-1976. Ya en el CP actual CEREZO MIR, Curso... op. cit., 2001. p. 2001, p. 145; Derecho penal... op. cit. p. 866; DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. Derecho penal español: parte general en esquemas. esquemas. 3. ed. 2011. p. 454.

49 Así lo defienden p. ej. ANTÓN ONECA, op. cit. p. 318; QUINTERO OLIVARES, en QUINTERO OLIVARES; MUÑOZ CONDE, op. cit. p. 99; SAINZ CANTERO, Lecciones... op. cit. p. 744; CEREZO MIR, Curso... op. cit., 2001. p. 145; Derecho penal... op. cit. p. 866; STS 24-2-1976. QUINTERO y SAINZ CANTERO cits. destacan acertadamente que en el caso de personas vinculadas con análoga relación de afectividad a los cónyuges –ampliación producida en el CP anterior en la reforma de 25-6-1983 – no hay tal presunción, sino que hay que probar efectivamente el vínculo afectivo.

50 De modo que de modo que no incurrirán en delitos de omisión de denunciar (art. 450.2 CP), de desobediencia o denegación de auxilio (arts. 556 410 y ss.), de obstrucción a la justicia (art. 463) o incluso falso testimonio por silenciar hechos (art. 460). La razón material de las exención parece en efecto la

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Y en Derecho alemán se discuten p.ej. los supuestos de omisión de denuncia contra parientes, el autoencubrimiento y el encubrimiento favoreciendo a un pariente o el incesto entre menores de edad51.

4 SUPUESTOS O CAUSAS DE INEXIGIBILIDAD PENAL INDIVIDUAL SUPRALEGALES O ANALÓGICAS

Cuando deriva de principios generales jurídicos, concretamente jurídico-penales, a saber, como hemos visto, el principio de eficacia o idoneidad y el principio de culpabilidad con sus correspondientes fundamentos jurídico-constitucionales – v. supra II. 1 b) in fine –, la inexigibilidad se puede configurar en diversos supuestos concretos como una eximente supralegal52, o, si se prefiere, por analogía de significado material con las otras

inexigibilidad individual y por ello serían causas de exculpación, pero formalmente también podría sostenerse que son de justificación, por ejercicio de derecho al tener justa causa legal para abstenerse. Las considera causas de exculpación por inexigibilidad JIMENEZ DE ASÚA, Luis. Tratado de derecho penal. Tomo IV. Buenos Aires : Losada, 1962. p. 1012 y ss. en los casos similares del Derecho italiano e iberoamericano. En cambio, p. ej. VIVES ANTÓN, en VIVES ANTÓN, Tomás Salavador et al. Derecho penal: parte especial. Valencia: Tirant lo Blanch, 2004. p. 973, en relación con el art. 463 CP habla de “justa causa para no comparecer” en los supuestos de los arts. 410 y ss. LECr; SANTANA VEGA, en CORCOY BIDASOLO, Mirentxu (Dir.). Derecho penal: parte especial. Tomo 1. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011. p. 789, 795 y s., considera expresamente causas de justificación en el falso testimonio omisivo y en la obstrucción por incomparecencia el ejercicio del derecho a no declarar contra parientes o a no comparecer en los casos de la LECr.

51 Cfr. al respecto ROXIN, Claus. Strafrecht..., § 22/134 y ss.; Derecho penal... op. cit., § 22/130 y ss.52 Así FREUDENTHAL, op. cit. passim; GOLDSCHMIDT, James. Normativer Schuldbegriff... op. cit. p. 428

y ss.; MEZGER, Edmund. Strafrecht: ein Lehrbuch. 3. ed. Berlin: Duncker & Humblot, 1949. p. 370 y ss.; Tratado de Derecho penal. Tomo II. 2. ed. Bogotá: Revista de Derecho Privado, 1946. p. 204 y ss.; 3. ed. 1957. p. 216 y ss.; SCHMIDT, Eberhard. “Anmerkung zu OGHBrZ”. Süddeutsche Juristenzeitung. Tübingen: Mohr Siebeck GmbH & Co. KG, 1949, col. 568. En la doc. española un sector la admite, y ya tempranamente: así RODRÍGUEZ MUÑOZ, Notas a Mezger, II, 2. ed. 1946. p. 182; 3. ed. 1957. p. 217; DÍAZ PALOS, Fernando. Culpabilidad jurídico-penal. Barcelona: Bosch, 1954. p. 90; JIMÉNEZ DE ASÚA, Tratado VI, 1962. p. 983 y ss.; CUELLO CALÓN, op. cit. p. 563, mostrando simpatías, aunque dice que la enumeración cerrada de eximentes del CP y la jurisprudencia que así lo interpreta dificultan su admisión por los tribunales; OCTAVIO DE TOLEDO Y UBIETO, Emilio; HUERTA TOCILDO, Susana. Derecho penal: parte general. 2. ed. Madrid: Rafael Castellanos, 1986. p. 365 y ss. p. 371; BUSTOS, op. cit. p. 481 y ss., que basa toda la culpabilidad en la exigibilidad; COBO DEL ROSAL, Manuel; VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Derecho penal: parte general. 5. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999. p. 693; MELENDO PARDOS, Mariano. El concepto material de culpabilidad y el principio de inexigibilidad. Granada: Comares, 2002. p. 634 y ss. passim, concibiendo la culpabilidad como exigibilidad; Observaciones sobre el nacimiento y evolución de las concepciones normativas de la culpabilidad y el principio de inexigibilidad. DÍEZ RIPOLLES, José Luis (Coord.). La ciencia del derecho penal ante el nuevo siglo: libro homenaje al profesor doctor don José Cerezo Mir. Madrid: Tecnos. 2002. p. 880.. La admiten como causa de exculpación supralegal en los delitos imprudentes y en los de omisión dolosos, no en los comisivos dolosos (coincidiendo con parte de la doc. alemana), CEREZO MIR, José. Curso... op. cit., 2001, p. 138

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causas legales de exculpación, eximente que es admisible, puesto que no se vulnera el principio de legalidad penal53 y en cambio se contribuye a dar una solución justa a cada caso acorde con las valoraciones generales del Derecho o las peculiares del Derecho penal. Tal eximente supralegal puede apreciarse judicialmente, igual que es posible en casos

y s.; Derecho penal... op. cit. p. 859 y s.; CUELLO CONTRERAS, Joaquin. El Derecho penal español: parte general. 3. ed. Madrid: Dickinson: 2002, XI/309, como idea regulativa en esos delitos imprudentes y omisivos, y XI 321 (sobre todo pp. 1155 y s.) tb. para algunos otros casos concretos comisivos dolosos pero más alejados del peligro para bienes jurídicos fundamentales o a veces contra bienes supraindividuales. No obstante, buena parte de la doctrina la rechaza como causa general de exclusión de la culpabilidad: En la doc. alemana cfr. JESCHECK, Hans Heinrich; WEIGEND, Thomas. Lehrbuch des Strafrechts... Op. cit. p.504 y s.; sólo la admiten en los delitos imprudentes y en los omisivos, pero no en los comisivos dolosos WELZEL, Hans. El nuevo sistema de Derecho penal: una introducción a la doctrina de la accion finalista. Barcelona: Ariel, 1964. p. 126 y s.; HIRSCH, Hans-Joachim et al. Strafgesetzbuch: Leipziger Kommentar Grosskommentar, Berlin; New York: W. de Gruyter . 1994, antes del § 32, nm. 196 y ss. Matizada la distinción de Roxin, con la que sustancialmente coincido: ROXIN, Claus. Strafrecht..., § 22/142 y ss.; Id. Derecho penal... op. cit., § 22/138 y ss., en principio rechaza junto con la doc. mayor. la posibilidad de un causa supralegal general y vaga de exculpación o disculpa por inexigibilidad, pero a continuación (Strafrecht... op. cit., § 22/145-169; Derecho penal... op. cit., § 22/141-156), admite la causa supralegal de exclusión de la responsabilidad (en su terminología) en supuestos claramente perfilados: v. infra al final de este apartado; similar JAKOBS, Günther. Strafrecht: Allgemeiner Teil – Die Grundlagen und die Zurechnungslehere Lehrbuch. Berlin: Gruyter, 1991 (Derecho penal: parte general – fundamentos y teoría de la imputación. 2. Madrid: Marcial Pons, 1997), 20/43 y s., 20/20 y ss., 39 y ss. Sobre la doc. española que rechaza la inexigibilidad como eximente supralegal, incluso en supuestos concretos (que no es lo mismo que admitir una eximente supralegal general) cfr. SAINZ CANTERO, La exigibilidad... op. cit. p. 117 y ss.; MIR, Adiciones a Jescheck, Tratado PG, 1981. p. 690. Aunque mayoritariamente se admite la inexigibilidad como fundamento de las causas de exculpación y como principio regulativo para interpretarlas: así p. ej. SAINZ CANTERO, José A. La exigibilidad... op. cit. p. 117 y ss.; Id. Lecciones... op. cit. p. 1990. p. 715 y ss.; RODRÍGUEZ DEVESA, José María; SERRANO GÓMEZ, Alfonso. Derecho penal español: parte general, 18. ed. Madrid: Dykinson, 1995. p. 641 y ss.; DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. Op. cit. p. 454; MIR PUIG, Santiago. Derecho penal: parte general. 9. ed. Barcelona: Reppertor, 2011. p. 24/12, que tb. se opone a considerarla como eximente por analogía por suponer situaciones de menor intensidad que las causas de inexigibilidad legalmente admitidas, el estado de necesidad exculpante y el miedo insuperable. A esto cabe replicar que lo característico de cualquier eximente por analogía no es que sea idéntica en presupuestos, estructura o efectos a las eximentes legales sino precisamente que sea análoga en su fundamento y significado a otras eximentes legales, y precisamente la doc. mayoritaria considera que todas o la mayoría de las causas de exculpación se basan en la inexigibilidad; pues bien, sí puede haber supuestos concretos, como los mencionados infra, de gravísima dificultad motivacional y consiguiente inexigibilidad penal individual análoga o idéntica a los legalmente previstos, y en los que por ello proceda apreciar concretas causas supralegales de exculpación. En la doc. iberoamericana ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de Derecho penal: parte general. Tomo IV. Buenos Aires: Ediar, 1982. p. 109 y ss. 183 y ss., y ZAFFARONI; Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Op. cit. 2002; 2000. p. 643 y ss. p. 691 y ss., mantiene que la inexigibilidad no es una causa supralegal de inexigibilidad, sino la naturaleza última y común a todas las causas de inculpabilidad.

53 Cfr. mi fundamentación en LUZÓN PEÑA, Diego Manuel. Lecciones... op. cit. 2012 y 2016. p. 5/20 y s. p. 67, p. 21/34.

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de inexigibilidad jurídica general – causa de justificación –, como sólo de inexigibilidad penal general – causa de atipicidad penal –54, ahora como supuestos concretos de circunstancias de inexigibilidad (penal) individual, es decir como causa de exculpación

o de disculpa. Pero hay que destacar que se trata de supuestos concretos, como los mencionados a continuación, de gravísima dificultad motivacional análoga o idéntica a la de los legalmente previstos, y en los que por ello proceda apreciar concretas causas

supralegales de exculpación por inexigibilidad penal individual, que no es concebir sin

límites y de modo difuso la inexigibilidad penal individual como genérica causa supralegal

de exculpación. Como no hay reconocimiento legal de la disculpa, en estos casos no hay presunción ni generalización a priori de la situación disculpante, sino que el juez habrá de comprobar en el caso concreto la situación de inexigibilidad penal para ese individuo en ese hecho, o sea la imposibilidad o enorme dificultad de la motivación conforme a la norma de ese sujeto ante una circunstancia o situación muy especial que suponga para él un contramotivo poderoso y comprensible para incumplir o infringir la prohibición o el imperativo.

A ese respecto hay que insistir en que la no reprochabilidad penal por ser comprensible, entendible o disculpable la situación subjetiva supone no sólo que fácticamente sea fuerte el contramotivo que perturbe o dificulte la motivabilidad por la norma, sino que normativa y valorativamente tal motivo no se considere claramente negativo, sino como algo, aunque jurídicamente no plenamente correcto, no totalmente reprobable por ser humanamente explicable y comprensible en la situación concreta y por ello no exigible penalmente al sujeto.

Como supuestos de causas supralegales de inexigibilidad penal individual pueden mencionarse, sin ánimo de exhaustividad, los siguientes: supuestos de obediencia no debida disculpante ante órdenes no vinculantes pero coaccionantes, tanto en el ámbito funcionarial como en el empresarial, o de actuación en conflicto de conciencia no amparada por una causa de justificación como puede ser un derecho de objeción de conciencia, pero disculpante (a diferencia de la valoración totalmente negativa de la delincuencia por convicción y su consiguiente no exculpación), o en Derecho español el estado de necesidad sólo exculpante por tratar de salvar intereses vitales propios o de personas muy próximas pese a lesionar un interés superior, o sea mal causado mayor

54 Así, Ibidem. p. 20/51 y ss. p. 22/150 y ss.

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que el que se trata de evitar, supuesto no cubierto por la regulación legal55. Y la doctrina plantea otros diversos grupos de casos que según la concepción mayoritaria no están cubiertos por estado de necesidad pero sí pueden eximirse por inexigibilidad individual como supuestos de causa supralegal de exculpación56.

55 Sobre mi posición respecto de todos esos grupos de casos cfr. más detalladamente LUZÓN PEÑA, Diego Manuel. Lecciones... op. cit. 2012 y 2016. p. 28/58-61, p. 55-57. Más ampliamente sobre la exculpación y la justificación de la actuación en conciencia cfr. LUZÓN PEÑA, Diego Manuel. Actuación en conciencia y objeción de conciencia como causa de justificación y como causa de exculpación frente a la punición del delincuente por convicción. InDret: Revista para el Análisis del Derecho, Barcelona, n. 1, p. 1-22, jan. 2013.; tb. En LUZÓN PENA, Diego Manuel. Actuación en conciencia y objeción de conciencia como causa de justificación y como causa de exculpación frente a la punición del delincuente por convicción. In: VELÁSQUEZ, Fernando et al. (Coord.). Derecho penal y crítica al poder punitivo del estado: libro homenaje a Nodier Agudelo Betancur (Tomo II). Bogotá: Grupo Editorial Ibáñez , 2013. p. 1649 y ss. y LUZÓN PENA, Diego Manuel. Actuación en conciencia y objeción de conciencia como causa de justificación y como causa de exculpación frente a la punición del delincuente por convicción. In: MARTÍNEZ MORÁN, Narciso; MARCOS DEL CANO, Ana María; JUNQUERA DE ESTEFANI; Rafael (Coord.). Derechos humanos: problemas actuales. Estudios en homenaje al profesor Benito de Castro Cid. Tomo 2. Madrid: Universitas, 2013. p. 597 y ss.; Die Berufung auf das Gewissen im spanischen Recht (Recht auf Gewissenstat und Verweigerung aus Gewissensgründen als Rechtfertigungsgrund im spanischen Recht). In: SCHULZ, Lorenz (Herg.). Festschrift für Imme Roxin. Verlag: C. F. Müller, 2012. p. 757-756.; Handeln aus Gewissensgründen als Entschuldigungsgrund im vergleich zur Strafbarkeit der Überzeugungstat. In: ZÖLLER, Mark A. et al. (Herg). Gesamte Strafrechtswissenschaft in Internationaler Dimension: Festschrift für Wolter. Berlim: Duncker & Humblot, 2013. p. 43-438.

56 Cfr. ampliamente la exposición de doc. y jurispr. y de la posición propia en ROXIN, Claus. Strafrecht..., § 22/142 y ss.; Id. Derecho penal... op. cit., § 22/138 y ss., donde rechaza la posibilidad de un causa supralegal general y vaga de exculpación o disculpa por inexigibilidad, pero en “Strafrecht: Allgemeiner Teil”, § 22/145-169; “Derecho penal: parte general”, § 22/141-156, admite la causa supralegal, para él de exclusión de la responsabilidad, en supuestos claramente perfilados en donde falte la necesidad preventiva de pena, examinando los de “comunidad de peligro” para sus vidas en que se encuentran múltiples personas, que induce a terceros a elegir el sacrificio de algunos para salvar a otros muchos (como en los médicos que colaboraron en “eutanasias” en campos de concentración nazis para salvar a otros muchos prisioneros, o el derribo de aviones secuestrados por terroristas para lanzarlos contra zonas muy pobladas), en la “elección del mal menor” en el homicidio de un hombre para salvar a muchos con más posibilidades de supervivencia, o en la práctica o amenaza de tortura, prohibida como medio de estado de necesidad por vulnerar la dignidad humana, para salvar vidas de secuestrados cuyo paradero se ignora. Con bastante anterioridad examina un elenco (aunque no tan amplio) de supuestos supralegales de exculpación por inexigibilidad JIMÉNEZ DE ASÚA, Tratado VI, 1962, 985 y ss.

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37Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 8, n. 14, p. 37-54, jan./jun. 2016

ESTADO TÓXICO

TOXIC STATE

Silvino Vergara Nava1

RESUMEN

El presente trabajo es un análisis del Estado de la posmodernidad, cuya conformación tiene la finalidad de limitar al poder político, para que sea la mejor fórmula de la convivencia de los hombres en sociedad, y que se ha situado en crisis. Hoy pareciera que es un tóxico, como aquellos productos que causan alteraciones a los órganos de los seres vivos. Esta alteración perjudica a su propia población, y es indiferente a las necesidades de la ciudadanía salvo que éstas sean útiles para justificar la existencia de sus propias instituciones; y para su supervivencia, ha inyectado el miedo en la población, con la finalidad de evitar cualquier sublevación, que es controlada con el hiper-consumo del mundo en que vivimos, haciendo uso de herramientas como la tecnología para vigilar a los ciudadanos y, en el peor momento de la historia de dicha tecnología, para cometer genocidios industrializados. En estos tiempos, con la presencia del derecho penal simbólico y la expansión de los delitos y las penas, es el Estado el que inventa a los delincuentes, olvidándose de la vieja controversia respecto a si los delincuentes nacen o los crea la sociedad, por lo cual, para inventar a estos delincuentes, el Estado se ha convertido en una fábrica de leyes. Por todo ello, se puede denominar: Estado tóxico.

Palabras-clave: Estado. Estado Toxico. Fábrica de Leyes. Indiferencia. Consumo. Miedo. Tecnología.

1 Doctor en Derecho por la Universidad Autónoma de Tlaxcala (UAT). Doctor en Derecho por la Universidad Panamericana (UP). Licenciado en Derecho por la Escuela Libre de Derecho de Puebla, A. C. Maestro en Derecho por la Universidad Iberoamericana (UIA-México). Estudiante del Doctorado en Derecho Penal en la Universidad de Buenos Aires (UBA). E-mail: [email protected]

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ABSTRACT

The present is an analysis of the State in postmodern times, with the intention of limiting the political power so that it becomes the best formula for men to coexist in society since such coexistence has made crisis.It may appear today to be a toxic substance, such as those that alter the organs of the living beings. This alteration damages its own population and is indifferent to the needs of the people, unless those needs are useful for the justification of its institutions; and for its own survival, it has injected fear into the people so as to avoid any attempt of rebellion, which is controlled by the hyper-consumerism of the world we live in and by the use of various tools such as the technology that monitors the citizens and, in the worst episode of the history of the referred technology, to commit industrialized genocides. In these times, with the symbolic presence of the criminal law and the expansion of the crimes and the punishments, the state becomes the inventor of the criminals, thus leaving and old controversy behind: are criminals born or made by society? For the state to be able to create criminals, the same state has become a Law factory.For all of the reasons expressed before, the state may be called: Toxic state.

Keywords: State. Toxic State. Law Factory. Indifference. Consumption. Fear. Technology.

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1 ESTADO TÓXICO

La violencia de arriba siempre, siempre, provocara la reacción violenta de los de abajo.

(Proceso de 1921, la masacre Armenia)

Se ha entendido por tóxico: “La sustancia que ingerida, inhalada, aplicada, absorbida, inyectada, desarrollada en el interior del organismo es capaz por sus propiedades químicas o físicas de provocar alteraciones órgano-funcionales e incluso la muerte”2. Siempre que se hace mención de que un producto es tóxico, se toman las precauciones necesarias para evitar estas consecuencias, así al parecer la falta de credibilidad de las explicaciones de los políticos, los desatinos en las políticas publicas de la administración publica, las leyes sin cumplir por la propia autoridad y las sentencias emblemáticas llenas de política y no de derecho, han conformado una grave crisis de legitimidad en los Estados, al grado que todo lo que se hace, dice y ejecuta por el Estado se entiende hoy como uno de esos productos tóxicos para la sociedad. Pareciera que hoy el Estado y la manera de su conformación son muy poco para lo que se exige del mismo, ha quedado no únicamente agotado, sino que también hoy se considera un peligro de toxicidad para la población.

En parte, tiene mucho que ver el propio Estado, que no ha pretendido modificar disposiciones y regulaciones que permiten que se mantenga ese margen de incredibilidad; como ejemplo tenemos lo que sucede con el principio de legitimidad, que no es hoy materia de control por los órganos jurisdiccionales, es decir, un acto ilegitimo no es materia de nulidad. Así, si bien el articulo 16 de la Constitución de los Estados Unidos Mexicanos hace mención de que los actos de autoridad deben ser emitidos por quien resulte competente, lo cierto es que la competencia a la que hace alusión es la denominada objetiva, es decir, la facultad que tiene la autoridad prevista en una norma jurídica para emitir un acto de molestia a un particular, pero lo que no está contemplado como control de los órganos jurisdiccionales es la competencia subjetiva, que consiste en la serie de requisitos que deben de cumplir las personas que tendrán el carácter de servidores públicos, por ello es que existe una clara discrecionalidad al grado de arbitrariedad en el nombramiento de los cargos públicos: Gobiernan los amigos, no los preparados al cargo, lo que da como consecuencia que no seamos gobernados por la “meritocracia”, esto es, el gobierno de los mejores, ya que de los cargos públicos puede encargase cualquiera, sin importar su formación, estudios, servicios y experiencias previas, lo cual da como resultado que las decisiones en esas dependencias sean dictadas en forma incorrecta, incompleta, torpe, etc. Simple ejemplo de que el propio Estado puede hacer muchos cambios y medidas legislativas para evitar esa falta de legitimidad de sus instituciones, sin embargo, no es su

2 Tomado de www.wikipedia.com

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voluntad, como sentencia el profesor Roberto Gargarella: “… la ley aparece como ciega a las privaciones de la población, sorda a sus principales reclamos, o decidida a no remediar las afectaciones jurídicas existentes”3.

Debido a ello, la población observa que, lejos de que el Estados y sus instituciones permitan dar respuesta a los problemas actuales, se vuelve parte del problema, es más, se convierte en nocivo para la propia sociedad, como dice la definición anterior: provocar alteraciones órgano-funcionales e incluso la muerte. Es decir, estamos ante la presencia de Estados tóxicos. ¿A qué se debe esa toxicidad del Estado? El Estado es sabedor de que implementar contribuciones muy altas a la población es un rechazo generalizado, que imponer nuevos delitos y aumentar las penas no soluciona el problema de la seguridad pública, que crear más Procuradurías e instituciones en la Administración publica no resuelve las necesidades sociales ni tampoco son resueltos con subsidios y estímulos económicos míseros que hacen dependiente a la población de dichas dadivas electorales del Estado, que la permanente vigilancia que se hace por medios policiales, electrónicos, tributarios, administrativos a la ciudadanía no se logra apresar a los delincuentes de cuello blanco, ni acabar con la delincuencia organizada. En palabras de Elías Neuman: “… muchas personas viven de la droga aunque luchando en su contra […] La represión nunca ha podido ni querido prohibir nada”4. Entonces, si es conocedor de todas estas catástrofes: ¿a que se debe mantenerlas?

2 EL ESTADO GARANTIZA LA INDIFERENCIA

Los políticos hablan pero no dicen.Los votantes votan pero no eligen.Los medios de información desinforman. Los centros de ensenanza ensenan a ignorar. Los jueces condenan a las víctimas. Los militares están en guerra contra sus compatriotas. Los policías no combaten los crímenes, porque están ocupados en cometerlos.Las bancarrotas se socializan, las ganancias se privatizan.Es más libre el dinero que la gente.La gente está al servicio de las cosas.

(Eduardo Galeano)

3 GARGARELLA, Roberto. De la justicia penal a la justicia social. Bogotá: Siglo del Hombre, 2008. p. 29-30.4 NEUMAN, Elías. El Estado penal y la prisión-muerte. Buenos Aires: Editorial Universidad, 2001. p. 51.

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Esa falta de voluntad para legitimar al Estado y crear reformas para las leyes, instituciones y políticas públicas provoca una quietud del Estado que contrasta con la serie de fenómenos que en los tiempos actuales exigen cambios: los avances científicos, los cambios tecnológicos, la expansión del mercado, pareciera que el Estado y su organización no se desarrollan, se justifican, no buscan cumplir con sus fines, pues su fin es su propia subsistencia; por ello, hoy lo observamos ineficaz, superado por los problemas, pues solamente da respuestas pero no soluciones.

Así, la sociedad percibe en sus funciones, servicios y organización que es tardo para reaccionar ante las contingencias, aturdido para resolver. Cita Eduardo Balestena respecto a la problemática de la administración de justicia: “‘hay que sacar más trabajo porque estamos tapados por el cúmulo de tareas’. Si entran diez expedientes por día y salen cuatro, queda una rémora de seis […] creando un atraso geométrico”5. De esta forma, es común que, no obstante la presencia cada vez mayor de los derechos humanos, de los observadores nacionales e internacionales respecto a las funciones de las autoridades, de las estadísticas visibles permanentemente y de la exigencia de eficacia de los derechos de los gobernados, se vean en los expedientes de los juzgados, tribunales y órganos gubernamentales contestaciones de peritos, funcionarios e inspectores con la leyenda:

Téngase al perito oficial dando contestación… manifestando su negativa de aceptar y protestar el cargo en razón de que… tienen una carga de trabajo actual excesiva… lo que no le permite aceptar ningún trabajo más… además en el caso de que se le obligue a aceptar este cargo sería atentatorio a su integridad emocional, independencia mental y libertad de criterio, debido al gran estrés adicional que le ocasionaría el cumplimiento en tiempo y forma de los trabajos adicionales solicitados…6

Es evidente que el trabajo y servicio actual tan mecanizados en los órganos del Estado (que, desde luego, no se observa únicamente en los empleos del Gobierno) provocan seres autómatas en el empleo, indiferencia en el resultado de su empeño laboral y, por ello, se “olvida” o pasa a un tercer término el preguntarse para qué se trabaja, la finalidad de este trabajo, el “porqué” se lleva a cabo esa labor. En resumen, trabajos mecanizados que han provocado, como insisten en recordarlo diversos historiadores, juristas y sociólogos la responsabilidad “de nadie”. Por ello, observamos frecuentemente que, en los medios de

5 BALESTENA, Eduardo. La fábrica penal: visión interdisciplinaria del sistema punitivo. Buenos Aires: B. de F., 2006. p. 163.

6 Juicio de amparo 543/2015 (antes 638/2015). Juzgado Segundo de Distrito en Materia de Amparo Civil, Administrativa y de Trabajo y de Juicios Federales en el Estado de Puebla.

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comunicación, las partes policiales, las entrevistas a los inspectores, procuradores y jueces se sostiene que las investigaciones judiciales permitirán “deslindar responsabilidades” en lugar de fincarlas.

El inconveniente de este desinterés generalizado por el resultado y los fines del trabajo es lo que llegó a provocar el holocausto causado por los alemanes a partir de 1942, en palabras del sociólogo Z. Bauman: “la abrumadora mayoría prefirió cerrar los ojos, no escuchar nada y, sobre todo, cerrar la boca. La destrucción masiva no iba acompañada del alboroto de las emociones, sino del silencio muerto de la indiferencia”7. Esa indeferencia por conocer y pensar el resultado de los empleos del Estado nazi fue lo que ocasionó ese genocidio, como se desprende de la causa penal a Adolf Eichmann en Jerusalén, en el año de 1961, general del ejercito inculpado por el exterminio de millones de judíos, quien confesó:

Durante toda mi vida he estado acostumbrado a la obediencia […] ¿Qué me habría aportado la desobediencia? ¿Y a quién habría beneficiado? En ningún momento entre 1935 y 1945 me estuvo permitido implicarme en la planificación, la definición de principios o la toma de decisiones en relación con los sucesos que tuvieron lugar durante esos diez años8.

Es decir, asumió que no era responsable, pues estaba acatando órdenes, además de que nunca se preocupó ni le importó cuál era el resultado de sus horas de trabajo.

De este juicio se desprendieron múltiples conclusiones; para Hanna Arendt (Eichmann en Jerusalén, Lumen, Barcelona, 2003), el Estado moderno como hoy lo conocemos es el que genera esta serie de atrocidades y genocidios, precisamente porque nadie es responsable y el desinterés por los demás es la práctica común de nuestro comportamiento, como lo confirmó el papa Francisco el 8 de julio de 2013, después de la tragedia de Lampedusa (España), donde murieron inmigrantes balseros africanos: “En nuestro mundo, hoy, nadie se siente responsable hemos perdido el sentido de la responsabilidad”9. Justamente ese desinterés por las cosas, por las acciones y por el trabajo en las instancias gubernamentales es lo que provoca y alimenta esa percepción del Estado tóxico.

7 BAUMAN, Zygmunt. Modernidad y holocausto. Madrid: Sequitur, 2010. p. 99.8 MULISCH, Harry. El juicio a Eichmann. Causa penal 40/61. Barcelona: Ariel, 2014. p. 76.9 BAUMAN, Zygmunt. Mensajeros de la globalización. El País, 31 de octubre de 2015. Disponible en:

<http://internacional.elpais.com/internacional/2015/10/29/actualidad/1446143608_413979.html>. Acceso en: 2 set. 2016.

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3 EL ESTADO GARANTIZA EL MIEDO

Quien no está preso de la necesidad, está preso del miedo; unos no duermen por la ansiedad de tener las cosas que no tienen, y otros no duermen por el pánico de perder las cosas que tienen. El mundo al revés nos entrena para ver al prójimo como una amenaza y no como una promesa, nos reduce a la soledad y nos consuela con drogas químicas y con amigos cibernéticos.

(Eduardo Galeano)

Para mantener vigente al Estado y, mejor aún, al Estado de derecho, que ha demostrado su ineptitud para poder justificarse ante su población y que ha provocado la insensibilidad con la propia ciudadanía, conformando un vacío cada día más amplio que no se ubica cómo se pueda llenar; por el contrario, cada día resulta más oscuro. Así, el Estado actual dejó la visión del Estado denominado de bienestar o social de derecho, que buscaba la plena satisfacción de las personas, lo cual ni se pudo cumplir y siempre se desvió, transformando a los ciudadanos en simples consumidores de servicios del propio Estado; por su parte, el Estado, con excesivas cargas económicas y obligaciones sociales como los absurdos extremos hasta llegar a regalar televisiones, tratando de proteger a los más pobres, que no lo están por no mirar televisión, sino precisamente por lo contrario.

Entonces, ante el final de ese Estado “compasivo” con su población, se necesitó de otro derrotero que siempre ha funcionado y del cual se hace uso cuando las crisis son evidentes: el miedo. Cita el profesor argentino Elías Neuman:

Crear inseguridad es una forma concreta del ejercicio del control del poder, porque el miedo que engendra permite el dominio de las instancias profundas del ser. Si el poder controla los miedos de los habitantes, dispone de una formulación omnipresente y futura […] porque habremos de cumplir puntillosamente aquello que se nos ordene. […] Somos la generación del miedo.10

Indudablemente, estamos en la generación de los miedos, pues de nada sirven los avances tecnológicos, científicos, médicos y jurídicos; resulta que no son suficientes pues, de todas formas, no evitan los temores de la población, al contrario, permiten mayor poder del Estado sobre estos gobernados. Cita el filosofo norteamericano Chomsky:

aumenta el nivel de inseguridad y aparecen otros síntomas de desintegración social. La mayor parte de los delitos los cometen los pobres contra otros pobres, pero se produce un efecto derrame a otros sectores más privilegiados.

10 NEUMAN, Elías. Op. Cit. 2001. p. 88.

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[…]El único tipo de respuesta que tiene a su alcance el gobierno en esas condiciones consiste en apelar al miedo de la población para aumentar la represión, atacar las libertades civiles y tratar de controlar al los pobres, fundamentalmente por medio de la coerción11.

De esta forma, se conforma la colisión jurídica entre la libertad y la seguridad; las leyes, instituciones y organizaciones se transforman para otorgar mayor seguridad, pasando por encima de la libertad. El problema es que, actualmente, perdemos los derechos de libertad sin obtener seguridad, y el propio Estado, a sabiendas de esta situación, incrementa las medidas de seguridad, que representan un mayor control a la población, fin principal del Estado, como lo citaba el profesor francés M. Foucault, desde su explicación sobre el Estado vigilante.

De esta forma, pareciera que todas las medidas y políticas publicas del Estado tienen la finalidad de conformar una mayor vigilancia a sus gobernados: Ante el riesgo de asaltos y robos, el dinero de la población está en el banco, donde se encuentran también inspeccionados; ante la existencia de agresiones, registros de la población en diversas instituciones administrativas; para ejercer el derecho a votar, se debe estar inscrito en una dependencia; para obtener un servicio social, el individuo es censado; todo ello, con la finalidad de mantener la vigencia del Estado, como cita el profesor Zaffaroni:

cuando se pone en funcionamiento un reactor nuclear, no se le puede detener, de modo que siempre debe haber personal de mantenimiento y renovarse constantemente los equipos […] el derecho de huelga en este ámbito no sea admisible y que los dispositivos de seguridad y policiales, frente a dicho peligro, virtualmente deban disponer de poderes ilimitados, lo que tendería a generar una forma de autoritarismo […] que es lo que se ha llamado el “Estado nuclear”. […] Todos los derechos humanos podrían ser violados con el pretexto con la amenaza real del terrorismo nuclear.12

En resumen, el derecho al miedo es una característica del Estado tóxico.

11 CHOMSKY, Noam. Cómo funciona el mundo: conversaciones con David Barsamian. Madrid: Katz, 2013. p. 175.

12 ZAFARONI, Eugenio Raúl. Criminología: aproximación desde un margen. Bogotá: Temis, 2003. p. 43.

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4 EL ESTADO GARANTIZA EL CONSUMO

La lucha ideológica a nivel mundial que requería audacia, coraje,

imaginación e idealismo se verá reemplazada por el cálculo

económico, la interminable resolución de problemas técnicos,

[…] y la satisfacción de las sofisticadas demandas consumistas.

En la era post-histórica, no habrá ni arte ni filosofía…

(Francis Fukuyama)

Para conformar esa toxicidad del Estado para sus gobernados, hemos observado varios fenómenos: primero, la ausencia de voluntad del Estado para imponer medidas con el afán de mejorar, y que las eluden, ya que pueden volverse perjudiciales para el poder político; por su parte, la burocratización del Estado, que ha permitido transformar a los miembros de sus instituciones y organizaciones en sujetos incapaces de conocer las consecuencias de sus trabajos y rutinas. Se ha citado también el uso del miedo como instrumento útil para mantener su poder sobre los ciudadanos. Un elemento más por analizar es el papel de la economía para la conformación de este anómalo Estado en que vivimos.

Con los sucesos más emblemáticos del final del siglo XX, como fue la caída de la URSS y el derrumbe del muro de Berlín, prácticamente terminó la Guerra Fría, que se convirtió en la última batalla de ideales y pensamientos contrarios, por lo cual se percibió un único horizonte al que se le denominó: la democracia liberal occidental, época a la que le ha designado el profesor Francis Fukuyama: el fin de la historia, y cita en su conferencia: “no es simplemente el fin de la guerra fría […] sino el fin de la historia como tal: esto es, el punto final de la evolución ideológica de la humanidad y la universalización de la democracia liberal occidental”13.

De esta forma, la democracia liberal occidental se ha convertido en la única forma de vida y de pensamiento, transformando a la vieja democracia en un filtro muy exclusivo para el acceso al poder, sin importar las viejas tendencias de izquierda o derecha, pues ahora lo único que prevalece para el Estado y para que éste funcione son las soluciones eficaces, las cuales no se someten ni se ponen a consideración de la población. Así, el profesor español Daniel Innerarity concluye:

No son los representantes elegidos por los ciudadanos, sino una pléyade de economistas, gestores, ingenieros, científicos, turistas, y todo tipo de expertos quienes deciden por los ciudadanos sin haberse sometido a ningún tipo de escrutinio democrático.14

13 FUKUYAMA, Francis. ¿El fin de la historia? Madrid: Alianza, 2015. p. 12.14 INNERARITY, Daniel; SOLANA, Javier. La humanidad amenazada: gobernar los riesgos globales. Barcelona:

Paidós, 2011. p. 242.

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Con esta nueva democracia liberal o, mejor dicho, “tecnocracia”, subsiste el mundo, pero, sobre todo, los Estados, que para su sostenimiento requieren, en particular, de la economía de consumo, para convertir a ese consumo en la única acción por parte de cualquier sujeto actual; bajo este predicamento, se presentó el Estado de bienestar o social de derecho, que se mantuvo vigente durante mas de cincuenta años en los Estados europeos, y que para América Latina nunca llegó con todos esos beneficios. Aquel Estado en donde se suministraban todos los satisfactores para las exigencias de la población (salud, vivienda, educación, cultura, empleo), convirtió a los ciudadanos de los Estados en cómodos clientes del sistema que paulatina o drásticamente se fue agotando en las diversas naciones, pero lo que se mantuvo fue ese tipo de economía. Cita el sociólogo Zygmunt Bauman: “Somos consumidores en una sociedad de consumo. La sociedad de consumo es una sociedad de mercado; todos hacemos compras y estamos en venta; todos somos, de manera alternativa o simultánea, clientes y mercancías”15.

Contamos con diversos niveles de consumidores y ya no de ciudadanos, aquellos consumidores con capacidad consumir, y que son bienvenidos al esquema y, sobre todo, a las grandes corporaciones económicas, iniciando con las instituciones bancarias; por su parte, otros consumidores que no tienen esas capacidades pero que, de todas formas, consumen lo que el mismo Estado les proporciona, en donde está incluida la extrema pobreza; consumen despensas, becas, subsidios, asistencia social, y en los caso extremos consumen juzgados penales, presidios, cárceles, sentencias y ordenes de aprehensión que, a su vez, sirven para legitimar al propio Estado y su sistema económico, como lo enuncia el escritor uruguayo Eduardo Galeano: “La trampa del hambre y la trampa del consumo operan con impunidad […] cada vez hay más distancia entre la inmensa mayoría que necesita mucho más que lo que consume y la mínima minoría que consume mucho más que lo que se necesita”16. Desde luego, en estos tiempos el propio Estado también es consumidor, pues en tanto los ciudadanos-consumidores existen en diversos niveles, por su parte, el poder consume poder, riqueza, fortuna y, en sentido más agudo: impunidad, arbitrariedad, corrupción. De esta forma, la economía consumista es un signo más del Estado tóxico.

15 BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiciadas: la modernidad y sus parias. Barcelona: Paidós, 2015. p. 158.16 GALEANO, Eduardo. Ser como ellos y otros artículos. Madrid: Siglo XXI, 2009. p. 72.

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5 EL ESTADO TECNOLÓGICO

¿Podemos instaurar leyes que limiten la cantidad de inteligencia que una máquina podría tener y lo interconectada que podría estar?

(Albert Cortina)

Otros actores que permiten la conformación de este Estado tóxico son la ciencia y la tecnología; pareciera que el desarrollo del conocimiento del ser humano, sobre todo en los siglos XVIII al XX, ha permitido acercarse a las respuestas de muchas interrogantes de la vida del hombre y de la naturaleza al grado de que el saber “científico” apartó de la teología a la filosofía, así como a las ciencias exactas y naturales. Ante ese fenómeno evolutivo, se llegó a considerar la necesidad de ausentarse de la creencia en la existencia de Dios, como lo sostuvo el filósofo alemán Friedrich Nietzche: “Dios ha muerto” (en La gaya ciencia, de 1882; de esta forma, el hombre es capaz de controlar la naturaleza y no de cohabitar en ella, de poder someterla y no de convivir con ella. Pero, a pesar de todos los riegos actuales provocados por el hombre y la reacción de la naturaleza, pareciera que la ciencia y la tecnología no han sido lo ideal ni el remedio para todos los problemas de la humanidad; al contrario, son los que ahora los provocan, como sintetiza el profesor español Daniel Innerarity:

Los vertidos tóxicos en el Golfo de México, la crisis económica producida en buena parte por el fracaso de esos sofisticados dispositivos tecnológicos que son productos financieros o el cambio climático incluido por nuestro modelo de desarrollo no son solo desastres con graves repercusiones sociales sino, de entrada, rotundos fracasos tecnológicos.17

¿Y qué a hecho el Estado ante la ciencia y la tecnología? Podría decirse que se ha servido de ellas en el genocidio más conocido del siglo XX, el de los judíos; diversos autores han sostenido y comprobado que se logró debido a los avances de la ciencia y la tecnología:

Los asesinatos sistemáticos llevados a cabo a lo largo de un periodo de tiempo prolongado requirieron de una ingente cantidad de recursos […] Difícilmente habría sido posible sin inventos tan típicamente modernos como la tecnología industrial, la burocracia […] la jerarquía estricta del mando y la disciplina18

17 INNERARITY, Daniel. Un mundo de todos y de nadie: piratas, riesgos y redes en el nuevo desorden global. Barcelona: Paidós, 2013. p. 70.

18 BAUMAN, Zygmunt. Mundo consumo: ética del individuo en la aldea global. Barcelona: Paidós, 2010. p. 123.

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Estos avances siguen siendo útiles para los Estados en iguales o similares crímenes, pero siempre con los mismos fines: el control de la población, tal y como lo resalta el profesor italiano Giovanni Sartori al hacer mención del poder de la tecnología de las comunicaciones. Con estos instrumentos, lo que un día es justo mañana es lo contrario; el enemigo se convierte, por estos medios en aliado; el político estadista puede ser héroe o delincuente dependiendo de esos medios masivos de comunicación-tecnológicos; la conciencia del pueblo depende de estos.

Pero esto no es todo, la ciencia y la tecnología han desarrollado conocimientos impensables apenas hace cincuenta o cien años; en tanto, sentencia Raúl Eugenio Zaffaroni respecto a la permisión jurídica de la Corte Suprema de Estados Unidos en 1987 para patentar animales inventados.

Pareciera que se ha llegado a sobrepasar limites que ni el Estado podrá contener ante preguntas como la que se hace Albert Cortina en su obra, referente a si existen limites biologicos: ¿Existen límites biológicos en la aplicación al ser humano de técnicas de medicina regenerativa? ¿Puede llevar una tecnificación excesiva del ser humano a su involución, en lugar de que lo mejore? ¿Qué modelo de sociedad se quiere construir para un futuro poshumano, una sociedad más justa o una sociedad más eficiente?

Ante estas preguntas sin responder, indiscutiblemente el propio Estado ha provocado su propia toxicidad.

6 EL ESTADO PRODUCE EL CRIMEN

Debemos elevar la voz y corregir una tendencia insidiosa, la tendencia que consiste en imputar el delito a la sociedad en vez de atribuirla al individuo […] no es al sociedad misma la responsable del delito: Los responsables del delito son los delincuentes.

(George Bush)

Vamos sumando elementos para la conformación de este Estado tóxico actual, por ejemplo, la ausencia de voluntad de los entes gobernantes para imponer medidas con el afán de mejorar al Estado, la indiferencia de la burocratización, la inyección de miedo a la población, la ceguera de la economía consumista, el uso indiscriminado de la ciencia y la tecnología; pues bien, ahora corresponde a la criminología, aquella disciplina que, aun sin tratarse de una ciencia, se encarga del estudio de la cuestión criminal, es decir, las razones por las cuales las personas cometen delitos, de donde posteriormente aparece

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la política criminal, que versa sobre la serie de medidas que imponen los Estados para combatir el crimen.

Se ha sostenido que el padre de la criminología es el médico italiano Cesare Lombroso (1836-1909), quien consideraba que los delincuentes son diversos sujetos que nacen con esa tendencia natural para delinquir:

la mayoría de los delincuentes natos tienen orejas en asa, cabellos abundantes, escasa barba, senos fontales separados, mandíbula enorme, mentón cuadrado o saliente, pómulos anchos, gesticulación frecuente, tipo en suma parecido al mongólico y algunas veces al negroide.19

El profesor Eugenio Raúl Zaffaroni, describe el pensamiento de este médico italiano del siglo XIX, de que se trató de un discurso biologista médico con el poder policial urbano europeo, Indudablemente, esta tendencia se ha mantenido: los delincuentes son seres natos para delinquir. En sus tiempos de gobierno, Ronald Reagan (1983) reflexionó:

Esta misma filosofía de izquierda que tenía la intención de hacer surgir una era de prosperidad y de virtud a través del gasto público masivo ve a los criminales como productos, victimas de malas condiciones socioeconómicas… es la sociedad decían, y no el individuo, quien falla cuando se comete un delito… pero bueno, hay un nuevo consenso rechaza totalmente ese punto de vista.20

Criterio que se ha seguido en ese país del norte hasta nuestros días, con graves resultados de criminalización masiva y sobrepoblación en los centros penitenciarios, lo que ha convertido el combate propio a la delincuencia en una forma eficaz de control de la población, convirtiendo los castigos no en una sanción propia y exclusiva al delincuente, sino en una demostración para quien osare cometer las mismas conductas; ejemplo evidente: la pena de muerte, donde en pleno siglo XXI se hace un despliegue de propaganda por los medios masivos de comunicación de todas las minucias previas a la ejecución de una persona.

Esta escuela del delincuente nato es la que ha desarrollado el pensamiento basado en que, conociendo que por su naturaleza se puede ubicar a las personas que potencialmente delinquirán, los delitos se pueden evitar, y la forma de evitarlos es la conformación de políticas “preventivas” de detención masiva y control sobre sujetos sospechosos y presuntos delincuentes que conformaron la legislación penal del autor (no derecho penal, pues esto es otra cosa), en donde el castigo es por “lo que eres” (raza, religión, clase social, idioma,

19 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Criminología... op. cit. p. 163.20 WACQUANT, Löic. La penalización de la miseria: de la importación de políticas de seguridad.

Renglones, n. 51, mayo/ago. 2002.

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color de piel, etc.) y no “por lo que haces”, que es cometer propiamente un delito. Derivado de ello, observamos una tendencia expansiva sobre las políticas de “tolerancia cero” en todo el mundo, que fue propagada por el alcalde de Nueva Cork, del partido Republicano de los Estados Unidos, Rudolph Giuliani, y que desafortunadamente la propia población aprueba estas medidas como un reconocimiento de que los gobiernos de los Estados están haciendo algo combatiendo la delincuencia con más patrullas, policías, cámaras de vigilancia, retenes, etc.

Por su parte, se critica a jueces y magistrados que “dejan huir” a un delincuente por razones de “mero formalismo jurídico”, cuando precisamente la única solución para evitar esta criminalización sobre los pobres, la ciudadanía y, sobre todo, contra los políticos o con pensamientos de oposición (que son a los que únicamente alcanza el Estado a enjuiciar) es el derecho penal, que, a través de sus principios y los fines del propio derecho, como la seguridad jurídica y la justicia, deben combatir al poder ilimitado del Estado para convertir a los ciudadanos en delincuentes, cita el profesor Loic Wacquant:

En el campo de las políticas, y después en el de las prácticas judiciales, es necesario oponerse a la multiplicación de los dispositivos que tienden a “ampliar” la red penal y proponer, cada vez que sea posible, una alternativa social, sanitaria o educativa que muestre cómo estas últimas tratan el problema desde su raíz, cuando la vigilancia policial y el encarcelamiento a menudo no hacen más que agravar y acrecentar los problemas21.

Estos estudios “concienzudos” de criminología y de políticas discriminatorias, persecutorias, han dejado atrás al Estado social de derecho para pasar al Estado vigilante, policial y penal, que es una característica del Estado tóxico de nuestros tiempos.

7 EL ESTADO, FABRICA DE LEYES

Lex iniustissima non est lex.La injusticia extrema no es derecho.

(Gustavo Radbruch)

Sintetizando los elementos que han conformado al Estado tóxico, es decir, aquel que con los buenos propósitos de la humanidad se fue conformando para la protección del ser humano viviendo en sociedad, ha dado como resultado en la actualidad una institución

21 WACQUANT, Loic. Las dos caras de un gueto: ensayos sobre marginalización y penalización. Buenos Aires: Siglo XXI, 2010. p. 153.

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como lo es el Estado, que resulta nociva, infectada, perjudicial y dañina para la propia población. Uno más de estos elementos ha sido, desafortunadamente, el derecho y, en particular, el manejo que se le ha dado por sus corrientes filosóficas, dando la apariencia de que se convirtió en un debate de los versados en esa materia, que les ha permitido transportarse a latitudes que no corresponden a la realidad de la sociedad; en tanto se encuentran en esos debates celestiales, la sociedad exige mayor practicidad y eficacia del derecho, de sus normas y de sus principios.

La propia concepción de derecho ha sido un debate permanente que muestra estos combates celestiales que no permiten avanzar a volverlo más funcional para la población y menos romántico en sus fundamentos. El debate filosófico permanente ha sido entre las corrientes ius-naturalistas, que han considerado que el derecho, sus normas y principios son propios de la naturaleza humana, anteriormente en una sociedad más identificada con las religiones, consideraba que las leyes eran dadas por Dios. Entonces, al considerarlas propias de la naturaleza humana o impuestas por Dios, que lo impuso no por un criterio de autoridad, es decir, porque Dios lo sostuvo, sino porque esas normas son buenas para el hombre: criterio de contenido, las leyes de los pueblos se cumplen sin necesidad de imponerlas por la fuerza, ya que la creencia de que son buenas es suficiente para que la mayoría las acate. Por lo cual, para mantener esas leyes y que generaciones posteriores no las modifiquen se propuso por la corriente del ius-naturalismo racionalista del silgo XVIII: la codificación. El código más emblemático en Europa es el Código de Napoleón, promulgado el 21 de marzo de 1804, el cual aglutinaba todas las ordenanzas y disposiciones que se encontraban vigentes en ese pueblo, creadas por un sinnúmero de legisladores: reyes, virreyes, alcaldes, cofradías, parroquias, barrios, etc.,22 que resultaban contradictorios y complejos para su interpretación y aplicación; por ello, la codificación permitiría que las leyes se mantuvieran permanentes, inmutables, y subsistirían para las generaciones futuras. Era tan exacta la codificación del siglo XIX que permitió la creación de sistemas jurídicos, los cuales cuentan con características de perfección: generales, permanentes, coherentes, jerárquicos, únicos y completos.

Por ello, los estudiosos del derecho se dedicaron a la interpretación de las leyes, de la norma jurídica puesta por el legislador, los métodos de su interpretación y la mejor forma de comprenderlas, con lo cual se fue fortificando una escuela de antaño y contraria al ius-naturalismo, denominada positivismo jurídico, que lo que anhela es considerar el derecho como un conjunto de conocimientos científicos, y para ello importa que las conclusiones

22 GROSSI, Paolo. Mitología jurídica de la modernidad. Madrid: Trotta, 2003. p. 83.

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que se obtengan de estos estudios sean comprobables, lo cual fue alejando cada día más al derecho de la realidad de la sociedad, pues los juristas se dedicaban a analizar la letra de la ley y no la ley de la realidad; se especializaban en los métodos de interpretación de las leyes y no en los métodos de interpretación de los hechos y sucesos que hay que juzgar, en conocer de memoria la ley vigente y no las exigencias de la sociedad.

Así, el derecho y sus científicos se fueron políticamente aislando de la sociedad, lo cual fue muy bueno para otras disciplinas sociales como los politólogos, sociólogos y, sobre todo, economistas; de esta forma, en los tribunales para cada caso hay un sinnúmero de respuestas y sentidos de las sentencias; la seguridad jurídica dejó de ser para el ciudadano y se ha convertido en la seguridad jurídica para el Estado, imponiendo leyes represivas y vigilancia permanentes de la ciudadanía. La justicia es una estrella polar que no se puede alcanzar pero que se persigue constantemente en las aulas, tesis, doctorados y doctrinas pero no en la realidad de los tribunales, presidios y oficinas de gobierno. Ese positivismo jurídico permitió que, en su extremo, se considerara cumplir con la ley simplemente porque esté creada por la autoridad competente, sin importar el contenido de la misma, a lo que se denominó positivismo ideológico. Por ello, en la historia jurídica ha cargado con la culpa de los mayores genocidios, como el nazismo, aunque hay estudios que dicen lo contrario.

Después de la Segunda Guerra Mundial, como muchas otras cosas en el mundo, tuvo que cambiar ese debate filosófico del “positivismo vs ius-naturalismo”, por lo cual se permitió considerar que existen ciertos derechos propios de las personas que no se pueden modificar por los cambios políticos en los Estados, sin importar si son de tendencias de izquierda o derecha, a los cuales se les denomina: “derechos humanos”, otros les nombran “derechos fundamentales”, y que en el amplio debate filosófico por unos se ha considerado que son otorgados por el Estado (tendencia positivista) y otros han considerado que son propios de la naturaleza del hombre (tendencia ius-naturalista). Sin embargo, pareciera que en realidad no es ninguna de estas respuestas, sino que son victorias de la población contra sus propias autoridades y los poderes que los dirigen, victorias que han ocasionado guerras, batallas y pérdida de vidas humanas. Por ello, el debate de los derechos humanos aún subsiste, pareciera que la vieja concepción de la justicia como aquella estrella polar que habrá que alcanzar terminó, ahora lo que se debe de alcanzar es la vigencia en los Estados de los derechos humanos, y que, contrario a lo que se sostiene muchas veces en la doctrina, no son coincidentes estos derechos: A mayor igualdad, menor libertad; a mayor seguridad jurídica, menor seguridad social, mayores derechos sociales o mayores derechos de propiedad y libertad, protección a la propiedad o a la igualdad, etc.

Por algunas de estas razones, el derecho se encuentra en un debate posterior al eterno debate del ius-naturalismo vs positivismo, pues no ha podido resolver problemas actuales como contener la globalización económica; tampoco ha podido hacer efectivos

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los derechos sociales, y aún menos ha podido resolver los problemas de colisión de principios, es decir, qué derecho tiene mayor importancia. Por ello, en los tribunales de mayor jerarquía, como la Suprema Corte de Justicia de la Nación, observamos que al resolver pareciera que dan “bandazos” algunas veces a favor del contribuyente y otras (muchas) a favor del poder tributario, regularmente a favor del poder punitivo del Estado y a cuenta gotas a favor del procesado o de la victima. Indudablemente, si el derecho está en crisis, es utilizado por el Estado tóxico.

CONCLUSIONES

• El Estado de la posmodernidad se ha situado en crisis; hoy pareciera que es un tóxico que causa alteraciones a su propia población.

• El Estado se ha investido en la indiferencia ante las necesidades de la ciudadanía, salvo que estas sean útiles para justificar la existencia del propio Estado.

• La posmodernidad ha inyectado miedo en la población; ante la presencia de riesgos, estos se incrementan y, ante la ausencia de riesgos, se inventan.

• Los Estados de la posmodernidad logran la pasividad de la ciudadanía con el consumo y el uso de herramientas como la tecnología, para vigilar a los ciudadanos y, en el peor momento, para usarla para cometer genocidios industrializados, como lo fue el exterminio nazi.

• La actual expansión de los delitos y las penas ha provocado que sea el propio Estado el que invente a los delincuentes, así como delitos artificiales.

• Para el Estado, el derecho se ha convertido en una herramienta que se traduce en una fabrica de leyes, para conformar un derecho simbólico que no se aplica pero sí se encuentra vigente.

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O QUE NÃO SE DISSE SOBRE A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF) A RESPEITO DO HABEAS CORPUS 126.292 E A ANTECIPAÇÃO DA EXECUÇÃO DA PENA

WHAT LEFT UNSAID ABOUT THE DECISION OF THE SUPREME COURT IN THE HABEAS CORPUS 126.292 ABOUT THE ADVANCE OF THE PENALTY’S EXECUTION

Paulo César Busato1

RESUMO

O artigo trata de propor novos pontos de vista na acesa polêmica que derivou da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em um pronunciamento que ordenou a execução de uma pena imposta em segundo grau de jurisdição, encontrando-se pendente a possibilidade de recorrer.

Palavras-chave: Processo Penal. Execução Penal. Teoria dos Recursos.

ABSTRACT

The article proposes new points of view about the huge controversy that has resulted from the decision of the Supreme Court Federal of Brazil who admited the execution of penalty of the sentences obtained in second degree of jurisdiction, although pending appeal.

Keywords: Criminal Process. Penal Execution. Theory of Appels.

1 Doutor em Problemas Atuais do Direito penal pela Universidade Pablo de Olavide. Professor da Universidade Federal do Paraná e da FAE Centro Universitário. Fiscal do Ministério Público do Paraná. E-mail: [email protected]

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INTRODUÇÃO

O Plenário2 do Supremo Tribunal Federal (STF)3 decidiu, no dia 17 de fevereiro de 2016, no julgamento do Habeas Corpus 126.292, que a condenação pode começar a ser cumprida depois de sua confirmação pelo Tribunal de segundo grau, ainda que esteja pendente o recurso especial ou extraordinário dirigido às instâncias superiores, ou seja, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou ao Supremo Tribunal Federal (STF). Ademais, afirmou-se que o fato de que esteja pendente o recurso não implica violação alguma do princípio constitucional de não culpabilidade.

A enorme repercussão da decisão gerou opiniões desencontradas que, em sua maioria, se manifestaram desde uma ótica sectária e priorizando um interesse corporativo. Em geral, os juízes e membros do Ministério Público (MP) celebraram o resultado da decisão, entendendo-a como uma medida eficaz para a luta contra a criminalidade em geral e, especialmente, contra a corrupção que, em neste momento, está presente em todo o país. Os advogados, em geral, destacam a questão da inconstitucionalidade da decisão, protestando e questionando os argumentos utilizados pela Corte.

Nem uns, nem outros, por razões distintas, consideram a questão mais importante que está por detrás de da decisão: a estrutura de um sistema recursal em matéria penal lamentável no Brasil e, assim mesmo, o fato de que se buscou com a decisão mitigar com um expediente inconstitucional – ciente disso – o problema que aquele representa.

Neste artigo pretende-se desvelar o que existe detrás dos argumentos a favor e contra a decisão.

1 O JULGAMENTO: A CONCEPÇÃO DO PRINCÍPIO DE NÃO CULPABILIDADE PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF)

Desde há muito, especificamente desde o ano de 2009, no julgamento sobre o habeas corpus 84078, era doutrina consolidada na Corte Suprema que a execução da pena dependia de uma decisão firme, ou seja, já não passível de reforma pela via recursal.

No julgamento do habeas corpus 126.292, na sessão do dia 17 de fevereiro de 2016, por maioria de votos, o Plenário do STF entendeu que é possível a execução da

2 Trata-se da composição integral da Corte, ou seja, um julgamento em que todos os juízes, denominados ministros, participam.

3 Trata-se da Corte Constitucional do Brasil.

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pena depois de sua confirmação em segundo grau, ou seja, a sentença do juiz, confirmada pelo Tribunal do Estado ou Federal, é suficiente para determinar o início do cumprimento de pena, ainda que esteja pendente de análise um recurso ao STJ ou ao próprio STF.

Mais ainda: o STF declarou que tal execução de pena não viola o princípio constitucional da presunção de inocência, porque a confirmação da decisão pelo Tribunal de segundo grau encerra a análise dos fatos e das provas, base da culpa do condenado, autorizando-se assim o início da execução da pena.

O julgamento teve por relator o ministro Teori Zavascki, que foi responsável pelo voto vencedor, seguido pelos ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes. Votaram contra os ministros Rosa Weber, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski.

O habeas corpus sobre o qual se pronunciou a Corte tinha por objeto impedir o cumprimento de uma ordem de prisão expedida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) a um indivíduo condenado à pena de cinco anos e quatro meses de prisão por um delito de roubo agravado. O Tribunal pronunciu-se condenando o réu e ordenou sua prisão imediata.

A defesa tinha manifestado sua pretensão de recorrer da decisão ante o STJ por entender que a prisão imediata do réu configurava uma antecipação de culpa indevida, uma vez que a decisão ainda não era firme, pois era possível uma modificação pela via recursal. Afirmava que a determinação da prisão contrariava a interpretação que o STF havia dado ao art. 5º, inciso LVII, da Constituição da República, que prescreve que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória”4.

1.1 OS ARGUMENTOS DO RELATOR

O relator do caso, ministro Teori Zavascki, assinalou que o chamado princípio de não culpabilidade e suas consequências existe até que seja confirmada a decisão condenatória em segundo grau. Até então, deve-se presumir a inocência do réu. Entretanto, depois desse momento, uma vez que os recursos já não versam sobre questões de prova mas somente sobre o direito aplicável, ou seja, sobre a interpretação das leis ou da Constituição, já não se pode impedir a execução da condenação com base na presunção de inocência.

4 BRASIL. Constituição (1988). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 29 jul. 2016.

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Os argumentos expostos pelo ministro relator se voltaram a duas frentes distintas: em primeiro lugar, pretendeu discutir o alcance do chamado princípio da presunção de inocência; em segundo lugar, estabeleceu o que explicou como “um equílibrio entre o princípio em questão e a necessidade de efetividade da função da jurisdição penal”.

No que respeita ao alcance do princípio, começou por afirmar que, desde o ano 1991 até 2009, o STF5 considerou que a presunção de inocência não impedia a prisão imediata se assim tinha sido disposto na sentença, ainda sendo possível recorrer da decisão em instências superiores.

Referiu, ademais, que, com base na antedita consideração, se pronunciou a Corte Suprema em duas oportunidades, no ano de 2003, tratando precisamente a questão relativa à execução provisória da pena nos seguintes termos:

SÚMULA 716 Admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.SÚMULA 717 Não impede a progressão de regime de execução da pena, fixada em sentença não transitada em julgado, o fato de o réu se encontrar em prisão especial.

Igualmente, sustentou o ministro relator que, apesar de ter presumido a inocência do acusado antes da sentença penal condenatória, a primeira condenação já “representa, por certo, um juízo de culpabilidade” derivado da apreciação que fez o juiz sobre os elementos de prova obtidos no curso do processo. Ainda que esta condenação não seja definitiva, o juiz afirmou sua convicção a respeito da culpa do réu. Dessa maneira, com a seguinte confirmação da condenação por um Tribunal de Justiça ou Federal, de hierarquia imediatamente superior, resta esgotado o exame da prova em, com ele, o sentido do duplo grau de jurisdição.

Assim, os recursos de natureza extraordinária ou especial não são desdobramentos do mesmo princípio porque não possuem efeito devolutivo amplo, ou seja, não podem conhecer questões relativas às provas, mas unicamente facultam a revisão do direito.

Também fez uma comparação com a decisão do STF sobre a Lei Complementar 135/2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa, que determina expressamente que constitui impedimento para propor-se como candidato em eleições públicas a existência de uma condenação derivada de órgão colegiado.

5 O precedente era o habeas corpus 68726, cujo relator foi o ministro Néri da Silveira.

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Do mesmo modo, o relator busca traçar uma similitude com um precedente do próprio STF, referente a uma matéria própia de direito internacional (o habeas corpus

85886) em cujo voto vencedor a ministra Ellen Gracie Northfleet sustentou que “em nenhum país do mundo, depois de observar-se o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa esperando o referendo da Suprema Corte”, em extensa comparação com o sistema recursal da Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Alemanha, França, Portugal, Espanha e Argentina.

Acrescentou, ademais, que desde a entrada em vigor da Emenda Constitucional 45/2004 só é possível conhecer e julgar os recursos extraordinários no STF se o tema tratado, além de ser matéria exclusivamente constitucional, cumpre o requisito de repercussão

geral, que excede ao simples interesse das partes demandantes.

No que refere ao segundo argumento, ou seja, à necessidade de compatibilizar o princípio de presunção de inocência e a efetividade da função da jurisdição penal, o ministro relator tratou de afirmar, primeiramente, que os juízos realizados nos Tribunais

Superiores não discutem a culpa, mas que, em geral, tratam unicamente temas de direito, com o que só excepcionalmente pretendem modificar as decisões dos Tribunais dos Estados e Tribunais Regionais Federais.

Invocou, adicionalmente, estatísticas apuradas pelo ministro Joaquim Barbosa, no julgamento sobre o habeas corpus 84078, no qual afirmou que dos 167 recursos extraordinários em que havia atuado como relator na Corte Suprema, tão só 36 tinham sido aprovados, e deles 30 tratavam exclusivamente da questão do regime inicial de cumprimento de pena, com o que, cerca de 4% dos recursos tinham alterado efetivamente as decisões de segunda instância.

Por isso, sustentou o ministro Teori Zavaski, os recursos manejados frente às Cortes Superiores (STF e STJ) são, de regra, simples instrumentos dilatórios, com o objetivo ineludível de produzir o advento da prescrição pelo transcurso exagerado do tempo sem juízo definitivo.

Pelo dito, tais recursos se estariam convertendo em instrumentos para lograr a não efetividade da jurisdição penal, sob o disfarce de um instrumento de garantia.

Conclui seu voto sustentando que incumbe ao STF garantir a efetividade do processo como único meio de realização do ius puniendi estatal.

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1.2 OUTROS ARGUMENTOS A FAVOR DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA: O VOTO DO MINISTRO BARROSO

Acompanhando o relator, o ministro Luís Roberto Barroso acrescentou outros argumentos em defesa da ideia de executar a pena a partir da decisão dos Tribunais Federais ou dos Estados.

Nesse sentido, em primeiro lugar, tornou pública sua crença na prevenção geral negativa da pena, afirmando que o Direito penal “deve ser sério e aplicado de modo efetivo para dissuadir as condutas criminosas”.

Em seguida, sustentou que “os diferentes países no mundo oscilam entre poder executar a condenação desde a decisão de primeiro grau ou depois da decisão de segundo grau”, mas nenhum exige mais que isso, precisamente porque a demora excessiva do castigo impede o Direito penal de dar à sociedade a satisfação necessária e, por isso, descumpre sua missão de prevenção geral em sentido dissuasório.

Em terceiro lugar, concluiu que a condenação de primeiro grau, pendente da resolução de um recurso de apelação, converte a presunção de inocência em presunção de culpa, pois o recurso extraordinário não se destina a investigar o acerto ou erro da decisão, nem permite que se volte a estudar o fato ou as provas. Tentou motivar esse último argumento afirmando que o texto da Constituição, quando se refere aos pressupostos do recurso especial ou recurso extraordinário, exige que a causa tenha sido decidida em única ou última instância6.

Por último, tão só para reforçar a convicção de que o sistema de recursos pode levar ao perecimento do direito, apontou na própria lista de julgamentos do dia um caso de homicídio do ano de 1991, que chegou à última instância depois de nada menos que 13 (treze) recursos.

6 “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: […] III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a

decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidad de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição. d) julgar válida lei local contestada por lei federal. Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: III – julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais

Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal; c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal”.

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1.3 OS ARGUMENTOS DA DIVERGÊNCIA

Contra a tese vencedora, os principais argumentos são observados nos votos dos ministros Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski.

O ministro Marco Aurélio sustentou que a execução da pena sem culpa devidamente formada é uma execução demasiado antecipada e que se essa fosse a leitura da Corte a respeito da Constituição, já não seria correto chamá-la de Constituição Cidadã, como se costuma fazer. Afirmou ainda que não é possível dar ao texto constitucional uma interpretação diversa da que está escrita e o que ali se diz é, precisamente, a impossibilidade de executar uma condenação enquanto seja possível exonerar a responsabilidade penal do agente. Ademais, se eventualmente se reforma a decisão a respeito da pena que se está cumprindo, não se pode devolver ao réu a liberdade perdida.

Igualmente, o Ministro Marco Aurélio, seguindo uma iniciativa anterior do Ministro Cezar Peluzo, propôs uma emenda constitucional tratando exatamente de permitir a execução de pena a partir da segunda decisão confirmatória da condenação, mas o Poder Legislativo não acolheu a pretensão.

O ministro Celso de Mello, afirmou, inicialmente, que a presunção de inocência é uma notável conquista histórica que remonta à Suma Teológica de São Tomás de Aquino, à Carta Magna Inglesa e à Declaração dos Direitos do bom povo da Virgínia, Estados Unidos, e que sua consagração na Constituição brasileira deriva de uma orientação a favor da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que já estabelecia, em seu art. 9º, tal presunção frente às práticas absolutistas do Ancien Régimen e da Declaração Universal de Direitos da Pessoa Humana, de 1948, que em seu art. 11, igualmente, estabeleceu que se presume serem todos inocentes até que exista uma condenação judicial definitiva.

Além disso, recordou que uma enorme quantidade de cartas e convenções internacionais sublinham o mesmo, tais como a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (Bogotá, 1948, Art. XXVI), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (San José de Costa Rica, 1969, Art. 8º, § 2º), a Convenção Europeia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (Roma, 1950, Art. 6º, § 2º), a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Nice, 2000, Art. 48, § 1º), a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, Carta de Banjul (Nairobi, 1981, Art. 7º, § 1º, “b”), a Declaração Islâmica sobre Direitos Humanos (Cairo, 1990, Art. 19, “e”) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Art. 14, § 2º), adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1966.

Portanto, concluiu que a decisão adotada viola a própria perspectiva de um Estado democrático a favor de uma autocracia como a que, em certos momentos históricos, contaminou as ideias penais italianas da Escola Clássica de Francesco Carrara e Giovanni

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Carmignani, a Escola Positiva de Enrico Ferri e Raffaele Garofalo, ou a Escola Técnico-Jurídica de Emanuele Carnevale e Vincenzo Manzini.

Segundo o ministro Celso de Mello, a presunção de inocência supõe a impossibilidade de executar a pena antes de encontrar-se esgotada a via recursal, constituindo isto uma hermenêutica emancipadora dos direitos básicos da pessoa humana.

Assinalou, ademais, um lamentável fato na história jurídica do Brasil que aconteceu durante a ditadura de Vargas, o chamado Estado Novo, quando se editou o Decreto-Lei n. 88/37, que impôs ao acusado o dever de provar, em sede penal, que não era culpado – uma fórmula de despotismo explícito que poderia assemelhar-se à interpretação criticada.

Em conclusão, o ministro Celso de Mello apontou que a lei de execução penal deixa clara a mesma exigência constitucional para a execução de pena, destacando a expressão trânsito em julgado7.

O ministro Lewandowski apontou que a decisão implicaria incrementar o número de pessoas na prisão, resultando um cenário caótico, que comparou com o inferno de Dante. Afirmou também que se no processo civil, no caso da discussão de questões patrimoniais, se estabeleceu um sistema de proteção e caução para evitar prejuízos enquanto se encontre pendente a decisão de um recurso, com mais razão deveria estabelecer-se se o risco é até a liberdade de uma pessoa.

2 UMA BREVE REFERÊNCIA AO SISTEMA DE RECURSOS PENAIS NO BRASIL

E preciso ter em conta que, pelo sistema de recursos no processo penal brasileiro, os julgamentos começam, de regra, por um processo que conclui sua primeira etapa com a decisão de um juiz singular que condena ou absolve, logo, de uma análise dos fatos e do direito.

Desta decisão cabe recurso ante um Tribunal que, no caso da justiça comum, será um Tribunal do Estado; e, nos casos de competência da justiça federal, será ante um Tribunal Federal, que julga os recursos correspondentes a um ou mais Estados. Nesta instância ainda

7 A refêrencia é aos arts. 105 e 147, que dispõem o seguinte: “Art. 105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou

vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução. Art. 147. Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restritiva de direitos, o Juiz da execução, de

ofício ou a requerimento do Ministério Público, promoverá a execução, podendo, para tanto, requisitar, quando necessário, a colaboração de entidades públicas ou solicitá-la a particulares”.

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é possível discutir tanto os fatos quanto o direito, ainda que já não se permita produção de novas provas. O julgamento aqui se celebra frente a um órgão colegiado que, no mínimo, está integrado por três juízes.

Contra a decisão do Tribunal do Estado ou do Tribunal Federal cabe interpor o recurso especial ante o STJ e, simultaneamente, cabe recurso extraordinário ante o STF. Neste recurso só cabe a discussão sobre questões de direito, ficando excluída a possibilidade de trazer a análise questões de fato. O STJ é a estância superior cuja função consiste em unificar a interpretação das leis federais em matéria penal. O julgamento se celebra também frente a um órgão colegiado, a 5ª ou 6ª Turma do STJ.

Paralelamente ao recurso especial, cabe contra as decisões dos Tribunais dos Estados ou dos Tribunais Federais um recurso extraordinário diretamente ao STF – que é a Corte que brinda uma interpretação uniforme da Constituição da República, uma espécie de Corte Constitucional, tratando de discutir a conformidade ou desconformidade da decisão do Tribunal recorrida com o texto constitucional.

Igualmente cabe, contra a decisão do STJ, o recurso extraordinário que permita discutir se a decisão de unificação das leis federais, emitida pelo STJ, não contraria a Constituição da República.

Finalmente, as decisões das Turmas do STF podem ser recorridas ante o Plenário do STF, onde cabe pretender a unificação do entendimento em relação à interpretação constitucional no caso concreto, entre decisões das duas Turmas.

Isso sem contar que, em cada uma das etapas são admissíveis embargos declaratórios, ou seja, recursos que versam sobre omissões, contradições ou obscuridades na decisão.

3 AS POSIÇÕES DOS JURISTAS E SUA TENDÊNCIA CORPORATIVA

A decisão da Corte acendeu uma intensa polêmica entre os juristas, tanto teóricos como práticos, e uma incrível avalanche de opiniões em publicações, periódicos e redes sociais, assim como debates televisivos por uma numerosa quantidade de meios de comunicação do nosso tempo.

Ao prestar atenção ao que se escreve, é possível observar como as opiniões enfrentadas se dão entre quem se manifesta a favor da decisão do STF e quem se opõe a ela. Entretanto, não só isso, mas a polêmica surgiu basicamente (com poucas exceções) entre juízes e promotores de justiça, de um lado, e advogados, de outro.

Isso não é algo surpreendente, mas o que sim é, é a forma pela qual se expressam os argumentos, esquecendo deliberadamente pontos-chave das críticas possíveis a uma

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e outra posição e silenciando completamente a respeito das razões que levaram o STF à tomada da discutida decisão.

De forma majoritária – e aqui por questões éticas me abstenho de citar fontes – os juízes e promotores de justiça aprovam a decisão do STF, e os advogados e defensores, em geral, a criticam.

3.1 OS ARGUMENTOS DOTRINAIS A FAVOR DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF): O FIM JUSTIFICA OS MEIOS

Em geral, os promotores de justiça e juízes – considerando honrosas exceções – se mostraram eufóricos com a decisão, pois acreditaram que acabaria a má praxis de postergação contínua e interminável da execução das penas, circunstância que permitiria lograr um equilíbrio entre o princípio de ampla defesa e o princípio da razoável duração do processo. Sustentaram que tratou-se de um “avanço notável” no “combate à impunidade”, no qual se fez um julgamento de ponderação entre os interesses das defesas e do Ministério Público e que, finalmente, se restauraria a interpretação anterior a 2009, reconhecendo que os recursos especiais e extraordinários não possuem efeito suspensivo, que é precisamente o previsto na Lei n. 8.038/1990.

Nessa linha, afirmaram que o que se deve garantir é o devido processo legal, com um acusador independente, um juiz imparcial, provas lícitas, assistência de advogado, um processo contraditório, direito ao silêncio e direito de um novo exame judicial da causa e não recursos sem fim que buscam uma prescrição.

Com isso, se leva em conta as vítimas, para permitir-lhes buscar as reparações devidas derivadas do delito assim como a recuperação e repatriação de ativos enviados para exterior, pendentes de sentenças penais firmes, estimados ao redor de 230 milhões de dólares.

3.2 OS ARGUMENTOS DOUTRINÁRIOS CONTRA A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF): UM DESCONHECIMENTO DELIBERADO

Por outro lado, e em sua maioria, os advogados e defensores tratam de centrar sua atenção na questão constitucional, por meio de posições críticas veementes contra a decisão do STF.

Os argumentos, geralmente, asseveram um retrocesso em conquistas democráticas derivadas da Constituição de 1988, uma relativização de cláusulas pétreas constitucionais relativas à presunção de inocência, e uma violação do decido processo legal e da ampla defesa.

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Os motivos aludidos insinuam que a decisão da Suprema Corte foi inspirada na carência estrutural da justiça e na necessidade de se evitar a chegada de um grande volume de recursos às cortes superiores e, inclusive, se disse que há uma intromissão do Poder Judiciário no Poder Legislativo, uma vez que a decisão contraria diretamente a Constituição da República.

Fala-se, ainda, de uma “teoria geral do processo” ou de uma espécie de “civilismo” do processo penal, motivado em um evidente olvido das categorias próprias do sistema criminal.

4 UM INTENTO DE SÍNTESE CRÍTICA

Os discursos contra a decisão posta sob lupa permitem que se possa identificar os vazios argumentativos, obtendo uma síntese que corresponda ao que Aristóteles identificava como a virtude (in medio virtus)8. A isso se dirige este escrito.

Portanto, primeiramente, cabe dizer que aqui não se quer só acrescentar argumentos a uma ou outra posição, mas o que interessa é contradizer ambas posições, considerando as omissões e, assim, enfrentar-se aos argumentos aludidos para tentar chegar a uma síntese, elucidando aquilo que se encontra implícito nas manifestações esgrimidas com extremada fúria.

4.1 CONTRA A POSTURA INSTITUCIONAL DE IMPUNIDADE (ESPECIALMENTE DO MINISTERIO PÚBLICO) COM SACRÍFICIO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Em primeiro lugar, gostaria de apontar que, especialmente na posição dos membros do Ministério Público sobre o tema, chama a atenção a completa ausência de referência à função constitucional da instituição.

Segundo determina o art. 127 da Constituição da República, o Ministério Público é uma “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”9. Ou seja, uma das principais funções da instituição

8 “Existiendo tres disposiciones de carácter, dos son perversas, la que es por exceso e la que es por defecto, e una es la da excelencia, la cual corresponde a la posição intermedia” (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Antonio de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009. p. 52).

9 BRASIL. Constituição (1988). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 29 jul. 2016.

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é a defesa da ordem jurídica e do regime democrático, o que se reconhece em toda a doutrina10.

Sendo assim, é fundamental a manutenção da ordem jurídica, o que se logra por meio do respeito absoluto à Constituição e às leis, defendendo o Estado de Direito e, por outra parte, conservando o regime democrático, o que significa defender as conquistas do indivíduo frente à atuação estatal.

O dito conduz diretamente a criticar todas as agressões à Constituição da República e, em especial, as que implicam violação aos princípios limitadores do Direito penal frente às intervenções do Estado.

A defesa do regime democrático consiste, basicamente, em exigir que o Direito penal imponha suas consequências a fim de lograr um estrito cumprimiento das normas constitucionais, que são garantias básicas dos cidadãos, inclusive dos cidadãos delinquentes. A principal dessas garantias é precisamente a referida ao inciso LVII do art. 5º da Constituição.

Por isso, não é possível falar – em nenhum caso – de uma postura terminológica belicista de combate à impunidade, pois não é legítimo, em um Estado democrático de Direito, uma guerra do Estado contra o cidadão, ainda que seja o cidadão delinquente. Inclusive porque tampouco tem sentido falar de um equilíbrio entre interesses da defesa contra os do Ministerio Público, simplemente porque o seu interesse – ao menos no sistema jurídico brasileiro – não é o de condenar sistematicamente, mas sim o de obter o resultado mais justo possível no processo criminal, seja de condenação ou de absolvição, até o ponto de que se lhe considera como parte imparcial11.

10 Sobre o tema, ver BELLO, Enzo. Perspectivas para o Direito penal e para um Ministério Público Republicano. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 292; MACHADO, Antonio. Curso de Processo penal. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 185-188, SOUZA, Sérgio Ricardo; SILVA, Willian. Manual de Processo penal Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 502-503.

11 E a opinião da maior parte da doutrina processual penal brasileira. Por exemplo, OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de processo penal. 16. São Paulo: Atlas, 2012. p. 452-454; NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de processo penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1978. p. 179; PEDROSO, Fernando de Almeida. Processo penal, o direito de defesa: repercussão, amplitude e limites. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 39; JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 219; BARROS, Marco Antonio de. A busca da verdade no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 154; CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias processuais nos recursos criminais. São Paulo: Atlas, 2002. p. 81; MACHADO, Antonio. Curso de Processo penal. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 188. Há quem entenda que isso não é compatível com um princípio acusatório, no qual o Ministério Público deve assumir uma posição de parte. Nesse sentido, BADARÓ, Gustavo. Processo penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. p. 194-195. No entanto, a posição é completamente equivocada porque não atenta ao essencial: trata-se de não assumir a posição de parte, mas sim de conjugá-la com o dever geral de preservação do regime democrático, que é perfeitamente possível com a atuação de fiscal da lei.

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De parte dos juízes, estranha-se muito o aplauso à decisão concomitante ao silêncio a respeito do motivo estrutural evidente que a inspirou, qual seja, a incapacidade estrutural das Cortes Superiores em responder ao volume absurdo de recursos que lhes incumbe apreciar. Nenhum magistrado comenta a evidente omissão na expansão estrutural possível e necessária do STJ.

Importa destacar que o art. 104 da Constituição da República afirma que “O Superior Tribunal de Justiça compõe-se de, no mínimo, trinta e três Ministros”12. Ainda que tivesse iniciado com o número mínimo de ministros, não há nenhuma razão que justifique o fato de que permaneça a composição ostentando o número mínimo legal de ministros, como de fato ocorre13. A questão vem à tona principalmente quando se sabe que no ano de 1989 o Tribunal processou e julgou 6.103 processos, enquanto que em 2015 processou e julgou 358.81314.

O que pode justificar que permaneça o mesmo número de ministros e que o quadro não se tenha ampliado? Pior: porque os próprios ministros e magistrados em geral não se manifestam no sentido de tal ampliação? Minha hipótese, eventualmente contestável, é a de que há uma acomodação gerada pelo possível status de exclusividade representada pela condição de ministro, que não se pretende ver diluída pela ampliação de seu número.

4.2 CONTRA A PRETENDIDA CONSERVAÇÃO DE UMA DESIGUALDADE ELITISTA: UMA CRÍTICA AOS ADVOGADOS

A crítica, ainda que sempre respeitando a presunção de inocência, omite a necessária discussão sobre o sistema de recursos que produz igualdade entre os sujeitos comuns e privilégios aos poderosos.

Percebe-se – com algumas poucas exceções – a ansiada necessidade de defesa da presunção de inocência, mas sempre utilizando o sistema de recursos que permite processos eternos. Calam-se, no entanto, unanimemente, no que respeita à equivocidade do regime de recursos vigente, sistema que produz uma enorme distorsão do resultado da intervenção jurídico-penal ao ponto de produzir uma evidente discriminação dos menos favorecidos no que se refere à efetividade das condenações.

12 BRASIL. Constituição (1988). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 29 jul. 2016.

13 A ideia a respeito desta crítica específica provém da sugestão do Dr. René Dotti, durante evento em sua homenagem, ocorrido em 15 de junho de 2016, na OAB-PR, cujo tema foi debatido.

14 BRASIL. Superior Tribunal da Justiça. Relatório estatístico: 2015. Brasília: STF, 2015. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Boletim/verpagina.asp?vPag=0&vSeq=263>. Acesso em: 2 ago. 2016. p. 20 e 25.

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O fato é que o sistema de recursos, tal e como está, gera a possibilidade de que um processo criminal se alargue quase indefinidamente.

E pior ainda, mas não se critica que, admitida a fórmula de presunção de inocência até as instâncias superiores, as decisões de primeiro e segundo grau nunca sejam firmes. Ou seja, não há segurança jurídica enquanto não se alcance o STF, porque uma decisão condenatória pode ser sempre revista em segundo grau para a absolvição, mas pode ser reformada outra vez no STJ para a condenação e, finalmente, no STF para decretar novamente a absolvição.

Da mesma forma que se pode pensar na espera eterna de uma absolvição, estará o réu por longo prazo submetido à espada de Dâmocles de uma condenação.

Além disso, também é uma realidade que tal dilação não é uniforme para todos os casos, bem pelo contrário. O que ocorre, de fato, é que as defensorias públicas não contam com recursos humanos suficientemente amplos para oferecer disponibilidade de manejo de recursos às instâncias superiores, nem sequer, muitas vezes, frente aos recursos dos Tribunais dos Estados e dos Tribunais Federais. Mais que isso: raríssimas vezes se apresentam os defensores públicos para uma defesa oral de suas teses, escritas frente aos órgãos colegiados, como fazem os defensores particulares. O mesmo se pode dizer a respeito dos embargos de declaração frente a omissões, contradições e obscuridades que possam ter as decisões de todas as instâncias.

Enfim, o grande problema para o qual os advogados deliberadamente não conduzem o debate é que os múltiplos recursos – não só de direito, mas de fato – estão disponíveis para os criminosos de colarinho branco, capazes de pagar por defesas privadas de altíssimo custo. O resultado disso é: não se trata de uma simples sensação de impunidade, mas da sensação geralizada de que a impunidade só existe a favor de quem possui excelente condição econômica. Em resumo: não se escuta ou vê – e se sabe perfeitamente a razão de os advogados criticarem o sistema de recursos penais brasileiro.

4.3 OS PROBLEMAS COM OS ARGUMENTOS DISCUTIDOS NA CORTE

Desde o ponto de vista jurídico-penal, e com o devido respeito ao STF, os votos sobre uma decisão de tal envergadura evidenciam uma clara insuficiência. O problema não deriva de uma falta de cultura jurídica dos senhores ministros, mas de uma exigência que lhes impõe, indevidamente, o próprio sistema lamentável de recursos penais.

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E que o STF deveria ser nossa Corte Constitucional, ou seja, deveria limitar-se a conhecer especificamente a matéria constitucional, área dominada pela Corte, que se constitui, de mais de um professor emérito.

O grande problema é quando uma Corte de especialistas se vê obrigada a pronunciar-se sobre generalidades, uma vez que chegam ao STF matérias de Direito civil, Direito do Trabalho, Direito processual e, inclusive, Direito penal.

Nesse sentido, com o devido destaque de que se trata de um problema de distribuição de competência no sistema de recursos e não da capacidade jurídica dos ministros, o certo é que, desde o ponto de vista penal, não é a primeira vez que as decisões do STF resultam absolutamente criticáveis15.

4.3.1 Os Problemas do Voto Vencedor

No que se refere ao voto vencedor, é completamente equivocado o argumento de que o princípio de não culpabilidade tem lugar tão somente até que a condenação seja confirmada em segundo grau, simplemente porque não se discute mais nos recursos especiais e extraordinários as provas ou os fatos.

O voto desconhece que a culpa não se afirma exclusivamente a respeito dos fatos e da prova, mas também da relação entre o Direito e o fato provado. A afirmação da culpa consiste em asseverar que os fatos provados permitem identificar sua coincidência com a proibição jurídica.

Por isso, evidentemente, uma afirmação de culpa jurídico-penal é tanto uma afirmação de fato, quanto de direito. Consequentemente, se a interpretação a respeito do Direito ainda pode ser revista, é mais que óbvio que não é possível estar seguro a respeito da culpa ou da responsabilidade penal.

Igualmente, é lamentável enfrentar o princípio de presunção de inocência com o princípio de necessidade de efetividade da função jurisdicional, porque a ideia de efetividade, ao contrário da presunção de inocência, não encontra lugar entre os princípios

15 Como foi o caso do mau uso da chamada teoria do domínio do fato na Ação Penal 470, um dos mais importantes julgamentos da história da República do Brasil. Veja os comentários críticos em LEITE, Alaor. Domínio do fato, domínio da organização e responsabilidade penal por fatos de terceiros: os conceitos de autor e partícipe na AP 470 do Supremo Tribunal Federal. In: GRECO, Luís et al. Autoria como domínio do fato. Madrid; Barcelona; Buenos Aires; São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 123-168.

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fundamentais do Direito penal16, conflito que deveria resolver-se fazendo o último prevalecer sobre o primeiro17.

Mais lamentável ainda foi a referência aos precedentes sumulares números 716 e 717, porque o recurso em tais textos não logra provar absolutamente nada sobre o tema discutido, pois versam sobre a execução provisória da pena a favor do réu, precisamente o contrário do que trata a decisão.

A comparação que se fez com a decisão do mesmo STF a respeito da Lei Complementar n. 135/2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa, que determina expressamente a Constituição de um impedimento para se propor como candidato em eleições públicas, a existência de condenação derivada de um órgão colegiado, não só não serve de parâmetro para a discussão, como também revela uma completa falta de compreensão da matéria penal já que, precisamente quando se discutiu aquela lei, o STF buscou traçar um incompatível paralelo entre a matéria penal e a matéria administrativa. O fato de que a lei que determina os requisitos para poder ser candidato a eleições é de matéria administrativa, não permite a comparação simples e direta com a afirmação da culpa penal.

Por outro lado, especificamente no que refere ao voto do ministro Luís Roberto Barroso, é necessário apontar que ele firmou acreditar que incumbe ao Direito penal uma função dissuasória de prevenção geral negativa, o que revela o quão longe das atuais discussões sobre a função da pena está o STF, uma vez que as críticas sobre esta função são, desde há muito, conhecidas na doutrina.

Há muito tempo se afirma que “esta teoria não tem em conta um aspecto importante da psicologia do delinquente: sua confiança em não ser descoberto”18.

Evidentemente, não será intimidado e não terá medo da pena aquele que confia na impunidade, com o que este fundamento da pena não encontra razão de ser.

Além disso, a existência de uma alta cifra oculta de criminalidade torna ainda mais evidente o curto alcance da pretendida intimidação.

Por outro lado, é especialmente criticável a prevenção geral negativa porque tende a suprimir a questão da culpabilidade, ficando indefinidos os limites das penas. Exatamente

16 Sobre isso, MIR PUIG, Santiago. Estado, pena y delito. Buenos Aires; Montevideo: B. de F., 2006. p. 88 e ss. No mesmo sentido, consulte-se BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 71 e ss.

17 Nesse sentido ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Trad. de Ernesto Garzón Valdez. Madrid: Centro de Estudios Políticos e Constitucionales, 2002. p. 89.

18 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 118.

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por isso não é estranho a um Estado totalitário19 recorrer à ameaça da pena para impor seu poder20.

Por último, é lamentável a ideia de que os recursos especiais e extraordinários contra as causas já “decididas” – expressão utilizada pela Constituição – obrigam a reconhecer que a culpa já estaria afirmada.

Esse argumento não resiste nem à mais elementar lógica jurídica. E evidente que todo ato judicial que escolhe determinado ponto de vista como correto e adequado, afastando teses contrapostas, será considerado uma decisão. Com isso, pode-se dizer que, do mesmo modo que se fala de decisão para referir aos acórdãos dos Tribunais Federais e dos Estados, é decisão a que emite o juiz singular. Por isso, o termo decisão que aparece na Constituição não tem por que significar uma afirmação da culpa, já que resta claro que uma decisão pode, sim, ser revista.

4.3.2 Os Problemas do Voto Vencido

Não é correto afirmar, como fez o ministro Marco Aurélio, que a execução da pena depois do julgamento de segundo grau seja demasiado antecipada. Afinal, há um juízo prévio e uma revisão.

E certo que a possibilidade que oferece o sistema de recursos implica exigir mais para a execução penal, mas isso não significa que haja pressa em executar a condenação criminal confirmada em segundo grau, porque, inclusive, isso é o que se passa na imensa maioria dos ordenamentos jurídicos em todo o mundo.

O que caberia dizer é que a precipitação existe somente frente o sistema de recursos penais brasileiro. Justamente por esse motivo, não faz nenhum sentido invocar o elenco de tratados e cartas de Direito internacional sobre a presunção de inocência, mas a isso se pode responder apontando que todos os outros países que fazem parte de tais tratados acatam seu conteúdo com tão só um duplo grau – e não um múltiplo grau – de jurisdição.

Por isso, precisamente, não cabe nenhuma comparação entre a situação pretendida pela Corte e o Decreto-Lei n. 88/1937 do período Vargas, que impôs – isso sim, desde o primeiro grau – uma fórmula abusiva de presunção de culpa penal.

19 RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 6. ed. Trad. L. Cabral de Moncada. Coimbra: Arménio Amado Editor, 1979. p. 321-323.

20 ROXIN, Claus. Strafrecht. Allgemeiner Teil. Band I. 4. ed. München: C. H. Beck, 2006. p. 83.

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Finalmente, não se pode menos que considerar lamentáveis as justificações de voto manifestadas pelo Ministro Lewandowski, quando mencionou a que um câmbio de entendimento agravaria a situação caótica do sistema carcerário, ou quando fez uma comparação com as garantias do Direito civil.

Ainda que seja adequado criticar a situação do sistema carcerário, não se pode corrigir um erro evidente com outro; Ou seja, tomando o contrario sensu, se revela o absurdo do argumento porque, nesse caso, nenhuma condenação, em qualquer grau e com qualquer número de recursos, pode justificar – como parece entender o magistrado – que alguém se submeta a uma prisão infernal.

Que o sistema prisional brasileiro é caótico, é um fato notório, mas seguramente isso não se deve a execuções provisórias, mas sim a uma péssima distribuição de recursos (concentrada no regime fechado e não no semiaberto ou aberto) e a uma péssima estrutura de assistência judiciária aos condenados, ao lado da multiplicação de adiantamentos de barreiras de imputação nas técnicas de tipificação, principalmente das legislações incriminadoras recentes.

De outro lado, não tem cabimento uma comparação com o Direito civil, uma vez que os princípios que ordenam os dois sistemas são completamente distintos, razão pela qual todo intento de paralelismo carece completamente de sentido.

CONCLUSÃO

Além de chamar a atenção sobre o que realmente é importante na questão, corresponde apontar algumas conclusões chaves que permitam inferir argumentos não declarados na decisão analisada.

A decisão do STF é de uma miséria histórica, mas encontra suas raízes em um problema claríssimo sobre o qual não se avança na discussão doutrinária: a crise do sistema de recursos penais.

Resultam acertadas as múltiplas referências nos votos da Corte que afirmam que em todos os países do mundo se limita a possibilidade de recurso a um duplo grau de jurisdição.

No entanto, essa não pode ser uma razão válida para quebrar o princípio de presunção de inocência, mas só serve para criticar uma absurda inércia do Poder Legislativo brasileiro que não se decide a alterar as regras sobre os recursos criminais. E cada dia mais se pode compreender as razões de tal postura, na medida em que são reveladas evidências de constantes práticas criminosas envolvendo membros do Congresso Nacional.

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A eles interessa conservar um sistema de recursos intermináveis que lhes permita, com o uso de seu poder econômico – muitas vezes derivado de corrupção – livrar-se de uma condenação.

Seria perfeitamente possível e adequado, desde o ponto de vista da presunção de inocência, um sistema de distribução das instâncias originais em um sistema ratione materiae complementado por um sistema ratione personae, que permita uma única revisão pela via de um recurso de apelação.

Como se nota, as questões importantes não podem se restringir à declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade da decisão do STF, senão que devem abranger as razões pelas quais a decisão foi essa.

Há muitas perguntas sem respostas. Entretanto, curiosamente, não são os temas abordados nos votos dos ministros nem nos comentários da doutrina. Não se pretende respondê-las nem oferecer soluções definitivas para o problema, mas apenas, através das perguntas corretas, propor um espaço de discussão adequado para evitar violações de garantias fundamentais.

As perguntas que cabe fazer são as seguintes:

• Por que o Poder Legislativo não toma iniciativa para modificar o sistema de recursos penais, adotando um modelo racional reduzido a um duplo grau de jurisdição?

• Por que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) não propõe algo nesse sentido? Seria porque desapareceriam, para alguns de seus membros, importantes recursos econômicos, criando-se fontes de trabalho para os defensores públicos?

• Por que o Ministério Público e o Poder Judiciário não se posicionam a favor de uma reforma legislativa? Por que não clamam pela ampliação dos quadros do STJ?

• Deve-se respeitar o caminho do precedente judicial, apesar do sacrifício das garantias democráticas?

Não posso oferecer nenhuma resposta conclusiva para essas perguntas, tampouco vi alguém fazê-las antes. No entanto, enquanto não nos propormos a discuti-las, seguiremos mutilando garantias constitucionais.

O que penso da decisão?

Não tenho dúvidas de que a execução de pena só deveria começar depois do trânsito em julgado de uma decisão. Afinal, uma das garantias principais, derivada do princípio de culpabilidade, é a necessidade de uma sentença condenatória firme para definir a culpa e permitir a imposição de uma pena. Só se pode pensar em executar uma condenação que não possa ser modificada simplesmente porque não se pode afirmar que

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se trata de um culpado enquanto não se encontre esgotada a via recursal. O problema é que isso nunca ocorre, ao menos nos processos penais nos quais se investiga sujeitos com grande poder econômico.

A mudança de entendimento do STF é um remendo em um falido sistema de recursos penais. Há direito indeclinável à revisão de uma decisão para evitar abusos, mas permitir revisões infinitas é igualmente abusivo.

O fato é que ao tentar corrigir um erro pela via equivocada, criou-se outro ainda mais grave. Por causa de leis que não funcionam, deixa de funcionar a Constituição.

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REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdez. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Antonio de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009.

BADARÓ, Gustavo. Processo penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.

BARROS, Marco Antonio de. A busca da verdade no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

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LIMITES FUNDAMENTAIS AOS PODERES DE INVESTIGAÇÃO PARLAMENTAR

FUNDAMENTAL LIMITS TO THE CONGRESSIONAL POWERS OF INVESTIGATION

Ana Paula Kosak1

Bruno Augusto Vigo Milanez2

RESUMO

O presente artigo trata da investigação parlamentar de inquérito, importante instrumento das minorias parlamentares que permite o desempenho de funções fiscalizatórias pelo Poder Legislativo. O objetivo do ensaio é demonstrar os limites ao exercício do poder investigativo em âmbito parlamentar e, portanto, tratar das balizas constitucionais que regem referida atividade.

Palavras-chave: Comissão Parlamentar de Inquérito. Investigação pelo Poder Legislativo. Limites Constitucionais.

ABSTRACT

This essay deal with the congressional powers of investigation, an important instrument of parliamentary minorities that allows the performance of oversight functions by the legislative power. The purpose of the essay is to demonstrate the limits to the exercise of investigative power in parliamentary framework and thus deal about the constitutional landmarks governing such activity.

Keywords: Congressional Powers of Investigation. Investigation by the Legislature. Constitutional Guarantees.

1 Aluna do 10º período do curso de Direito do Centro Universitário Uninter. E-mail: [email protected] Mestre em Direito pela UFPR e Doutorando em Direito Processual Penal pela mesma instituição.

Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC/UFPR. Advogado. Professor Universitário. E-mail: [email protected]

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INTRODUÇÃO

A higidez de uma democracia constitucional pressupõe observância ao princípio republicano3, estruturante do Estado para o desempenho das funções Legislativa, Judiciária e Executiva às quais competem, respectivamente, elaboração, tutela e execução de leis. A tais funções típicas somam-se funções atípicas (ou anômalas).

Nesse contexto, ao Legislativo compete a função precípua de elaboração de leis e fiscalização, bem como as funções atípicas de administração e julgamento4. Um dos mecanismos que permitem o desempenho dessas finalidades institucionais consiste nas comissões parlamentares de inquérito (CPI), que “são concebidas para viabilizar o inquérito necessário ao exercício preciso do poder de fiscalizar e de decidir, entregue ao Legislativo.”5 A importância institucional da investigação parlamentar não se restringe apenas e tão somente ao exercício de fiscalização atribuído ao Legislativo:

Amplo é o limite em que se desdobra a esfera das comissões de inquérito. Através dela uma Assembleia olha diretamente os problemas da vida nacional, a fim de examiná-los de modo mais acurado. A finalidade do inquérito não é só a apuração de responsabilidades. Ele tem também o objetivo de coligir material para a obra legislativa, material útil para as resoluções e leis, porém, de outro lado, ainda se agrega o trabalho na investigação de fatos econômicos, sociológicos, financeiros, e finalmente serve como medida de controle do Legislativo sobre o Executivo.6

A existência da CPI está prevista na regra do art. 58, § 3º, da CR/88:

As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores.7

3 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 223-5. Na jurisprudência: STF – MS 24.458, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 18.2.2003.

4 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 911.

5 Ibidem. p. 915. No direito comparado: VANOSSI, Jorge Reinaldo A. El poder de investigación del Congresso Nacional. Boletin Mexicano de Derecho Comparado, Ciudad de México, v. 9, n. 27, set./dez. 1976. p. 407-446.

6 FERREIRA, Luiz Pinto. Comentários à Constituição Brasileira. São Paulo: Saraiva, 1993. v. 3. p. 103.7 BRASIL. Constituição (1988). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: <http://

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As disposições constitucionais a respeito das CPIs são complementadas pela Lei n. 1.579/1952 – admitindo-se aplicação subsidiária das regras do Código de Processo Penal8 –, que regulamenta as especificidades formais e materiais destas.

O presente estudo objetiva identificar os direitos e garantias inerentes a este importante instrumento constitucional de efetivação da atividade do Poder Legislativo, que se situa no liame tênue entre a separação dos Poderes e a garantia dos direitos fundamentais9.

1 FUNDAMENTO DEMOCRÁTICO

A concepção clássica de democracia como “governo da maioria” não significa a vedação por completo da deliberação pelas minorias. Ao revés, com o movimento de constitucionalização do direito, pode-se dizer que a democracia passa a ser representada por um tríplice aspecto: 1) há determinados espaços nos quais nem mesmo a maioria absoluta decide; 2) há espaços nos quais as minorias decidem e; 3) fora dos espaços anteriores, decide a maioria.

Nesse contexto, é possível incluir as CPIs como instrumento deliberativo das minorias, pois sua instalação se dá pelo quórum mínimo de 1/3 (um terço) dos membros da Casa Legislativa10. Este quórum constitucional é necessário e suficiente para a criação da CPI, sendo desnecessária submissão do requerimento de instalação da Comissão em plenário pela maioria da Casa Legislativa11, o que além de violar a prerrogativa de

8 “Art. 36, parágrafo único, RICD – As Comissões Parlamentares de Inquérito valer-se-ão, subsidiariamente, das normas contidas no Código de Processo Penal”. Previsão similar está contida na regra do art. 153, caput, do Regimento Interno do Senado Federal (RISF).

9 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Op. cit. p. 916: “O princípio da separação dos Poderes e a garantia dos direitos fundamentais costumam ser os pontos nevrálgicos das discussões sobre a extensão dos poderes da investigação do Legislativo. Não surpreende que esses sejam os aspectos que dominam os debates sobre o assunto levados tanto à Suprema Corte americana como à brasileira.”

10 Em âmbito federal, o quórum de 1/3 como suficiente para a criação de CPI vem disciplinado, como norma de repetição, na regra do art. 145, caput, do RISF e no art. 35, caput, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD).

11 Alguns Estados admitem a deliberação plenária da instalação da CPI caso o quórum não esteja preenchido no requerimento de criação. Nesse sentido e exemplificativamente, dispõe a regra do art. 36, caput, do RI da Assembleia Legislativa do Estado do Paraná que “A Assembleia, por requerimento de um terço de seus membros, ou de qualquer um deles, individualmente, mediante deliberação do Plenário, instituirá Comissão Parlamentar de Inquérito [...].” (Grifo nosso). Na doutrina: “Se o quorum mínimo não for alcançado para a constituição da CPI, ou seja, se não subscreverem o requerimento o número mínimo necessário à sua constituição, este requerimento, se assim entender o autor (ou autores), poderá ser submetido à deliberação do Plenário, que decidirá a respeito da sua aprovação, i.é., da constituição ou não da CPI” (MARTÍNEZ, José Maria de S. Comissões parlamentares de inquérito. Disponível em: <http://www.institutocpibrasil.org.br/portal/artigos/31-comissoes-parlamentares-de-inquerito>. Acesso em: 9 nov. 2015).

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exercício pleno da democracia pelas minorias parlamentares12 também afronta o direito de oposição parlamentar13:

Existe, no sistema político-jurídico brasileiro, um verdadeiro estatuto constitucional das minorias parlamentares, cujas prerrogativas – notadamente aquelas pertinentes ao direito de investigar – devem ser preservadas pelo Poder Judiciário, a quem incumbe proclamar o alto significado que assume, para o regime democrático, a essencialidade da proteção jurisdicional a ser dispensada ao direito de oposição, analisado na perspectiva da prática republicana das instituições parlamentares. – A norma inscrita no art. 58, § 3º, da Constituição da República destina-se a ensejar a participação ativa das minorias parlamentares no processo de investigação legislativa, sem que, para tanto, mostre-se necessária a concordância das agremiações que compõem a maioria parlamentar. O direito de oposição, especialmente aquele reconhecido às minorias legislativas [...], há de ser aparelhado com instrumentos de atuação que viabilizem a sua prática efetiva e concreta no âmbito de cada uma das Casas do Congresso Nacional. A maioria legislativa não pode frustrar o exercício, pelos grupos minoritários que atuam no Congresso Nacional, do direito público subjetivo que lhes é assegurado pelo art. 58, § 3º, da Constituição e que lhes confere a prerrogativa de ver efetivamente instaurada a investigação parlamentar, por período certo, sobre fato determinado. [...] A ofensa ao direito das minorias parlamentares constitui, em essência, um desrespeito ao direito do próprio povo, que também é representado pelos grupos minoritários que atuam nas Casas do Congresso Nacional. [...] A prerrogativa institucional de investigar, deferida ao Parlamento (especialmente aos grupos minoritários que atuam no âmbito dos corpos legislativos), não pode ser comprometida pelo bloco majoritário existente no Congresso Nacional, que não dispõe de qualquer parcela de poder para deslocar, para o Plenário das Casas legislativas, a decisão final sobre a efetiva criação de determinada CPI, sob pena de frustrar e nulificar, de modo inaceitável e arbitrário, o exercício, pelo Legislativo (e pelas minorias que o integram), do poder constitucional de fiscalizar e de investigar o comportamento dos órgãos, agentes e instituições do Estado, notadamente

12 CARAJELESCOV, Yuri. Comissões parlamentares de inquérito: à luz das disciplinas constitucional, legal e jurisprudencial luso-portuguesa e brasileira. Curitiba: Juruá, 2007. p. 76. Na jurisprudência: “a garantia da instalação da CPI independe de deliberação plenária, seja da Câmara, do Senado ou da Assembleia Legislativa, [não havendo] razão para a submissão do requerimento de constituição de CPI a qualquer órgão” (STF – ADI 3.619-ED, Rel. Min. Luiz Fux, 19.8.2015).

13 STF – MS 24.849, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 22.6.2005 e STF – ADI 3.619-ED, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 16.9.2015. No mesmo sentido: “Submeter a instalação da CPI à prévia aprovação do Plenário significaria subtrair da minoria parlamentar de 1/3 a própria prerrogativa institucional de utilizar esse instrumento de investigação e fiscalização.” (STJ – RMS 23.618, Rel. Min. Teori Zavascki, DJe 11.12.2008).

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daqueles que se estruturam na esfera orgânica do Poder Executivo. A rejeição de ato de criação de Comissão Parlamentar de Inquérito, pelo Plenário da Câmara dos Deputados, ainda que por expressiva votação majoritária, proferida em sede de recurso interposto por Líder de partido político que compõe a maioria congressual, não tem o condão de justificar a frustração do direito de investigar que a própria Constituição da República outorga às minorias que atuam nas Casas do Congresso Nacional.14

2 COMPETÊNCIA PARA A INSTAURAÇÃO E OBJETO DA INVESTIGAÇÃO PARLAMENTAR

O Poder Legislativo detém a competência constitucional para a instauração da CPI, admitindo-se – em âmbito federal – a formação de Comissões no Senado, na Câmara dos Deputados, bem como a formação de comissão parlamentar mista de inquérito (CPMI), composta por membros de ambas as casas legislativas.

O Supremo Tribunal Federal (STF), por aplicação do critério da simetria e em observância ao princípio federativo (art. 1º, caput e 18, caput, da CR/88), considera igualmente legítima a criação de CPIs em âmbito Estadual, Municipal e Distrital15, desde que preenchidos os requisitos formais de instalação positivados na regra do art. 58, § 3º, da CR/8816, bem como respeitados os limites constitucionais relativos ao objeto da investigação.

Os fatos investigados na CPI são específicos e limitados à competência constitucional da Casa Legislativa. A especificidade significa que a CPI deve apurar fato determinado, claro e preciso, como se depreende, exemplificativamente, da regra do art. 35, § 1º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD)17.

14 STF – MS 26.441, Rel. Min. Celso de Mello, DJe 18.12.2009.15 GASPARINI, Diógenes. Curso de Direito Administrativo. 9. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2004, p.

807. Na jurisprudência: TJ-PE – AI 1976620118171150, Rel. José Ivo de Paula Guimarães, Julg. 13.10.2011.16 STF – ACO 1.271, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ. 12.2.2014 e STF – ADI 3.619-ED, Rel. Min. Luiz Fux,

19.8.2015: “[...] a garantia da instalação de determinada Comissão Parlamentar de Inquérito independe de deliberação plenária da respectiva Casa Legislativa. [...] também as Assembleias Legislativas estaduais devem observar os requisitos previstos no art. 58 do texto constitucional, sendo estes os únicos requisitos indispensáveis à criação das comissões parlamentares de inquérito” (Grifo nosso).

17 “Considera-se fato determinado o acontecimento de relevante interesse para a vida pública e a ordem constitucional, legal, econômica e social do País, que estiver devidamente caracterizado no requerimento de constituição da Comissão.” Na doutrina, há quem considere inclusive a possibilidade de a CPI investigar fatos particulares: “As comissões de inquérito também podem averiguar questões que se relacionem com fatos de ordem particular, problemas que interessem às relações de ordem privada [...].” (FERREIRA, Luiz

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A limitação da competência constitucional da CPI possui um dúplice objetivo. Primeiramente, vincula-se à necessidade de definição do objeto a ser investigado – o que se faz, como regra, no requerimento de instalação da Comissão18 –, de modo a possibilitar clareza e efetividade na investigação parlamentar, bem como controle desta atividade:

por uma necessidade funcional, a comissão parlamentar de inquérito não tem poderes universais, mas limitados a fatos determinados, o que não quer dizer não possa haver tantas comissões quantas as necessárias para realizar as investigações recomendáveis, e que outros fatos, inicialmente imprevistos, não possam ser aditados aos objetivos da comissão de inquérito, já em ação19.

Em segundo lugar, essa limitação concretiza a divisão de competências constitucionais, obstando a atividade investigativa de fato alheio à atribuição fiscalizatória da Casa Legislativa20 (v.g. veda-se a apuração de fatos de interesse federal por meio de CPI Estadual21 ou a investigação de fato de interesse municipal em CPI Estadual22).

Tais limitações objetivas não obstam que no contexto de uma CPI Federal se descortinem, fortuitamente, questões de interesse estadual ou municipal23. Nessa hipótese,

Pinto. Op. cit. p. 104).18 “Art. 145, § 1º, do RISF – O requerimento de criação da comissão parlamentar de inquérito determinará

o fato a ser apurado, o número de membros, o prazo de duração da comissão e o limite das despesas a serem realizadas” (Grifo nosso).

19 STF – HC 71.039, Rel. Min. Paulo Brossard, DJ 7.4.1994.20 OLIVEIRA FILHO, João de. Inquéritos Parlamentares. Revista de Informação Legislativa, v. 1, n. 2, jun.

1964; p. 71: “São investigáveis todos os fatos que possam ser objeto de legislação, de deliberação, de contrôle, de fiscalização, por parte de quaisquer órgãos do Poder Legislativo federal, estadual ou municipal.”

21 “Demonstrados indícios de irregularidades em detrimento do Erário Estadual, reveste-se de competência a Comissão Parlamentar de Inquérito promovida pela Assembleia Legislativa Estadual para apuração de eventuais ilicitudes no procedimento adotado pelos administradores públicos” (STJ – RMS 17.706, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ 17.12.2004). Igualmente, “é lícito constituir, em Assembleia legislativa, comissão parlamentar de inquérito, destinada ao exame dos convênios celebrados pelo Estado, em determinado período de tempo” (STJ – RMS 13.290, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 24.6.2002). Na doutrina: “eventuais atos abusivos ou ilegais dos Poderes Judiciários estaduais (excluindo-se os estritamente jurisdicionais), somente podem ser objeto de apuração pela respectiva Assembleia Legislativa, jamais pelo Senado Federal. E flagrantemente ilegal, assim, qualquer investigação de atos relacionados com as Justiças estaduais” (FARIA; Cássio Juvenal; GOMES, Luiz Flávio. Poderes e Limites das CPI’s. Disponível em: <http://www.institutocpibrasil.org.br/portal/artigos/22-poderes-e-limites-das-cpis>. Acesso em: 22 dez. 2014).

22 “A Assembleia Legislativa estadual não goza de competência para a apuração de malversação de recursos pelo Poder Executivo Municipal, o qual, nos termos do art. 31, da Constituição Federal deve ser fiscalizado pela Câmara de Vereadores, com o auxílio do Tribunal de Contas do Estado” (Grifo nosso. STF – SS 4.562, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe 13.2.2014). Por outro lado, a limitação do objeto de investigação não inviabiliza, por exemplo, que CPI Estadual possa requisitar documentos perante órgão federal (STF – ACO 730, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 11.11.2005).

23 “E possível que as investigações de uma Comissão Parlamentar de Inquérito estadual redundem na descoberta de crimes que sejam de competência de esferas diversas, da Justiça federal e da Justiça estadual” (STF – ADI 3.041, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 1.2.2012).

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não há qualquer invalidade na atividade investigativa, desde que o objeto da investigação estivesse no âmbito de competências constitucionais do ente federado e fortuitamente tenha se chegado à questão de interesse de ente diverso.

No plano legal, a limitação decorrente de competências constitucionais é evidenciada, exemplificativamente, na regra do art. 146, do RISF:

Art. 146 – Não se admitirá comissão parlamentar de inquérito [no Senado] sobre matérias pertinentes:I – à Câmara dos Deputados;II – às atribuições do Poder Judiciário;III – aos Estados.24

Como se depreende dessa regra, a limitação objetiva da atividade investigativa das CPIs não decorre exclusivamente da divisão de competências constitucionais entre União, estados e municípios, relacionando-se também à separação dos poderes.

Assim, a partir de exegese da regra do art. 146, inc. II, do RISF, o STF firmou posição no sentido de que a atividade jurisdicional é imune à investigação de CPI25. Por essa razão,

configura constrangimento ilegal, com evidente ofensa ao princípio da separação dos Poderes, a convocação de magistrado a fim de que preste depoimento em razão de decisões de conteúdo jurisdicional atinentes ao fato investigado pela Comissão Parlamentar de Inquérito.26

Em outros termos,

o acerto ou desacerto da concessão de liminar em mandado de segurança, por traduzir ato jurisdicional, não pode ser examinado no âmbito do Legislativo, diante do princípio da separação de poderes. O próprio Regimento Interno

24 BRASIL Congresso. Senado Federal. Regimento interno: Resolução n. 93, de 1970. Brasília: Senado Federal, 2015. Disponível em: <http://www25.senado.leg.br/documents/12427/45868/RISFCompilado.pdf/cd5769c8-46c5-4c8a-9af7-99be436b89c4>. Acesso em: 4 nov. 2015.

25 STF – HC 95.259-MC, Rel. Min. Eros Grau, DJ 4.8.2008. No mesmo sentido: “convocação de Juiz para depor em CPI da Câmara dos Deputados sobre decisão judicial, caracteriza indevida ingerência de um poder em outro” (STF – HC 80.089, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ 29.9.2000). Também: “A rigor, o Poder Legislativo tem como função precípua a normatização do direito podendo, em caráter excepcional, exercer alguns dos poderes inerentes ao Judiciário, como é o caso do poder de investigação outorgado pelo art. 58, §3º da Constituição Federal. O que não pode e não deve acontecer é o poder Legislativo investigar o poder Judiciário praticando atos judicantes de competência exclusiva deste último. Flagrante interferência na autonomia do Judiciário, afrontando a cláusula da separação dos Poderes e, com isso, violentando a Carta da República e o processo democrático” (Grifo nosso. STJ – HC 9.348, Rel. Min. Garcia Vieira, Rel p/ Acórdão Min. Waldemar Zveiter, DJ 19.3.2001).

26 STF – HC 80.539, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 1.8.2003.

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do Senado não admite CPI sobre matéria pertinente às atribuições do Poder Judiciário (art. 146, II).27

Portanto, magistrados podem ser investigados pelas Comissões, desde que o objeto da investigação não se refira à atividade jurisdicional. Se no curso da investigação for evidenciada a relação do fato investigado com o exercício do poder jurisdicional, o resultado da atividade investigativa deve ser remetido ao Poder Judiciário para a continuidade das diligências investigativas.

Por fim, as limitações objetivas influem inclusive na obrigatoriedade ou não de determinadas pessoas em comparecer e/ou prestar declarações nas Comissões. Exemplificativamente, entende o STF que autoridades federais estão desobrigadas de comparecer ou prestar esclarecimentos em CPI Estadual ou Municipal28 e, de forma análoga, conclui-se que CPI instalada pelo Congresso Nacional não deve inquirir autoridades municipais ou estaduais por fatos inerentes ao exercício funcional29.

3 LIMITES CONSTITUCIONAIS FORMAIS E MATERIAIS

A regra do art. 58, § 3º, da CR/88, prevê requisitos – que se afiguram como limitações de ordem material e formal30 – para a instalação de uma comissão parlamentar de inquérito. Em exegese dessa regra, pode-se extrair um conjunto de limitações formais e materiais à atividade investigativa das CPIs, os quais serão tratados na sequência.

3.1 INVESTIGAÇÃO DE FATO DETERMINADO

A investigação de fato certo e determinado tem por fundamento evitar apurações genéricas e ineficazes, de modo que a limitação do objeto de investigação configura um requisito inerente à segurança jurídica e à observância da legalidade31:

27 STF – HC 86.581, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 19.5.2006. No mesmo sentido: STF – MS 25.510, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 16.6.2006 e STF – HC 100.341, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 4.11.2010.

28 STF – SS 4.147, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 30.3.2010: “[...] esta Corte entende que autoridade federal pode apenas ser convidada para prestar esclarecimento em CPI estadual, não estando obrigada a comparecer.”

29 ALENCAR, Jesse Claudio Franco de. Comissões parlamentares de inquérito no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 152.

30 BULOS, Uadi Lammêgo. Comissão parlamentar de inquérito: técnica e prática. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 52.31 STF – SL 893, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 29.9.2015: “[...] A mera indicação, portanto, não parece

suficiente para garantir o funcionamento eficiente da comissão parlamentar de inquérito, o que poderá dar azo a apurações generalizadas aptas a propiciar insegurança jurídica e violações a direitos fundamentais.”

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Apenas são passíveis de investigação parlamentar os fatos delimitados, demarcados, exatos, em cujo regaço se delinearam acontecimentos de relevante interesse para a vida da Nação. Crises abstratas, problemas momentâneos, conflitos de interesses pessoais, embates de suscetibilidades, perseguições a pessoas ou entidades, tudo isso não se enquadra na exigência constitucional, porquanto o § 3º do art. 58 inadmite requerimentos contendo fatos amorfos e indiscriminados.32

No âmbito jurisprudencial, em que pese a necessidade de identificação de fato objetivo, específico, claro e determinado na instalação da CPI – sob pena de nulidade da investigação parlamentar33 –, admite-se que fatos correlatos e derivados possam ser investigados como desdobramento natural da atividade fiscalizatória34. Igualmente, admite-se a possibilidade de, no curso da investigação parlamentar, ampliarem-se os fatos inicialmente constantes do requerimento de instalação da CPI, desde que demonstrada a relação (nexo) entre o fato inicialmente investigado e o fato novo a ser apurado35.

Assim, é cabível posterior complementação do objeto investigado pela CPI, caso surjam fatos novos e conexos aos que originaram sua instalação36:

a Comissão Parlamentar de Inquérito poderá estender o âmbito de sua apuração a fatos ilícitos ou irregulares que, no curso do procedimento investigatório, se revelarem conexos à causa determinante da criação da comissão.37

Também se considera legítima a instauração de CPI para efetivar investigações relativas a fatos investigados por outros órgãos, ou que guardem conexão com o objeto de inquéritos policiais ou mesmo processos judiciais, em face da autonomia da investigação parlamentar38:

[...] la actuación judicial en nada obsta a la asunción de las facultades congressionales a un mismo tiempo: se trata de dos cosas distintas, que se desarrollan en ámbitos separados, con fines también diversos. [...] La investigación parlamentaria responde al propósito de acumular información que es necesaria

32 Grifo nosso. BULOS, Uadi Lammêgo. Op. cit. p. 218.33 TJ/PR – AI 1.339.079-7, Rel. Lélia Samardã Giacomet, DJ 27.7.2015.34 STF – MS 25.721-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19.12.2005.35 STF – MS 26.441, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 9.4.2007 e STF – MS 25.885, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ

24.3.2006.36 STF – Inq 2.245, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 9.11.2007.37 STF – HC 100.341, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe 2.12.2010.38 “A existência de procedimento penal investigatório, em tramitação no órgão judiciário competente, não

impede a realização de atividade apuratória por uma Comissão Parlamentar de Inquérito, ainda que seus objetos sejam correlatos, pois cada qual possui amplitude distinta, delimitada constitucional e legalmente, além de finalidades diversas” (STF – HC 100.341, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 4.11.2010).

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para que el Congreso o las Cámaras puedan ejercer con acierto y eficacia sus competencias constitucionales, ya sea en materia de legislación propriamente dicha, o en materia de control sobre la administración [...].39

3.2 PRAZO CERTO PARA A CONCLUSÃO DOS TRABALHOS

As CPIs, dado serem comissões temporárias, têm prazo determinado de conclusão. A previsão constitucional abstrata (prazo determinado) vem complementada pelas regras infraconstitucionais das Casas Legislativas, que preveem prazos expressos de encerramento – por exemplo, a regra do art. 35, § 3º, do RICD40 –, admitindo-se igualmente que no próprio requerimento de instalação da CPI se determine o prazo específico de duração, como na regra dos arts. 145, § 1º41 e 15242, do RISF.

Ainda que se admita excepcionalmente a prorrogação do prazo inicialmente determinado43, é pacífico em sede jurisprudencial a impossibilidade de as atividades apuratórias da CPI ultrapassarem o período da legislatura na qual foram instaladas44:

[...] a fixação de prazo certo tem por finalidade impedir que a CPI – um instrumento excepcional e, por isso mesmo, dotado de poderes especiais – se converta em um mecanismo de arbítrio e abuso do Legislativo, o que ocorreria

39 VANOSSI, Jorge Reinaldo. Op. cit. p. 414.40 “A Comissão, que poderá atuar também durante o recesso parlamentar, terá o prazo de cento e vinte dias,

prorrogável por até a metade, mediante deliberação do Plenário, para conclusão de seus trabalhos”.41 “O requerimento de criação de comissão parlamentar de inquérito determinará o fato a ser apurado, o

número de membros, o prazo de duração da comissão e o limite das despesas a serem realizadas”.42 “O prazo da comissão parlamentar de inquérito poderá ser prorrogado, automaticamente, a requerimento

de um terço dos membros do Senado, comunicado por escrito à Mesa, lido em plenário e publicado no Diário do Senado Federal, observado o disposto no art. 76, § 4º”.

43 Em sede doutrinária, entende-se admissível apenas uma prorrogação da atividade da CPI e desde que a possibilidade de prorrogação dos trabalhos esteja prevista no requerimento de instalação da Comissão. Nesse sentido, ver: BULOS, Uadi Lammêgo. Op. cit. p. 225. Contudo, o STF e o STJ entendem – face à receptação do art. 5º, § 2º, da Lei 1.579/1952 pela CR/88 – pela admissibilidade de sucessivas prorrogações, desde que respeitado o limite temporal da legislatura na qual a CPI foi instalada. Cf.: STF – HC 71.231, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 31.10.1996; STF – HC 71.261, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 3.8.2009; STF – MS 32.885, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 11.5.2015 e STJ – RMS 19.367, Rel. Min. José Delgado, DJe 29.8.2005.

44 STF – MS 32.885, Rel. Min. Rosa Weber, DJ 11.5.2015 e STF – MS 30.945, Rel. Min. Carmen Lúcia, DJe 6.5.2015: “[...] o Supremo Tribunal Federal, ao pronunciar-se sobre o âmbito temporal de atuação das Comissões Parlamentares de Inquérito, advertiu que o termo final desse período não poderá estender-se além da legislatura em que tais órgãos de investigação foram constituídos”. No mesmo sentido é a regra do art. 76, § 4º, do RISF. Na doutrina: FERREIRA, Luiz Pinto. Op. cit. p. 109.

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se tivesse ela a possibilidade de funcionar por período indeterminado, perdendo, dessa maneira, obviamente, o seu caráter excepcional.45

E oportuno ressaltar que em qualquer das hipóteses de encerramento das atividades da CPI, esgotam-se os poderes investigativos inerentes à atividade parlamentar, sendo que as diligências pendentes de realização perdem seu objeto46.

3.3 REMESSA DAS CONCLUSÕES A OUTROS ÓRGÃOS PÚBLICOS

A conclusão dos trabalhos da CPI se dá mediante a elaboração de um relatório final, ainda que relatórios parciais47 durante as atividades investigativas sejam admissíveis. A partir desses relatórios, a CPI externa suas conclusões – de natureza eminentemente política48 –, que podem ser remetidas a outros órgãos públicos para providências como a apuração de responsabilidades.

Surgindo indícios de ilícitos penais a partir da atividade investigativa parlamentar – e sendo os crimes submetidos a persecução penal mediante exercício de ação penal de iniciativa pública –, a CPI deve encaminhar os elementos indiciários ao órgão do Ministério Público. Muito embora não haja previsão constitucional expressa nesse sentido, uma correta sistematização do texto constitucional e da legislação infraconstitucional conduz a essa conclusão.

Em primeiro lugar, pois a CPI, em que pese possuir poderes próprios de autoridade judicial, não ostenta poderes de indiciamento49, persecução penal50, acusação e/ou punição:

45 SANTI, Marcos Evandro Cardoso. Controvérsias jurídico-constitucionais na criação de comissões parlamentares de inquérito. Revista de Informação Legislativa, v. 44, n. 173, jan./mar. 2007. p. 163.

46 STF – ACO 1.271, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe 30.10.2014.47 STF – MS 25.991-AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 10.9.2015.48 FERREIRA, Luiz Pinto. Op. cit. p. 109-110: “Problema interessante é o de averiguar a natureza das

conclusões das comissões de inquérito. Evidentemente, estas são órgãos políticos, e o seu relatório tem a mesma natureza política, abrangendo seus trabalhos e conclusões. [...] Os trabalhos da comissão de inquérito têm assim um sentido puramente político. A sua conclusão é política e não vale como decisão judicial; tampouco pode ser tida como peça de inquérito policial”.

49 “O encaminhamento do relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito, com a qualificação das condutas imputáveis às autoridades detentoras de foro por prerrogativa de função, para que o Ministério Público ou as Corregedorias competentes promovam a responsabilidade civil, criminal ou administrativa, não constitui indiciamento, o que é vedado linha da jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal”. (STF – HC 95.277, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 20.2.2009)

50 “O Ministério Público é o órgão competente constitucionalmente para o desempenho da persecução penal, e não há constrangimento ilegal algum na eventual apreciação de documentos fornecidos ao Procurador-Geral da República pela Comissão Parlamentar de Inquérito” (STF – HC 89.398, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 26.10.2007).

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A figura da CPI destina-se a promover a investigação sobre fato determinado, em prazo determinado, mas com competências investigatórias equivalentes às reservadas ao Poder Judiciário. A CPI não dispõe de poder condenatório, cabendo-lhe encaminhar suas conclusões às autoridades competentes para promover a responsabilização civil, penal ou administrativa adequada.51

Em segundo lugar, a regra do art. 129, inc. I, da Constituição da República (CR) de 1988 prevê, dentre o rol de funções institucionais do Ministério Público, o exercício privativo da ação penal de iniciativa pública. Desse modo, o surgimento de indícios de ilícitos penais submetidos à ação penal pública deve chegar a conhecimento formal ao órgão com atribuição para oferecer a denúncia.

Ademais, sendo certo que as CPIs possuem poderes próprios de autoridades judiciais, como consectário lógico também estão vinculadas às obrigações legais próprias das autoridades judiciárias e, dentre elas, o dever previsto na regra do art. 40, do CPP, segundo o qual “quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia”52.

Assim, sempre que da atividade investigativa da CPI surgirem indícios de ilícitos penais, há o dever de a Comissão encaminhar o resultado da atividade investigativa para o órgão do Ministério Público53.

No que se refere ao valor probatório das conclusões da CPI contidas no relatório conclusivo – ou em relatórios parciais –, entende-se que esse documento possui natureza jurídica de peça meramente informativa, não servindo como fundamento exclusivo para

51 Grifo nosso. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 762. No mesmo sentido, pontua João de Oliveira Filho que “As investigações parlamentares não têm, porém, caráter judiciário, não servem para julgar [...]” (OLIVEIRA FILHO, J. Inquéritos... Op. cit. p. 73).

52 BRASIL. Decreto-lei n. 3.689 de 03 de outubro de 1941. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 13 de outubro de 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em: 3 nov. 2015.

53 ALENCAR, Jesse Claudio Franco de. Op. cit. p. 161. O STF entende que não há ilegalidade no envio de documentos complementares – e não apenas do relatório final – pela CPI ao órgão do MP, ainda que a regra do art. 53, § 2º, da CR/88 seja no sentido de que somente as conclusões, se for o caso, serão encaminhadas ao Ministério Público (STF – HC 89.398, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 15.8.2006 e STF – MS 25.707, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 13.12.2005).

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uma condenação criminal54, ainda que os elementos informativos produzidos na CPI possam servir de justa causa para o exercício da ação penal55.

No que tange às regras de exclusão probatória (exclusionary rules), a jurisprudência do STF entende que a vedação de provas ilícitas (art. 5º, inc. LVI, da CR/88 e art. 157, do CPP) também se aplica à atividade investigativa parlamentar, de modo que diligências investigativas ilícitas produzidas em CPI são consideradas inadmissíveis para quaisquer efeitos processuais, inclusive eventual indiciamento ou oferecimento de denúncia56.

3.4 PUBLICIDADE

Em um regime minimamente democrático, a regra é a atuação estatal transparente. Assim, as atividades parlamentares em geral – e as investigações em particular – são públicas57, ainda que determinados atos investigativos possam ser realizados sob o regime do sigilo, em face da efetividade investigativa e da proteção de direitos individuais58.

Na doutrina, reforça-se a tese de que a publicidade dos atos da CPI fortalece o diálogo democrático, ainda que a divulgação do resultado investigativo parlamentar deva se pautar nos limites constitucionais e infraconstitucionais inerentes a toda e qualquer atividade persecutória59.

Obviamente, a publicidade dos atos investigativos parlamentares não engloba a divulgação pública irrestrita de elementos informativos produzidos que se encontrem sob a proteção constitucional do sigilo (v.g. dados bancários, fiscais e financeiros). Nesses casos, ainda que a CPI possa eventualmente ter acesso aos dados, não poderá divulgá-los

54 STF – HC 87.214-AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 6.5.2010 e STF – RExt 593.727, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 14.5.2015: “[...] a unilateralidade das investigações desenvolvidas pelo Estado (não importa se pela Polícia Judiciária ou pelo Ministério Público ou, ainda, por uma CPI), no estágio preliminar da persecução penal (‘informatio delicti’), não autoriza a válida formulação de qualquer decisão condenatória cujo único fundamento resida em prova inquisitorialmente produzida, mesmo porque [...] a prova unilateralmente coligida no âmbito de qualquer investigação estatal ‘não serve [...] para dar respaldo a um decreto condenatório, à falta de garantia do contraditório penal’”.

55 STF – AP 460, Rel. Min. Roberto Barroso, DJ 10.4.2014.56 STF – AP 341, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 25.8.2015.57 STF – HC 96.982, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 1.12.2008 e STF – MS 25.832, Rel. Min. Celso de Mello,

DJ 20.2.2006.58 Nesse sentido é, exemplificativamente, a redação da regra do art. 144, incisos e parágrafo único, do RISF,

que protege os documentos de natureza sigilosa. Na jurisprudência: STF – HC 89.226, Rel. Min. Ellen Gracie. DJ 1.8.2006 e STF – MS 25.717-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 1.2.2006.

59 BULOS, Uadi Lammêgo. Op. cit. p. 298. Para o autor, os atos da CPI devem ser divulgados apenas quando da apresentação do relatório final contendo as conclusões.

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publicamente60, nem mesmo no relatório de encerramento dos trabalhos61. Por outro lado, entende-se pela constitucionalidade da gravação e transmissão dos trabalhos da CPI, sem que isso implique violação ao direito à imagem dos convocados62.

3.5 NÚMERO DE CPIS EM FUNCIONAMENTO NA CASA LEGISLATIVA

Não há, na regra do art. 58, § 3º, da CR/88, limitação expressa que indique a quantidade máxima de CPIs que podem ser instaladas simultaneamente no âmbito de uma mesma Casa Legislativa. No entanto, o dispositivo constitucional admite que os Regimentos Internos contenham previsão nesse sentido63, como forma de limitar a quantidade de investigações parlamentares simultâneas, conferindo efetividade às CPIs existentes e não inviabilizando outras atividades parlamentares64.

Assim, a regra do art. 35, § 4º, do RICD, limita em cinco o número de CPIs funcionando simultaneamente. E em que pese inexistir regra similar no âmbito do Senado Federal, há limitação do número de CPIs em que um mesmo parlamentar pode funcionar: “o Senador só poderá integrar duas comissões parlamentares de inquérito, uma como titular, outra como suplente” (art. 145, § 3º, do RISF).

4 LIMITAÇÕES INSTRUMENTAIS E GARANTIAS INDIVIDUAIS

Em que pese a atividade investigativa parlamentar não se desenvolver no bojo de um processo – mas sim de um procedimento investigativo –, doutrina e jurisprudência reconhecem que determinadas garantias de ordem individual e instrumental são oponíveis às CPIs, mormente porque os resultados investigativos da Comissão podem servir de supedâneo ao complemento de uma investigação criminal ou mesmo ao exercício da ação penal.

60 STF – MS 25.686, Rel. Min. Marco Aurélio. DJ 2.12.2005 e STF – MS 26.895, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 2.10.2007.

61 STF – MS 26.014, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 1.8.2006; STF – MS 25.750, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 10.4.2006 e STF – MS 25.720-MC, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 2.2.2006.

62 STF – MS 24.832-MC, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 18.8.2006 e STF – MS 24.832, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 26.3.2009.

63 STF – MS 23.418, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ 9.11.2007.64 “Regimento Interno da Câmara dos Deputados: norma que estabelece o seu gerenciamento e disciplina as regras

de conduta. Art. 35, § 4º do RICD: preceito que objetiva tornar compatível, factível e viável o cumprimento do dispositivo constitucional autorizador da formação das CPIs e torna exequível esse extraordinário instrumento da atividade parlamentar” (STF – ADI 1.635-MC, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 5.3.2004).

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4.1 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

No complexo de garantias individuais oponíveis às CPIs está a dignidade da pessoa humana, que impõe à atividade investigativa parlamentar implementar, de forma ampla e genérica, o respeito à integridade física, moral e/ou psicológica do cidadão convocado:

[...] é certo que as Comissões Parlamentares de Inquérito [...] devem assegurar que a pessoa inquirida seja tratada “sem agressividade, truculência ou deboche” [...] o que significa o dever que qualquer pessoa tem de respeitar a dignidade da pessoa humana [...], igual tratamento e respeito há que ser dispensado aos membros da Comissão Parlamentar por quem a ela compareça, vale dizer, sem agressividade ou desrespeito, pois os congressistas lá estão no exercício dos seus deveres constitucionais. Os integrantes de Comissão Parlamentar de Inquérito, membros do Poder Público, desempenham funções de Estado, não podendo receber tratamento que importe em seu desrespeito ou em afronta a suas funções, desdém ou qualquer conduta que indique falta de urbanidade65.

No que se refere à concretização desse princípio em relação à investigação parlamentar, questão relevante se refere ao prazo de duração das inquirições dos depoentes, que na prática podem ser estender por horas ininterruptas, o que implica em desgaste físico e psicológico do cidadão convocado, com consequente quebra da dignidade humana:

ressalte-se que, objetivando evitar uma situação opressiva, desnecessária e ilegal, acreditamos que o interrogatório numa CPI, assim como em geral, deve ter duração certa, com prazos razoáveis de intervalo, tanto para as testemunhas como para os indiciados, uma vez que estamos tratando e defendendo direitos humanos, fundados no reconhecimento do princípio da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental este, é sublinhar, insculpido no inc. III, do art. 1º, da Carta Cidadã, para que tanto uns quanto outros tenham respeitada a garantia efetiva dos seus direitos fundamentais. [...] E inquestionável, portanto, a necessidade de serem criados hígidos limites para a duração dos interrogatórios dos indiciados ou dos depoimentos de testemunhos, com horário de início, intervalos sistemáticos, mais longos para os destinados às refeições, e, também, com fixação de hora para o término da sessão, ainda que a inquirição não tenha se encerrado, porque ela pode, sem qualquer prejuízo, ser retomada, nos mesmos moldes, nos dias seguintes, se for a hipótese.66

65 Grifo nosso. STF – HC 119.941, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 25.3.2014. No mesmo sentido: STF – HC 88.163, Rel. Min. Ayres Britto. DJ 14.3.2006; STF – HC 65.617, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 3.11.2005 e STF – HC 99.893, Rel. Min. Marcos Aurélio, DJ 27.8.2009.

66 VIEIRA, Luiz Guilherme. CPI: duração dos depoimentos diante do princípio da dignidade da pessoa humana. In: BONATO, Gilson (Org.). Processo Penal, Constituição e Crítica: estudos em homenagem ao prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 501.

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Tendo-se em vista a inexistência de previsão específica do prazo de duração das inquirições em sede de CPI, possível solução seria a aplicação por analogia da regra do art. 19, § 2º67, do Código de Processo Penal Militar.

4.2 CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA

O exercício das garantias do contraditório e da ampla defesa no âmbito das CPIs evoluiu na jurisprudência do STF. Inicialmente, havia uma tendência a negar eficácia a esses direitos em sede de investigação parlamentar, por analogia ao entendimento outrora firmado em relação a outras formas de investigação, como o inquérito policial. Em suma, não se compreendia como requisito de validade da atividade investigativa parlamentar – que seria atividade unilateral68 e, portanto, não dialética – a observância ao contraditório e a ampla defesa69.

Com a atual compreensão de que as garantias da ampla defesa e do contraditório são aplicáveis – ainda que de forma mitigada – na fase investigativa, tem-se reconhecido a sua oponibilidade às CPIs, inclusive com aplicação da Súmula Vinculante n. 14, do STF70. Portanto, a unilateralidade da CPI não exclui a incidência atenuada do contraditório e da ampla defesa na investigação.

O exercício efetivo do contraditório e da ampla defesa pressupõe a assistência por advogado, motivo pelo qual tem sido facultado ao indivíduo convocado para comparecimento em CPI que seja acompanhado e que se comunique pessoal e reservadamente com advogado constituído71.

A assistência por advogado, no âmbito da CPI, não é obrigatória, tratando-se de direito público subjetivo do cidadão, sendo desnecessária a nomeação de defensor

67 “A testemunha não será inquirida por mais de quatro horas consecutivas, sendo-lhe facultado o descanso de meia hora, sempre que tiver de prestar declarações além daquele termo. O depoimento que não ficar concluído às dezoito horas será encerrado, para prosseguir no dia seguinte, em hora determinada pelo encarregado do inquérito”.

68 STF – MS 24.082, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 3.10.2001.69 STF – MS 25.508, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 23.9.2005.70 STF – Rcl 18.936 , Rel. Min. Luiz Fux, DJe 18.8.2015: “[...] uma vez obstado o acesso do investigado, aqui

reclamante, e de seu defensor, aos documentos referentes à CPI, entendo configurada a violação à Súmula Vinculante nº 14 desta Suprema Corte, pela impossibilidade do amplo exercício do seu direito de defesa”.

71 STF – HC 96.145, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJ 2.10.2008 e STF – HC 119.941, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 25.3.2014: “[...] A jurisprudência deste Supremo Tribunal firmou-se no sentido de ser oponível às Comissões Parlamentares de Inquérito a garantia constitucional contra a autoincriminação e, consequentemente, do direito ao silêncio quanto a perguntas cujas respostas possam resultar em prejuízo dos depoentes”.

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público – na falta de procurador constituído – para o acompanhamento do indivíduo durante a investigação parlamentar72.

No âmbito de atuação do advogado durante a investigação parlamentar, a regra do art. 7º, caput e incisos, da Lei 8.906/1994 (Estatuto da OAB), contém os direitos e prerrogativas dos advogados, dentre os quais o direito de exercer a defesa do cliente constituído, em qualquer esfera de poder. O advogado tem o direito de exercer o seu munus público perante a CPI de forma ampla, irrestrita e independente – sob pena de cerceamento de defesa –, inclusive coibindo abusos na atividade da Comissão73.

4.3 VEDAÇÃO A AUTOINCRIMINAÇÃO FORÇADA

O princípio da vedação a autoincriminação forçada – derivado de interpretação extensiva conferida ao art. 5º, LXI, da CR/88 e ao art. 8.2, g, da Convenção Americana de Direitos Humanos – é garantia amplamente reconhecida e oponível às CPIs e a qualquer atividade persecutória estatal74.

A extensão da garantia não se reduz apenas ao direito ao silêncio do investigado, mas abrange o direito de o cidadão não ser compelido a produzir prova em seu desfavor75, mesmo quando convocado na qualidade de testemunha:

[...] seja na condição de investigado ou de testemunha, o paciente tem o direito de permanecer em silêncio, de comunicar-se com seu advogado e de não produzir prova contra si mesmo, conforme lhe assegura o art. 5º, LXIII, da Carta da República. Incide, na hipótese, o princípio nemo tenetur se detegere.76

72 ALENCAR, Jesse Claudio Franco de. Op. cit. p. 166.73 STF – MS 25.923, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 7.4.2006 e STF – HC 88.015, Rel. Min. Celso de

Mello, DJe 10.10.2011. No limite, admite-se, inclusive, que o advogado faça cessar a participação de seu cliente na CPI, caso direitos individuais ou prerrogativas profissionais sejam desrespeitadas (cf.: STF – HC 129.698-MC, Rel. Min. Celso de Mello, Julg. 10.8.2015).

74 STF – HC 128.333, Rel. Min. Roberto Barroso, DJ 20.5.2015; STF – HC 119.941, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 29.4.2014 e STF – HC 100.341, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 4.11.2010.

75 O exercício da garantia da vedação a autoincriminação forçada, porém, não significa que o cidadão intimado esteja desobrigado de comparecer à CPI. Ou seja, ainda que o cidadão exerça o direito de permanecer em silêncio e de não produzir provas em seu desfavor, tem o dever de comparecimento à Comissão. Nesse sentido, cf. STF – HC 128.390, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 29.5.2015.

76 STF – HC 129.219, Rel. Min. Carmen Lúcia, DJ 2.7.2015. E reconhecida a garantia da vedação a autoincriminação forçada inclusive nas hipóteses em que o requerimento de convocação é silente ou obscura quanto à condição de investigado ou testemunha do cidadão convocado: “[...] atento aos moldes da aprovação do requerimento de convocação – sem identificação precisa de sua condição de acusada, potencial investigada ou mera testemunha, cabível o resguardo aos direitos inerentes à condição de investigado.” (STF – HC 131.197-MC, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 5.11.2015). Também se observa a garantia

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Tratando-se de direito fundamental – marcado pela universalidade77, indisponibilidade e eficácia imediata (art. 5º, § 1º, da CR/88) – o dever de observância à garantia pode ser invocado a qualquer tempo e independemente de declaração judicial, ainda que seja admissível a impetração de habeas corpus preventivo para o seu reconhecimento78.

5 RESERVA DE JURISDIÇÃO E LIMITAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Toda e qualquer atividade investigativa pode implicar na limitação de direitos fundamentais. As CPIs não fogem à regra. Em caráter excepcional, medidas restritivas de direitos fundamentais são cabíveis no âmbito investigativo parlamentar, sempre e obviamente observando os limites constitucionais79.

A adoção de medidas restritivas de direitos fundamentais no âmbito da investigação parlamentar observa o critério da colegialidade, estando a validade da restrição condicionada à aprovação da maioria absoluta dos integrantes da CPI80.

Muito embora possua a CPI poderes de investigação próprios das autoridades judiciárias, entende-se que esses poderes são limitados81 pela cláusula da reserva de jurisdição, que pode ser definida como

nas hipóteses em que o cidadão é convocado na qualidade de testemunha, porém é possível verificar a sua real condição de investigado (STF – HC 130.537, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 6.10.2015). Na doutrina: FERREIRA, Luiz Pinto. Op. cit. p. 142: “Assim sendo, o cidadão não pode ser compulsoriamente obrigado a auto-incriminar-se ou a acusar-se pessoalmente por uma comissão parlamentar de inquérito, bem como não pode estar sujeito a um processo de natureza inquisitorial”.

77 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit. p. 416-417.78 STF – HC 128.390, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 25.5.2015 e STF – HC 111.567, Rel. Min. Celso de Mello,

DJ 5.8.2014: “[...] Qualquer pessoa que sofra investigações penais, policiais ou parlamentares, ostentando, ou não, a condição formal de indiciado – ainda que convocada como testemunha [...] –, possui, entre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer em silêncio e de não produzir provas contra si própria, consoante reconhece a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal [...]”.

79 KANAYAMA, Rodrigo Luis. Comissões parlamentares de inquérito: limites às restrições aos direitos fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2001. p. 203 e ss.

80 STF – MS 23.669, Rel. Min. Celso de Mello. DJ 17.4.2000: “[...] O necessário respeito ao postulado da colegialidade qualifica-se como pressuposto de validade e de legitimidade das deliberações parlamentares, especialmente quando estas – adotadas no âmbito de Comissão Parlamentar de Inquérito – implicam ruptura, sempre excepcional, da esfera de intimidade das pessoas”. Cf. ainda: STF – MS 25.005, Rel. Min. Marco Aurélio. DJ 18.2.2005: “[...] A observância do quorum previsto regimentalmente para deliberação – maioria absoluta dos membros que integram a comissão – é formalidade essencial à valia das decisões, presente ato de constrição a alcançar terceiro”.

81 STF – HC 71.039, Rel. Min. Paulo Brossard, DJ 14.4.1994.

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o direito de qualquer indivíduo a uma garantia de justiça, igual, efetiva e assegurada através de “processo justo” para defesa das suas posições jurídico-subjetivas. Esta garantia de justiça tanto pode ser reclamada em casos de lesão ou violação de direitos e interesses dos particulares por medidas e decisões de outros poderes e autoridades públicas (monopólio da última palavra contra actos do Estado) como em casos de litígios entre particulares e, por isso, carecidos de uma decisão definitiva e imparcial juridicamente vinculativa (monopólio da última palavra em litígios jurídico-privados).82

Este postulado

importa em submeter, à esfera única de decisão dos magistrados a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de explícita determinação constante do próprio texto da Carta Política, somente pode emanar do juiz, e não de terceiros, inclusive daqueles a quem se haja eventualmente atribuído o exercício de “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais83.

A limitação das atividades investigativas pela cláusula da reserva de jurisdição é construída na casuística dos precedentes:

A cláusula constitucional da reserva de jurisdição – que incide sobre determinadas matérias, como a busca domiciliar (CF, art. 5º, XI), a interceptação telefônica (CF, art. 5º, XII) e a decretação da prisão de qualquer pessoa, ressalvada a hipótese de flagrância (CF, art. 5º, LXI) – traduz a noção de que, nesses temas específicos, assiste ao Poder Judiciário, não apenas o direito de proferir a última palavra, mas, sobretudo, a prerrogativa de dizer, desde logo, a primeira palavra, excluindo-se, desse modo, por força e autoridade do que dispõe a própria Constituição, a possibilidade do exercício de iguais atribuições, por parte de quaisquer outros órgãos ou autoridades do Estado84.

Além da vedação à decretação de prisões cautelares, interceptação telefônica, quebra de sigilo de processo submetido a segredo de justiça85, veda-se que a CPI determine

82 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Op. cit. p. 668.83 STF – MS 23.452, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 12.5.2000 e STF – MS 33.663, Rel. Min. Celso de Mello, DJe

19.6.2015: “[...] A Constituição da República, ao outorgar às Comissões Parlamentares de Inquérito “poderes de investigação próprios das autoridades judiciais” (art. 58, § 3º), claramente delimitou a natureza de suas atribuições institucionais, restringindo-as, unicamente, ao campo da indagação probatória, com absoluta exclusão de quaisquer outras prerrogativas que se incluem, ordinariamente, na esfera de competência dos magistrados e Tribunais, inclusive aquelas que decorrem do poder geral de cautela conferido aos juízes, como a decretação de indisponibilidade de bens da pessoa sob investigação legislativa”.

84 Grifo nosso. STF – MS 23.452, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 12.5.2000.85 STF – MS 27.483, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 10.10.2008: “Dito de maneira menos congestionada, as

Comissões Parlamentares de Inquérito carecem, ex autoritate propria, de poder jurídico para revogar, cassar,

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diretamente o bloqueio e a indisponibilidade de bens86. Por outro lado, admite-se que a CPI possa requisitar, fundamentadamente, documentos inerentes a dados bancários e fiscais87. Também se entende que não estão abarcadas na cláusula da reserva de jurisdição as diligências investigativas previstas no art. 2º, da Lei n. 1.579/1952, art. 148, caput, do RISF e art. 36, do RICD.

No cotejo entre a atividade investigativa parlamentar e a cláusula-limite da reserva de jurisdição, os pontos que seguem podem ser sumariados.

5.1 BUSCA E APREENSÃO DOMICILIAR

Por força do art. 5º, inc. XI, da CR/88, a inviolabilidade domiciliar – extensível também ao quarto ocupado de hotel, empresa ou mesmo escritório de advocacia88 – é direito fundamental acobertado pela reserva de jurisdição, de modo que buscas e apreensões domiciliares não podem ser realizadas diretamente por CPI89. E admissível, porém, que a Comissão represente fundamentadamente ao Poder Judiciário, pleiteando a realização da diligência.

Em que pese o reconhecimento da garantia da inviolabilidade domiciliar, entende-se que é afeto às CPIs o poder de ordenar medidas de busca e apreensão não qualificadas como busca domiciliar90. A determinação da medida – que independe de autorização judicial – deve vir acompanhada da indicação de causa provável e dos fundamentos que a justificam, sob pena de nulidade absoluta da diligência91.

compartilhar, ou de qualquer outro modo quebrar sigilo legal e constitucionalmente imposto a processo judiciário.” No mesmo sentido: STF – MS 27.496, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 25.8.2008.

86 STF – MS 23.480, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 15.9.2000.87 “No âmbito do Poder Legislativo, apenas as comissões parlamentares de inquérito, nos termos do art. 58, §

3º, da Lei Maior, pode determinar a apresentação de declaração de bens ou informações sob sigilo fiscal, o que, evidentemente, fica ainda condicionado pela existência de um quadro fático concreto e específico e pela apresentação de pedido com fundamentação individualizada que justifique a invasão da privacidade do investigado” (STF – ADI 2.225, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 30.10.2014).

88 STF – MS 23.444, Rel. Min. Maurício Corrêa. DJ 28.3.2000.89 Em sentido contrário, admitindo-se que a CPI possa realizar busca e apreensão, mesmo que de caráter

domiciliar, cf. STF – MS 21.872, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 17.3.2000.90 STF – MS 33.663, Rel. Min. Celso de Mello, DJe 19.6.2015: “[...] as Comissões Parlamentares de Inquérito

[...] dispõem de competência para ordenar medidas de busca e apreensão cuja execução, no entanto, em sua projeção espacial, não se qualifique como de natureza domiciliar [...].”

91 STF – MS 33.663, Rel. Min. Celso de Mello, DJe 19.6.2015; STF – HC 80.420, Rel. Min. Ellen Gracie. DJ 1.2.2002 e STF – MS 23.642. Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 9.3.2001.

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5.2 REQUISIÇÃO DE INFORMAÇÕES E DOCUMENTOS A ÓRGÃOS PÚBLICOS, BEM COMO SOLICITAÇÃO DE AUDITORIAS E INSPEÇÕES

A previsão dessas diligências está disciplinada no art. 2º, da Lei n. 1.579/1952, bem como no art. 148, caput, do RISF e art. 36, II, do RICD. Aplicável à matéria ainda, subsidiariamente, as regras dos arts. 355, do CPC92 e 234, do CPP93, bem como a Lei de Acesso à Informação (Lei n. 12.527/2011).

Informações sigilosas e relevantes para a segurança do Estado – segredos de Estado – devem ser franqueadas à CPI, a quem incumbirá a responsabilidade pela não divulgação do segredo94.

Relativamente às CPIs municipais, o STF entende que o poder de requisitar documentos se restringe aos órgãos públicos municipais95, tendo-se em vista a restrição territorial da atividade investigativa parlamentar municipal.

No que se refere à solicitação de auditorias e inspeções ao Tribunal de Contas, a autonomia funcional desse órgão constitui limite aos requerimentos da CPI, não havendo qualquer subordinação do Tribunal de Contas às Comissões96. Portanto, recebido o pedido de auditoria ou inspeção, o Tribunal de Contas analisará a conveniência e oportunidade do pedido, podendo recusá-lo justificadamente97.

5.3 QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO, FISCAL, FINANCEIRO E DE REGISTRO TELEFÔNICO

O STF entende que não estão acobertados pela reserva de jurisdição – e portanto podem ser determinados diretamente em investigação parlamentar – a decretação da quebra dos sigilos bancário, fiscal, financeiro e de registros telefônicos, desde que a diligência seja

92 “O juiz pode ordenar que a parte exiba documento ou coisa, que se ache em seu poder”.93 “Se o juiz tiver notícia da existência de documento relativo a ponto relevante da acusação ou da defesa,

providenciará, independentemente de requerimento de qualquer das partes, para sua juntada aos autos, se possível”.

94 ALENCAR, Jesse Claudio Franco de. Op. cit. p. 97.95 “Constitucionalidade do art. 12 da Constituição gaúcha, que assegura às Câmaras Municipais no exercício

de suas funções legislativas e fiscalizadoras, a prerrogativa de solicitarem informações aos órgãos da administração direta e indireta, situados no respectivo município” (STF – ADI 1.001, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 8.8.2002).

96 BULOS, Uadi Lammêgo. Op. cit. p. 131.97 ALENCAR, Jesse Claudio Franco de. Op. cit. p. 99-100.

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fundamentada – com indicação concreta de causa provável98 –, excepcional99 e autorizada em atenção ao princípio da colegialidade, sob pena de nulidade100.

Entende-se devidamente amparada a diligência de quebra de sigilo quando estiverem presentes simultaneamente os seguintes requisitos: (a) motivação concreta; (b) pertinência temática com o que se investiga; (c) necessidade absoluta da medida, representada pela impossibilidade de obtenção do meio de prova através de outras formas e; (d) indicação de limitação temporal do objeto da medida, que não pode representar devassa ilimitada na esfera de proteção individual101.

No que diz com informações financeiras, admite-se que as CPIs Federais possam obter informações através do Banco Central do Brasil (BCB), Comissão de Valores Mobiliários ou diretamente das instituições financeiras, por força da regra do art. 4º, da Lei Complementar n. 105/2001102.

No que se refere aos registros telefônicos, a CPI não pode determinar quebra de sigilo telefônico e/ou telemático – determinando a captação de comunicações em tempo real103 –, admitindo-se apenas e tão somente o acesso direto a registros telefônicos efetivados no passado. O acesso às comunicações telefônicas e/ou telemáticas deve ser precedido de autorização judicial fundamentada104 (arts. 1º, caput e 5º, da Lei n. 9.296/1996).

98 STF – MS 25.668, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 24.11.2005; STF – MS 25.668, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 4.8.2006 e STF – MS 33.772, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 11.9.2015: “[...] Ainda que não se afaste das comissões a prerrogativa de requisitar informações de conteúdo financeiro, impõe-se que os pronunciamentos de natureza restritiva venham acompanhados de justificativa apropriada, com a clara indicação dos dados pretendidos e das circunstâncias determinantes, não sendo suficiente, para tanto, adotar-se, como móvel, a prévia realização de debates com jornalistas”. Igualmente, entende-se inexistir causa provável à decretação da medida, quando o fundamento único e exclusivo da diligência consiste em reportagem jornalística (STF – MS 24.982, Rel. Min. Joaquim Barbosa. DJ 2.8.2004).

99 STF – MS 23.843, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 1.8.2003 e STF – MS 25.812, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 23.2.2006.

100 STF – MS 24.817, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 6.1.2009 e STF – MS 25.668, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 4.8.2006.

101 STF – MS 25.966, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 22.5.2006.102 “O Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários, nas áreas de suas atribuições, e as

instituições financeiras fornecerão ao Poder Legislativo Federal as informações e os documentos sigilosos que, fundamentadamente, se fizerem necessários ao exercício de suas respectivas competências constitucionais e legais”.

103 Sobre ser vedado à CPI a decretação de interceptação telefônica, porque matéria afeta à reserva de jurisdição, cf.: STF – MS 23.652, Rel. Min. Celso de Mello. DJ 16.2.2001.

104 KANAYAMA, Rodrigo Luis. Op. cit. p. 223.

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5.4 CONVOCAÇÕES E INTIMAÇÕES

No que tange à colheita da prova oral, a primeira questão de relevo consiste em identificar, de forma inequívoca, no ato convocatório, o status jurídico do cidadão convocado, ou seja, se deporá na qualidade de investigado ou testemunha. A questão assume especial relevo em face do exercício de garantias individuais do cidadão investigado como, por exemplo, a vedação a autoincriminação forçada e seus consectários (v.g. não ser obrigado a assinar compromisso de dizer a verdade), bem como a assistência por advogado105.

Como regra geral, todo e qualquer cidadão intimado tem o dever de comparecimento à CPI – inclusive quem é convocado na qualidade de investigado –, nos termos da regra do art. 2º, da Lei n. 1.579/1952 –, admitindo-se a condução coercitiva daquele que descumpre a intimação106.

No que se refere aos ministros de Estado ou outros titulares de cargos diretamente subordinados à Presidência da República, a ausência injustificada à intimação para comparecimento na CPI implica na prática de crime de responsabilidade, nos termos do art. 50, da CR/88.

Relativamente ao presidente, vice-presidente, governador e vice-governador, não há regra expressa impedindo a convocação dos ocupantes desses cargos para comparecimento perante CPI. Em sede doutrinária, há quem entenda que a obrigatoriedade de comparecimento dessas autoridades para prestar declarações a respeito de questões inerentes ao exercício da função implicaria em violação ao princípio da separação de poderes107. Portanto, ainda que convocados, os ocupantes dos precitados cargos não poderiam ser conduzidos coercitivamente caso se recusassem ao comparecimento.

Magistrados, como regra geral, são obrigados a comparecer perante a CPI. No entanto, se os fatos investigados envolverem o exercício da atividade jurisdicional – que

105 STF – HC 131.197, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 4.11.2015.106 Na doutrina: BROSSARD, Paulo. Da obrigação de depor perante Comissões Parlamentares de Inquérito

criadas por Assembleia Legislativa. Revista de Informação Legislativa, Rio Grande do Sul, v. 18, n. 69, p. 15-48, jan./mar. 1981; MARCÃO, Renato; TANAMATI, Rodrigo Antonio Franzini. Condução coercitiva determinada por comissão parlamentar de inquérito (CPI). Disponível em: http://www.institutocpibrasil.org.br/portal/artigos/30-conducao-coercitiva-determinada-por-comissao-parlamentar-de-inquerito-cpi, acesso em 2.dez.2015: “[...] a possibilidade de determinarem diretamente a condução coercitiva é inerente às atribuições constitucionalmente outorgadas às Comissões, como forma de garantir celeridade e efetividade das investigações e, consequentemente, do poder fiscalizatório do Legislativo”.

107 Nesse sentido, cf.: BULOS, Uadi Lammêgo. Op. cit. p. 103-111. O autor ainda entende que outros cargos não estão obrigados a comparecimento para depor em CPI, como é o caso de Deputados, Magistrados e membros do Ministério Público. No mesmo sentido, cf. ALENCAR, Jesse Claudio Franco de. Op. cit., p. 152.

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é imune a investigação parlamentar – estará o magistrado desobrigado de responder aos questionamentos108.

A legislação ainda prevê escusas legais (art. 207, do CPP109), nas quais o cidadão está desobrigado ao comparecimento na CPI, como é o caso do advogado convocado para prestar esclarecimento decorrente de sua atividade profissional (v.g. origem dos honorários advocatícios110).

Por fim, há formalidades a serem observadas pela CPI para a intimação de determinados ocupantes de funções públicas. E o caso, por exemplo, das autoridades referidas na regra do art. 221, caput, do CPP111, que devem ser intimadas com dia, hora e local previamente designados112.

Quando o cidadão intimado reside em comarca diversa daquela na qual os trabalhos são desenvolvidos, admite-se que os componentes da CPI se desloquem à comarca para oitiva direta, podendo ainda as declarações serem colhidas na comarca de residência do cidadão por outros meios113, inclusive através de videoconferência.

108 STF – HC 83.438, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ 28.8.2003.109 “São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar

segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho”.110 STF – Pet 3.550, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 25.4.2006; STF – HC 129.529-MC, Rel. Min. Ricardo

Lewandowski, julg. 30.7.2015 e STF – HC 129.569, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 30.7.2015 : “[...] para se preservar a higidez do devido processo legal, e, em especial, o equilíbrio constitucional entre o Estado-acusador e a defesa, é inadmissível que autoridades com poderes investigativos desbordem de suas atribuições para transformar defensores em investigados, subvertendo a ordem jurídica. São, pois, ilegais quaisquer incursões investigativas sobre a origem de honorários advocatícios, quando, no exercício regular da profissão, houver efetiva prestação do serviço” (Grifo nosso).

111 “O Presidente e o Vice-Presidente da República, os senadores e deputados federais, os ministros de Estado, os governadores de Estados e Territórios, os secretários de Estado, os prefeitos do Distrito Federal e dos Municípios, os deputados às Assembleias Legislativas Estaduais, os membros do Poder Judiciário, os ministros e juízes dos Tribunais de Contas da União, dos Estados, do Distrito Federal, bem como os do Tribunal Marítimo serão inquiridos em local, dia e hora previamente ajustados entre eles e o juiz”. O STF aplicou a mesma lógica para auditores do Tribunal de Contas (STF – HC 80.153, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 9.2.2000), e também entendeu que o silvícola tem o direito de ser ouvido no local de seu habitat (STF – HC 80.240, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 14.10.2001).

112 STF – HC 80.153, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 9.5.2000.113 STF – HC 87.230, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 28.11.2005.

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6 CONTROLE JURISDICIONAL

O controle jurisdicional da atividade de investigação parlamentar decorre do princípio da inafastabilidade, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, XXXV, da CR/88).

O dispositivo constitucional evidencia que as atividades da CPI – assim como qualquer atividade estatal – são limitadas pela Lei e que o Poder Judiciário exerce o controle de legalidade dos atos da CPI e a tutela dos direitos individuais porventura violados pela atividade investigativa parlamentar114.

Oportuno referir que o controle realizado pelo Poder Judiciário em relação à atividade da CPI diz respeito à legalidade dos atos praticados pela Comissão, de modo que não são passíveis de controle judicial qualquer exame de conveniência e oportunidade da atividade investigativa parlamentar115.

A partir da assentada premissa de que a legalidade dos atos da CPI pode se submeter a controle jurisdicional, existem alguns mecanismos processuais aptos a tutelar os direitos passíveis de violação pela investigação parlamentar. E o caso, por exemplo, do habeas corpus e do mandado de segurança.

O habeas corpus se presta a tutelar o direito de locomoção do cidadão. Em sede doutrinária e jurisprudencial, admite-se a impetração de habeas corpus liberatório (no caso de uma prisão ilegal) ou preventivo (na hipótese de ameaça iminente de prisão). Na casuística das CPIs, existem diversos precedentes nos tribunais superiores a respeito da matéria116.

Exemplificativamente, o habeas corpus é cabível quando um cidadão convocado a CPI se nega a responder indagações feitas pelos parlamentares – exercendo seu direito

114 STF – MS 23.595, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 1º.2.2000, STF – MS 23.452, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 12.5.2000 e STF – MS 33.753, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 10.9.2015.O controle jurisdicional dos atos das CPIs é realizado pelo STF, no caso de CPIs instaladas pelo Congresso Nacional; pelo Tribunal de Justiça nas hipóteses de CPIs estaduais; pelo juiz estadual, no caso de CPIs municipais.

115 STF – MS 23.835, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 1.8.2003 e STF – MS 23.466-AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence. DJ 1.7.2009. Na doutrina: FERREIRA, Luiz Pinto. Op. cit. p. 131: “As comissões parlamentares de inquérito podem cometer abuso de poder, ensejando ofensas aos direitos fundamentais e direitos humanos. Neste caso são passíveis de controle jurisdicional, através de remédios tradicionais do habeas corpus e do mandado de segurança, com as respectivas destinações específicas”.

116 Para trazer alguns exemplos que podem ser consultados: STF – HC 87.214, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 21.6.2006; STF – HC 88.826, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 26.5.2006; STF – HC 80.853. Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 16.4.2001; STF – HC 80.584. Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 6.4.2001; STF – HC 130.536, Rel. Min. Carmen Lúcia, DJ 29.9.2015; STF – MS 23.852. Rel. Min. Celso de Mello, DJ 28.6.2001 e STF HC 10.4098, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 16.5.2013.

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constitucional de permanecer em silêncio – e, em razão disso, é ilegalmente preso por suposto e inexistente crime de desobediência117.

Se o ato ilegal da CPI não implicar, sequer remotamente, na restrição da liberdade individual, admite-se a impetração de mandado de segurança para a garantia e proteção de direito líquido e certo do cidadão. Na casuística recente dos precedentes, admite-se o cabimento dessa ação mandamental para impugnar determinação de interceptação telefônica diretamente pela CPI118, o que se demonstrou inconstitucional por afronta à reserva de jurisdição.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No âmbito das funções exercidas pelo Poder Legislativo, as comissões parlamentares de inquérito cumprem papel nodal, representando importante instrumento democrático e deliberativo das minorias, por meio delas se realiza a investigação de fatos relevantes ao interesse público. Além disso, as CPIs funcionam como mecanismo de aquisição de conteúdo para o desempenho das atividades típicas e atípicas do Legislativo, subsidiando ainda a atuação de outros órgãos públicos.

A atividade investigativa deve ser realizada em estrita observância a limites formais e materiais positivados no texto constitucional, notadamente porque afeta – ou pode afetar – os direitos individuais dos cidadãos investigados. Nesse contexto, a investigação parlamentar também está limitada pela cláusula da reserva de jurisdição, pois, em que pese ter a CR/88 conferido às CPIs poderes próprios de autoridades judiciais, há matérias, isto é, objetos de investigação que necessariamente se submetem a controle prévio de legalidade pelo Poder Judiciário.

Uma análise desses limites, tal como proposto no presente texto, revela a importância de um profundo debate constitucional dos poderes de investigação parlamentar, seja para compreender a sua importância no cenário político-jurídico, seja para realizar a atividade investigativa nos estritos limites impostos pela CR/88, evitando-se, dessa forma, que a CPI se transforme em exercício de arbítrio estatal.

117 Tem-se admitido a impetração preventiva do habeas corpus, nas hipóteses em que o cidadão convocado pretenda exercer o seu direito de permanecer em silêncio diante das indagações formuladas pelos parlamentares. Nesses casos, os Tribunais Superiores também têm admitido a impetração de Mandado de Segurança, com o fundamento na garantia do exercício do direito líquido e certo de permanecer em silêncio e de exercer o direito de vedação a autoincriminação forçada.

118 STF – MS 27.483-MC-REF, Rel. Min. Cezar Peluso, DJe 10.10.2008. Mais recentemente, entendeu o STF que “o mandado de segurança não é meio hábil para questionar relatório parcial de Comissão Parlamentar de Inquérito, cujo trabalho, presente o § 3º do artigo 58 da Constituição Federal, deve ser conclusivo” (STF – MS 25.991-AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 10.9.2015).

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CULPABILIDADE E ALTERIDADE: LIMITES DA CRIMINALIZAÇÃO EM UM DIREITO PENAL HUMANO

CULPABILITY AND ALTERITY: LIMITS OF CRIMINALIZATION IN A HUMAN CRIMINAL LAW

Leandro Gornicki Nunes1

RESUMO

Este texto é um ensaio a respeito da formulação de um novo fundamento material para a culpabilidade, propondo a complementação da lógica da Etica do Discurso na construção de consensos nos processos de criminalização pela Etica da Alteridade de Lévinas, acompanhada das mediações filosóficas da Etica da Libertação de Dussel.

Palavras-chave: Direito Penal. Culpabilidade. Etica. Alteridade. Criminalização.

ABSTRACT

This text is an essay regarding the formulation of a new foundation material for the culpability, proposing the addition of the logic of Ethics of Speech on building consensus in the processes of criminalization by the Ethics of Alterity of Lévinas, accompanied by the philosophical mediations of the Ethics of the Liberation of Dussel.

Keywords: Criminal Law. Culpability. Ethics. Alterity. Criminalization.

1 Doutorando e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (USAL). Professor de Direito Penal e Criminologia na Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise do PPGD-UFPR. Advogado. E-mail: [email protected]

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INTRODUÇÃO

A sociedade é uma construção, não uma coisa em si. Os processos de criminalização, como consequência inexorável da vida em sociedade, também são construções decorrentes dos processos de comunicação e de atribuição de sentido que constituem a linguagem dos grupos sociais. Segundo Baratta, “estes processos são subjetivos, porém estão sujeitos às condições determinadas pela estrutura material das relações de produção e de poder existentes em determinadas formações sociais”2. Com isso, é refutado o realismo naturalista em relação ao fundamento material da culpabilidade, reconhecendo-o como fruto de uma construção social, onde ocorre a conjunção da linguagem social com a linguagem técnico-jurídica, visando à reprodução e à legitimação das estruturas materiais da sociedade. Adverte Baratta:

o saber científico e tecnológico se produz e atua dentro das condições criadas pelas relações materiais de produção e de poder. O processo de construção da realidade dentro da interação informal nos grupos (mundo da vida), e da organização social (“sistema”), não tem como única fonte as estruturas materiais, porém influi também sobre elas. A influência pode ser conservadora (reprodução e legitimação), ou inovadora (crítica e libertação). O Direito como conjunto de ciência e técnica é uma das linguagens especializadas com que se realiza uma construção particular do mundo.3

Logo, para a construção de um novo fundamento material à culpabilidade, capaz de garantir a democracia e as liberdades individuais, e que contribua para a afirmação da vida, é indispensável o afastamento da racionalidade formal do discurso jurídico oficial, de matriz positivista. Desde a dogmática alemã é possível inferir uma “crise” em relação à culpabilidade4. Em razão do problema, é indispensável construir um novo fundamento ético material para a culpabilidade, que seja capaz de garantir a democracia e as liberdades individuais, e que contribua para uma possível diminuição das formas de violência, em atenção à alteridade5.

A racionalidade formal – avessa às práticas libertadoras e à exterioridade do outro levinasiana – traz em si um fascínio capaz de cegar àqueles que não percebem os reais

2 BARATTA, Alessandro. La vida y el laboratorio del derecho. A propósito de la imputación de responsabilidad en el proceso penal. Doxa, Alicante, n. 5, p. 275-295, 1988. Disponível em : <http://www.biblioteca.org.ar/libros/141747.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2016. p. 275.

3 Ibidem. p. 276.4 Uma síntese do falso problema (determinismo vs. livre arbítrio) está em: BUSATO, Paulo César. Apontamentos

sobre o dilema da culpabilidade penal. Liberdades, São Paulo, n. 8, p. 52-94. set./dez. 2011. Disponível em: <http://revistaliberdades.org.br/_upload/pdf/9/artigo3.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2016.

5 Neste texto, a alteridade será concebida a partir do pensamento de Emmanuel Lévinas e Enrique Dussel.

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objetivos dos tradicionais discursos jurídicos: a preservação de um poder alienante (obstáculo social). Sendo o homem o conjunto das suas relações sociais, qualquer perspectiva positivista se torna funcional à preservação do sistema de poder em que ocorrem as interações, pois não há qualquer indagação a respeito dos pressupostos constitutivos da estrutura social6. Surge, assim, como necessidade premente perceber que os discursos jurídicos tradicionais – conservadores – constroem os processos interpretativos do conceito de culpabilidade, estabelecendo verdades seletivas, de modo que a construção de um novo fundamento material da culpabilidade não pode ficar apenas no nível dos consensos racionais da Etica do Discurso, desprovidos de qualquer pretensão de verdade ética, porque tais consensos – geralmente – negam a alteridade de sujeitos dissonantes, beneficiando apenas aqueles que estão no “círculo de consenso”. Ou seja: ainda que a noção de verdade prática (alétheia praktiké) ou ética (de conteúdo material) decorra da palavra (logos), para além de uma “teoria da validade”, baseada em acordos intersubjetivos (razão comunicativa), que representa um “momento formal” da culpabilidade, é também necessária uma “teoria da verdade“ (razão ético-crítica), baseada na produção, reprodução e desenvolvimento da vida de cada sujeito em sociedade, que representa um momento material da culpabilidade. Em síntese: não há validade (forma) seriamente concebida sem pretensão de verdade (conteúdo), a qual, desde a Etica da Libertação, só pode ser a afirmação da vida7.

Pretende-se, então, demonstrar que qualquer conduta desviante, ainda que violadora da vida (fundamento primeiro de toda ética), não pode gerar uma reação oficial que negue a vida do outro, pois isso propagaria um ciclo de violência responsável pelo extermínio da vida em geral8, que é o principal bem jurídico orientador das políticas ligadas

6 E necessário negar uma filosofia burguesa positivista, fundada em sistemas abstratos e antidialéticos, evidenciando as relações de dominação advindas do funcionamento do Sistema de Justiça Criminal. A autoconservação do sistema culmina na negação da vida humana.

7 DUSSEL, Enrique. Etica da libertação: na idade da globalização e da exclusão. 2. ed. Trad. Epharim Ferreira Alves, Jaime A. Clasen e Lúcia M. E. Orth. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 207-208: “Não há validade sem verdade. Não há validade séria sem pretensão de verdade; não há verdade em sentido pleno sem pretensão de validade. Toda argumentação tem simultaneamente uma dupla referência: por um lado, é um instrumento de verificação (em sentido lato); por outro, de validação”. E a partir da articulação do critério de validade moral intersubjetivo (formal consensual) com o critério de verdade prática (material, de conteúdo) que surge o critério de factibilidade (materialidade de conteúdo e consensualidade validade). Eis a eticidade: o bem”. Grifo nosso

8 O uso da violência incute no agredido um sentimento de legitimidade da sua reação (vingança). Na relação agressor-agredido-agressor se estabelece um ciclo de reações violentas com resultados imprevisíveis, evidenciando a irracionalidade do emprego da violência que nega a alteridade do outro. A violência torna qualquer ação social mais imprevisível, de modo que essa imprevisibilidade deve ser arrefecida pela intervenção racional do Estado, comprometida eticamente com a vida, através de um Direito Penal Humano (mínimo).

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ao funcionamento do Sistema de Justiça Criminal em um Estado Social e Democrático de Direito. E qualquer construção de um fundamento material para a culpabilidade somente poderá ser considerada eticamente factível se for favorável ao princípio universal de produção, reprodução e desenvolvimento da vida de cada sujeito (a vida humana concreta de cada ser humano)9.

O conceito de alteridade – desde o pensamento de Lévinas e Dussel – é um elemento indispensável para essa construção. Na perspectiva da alteridade, a culpabilidade deixa de ser construída a partir da totalidade egológica do julgador, do sujeito desviante ou da vítima – sujeitos isolados – para ser construída a partir da exterioridade do outro, assumindo uma responsabilidade por outrem. A culpabilidade enquanto juízo de alteridade coloca suas luzes sobre a ampla complexidade do Sistema de Justiça Criminal, evitando o uso da pena como forma de satisfação de qualquer pretensão de vingança particular ou coletiva (razão egoísta). A culpabilidade abandona fundamentos metafísicos para se sustentar na realidade histórica, social e econômica dos sujeitos concretos em sociedade, obrigando os atores jurídicos a assumirem eticamente a responsabilidade por outrem em cada ato processual, promovendo uma transformação do Sistema de Justiça Criminal. Trata-se de uma proposta de mudança filosófica e cultural no campo jurídico-penal, que depende de uma abertura ética ao “rosto do outro”10, algo reconhecidamente de difícil realização – mas não impossível! – em um momento quando a barbárie, a violência e a morte diária de milhares de pessoas parece não incomodar mais.

Essa perspectiva fundada na alteridade é capaz de dar à culpabilidade a condição de redutor do eficientismo penal de sociedades eticamente atrasadas, onde muitos atores jurídicos ainda apresentam sintomas de um narcisismo moderno que luta para não perder o controle do entorno, ou seja, para não perder as suas verdades fundantes. Aparentemente, não é o medo da morte violenta que funda as práticas atuais do Sistema de Justiça Criminal; é o medo da perda do controle do entorno (imaginário), jamais controlado. Ao lado deste medo de perda de controle do entorno aparece, como obstáculo à construção de um novo fundamento material à culpabilidade, a alienação de uma população que voluntariamente se apresenta servil ao poder punitivo estatal, desejosa de mais controle social, especialmente

9 DUSSEL, Enrique. Etica da Libertação... Op. cit. p. 636: “as palavras ‘produção, reprodução e desenvolvimento’ da vida humana do sujeito ético ‘sempre’ significam não só o vegetativo ou o animal, mas também o ‘superior’ das funções mentais e o desenvolvimento da vida e da cultura humana”.

10 LEVINAS, Emmanuel. Etica e infinito. Lisboa: Edições 70. 1988. p. 89: “O laço com outrem só se aperta como responsabilidade, quer esta seja, aliás, aceita ou rejeitada, se saiba ou não como assumi-la, possamos ou não fazer qualquer coisa de concreto por outrem: Dizer: eis-me aqui. Fazer alguma coisa por outrem. Dar. Ser espírito humano é isso”.

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por conta de um medo ubíquo sustentado pelos veículos de comunicação de massa (mass media). Estes, dentre outros fatores, evidenciam que a culpabilidade acaba servindo como ferramenta jurídica de gestão da população, neutralizando seletivamente as resistências prejudiciais ao funcionamento do sistema socioeconômico vigente.

Nesta configuração social, a construção de um novo fundamento material para a culpabilidade, fundado na Etica da Alteridade, pode representar um corajoso corte epistemológico. Afinal, mesmo o Direito sendo uma forma de violência – especialmente o Direito penal –, é necessário mitigar essa violência, configurando tal postura uma “utopia possível”11. Trata-se de um “sonho diurno”, uma força renovadora, que fundamenta uma consciência libertadora, capaz de projetar o futuro com melhoria do mundo12. O real não é apenas o que está aí; outro mundo é possível! Apesar da tradição liberal burguesa que confere validade à culpabilidade, especialmente a partir das contribuições da dogmática penal alemã, é mais do que necessário construir um novo fundamento material.

E necessário ressaltar que um novo fundamento material para a culpabilidade não corresponde a qualquer tipo de essência ou natureza (realismo naturalista). A pretensão é de ver a culpabilidade desde momentos históricos e lugares diversos, afastando-se da “jurisprudência dos conceitos” (academicismo estéril eurocêntrico) e dando a ela a possibilidade de transformar o funcionamento do Sistema de Justiça Criminal, desde uma nova concepção do fenômeno criminal.

1 A CRISE DA CULPABILIDADE: NECESSIDADE DE UM FUNDAMENTO ÉTICO MATERIAL

A denominada crise da culpabilidade estaria vinculada ao dilema tradicional existente entre determinismo e livre arbítrio. Na perspectiva determinista, os sujeitos seriam um mero objeto, sem dignidade humana; na perspectiva indeterminista (livre arbítrio), não haveria fundamento à pena, uma vez que o “poder agir de outro modo” não seria demonstrável.

Por isso, atualmente, em termos dogmáticos e empíricos, é possível afirmar que esses paradigmas estão falidos, pois é impossível provar a concreta liberdade de agir do autor

11 DUSSEL, Enrique. Etica da Libertação... Op. cit. p. 476: “Se o atual não permite que se viva, é preciso imaginar um ‘mundo onde seja possível viver’”.

12 Ibidem. p. 483: “Este ‘projeto’ não é um ‘modelo de impossibilidade’ (como a ‘competição perfeita’ de F. Hayek ou a ‘comunidade de comunicação ideal’ de Habermas). E porém uma alternativa possível, um projeto ético-estratégico histórico onde se antecipa contrafactivamente a ‘nova’ comunidade de comunicação onde os nãoparticipantes serão participantes. Mas é preciso ter na devida conta que é uma ‘nova’ comunidade e não simplesmente a ‘introjeção’ dos excluídos na ‘mesma’ comunidade hegemônica anterior”.

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concreto, não havendo um fundamento para a reprovação da culpabilidade. E insuficiente para a reprovação da culpabilidade uma liberdade abstrata, desprovida de um sujeito concreto, na realização de uma conduta concreta13. A liberdade apenas exclui a imposição causal no âmbito das ações humanas, não sendo possível constituir prova direta da sua existência. Seguindo o pensamento de Engisch, no sentido da impossibilidade empírica de comprovação do “poder agir de outro modo”, afirma Vives Antón: “nunca podemos estar absolutamente seguros de que, quando reproduzimos qualquer experimento para confirmar o resultado, não nos passem despercebidas variações relevantes”14. Ou seja: ainda que se queira ser “profeta do passado”, não há como provar que determinado sujeito poderia agir de modo diverso em uma situação pretérita, objeto da construção da reprovação em um julgamento.

A culpabilidade, enquanto “juízo de reprovação”, a partir da presunção absoluta de “liberdade da vontade” do agente (livre arbítrio), padece de sério problema: está fundada em uma ética normativa (juízos de valor), desprovida de validade empírica (indemonstrável)15. No viés tradicional, o fundamento da culpabilidade, então, seria o poder atuar de outro modo (liberdade: capacidade de se guiar pela razão). Conforme crítica de Vives Antón, isso não é demonstrável. A liberdade deve deixar de ser fundamento da culpabilidade (critério moral) para se tornar pressuposto da ação ou omissão de ação (critério físico). E necessário indagar até quais condições empíricas é possível falar de um comportamento como “livre” em um sentido que permita imputá-lo ao respectivo agente. Segundo o professor catedrático de Valência: “ao falar de ‘livre arbítrio’ (‘free will’) para designar a liberdade, evoca-se uma imagem escolástica: a imagem de uma substância espiritual fragmentada em potências, das quais uma (a vontade) seria livre (ou seja, se determinaria só por si e diante de si)”16. Então, apesar de indemonstrável, a “liberdade de agir” é indispensável para a atribuição de qualquer responsabilidade penal, desde o conceito de ação ou omissão de ação. Afirma Vives Antón: “a liberdade é um círculo do qual a ação humana e a razão humana não podem sair, pois constitui o ‘juízo’ desde o

13 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. O princípio da culpabilidade. Justiça e Sistema Criminal, Curitiba, v. 2, n. 1, p. 35-64, jan./jun. 2010. p. 45-46.

14 Ibidem. p. 48.15 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 4. ed. rev. e atual. Florianópolis; Curitiba: Conceito;

ICPC, 2010. p. 283: “a responsabilidade pelo próprio comportamento não pode ser uma questão metafísica, dependente de pressupostos indemonstráveis, porque é um problema prático ligado à realidade da vida social”.

16 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos del sistema penal: acción significativo y derechos constitucionales. 2. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011. p. 325-326.

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qual, para uma e para outra, se abrem as portas do mundo”17. Em síntese: se a ação ou omissão de ação decorrem inteiramente de causas, sem lugar para a razão, não há ação ou omissão de ação18, e isso antecede qualquer juízo de reprovação realizado no âmbito da culpabilidade.

Sendo assim, desde a Etica da Alteridade, com pretensão libertadora, é necessário estabelecer uma relação entre culpabilidade e a realidade da vida de cada sujeito em sociedade, ou seja, a partir de juízos de fato (empíricos). No Brasil, embora não se refira à Lévinas, Juarez Cirino dos Santos irá sustentar que

a sobrevivência do ego só é possível pelo respeito ao alter e não por causa do atributo da liberdade de vontade: o princípio da alteridade – e não a presunção de liberdade – deve ser o fundamento material da responsabilidade social e, portanto, de qualquer juízo de reprovação pessoal pelo comportamento social19.

Tal ideia de alteridade requer maior aprofundamento teórico e filosófico, algo pretendido neste ensaio, sendo necessária, inicialmente, uma aproximação à filosofia da linguagem, que constituirá o momento formal da validade intersubjetiva do fundamento material da culpabilidade.

2 CULPABILIDADE E FILOSOFIA DA LINGUAGEM: MOMENTO FORMAL E VALIDADE INTERSUBJETIVA

Para a construção de um novo fundamento material à culpabilidade, aliado aos princípios da Etica da Alteridade, é indispensável a aplicação da consensualidade da razão discursiva. No entanto, isso deve se realizar desde o reconhecimento de uma intersubjetividade simétrica das vítimas em comunidade solidária, ou seja, uma simetria a partir da assimetria gerada desde o Sistema de Justiça Criminal, saindo da consensualidade do círculo hegemônico opressor e estabelecendo o contradiscurso da alteridade excluída20.

17 Ibidem. p. 328.18 Ibidem. p. 326-327.19 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal... Op. cit. p. 283.20 LEVINAS, Emmanuel. De otro modo que ser o más allá de la essencia. Trad. Nijhoff Haia. Salamanca:

Sígueme, 1987. p. 216-217 apud DUSSEL, Enrique. Etica da libertação... Op. cit. p. 412: “A linguagem já é um ceticismo. Porventura o discurso coerente que se absorve inteiramente no dito não deve sua coerência ao Estado que exclui, pela violência, o discurso subversivo? [...] O interlocutor que não se dobra à lógica é ameaçado de prisão ou de ir ao asilo onde sofre o prestígio do mestre ou a medicação do médico: violência ou razão de Estado asseguram ao racionalismo lógico uma universalidade é à lei uma matéria

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E fundamental reconhecer que a validade intersubjetiva da argumentação “livre de dominação” não existe na realidade do mundo, ficando apenas na esfera ideológica, e, para a construção de um novo fundamento material para a culpabilidade é necessário ir além do imaginário da Etica do Discurso, situado apenas no horizonte de uma moral formal.

O fundamento material da culpabilidade para ter pretensão de verdade ética não pode ficar adstrito ao cumprimento de regras do consenso intersubjetivo, uma vez que a verdade dele decorrente deve atender às exigências materiais ou de conteúdo responsáveis pela produção, reprodução e desenvolvimento da vida de cada sujeito em sociedade. Trata-se da dialogicidade intersubjetiva da razão discursiva ético-crítica, onde um novo fundamento material à culpabilidade será forjado por uma crítica dialógica, desde a comunidade intersubjetiva das vítimas do Sistema de Justiça Criminal. Há a inclusão da dimensão estritamente ética do conteúdo material negado, não sendo meramente uma moral formal.

Sendo a moral formal da Etica do Discurso responsável para preservação de uma ideia de reprovação no âmbito da culpabilidade, é ela também responsável pela preservação ou otimização da produção de vítimas ou oprimidos advindos dos seus consensos intersubjetivos21. Dito de outro modo: muito embora a validade discursiva nos remeta à intersubjetividade, é necessário ter em conta que os juízos de reprovação que tradicionalmente fundamentam a culpabilidade acabam por negar a vida no plano da realidade material do mundo e, portanto, não podem ser considerados materialmente válidos. Como esclarece Dussel: “A Etica da Libertação propõe, por isso, que é necessário definir um critério de validade moral intersubjetivo (formal consensual) que deve articular-se com o critério de verdade prática de reproduzir e desenvolver a vida humana (material, de conteúdo)”22. Nesse sentido, o reconhecimento do discurso do outro é o primeiro momento do processo ético de libertação23. E pressuposto, portanto, a conscientização

submissa... Isto nos lembra o caráter político – num sentido muito amplo – de todo racionalismo lógico, aliança da lógica com a política”.

21 DUSSEL, Enrique. Etica da libertação... Op. cit. p. 417: “para a Etica do Discurso, as condições mínimas reais para a possibilidade de uma discussão válida são: a sobrevivência da comunidade real de comunicação, e a participação simétrica de todos os atingidos possíveis. Mas, ao levar em conta aquilo que agora chamamos de principium exclusionis (a impossibilidade empírica de não excluir alguém do discurso), torna-se eticamente problemático o que se refere a todos os atingidos ‘possíveis’ já que, como insistiremos, não é possível nem sequer descobrir a sua existência (afeta-os uma ‘impossível’ participação com efeito, nunca poderão todos os afetados ser participantes reais”.

22 Ibidem. p. 208.23 Ibidem. p. 212: “O reconhecimento do sujeito ético como igual é um momento do exercício da razão

ético-originária, anterior ao uso da razão discursiva enquanto tal. Para argumentar seriamente, é necessário, de antemão, re-conhecer o Outro como igual”.

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crítica e a legitimação da transformação aqui pretendida, com especial reconhecimento da produção (in)voluntária de vítimas pelo Sistema de Justiça Criminal24, que é tradicionalmente articulado de modo performativo autorreferente.

A partir da Etica da Alteridade é buscada uma práxis de libertação, independentemente de processos revolucionários de difícil concretização histórica (razão ético-estratégica). Essa pretensão ganha legitimidade empírica quando se percebe a evolução do uso da prisão como ferramenta de controle social e neutralização de sujeitos incapazes de se submeter à condição de força de trabalho domesticada ou de bom consumidor25. Tais sujeitos representam – em larga escala – a “humanidade sobrante”: sujeitos excluídos, desempregados, desprezados26.

3 CULPABILIDADE, ALTERIDADE E LIBERTAÇÃO: MOMENTO MATERIAL E VERDADE ÉTICA

Enquanto a Etica da Libertação parte dos excluídos da comunidade de comunicação (vítimas da não comunicação), a Etica do Discurso parte da comunidade de comunicação. O ponto de partida deve ser a vítima, o outro, que não é uma pessoa igual na comunidade argumentativa; é aquele outro apoditicamente negado-oprimido (principium oppressionis) em algum aspecto e também afetado-excluído (principium exclusionis).

Desde a razão ético-crítica os procedimentos da moral formal para obtenção da validade intersubjetiva, no campo da culpabilidade, podem ser classificados como pré-críticos, ou seja, representam uma dimensão essencial da vida humana, mas são insuficientes para o reconhecimento da verdade prática, de modo que devem se ligar ao momento material (de conteúdo ético) para a produção, reprodução e desenvolvimento da vida de cada sujeito em comunidade27. Para afastar a incongruência dos métodos na construção do

24 Ibidem. p. 124: “De fato, há sempre algum tipo de dominação. Mas, essa deve ser superada no momento em que for descoberta”.

25 MOURA, Tatiana Wately de; RIBEIRO, Natália Caruso Theodoro. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN: junho de 2014. Brasília: Ministério da Justiça; Departamento Penitenciário Nacional, 2015. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf>. Acesso em: 27 jul. 2016. p. 15: “De acordo com os últimos dados coletados – junho de 2014 – a população prisional brasileira chegou a 607.731 pessoas. Pela primeira vez, o número de presos ultrapassou a marca de 600 mil. O número de pessoas privadas de libertada em 2014 é 6,7 vezes maior do que em 1990”.

26 DUSSEL, Enrique. Etica da libertação... Op. cit. p. 66.27 Ibidem. p. 185: “Para uma Etica da Libertação as regras formais intersubjetivas da argumentação prática

têm sentido como procedimento para aplicar as normas, mediações, fins e valores de culturas, geradas a partir do âmbito do ‘princípio universal material’, que é pré-ontológico e propriamente ético”.

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fundamento material da culpabilidade, é proposto um diálogo com a Etica da Alteridade (Lévinas) e a Etica da Libertação (Dussel).

3.1 CULPABILIDADE E ETICA DA ALTERIDADE EM LEVINAS

A alteridade é urgente em um contexto social e cultural em que vem imperando o narcisismo e o cinismo, ou seja, em um momento histórico em que há grande fragmentação social, um culto ao egoísmo e indiferença em relação ao outro, culminando na proliferação de atos violentos (como a exclusão social e os crimes em geral praticados por agentes públicos e particulares; a negação da vida), preservando uma ordem capitalista neoliberal. Em um cenário desse matiz, a intersubjetividade e a responsabilidade por outrem perdem espaço para a satisfação ilimitada do gozo de um ego narcísico, orientado por uma razão cínica (fundada na aceitação da morte do outro) e intolerante, que nega a vida do outro no momento da prática de um crime ou no momento de julgar (inquisitorialismo e fascismo processual) e castigar (punitivismo) (i)legitimamente qualquer prática delituosa.

Nesse contexto, o pensamento de Emmanuel Lévinas (1906-1995) representa uma fonte filosófica – exposição à luz; desvelamento – para a transformação ética das normas, atos, instituições do Sistema de Justiça Criminal, porque nele a ética surge como “filosofia primeira” (anterior à ontologia)28, fazendo frente aos totalitarismos sistêmicos (à la Jakobs29) e aos imperialismos do Eu narcísico e cínico. Segundo Lévinas, o sujeito ético é aquele fundado na intersubjetividade, observada a transcendência do “para o outro” (responsabilidade por outrem), na vida vivida pelo humano (“devotar-se ao outro”)30.

Em suas palavras:

a possibilidade de um-para-o-outro, um para o outro, que é o acontecimento ético. Na existência humana que interrompe e supera seu esforço de ser – seu conatus essendi spinozista – a vocação de um existir-para-outrem mais forte que a ameaça da morte; a aventura existencial do próximo importa ao seu antes

28 As relações entre os seres humanos antecedem qualquer compreensão a respeito do conhecimento do ser em geral (ontologia fundamental) representam, além disso, a vida em sua essência. A relação com outrem é o começo do inteligível. Daí a ética ser, em Lévinas, a “filosofia primeira”. Como adverte Dussel, Lévinas busca “situar-se sistematicamente a partir de fora da mera ordem gnosiológica”. Ver: DUSSEL, Enrique. Etica da libertação... Op. cit. p. 353.

29 Ver: JAKOBS, Günter; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito Penal do inimigo: noções críticas. 2. ed. Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.

30 LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. 3. ed. Trad. José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 2015. p. 187: “A relação com outrem é a única que introduz uma dimensão da transcendência e nos conduz para uma relação totalmente diferente da experiência no sentido sensível do termo, relativa e egoísta”.

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que a sua própria, colocando o eu diretamente como responsável pelo ser de outrem; responsável, quer dizer, como único e eleito, um eu que não é mais um indivíduo qualquer do gênero humano31.

A razão ética nasce da responsabilidade pelo outro (conteúdo último do ético). O “para o outro” obriga32. A responsabilidade por outrem é o momento ético dominado por um amor sem concupiscência (desejo desinteressado, generoso). E ir ao encontro do “rosto de outrem” generosamente, despindo-se de qualquer interesse pessoal ou expectativa de benefício próprio. Diante do “rosto de outrem”, a subjetividade desperta do egológico (egoísmo e egotismo), perdendo sua prioridade, especialmente porque, em um mundo repleto de guerras, fome, exclusão e morte, a preocupação consigo mesmo é “tragicômica”, sendo ilusório privilegiar o sujeito da modernidade, supostamente racional (animal rationale)33. A identidade do eu humano se estabelece a partir dessa responsabilidade por outrem: uma deposição do eu soberano na consciência de si. Segundo Dussel, toda a “ordem do saber” é uma resposta a esta “responsabilidade obrigante”34. Em termos humanísticos, essa responsabilidade é uma incumbência irrecusável, encargo que dá suprema dignidade ao único, ao Eu35. A esse respeito afirma Dussel: “quando o outro aparece em posição de assimetria (que enquanto vítima vem ‘de cima’ e como ‘superior’ eticamente: me obriga), a vontade fica antes de toda decisão impactada como ‘responsável’ (como o que antes de tudo assume o outro)”36. Nessa perspectiva, onde a responsabilidade

por outrem é algo constitutivo dos sujeitos (sem o outro o eu não possui sentido), ocorre uma abertura para a exterioridade do outro, reconhecendo que cada um de nós é apenas uma parte do todo: consciência de sua particularidade37. Razão e linguagem surgirão somente a partir dessa relação “face a face” com outrem.

31 Id. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 19.32 DUSSEL, Enrique. Etica da libertação... Op. cit. p. 371.33 LEVINAS, Emmanuel. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993. p. 83.34 DUSSEL, Enrique. Etica da libertação... Op. cit. p. 371-372.35 LEVINAS, Emmanuel. Etica e infinito... Op. cit. p. 92-93.36 DUSSEL, Enrique. Etica da libertação... Op. cit. p. 368.37 LEVINAS, Emmanuel. Entre nós... Op. cit. p. 36: “O pensamento começa, precisamente, quando a

consciência se torna consciência de sua particularidade, ou seja, quando concebe a exterioridade para além de sua natureza de vivente, que o contém; quando ela se torna consciência de si ao mesmo tempo que consciência de exterioridade que ultrapassa sua natureza, quando ela se torna metafísica”.

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Para Lévinas,

outrem, como outrem, não é somente um alter ego. Ele é o que eu não sou: ele é o fraco enquanto eu sou forte ele é o pobre; ele é a “viúva e o órfão”[...]. A exterioridade social é original e nos faz saída das categorias de unidade e de multiplicidade que valem para as coisas38.

Enfim, outrem é, antes de tudo, aquele por quem sou responsável e “é sempre a partir do Rosto, a partir da responsabilidade por outrem, que aparece a justiça, que comporta julgamento e comparação, comparação daquilo que, em princípio, é incomparável, pois cada ser é único; todo outrem é único”39.

No entanto, desde a modernidade, no desenvolvimento daquilo que se considerará Justiça, inexoravelmente, surgirão instituições de Estado com o objetivo de estabelecer responsabilidades àqueles que praticarem condutas desviantes, impondo certo grau de violência institucional, consistente na pena criminal, decorrente do juízo de reprovação fixado no âmbito da culpabilidade. Pois bem, tomando o outro a sério, somente a partir do “rosto de outrem” é que o Estado – ou o Sistema de Justiça Criminal – adquirirá legitimidade nas suas ações40. Lévinas afirmará: “na realidade, sou responsável por outrem, mesmo quando pratica crimes, mesmo quando outros homens cometem crimes [...] todos os homens são responsáveis uns pelos outros, ‘e eu mais que todo mundo’”41. E da filosofia levinasiana, com apoio na literatura de Dostoiévski42, considerar o Eu o mais culpado de todos, ou seja, cada um de nós tem uma obrigação infinita perante outrem, deixando de interrogar sobre reciprocidade, assumindo uma responsabilidade ao se aproximar do “rosto”, ciente que nunca está quite com o próximo. Enfim, “o único valor absoluto é a possibilidade humana de dar, em relação a si, prioridade ao outro”43.

38 Id. Da existência ao existente. Trad. Paul Albert Simon e Ligia M. de Castro Simon. Campinas: Papirus, 1998. p. 113.

39 Id. Entre nós... Op. cit. p. 144. 40 Ibidem. p. 145-146: “[...] é a partir da relação com o Rosto ou de mim diante de outrem que se pode

falar da legitimidade do Estado ou de sua não legitimidade. Um Estado em que a relação interpessoal é impossível, em que ela é por antecipação dirigida pelo determinismo próprio do Estado, é um Estado totalitário. Há, pois, um limite para o Estado”.

41 Ibidem. p. 148.42 DOSTOIEVSKI, Fiódor Mikhailovitch. Notas do subsolo. Trad. Maria Aparecida Botelho Pereira Soares.

Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 10: “O mais importante é que, por mais que se reflita a respeito, de qualquer maneira resulta que eu sempre sou o principal culpado de tudo e, o que é mais lastimável, sou culpado sem culpa e de acordo com as leis da natureza, por assim dizer”.

43 LEVINAS, Emmanuel. Entre nós... Op. cit. p. 150.

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Ainda no âmbito de uma filosofia aplicável à teoria da justiça, são pertinentes as seguintes ponderações de Lévinas:

A justiça não é justiça a não ser numa sociedade na qual não há distinção entre próximos e distantes, mas na qual é impossível também colocar-se do lado dos mais próximos; na qual a igualdade de todos é medida por minha desigualdade, pelo mais de meus deveres sobre meus direitos. O esquecimento de si move a justiça. Por isso não deixa de ter importância o saber se o Estado igualitário e justo no qual o homem se realiza... procede de uma guerra de todos contra todos ou da responsabilidade irredutível do um para com todos e se pode dispensar-se da amizade e do rosto...44.

Essas observações éticas de Lévinas são indispensáveis para a construção de um fundamento material para a culpabilidade. A responsabilidade irrecusável – obrigante – em relação ao outro implica o desenvolvimento de uma nova dogmática penal em relação à culpabilidade. Afinal,

culpabilidade e inocência supõem um ser, que não coincide com a totalidade do ser, já que ele é culpado ou inocente em relação a outrem, ou, ao menos, em relação a um princípio que ultrapassa o eu [...]. culpabilidade e inocência supõem que o ser livre pode lesar um ser livre e sofrer as repercussões do mal que terá causado e, consequentemente, que a separação entre seres livres no seio da totalidade permanece incompleta45.

Evidentemente é indispensável o afastamento de qualquer matriz maniqueísta na construção de um fundamento material para a culpabilidade. A tradicional pretensão de reprovação na formação da vontade não é suficiente para haver respeito à exterioridade do outro, pois ela simplifica a complexidade das relações de poder em uma determinada estrutura social, eliminando a responsabilidade pelo outro inerente à ética. O establishment busca negar a alteridade do outro, a partir de um fetiche de si próprio, forjando sujeitos iguais no sentido de eliminação dos obstáculos para a preservação da totalidade que o constitui. Essa forma tradicional de fundamentar a culpabilidade está ligada à ideologia bélica de “Guerra contra o crime”46, cujos resultados históricos são inequivocamente inúteis para os fins declarados pelo discurso jurídico oficial. Os sujeitos desviantes – o outro negado pela totalidade punitivista

44 Id. De outro modo que ser o más allá de la essência. Trad. Nijhoff Haia. Salamanca: Sígueme, 1987. p. 203 apud DUSSEL, Enrique. Etica da libertação... Op. cit. p. 412.

45 LEVINAS, Emmanuel. Entre nós... Op. cit. p. 40.46 SUSIN, Luiz Carlos. Lévinas: a ética é a ótica. In: STEIN, Ernildo; BONI, Luís A. de. Dialética e liberdade:

festschrift em homenagem a Carlos Roberto Cirne Lima. Petrópolis: Vozes, 1993. p. 340: “A guerra está intrinsecamente ligada à vontade de totalidade, é a forma mais misteriosa e trágica da festa de totalização”.

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– são vistos como obstáculos a serem neutralizados seletivamente47. Já a alteridade nega qualquer modelo ideal ou fechado (totalizante). As aberturas da alteridade mantêm o diálogo com as exterioridades. E o antifetichismo: abertura ao infinito ou à exterioridade (lugar de todas as alteridades)48. Lévinas sustentará que “a teoria onde surge a verdade é a atitude de um ser que desconfia de si próprio. O saber só se torna saber de um fato se, ao mesmo tempo, for crítico, se se puser em questão, se remontar além da sua origem”49. Portanto, a construção de um novo fundamento material para a culpabilidade exige uma razão ético-crítica (essência do saber)50, colocando em questão a fundamentação tradicional (reprovabilidade). Sem essa perspectiva, o conhecimento fica reduzido ao dogmatismo totalizante e ao solipsismo:

O saber, cuja essência é crítica, não pode reduzir-se ao conhecimento objectivo; conduz para Outrem. Acolher Outrem é pôr a minha liberdade em questão [...] a evidência do cogito – em que conhecimento e conhecido coincidem sem que o conhecimento tenha tido de intervir, em que o conhecimento, por consequência, não comporta nenhum compromisso anterior ao compromisso presente, em que o conhecimento está, a cada instante, no começo, em que o conhecimento está em situação (o que, aliás, é característica própria de toda a evidência, pura experiência do presente sem condição nem passado) – não pode satisfazer a exigência crítica, porque o começo do cogito lhe é anterior.51

Ocorre, assim, o denucleamento do ser e da identidade, como sustentado por Susin: “antes da filosofia, porém, há a experiência ética, e antes da experiência ética há esta novidade absoluta do ‘outro’ na palavra e na face, na linguagem e na corporeidade, que desenfeitiça o mundo e o sistema solitário do ser”52.

47 O novo discurso, o discurso da “criminologia do outro” ou “o inimigo” sustenta que a periculosidade dele decorrente deve ser gerida por técnicas de neutralização. Trata-se de um discurso bélico, com uma postura defensiva e agressiva (visando a neutralização seletiva e preventiva). Ver: PAVARINI, Massimo. Punir os inimigos: criminalidade, exclusão e insegurança. Trad. Juarez Cirino dos Santos e Aliana Cirino Simon. Curitiba: ICPC; Ledze, 2012. p. 155: “a gestão administrativa das penas fala uma outra língua: não mais aquela de punir os indivíduos, mas de gerir grupos sociais em razão do risco criminal; não mais aquela correcionalística, mas aquela burocrática de como otimizar os recursos escassos, em que a eficácia da ação punitiva não está mais em razão dos ‘telos’ externos ao sistema (educar e intimidar), mas em razão de exigência intrassistêmicas (neutralizar e reduzir riscos)”.

48 A relação com o outro não corresponde à totalidade (divina ou humana); não é totalização da história, é infinito. Ver: LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito... Op. cit. p. 39-40.

49 Ibidem. p. 72.50 Na Tese 4, Dussel afirma: “o ‘ético-crítico’ indica o momento próprio da ética de libertação. A ética é

crítica a partir das vítimas, a partir da alteridade. E o ‘ético’ como tal, ou o faceaface como encontro de pessoas”. DUSSEL, Enrique. Etica da libertação... Op. cit. p. 633.

51 LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito... Op. cit. p. 75.52 SUSIN, Luiz Carlos. Lévinas: a ética é a ótica... Op. cit. p. 341-342.

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Fica claramente perceptível que um dos maiores problemas do fundamento tradicional da pretensão de reprovação no âmbito da culpabilidade está no fato de gerar uma autonomia totalizante no nível formal de meios-fins, o que é inaceitável desde os fundamentos da Etica da Libertação.

3.2 CULPABILIDADE E ETICA DA LIBERTAÇÃO EM DUSSEL

Para além do nível moral formal da Etica do Discurso, onde imperam consensos totalizantes que negam a exterioridade do outro, preservando a negação dos excluídos, deve a culpabilidade se fundamentar nos primados da Etica da Libertação.

A Etica da Libertação, desenvolvida por Dussel, tem como conteúdo a vida humana (princípio material universal), que não é um conceito, uma ideia ou um horizonte ontológico abstrato. E o modo de realidade de cada ser humano concreto, condição absoluta da ética e exigência de toda libertação. E o lugar onde está o conteúdo das suas ações, pulsões e desejos, e onde serão fixados os fins para satisfação das exigências da vida humana. A corporalidade, a sensibilidade e a vulnerabilidade do homem condicionam e limitam as suas ações53. O juízo de fato, admitido pela Etica da Libertação, não é meramente instrumental ou formal, mas um enunciado de realidade, material, e, como tal, um enunciado sobre um sujeito vivente como humano.

Segundo Dussel:

Aquele que atua humanamente sempre e necessariamente tem como conteúdo de seu ato alguma mediação para a produção, reprodução ou desenvolvimento autoresponsável da vida de cada sujeito humano numa comunidade de vida, como cumprimento material das necessidades de sua corporalidade cultural (a primeira de todas o desejo do outro sujeito humano), tendo por referência última toda a humanidade54.

Em sua Tese 3, Dussel rechaça o vitalismo materialista e o conservadorismo dominador (por exemplo, a wille zur macht – vontade de poder – narcisista). Sustenta que a vida humana é a “condição absoluta material intrínseca da racionalidade”, de modo que deve estar acima de qualquer racionalismo reducionista. A razão é a “astúcia” da vida, serve como exercício intersubjetivo, e não pode estar acima da própria vida55. A

53 DUSSEL, Enrique. Etica da libertação... Op. cit. p. 131-132.54 Ibidem. p. 134.55 Ibidem. p. 632.

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sensibilidade (corporalidade sensível prévia à razão) é pré-ontológica. Segundo o filósofo latinoamericano, num diálogo com o pensamento levinasiano:

E a partir desta anterioridade que o eu se abre ao mundo, e nele irrompe de maneira imediata, como o posterior, o pós-ontológico, a partir da hospitalidade de psiquismo do que se situa na exterioridade do horizonte do mundo, o “rosto e sensibilidade”, o outro a partir de sua transcendentalidade56.

Isto serve de alerta para o racionalismo formal dos discursos oficiais a respeito da culpabilidade, cujo teor cria obstáculos à concretização da vida. Essa compreensão material da Etica da Libertação é pressuposto para o desenvolvimento da razão ético-crítica diante de qualquer ato, norma, instituição ou sistema de eticidade, aqui incluído, por óbvio, o fundamento material da culpabilidade. E da essência da transformação aqui proposta que, desde a alteridade levinasiana e a Etica da Libertação, ocorre uma assunção de responsabilidade irrecusável em relação ao outro (especialmente ao outro em posição de assimetria, vulnerável). Trata-se do conteúdo ético último no pensamento de Levinás: o “para o outro” (responsabilidade que obriga). E isso deve ser preconizado não só em face do criminoso, mas, especialmente, em face do poder punitivo estatal. Assim, nasce a razão ética, a única sustentável no pensamento de Dussel57. Aqui merecem ser transcritas as críticas que Dussel faz ao racionalismo lógico, à ontologia de Heidegger e à fenomenologia tradicional, com apoio no pensamento de Emmanuel Lévinas:

o mundo da afetividade, da corporalidade, a materialidade das pulsões, “o gozo em si da vida amando a vida (complaisance em soi de la vie aimant la vie) ”, de nenhuma maneira nega a razão, mas marca seus limites: nem tudo é racional!, diz-nos Lévinas e tem “razão” – pelo menos para uma Etica da Libertação, que é libertação de “vítimas” e não de “satisfeitos”. A ontologia heideggeriana, a fenomenologia tradicional, as lógicas linguísticas do sentido-significação e também da validade intersubjetiva, etc., são filosofias de “satisfeitos” – cuja satisfação é “ponto de partida”, inadvertido e tomado como “realidade” sem mais e sem questionar. Defrontar-se com “insatisfeitos” (as vítimas, os pobres, as mulheres violentadas...) é começar a perguntar-se por toda esta dimensão que Lévinas nos abre de outra maneira que Marx, Horkheimer, Freud... mas de acordo com eles no fundo.58

O agir eticamente está atrelado, portanto, à obrigação de produzir, reproduzir e desenvolver a vida concreta de cada sujeito humano em comunidade59. Algo inatingível

56 Ibidem. p. 367.57 Ibidem. p. 371.58 Ibidem. p. 412.59 Ibidem. p. 143: “Aquele que atua eticamente deve (como obrigação produzir, reproduzir e desenvolver

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pela via dos discursos criminalizantes hegemônicos. O simples trabalho interpretativo do conceito de culpabilidade proposto pela dogmática tradicional (positivismo abstrato e antidialético) pressupõe a aceitação das bases do Sistema de Justiça Criminal. Porém, uma práxis de libertação exige transformação, a partir da razão ético-crítica, fruto da consciência ético-crítica: exercício da razão material e formal, ética e comunitário-discursiva enquanto dialogicidade. O fundamento tradicional da culpabilidade – reprovação – busca realizar o “bem”, constituindo um elemento do conceito analítico de fato punível. No entanto, esse momento moral formal que o constitui tem efeitos negativos ou ruins – não intencionais. O reconhecimento das vítimas (carente de vida em alguma dimensão; não realização pulsional quanto à autoconservação) constitui o momento analético da dialética. Assim é possível perceber a “não verdade” (Adorno) do funcionamento do Sistema de Justiça Criminal: resultado das normas, instituições e ações de um sistema que produzem vítimas60. Desde um juízo empírico de fato se evidencia a “não verdade” do Sistema de Justiça Criminal, restando demonstradas: a) a não diminuição das diversas formas de violência; b) a não prevenção da pena criminal; c) a não preservação da vida no cárcere. Logo, a “verdade” de caráter formal do fundamento material da culpabilidade é negada empiricamente a partir da negação da vida concreta de vítimas históricas do Sistema de Justiça Criminal. Somente com consciência ético-crítica é possível transformar o fundamento material da culpabilidade. E a partir da constatação da produção de efeitos negativos nãointencionais se torna necessária a crítica ético-material, desde a realidade concreta da maioria da humanidade61. Um giro filosófico e criminológico deve atuar sobre a dogmática penal, buscando a construção de um novo fundamento material para a culpabilidade – aqui proposta a alteridade do outro62. Tal fundamento deve ser pensado desde a intersubjetividade simétrica das vítimas em comunidade. Ou seja: ao invés da preservação do modelo social e econômico vigentes, da simetria hegemônica opressora, dependente da criminalização de sujeitos excluídos, um novo fundamento material da culpabilidade deve ser pensado a partir da exterioridade do

autoresponsavelmente a vida concreta de cada sujeito humano numa comunidade de vida, a partir de uma ‘vida boa’ cultural e histórica (seu modo de conceber a felicidade, com uma certa referência aos valores e a uma maneira fundamental de compreender o ser como dever-ser, por isso também com pretensão de retidão) que se compartilha pulsional e solidariamente, tendo como referência última toda a humanidade, isto é, é um enunciado normativo com pretensão de verdade prática e, em além disso, com pretensão de universalidade”.

60 Ibidem. p. 375.61 Ibidem. p. 315-316: “A alteridade das vítimas descobre como ilegítimo e perverso o sistema material dos

valores, a cultura responsável pela dor injustamente sofrida pelos oprimidos, o ‘conteúdo’, o ‘bem’ (o que chamamos em outro trabalho principium oppressionis)”.

62 Ibidem. p. 16: “O Outro será a/o outra/o mulher/homem: um ser humano, um sujeito ético, o rosto como epifania da corporalidade vivente humana”.

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outro, a partir daqueles que são a maioria e que estão igualmente em situação de exclusão. Sem a percepção do caráter pernicioso do formalismo dos discursos jurídicos oficiais e da correlata exclusão material (negação) da vida de sujeitos vitimados pelo atual Sistema de Justiça Criminal não haverá uma dialética contraditória.

E necessário reconhecer que o primeiro desafio para a construção de um novo fundamento material para a culpabilidade está na ausência de reconhecimento da crise dos fundamentos tradicionais, alheios à flagrante exclusão social e à dominação de classe a que estão as vítimas do modelo econômico capitalista neoliberal. Na sequência, é necessário demonstrar, a partir da vida cotidiana, da realidade empírica, os efeitos negativos – não intencionais – do modelo jurídico penal vigente.

Ocorre que, tradicionalmente, o Direito penal dos países latinoamericanos é um lugar por excelência para a colonização das subjetividades de sujeitos historicamente subjugados pelo poder colonizador visível nos interesses de mercado e da economia política em geral. Um caminho para a libertação dessa lógica colonizadora e totalizante – condição para uma existência autêntica – é a construção de um novo fundamento material para a culpabilidade. Um novo fundamento a partir da alteridade. E preciso deixar a condição de “ser interpretado”, fugir do “poder pastoral” da dogmática europeia ou das estratégicas bélicas dos Estados Unidos da América que fundam os tradicionais e hegemônicos discursos de criminalização. E necessário ter consciência de que em um quadro social de grande exclusão, a ameaça de perda da liberdade não produz o efeito desejado sobre sujeitos desviantes, especialmente, naqueles que estão em situação de extrema miséria ou que, embora bem situados no quadro socioeconômico, percebem a ineficiência do sistema para além daquilo que Zaffaroni denomina “obra tosca da criminalidade”63: nos primeiros – os excluídos – o “contrato social” (mito liberal burguês) não produz qualquer sentido, já que não participam do desenvolvimento das “cláusulas” e muito menos dos direitos nele estabelecidos; nos últimos – aqueles que percebem a ineficiência do Sistema de Justiça Criminal para além da “criminalidade de rua” ou “criminalidade de varejo” – não produz qualquer sentido diante do desejo ilimitado de satisfação das suas pulsões egoísticas, típicas de uma estrutura psicológica narcisista e cínica.

E preciso reconhecer a partir da alteridade que só é criminalizado aquilo que é desejado. Nos casos de corrupção, por exemplo, a “onda de combate”, defendida em discursos inflamados e responsável por solapar direitos e garantias fundamentais no âmbito

63 ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito penal brasileiro: teoria geral do Direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v. 1. p. 46. Trata-se, essencialmente, da “criminalidade de rua” ou “criminalidade de varejo”, com destaque aos crimes patrimoniais e a narcotraficância.

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do processo penal, configura um sintoma de uma sociedade altamente corrompida pelos ideais de consumo, onde o poder financeiro configura o maior fetiche64. O fundamentalismo da “guerra contra o crime” só demonstra que os seus corifeus desejam sufocar em si aquilo que mais odeiam nos outros, demonstrando o caráter endêmico das condutas desviantes em uma sociedade corrompida65. Essa constatação é indispensável para perceber que as estratégias do eficientismo penal (direito penal do inimigo, broken windows theory, zero tolerance etc.) apenas mascaram um problema que está enraizado na cultura de uma determinada formação social. A sociedade de consumo inspira sujeitos insaciáveis, sempre em busca de mais (dinheiro e poder) para preencher um vazio existencial gerado pela ausência de limites. São os sujeitos que “vivem sem outrem”: os neossujeitos66. Todas essas constatações servem para demonstrar que, definitivamente, não será o poder punitivo estatal o responsável pela efetiva proteção de bens jurídicos; são necessárias outras mediações.

Com o distanciamento social (enfraquecimento do laço social), decorrente do neoliberalismo, do medo, da burocracia estatal e da nadificação do outro, há um esquecimento da alteridade, aumentando os atos de violência, trazendo como consequência a intolerância e criando um círculo vicioso assim resumido:

i. Quanto mais distantes as pessoas estão umas das outras, mais indiferentes

entre si ficam;

ii. Quanto mais indiferentes entre si, mais violentas as pessoas se tornam;

iii. Quanto mais violentas as pessoas se tornam, mais intolerantes elas ficam;

64 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito penal. 3. ed. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan; ICC, 2002. p. 51: “Sobre a mencionada teoria freudiana do ‘delito por sentimento de culpa’, Theodor Reik funda uma teoria psicanalítica do direito penal baseada sobre a dupla função da pena: a) a pena serve à satisfação da necessidade inconsciente de punição que impele a uma ação proibida; b) a pena satisfaz também a necessidade de punição da sociedade, através de sua inconsciente identificação com o delinquente”.

65 CALLIGARIS, Contardo. Nossas futilidades. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 nov. 2015. p. C8: “Os jihadistas atacam em nós o que mais os seduz. O que eles odeiam são os atos e os pensamentos que eles precisam destruir dentro de si. Os mortos de Paris, para os jihadistas, não são pessoal (sequer ‘infiéis’): eles são os representantes de suas própria tentações internas. Como sempre, os moralistas perseguem (e até exterminam) seus próprios desejos rebeldes”.

66 Ver: LEBRUN, Jean-Pierre. A perversão comum: viver juntos sem o outro. Trad. Procópio Abreu. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008. O desabamento da transcendência e a crise do patriarcado contribuíram para o surgimento de um sujeito contemporâneo: o neossujeito (um sem outrem), generalizando a perversão comum (não estrutural). São características do neossujeito: a) submete-se a tiranias sociais para conservar o seu lugar de escolha; b) absorve tudo que o cerca, sendo muito sensível à mídia; c) tem necessidade de emoções intensas; d) reivindica escolher a partir de si mesmo; e) nele, o gozo prevalece sobre o desejo, sendo incapaz de deixar o gozo; f) tem dificuldades com a temporalidade; g) está exposto à depressão por ter perdido o laço com o terceiro (outrem); h) permaneceu apenas filho da mãe, não sofrendo a influência da economia psíquica paterna.

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iv. Quanto mais intolerantes elas ficam, mais violentas se tornam;

v. Quanto mais violentas as pessoas se tornam, mais indiferentes ficaram entre si;

vi. Quanto mais indiferentes entre si, mais distantes as pessoas estarão.

Em resumo, no viés do eficientismo penal, os processos de criminalização apenas aumentam o distanciamento social e as formas de violência, de modo que é possível concluir que, quanto mais punitivista for uma sociedade, mais sofrerá com o fenômeno da violência. Em uma estrutura social fundada no capitalismo neoliberal há a tendência ao distanciamento social, à intolerância e à ausência de reconhecimento da exterioridade do outro. Tolerância e generosidade são fulminadas. Somente com o reconhecimento da exterioridade do outro é que as regras de conduta que sustentam o Sistema de Justiça Criminal poderão ter reconhecido valor ou aplicação efetiva. Nils Christie, grande criminólogo da Universidade de Oslo, afirmava que: “o maior perigo do delito nas sociedades modernas não é o delito em si mesmo, senão que a luta contra este conduza às sociedades modernas ao totalitarismo”67.

A ideia de aproximar os discursos penais à Etica da Alteridade e à Etica da Libertação tem por objetivo geral promover um maior sentimento de pertencimento entre os sujeitos em comunidade, aumentando a coesão social e a diminuição das diversas formas de violência. Em respeito à alteridade, havendo responsabilidade pelo outro, maior será a coesão social, culminando no fortalecimento dos sistemas normativos internos, especialmente o autônomo, conforme sustentado por Freud, no campo psicanalítico68, e por Dirk Fabricius, na dogmática crítica69.

67 CHRISTIE, Nils. La industria del control del delito: ¿la nueva forma del holocausto? Buenos Aires: Del Puerto, 2006. p. 24: “el mayor peligro del delito en las sociedades modernas no es el delito en sí mismo, sino que la lucha contra este conduzca las sociedades hacia el totalitarismo”.

68 FREUD, Sigmund. Das Unbehagen in der Kultur. Viena: Verlag, 1930.69 FABRICIUS, Dirk. Culpabilidade e seus fundamentos empíricos. Trad. Juarez Tavares e Frederico

Figueiredo. Curitiba: Juruá, 2009. p. 22: “A consciência de culpa pode contribuir para a coesão social através da integração do culpado na comunidade. Sem sentimentos de culpa, não se pode enxergar o mal causado. Se os seres humanos não tivessem sentimentos de culpa, não haveria freio para a escalada de violência e agressão. E caso a culpabilidade permaneça não trabalhada, a ferida se cicatriza mal. Desejos de vingança, ressentimento e rancor no lesado, medo e agressão preventiva no autor levam facilmente a um ciclo entre autor, vítima e perseguido, de consequências destrutivas. [...] A apreensão da culpa, sua ponderação realística, o desenvolvimento de um programa de ação apropriado podem ser obstados também por defesa (negação, projeção etc.), onde esses mecanismos de defesa são fomentados social e institucionalmente, eles são especialmente eficazes e suas consequências são gritantes, como mostram a condecoração de soldados bem sucedidos em execuções a homenagem a promotores com muitas condenações – especialmente condenações à morte –, a grupos de extermínio etc.”

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A razão discursiva – construção de consensos – é um momento ético necessário, mas insuficiente para a concretização da vida (razão prático-material). A pretensão de validade (intersubjetividade moral formal), decorrente do processo comunicacional produz uma verdade formal que necessita ser complementada pela pretensão de verdade (ética material) que produzirá uma verdade material que busca sempre garantir a produção, reprodução e desenvolvimento da vida de cada sujeito em sociedade (critério de verdade). Logo, são pretensões complementares entre si e simultâneas. Como esclarece Dussel, “toda atualização do real (verdade) é já sempre intersubjetiva; e toda intersubjetividade (validade) tem ‘referência’ a um pressuposto veritativo”70. Entretanto, é importante salientar que verdade e validade são finitas, históricas, falíveis, falseáveis ou validáveis em certos níveis. Por isso, a Etica da Libertação irá propor a necessidade de definição de um critério de validade moral intersubjetivo (formal consensual), articulado com o critério de verdade prática de reproduzir e desenvolver a vida humana (material, de conteúdo). Essa articulação permitirá surgir o critério de factibilidade: a eticidade, o “bem”71.

E provável que a tese sustentada no presente ensaio não seja acolhida pela comunidade jurídica, sufocada por uma razão instrumental de preservação do atual sistema. Há total consciência de que a construção de um consenso em torno de um novo fundamento material para a culpabilidade, fundado na Etica da Alteridade de Lévinas, dependa da superação de muitos obstáculos, dentre os quais é possível citar: a) o medo construído a partir das ações nocivas da mass media; b) os discursos bélicos das políticas de segurança pública; c) a burocracia estatal que com seus agentes – geralmente – medíocres, não consegue raciocinar para além da lógica totalizante estabelecida hegemonicamente; d) o ensino jurídico que pouco ou nada contribui para a formação de atores jurídicos com capacidade ético-crítica; e) o eficientismo neoliberal com eliminação de políticas sociais; f) os ideais da sociedade de consumo; g) o narcisismo de neossujeitos que vivem sem outrem. Todos esses obstáculos são elementos ou fontes de alienação e cegueira. Entretanto, o presente trabalho pode representar uma forma de aprendizagem da consciência crítica na (re)construção da dogmática penal (razão ético-estratégica e tática), justamente em um momento no qual o pensamento crítico corre sério risco de desaparecer, em face das exigências de um Sistema de Justiça Criminal “eficiente”, segundo um dos fundamentos mais caros ao neoliberalismo.

70 DUSSEL, Enrique. Etica da libertação... Op. cit. p. 206.71 Ibidem. p. 208.

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AS ATRIBUIÇÕES DE POLÍCIA JUDICIÁRIA NO BOJO DAS INVESTIGAÇÕES DE HOMICÍDIOS DOLOSOS PRATICADOS POR POLICIAIS MILITARES CONTRA CIVIS

THE DUTIES OF JUDICIAL POLICE IN BUNT OF HOMICIDE INVESTIGATION INTENTIONAL COMMITED BY POLICE MILITARY AGAINST CIVILIAN

Felipe Vittig Ghiraldelli1Ruano Fernando da Silva Leite2

RESUMO

O presente trabalho tem por escopo analisar o conflito de atribuições de polícia judiciária nas investigações dos crimes de homicídios dolosos praticados por policiais militares contra vítimas civis. Diante da atecnia das sucessivas alterações legais e da atual diversidade de tratamento da questão em cada Estado membro, se faz necessária uma abordagem acurada, condizente com a Constituição Federal e com as convenções internacionais de direitos humanos.

Palavras-chave: Processo penal. Polícia Judiciária. Polícia Civil. Polícia Militar. Homicídios dolosos.

ABSTRACT

This work has the scope to analyze the conflict of judicial police powers in investigations of crimes of murder committed by military police against civilians. Before the atecnia successive legal changes and the current issue of treatment of diversity in each Member State , if an accurate approach is needed , consistent with the Federal Constitution and international human rights conventions.

Keywords: Criminal Proceedings. Judiciary Police. Civil Police. Military Police. Unlawful Killings .

1 Pós-graduado em Direito pela Uniasselvi. Professor de Processo Penal da Unifeg E-mail: [email protected]

2 Pós-graduado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera. Servidor do Ministério Público do Estado da Bahia. E-mail: [email protected]

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INTRODUÇÃO

Conforme indicam as últimas pesquisas3, as polícias brasileiras, infelizmente, ainda apresentam alarmantes índices de letalidade.

E bem verdade que muitas mortes ocorrem sob o amparo da lei, em virtude do confronto com uma criminalidade cada vez mais armada e igualmente letal. No entanto, não têm sido raros os casos de execuções praticadas por policiais e que merecem a devida repressão.

No derredor desta questão encontra-se o problema do conflito de atribuições de polícia judiciária4 no que pertine à investigação dos homicídios dolosos praticados por policiais militares em face de vítimas civis. Isso porque, à margem das sucessivas alterações legislativas e das infindáveis discussões doutrinárias, ainda persiste a dúvida sobre qual a polícia (civil ou militar) é realmente competente para presidir as investigações naqueles casos. O problema se intensifica quando, na prática, se constata que cada Estado membro adota um entendimento, ou, pior, que a atribuição é definida discricionariamente conforme o caso concreto.

Para resolver o problema, inicialmente, este estudo buscou compreender o conceito de crime militar e diagnosticar a natureza jurídica do delito de homicídio, delimitando-se o objeto. Em seguida, foi analisada a sucessão das leis pertinentes ao assunto e realizado o mapeamento, por amostragem, do atual cenário nos diferentes Estados. Por fim, o trabalho enfrentou os fundamentos das diferentes correntes doutrinárias e jurisprudenciais, além de abordar o tratamento da questão no âmbito internacional.

Como não poderia ser diferente, a pesquisa foi conduzida através das lentes constitucional e convencional.

1 DOS CRIMES MILITARES

Em plena ditadura militar, através do Ato Institucional n. 16, de 14 de outubro de 1969, combinado com o § 1º do art. 2º, do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, os ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar decretaram

3 PAGNAN, Rogério. Mortes por policiais no país em um ano equivalem a um 11 de setembro. Folha de S. Paulo, São Paulo, out. 2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/10/1689789-mortes-por-policiais-no-pais-em-um-ano-equivalem-a-um-11-de-setembro.shtml>. Acesso em: 18 jul. 2016.

4 Palavra utilizada aqui com o mesmo sentido de polícia investigativa, sem obstar do entendimento que diferencia ambas as expressões.

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o Código Penal Militar (CPM), o qual encontra-se vigente até a presente data por meio do Decreto-Lei n. 1.001, de 21 de outubro de 1969.

O referido Código foi parcialmente recepcionado pela Constituição Federal e, atualmente, satisfaz adequadamente o comando do art. 124 da Carta Republicana que prevê a tipificação dos crimes militares através de norma ordinária, nos seguintes termos:

Art. 124. À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.Parágrafo único. A lei disporá sobre a organização, o funcionamento e a competência da Justiça Militar.5

E importante observar que essa lei é aplicada para os militares em geral, pertencentes às Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica), e também aos militares estaduais, pertencentes às policias militares e bombeiros militares estaduais, por força do art. 22 do CPM,

Art. 22. E considerada militar, para efeito da aplicação deste Código, qualquer pessoa que, em tempo de paz ou de guerra, seja incorporada às forças armadas, para nelas servir em posto, graduação, ou sujeição à disciplina militar.6

combinado com o art. 42 da Constituição Federal, que prevê que:

Art. 42. Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.7

No mesmo sentido, a disposição do art. 125, § 4º, da Constituição Federal determina que “compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei”.

Assim sendo, está com razão o doutrinador Célio Lobão quando esclarece que:

Crime militar é a infração penal prevista na Lei Penal Militar que lesiona bens ou interesses vinculados à destinação constitucional das instituições militares, as suas atribuições legais, ao seu funcionamento, à sua própria existência, no aspecto particular da disciplina, da hierarquia, da proteção à autoridade militar, e ao serviço militar.8

5 BRASIL. Constituição (1988). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 1 abr. 2015.

6 BRASIL. Decreto-Lei n. 1.001, de 21 de outubro de 1969. Poder Executivo, Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 out. 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1001.htm>. Acesso em: 4 ago. 2016.

7 Constituição (1988).8 LOBÃO, Célio. Comentários ao Código Penal Militar: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 1. p. 31.

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Vale dizer que o próprio CPM fez uma interpretação autêntica dos crimes militares através das normas dos arts. 9º e 10 ao estabelecer que:

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:I – os crimes de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na

lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial;

II – os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:

a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;

b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil;

d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar;

III – os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:

a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;

b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;

c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;

d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquêle fim, ou em obediência a determinação legal superior.

Art. 10. Consideram-se crimes militares, em tempo de guerra:I – os especialmente previstos neste Código para o tempo de guerra;II – os crimes militares previstos para o tempo de paz;III – os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição

na lei penal comum ou especial, quando praticados, qualquer que seja o agente:a) em território nacional, ou estrangeiro, militarmente ocupado;b) em qualquer lugar, se comprometem ou podem comprometer a preparação, a

eficiência ou as operações militares ou, de qualquer outra forma, atentam contra a segurança externa do País ou podem expô-la a perigo;

IV – os crimes definidos na lei penal comum ou especial, embora não previstos neste Código, quando praticados em zona de efetivas operações militares ou em território estrangeiro, militarmente ocupado.9

9 Ibidem.

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Dessa forma, observa-se que o Código Castrense adotou o critério ratione legis, sendo crime militar aquele descrito pela norma. Em outras palavras, exige-se que o fato esteja tipificado no CPM e que se amolde a uma das hipóteses dos arts. 9º e 10 do CPM.

Vale lembrar, ainda, que os crimes militares tipificados no art. 9º do CPM se dividem em crimes propriamente e impropriamente militares. Os primeiros, descritos no inciso I daquele artigo, têm como sujeito ativo do delito somente um militar, não existindo correspondência na lei penal comum. Ademais, lesionam bens e interesses das instituições militares, atingindo a hierarquia e a disciplina. Já os crimes militares impróprios, previstos no inciso II, ao contrário, possuem correspondentes no Código Penal Comum e têm como sujeito ativo o militar, desde que se encontrem em uma das condições descritas nas respectivas alíneas.

2 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O DELITO DE HOMICÍDIO

O delito de homicídio, como é de curial sabença, encontra-se tipificado no art. 121 do Código Penal, cujo preceito primário se resume à conduta de “matar alguém”.

Para Paulo César Busato10, “matar é ceifar a vida, ato que presume a existência desta. No homicídio se trata da vida independente, extrauterina, e não mais a vida em formação, como no aborto”.

De forma mais amiúde, Rogério Greco11 leciona que o homicídio só pode ocorrer a partir do início do parto, encerrando-se com a morte da vítima (a partir do início do trabalho do parto com a dilatação do colo do útero ou com o rompimento da membrana amniótica, sendo o parto normal, ou a partir das incisões das camadas abdominais, no parto cesariana; até a morte do ser humano, que ocorre com a morte encefálica).

Ocorre que também há a tipificação do homicídio doloso no art. 205 do CPM, de modo que, por muito tempo e de forma uníssona, foi considerado um crime militar impróprio, sujeito à competência Castrense, mesmo quando praticado por policiais militares em atividade de natureza civil.

Em verdade, o problema, objeto do presente trabalho, somente surgiu em 1996 com as alterações legislativas que serão vistas na sequência, as quais somente atingiram o crime de homicídio doloso.

10 BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte especial 1. São Paulo: Atlas, 2014. p. 20.11 GRECO, Rogério. Curso de Direito penal: parte especial II. 11. ed. Niterói: Impetus, 2015. p. 137.

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Vale salientar que, apesar de o CPM também prever o delito de homicídio culposo no art. 206, não há dúvidas de que, pelo menos do ponto de vista normativo, tal conduta continuou sujeita à Jurisdição Militar, por não ter sido afetada pelas modificações. Por isso, tal modalidade não é objeto de estudo nesta pesquisa.

Ademais, também não será objeto de apontamentos neste artigo a ressalva realizada pela Lei n. 12.432/2011 que, alterando o art. 9º, paragrafo único, do CPM, manteve incólume a competência e atribuição militar para a apuração dos crimes dolosos contra a vida: “[...] quando praticados no contexto de ação militar realizada na forma do art. 303 da Lei n. 7.565, de 19 de dezembro de 1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica”12.

3 TRATATIVA DAS ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS

Conforme mencionado, em 1996 foi editada a Lei Federal n. 9.299, mais conhecida como “Lei Rambo”, promovendo alterações no CPM e no Código de Processo Penal Militar (CPPM).

Essencialmente, a Lei Rambo modificou o parágrafo único do art. 9º do CPM, estabelecendo que os crimes “quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum”13. Dessa forma, os homicídios dolosos praticados por militares contra civis deixaram de ser da competência da Justiça Castrense, passando, a partir de então, a ser julgados pela justiça comum.

Essa esdrúxula situação ocorreu, sobretudo, porque a Lei n. 9.299/1996 alterou a competência sem, contudo, afastar a natureza militar (imprópria) do crime de homicídio prevista no art. 205 do CPM. O grande problema é que, segundo a Constituição, competia à Justiça Militar os crimes militares definidos em lei, em razão do que se instalou grande controvérsia sobre a constitucionalidade da alteração legislativa no que tange a competência.

Em 2004, então, através da reforma do Poder Judiciário, levada a efeito por meio da Emenda Constitucional n. 45, a competência da Justiça Comum para os crimes dolosos contra a vida, cometidos contra civis, foi corroborada com a alteração do art. 125, § 4º, da Constituição Federal, o qual passou a ter a seguinte redação:

§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares

12 BRASIL. Lei n. 12.432, de 29 de junho de 2011. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 30 jun. 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12432.htm>. Acesso em: 4 ago. 2016.

13 BRASIL. Lei n. 9.299, de 7 de agosto de 1996. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 8 ago. 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9299.htm>. Acesso em: 4 ago. 2016.

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militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.14

Essa alteração constitucional foi relevante, portanto, para pacificar a questão da competência, mas novamente não tratou expressamente sobre a atribuição da polícia judiciária no caso do delito de homicídio praticado por militares, que, em tese, continuava sendo acidentalmente militar.

E importante notar que essa discussão, apesar de tão debatida, continua atualmente indefinida. A situação posta é muito relevante e, por envolver direitos fundamentais, deve ser solucionada de forma breve e através de interpretações que reflitam as normas da Constituição e dos tratados internacionais de direitos humanos.

4 DO ATUAL TRATAMENTO PELOS ESTADOS

Diante da nebulosidade instalada, os Estados membros passaram a adotar procedimentos diversos.

O Estado de São Paulo, por exemplo, possui maior efetivo de policiais militares do Brasil, com cerca de oitenta e sete mil policiais, a atribuição foi, inicialmente, fixada pela Resolução n. 110/201015, da Secretária de Segurança Pública, ao determinar que “nos crimes dolosos contra a vida, praticados por policiais militares contra civis, os autores deverão ser imediatamente apresentados à autoridade policial civil”. Entretanto, o Tribunal

14 BRASIL. Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004. Poder Legislativo, Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/emc45.htm>. Acesso em: 4 ago. 2016.

15 Resolução SSP-110, de 19 de julho de 2010. Disciplina o procedimento em ocorrências que envolvam crimes dolosos contra a vida, praticados por policiais militares contra civis.

Considerando a necessidade de padronizar o procedimento a ser adotado nas ocorrências que envolvam crimes dolosos contra a vida, praticados por policiais militares, eliminando interpretações geradoras de desinteligências entre a Polícia Civil e a Polícia Militar;

Considerando ser indevida a condução de autores desses crimes, em razão de prisão em flagrante delito, às unidades da Polícia Militar, para a prática de atos de polícia judiciária militar, causando embaraços e prejuízos à imediata coleta de provas e demais providências a cargo da autoridade policial civil, o Secretário da Segurança Pública, resolve:

Artigo 1º - Nos crimes dolosos contra a vida, praticados por policiais militares contra civis, os autores deverão ser imediatamente apresentados à autoridade policial civil para as providências decorrentes de atividade de polícia judiciária, nos termos da legislação em vigor (art. 9º, parágrafo único do Código Penal Militar e art. 10, § 3º c/c art. 82 do Código de Processo Penal Militar);

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de Justiça Militar deste Estado considerou a resolução inconstitucional16 e, atualmente, tanto a Polícia Civil quanto a Militar realizam investigações paralelas.

No Estado de Minas Gerais, que possui o segundo maior efetivo de policiais militares do Brasil, com aproximadamente cinquenta mil integrantes, curiosamente, não houve a regulamentação pela Secretaria de Segurança Pública, em razão de que cada corporação editou um ato atribuindo para si a “competência”. Dessa forma, as atribuições foram fixadas pela Nota Jurídica n. 3/201017, da Corregedoria da Polícia Civil, e pela Instrução n. 5/201218, da Corregedoria do Tribunal de Justiça Militar e Polícia Militar, ambas concorrentes entre si, de modo que as polícias civil e militar investigam tais delitos autonomamente.

Na Bahia, de outro lado, foi editada a Portaria n. 291, de 2 de junho de 2011, pela Secretaria de Segurança Pública, dispondo sobre as diretrizes a serem seguidas no atendimento de local de crime de homicídio, a qual trouxe, no parágrafo único do art. 3º, a seguinte disposição, favorável à atribuição da autoridade militar:

Parágrafo Único – Quando houver indícios de envolvimento de policiais militares de serviço na prática do crime de homicídio, assim como militares em atividade, a STELECOM deverá acionar a Corregedoria da Polícia Militar, para que envie preposto daquele órgão ao local da ocorrência, objetivando a tomada das medidas previstas no art. 10, §2º c/c art. 12 do Código de Processo Penal Militar.19

Nada obstante, surpreendentemente, no polêmico “caso Cabula”, ocorrido em fevereiro de 2015, em Salvador, quando doze pessoas foram mortas em um confronto com

Artigo 2º - a imediata apresentação determinada pelo artigo anterior não inibe a autoridade de polícia judiciária militar de instaurar, por portaria, Inquérito Policial Militar (IPM) para apuração de eventuais delitos conexos, propriamente militares, dada a imperiosa cisão das ações penais no concurso de crimes comuns e militares, a teor do disposto no art. 79, inc. I, do CPP e art. 102, alínea “a” do CPPM.

Artigo 3º - Esta Resolução passa a vigorar na data de sua publicação. Antonio Ferreira Pinto Secretário de Estado dos Negócios da Segurança Pública. Publicado no Diário Oficial

do Estado de São Paulo no dia 21 de Julho de 2010 – Caderno Executivo I. p. 12. 16 SÃO PAULO (Estado). Tribunal de Justiça Militar. Arguição de Inconstitucionalidade n. 001/10. Disponível em:

<http://jusmilitaris.com.br/sistema/arquivos/doutrinas/adin_resolucao_ssp_110.pdf>Acesso em: 18 de jul. 2016.17 MINAS GERAIS. Polícia Civil. Corregedoria Geral de Polícia Civil. Nota Jurídica n. 03/CGPC/2010:

competência para apuração dos crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares. Belo Horizonte: Polícia Civil de Minas Gerais, 2010.

18 MINAS GERAIS. Corregedoria do Tribunal de Justiça Militar; MINAS GERAIS. Corregedoria da Polícia Militar. Provimento Conjunto n. 09/2011. Dispõe sobre os Procedimentos de Polícia Judiciária Militar no âmbito da Justiça Miliar do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais, 08 nov. 2011. 7 p. Disponível em: <http://www.tjm.mg.gov.br/images/stories/downloads/corregedoria/provimento_09-2011.pdf> Acesso em: 16 jan. 2016.

19 Art. 3º, parágrafo único da Portaria n. 291, de 2 de junho de 2011.

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a Polícia Militar, outra providência foi tomada20. Na oportunidade, a investigação foi feita pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil do Estado da Bahia (PC/BA), contrariando a portaria n. 291/2011 e demonstrando a insegurança jurídica que ainda paira sobre o tema.

Em sentido inverso, no Rio de Janeiro, foi emitida a Portaria n. 553, de 7 de julho de 2011, da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (PCERJ), a qual determinou a atribuição da Polícia Civil para investigar os homicídios em caso de auto de resistência. O caso “Amarildo”, que teve repercussão nacional, é um exemplo de investigação realizada pela Polícia Civil deste Estado.

5 DA DIVERGÊNCIA DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL SOBRE A ATRIBUIÇÃO

Como se percebe, o cerne do debate encontra-se na natureza do delito e na diferenciação entre a atribuição para investigar e a competência para julgar. O art. 82, §2º do CPPM somente reforça essa constatação com a seguinte redação: “§ 2º Nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum”21.

Sobre o assunto, Jorge Cesar de Assis22 afirma que não ocorreu uma circunstância exclusória da natureza militar do crime doloso de homicídio e justifica o seu raciocínio ao asseverar que o homicídio doloso não deixou de ser crime militar impróprio, apesar de a Lei n. 9.299/1996 inserir o parágrafo único do art. 9º do CPM e alterar o art. 82 do Código de Processo Penal Militar.

Para o referido autor:

a Emenda constitucionalizou o deslocamento do julgamento dos crimes dolosos contra a vida, porém em nenhum momento retirou-lhe a natureza do crime militar, sendo possível afirmar que esta é uma hipótese em que a Justiça Comum processa e julga crime militar, contrariando o principio da especialidades23.

20 ALMIRANTE, Juliana. Decisão afirma legítima defesa de PMs do caso Cabula. G1 BA, jul. 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/bahia/noticia/2015/07/decisao-afirma-legitima-defesa-de-pms-do-caso-cabula-mp-questiona.html>. Acesso em: 16 out. 2016.

21 BRASIL. Lei n. 9.299, de 7 de agosto de 1996. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, DF, 8 ago. 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9299.htm>. Acesso em: 4 ago. 2016.

22 ASSIS, Jorge Cesar de. Aspectos penais e processuais penais e administrativos. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007. p. 151-153.

23 Ibidem. p.157.

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Por fim, Jorge Cesar de Assis conclui que:

Conquanto processado e julgado pela Justiça comum (Tribunal do Júri), é a Justiça Militar quem diz se o crime é, ou não, doloso contra a vida, e desta forma é a polícia judiciária militar a competente para investigá-lo, sendo o inquérito policial

militar instrumento hábil para tal mister24.

No mesmo sentido, Renato Brasileiro de Lima25afirma que dentre as atribuições da Polícia Judiciária Militar existe a atribuição de investigar os crimes militares e os crimes dolosos contra a vida praticados por policiais militares contra civis, em respeito ao art. 82, §2º do CPPM.

O constitucionalista Pedro Lenza26, trilhando o escólio de Paulo Tadeu da Rosa, assevera que o Inquérito Policial Militar é o instrumento hábil para apurar o fato e que este, posteriormente, deve ser encaminhado à Justiça Militar para ulterior encaminhamento ao parquet, o qual atua perante a Justiça especializada. Após a manifestação deste, o juiz-auditor deve encaminhar os autos à Justiça comum da Vara do Júri para seguir o rito do Código de Processo Penal.

Já Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar27 são favoráveis à coexistência de ambos inquéritos, os realizados no âmbito da Policia Civil em conjunto com o realizado com a policia militar. Coaduna com o mesmo entendimento Renato Marcão28.

Ocorre que, trilhando os ensinamentos de Antonio Scarance Fernandes, a melhor interpretação, inclusive com amparo constitucional, somente conduz ao entendimento de que é a Policia Civil que possui a atribuição para investigar estes crimes. Vejamos:

Tornou-se controvertido o § 2º, acrescido ao art. 82. Como a Constituição Federal, em seu art. 144, § 4º, atribui às polícias civis, dirigidas por delegados de carreira, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações, exceto as militares, a ela incumbiria a investigação dos crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil, pois deixaram eles de ser crimes militares. Assim, não há motivo algum para ser o inquérito presidido por policiais militares e só ao final serem os autos remetidos pela Justiça Militar à Justiça Comum29.

24 Ibidem. p. 166.25 LIMA. Renato Brasileiro. Manual de processo penal. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 157.26 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 16. ed. São Paulo: Saraiva. 2013. p. 756.27 TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 9. ed. Salvador:

Juspodivm, 2014. p. 111.28 MARCÃO, RENATO. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva. 2014. p. 208.29 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 160.

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Corrobora com este entendimento Jeferson Botelho com as seguintes palavras:

Se doloso contra a vida, tentado ou consumado, praticado por militar contra civil, a competência para o processo e julgamento é deslocada para a Justiça Comum. Quanto à apuração dos fatos, muito embora a Lei 9.299/96 diga que a Justiça Militar encaminhará o IPM à Justiça Comum, acredito que a norma é inconstitucional, devendo a apuração ficar a cargo da Polícia Civil, considerando que uma vez não sendo mais competência da Justiça Militar, não seria razoável permanecer sob apuração da Justiça Militar30.

No mesmo sentido, é o magistério do Professor Damásio ao aduzir que:

A Lei n. 9.299/96 determinou que crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis passassem a ser julgados pelo Tribunal do Júri. Houve quem dissesse que a lei, ao transferir ao Júri a competência para julgamento de crimes militares, mostrava-se inconstitucional. Não pensamos assim, uma vez que a interpretação correta a ser dada, teleológica e não puramente gramatical, revela que a lei passou a considerar comuns esses delitos. Em outras palavras, não se trata de determinar o julgamento de crimes militares pela Justiça Comum, mas da modificação da natureza do delito, que de militar passou a ser considerado comum e, portanto, de competência da Justiça Comum (Estadual ou Federal). Note-se que o critério utilizado no Brasil para a definição de crimes militares é o ratione legis, isto é, considera-se crime militar aquele descrito pela lei como tal31.

No âmbito jurisprudencial também há divergência sobre o assunto.

Vale ressaltar que a matéria foi questionada perante o Supremo Tribunal Federal (STF) através da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1494-DF. Entretanto, apesar de indeferir o pedido de medida cautelar, entendendo “que a norma inscrita no art. 82, § 2º, do CPPM, na redação dada pela Lei n. 9.299/1996, reveste-se de aparente validade constitucional” não pôs fim ao conflito, uma vez que não conheceu “da ação direta, por ausência de legitimidade ativa da ADEPOL” (Associação de Delegados da Polícia do Brasil).

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) n. 25.384/ES, contudo, em acertado aresto já entendeu da seguinte forma:

[...] 1. A Lei 9.299/1996 incluiu o parágrafo único ao artigo 9º do Código Penal Militar, consignando que os crimes nele tratados, quando dolosos contra a vida e praticados contra civil, são da competência da Justiça Comum32.

30 PEREIRA, Jeferson Botelho. Crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civis. Minas Gerais, mar. 2009. Disponível em: <http://www.jefersonbotelho.com.br/crimes-dolosos-contra-a-vida-cometidos-por-militares-contra-civis>. Acesso em: 15 jan. 2016.

31 JESUS, Damasio Evangelista. Competência para julgamento de crime militar doloso contra a vida. Migalhas, dez 2007. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI50508,51045-Competencia+para+julgamento+de+crime+militar+doloso+contra+a+vida>. Acesso em: 18 jul. de 2015.

32 (STJ, RHC 25.384/ES, 5ª T., rel. Min. Jorge Mussi, j. 7-12-2010, DJe 14-2-2011).

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2. O mesmo diploma legal acrescentou, ainda, um parágrafo no artigo 2 no Código de Processo Penal Militar, determinando que a Justiça Militar encaminhe os autos do inquérito policial militar à Justiça Comum, nos casos de crimes dolosos contra a vida cometidos contra civil.

3. Diante de tais modificações, esta Corte Superior de Justiça adotou o entendimento de que, diante da incidência instantânea das normas processuais penais disposta no artigo 2º do Código de Processo Penal, a Lei 9.299/1996 possui aplicabilidade a partir da sua vigência, de modo que todas as investigações criminais e processos em curso relativos a crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil devem ser encaminhados à Justiça Comum33.

Ao apreciar este julgado, Bruno Taufner Zanotti, esclarece que:

Pelo exposto, se houve a descaracterização do delito como crime militar, como é perfeitamente visível no julgado do STJ acima que resolveu conflito de competência, de modo a concluir pela competência do Tribunal do Júri; pelo mesmo motivo, a titularidade para a sua investigação compete à Polícia Civil. Afinal, como se observa pelo art. 144, §§ 4º e 5º, da Constituição Federal, a Polícia Militar somente investiga crimes militares, que não é a hipótese em tela34.

E conclui que:

Por não ser hipótese de crime militar, por determinação constitucional, a investigação de tais crimes é atribuição em caráter indelegável da Polícia Civil. Entendimento em sentido contrário configuraria poderia caracterizar uma grave inadmissibilidade das provas produzidas pela Polícia Militar pelo Poder Judiciário (provas produzidas de forma contrária ao texto da Constituição), de modo a contribuir para a impunidade dos envolvidos35.

O mesmo entendimento seguiu o Egrégio Tribunal de Santa Catarina através do Recurso Criminal (RC) 20130749889, julgou favoravelmente a investigação realizada pela polícia civil:

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO QUALIFICADO. CÓDIGO PENAL, ART. 121, § 2.º, I. PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO COM NUMERAÇÃO SUPRIMIDA. LEI N. 10.826/03, ART. 16, PARÁGRAFO ÚNICO, IV. PRONÚNCIA. RECURSO DEFENSIVO.

33 Ibidem.34 ZANOTTI, Bruno Taufner. Homicídio cometido por policial militar contra civil: atribuição investigativa da

Polícia Civil ou da Polícia Militar? Penso Direito, nov. 2013. Disponível em: <http://pensodireito.com.br/03/index.php/component/k2/item/74-homic%C3%ADdio-cometido-por-policial-militar-contra-civil-atribui%C3%A7%C3%A3o-investigativa-da-pol%C3%ADcia-civil-ou-da-pol%C3%ADcia-militar>. Acesso em: 18 jul. 2013.

35 Ibidem.

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PRELIMINAR. INEPCIA DA DENÚNCIA. SUBSTRATOS PARA A FORMAÇÃO DAOPINIO DELICTI. PROCEDIMENTO REALIZADO PELA POLÍCIA CIVIL. ALEGAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. CRIME DOLOSO CONTRA A VIDA PRATICADO POR MILITARES CONTRA CIVIL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM.A competência para processar e julgar as ações relacionadas aos crimes dolosos contra a vida cometidos por militar contra civil, como no caso em apreço, é da justiça comum, conforme preceitua o art. 9º, parágrafo único, do Código Penal Militar, o art.82, § 2º, do Código de Processo Penal Militar e o art. 125, § 4º, da Constituição Federal, sendo, portanto, de competência da polícia civil presidir o inquérito policial36.

Em verdade, não se descura do entendimento de que o vício da atribuição da autoridade policial não conduz à nulidade do processo penal. Entretanto, não se pode aceitar que cada Estado adote um procedimento ou mesmo que haja discricionariedade quanto à escolha da autoridade policial, especialmente quando se trata de distintas polícias com diferentes atribuições constitucionais.

Apesar do entendimento dos nobres doutrinadores citados anteriormente, diante das alterações normativas, a interpretação teleológica e mais consentânea com os direitos humanos somente pode conduzir ao entendimento de que a Constituição efetivamente modificou a natureza jurídica dos homicídios dolosos praticados por militares contra civis, transformando-os em delitos comuns.

Isso porque, na hipótese tratada aqui, não faz sentido atribuir a competência do Júri, visando afastar um julgamento com viés militar, e deixar que a investigação, a base da futura ação penal, seja feita pela Polícia Militar.

Não há dúvidas de que a ideia foi, sim, a de conceder às polícias Federal e Civil a atribuição para apurar as mortes de civis provocadas por militares, uma vez que praticadas em um Estado Democrático de Direito, ainda mais em tempos de paz.

Especificamente no que concerne aos policiais militares, apesar de serem, como o próprio nome diz, militares, desempenham as suas funções de polícia ostensiva perante uma população civil e também no enfrentamento de crimes comuns, não se justificando uma análise castrense da eventual conduta delitiva.

Vale salientar, ainda, que não é pelo fato de enfrentar uma criminalidade armada, agressiva e letal que se justifica a investigação e o processamento pela Justiça Militar, até porque os policiais federais, civis e rodoviários também a enfrentam e nem por isso são julgadas em uma corte especializada.

36 Grifo nosso. TJ-SC - Recurso Criminal: RC 20130749889 SC 2013.074988-9.

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Também não convence o fraco argumento daqueles que defendem que a investigação pela Polícia Civil não levaria em consideração as dificuldades reais dos confrontos policiais, vez que a apuração pela polícia judiciária, federal ou civil, obviamente, não significa, por si só, prévio indiciamento.

Como exemplo, sem adentrar o mérito, relembre-se o polêmico caso Cabula37, no qual a investigação feita pela Polícia Civil do Estado da Bahia e a conclusão foi pelo não indiciamento dos policiais militares, o que foi corroborado pela absolvição levada a efeito posteriormente pela Justiça Estadual de primeiro grau.

Deve-se acrescentar ainda que, eventualmente, poderá ser instaurado um inquérito policial militar para apurar outras condutas, porém essa possibilidade não poderá ser utilizada abusivamente para afastar a atribuição constitucional aqui defendida.

Em todo caso, o inquérito policial “civil” é a regra e deverá ser instaurado, prima facie, para apuração das mortes de civis, restando ao inquérito policial militar a excepcionalidade dos casos em que for constatada flagrantemente as hipóteses da competência militar, como determina o art. 10, § 3º, do CPPM. Vejamos:

§ 3º Se a infração penal não for, evidentemente, de natureza militar, comunicará o fato à autoridade policial competente, a quem fará apresentar o infrator. Em se tratando de civil, menor de dezoito anos, a apresentação será feita ao Juiz de Menores.

Também é o que se extrai da Resolução n. 8, de 21 de dezembro de 2012, editada pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, senão vejamos:

Art. 2º Os órgãos e instituições estatais que, no exercício de suas atribuições, se confrontarem com fatos classificados como “lesão corporal decorrente de intervenção policial” ou “homicídio decorrente de intervenção policial” devem observar, em sua atuação, o seguinte:I – os fatos serão noticiados imediatamente a Delegacia de Crimes contra a Pessoa ou a repartição de polícia judiciária, federal ou civil, com atribuição assemelhada, nos termos do art. 144 da Constituição, que deverá: a) instaurar, inquérito policial para investigação de homicídio ou de lesão corporal;38

No mesmo sentido, reverbera Castro ao dizer que:

Destarte, todo e qualquer miliciano suspeito da prática de crime contra a vida de vítima civil deve ser imediatamente apresentado ao Delegado de Polícia do lugar

37 ALMIRANTE, Juliana. Op. cit.38 Grifo nosso.

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mais próximo (arts. 304 e 308 do CPP). Eventual condução de PM homicida a destacamento militar pode acarretar a responsabilização – inclusive penal - do comparsa que pretender favorecer o suspeito. A possibilidade de que o fato tenha sido praticado em legítima defesa não elide a exigência de apresentação do miliciano à Polícia Civil, porquanto a análise de eventual excludente de ilicitude incumbe ao Delegado de Polícia, e não ao oficial de Polícia Militar, agente da Autoridade Policial e ocupante de carreira não jurídica39.

Ademais, saliente-se, as atribuições policiais investigativas são regidas pelos princípios da especialidade e da legalidade e seguem, obliquamente, a competência jurisdicional, salvo nas exceções legalmente justificadas como no caso da Lei n. 10.446/02. Na espécie, não há razão para que um mesmo fato seja investigado pela Polícia Militar e, posteriormente, julgado pela Justiça Comum. Seria como criar um patiche como é bem colocado, ao abordar o tema, pelo consagrado Tourinho Filho:

Assim, aparentemente, essa nova lei apresenta natureza processual ou penal. Contudo, inegável sua natureza hibrida. No que respeita aos crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados, ela lhes deu nova definição: se cometidos contra militar, continuam sendo crimes militares impróprios; se contra civis, passaram a ser comuns. Assim, se um militar cometer um crime doloso contra a vida de um civil pouco importando a natureza do instrumento utilizado, se pertencente à Corporação, ou não, responderá perante a Justiça Comum, levando-se em consideração, por razões óbvias, o Código Penal Comum. Não é pelo fato de o agente ser militar que, num homicídio contra civil, deva responder segundo o art. 205 do CPM, mas, sim, pelo art.121 do CP. Por outro lado, se o agente cometeu o crime prevalecendo-se da situação de serviço, não deve responder pela qualificadora prevista no art. 205, § 22, VI, do CPM. O homicídio contra civil deixou de ser crime militar e, por isso mesmo, não pode a Justiça Comum fazer um verdadeiro pastiche, isto é, julgar um militar, segundo as normas do CPP Comum e do Código Penal Militar40.

Assim, seguindo a razão da lógica jurídica, a persecução criminal na hipótese aqui delineada deve ficar apenas no âmbito civil. Seria inconcebível criar uma persecução com parte fundamentada no Código de Processo Castrense e a outra parte no Código de Processo Penal. Ora o investigado está sujeito às leis militares e ora está sujeito à lei civil.

39 CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Homicídio praticado por PM contra civil: atribuição da Polícia Civil. Revista Jus Navigandi, Teresina, v. 21, n. 4572, jan. 2016. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/45635>. Acesso em: 15 jan. 2016.

40 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva: 2012. p. 185.

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De mais a mais, verifica-se que a investigação pela Polícia Militar não escapa de uma análise convencional.

6 DO TRATAMENTO INTERNACIONAL SOBRE A QUESTÃO

Em 1969, foi aprovada a Convenção Americana sobre Direitos Humanos que criou a Corte Interamericana de Direitos Humanos e definiu atribuições e procedimentos tanto da Corte como da Comissão. Ratificada por diversos países, inclusive o Brasil, a Convenção entrou em vigor, internacionalmente, em 1978.

Como é cediço, o Pacto de San José da Costa Rica é vinculante e, por ser um tratado internacional de direitos humanos, possui status de supralegalidade, conforme definido pelo STF. Significa dizer que as suas normas são superiores às leis ordinárias, inclusive o CPPM, e inferiores à Constituição Federal.

Neste diapasão, leciona o Ministro Gilmar Mendes que:

Por fim, cabe registrar o encerramento do julgamento do Recurso Extraordinário n. 466.343 /SP, Rel. Min. Cezar Peluso, em 3-12-2008. Nesse julgado, o STF definiu a tese da supralegalidade dos tratados internacionais sobre direitos humanos que sejam internalizados pelo direito pátrio. Ou seja, foi superado o entendimento anterior – no sentido de que os tratados, ainda que versassem sobre direitos humanos, teriam a mesma estatura normativa das leis ordinárias – e prevaleceu, por maioria de votos, a tese de que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status supralegal, o que torna inaplicável a legislação infraconstitucional com eles conflitantes, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação e que, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, § 7)41.

Foi justamente em razão do descumprimento das normas convencionais que o Brasil sofreu denúncia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), dando origem ao caso Jailton Neri da Fonseca que versa sobre a execução do adolescente por policiais militares do Rio de Janeiro. Ao final, em seu relatório, a Comissão entendeu que:

102. Al respecto, la Comisión considera que la policía militar y los tribunales militares no tienen la independencia y autonomía necesarias para investigar

41 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10. Ed. São Paulo: Saraiva: 2015. p. 172.

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ni para juzgar de manera imparcial las presuntas violaciones a los derechos humanos presuntamente cometidas por policías militares. Tanto la investigación de presuntas violaciones de derechos humanos realizada por la policía militar como el juzgamiento de dichas violaciones por tribunales militares, implican violación per se a los artículos 1.1, 25 y 8 de la Convención Americana42.

No que concerne à Lei Rambo, a Comissão também reconheceu a óbvia incongruência oriunda da fixação da competência comum sem a retirada da atribuição da autoridade militar, inclusive com ofensa ao art. 144 da Constituição Federal. Veja:

Con esto, la investigación (“inquérito”) permanecerá bajo la responsabilidad de la autoridad militar, aún cuando se trate de un crimen doloso contra la vida y a pesar de que, de acuerdo con la nueva ley, dichos crímenes pasan a la esfera de la Justicia común. Esta nueva disposición contradice el artículo 144, sección 4 de la Constitución, que asigna a las policías civiles las funciones de policía judicial y la investigación de las infracciones penales, excepto las militares. En efecto, si los crímenes dolosos contra la vida dejan de ser militares en virtud de la nueva ley, la investigación penal debería estar a cargo de las policías civiles, a las cuales corresponde, conforme al artículo 144, sección 4 de la Constitución, “las funciones de policía judicial y la investigación de las infracciones penales”. Al dejar la investigación inicial en manos de la policía “militar”, de hecho se confiere a ésta la competencia para determinar ab-initio si el crimen es doloso o no. Esto significa que la Ley 9.299 de la República no tiene capacidad efectiva para reducir significativamente la impunidad43.

Assim, conforme o trecho a seguir, concluiu a CIDH que resta inviável um julgamento objetivo por parte do Juízo comum quando a investigação é iniciada por uma autoridade militar:

117. La conclusión anterior no se ve modificada por el hecho de que la policía militar tenga a su cargo únicamente la investigación inicial, y que la competencia para juzgar haya sido atribuida a los tribunales del fuero penal ordinario. Ello debido a que la investigación del caso por parte de la policía militar brasileña, precluye la posibilidad de una investigación objetiva e independiente ejecutada por autoridades judiciales no ligadas a la jerarquía de mando de las fuerzas de seguridad. El hecho de que la investigación de un caso haya sido iniciada por la policía militar brasileña puede imposibilitar una condena aún si el caso pasa luego al fuero penal ordinario, dado que probablemente, debido a la falta de independencia e imparcialidad de la policía militar brasileña para investigar a sus propios agentes, la investigación y recolección inicial de pruebas se realiza

42 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH). Informe n. 33/04, marzo 2004. Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/annualrep/2004sp/Brasil.11634.htm>. Acesso em: 16 jan. 2016.

43 Ibidem.

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generalmente con el propósito de dificultar el juzgamiento y tratar de garantizar la impunidad de los responsables de violaciones a los derechos humanos44.

Ao final, a Comissão recomendou:

1. Reparar plenamente a los familiares de Jailton Neri da Fonseca, incluyendo tanto el aspecto moral como el material, por las violaciones de derechos humanos determinadas en el presente informe, y en particular,

2. Realizar una investigación completa, imparcial y efectiva de los hechos, por órganos que no sean militares, con el objeto de establecer y sancionar la responsabilidad respecto a los hechos relacionados con la detención y asesinato de Jailton Neri da Fonseca.

3. Indemnizar a los familiares de Jailton Neri da Fonseca tanto por los daños materiales como los daños morales sufridos con ocasión a su asesinato. Dicha reparación a ser pagada por el Estado brasileño, debe ser calculada conforme a los parámetros internacionales, y debe ser por un monto suficiente para resarcir tanto los daños materiales como los daños morales sufridos por los familiares de Jailton Neri da Fonseca con ocasión de su asesinato y demás violaciones a sus derechos humanos a que se refiere este informe.

4. Modificar el artículo 9 del Código Penal Militar, el artículo 82 del Código de Procedimiento Penal Militar y cualquier otra norma interna que requiera modificarse a los efectos de abolir la competencia de la policía militar para investigar violaciones a derechos humanos cometidas por policías militares, y transferir dicha competencia a la policía civil.

5. Adoptar e instrumentar medidas de educación de los funcionarios de justicia y de la policía, al fin de evitar acciones que implique en discriminación racial en los operativos policiales, en las investigaciones, en el proceso o en la condena penal.

6. Adoptar e instrumentar acciones inmediatas para asegurar el cumplimiento de los derechos establecidos en la Convención Americana, en la Convención sobre los Derechos del Niño y en las demás normas nacionales e internacionales concernientes al tema, de manera que se haga efectivo el derecho a protección especial de la niñez en Brasil45.

E importante ressaltar que, em 2009, o Brasil realizou o pagamento da indenização pecuniária e formalizou, através do Estado do Rio de Janeiro, o pedido público de desculpas46. Entretanto, verifica-se que houve apenas o cumprimento parcial da recomendação, razão pela qual o país ainda encontra-se em mora com as suas obrigações internacionais.

44 Ibidem.45 Ibidem.46 Ibidem.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

De fato, ainda persiste o conflito de atribuição em relação à investigação de homicídios dolosos praticados por policiais militares contra vítimas civis. De um lado, com fortes argumentos e alicerçados em uma interpretação literal, doutrinadores, instituições e operadores defendem que os fatos devem ser investigados através de um Inquérito Policial Militar, presidido por uma autoridade da própria Polícia Militar. Por outro lado, diversos doutrinadores posicionam-se contrariamente à continuidade das investigações por militares, sufragados por uma interpretação teleológica e constitucional.

Como se verificou, entretanto, além das alterações legais e constitucionais evidenciarem uma opção por uma investigação civil, já existe determinação da CIDH no sentido de que o Brasil modifique a legislação para “[...] abolir a competência da polícia militar para investigar violações a direitos humanos cometidas por policiais militares, e transferir a referida competência para a polícia civil”47.

Por essas razões, entende-se que não é mais possível admitir a investigação de homicídios praticados por policiais militares em detrimento de vítimas civis, cabendo tal atribuição exclusivamente às polícias judiciárias, Federal e Civil, conforme as determinações constitucionais e convencionais.

47 Livre tradução. COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH). Informe n. 33/04, marzo 2004. Disponível em: <https://www.cidh.oas.org/annualrep/2004sp/Brasil.11634.htm>. Acesso em: 16 jan. 2016.

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A RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA PELA PRÁTICA DE ATOS DE CORRUPÇÃO: NORMA PENAL OU ADMINISTRATIVA?

NO-FAULT LIABILITY OF LEGAL ENTITIES FOR CORRUPTION PRACTICES: CRIMINAL OR ADMINISTRATIVE LAW?

Marcelo Ortolan1

RESUMO

O presente ensaio se propõe a debater o novo modelo de responsabilização de pessoas jurídicas introduzido pela Lei n. 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção Empresarial, que instituiu o marco da responsabilidade objetiva da pessoa jurídica. Nesse contexto, cabe investigar se a norma é de natureza meramente administrativa ou se também há elementos de Direito penal material, bem como se esse modelo de responsabilização conflita com os parâmetros de culpabilidade fixados pela Constituição Federal. A conclusão a que se chega é que a resposta mais adequada para o tema da “culpabilidade da pessoa jurídica” não esteja no Direito Penal, mas antes no Direito Administrativo Sancionador, que dispensa os elementos antropomórficos daquele e admite soluções mais céleres e eficientes no combate à corrupção empresarial.

Palavras-chave: Lei Anticorrupção Empresarial. Ação. Culpabilidade. Responsabilidade Objetiva. Direito Administrativo Sancionatório.

ABSTRACT

This essay aims to discuss the new liability model for legal entities introduced by the Bill n. 12.846/2013, known as Business Anticorruption Law, which established the framework of no-fault liability of the legal entity. In this context, we investigate whether the norm is of a purely administrative nature or if there are elements of criminal material law, and if this accountability model conflicts with the culpability of parameters set by the Constitution. The conclusion reached is that the most appropriate response to the issue of the “culpability of the legal entity” is not in the Criminal Law, but before in the Administrative Sanctioning Law, that dispenses the anthropomorphic elements of the first one and allows more rapid and efficient solutions in the fight the corporate corruption.

Keywords: Business Anticorruption Law. Action. Culpability. No-fault liability. Administrative Sanction Law.

1 Doutorando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (PPGD/UFPR). E-mail: [email protected]

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INTRODUÇÃO

A responsabilização penal da pessoa jurídica suscitou muitos debates entre a doutrina penalista brasileira, tendo prevalecido o entendimento em favor da possibilidade de imputação penal à pessoa jurídica. Acerca da questão, Paulo Busato destaca que “as pessoas jurídicas contribuem para a realização de um grande número de delitos, quer fornecendo meios materiais, quer estruturando, quer organizando a atividade delitiva”2, de modo que o Direito penal não pode mais se furtar a esta nova realidade.

Nesse contexto, a Lei n. 12.846/2013, conhecida como Lei Anticorrupção Empresarial, introduziu no ordenamento jurídico brasileiro o instituto da responsabilidade objetiva da pessoa jurídica, cujo objetivo é colocar à disposição da Administração Pública os meios céleres e eficazes para responsabilizar as pessoas jurídicas corruptoras.

De acordo com o art. 2º da Lei n. 12.846/2013, “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas objetivamente, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos previstos nesta Lei praticados em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não”3.

Diante disso, em primeiro lugar, indaga-se se a norma é de natureza meramente administrativa ou se também há elementos de direito penal material. Em segundo lugar, investiga-se se a previsão de responsabilização objetiva da pessoa jurídica implicaria em afronta aos arts. 1º, inciso III, 5º, incisos XLV, XLVI e LIII da Constituição Federal.

1 AÇÃO E CULPABILIDADE NA TEORIA CLÁSSICA DO DELITO

A teoria do delito clássica baseia seus conceitos dogmáticos na teoria finalista do Direito penal. Para esta escola, a ação é definida ontologicamente, como uma “alteração do mundo exterior, condicionada pela vontade de um ser consciente e direcionada a um determinado fim”.4 Ou seja, a categoria foi construída e orientada tendo em conta uma pessoa humana, de modo que sua transposição para a análise da possibilidade de responsabilização das pessoas jurídicas gera diversos problemas.

2 BUSATO, Paulo César. Fundamentos político-criminais para a responsabilidade penal da pessoa jurídica: crítica da política criminal que sustenta o princípio societas delinquere non potest, desde a perspectiva do quarto Estado. Revista Jurídica da UNOESC, Joaçaba, v. 3, n. 3, v. 3, p. 161-198, 2003.

3 BRASIL. Lei n. 12.846, de 1º de agosto de 2013. Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2 ago. 2013. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm>. Acesso em: 4 ago. 2016.

4 WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico-penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. Trad. Luiz Regis Prado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 33.

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153Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 8, n. 14, p. 151-166, jan./jun. 2016

Por sua vez, a noção de culpa é definida a partir de critérios psicológicos, sendo que sua atribuição, conforme Gracia Martin, consiste em “uma objeção levantada a uma pessoa que voluntariamente decidiu-se por um comportamento ilícito, apesar de ter o dever de se comportar conforme o Direito”5.

Essa forma de compreender os elementos fundamentais da teoria do delito leva, portanto, à negação da responsabilidade penal da pessoa jurídica, uma vez que esta não seria capaz de “agir”. Assim, a maior parte da doutrina nacional compreende a pessoa jurídica como incapaz de desenvolver uma atividade dirigida pela vontade livre para consecução de um determinado fim.6

Quanto à culpabilidade, se a doutrina majoritária não aceita que a pessoa jurídica possa “agir”, muito menos se admite que ela possa agir “com culpa”. Dessa forma, a entende como inimputável (incapaz de culpabilidade) ao argumento de que a consciência de ilicitude do injusto só poderia ser verificada nas pessoas físicas.7

Com efeito, para a teoria finalista, a conduta (ação ou omissão) seria produto exclusivo do homem, e a capacidade de ação exigiria a presença de uma vontade, entendida como faculdade psíquica da pessoa individual, de modo que as pessoas jurídicas não seriam capazes de agir no sentido penal e, portanto, não poderiam ser responsabilizadas.8 Do mesmo modo, entende-se que o conceito de culpa pressupõe a existência de um ente com capacidade de livre autodeterminação, o que afasta a aplicabilidade desta categoria tradicional para as pessoas jurídicas.9

5 GRACIA MARTÍN, Luis. La cuestión de la responsabilidad penal de las propias personas jurídicas. In: PRADO, Luiz Regis (Coord.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 66.

6 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: ICPC; Lumen Juris, 2006. p. 432; PIERANGELLI, José Henrique. A responsabilidade penal das pessoas jurídicas e a nova lei ambiental. Revista Jurídica da Escola Superior do Ministério Público, Brasília, v. 8, n. 15, p. 111-131, jun. 2000; REGIS PRADO, Luiz. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: fundamentos e implicações. In: PRADO, Luiz Regis (Coord.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica: em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 105-106; MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 1987. p. 106.

7 BITENCOURT, Cézar Roberto. Reflexões sobre a responsabilidade penal da pessoa jurídica. In: GOMES, Luiz Flávio (Coord.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica e medidas provisórias e direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. v. 1. p. 62; SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal... Op. cit. p. 440; REGIS PRADO, Luiz. Responsabilidade penal da pessoa jurídica... Op. cit. p. 106.

8 ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. Trad. Luís Greco. 2. ed. rev. Rio de Janeiro; São Paulo; Recife: Renovar, 2008. p. 154.

9 GRACIA MARTÍN, Luis. La cuestion de la responsabilidad penal de las propias personas juridicas. In: PRADO, Luiz Regis (Coord.). Responsabilidade penal da pessoa jurídica... Op. cit. p. 66.

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Essa forma tradicional de encarar a teoria do delito, contudo, tem passado por várias tentativas de reformulação de seus conceitos chaves, no sentido de uma funcionalização e desmaterialização de categorias como ação e culpa, abandonando-se a concepção ontológica desses conceitos em favor de uma concepção normativa baseada na sua função e significado social.

E no âmbito dessas teorias que ressurgem novas formas de concepção da responsabilidade penal da pessoa jurídica, que deixam de vincular a culpabilidade a requisitos antropomórficos, consequentemente abandonando a exigência de comprovação psicológica da orientação finalística de uma ação e de consciência da ilicitude do injusto.

2 O PROBLEMA DO SUPRACONCEITO ONTOLÓGICO DE AÇÃO

Nesse contexto, destaca-se a teoria da ação significativa, que propõe a reconstrução das categorias tradicionais da teoria do delito do dolo e culpa, a partir da compreensão do delito como uma construção social. Quanto ao tradicional supraconceito de ação, ela deixa de ser considerada como comportamento puramente naturalístico, admitindo-se a noção de vontade própria do ente coletivo embasada em ações individuais de seus membros. Quanto ao segundo, a adoção de uma noção normativa de culpa passa a admitir a imputação de uma categoria especial de culpabilidade às pessoas jurídicas.

De acordo com Busato, os sistemas tradicionais concebem a ação como uma “superestrutura” que acumula uma série de funções específicas, quais sejam: função de classificação, que se refere à centralidade da ação na teoria do delito, de modo a congregar todas as formas de sua realização (dolosa e imprudente, comissiva e omissiva); a função de delimitação ou coordenação, que se refere à capacidade do conceito de ação de constituir o substrato ao qual se agregam os adjetivos valorativos da tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, que orientam todo o estudo do delito; a função de enlace, que trata da suposta neutralidade axiológica do conceito de ação; e a função negativa ou de definição, que permite que o conceito de ação atue como elemento seletivo do delito, excluindo da apreciação jurídico-penal tudo o que fique fora de seu campo.10

Contudo, a despeito da contribuição dessa superestrutura para a construção da dogmática penal moderna, os sistemas tradicionais fracassaram na tentativa de estruturação de um supraconceito ontológico de ação, por sua comprovada incapacidade de cumprir com todas as funções que lhe foram exigidas, especialmente a de classificação dos delitos.

10 BUSATO, Paulo César. Direito penal e ação significativa: uma análise da função negativa do conceito de ação em direito penal a partir da filosofia da linguagem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 45-55.

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Na precisa crítica de Claus Roxin:

A estrutura final repousa na causalidade, a primeira estrutura ôntica não é concebível sem a segunda, e nesta união indissociável se costuma apoiar geralmente a pré-existência e imutabilidade da ação e do dolo. […] E assim efetivamente diz WELZEL que ‘a finalidade é um conceito tão ontológico como a causalidade’. No entanto, é nessa crença que reside a falha decisiva de toda a concepção. […] Se existe uma lei causal, a que nenhum legislador do mundo pode acrescentar ou retirar alguma coisa, não existe uma estrutura final pré-existente. O que é final e o que não é, depende exclusivamente das finalidades de ordem jurídica.11

E necessário, portanto, restituir-se o conceito de ação aos seus reais limites funcionais. Entretanto, não há consenso na doutrina. De acordo com Busato, há quem insista em tentar formular um supraconceito de ação a partir de seu viés negativo (omissão). Há, ainda, quem defenda que o conceito de ação cede primazia às ideias normativas de tipo e antijuridicidade. Outros incluem no conceito de tipo todos os elementos do delito, inclusive a ação. Uma quarta posição, ainda que reconheça que o conceito de ação se sujeite a considerações valorativas, sustenta que este deva ter como referência do sistema de imputação penal. Finalmente, uma quinta vertente busca a superação do conceito ontológico da ação sem a sua desconsideração completa, ao reconhecer uma estrutura significativa no conceito de ação.12

Na linha desta última vertente, que recusa o determinismo ontológico e critica a visão exclusivamente normativa, situa-se a teoria da ação significativa, proposta por Tomás Salvador Vives Antón, que tem por base a consideração da ação no contexto social das circunstâncias em que se produz. O referencial que dá sentido ao conceito de ação deve corresponder ao contexto social em que se determina a escolha normativa dos tipos de ilícito, que seria a única adequada a efetivar uma política criminal adequada ao Estado Democrático de Direito.

Para Vives Antón,

a determinação de se se está ante uma ação – e a do tipo de ação ante o qual se está – já não se efetua com parâmetros psicofísicos, mediante o recurso à experiência externa e interna, senão que tem lugar em termos de regras, isto é, em termos normativos. E o seguimento de regras (e não um inapreensível acontecimento mental) o que permite falar de ações, ao dar lugar ao que as constitui como tais (o significado) e as diferencia dos simples fatos.13

11 ROXIN, Claus. Estudos de direito penal... Op. cit. p. 101-102.12 BUSATO, Paulo César. Direito penal... Op. cit. p. 110.13 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos del sistema penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1996. p. 197.

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Portanto, a ação passa a ser configurada por outros valores além da vontade subjetiva, mais precisamente pelo contexto social em que se produz. A própria existência ou não de uma conduta passa a depender do seu entorno. Assim, se a pessoa jurídica é ou não capaz de ação em sentido jurídico-penal é algo que independe de ela possuir ou não qualquer instância psicológica formadora de vontade subjetiva, no sentido atribuído ao ser humano pelo finalismo, admitindo-se, assim, a ideia de ação do ente coletivo.14

Convém reforçar que a teoria da ação significativa de Vives Antón não busca invalidar a estrutura tradicional de distribuição dos elementos do delito (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade), mas antes propõe um novo modo de determinar os significados (sentidos) das categorias da teoria do delito,15 que podem ser utilizadas com grande proveito no âmbito da teoria do Direito Administrativo Sancionador.

3 CULPABILIDADE PENAL E DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR

Historicamente, a culpabilidade assumiu três sentidos na teoria do delito clássica. Primeiro, enquanto princípio de Direito penal, a culpabilidade se opunha à responsabilidade penal objetiva, mas prescindia da análise do grau de culpa do agente, bastando a verificação do resultado danoso. Segundo, enquanto elemento de graduação da pena, a culpabilidade passou a ser entendida como fundamento e medida da responsabilidade penal para a fixação da pena. Finalmente, como categoria dogmática do delito, passou a integrar a teoria do delito ao lado da tipicidade e antijuridicidade.16

Conforme bem resume Juarez Cirino dos Santos,

o atual conceito normativo de culpabilidade é o produto inacabado de mais de um século de controvérsia sobre sua estrutura, que começa com o conceito psicológico de culpabilidade do século XIX, evolui para o conceito psicológico-normativo no início do século XX, transforma-se em conceito exclusivamente normativo durante o século XX e, na passagem para o século XXI, parece imerso em crise insuperável.17

14 MASCARENHAS JR., Walter Arnaud. Ensaio crítico sobre a ação: sua influência jurídico-penal e o advento da noção ‘’significativa”. Porto Alegre: Núria Fabris, 2009. p. 22.

15 VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Fundamentos... Op. cit. p. 29.16 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito penal: parte geral. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

v. 1. p. 352-353.17 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal... Op. cit. p. 276.

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No que tange à culpabilidade da pessoa jurídica, no entanto, este estado de “crise conceitual” é ainda mais evidente, pois, como bem adverte Walter Rothenburg, os elementos tradicionais da culpabilidade (imputabilidade, consciência do injusto e exigibilidade de comportamento diverso) foram pensados para a pessoa física, não sendo aplicáveis automaticamente à pessoa jurídica.18

Diante desse problema, surgiram três posicionamentos19 na doutrina penal: primeiro, a negativa da capacidade de culpabilidade da pessoa jurídica apoiada no princípio societas delinquere non potest; segundo, a possibilidade de culpabilidade mediante a criação de instituto penal próprio de culpabilidade para a pessoa jurídica; terceiro, a reconstrução da categoria da culpabilidade com base em critérios sociais e jurídicos, como o modelo da “culpabilidade por defeito de organização empresarial” 20 inaugurado por Klaus Tiedemann.

Na dogmática penal brasileira, conforme visto, a maioria dos penalistas defende que a pessoa jurídica não é passível de agir com culpa, pois não seria imputável (incapaz de culpabilidade) diante do entendimento de que a consciência de ilicitude do injusto só poderia ser verificada nas pessoas físicas.21

A despeito disso, os tribunais brasileiros admitiram a possibilidade culpabilidade penal da pessoa jurídica. Inicialmente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) admitiu a persecução penal e a culpabilidade de pessoas jurídicas desde que fosse possível caracterizar uma ação humana individual em coautoria. Vale dizer, desde que houvesse o processamento simultâneo da empresa e da pessoa física. Contudo, em 2013, a partir do julgamento do RE 54818122, o Supremo Tribunal Federal (STF) afastou o entendimento do STJ deixando de exigir a demonstração de coautoria da pessoa física para então autorizar a persecução penal e a culpabilidade individualizada do ente coletivo em matéria ambiental.

Contudo, é consenso na doutrina penal que mesmo a aceitação de uma categoria reformulada de culpabilidade penal específica para os entes coletivos não deve importar

18 ROTHENBURG, Walter Claudius. A pessoa jurídica criminosa: estudo sobre a sujeição criminal ativa da pessoa jurídica. Curitiba: Juruá, 1997. p. 184-185.

19 ROCHA, Fernando A. N. Galvão da. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 29-41.

20 TIEDEMANN, Klaus. Responsabilidad penal de personas jurídicas y empresas en derecho comparado. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, v. 3, n. 11, p. 21-35, jul./set. 1995.

21 Vide supra, nota de rodapé nº 6.22 STF - RE: 548181 PR, Relator: MENEZES DIREITO, Data de Julgamento: 17/04/2009, Data de Publicação:

DJe-081 DIVULG 04/05/2009.

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em um regresso à responsabilidade objetiva, para a qual é desnecessária a aferição do grau de culpa do autor do delito.23

Não obstante, o art. 2º da Lei n. 12.846/2013 (Lei Anticorrupção Empresarial) introduziu no ordenamento jurídico a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica por atos de corrupção que, em tese, seriam ilícitos administrativos. Diante disso, deve-se indagar, em primeiro lugar, se não há elementos de direito penal material em seus dispositivos. A indagação é importante, pois está vinculada ao questionamento da constitucionalidade da instituição de responsabilização objetiva para a pessoa jurídica.

Pois bem, a dogmática penal e administrativa duelou por muito tempo a respeito dos critérios de distinção entre os ilícitos penais (crime) e ilícitos administrativos (meras ilegalidades), podendo ser destacadas duas grandes correntes neste embate histórico: a substantiva e a formal.24

A corrente substantiva – defendida por Goldschmidt25, Heinz Mattes26, Medina Osório27, dentre outros – baseia-se em uma diferença material ou qualitativa, sustentando, de modo geral, que o ilícito penal descreveria uma conduta contrária aos interesses mais relevantes da sociedade, enquanto que o ilícito administrativo teria por objeto uma conduta contrária a interesses meramente administrativos, ligados ao bom funcionamento da administração pública. Há reconhecida divergência acerca do critério substantivo (natureza do bem jurídico tutelado; gravidade da sanção etc.), porém as teorias têm o seu ponto comum na utilização de um critério material.

Por sua vez, a corrente formal – defendida por Eduardo García de Enterría, Tomás-Ramón Fernández28, Adolfo Carretero Pérez29, Celso Antônio Bandeira de Mello30, dentre outros – sustenta que não há diferença substantiva entre um ilícito administrativo e um

23 ROTHENBURG, Walter Claudius. A pessoa jurídica criminosa... Op. cit. p. 219.24 BERTONCINI, Mateus. Ato de improbidade administrativa: 15 anos da Lei 8.429/1992. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2007. p. 50.25 GOLDSCHMIDT, James. „Begriff und Aufgabe eines Verwaltungsstrafrechts“. Deutsche Juristen-Zeitung,

Nr. 9, 1902.26 MATTES, Heinz. Problemas de derecho penal administrativo: história y derecho comparado. Madri:

Edersa, 1979. p. 230.27 OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2009.p. 62.28 ENTERRÍA MARTÍNEZ-CARANDE, Eduardo García de; FERNÁNDEZ RODRÍGUEZ, Tomás Ramon. Curso

de derecho administrativo. 5. ed. Madrid: Civitas, 1997. p. 159. v. II.29 PEREZ, Adolfo Carretero. Derecho Administrativo Sancionador. Madri: Edersa, 1992. p. 101.30 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

p. 34-35.

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ilícito penal, por envolver a utilização de um critério metajurídico. A distinção entre os ilícitos seria dada exclusivamente através do juízo político do legislador, que fixaria sua natureza a depender da autoridade a que atribui-se a competência para impor a sanção. Nessa linha, por exemplo, Rafael Munhoz de Mello31 e Daniel Ferreira32 argumentam que uma sanção terá natureza administrativa toda vez que for aplicada pela Administração Pública no exercício de função administrativa.

O presente ensaio refuta o entendimento da corrente formal ao entendimento inicial de que os ilícitos administrativos e as sanções administrativas não são aplicados, única e exclusivamente, pela administração pública, como ocorre, por exemplo, com os atos de improbidade administrativa, que, a despeito de sua natureza jurídica controversa (defendida por muitos como sendo “sui generis”), são aplicadas pelo Judiciário.

Desse modo, na esteira do defendido por Fábio Medina Osório, sustenta-se que o ilícito administrativo há de ser conceituado a partir do campo de incidência do direito administrativo formal e material.33 Assim, se a Administração Pública, no exercício de sua função administrativa, sancionar um ilícito (aspecto formal), este será certamente um ilícito administrativo. Isso, porém, não retira a natureza jurídica de ilícito administrativo de condutas sancionadas pelo Judiciário, como os atos de improbidade administrativa, que reclamam a aplicação do direito administrativo material (aspecto material). 34

A controvérsia é relevante, pois, no que diz respeito à natureza dos ilícitos constantes da Lei Anticorrupção Empresarial (Lei n. 12.846/2013), há aqueles que defendem que, a despeito do texto legal tratá-los como administrativos, uma análise mais apurada revelaria que os comportamentos descritos e as sanções previstas teriam substância penal, ou quase penal, sendo assim inadmissível a responsabilização objetiva da pessoa jurídica.35

31 MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de Direito Administrativo Sancionador: as sanções administrativas à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 64-65.

32 FERREIRA, Daniel. Sanções administrativas. São Paulo: Malheiros, 2001. p.32.33 OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa: má gestão pública, corrupção, ineficiência.

2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 62. Nesse mesmo sentido: CAPEZ, Fernando. Limites constitucionais à Lei de Improbidade. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 173.

34 OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador... Op. cit. p. 62. Conforme o autor, “não configura, portanto, elemento indissociável da sanção administrativa a figura da autoridade administrativa, visto que podem as autoridades judiciárias, de igual modo, aplicar essas medidas punitivas, desde que outorgada, por lei, a respectiva competência repressiva, na tutela de valores protegidos pelo direito administrativo”.

35 Nessa linha, ver: SCAFF, Fernando Facury; SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Lei anticorrupção é substancialmente de caráter penal. Consultor Jurídico – Conjur, 5 fev. 2014; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. A Lei Anticorrupção como lei penal encoberta. Consultor Jurídico – Conjur, 8 jul. 2014. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-jul-08/direito-defesa-lei-anticorrupcao-lei-penal-encoberta>. Acesso em: 20 jul. 2016.

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Desse modo, cabe manifestar desde logo a discordância quanto a esse entendimento. Ao contrário, entende-se que os dispositivos da Lei Anticorrupção Empresarial (Lei n. 12.846/2013) tratam de ilícitos exclusivamente administrativos. Isso porque a citada substância penal não resulta de natureza penal, mas antes da manifestação do caráter sancionatório da norma administrativa, o que reclama a aplicação do Direito Administrativo sancionatório e não do Direito penal.

Portanto, sustenta-se que o ilícito administrativo é definido pela incidência do Direito administrativo formal e material, o que reclama, consequentemente, a aplicação do conjunto de regras e princípios inerentes ao Direto Administrativo Sancionatório, quais sejam:36 (i) a legalidade administrativa, que exige a previsão do ilícito e da sanção em lei formal; (ii) a tipicidade, que exige a tipificação do ilícito e da sanção aplicável; (iii) a irretroatividade da lei mais gravosa, permitindo-se, ao revés, a retroatividade da leis mais benignas; (iv) a proporcionalidade, da qual decorre o princípio do non bis in idem, vedando o sancionamento de um mesmo fato por sanções de mesma natureza ou a imposição de sanções permanentes ou desproporcionalmente gravosas; (v) a culpabilidade, que demanda a comprovação do elemento subjetivo da conduta do acusado, qual seja, o dolo ou culpa; (vi) o devido processo legal, com as garantias de contraditório, ampla defesa, imparcialidade do julgador, publicidade, motivação e duplo grau administrativo.37

Veja-se que esse conjunto de princípios e garantias se assemelham com aquelas de Direito penal, mas não se resumem nelas, constituindo-se em categorias próprias que podem formar o que se propõe que seja um “microssistema de combate à corrupção”. A proposta de microssistema, contudo, desborda dos limites do presente ensaio e deverá ser abordada em futuras publicações.

4 RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA PESSOA JURÍDICA

Uma vez afastada a natureza penal dos dispositivos da Lei Anticorrupção Empresarial (Lei n. 12.846/2013), cabe indagar se o Direito Administrativo Sancionador admite a imputação da responsabilidade objetiva à pessoa jurídica, e se tal proposição não implicaria em afronta aos arts. 1º, inciso III; 5º, incisos XLV, XLVI e LIII da Constituição Federal.

36 MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de Direito Administrativo Sancionador... Op. cit. p. 109-254.

37 Nesse sentido: FERREIRA, Daniel. Teoria geral da infração administrativa a partir da Constituição Federal de 1988. Belo Horizonte: Fórum, 2009. p. 34.

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Inicia-se por destacar o posicionamento dos autores que defendem que a incidência do princípio da culpabilidade afasta a possibilidade de incidência da responsabilidade objetiva do direito administrativo sancionador. De acordo com Rafael Munhoz de Mello, “a incidência do princípio da culpabilidade afasta do Direito Administrativo Sancionador a responsabilidade objetiva”38. Nesse sentido, o autor transcreve a passagem de Alejandro Nieto que sustenta que “el primer corolário de la exigência de la culpabilidad es la exclusión de la responsabilidad objetiva”39.

Na mesma linha, Marçal Justen Filho assenta que a responsabilidade objetiva independe da culpa do agente:

impõe-se a sanção pela ocorrência concreta do evento típico, sem que seja relevante o elemento subjetivo de quem pratica a conduta proibida. [...] Importa o resultado, o elemento objetivo que corresponde à figura típica. Para a imposição de sanção basta a “pura e simples descoincidência objetiva entre um dever previsto abstratamente na norma jurídica e a atuação material de um certo sujeito”.40

Vale dizer, a adoção do princípio da culpabilidade afasta a possibilidade de responsabilização objetiva.

Não obstante a ponderação do argumento, em primeiro lugar, deve-se observar que a Constituição brasileira não exige ou estabelece uma forma de culpabilidade “a priori” para as pessoas jurídicas, o que, somado à liberdade de inovação do legislador, abre as portas para a introdução de responsabilidade objetiva para a pessoa jurídica, especialmente em âmbito administrativo.

De fato, entende-se que a resposta mais adequada para o tema da “culpabilidade da pessoa jurídica” não esteja no Direito penal (que é baseado inteiramente na ação humana individual), mas antes no Direito Administrativo Sancionador, que dispensa esses elementos antropomórficos, já que as pessoas jurídicas, ao protagonizarem atos ilícitos, acobertam estruturas humanas atrás de um ente fictício, com personalidade e patrimônio distinto das pessoas físicas que a integram, o que torna deveras difícil a comprovação do dolo ou culpa de sua conduta. 41

38 MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador: as sanções administrativas à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 186-187.

39 Ibidem.40 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2009. p.1085-1087.41 Nesse sentido: “Se as pessoas jurídicas somente atuam com suporte em vontades e comportamentos

humanos, ocultos ou não, não se está a desprezar por completo, mas apenas parcialmente, as bases subjetivas do Direito Penal. Isto equivale a dizer que o sistema punitivo pode enfrentar criminalidade protagonizada

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Nessa mesma linha de entendimento, Osório defende que

nem se diga que a sanção contra a pessoa jurídica quebraria a pessoalidade da pena, na medida em que atingiria seus sócios. Trata-se de um raciocínio equivocado, porque os sócios só são atingidos pelos efeitos fáticos e jurídicos da condenação [...]. Isso decorre da própria personalidade jurídica dos “entes morais” e da clara e inequívoca separação entre as figuras da pessoa jurídica e de seus integrantes. [...] O Direito Administrativo Sancionador não possui, portanto, um regime jurídico unitário para pessoas físicas e jurídicas, porque há uma clara ruptura dessa suposta unidade no requisito da culpabilidade.42

Com efeito, mesmo no Direito penal passou a preponderar o entendimento de que a categoria da culpabilidade deve ser diferente para as pessoas jurídicas, representando uma exigência mais genérica, vinculada a critérios sociais e jurídicos de evitabilidade do fato e a deveres de cuidado objetivo. Veja-se que, nesse caso, a culpabilidade não deixa de existir, mas abandona seus pressupostos antropomórficos em favor de categorias objetivas.

Assim, diante da inexistência de unidade na categoria de culpabilidade para as pessoas físicas e jurídicas, entende-se que não subsistem impeditivos jurídicos para a instituição da responsabilização, na forma objetiva, de pessoa jurídica por prática de ilícito administrativo.

A solução proposta assemelha-se ao que o jurista alemão Winfried Hassemer chama de Direito de Intervenção, uma mescla entre o tradicional Direito penal e o Direito administrativo. Ou seja, um direito sancionador, sem os princípios, regras e categorias do Direito penal das pessoas físicas, mas com categorias objetivas do Direito administrativo.43

Portanto, a categoria da responsabilidade objetiva aplicada ao Direito administrativo Sancionatório baseia-se na substituição da ideia de culpa pela ideia de nexo de causalidade. Assim, para a responsabilização do ente coletivo basta que sejam demonstrados (a) a prática de ato ilícito; (b) por agente da pessoa jurídica; (c) o nexo de causalidade entre a conduta e o dano; (d) o dano. Na ausência de qualquer um desses elementos resta afastada a responsabilidade da pessoa jurídica.

Uma vez deslocada a questão para o plano da causalidade, também incidem todas as hipóteses excludentes e atenuantes da responsabilidade, a saber: (i) caso fortuito ou

por pessoas jurídicas, que acobertam estruturas humanas invisíveis, e que mantém relações autônomas no mundo negocial. A resposta punitiva mais direta e óbvia seria a do Direito Administrativo Sancionador, fora de dúvida”. OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador... Op. cit. p. 376.

42 Ibidem. p. 380-381.43 HASSEMER, Winfried. Direito penal libertário. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 63.

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força maior; (ii) culpa da vítima; (iii) culpa de terceiros; (iv) exercício regular de direito; (v) além de que “aos tribunais se permite exclusão ou atenuação daquela responsabilidade do Estado quando fatores outros, voluntários ou não, tiverem prevalecido ou concorrido como causa na verificação do dano injusto”44.

Logo, se o ato lesivo foi causado por ato imputável à Administração Pública ou, de qualquer forma, por ato que não guarde nexo de causalidade com a pessoa jurídica, ela não será responsabilizada.

Essas circunstâncias demonstram que a instituição de responsabilidade objetiva para a pessoa jurídica não importa em “absolutização” de sua culpabilidade. Em verdade, ocorre uma “objetivização” do elemento subjetivo da culpabilidade em favor da ideia de causalidade entre conduta e dano, o que se revela como a proposta mais adequada de responsabilização desses entes fictícios, destituídos de consciência e vontade própria.

A despeito disso, sustenta-se que seria adequada a previsão legal de causas adicionais de minoração da responsabilidade da pessoa jurídica, que podem estar relacionadas com o valor da vantagem econômica revertida à empresa; com a atuação de dirigentes ou administradores com “excesso de representação”; com a adoção de programas efetivos de compliance;45 dentre outros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Da mesma forma que a culpabilidade da pessoa jurídica no âmbito penal passa por uma reformulação, observa-se a emergência de novos modelos de responsabilização dos entes coletivos embasados em estratégias distintas, e estas, baseadas nas carências na estrutura organizativa ou na ética empresarial, remetem ao modelo da responsabilização administrativa e objetiva introduzida pela Lei n. 12.846/2013 (Lei Anticorrupção Empresarial).

O ordenamento brasileiro em nada impede considerar as pessoas jurídicas como destinatárias de normas jurídicas que impõem deveres objetivos de cuidado e ética empresarial, cominando sanções pelas falhas na organização empresarial que resultem na prática de atos de corrupção, especialmente na seara administrativa.

44 DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2011. p. 647.45 MAEDA, Bruno Carneiro. Programas de compliance anticorrupção: importância e elementos essenciais.

In: DEBBIO, Alessandra Del; MAEDA, Bruno Carneiro; AYRES Carlos Henrique da Silva (Coord.). Temas de anticorrupção e compliance. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. p. 167-201.

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De fato, diante da inexistência de um regime jurídico unitário para pessoas físicas e jurídicas, entende-se que a resposta mais adequada para o tema da “culpabilidade da pessoa jurídica” não esteja no Direito penal, mas antes no Direito Administrativo Sancionador, que dispensa os elementos antropomórficos daquele e admite soluções mais céleres e eficientes no combate às causas da corrupção e às vantagens obtidas.

Finalmente, deve-se sempre reforçar que a responsabilidade objetiva não é absoluta e admite a incidência de hipóteses clássicas de exclusão de responsabilidade, além de admitir causas atenuantes, como a adoção de medidas pertinentes para coibir e punir a prática de atos de corrupção através da instituição de programas efetivos de compliance

O marco da Lei Anticorrupção Empresarial consiste, justamente, na instituição de um modelo de responsabilização de pessoas jurídicas por meio do Direito Administrativo Sancionador, que coloca em cheque a organização e a ética empresarial e admite a apuração e punição de empresas corruptoras por meios mais céleres e eficazes que o Direito Penal.

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REFERÊNCIAS

BERTONCINI, Mateus. Ato de improbidade administrativa: 15 anos da Lei 8.429/1992. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 1.

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O “CREPÚSCULO DOS ÍDOLOS” DA JUSTIÇA PENAL: UMA DEFESA NIETZSCHIANA AO ABOLICIONISMO PENAL DE LOUK HULSMAN1

THE “TWILIGHT OF THE IDOLS” OF CRIMINAL JUSTICE: A NIETZSCHEAN DEFENSE TO THE LOUK HULSMAN’S PENAL ABOLITIONISM

Ricardo Juozepavicius Gonçalves2

Expulsemos do mundo a ideia de pecado – e enviemos atrás deste a ideia de punição! Que esses demônios em exílio vão viver doravante longe dos homens, caso tenham mesmo que viver e não morrer desgostosos de si mesmos!

(Friedrich Nietzsche)

RESUMO

O abolicionismo penal representa uma das mais originais e radicais propostas político-criminais da atualidade, mas, no âmbito das discussões acadêmicas, a teoria é severamente criticada por alguns argumentos que são baseados nas premissas apresentadas por Luigi Ferrajoli, sendo também adotados pelas escolas garantista e minimalista do direito penal. A partir da apresentação do pensamento abolicionista de Hulsman, selecionamos algumas dessas críticas dirigidas ao abolicionismo penal hulsmaniano, e as analisamos no confronto como a teoria deste autor. Sustentamos, em uma perspectiva filosófica, uma possibilidade de defesa contra essas críticas através da filosofia moral de Friedrich Nietzsche, demonstrando as semelhanças do pensamento entre os dois autores, principalmente no que tange à “transvaloração de todos os valores”: uma mudança radical dos valores impostos e fixados na sociedade ocidental, visando que os sujeitos se tornem efetivos criadores dos seus próprios valores e recuperem sua autonomia perante os conflitos sociais.

Palavras-chave: Louk Hulsman. Abolicionismo Penal. Criminologia Crítica. Nietzsche. Crepúsculo dos Ídolos.

1 Agradeço ao Grupo de Estudos Avançados (GEA) do IBCCRIM pelas discussões e estudos que contribuíram para a elaboração deste trabalho.

2 Mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: [email protected]

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ABSTRACT

The penal abolitionism is one of the most original and radical political-criminal proposals today, but in the context of academic discussions, the theory is severely criticized by some arguments based on assumptions made by Luigi Ferrajoli, also being adopted by guaratism and minimalist schools of criminal law. From the presentation of the Hulsman’s abolitionism, we selected some critics and analysed them in comparison to the theory of this author. We argue in a philosophical perspective, the possibility of a defense against such criticism with the moral philosophy of Friedrich Nietzsche, showing the similarities of thought between the two authors, especially regarding the “revaluation of all values”: a radical change of imposed values and fixed in Western society to which subjects become effective creators of their own values and regain their autonomy towards social conflicts.

Keywords: Louk Hulsman. Penal Abolitionism Movement. Critical Criminology. Nietzsche. Twilight of the Idols.

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INTRODUÇÃO

Louk Hulsman, criminólogo holandês que difundiu o inovador e polêmico pensamento do abolicionismo penal pelo mundo no início dos anos 803, carrega consigo o pesado fardo de uma teoria que desconstrói antigos dogmas e ideais basilares do direito penal, sendo corrente teórica que foi vertente e resultado da chamada escola da criminologia crítica.

De acordo com a célebre entrevista concedida a Jacqueline Bernat de Celis4, a história de vida de Hulsman, sua atuação política no sistema judiciário e em órgãos internacionais, sempre relacionadas à operação prática do direito penal, fizeram com que ele adquirisse uma postura extremamente crítica sobre as características e o modo de funcionamento do sistema penal, levando suas experiências vividas e sua percepção da vida em sociedade para o mundo acadêmico em sua atividade posterior como docente5.

O cerne do abolicionismo penal de Louk Hulsman seria uma abertura para novas formas de pensamento através da postura crítica ante o discurso penal tradicional, vislumbrando e abrindo caminhos para possibilidades diferentes de administração dos conflitos sociais que hoje são tratadas por meio do direito penal, abandonando os velhos hábitos e “ídolos” metafísicos com os quais ainda insiste-se em pensar a sociedade moderna.

De início, é importante esclarecer que Hulsman considera que o seu abolicionismo penal teria duas vertentes: o abolicionismo institucional (também chamado por ele de social) e o abolicionismo acadêmico. A primeira abordagem, mais importante para o diálogo filosófico que pretendemos conduzir, seria aquela que tem em seu interior “mudanças mais pessoais na percepção, na atitude e no comportamento daqueles que estão individualmente ou coletivamente empenhados nessas transformações”6, ou seja, uma orientação para o agir na vida real, tal qual os mais diversos movimentos sociais, contudo voltados para a questão de uma nova consciência sobre a justiça criminal.

3 Desenvolvendo a base do abolicionismo penal que foi elaborada antes dele, em 1971, na pioneira obra de Thomas Mathiensen “The politics of abolition: essays in political action theory”.

4 HULSMAN, Louk. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Trad. Maria Lúcia Karam. Niterói: Luam, 1993. p. 17-50.

5 Hulsman foi Professor emérito da Erasmusuniversiteit Rotterdam e membro do Comitê Europeu para Problemas Criminais. Na época da Alemanha nazista, foi perseguido pelo regime na Holanda e enviado a um campo de concentração de onde conseguiu escapar. No ano de seu falecimento, 2009, Hulsman foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz por ter proposto as primeiras políticas descriminalizantes de drogas na Holanda.

6 MARTEAU, Juan Felix. Práticas punitivas: um pensamento diferente. Entrevista com o abolicionista penal Louk Hulsman. Trad. Helena Singer. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 4, n. 14, p. 13-26, 1996.

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Na segunda abordagem, Hulsman a descreve como uma atitude crítica do agente que recebe os discursos dominantes sobre a justiça e o sistema penal e os recusa, pela sua constatação da falsidade desses discursos que apenas sustentam uma ideia de justiça metafísica, natural e necessária. Para isso, o autor chama a atenção do diálogo acadêmico com estudos empíricos das ciências sociais para comprovar, na realidade concreta do mundo da vida, o descolamento entre o ideal de direito penal e os conflitos sociais reais.

Em sua célebre obra “Penas perdidas: o sistema penal em questão”, Hulsman visa apresentar o abolicionismo penal utilizando-se de exemplos práticos das constatações empíricas – advindas das ciências sociais – sobre o total fracasso do direito penal em resolver os conflitos sociais de sua competência, o que denomina como situações-problema, demonstrando a ineficácia dos métodos utilizados e considerados “naturais e necessários” e, ao mesmo tempo, explicitando o que entenderia ser a abolição do sistema penal e dando exemplos de práticas abolicionistas possíveis em seu contexto local.

Essa conclusão extrema da necessidade de acabar com todo o sistema penal vem da construção argumentativa do autor de que o direito penal falha em todos os aspectos que – no discurso dominante acadêmico declarado – o fundamentariam e que seriam os seus objetivos finais dentro da sociedade, ou seja: o sistema penal como um todo não protege o homem e a sociedade, não previne a criminalidade, carece de fundamentos reais e é totalmente irracional, sendo que seus métodos apenas causam mais conflitos e mais sofrimento aos sujeitos, por meio da exclusão, estigmatização e fortalecimento da dominação de classe.

Muitas dessas constatações advêm de críticas ao sistema penal já apontadas por diferentes teóricos, outras adquirem um novo corpo sob as formulações de Hulsman. Dentre elas, Hulsman chama atenção para o que denomina como Cifra negra da criminalidade, que seria o número desconhecido de situações que se enquadram nas definições da lei penal, mas que não entram para os registros oficiais das instituições do sistema penal. Ou seja, são acontecimentos criminalizados que, por inúmeros motivos7, não são alvos da persecução penal, sendo que esse volume, de acordo com as constatações de Hulsman, é assustadoramente grande.

Outra crítica importante ao longo das formulações de Hulsman é o caráter seletivo do sistema penal, ou seja, a escolha direcionada de sua “clientela”. O autor identifica e

7 Dentre eles, a falta de confiança e efetividade dos aparelhos estatais, situações em que a vítima está em situação socialmente vulnerável, como nos casos de violência doméstica e agressões sexuais, quando o contexto do crime é muito íntimo, ou principalmente quando a ofensa causada pelo ato criminoso não compense todo o dispendioso processo de levar o fato ao conhecimento das agências penais (cf. HULSMAN, Louk. Penas perdidas... Op. cit. p. 64-66).

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critica essa característica inerente do direito penal, que seleciona sempre os sujeitos mais frágeis e marginalizados dentro da sociedade. Apesar da ocorrência de crimes ter caráter universal em todas as sociedades, no sentido de que todos cometem e estão passíveis a cometer atos criminalizáveis. Essa seletividade está no nítido enfoque do aparato penal para perseguir determinados grupos sociais, tolerando os desvios de outros. Hulsman denuncia que o sistema penal é, então, seletivo e estigmatizante, criando e reforçando as desigualdades sociais.

A partir dessa crítica, Hulsman considera que o sistema penal não estaria realmente preocupado em coibir todas as manifestações criminosas que ocorrem em uma determinada sociedade, como quer fazer crer o discurso dominante, mas visaria coibir, selecionar e excluir determinados tipos de pessoas que realizam certas condutas que são criminalizadas previamente, de modo a operar um efetivo controle social seletivo.

Outra profunda crítica ao sistema penal ressaltada pelo autor é a falta de lugar para as vítimas no sistema penal. A vítima não tem a sua vontade ouvida dentro das instituições penais, não é nem ao menos considerada a sua participação ativa nos processos judiciais, o seu conflito é “roubado” de sua responsabilidade e entra na arena da legalidade ou obrigatoriedade do Estado.

No discurso penal dominante, consolidou-se a ideia de que a imputação de culpa a alguém é o objetivo primordial do processo penal, sendo que o problema da vítima e a sua vontade para a efetiva resolução da situação que a levou até o sistema penal é totalmente ignorada. Muitas vezes as vítimas querem apenas obter uma reparação e reencontrar sua tranquilidade, assim como encontrar nas instituições alguém que as escute com paciência e empatia. A vítima, portanto, não interessa ao sistema penal, as atenções estarão sempre voltadas para um possível culpado e para uma punição “justa”.

Somando-se às críticas apresentadas, é a análise de Hulsman sobre o encarceramento que é a mais eloquente, do ponto de vista filosófico e para os fins da abordagem a que nos propomos: um reforço ao abolicionismo penal através da filosofia moral de Friedrich Nietzsche.

Hulsman se posiciona firmemente contra a pena de encarceramento. Considera que a prática do encarceramento somente causa degradação, isso é, a supressão do eu e o aniquilamento humano, e não só para o encarcerado, mas também para aqueles que o submetem a tal situação em uma sociedade sempre movida pelo sentimento de vingança, da vontade de punição e da atribuição de culpa, profundamente enraizados na consciência social pelo modo como se organiza a vida na sociedade capitalista.

Nesse sentido, Hulsman procura demonstrar que a ação dentro da lógica punitivista está completamente limitada, já que estará sempre permeada pelo sentimento de vingança, objetivando causar sofrimento como retribuição pelo mal causado pelo ato criminalizável, da mesma forma que sempre estará permeada pelas ideias subjetivas e abstratas do bem e do mal.

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Hulsman destaca a sua compreensão de que o direito, a teologia moral, as crenças populares, a astrologia, todas elas funcionam da mesma forma, com uma lógica própria abstrata, que não tem ligação com a vida real ou com os problemas reais enfrentados pelas pessoas de carne e osso.

Os conflitos sociais, então, limitados por essa forma punitivista, ficam impossibilitados de serem tratados como o que são, ou seja, como situações-problema da vida real. Essa forma interessada de tratar um conflito na sociedade impede totalmente a sua resolução ou, ao menos, o seu tratamento racional como o que realmente ele é: um problema a ser resolvido. Trata-se o conflito como um mal, uma “vontade de fazer sofrer”, sendo que, de imediato, aqueles que se autoconsideram “bons” respondem o “mal” buscando equiparar o dano e causar sofrimento ao ofensor.

Diante das críticas que apresenta, Hulsman chama a atenção aos seus leitores para o fato de que devem ser pensadas e colocadas em prática novas formas de tratar o que é considerado como crime, observando seus resultados e sempre orientando-se para a resolução efetiva de conflitos a partir da perspectiva dos próprios interessados.

Hulsman propõe o que pode ser chamado de um “sistema eunômico”, em que os sujeitos se ocupariam de seus próprios conflitos, contribuindo para o crescimento pessoal e trazendo uma função individualmente emancipatória, por meios de “mecanismos naturais de regulação social” que já são empregados a todos os momentos nas relações entre sujeitos, e fazem com que os indivíduos resolvam problemas mediante deliberações democráticas e com autonomia, diferentemente do elitismo e autoritarismo dos sistemas penais modernos, sendo que, para Hulsman, “procurar uma solução libertadora junto com os outros já constitui, em si, uma atividade libertadora”8.

Nas entrevistas que concedeu e em suas produções, Hulsman também sempre faz menção às compreensões pessoais que adquiriu em sua trajetória de vida, o que chama de “experiências interiores”9. Essas experiências fizeram com que notasse, em sua atividade diária como jurista e na resistência que tomou parte contra a ocupação nazista na Holanda, a falsidade dos discursos oficiais, a influência dos interesses pessoais no procedimento de elaboração das leis, bem como a crença cega e irracional em uma suposta verdade natural e necessária para tornar possível a convivência em sociedades modernas e complexas.

8 Ibidem. p. 129.9 Ibidem. p. 31.

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A partir da breve exposição do abolicionismo penal de Louk Hulsman é possível concluir que as situações-problema em si não tem posição central no sistema penal10, sendo que este é totalmente descolado da realidade concreta. O delito é uma realidade totalmente construída. Portanto, é evidente que pode haver uma vontade para “desconstruir” essa realidade, isto é, devolver aos sujeitos a capacidade de autonomia e de resolução de seus próprios problemas.

A crítica de Hulsman ao sistema penal, em profunda conexão com a filosofia nietzschiana, conforme será tratada a diante, é a negação de valores e ideais estabelecidos e também uma destruição agressiva profundamente ligada à afirmação. A crítica é a destruição com caráter agressivo de um potencial criador, que vislumbra uma consequente “aurora” de uma nova sociedade, livre dos antigos e poderosos “ídolos” e “além do bem e do mal”.

1 GARANTISMO E MINIMALISMO PENAL CONTRA O ABOLICIONISMO? ALGUMAS CRÍTICAS E CONSIDERAÇÕES DE LUIGI FERRAJOLI

Superada a breve apresentação do abolicionismo penal proposto por Louk Hulsman, expomos algumas críticas recorrentes dirigidas à teoria do autor e ao abolicionismo penal em sentido amplo. Essas críticas foram selecionadas a partir das chamadas escolas garantista e minimalista do direito penal11, já que no âmbito de suas produções há certas tentativas de colocar-se mais limites à vontade punitiva típica do direito ocidental, tendo um viés considerado mais “humanista”.

Um dos autores fundamentais para extrair as críticas mais contundentes ao abolicionismo penal é Luigi Ferrajoli, que em sua obra “Direito e razão” apresenta as bases da teoria do garantismo penal. Ferrajoli considera que os princípios garantistas estariam orientados – contrariamente a outros modelos de direito penal – a efetivar o “máximo grau

10 O que Hulsman denomina de “nonsense do sistema penal”, Cf. Ibidem. p. 25-26.11 “Por ‘direito penal mínimo’ considera um direito penal maximamente condicionado e maximamente

limitado, isto é, limitado às situações de absoluta necessidade – ‘pena mínima necessária’ – que corresponda, assim, não só ao máximo grau de tutela da liberdade dos cidadãos frente à potestade punitiva do Estado, senão também a um ideal de racionalidade e de certeza, razão pela qual não terá lugar a intervenção penal sempre que sejam incertos ou indeterminados os seus pressupostos. E, por ‘garantismo’, a tutela daqueles valores ou direitos fundamentais cuja satisfação, ainda que contra interesses da maioria, é o fim justificador do direito penal: a imunidade dos cidadãos contra a arbitrariedade, das proibições e dos castigos, a defesa dos débeis mediante regras iguais para todos, a dignidade da pessoa do imputado e, por conseguinte, garantia de sua liberdade mediante o respeito de sua verdade” (QUEIROZ, Paulo. A justificação do direito de punir na obra de Luigi Ferrajoli: algumas observações críticas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 27, p. 143-148, jul. 1999).

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de racionalidade e confiabilidade do juízo e, portanto, de limitação do poder punitivo e de tutela da pessoa contra a arbitrariedade”12.

Em sua teoria garantista, Ferrajoli busca, por um lado, condenar a aplicação abusiva do direito penal, colocando os direitos humanos e as suas garantias como limites para seu legítimo exercício e, por outro lado, reivindica a importância da vigência do direito penal, considerando que este cumpre com duas funções elementares ao Estado de Direito: prevenir o cometimento de delitos (prevenção geral negativa) e, principalmente, prevenir castigos arbitrários e cruéis, que poderiam ser aplicados pelo Estado e também por particulares como forma de justiça privada.

O que justificaria e legitimaria o direito penal e a aplicação das penas, para Ferrajoli, seria o cumprimento de suas funções, ou seja, prevenir delitos futuros, obstar a vingança privada e os castigos desmedidos aplicados por particulares ou pelo Estado.

No tocante às penas propriamente ditas, Ferrajoli admite que considera a pena de prisão, especificamente, como necessária a ser abolida por lhe parecer excessiva e inutilmente aflitiva, mas, quanto à forma jurídica da pena13, Ferrajoli considera sua importância e legitimidade dentro do Estado de Direito para o cumprimento das funções que enxerga no direito penal:

defenderei, contra as hipóteses propriamente abolicionistas e contra aquelas substitutivas, a forma jurídica da pena, enquanto técnica institucional de minimização da reação violenta à deviança socialmente não tolerada e enquanto garantia do acusado contra os arbítrios, os excessos, e os erros conexos a sistemas não jurídicos de controle social.14

O direito penal, para Ferrajoli, portanto, tem função de administrar os conflitos de interesse, objetivando controlá-los para minimizar a violência e coibir o arbítrio. Uma de suas principais objeções ao abolicionismo é o argumento de que, derrubando o sistema penal, todas as garantias contra as investidas de vingança privada se perderiam, deixando a violência punitiva popular sem qualquer controle.

12 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 38.13 Nesse ponto, Elena Larrauri traz uma importante reflexão sobre a opção de Ferrajoli: “Parece obvio, no

obstante, que no basta con el cumplimiento de las dos finalidades mencionadas para que una pena esté justificada. Por poner un ejemplo provocativo, pero claro, la pena de muerte puede ser preventiva y servir para evitar venganzas informales o linchamientos. Sin embargo, evidentemente, Ferrajoli la descarta por representar una vulneración de los derechos humanos. La cuestión que se me plantea es por qué razón Ferrajoli no está dispuesto a argüir que la pena de prisión es también una vulneración de derechos humanos?” (LARRAURI, Elena. Criminología crítica: abolicionismo y garantismo. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 4, n. 20, p. 11-38, 2005).

14 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão... Op. cit. p. 201.

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Contudo, não há qualquer prova empírica que demonstre que a pena realmente previne delitos futuros, ou mesmo que em sociedades que aplicam mais penas e que possuem penas mais duras não haja diversos episódios de vingança privada15. A teoria de Ferrajoli, ao invés de restringir a intervenção do Estado, pode ser entendida como uma autorização para que essa intervenção punitiva se legitime.

Assim, a crítica ao discurso abolicionista como um todo, e, consequentemente, também à teoria de Louk Hulsman, possui uma de suas bases na convicção de que a ausência de pena pública (reação estatal) produz a vingança (reação privada), esta última mais violenta e sem qualquer possibilidade de controle, bem como sem quaisquer garantias mínimas àqueles que cometessem algum ato criminalizável – considerados em posição mais fraca ante a vontade punitiva estatal ou de particulares enfurecidos.

O direito penal, então, teria nascido como uma negação da vingança, com o propósito de impedi-la e, de certa forma, teria a substituído em sua forma de se manifestar:

podemos bem dizer que a história do direito penal e da pena corresponde a uma longa luta contra a vingança. O primeiro passo desta história ocorreu quando a vingança foi disciplinada como direito-dever privado a pesar sobre o ofendido e sobre o seu grupo de parentes, segundo os princípios da vingança de sangue e da regra do talião. O segundo passo, muito mais decisivo, aconteceu quando produziu-se uma dissociação entre juiz e parte lesada, e a justiça privada – as vinganças, os duelos, os linchamentos, as execuções sumárias, os ajustamentos de contas – foi não apenas deixada sem tutela, mas vetada. O direito penal nasce, precisamente, neste momento, quando a relação bilateral ofendido/ofensor é substituída por uma relação trilateral, que coloca em posição imparcial uma autoridade judiciária. E por isto que cada vez que um juiz é movido por sentimentos de vingança, ou de parte, ou de defesa social, ou o Estado deixa espaço à justiça sumária dos particulares, pode-se dizer que o direito penal regrediu a um estado selvagem, anterior à formação da civilização.16

Ferrajoli, então, compara a abolição do direito penal com o retorno a uma sociedade selvagem, abandonada à “lei natural” dos mais fortes, e também prevê a possibilidade de o abolicionismo levar a uma sociedade extremamente totalitária, controlada e vigiada por outros meios que não o direito penal. Conforme destaca Eugenio Raúl Zaffaroni:

Na opinião de Ferrajoli, estes custos seriam de duas categorias: o perigo de bellum omnium, com suas reações vindicativas descontroladas, e o perigo de um disciplinarismo social que impeça o delito de maneira puramente física, à custa da liberdade de todos.

15 Cf. LARRAURI, Elena. Criminología crítica... Op. cit. p. 17-21.16 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão... Op. cit. p. 269.

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Ferrajoli destaca que o direito penal permite a liberdade de escolha entre o delito e outra conduta, ao passo que a intervenção disciplinar ex-ante impede essa liberdade, à custa da liberdade de todos.17

Esse controle interno seria materializado pela autocensura inspirada por preceitos morais e pela fiscalização – também moral – coletiva. Ferrajoli enxerga a possibilidade de a abolição do sistema penal levar a um controle social rígido imposto pelo Estado em que haveria uma completa vigilância da população, seja pela polícia, seja pelo controle tecnológico, com o objetivo final de disciplinar e padronizar a sociedade.

Assim, o receio e a crítica de Ferrajoli a essa possibilidade são de que esse novo mecanismo de controle social se torne demasiadamente repressivo e seja regido por técnicas um tanto quanto irracionais, causando um evidente retrocesso social. Isso significa que o abolicionismo, ao defender o fim do direito penal, proporia uma alternativa em que exalta outras formas de controle social que seriam mais rígidas do que o direito penal e afetariam toda a sociedade envolvida, retirando a liberdade dos cidadãos.

Frente a essas possibilidades que denomina como utopias regressivas, baseadas na ilusão de uma sociedade voltada para o bem ou de um “estado bom”, Ferrajoli apresenta o direito penal mínimo como uma alternativa mínima punitiva que considera como um “mal necessário”: uma “utopia progressista” frente ao abolicionismo.

Ferrajoli recusa a ideia abolicionista e também de alguns autores considerados minimalistas, como Zaffaroni, de que seja impossível legitimar qualquer sistema penal atual, futuro ou mínimo, justificando que, mesmo em uma sociedade mais democratizada e igualitária, seria sempre necessário um direito penal, mesmo que mínimo, como único meio de evitar danos maiores e gerais.

Assim, tanto na perspectiva dita garantista ou minimalista, o direito penal aparece sendo legitimado como um instrumento impeditivo da vingança e das penas desmedidas e cruéis, contudo, essa argumentação apresentada não nos parece conectada totalmente com a proposta abolicionista de Louk Hulsman.

Em nossa interpretação da teoria hulsmaniana, sua principal contribuição seria, na verdade, a destruição da cultura do castigo que vem enraizada no direito penal ocidental, uma verdadeira proposta de uma outra forma de constituição da sociedade. As críticas dirigidas a ele por Ferrajoli não abordam esse viés de mudança ideológica, muito pelo contrário, elas apenas reforçam essa mesma noção quando rejeitam o abolicionismo devido a ânsia punitiva da sociedade e do Estado.

17 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vânia Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 2012. p. 103.

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Ademais, após o desaparecimento gradativo do sistema penal e com ele de toda ideologia punitiva de castigo e sofrimento, Hulsman nos faz entender que uma nova consciência também deverá ser desenvolvida, ou seja, todo o ideal de vingança privada e de justiça através de castigo e sofrimento só tem lugar em nossas sociedades devido ao reforço de séculos de teorias legitimantes. Nesse sentido:

Na verdade, o abolicionismo não pretende renunciar à solução dos conflitos que devem ser resolvidos; apenas, quase todos os seus autores parecem propor uma reconstrução de vínculos solidários desses conflitos sem a necessidade de apelar para o modelo punitivo formalizado abstratamente.18

Apesar da aura utópica que paira sobre as teorias do abolicionismo penal em geral, principalmente na América Latina, o autor deixa claro que crer em uma só solução padronizada e universal para problemas complexos – como fazem os sistemas penais – é o que configura uma imensa utopia. O objetivo abolicionista é atacar as medidas coatoras orientadas a castigar, destruir o sistema penal e, consequentemente, a dor e o sofrimento das resoluções ineficazes dos conflitos humanos operada por ele.

E por isso mesmo que Hulsman não propõe um substituto depois da destruição do sistema penal, ele considera que não é necessária a troca por equivalentes, já que todas as resoluções de problemas devem ser direcionadas ao problema em si, rompendo com a ideologia punitivista do fazer-sofrer para “reparação de danos”, “exemplo social” etc. A diminuição e posterior desaparecimento do sistema penal implicaria uma mudança profunda na rede do poder social, que traria consigo, consequentemente, um modelo diferente de sociedade.

O abolicionismo penal em seu cerne, portanto, não é uma corrente diretamente contrária ao minimalismo e ao garantismo, e nem poderia ser, já que são pensamentos totalmente diferentes. As críticas de Ferrajoli não conseguem atingir o centro da contribuição de Louk Hulsman: elas estão dentro da forma limitada da lógica de justiça como vingança e castigo, somente a partir do momento em que rompermos e abandonarmos esses limites de raciocínio outros horizontes poderão ser vislumbrados.

18 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas... Op. cit. p. 104.

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2 A JUSTIÇA PENAL COMO UM “ÍDOLO” FUNDAMENTADA NA FORMA-CASTIGO E NO SENTIMENTO DE VINGANÇA

O abolicionismo penal representa uma das mais originais e radicais propostas político-criminais da atualidade, mas, no âmbito das discussões acadêmicas, a teoria é severamente criticada por alguns argumentos baseados nas premissas apresentadas por Luigi Ferrajoli, críticas estas que podem ser sintetizadas nos seguintes exemplos de questionamentos: O que é possível colocar no lugar do sistema penal para punir atos criminalizáveis? Acabar com o sistema penal não significa aceitar a impunidade? Também não significaria acabar com as garantias dos cidadãos? Essa mudança não acarretará no aumento da violência privada ou estatal e da justiça com as próprias mãos? O que significa abolir o sistema penal em uma perspectiva filosófica?

Conforme mencionado, o abolicionismo penal de Louk Hulsman dirige-se para a substituição do sistema penal por diversas outras instâncias intermediárias e individualizadas de solução de conflitos que atendam às necessidades reais das pessoas envolvidas, propondo uma nova forma de enxergar e resolver os conflitos sociais. Hulsman é severamente criticado por não dar a resposta de quais seriam, em uma perspectiva prática, essas soluções, porém, sua própria teoria é uma fuga às respostas padronizadas e universais, propondo uma nova forma de encarar as situações-problema que surgem na vida das pessoas.

No centro de sua teoria, observamos a importância do abandono do pensamento punitivista profundamente enraizado no modus operandi do sistema penal, ou seja, de que a pena deveria ser um castigo, um sofrimento, uma punição equivalente pelo “mal” causado ao particular ou à sociedade.

A justiça penal, portanto, é uma forma eivada de violência para responder a determinadas situações-problema, principalmente quando faz uso da privação de liberdade de uma pessoa condenada ou mesmo ainda acusada. Além disso, a violência do sistema penal também atinge terceiros que estão fora do âmbito de ofensor e ofendido, englobando seus familiares, agentes estatais das diversas agências penais e, através dos meios de comunicação, terceiros que nenhuma ligação têm com o conflito.

A análise de Hulsman sobre o direito penal demonstra que a aparelhagem estatal não busca efetivamente solucionar os conflitos sociais. Na verdade, busca apenas neutralizá-los por meio de um castigo operado pela justiça penal, que também tem objetivo de prevenir atos criminalizáveis futuros, servindo de exemplo para toda a sociedade.

Nesse sentido, a filosofia moral de Nietzsche traz uma interessante contribuição teórica para esse aspecto que consideramos central na teoria abolicionista de Hulsman: ambos acreditam que o sentimento de vingança e a forma-castigo estão profundamente

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enraizados na cultura ocidental da justiça penal, sendo essas bases criadoras de ideais, de “ídolos” metafísicos considerados como aspectos naturais da vida em sociedade. Como sustenta o filósofo:

E verdade que atualmente aquele que se sente prejudicado quer sempre vingar-se, abstração feita da maneira como se poderia remediar esse prejuízo, e se dirige para isso aos tribunais – é isto que assegura ainda provisoriamente a manutenção do nosso abominável código criminal, com sua balança de merceeiro e sua vontade de compensar a falta com a pena. Mas não deveríamos ser capazes de ultrapassar isso?19

Nietzsche conduz sua análise das questões morais através de um método genealógico para investigar a origem e o desenvolvimento de alguns valores ocidentais. Dentre eles, analisa o modelo ocidental de imputação de responsabilidade, sendo que considera como marco fundamental do que entendemos por responsabilidade o advento das relações comerciais primitivas, a partir do momento em que o homem “se torna um animal capaz de fazer promessas”20 e toma consciência de uma “responsabilidade instintiva”21, com foco nas relações comerciais entre credores e devedores.

Para Nietzsche, a gênese da responsabilidade individual surge a partir do conceito material de dívida. Conceito este que deixa clara a obrigação possuída por um sujeito (devedor) para com outro (credor), e a partir dela as distinções das ideias de intencional, causal, responsável, negligente e os seus opostos começam a ser levados em conta para atribuição da respectiva culpa e posterior castigo ao devedor que descumpre a obrigação pactuada.

Comprar e vender, juntamente com seu aparato psicológico, são mais velhos inclusive do que os começos de qualquer forma de organização social ou aliança: foi apenas a partir da forma mais rudimentar de direito pessoal que o germinante sentimento de troca, contrato, débito [Schuld], direito, obrigação, compensação, foi transposto para os mais toscos e incipientes complexos sociais (em sua relação com os complexos semelhantes), simultaneamente ao hábito de comparar, medir, calcular um poder e outro.[...] logo chegou-se à grande generalização: “cada coisa tem seu preço; tudo pode ser pago” – o mais velho e ingênuo cânon moral da justiça, o começo de toda “bondade”, toda “equidade”, toda “boa vontade”, toda “objetividade” que existe na terra. Nesse primeiro estágio, justiça é a boa

19 NIETZSCHE, Friedrich. Aurora... Op. cit. p. 187.20 Id. Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Carvalho. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 9.21 Ibidem. p. 44.

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vontade, entre homens de poder aproximadamente igual, de acomodar-se entre si, de “entender-se mediante um compromisso – e , com relação aos de menor poder, forçá-los a um compromisso entre si.22

Sustenta então que, como criação “demasiada humana”, esse tipo de reparação de danos e a consequente evolução da práxis contratual, culminam na proliferação dos mais diversos tipos de “castigos” ao devedor que descumpre sua palavra, sob o pretexto de se evitar a repetição (como um instrumento de domesticação social) e também de punir o sujeito devedor para que ele compensasse – em uma suposta equivalência – o dano que causou.

Durante o mais largo período da história humana, não se castigou porque se responsabilizava o delinquente por seu ato, ou seja, não pelo pressuposto de que apenas o culpado devia ser castigado – e sim como ainda hoje os pais castigam seus filhos, por raiva devida a um dano sofrido, raiva que desafoga em quem o causou; mas mantida em certos limites, e modificada pela ideia de que qualquer dano encontra seu equivalente e pode ser realmente compensado, mesmo que seja com a dor de seu causador. De onde retira sua força esta ideia antiquíssima, profundamente arraigada, agora talvez inerradicável, a ideia da equivalência entre dano e dor? Já revelei: na relação contratual entre credor e devedor, que é tão velha quanto a existência de “pessoas jurídicas”, e que por sua vez remete às formas básicas de compra, venda, comércio, troca e tráfico.23

A partir das relações comerciais o ser humano teria começado a “medir uma pessoa com outra”24 e o credor, nesta situação, se vê em posição de superioridade perante o seu devedor. Era concedida uma espécie de satisfação íntima ao credor como reparação ao dano causado a ele: a satisfação de quem pode livremente descarregar seu poder sobre um impotente, de quem pode punir um impotente, de quem pode efetivar um direito que é reservado apenas aos “senhores”.

Dessa forma, o credor podia infligir ao corpo do devedor todos os tipos de humilhações e torturas, por exemplo, cortar os membros daquele o quanto lhe parecesse proporcional ao tamanho da dívida. Esse modo de reparação de danos e consequentemente de castigo, de acordo com Nietzsche, guarda muitos sentidos primitivos disfarçados, ainda se coloca o nome de justiça em uma declaração de guerra a um indivíduo e ele é forçado a “pagar pelo que fez” como se o problema estivesse sendo realmente resolvido e como se houvesse algum tipo de equivalência entre o seu sofrimento e a ofensa causada.

22 Ibidem. p. 55.23 Ibidem. p. 48-49.24 Ibidem. p. 55.

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Na realidade, a equivalência entre o dano causado pela promessa não cumprida e pelo castigo infligido ao devedor, para Nietzsche, se encontrava na substituição de uma vantagem relacionada ao dano por uma espécie de satisfação íntima concedida ao credor, como reparação e recompensa.

Essa reparação de danos, advinda das relações obrigacionais também, pode ser interpretada na relação entre sujeito e Estado, sendo que o primeiro que desobedece a suas regras torna-se um devedor perante toda sociedade, quebra o contrato social e mereceria uma punição. Vive-se e desfruta-se das vantagens proporcionadas pela vida em sociedade, como segurança, paz, confiança, sem preocupação com certos tipos de hostilidade e abusos que um homem desprotegido, fora dessa sociedade, estaria exposto. Assim, caso o indivíduo que se comprometeu com a sociedade falhe em sua promessa e descumpra as obrigações firmadas anteriormente, esta exigirá pagamento, tal qual um credor enganado.

O Estado, personificação dessa comunidade, então, pune esse infrator, ou seja, o credor pune o devedor por não ter seguido o contrato estipulado, no caso, por ter infringido ou deixado de cumprir uma determinada lei.

Esse “direito de justiça” concedido ao credor lesado teria como objetivo buscar a equivalência entre o dano sofrido e o castigo aplicado. Nietzsche também analisa essa falsa equivalência, o que considera uma vingança, disfarçada sob o nome de justiça e enraizada na sociedade ocidental como um conceito “natural”, mas que possui origens falaciosas e não cumpre suas finalidades declaradas. De acordo com Nietzsche, ideais como esses impedem a superação do homem como indivíduo e agrilhoam toda a sociedade em falsos valores e “ídolos” metafísicos.

Assim, Hulsman, da mesma forma que Nietzsche, também vê no castigo, na suposta equivalência das penas e nos ideais basilares do sistema penal ocidental, um evidente resquício do sentimento de vingança e um aprisionamento das respostas penais na forma-castigo.

Além disso, em Nietzsche, um dos objetivos do castigo e da violência utilizada contra os credores é o de tornar os sujeitos confiáveis, torná-los cumpridores de suas promessas contratuais. Para isso, utilizou-se também, no decorrer da história, da força do “tornar público”. Incentivou-se o clamor social no sentido de que o infrator pague o seu débito perante a sociedade; uma vontade puramente cruel, manifestada apaixonadamente pela massa da população. Uma vontade cruel e festiva.

Esquece-se a real intenção de reparar o dano e resolver o conflito para, em seu lugar, celebrar a vingança, desta vez nas mãos dos ditos legitimados para tais atos. Esses castigos, impostos pelo credor, ou pela comunidade, até os dias de hoje se concentram

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apenas no sofrimento da figura do causador de danos, ignorando ou assumindo o fracasso de não termos condições de evitar novos crimes ou de solucionar as situações-problema.

A reparação por um roubo, por um furto, ou ainda por um homicídio consistem, essencialmente, no sofrimento do indivíduo ofensor. Conforme Hulsman assevera, ignora-se o dano causado, o problema em si, as motivações e consequências do ato, busca-se, unicamente, um castigo dito equivalente, mesmo sendo impossível uma justa reparação do dano causado.

Nietzsche considera que o sofrimento humano é a compensação para a dívida porque “fazer sofrer era altamente gratificante, na medida em que o prejudicado trocava o dano, e o desprazer pelo dano, por um extraordinário contra-prazer: causar o sofrer”25. Além disso,

Ver sofrer faz bem, fazer sofrer mais ainda – eis uma frase dura, mas um velho e sólido axioma humano, demasiado humano, que talvez até os símios subscrevessem: conta-se que na invenção de crueldades bizarras eles já anunciam e como que “preludiam” o homem. Sem crueldade não há festa: é o que ensina a mais antiga e mais longa história do homem – e no castigo também há muito de festivo!26

Também a justiça aparece, para Nietzsche, nascida a partir de relações contratuais de trocas que, quando quebradas, eram reparadas por um castigo imposto àquele devedor, tendo o sentimento de vingança como sua essência e motivação:

A justiça (equidade) tem origem entre homens de aproximadamente o mesmo poder, [...] quando não existe preponderância claramente reconhecível, e um combate resultaria em prejuízo inconsequente para os dois lados, surge a ideia de se entender e de negociar as pretensões de cada lado: a troca é o caráter inicial da justiça. Cada um satisfaz o outro, ao receber aquilo que estima mais que o outro. Um dá ao outro o que ele quer, para tê-lo como seu a partir de então, e por sua vez recebe o desejado. A justiça é, portanto, retribuição e intercâmbio sob o pressuposto de um poderio mais ou menos igual: originalmente a vingança pertence ao domínio da justiça, ela é um intercâmbio. Do mesmo modo a gratidão. – A justiça remonta naturalmente ao ponto de vista de uma perspicaz autoconservação, isto é, ao egoísmo da reflexão que diz: “por que deveria eu prejudicar-me inutilmente e talvez não alcançar a minha meta?”. – Isso quanto à origem da justiça.27

25 Ibidem. p. 50.26 Ibidem. p. 51.27 Id. Humano, demasiado humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 65.

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A definição de justiça que Nietzsche encontra a partir da análise genealógica é, na verdade, a vingança propriamente dita, que causa prazer naquele que tem poder de executá-la. A partir dessa premissa, Nietzsche questiona o valor atribuído pela tradição ocidental para essa ideia de justiça como uma verdade absoluta, “natural” e imutável. Junto a isso, também questiona à busca ocidental de uma justiça que se instaurasse acima dos sujeitos, com critérios universais de julgamento, que dê conta das determinantes de toda conduta, de toda ação, desconsiderando a individualidade do ser humano, exatamente como Hulsman também o faz.

Nietzsche entende que todo julgamento é injusto, que não há algum tipo de medida que possa ser usada universalmente e nossas próprias medidas são totalmente fluidas e variáveis. Não existe um valor justo por si mesmo, essa seria uma compreensão metafísica que, como é característico desse modo de avaliar, não leva em conta os elementos particulares daquilo que se propõe a pensar.

Esse sentimento de vingança disfarçado de justiça continua inevitavelmente enraizado em nossa sociedade. Nos últimos tempos, houve uma sublimação e sutilização na crueldade do castigo, apresentando-se por nomes “tão inofensivos que não despertam nenhuma suspeita nem mesmo na mais delicada e hipócrita consciência”28. Apesar da expressão do que é considerado justo ter sofrido inúmeras modificações na tradição ocidental, a essência do sentimento de vingança permanece firmemente atrelado aos mais diversos tipos de castigo e reparação de danos.

Nietzsche também dá ênfase à posição central da figura do culpado na justiça penal: “o dano imediato é o que menos importa no caso: ainda sem considerar esse dano, o criminoso é, sobretudo um infrator”29. O sistema penal, alinhado com a sociedade eivada pelo sentimento de vingança, visa, apenas, punir o infrator, tendo a visão de que criminoso é um devedor que não só não paga os proveitos e adiantamentos que lhe foram concedidos, como inclusive atenta contra o seu credor.

O Estado, credor prejudicado, exerce de igual forma ao credor-particular sua ira, seu ódio ao causador de danos, e impõe também um sofrimento ao infrator, porém diferente: a comunidade afasta-o de si. Esquece-se o dano imediato, concentra-se no infrator, concentra-se em sua punição.

Nietzsche denuncia que esse modo de reparação de danos e de castigo ainda guarda seus sentidos primitivos disfarçados por “nomes sutis”, ou seja, ainda se coloca o nome

28 Id. Genealogia da moral. Op. cit. p. 53.29 Ibidem. p. 55-56.

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de justiça em uma declaração de guerra a um indivíduo e o forçamos a “pagar pelo que fez” como se sua responsabilidade fosse absoluta sobre o fato e, ainda, como se houvesse algum tipo de equivalência entre o seu sofrimento e o dano que causou:

não surpreende ver surgir, precisamente desses círculos, tentativas como já houve bastantes [...] de sacralizar a vingança sob o nome de justiça – como se no fundo a justiça fosse apenas uma evolução do sentimento de estar ferido – e depois promover, com a vingança, todos os afetos reativos.30

Assim, da mesma forma que Hulsman, o filósofo crê na ineficiência total da justiça penal e expõe a falsidade dos seus objetivos declarados, sendo que as críticas direcionadas ao abolicionismo, apresentadas anteriormente, não conseguem atingir o centro filosófico da teoria de Hulsman. Esses argumentos não se sustentam pela própria construção teórica do abolicionismo de Hulsman: a destruição do sistema penal significa, ao mesmo tempo, a destruição do ideal punitivista enraizado profundamente na lógica penal ocidental.

O crime, as penas, a prisão e o ideal da justiça penal podem ser considerados como “ídolos” metafísicos para serem “adorados” irracionalmente. E preciso, portanto, abandonar a forma-castigo, a forma-vingança ou a forma-reparação como as únicas medidas possíveis para lidar com os atos criminalizáveis.

A partir do momento em que se desconstrói esse sistema idealizado e busca-se efetivamente a solução das situações-problema, será possível olhá-las com outros olhos e com outro raciocínio que, evidentemente, não terá mais a névoa da culpa, do castigo e da vingança como intermediadores.

Nesse sentido, em uma perspectiva voltada para a prática, Hulsman menciona em seus textos a possibilidade de alternativas ao sistema penal, muitas vezes até mesmo dentro do direito, como no caso de alternativas cíveis ou alternativas administrativas focadas na resolução da situação-problema e não na punição cega e padronizada.

De acordo com Hulsman, essas alternativas devem colocar as próprias partes interessadas na condução da resolução de seus problemas. Nesse cenário, a vítima passa a ter o papel de responsável pelo seu próprio problema, tendo autonomia, voz ativa e conduzindo a resolução individualizada que mais a satisfaça.

Por último, a partir da construção realizada, também é possível responder as críticas daqueles que, como Ferrajoli, consideram que o direito penal representaria a lei que protege os mais fracos, que se dirigiria à garantia de direitos fundamentais destes contra

30 Ibidem. p. 57.

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a violência arbitrária do mais forte, quer ele seja um particular ou o aparelho do Estado. Abolir o sistema penal significa, ao mesmo tempo, abandonar os ideais de compensação por sofrimento do ofensor, o que eliminaria as pretensões particulares ou estatais de exercício excessivo ou arbitrário da violência para solucionar as situações-problema.

Além disso, é amplamente sabido que justamente em contextos onde o sistema penal funciona intensamente, como é o caso do Brasil, é que episódios de justiça com as próprias mãos, organização de justiceiros para coibir violência sob a alegação de ausência do Estado, surgimento das milícias privadas agindo sob a forma de autodefesa punitiva, ocorrem descontroladamente. Não há qualquer razão para se pensar que esses fenômenos se ampliariam se houvesse a abolição total do sistema penal, ou mesmo parcialmente, descriminalizando as condutas indesejáveis – como o tráfico de drogas e os pequenos furtos – e as levando para outras esferas, jurídicas ou não.

CONCLUSÃO

No caminho percorrido – apresentação do abolicionismo penal de Louk Hulsman, formulação de algumas críticas garantistas e minimalistas e interpretação de um viés filosófico da teoria hulsmaniana –, visou-se demonstrar uma possível defesa ao abolicionismo penal, na medida em que a sua verdadeira essência reside nos valores do castigo e da vingança, profundamente enraizados nas sociedades ocidentais.

Procurou-se demonstrar que destruir o sistema penal, para Hulsman, também significa destruir os “ídolos” metafísicos que o sustentam, o que Nietzsche, já no século XIX, também denunciava. Ambos os autores analisados propõem uma nova forma de pensar, de agir e de se comportar. Um novo ideal de si diante dos outros, um novo ideal de cada um diante da sociedade.

Se queremos progredir para uma sociedade mais justa e solidária, bem como nos livrar dos grilhões ideológicos a que estamos presos, necessitamos de um enfoque que está direcionado em primeiro lugar para aquelas pessoas ou grupos que estão diretamente envolvidos nas situações-problema, e que nos obriguem a observar todos os recursos que poderiam ser mobilizados para tratar de situações semelhantes, visando a efetiva e verdadeira resolução dos conflitos e satisfação das partes.

Temos que redefinir o campo de cada situação-problema independentemente de suas definições dentro do sistema penal, apenas desse modo será possível reconhecer e fomentar práticas alternativas e eliminar as medidas antiquadas de nossos sistemas penais – como a pena privativa de liberdade – que são injustas, desumanas e não se mostram eficazes para

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“ressocializar” indivíduos, reparar o dano causado ao ofendido ou à sociedade, ou mesmo prevenir delitos futuros.

Além disso, ao contrário do que sustenta Ferrajoli e das críticas mais comuns à teoria de Hulsman, as práticas abolicionistas não são utopias irrealizáveis. As alternativas penais já acontecem em diversos lugares no mundo e também possuem espaço para se desenvolverem no Brasil, como é o caso de associações de moradores em bairros que objetivam coibir a violência doméstica, do estímulo a políticas públicas para diminuição da violência (iluminação pública, proibição de abertura de bares após determinado horário, ocupação de espaços públicos nas cidades etc.), da utilização de métodos conciliatórios extrajudiciais, das propostas de descriminalização de drogas e da diminuição da violência decorrente da repressão ao tráfico, entre outras.

Contudo, mesmo que não tenhamos condições políticas e culturais para a realização, em curto e médio prazo, de um programa radicalmente abolicionista, não podemos deixar de lado a produção crítica, considerada como instrumento e meio, a fim de que se tenha uma ampla política de descriminalização, acompanhada da experimentação, com intervenções alternativas ao sistema penal, para que a concretização de reformas possa diminuir a distância até a meta final.

Nesse sentido, Hulsman ressalta a importância do papel do acadêmico das ciências humanas31: mostrar o modo como as instituições realmente operam e quais são as consequências reais de seu funcionamento nos diferentes segmentos da sociedade; descobrir os sistemas de pensamento que sustentam essas instituições e essas práticas, devendo apresentar o contexto histórico desses sistemas, as restrições que eles exercem sobre nós, e o fato de que esses sistemas se converteram em algo tão familiar para nós que passaram a fazer parte de nossas percepções, atitudes e comportamento.

Além disso, o acadêmico também deve colaborar com aquelas pessoas diretamente implicadas e com profissionais para modificar as instituições e suas práticas, e para desenvolver outras formas de pensamento sem as pessoas implicadas assim desejam ou se pedem para participar, tendo sempre a perspectiva crítica como guia, porém sem perder a ideia do que está por ser construído dentro dos paradigmas da sociedade vigente.

A teoria orientada para a crítica, portanto, é outro ponto comum entre os dois autores. Nietzsche também tem o entendimento de que para romper com a tradição ocidental, é necessário operar o que ele chama de transvaloração de todos os valores: uma mudança radical dos valores impostos e fixados na sociedade ocidental.

31 HULSMAN, Louk. Alternativas a la justicia penal y la política criminal en Latinoamérica. Revista Antrophos, n. 204, p. 183-197, 2004.

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No entanto, para que isso ocorra, Nietzsche aponta que só há um caminho: é necessário que os homens se tornem efetivos criadores dos seus próprios valores, que “sirvam a vossa inteligência e a vossa virtude ao sentido da terra” sendo que “o valor de todas as coisas será renovado por vós. Para isso deveis ser lutadores! Para isso deveis ser criadores!”32.

Além disso, em complemento a essa ideia afirma que:

Somente enquanto criadores! – Eis algo que me exigiu e sempre continua a exigir um grande esforço: compreender que importa muito mais como as coisas se chamam do que aquilo que são. A reputação, o nome e a aparência, o peso e a medida habituais de uma coisa, o modo como é vista – quase sempre uma arbitrariedade e um erro em sua origem, jogados sobre as coisas como uma roupagem totalmente estranha à sua natureza e mesmo à sua pele –, mediante a crença que as pessoas neles tiveram, incrementada de geração em geração, gradualmente se enraizaram e encravaram na coisa, por assim dizer, tornando-se o seu próprio corpo: a aparência inicial termina quase sempre por tornar-se a essência e atua como essência! Que tolo acharia que basta apontar essa origem e esse nebuloso manto de ilusão para destruir o mundo tido por essencial, a chamada “realidade”? Somente enquanto criadores podemos destruir! – Mas não esqueçamos também isto: basta criar novos nomes, avaliações e probabilidades para, a longo prazo, criar novas “coisas”.33

A proposta deste trabalho, portanto, foi demonstrar a atividade destruidora e, ao mesmo tempo, criadora, que a operação das críticas de Nietzsche e Hulsman permitem realizar, sendo que a partir da realidade efetiva se faça a crítica e, a partir da crítica, seja criada outra maneira de pensar os conceitos apresentados, visando à superação da sociedade como a conhecemos e o alcance de uma nova justiça pautada por outros valores, operando-se a “transvaloração de todos os valores” e a consequente aurora de uma sociedade do porvir, “além do bem e do mal”.

32 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

33 Id. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 90-91.

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INVESTIGAÇÃO CRIMINAL DEFENSIVA: UMA PRÁTICA A SER DIFUNDIDA

DEFENSIVE CRIMINAL INVESTIGATION: PRACTICE TO BE PROMOTED

Tatiane Imai Zanardi1

RESUMO

O presente artigo científico trata-se de um estudo sobre a necessidade de existir a concreta possibilidade de defesa do imputado na investigação preliminar, por meio de defesa técnica, pois o que se observa no inquérito policial – que é o meio mais comum de investigação no Brasil – é o acusado sendo tratado como um mero expectador. Assim, pretende-se demonstrar a crise do modelo investigatório brasileiro, que é ainda inquisitório. Entretanto, as provas produzidas nele sem observância do contraditório são utilizadas em posterior ação penal e não são valoradas apenas como elementos de informação. Além disso, analisar-se-á de forma sucinta a investigação criminal defensiva existente no Direito Italiano e Norte-Americano, bem como será abordado o Projeto de Lei n. 8.045/2010 que pretende introduzir o tema no ordenamento jurídico pátrio e o que efetivamente mudou com a edição da Lei n. 13.245/2016 que alterou o Estatuto da Ordem dos Advogados no Brasil (EOAB). Por fim, propõe-se que os operadores do Direito introduzam no dia a dia forense a investigação defensiva, já que com essa possibilidade de investigação haveria maior paridade de armas entre acusação e defesa do imputado, tendo como consequência a obtenção de uma instrução prévia mais justa.

Palavras-chave: Investigação Criminal Defensiva. Inquérito Policial. Direito ao Contraditório. Paridade de Armas.

1 Pós-Graduanda em Processo Penal pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Advogada criminal. E-mail: [email protected]

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ABSTRACT

This paper studies the need of a concrete possibility of defense of the accused in the preliminary investigation, by means of technical defense. What can be noticed in the police inquiry – which is the most usual means of investigation in Brazil – is that the accused is treated as a mere spectator. The aim of this paper is to demonstrate the crisis of the Brazilian investigation model, which remains inquisitorial. Nevertheless, the evidence obtained from it regardless of the adversarial principle is to be used in further legal action and are not valued as information elements only. Furthermore, defensive criminal investigation in the Italian and American Laws will be briefly analyzed, there will also be considerations regarding bill 8,045/2010, which seeks to introduce this topic in the Brazilian law system, and the effective changes brought by the edition of Law 13,245/2016, which changed the Statue of Brazilian Bar Association (EOAB). Finally, there is a proposition that legal practitioners introduce defensive investigation in daily court practices, as this investigation alternative would allow for greater equality or arms between accusation and defense of the accused, resulting in a fairer preliminary inquiry stage.

Keywords: Defensive Criminal Investigation. Police Inquiry. Adversarial Principle, Equality of Arms.

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INTRODUÇÃO

Nas legislações mais evoluídas, há constante preocupação em garantir o direito de defesa do investigado na investigação preliminar, com o objetivo de diminuir a disparidade de armas na fase pré-processual. Essa disparidade de armas no Brasil é bem presente, pois, no inquérito policial, principal modelo de investigação criminal positivado, o acusado, na maioria das vezes, é tratado como mero expectador, não participando de forma alguma dos atos da investigação.

Assim, o primeiro problema diz respeito à valoração probatória dos atos praticados e elementos produzidos na persecução prévia e, em que pese parte da doutrina entender que se tratem apenas de elementos informativos, é certo que esse fantasioso e otimista entendimento há de ser superado, pois o que se observa ordinariamente no cenário atual são decisões baseadas em elementos coletados na fase investigativa, momento em que não houve observância do contraditório.

Observe-se também que o art. 155 do Código de Processo Penal apresenta um comando legal para que o Magistrado forme sua convicção “pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação”, cumprindo destacar que estão “ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”2. Há que se admitir que, o uso da palavra exclusivamente não retira o valor probatório.

Logo, o questionamento que se pretende fazer é: Como continuar aceitando a não aplicação do contraditório no inquérito policial, bem como a não possibilidade de o investigado defender-se provando, nessa fase prévia, se o material colhido na instrução preliminar poderá ser usado para formar o convencimento do magistrado? Se a prova produzida durante a instrução criminal deve respeitar o contraditório, ou seja, ter a participação do acusador, do acusado e a supervisão do julgador, a mesma prova3 produzida na investigação também deverá ser submetida ao crivo do contraditório, pois as duas poderão acabar se destinando ao mesmo fim.

2 Grifo nosso. BRASIL. Lei n. 11.690, de 9 de junho de 2008. Altera dispositivos do Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, relativos à prova, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jun. 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11690.htm>. Acesso em: 28 jul. 2016.

3 Costuma-se fazer distinção entre fonte de prova, meio de prova e objeto de prova. A fonte de prova corresponde a todos os elementos materiais que se prestam ao esclarecimento de um fato, por exemplo, um documento ou uma pessoa. Sua existência, portanto, é anterior e autônoma ao processo. Já o meio de prova somente existe no processo, sendo o instrumento destinado a levar a fonte de prova ao juízo. E o caso das declarações de uma testemunha; da juntada de um documento ou de um exame pericial. Objeto de prova é o fato a ser provado, que se infere da fonte e se introduz no processo pelo meio de prova (MACHADO, André Augusto Mendes. Investigação Criminal Defensiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 112).

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Deve-se lembrar também que, de acordo com os atos da investigação preliminar, poderão ser decretadas prisões cautelares e realização de medidas assecuratórias (como retirar os bens de uma pessoa, mesmo que temporariamente).

Sendo assim, o presente estudo deseja comprovar a crise do modelo investigatório brasileiro, pois, embora se esteja diante de um sistema acusatório, o que se percebe é uma primeira fase inquisitória e a segunda regida pelo princípio do contraditório, valendo no entanto, nela tudo que foi produzido naquela.

Além disso, o que se observa na investigação preliminar é uma defesa omissa, já que a atividade investigativa defensiva é vista com preconceito e, na maioria das vezes, a prova trazida pelo defensor não tem o mesmo valor probatório que a prova introduzida pela acusação ou pela polícia judiciária.

Por isso, estudar-se-á aqui a importância da investigação criminal defensiva, pois somente com uma defesa técnica efetiva haverá equilíbrio entre as partes em um processo penal acusatório, com a permissão de obtenção dos meios de prova relevantes para a defesa e melhor averiguação dos fatos tidos como criminosos no inquérito policial, já que é inegável que a Polícia Judiciária e o Ministério Público (MP) desempenham funções relacionadas ao exercício do poder punitivo estatal.

Modelo oposto nos oferecem países como Itália e Estados Unidos, onde se busca a coerência entre a gestão probatória pelas partes e a paridade de armas, logo, experiência que merece ser observada, não para ser imitada, pois cada sistema possui suas peculiaridades.

Por fim, analisar-se-á também a tentativa de inserção de regra autorizadora da investigação criminal pela defesa, prevista no art. 13 do Projeto de Lei n. 8.045/2010, que ainda está em fase de tramitação. Muitos que já escreveram sobre o tema vislumbram o início de uma mudança significativa no atual modelo investigatório no tocante à investigação criminal defensiva a partir da introdução do mencionado artigo no Código de Processo Penal; no entanto, o que a maioria não debate é a demora dessa introdução legislativa e o que fazer até que ela seja aprovada.

O presente trabalho versará sobre a necessidade de existir a possibilidade de o investigado defender-se produzindo provas na investigação preliminar, bem como a aplicação do contraditório nesta fase. Além disso, apresentará o que já existe no tocante a esse assunto no direito italiano e norte-americano.

Por fim, pretende-se discutir as tentativas de inserção do tema investigação produzida pela defesa do imputado no ordenamento jurídico, como o projeto de Lei n. 8.045/2010 que prevê no art. 13 essa inovação legislativa no Código de Processo Penal, e também discutir o que a Lei n. 13.245/2016, que trouxe mudanças no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (EOAB), realmente contribuiu para o assunto.

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1 CRISE DO INQUÉRITO POLICIAL

1.1 A NECESSIDADE DA APLICAÇÃO DO CONTRADITÓRIO NA PERSECUÇÃO PREVIA

Está cada vez mais evidente que deve haver o impedimento ou a restrição da influência do material colhido durante a investigação no convencimento do julgador, já que os atos produzidos na persecução penal prévia não se submetem ao contraditório e os que vivenciam e estudam o tema percebem que não são apenas produzidos elementos informativos como quer fazer crer o Código de Processo Penal brasileiro e parte da doutrina.4

Além disso, muitos entendem que as peças do inquérito policial ou da investigação realizada pelo MP deveriam ser excluídas dos autos do processo penal, pois a investigação preliminar só deve se propor à viabilidade ou não da acusação.5

Para Edson Luís Baldan, o inquérito policial é o pior meio de investigação; à exceção de qualquer outro, parafraseando a frase dita por Winston Churchill em relação à democracia e as demais formas de governo, ressaltando que ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem dano.6

O inquérito policial também está longe de ser perfeito e mesmo sendo alvo de merecidas críticas severas, é o meio mais comum de investigação criminal no Brasil e se corretamente utilizado, terá a função de impedir acusações apressadas e destituídas de suficiente base7. Nessa esteira, a função de evitar acusações infundadas deve ser perquirida na investigação preliminar, assegurando à sociedade de que não haverá abusos por parte do poder persecutório estatal, pois se a impunidade causa uma grave intranquilidade social, não menos grave é o mal causado por se processar um inocente.8

Para Aury Lopes Jr., a atividade de “filtro processual” do inquérito policial resta plenamente concreta se levar em consideração três fatores: o custo do processo, o

4 FERNANDES, Antonio Scarance. Teoria geral do procedimento e o procedimento no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 75.

5 MACHADO, André Augusto Mendes. Op. cit. p. 112.6 Winston Churchill disse certa vez que a democracia é o pior dos regimes, com exceção de todos os outros

(BALDAN, Edson Luís. Investigação defensiva: o direito de defender-se provando. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 64, v. 15, p. 253-273, jan./fev. 2007).

7 FERNANDES, Antonio Scarance. Op. cit. p. 75.8 LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo penal. 6. ed. São

Paulo: Saraiva, 2014. p. 108.

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sofrimento que causa ao sujeito passivo (estado de ânsia prolongada) e a estigmatização social e jurídica que gera9.

Delineada está a importância dessa prévia apuração para se evitar acusações temerárias, pois o acusado sofre com a imputação da prática da infração delituosa que lhe é feita – mesmo sendo absolvido ao final.

No entanto, como se percebe, o inquérito policial, bem como a investigação promovida pelo MP, tem cunho inquisitivo, e por isso alguns sustentam que essa fase preliminar deveria acabar, a fim de existir apenas uma instrução criminal no crivo do contraditório. Assim, para Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, há que se dar cabo do inquérito policial, para aproximar-se da matriz acusatória, permitir-se tão só uma única instrução, no crivo do contraditório. Para mencionado jurista, o inquérito policial nasceu com a desvantagem de ser um procedimento administrativo e, de consequência, inviabiliza a extensão, para si, do contraditório, conforme art. 5º, LV, Constituição Federal (aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes)10.

Ocorre que mencionado artigo constitucional não pode ser objeto de interpretação restritiva, já que a postura do legislador foi garantista, sendo que o equívoco terminológico (falou processo administrativo quando deveria falar em procedimento administrativo) não pode ser óbice para aplicação do contraditório na investigação preliminar.11

Portanto, sustenta-se aqui que o princípio do contraditório, que pode ser conceituado como o direito de cada uma das partes de ser informada e de participar dos atos processuais, em contraposição aos argumentos sustentados pela outra parte, deve nortear também a instrução prévia.12

Ainda sobre a definição do contraditório, sabiamente ensina Carnelutti:

Desenvolve-se, assim, perante os olhos do juiz, o que os técnicos chamam contraditório e o que é, na verdade, um duelo. O duelo serve para o juiz superar a dúvida. E interessante observar que duelo, assim como dúvida, provém de duo. No duelo, personifica a dúvida. E como se, no cruzamento de duas ruas, dois valentes se enfrentassem para arrastar o juiz por uma ou por outra via. As armas que os valentes utilizam são as razões. Defensor e acusador são dois esgrimistas,

9 Ibidem. p. 111.10 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. As reformas parciais do CPP e a gestão da prova: segue o princípio

inquisitivo. Boletim IBCCrim, São Paulo, v. 16, n. 188, p. 11-13, jul. 2008.11 LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Op. cit. p. 468.12 MACHADO, André Augusto Mendes. Op. cit. p. 103.

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que não raro apresentam uma esgrima de má qualidade, porém algumas vezes

oferecem aos entendidos um espetáculo formidável13.

Mesmo que não seja observado o contraditório pleno sob pena de ineficácia da investigação, corrobora-se com Aury Lopes Jr. ao elencar garantias mínimas na investigação preliminar que devem ser observadas como: comunicação imediata da existência de uma imputação do suspeito (na comunicação deverá constar uma síntese da imputação e esclarecer em que qualidade comparece para declarar, além de ser comunicado o direito de comparecer acompanhado de advogado ou solicitar nomeação caso não tenha condições econômicas para constituir); direito ao silêncio, bem como o direito de indicar provas e solicitar diligências; ausência de segredo interno, pois com a súmula vinculante 14 não há que se falar em sigilo dos atos já realizados; participação ativa na produção antecipada de provas e provas técnicas irrepetíveis; fase intermediária contraditória para que exista um juízo de pré-admissibilidade da acusação, presidido pelo juiz garante e valor probatório dos atos de investigação e exclusão de peças que compõem o inquérito, para que os autos do processo penal não sejam contaminados.14

Como acertadamente assevera o autor mencionado, ainda que não seja razoável exigir um contraditório pleno na investigação preliminar (seja inquérito ou outra modalidade), até porque seria contrário ao próprio fim investigatório, comprometendo o esclarecimento do fato oculto, é perfeitamente exigível a existência de um contraditório mínimo. Com esse contraditório mínimo, haveria garantia da comunicação e participação do sujeito ativo em determinados atos e mesmo sendo mínimo, não afastaria uma participação mais efetiva do sujeito passivo quando, conforme o caso, o segredo interno não se justifica.

1.2 DA PARIDADE DE ARMAS

Conforme concluiu Carnelutti, acusador e defensor são dois esgrimistas – há que haver a paridade de armas para poderem lutar de forma igualitária.

Se a prova tem o seu regime jurídico ligado ao contraditório judicial, produzida com a participação do acusador e do acusado e mediante a direta e a constante supervisão do julgador15, a mesma prova produzida na investigação prévia também deve ser submetida ao crivo do contraditório, pois o que se observa no dia a dia forense é o convencimento do

13 CARNELUTTI, Francesco Carnelutti. As misérias do processo penal. Campinas: Edcamp, 2002. p. 41-42.14 LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Op. cit. p. 407-408.15 ZILLI, Marcos. O pomar e as pragas. Boletim IBCCrim, São Paulo, v. 16, n. 188, jul. 2008. p. 2.

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magistrado pelo material confeccionado no inquérito policial. Logo, os erros do inquérito podem repercutir para sempre na ação penal.

Frederico Marques sustentava a necessidade de o inquérito policial ser inquisitório, não se tolerando um inquérito contraditório, salientando que a tentativa de adulterar a todo custo o caráter inquisitivo da investigação é fruto daquilo que definiu como demagogia forense.16

No entanto, é evidente que já passou da hora de o modelo investigatório brasileiro ser reformado, a fim de que acusado não seja apenas um mero expectador, para que a defesa possa ser atuante nessa fase preliminar, mudando o antigo conceito que somente o corpo policial seria responsável pela investigação.17 O suspeito e o indiciado não podem ser vistos como estranhos, excluindo-se o exercício do direito de defesa18.

Denominar-se-á aqui como prova todos os elementos produzidos no inquérito policial, uma vez que é o que se tem observado nos processos criminais, pois são utilizados como provas e não apenas como elementos informativos.

O que se há de afirmar é a crise do inquérito policial, pois se denominado o sistema como acusatório19, não se poderia admitir uma instrução preliminar de cunho inquisitório, na qual são produzidas provas a fim de sustentar a acusação em face do investigado, visto que muitas vezes o acusado só tem ciência da produção das provas no momento de sua citação, ou seja, com o início da ação penal. Logo, questiona-se: teve o acusado direito de defender-se no momento da produção daquela prova (base para a acusação)? A resposta é não. Laudos, perícias e oitivas de testemunhas são realizados sem qualquer possibilidade de defesa do investigado, que, muitas vezes, é inquirido pela Autoridade Policial como declarante e, no meio da persecução penal prévia, torna-se indiciado sem qualquer justificativa.

16 MACHADO, André Augusto Mendes (Org.). Estudos de processo penal. São Paulo: Scortecci, 2011.17 BALDAN, Edson Luís. Op. cit. p. 271.18 PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Inquérito policial: exercício do direito de defesa. Boletim IBCCrim,

São Paulo, v. 7, n. 83 (esp.), p. 11-12, out. 1999.19 A contrario sensu, o sistema acusatório se perfaz com a observância das garantias fundamentais resguardando

os direitos individuais do acusado. Para tanto, verifica-se a divisão de partes; os sujeitos processuais agora são juiz, acusação e defesa. Assegurados a imparcialidade do julgador e a paridade de armas entre as partes, o procedimento é oral e público; este, somado à presença inarredável do contraditório e a livre iniciativa de provas, garante a ampla defesa do acusado, que passa a ter a liberdade como regra e, sua privação é admitida somente após a decisão condenatória definitiva (MAURÍCIO, Bruno; HENRIQUE, Diego. A possibilidade de investigação defensiva dentro do modelo constitucional brasileiro. Revista Liberdades, São Paulo, n. 12, jan./abr. 2013. Disponível em: <https://www.ibccrim.org.br/revista_liberdades_artigo/158-REFLEXAO-DO-ESTUDANTE>. Acesso em: 21 jul. 2016.

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Ainda vivencia-se o modelo do Code Napoleón, com a primeira fase inquisitória e a segunda fase, processual, amplamente contraditória, mas valendo nesta a prova produzida naquela.20

Há que se atentar também que tanto a Polícia Judiciária quanto o MP desempenham funções relacionadas ao exercício do poder punitivo estatal e por isso é discutível a imparcialidade desses órgãos.21 Não se pode admitir que a autoridade policial e seus agentes se tornem perseguidores obsessivos da culpa do investigado, sem que este possa se defender na investigação prévia, sob pena de ferimento irreversível ao direito de defesa.

Para Luiz Rascovski22, é impossível acreditar que o MP seja imparcial no sentido de conduzir uma investigação de modo a perseguir tão somente a reconstrução verdadeira dos fatos e não o sucesso da tese investigatória. Na realidade, o que se constata é que o inquérito policial possui nítido perfil inquisitório, pois a Polícia também está viciada no sentido de que se faz justiça quando se tem a condenação.

Para o sucesso nas investigações, a Polícia deve principalmente ter ciência de quais são os limites da sua atuação para garantia dos direitos dos acusados, pois o mínimo erro pode significar o fracasso mais rotundo do Estado de Direito.23

Para André Augusto Mendes Machado, acusador e acusado estão em posições desiguais na persecução penal, por isso a necessidade de garantir o equilíbrio de oportunidades entre as partes a fim de demonstrarem as suas teses, sendo coerente a possibilidade da defesa ser ativa na instrução prévia.24

1.3 DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL DEFENSIVA

Com a aplicação do contraditório e a observância da paridade de armas na investigação, a investigação criminal defensiva ganhará força.

20 NELSON, Jacinto Nelson de Miranda; COUTINHO, Miranda. As reformas parciais do CPP e a gestão da prova: segue o princípio inquisitivo. Boletim IBCCrim, São Paulo, v. 16, n. 188, p. 11-13, jul. 2008.

21 MALAN, Diogo Rudge. Investigação defensiva no processo penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. São Paulo, v. 20, n. 96, p. 279-309, maio/jun. 2012.

22 RASCOVSKI, Luiz. Investigação criminal defensiva: uma luz no fim do túnel com sua previsão no novo código de processo penal (projeto de lei 156/09). Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 18, n. 219, p. 14-15, 2011.

23 CHOUKR, Fauzi Hassan; AMBOS, Kai. Processo penal e Estado de Direito. Campinas: Edicamp, 2002. p. 221.

24 MACHADO, André Augusto Mendes. Op. cit. p. 102.

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A investigação criminal defensiva pode ser entendida como a possibilidade da defesa participar da fase pré-processual, a fim de defender-se provando.

Com a atuação da Defesa, mas não de uma defesa omissa, e sim efetiva, além de assegurar o direito do acusado a um processo justo, também promoverá maior qualidade na atuação da polícia judiciária, que muitas vezes afasta o modelo garantista do processo penal nessa fase preliminar. O que se nota é uma estrutura inquisitória, na qual a Polícia Judiciária primeiramente “decide” se o acusado é culpado, para depois buscar a prova necessária para a acusação, o que também pode acontecer com o juiz marcado pelo Complexo de Nicolas Marshall.25

Além disso, somente com a defesa técnica efetiva haverá um verdadeiro confronto da prova de acusação em Juízo, que é a finalidade precípua do chamado processo penal das partes.26

A palavra processo provém de pro caedere (andar adiante), pode-se inferir que o processo caminha sobre a ação do acusado e do defensor e, portanto, que a prova se construía, sobre “duas pernas”. Daí, como observa Baldan, ser inadmissível a figura do “saci pererê” processual (que faz o devido processo não caminhar, e sim claudicar, saltando sobre as garantias do imputado).27

Os dez mandamentos de Luigi Ferrajoli, na marca do garantismo, com o decálogo do garantismo penal – 1) Nenhuma pena sem crime; 2) Nenhum crime sem lei; 3) Nenhuma lei sem necessidade; 4) Nenhuma necessidade sem lesão; 5) Nenhuma lesão sem ação; 6) Nenhuma ação sem culpa; 7) Nenhuma culpa sem processo; 8) Nenhum processo sem acusação; 9) Nenhuma acusação sem prova; 10) Nenhuma prova sem defesa – nos fazem refletir sobre a importância da defesa na produção dos atos investigativos.28

Quanto ao valor probatório da atividade investigativa defensiva, o que se observa é que há preconceito, desconfiança na prova trazida pelo Defensor e isso precisa mudar, surgindo aqui o problema de valoração dos elementos de prova trazidos pela defesa. Baldan ressalta que “não se faz ciência com os olhos toldados pelo preconceito, já que advogado não é bandido jurídico, policial não é criminoso oficial, promotor não é querubim de ‘hollerith’ e juiz não é uma contemplativa Têmis”.29

25 ROSA, Alexandre Morais da. Retorno sedutor do complexo de Nicholas Marshall no processo penal brasileiro. Consultor Jurídico, 2 ago. 2014. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-ago-02/diario-classe-retorno-sedutor-complexo-nicholas-marshall-processo-penal>. Acesso em: 17 ago. 2016.

26 MALAN, Diogo Rudge. Op. cit. p. 284.27 BALDAN, Edson Luís. Op. cit. p. 261.28 Ibidem. p. 261.29 Ibidem. p. 261.

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Por isso, o material produzido pela Defesa na fase persecução prévia deverá ter idêntica natureza do material introduzido pela acusação ou pela polícia, não sendo crível ao julgador fazer qualquer distinção objetiva ou subjetiva entre esses materiais no momento da formação de sua convicção. Não deve ser como uma forçada prova documental em que há pré-concepções negativas à sua valoração, mas sim como devidamente regulamentado (quando isso acontecer, se acontecer!).30

Diogo Malan31 ressalva que muitas vezes os prazos processuais e/ou o clamor da opinião pública pressionam a Polícia Judiciária e o MP a encarar com presteza a fase investigação preliminar do crime, sendo que a pressão para solucionar o caso não permite que sejam adequadamente pesquisadas todas as possíveis linhas investigativas e fontes de prova favoráveis ao investigado. Eventuais fontes de prova favoráveis ao acusado tendem a desaparecer na fase judicial e, por isso, a investigação criminal defensiva deve ocorrer no bojo do caderno investigatório e não somente na instrução processual.

O mesmo autor, ao escrever sobre o tema, trouxe uma única pesquisa existente sobre a prática da investigação criminal defensiva no dia a dia do sistema brasileiro, que foi feita pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) em parceria com o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Essa pesquisa analisou todas as apelações interpostas por condenações por crime de roubo perante o extinto Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, no período compreendido entre 1º de janeiro de 2000 e 31 de dezembro de 2000.32 A pesquisa concluiu que só houve exercício de defesa técnica no que tange as peças processuais que são consideradas obrigatórias pela jurisprudência, sob pena de nulidade processual, como alegações finais e razões de apelação. Sobre outros aspectos, a pesquisa concluiu que:

• 97,69% não tiveram qualquer tipo de defesa ao ensejo da lavratura do auto de prisão em flagrante;

• 77% não tiveram requerimento de qualquer medida em favor da sua liberdade (pedido de relaxamento de flagrante, de liberdade provisória, de revogação de prisão preventiva ou de habeas corpus);

• 92,89% não tiveram acesso à defesa técnica logo após o oferecimento da denúncia;

30 SAMPAIO, Denis. Reflexões sobre a investigação criminal defensiva: possível renovação da influência italiana pós “Código Rocco” sobre a indagine difensive. In: MALAN, Diogo; MIRZA, Flávio (Org.). Advocacia criminal: direito de defesa, ética e prerrogativas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 114.

31 MALAN, Diogo Rudge. Op. cit. p. 284.32 Ibidem. p. 300.

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• 21,82% não contaram com a assistência de defensor por ocasião do interrogatório;

• 9,09% não tiveram alegações preliminares (art. 395 do CPP);

• 35,7% não tiveram pedido de diligências (art. 499 do CPP) e

• 98,84% não tiveram sustentação oral recursal.

Malan33 também sugere que o diagnóstico da efetividade da defesa técnica penal no país também se beneficiaria de pesquisa empírica semelhante, focada no cumprimento do dever ético da investigação criminal defensiva, que deveria ser direito fundamental assegurado a qualquer acusado e não privilégio de poucos que possuem condições financeiras. Explanando sobre o tema:

Tal pesquisa poderia indagar de determinada amostragem desses profissionais, por meio de formulários padronizados, se eles têm por hábito: (a) entrevistar pessoalmente com o acusado e seus familiares; (b) requerer cópia da íntegra dos elementos informativos amealhados pela Polícia Judiciária ou parte processual acusadora; (c) tentar localizar fontes de prova testemunhal defensiva; (d) pesquisar elementos de prova sobre os antecedentes sociais do ofendido e das testemunhas de acusação, a fim de contraditá-los; (e) visitar o local do crime; (f) efetuar pesquisas sobre os fatos imputados em bancos de dados, registros comerciais, repartições públicas, na imprensa e/ou na rede mundial de computadores; (g) solicitar pareceres técnicos a peritos particulares; (h) contratar investigadores particulares, (i) requerer em Juízo a produção de elementos probatórios etc.

Os benefícios da investigação defensiva na investigação, trazidos por Baldan34, são muitos e podem ser resumidos, como o autor o fez, em: a) aprimoramento da investigação policial como contraponto eficaz às provas produzidas pelo defensor, obrigando a Polícia Judiciária e o MP a buscarem contínuo aperfeiçoamento técnico-científico; b) criação (ou hipertrofia) de uma categoria profissional: os investigadores privados; c) estímulo ao culto das ciências afins ao Direito Penal, como Criminalística, Criminologia, Medicina Legal, com a consequente necessidade de adequação do ensino técnico e superior; d) redimensionamento da estatura jurídica do advogado (dentro e fora do processo), transmudando-o da condição de mero espectador inerme e inerte para a posição de ativo protagonista na formação da prova criminal; e) obrigação da motivação judicial na admissão da acusação, criando-se verdadeiro juízo de prelibação que arredaria a instauração da instância judicial quando insuficientes os elementos indiciários e de prova e f) maior proximidade do processo penal com a verdade “real” atingível pelo fortalecimento da prova

33 Ibidem. p. 300.34 BALDAN, Edson Luís. Op. cit. p. 261.

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criminal, com a consequente serenidade maior do Magistrado ao proferir seu decisium com ouvidos às razões produzidas por acusação e defesa em perfeita égualité des armes.

Não se pode confundir com investigação defensiva o que se tem no art. 14, do Código de Processo Penal, já que nesse dispositivo qualquer diligência requerida pela defesa pode ou não ser deferida pela Autoridade Policial, de acordo com sua conveniência. Logo, a defesa técnica efetiva na investigação preliminar não pode ser privilégio de poucos abastados35, devendo ser buscada cada vez mais no dia a dia forense.

2 INVESTIGAÇÃO CRIMINAL DEFENSIVA NO DIREITO ESTRANGEIRO

2.1 CENÁRIO DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL DEFENSIVA NO DIREITO ITALIANO

Modelo diferente nos oferece a Itália (onde se buscou a coerência entre a gestão probatória pelas partes e a paridade de armas)36 e não se sugere aqui a imitação desse modelo, mas sim a adoção do que pode dar certo no sistema pátrio, pois plagiar significa obviar as peculiaridades próprias, e aí, a primeira pedra do fracasso.37

Na Itália, após a superação do modelo inquisitivo e com as mudanças legislativas que ensejaram finalmente a Lei n. 397, de 7 de dezembro de 2000, houve a introdução de disposições específicas em matérias de investigação defensiva, com a atribuição ao advogado o direito-dever de – coadjuvado ou não por peritos, técnicos e investigadores privado – empreender inúmeras ações tendentes à produção de evidências probatórias favoráveis ao seu assistido, sendo-lhe possível:

• Promover o colóquio não documentado, consistente na entrevista pessoal e informal a potenciais testemunhas;

• Receber ou colher (sem a presença do imputado, da vítima ou de outas partes privadas) a declaração escrita de pessoas, com a cominação de crime de falso testemunho (excluídas as que, já ouvidas no inquérito ou processo, estão proibidas de depor perante o defensor);

35 MALAN, Diogo Rudge. Op. cit. p. 304.36 VILARES, Fernanda Regina. Investigação criminal: o projeto de código de processo penal e investigação

defensiva. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 22, n. 107, p. 309-336, abr. 2014.37 CHOUKR, Fauzi Hassan; AMBOS, Kai. Op. cit. p. 230.

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• Requerer laudos periciais ou, então, produzi-los através de assistentes técnicos;

• Efetuar vistoria em coisas ou inspecionar lugares públicos ou privados (exceto aqueles abrangidos pela expressão “casa”), em caso de dissenso do particular requerendo expedição de autorização judicial;

• Solicitar documentos em poder da Administração Pública, deles extraindo cópias;

• Formar o instrumento para documentação dessas atividades visando ao seu posterior encarte em qualquer estágio do inquérito ou processo.38

Salienta-se que a testemunha não é obrigada a prestar esclarecimentos ao advogado de defesa, mas uma vez prestando, terá o compromisso de dizer a verdade. Quanto à apresentação da documentação ao Juiz, o defensor deverá apresentá-la de maneira fiel, mesmo que eventuais trechos sejam desfavoráveis à defesa. Dessa forma, o advogado fica livre em apresentar ou não a mencionada documentação, mas uma vez escolhendo apresentar, deve retratar fielmente o resultado das entrevistas.39

Destaque se faz ao papel do advogado na investigação defensiva, pois evidenciada está a responsabilidade funcional, e a atuação dele na produção de prova defensiva torna-se um dever. Para Denis Sampaio40, a função do advogado não é a de esclarecer todos os fatos, mas sim a de buscar fontes e elementos de prova para o benefício do seu defendente. O autor conclui que há que haver uma mudança de difesa disposizione para uma difesa di movimento: defesa vigilante, atenta e eficiente. Uma defesa ativa na busca de melhores resultados defensivos e de contribuição efetiva na construção do conjunto probatório e consequentemente na formação do convencimento do julgador, sendo que o material trazido pela defesa terá o mesmo valor probatório do material apurado pela acusação.

Observa-se que, em contraponto, a indagini preliminar foi instituída a indagini difensive (investigação defensiva), prevista nos arts. 24, inc. II, da Constituição da República Italiana e no Título VI-bis (arts. 391-bos a 391-decies) do Código de Processo Penal.41 Isso não representa a total paridade entre a defesa e a acusação, mas, um grande avanço.

38 BOIANI, André; BALDAN, Edson Luiz. A preservação do devido processo legal pela investigação defensiva: ou do direito de defender-se provando. Revista Jus Navigandi, Teresina, v. 11, n. 1013, 10 abr. 2006. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/8220>. Acesso em: 21 jul. 2016.

39 VILARES, Fernanda Regina. Op. cit. p. 327.40 SAMPAIO, Denis. Op. cit. p. 104.41 SOUZA, Luiz Roberto Salles. Op. cit. p. 67.

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2.2 CENÁRIO DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL DEFENSIVA NO DIREITO NORTE-AMERICANO

No modelo norte-americano, a gestão da prova é incumbência das partes e não do juiz, vigorando o princípio da liberdade de provas, ou seja, o uso de determinado meio de prova em juízo não depende de previsão legal, basta que seja produzida e considerada apta a convencer o julgador. O verdadeiro senhor da investigação criminal é o MP e seu poder discricionário permite decidir sobre a submissão do caso à preliminar hearing e ao grand jury, para a confirmação da existência de uma probable cause, e também negociar com o investigado a troca de uma admissão de culpa por uma pena mais reduzida ou desqualificação do delito para tipos com sanções menos severas.42

A doutrina norte-americana prevê o acesso amplo e irrestrito aos elementos de convicção amealhados pela Polícia Judiciária ou parte acusadora, para que o defensor saiba quais são os fatos passíveis de investigação, pois há acusados que nada sabem sobre os fatos em apuração, por esquecimento, retardo mental, uso de drogas ou inocência.43 Fala-se muito em efetividade da defesa técnica, pois somente com ela haverá um duelo com igualdade entre as provas trazidas pela acusação e provas trazidas pela defesa.

Sobre o tema da investigação criminal defensiva, há as normas para a Justiça Criminal: função persecutória e defensiva que se trata do verdadeiro Código de Conduta Profissional e as normas sobre a Função Defensiva que contêm na Parte I alguns deveres genéricos do advogado criminalista, por exemplo, instituindo o dever do defensor técnico de propiciar representação efetiva e de qualidade ao acusado. Sobre a Norma 4-4.1, que dispõe sobre o dever de instigação, vale transcrever o inteiro teor da sobredita norma:

O advogado de defesa deve conduzir uma pronta investigação das circunstâncias do caso, e explorar todas as vias que levem a fatos relevantes para o julgamento mérito da causa e a aplicação da pena, no caso de condenação. A investigação deve incluir esforços para obter informação na posse acusadora e da Polícia Judiciária. O dever de investigar existe independentemente da confissão do acusado, ou de afirmações para o advogado de defesa sobre fatos que configuram culpa, ou a afirmação da intenção do acusado de se declarar culpado.

42 MACHADO, André Augusto Mendes. Op. cit. p. 126.43 MALAN, Diogo. Op. cit. p. 282.

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O Advogado de defesa não deve buscar adquirir a posse de elementos de prova pessoalmente ou por intermédio de um investigador quando seu único propósito for o de obstruir o acesso a essa prova.44

Sobre o assunto, concluiu André Mendes Machado que “a investigação defensiva é plenamente admissível nos Estados Unidos da América, até mesmo por ser consequência natural do regime jurídico adotado neste país” e mais ainda: “que atribui às partes a iniciativa investigatória e probatória. Os meios de prova obtidos na investigação defensiva podem ser utilizados na fase judicial, desde que expressamente admitidos pelo juiz na fase adjudicatória”45.

3 TENTATIVAS DE INSERÇÃO DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL DEFENSIVA NO BRASIL

3.1 O PROJETO DE LEI N. 8.045/2010

A problemática toda poderia tomar outro rumo com a inserção de regra (mesmo que um tanto principiante) autorizadora da investigação criminal pela defesa, prevista no art. 13 do Projeto de Lei n. 8.045/2010, com a seguinte redação:

Art. 13. E facultado ao investigado, por meio de seu advogado, de defensor público ou de outros mandatários com poderes expressos, tomar a iniciativa de identificar fontes de prova em favor de sua defesa, podendo inclusive entrevistar pessoas.§ 1º As entrevistas realizadas na forma do caput deste artigo deverão ser precedidas de esclarecimentos sobre seus objetivos e do consentimento formal das pessoas ouvidas.§ 2º A vítima não poderá ser interpelada para os fins da investigação defensiva, salvo se houver autorização do juiz de garantias, sempre resguardado o seu consentimento.§ 3º Na hipótese do §2º deste artigo, o juiz de garantias poderá, se for o caso, fixar condições para a realização da entrevista.§ 4º Os pedidos de entrevista deverão ser feitos com discrição e reserva necessárias, em dias úteis e com observância do horário comercial.§ 5º O material produzido poderá ser juntado aos autos de inquérito, a critério da autoridade policial. § 6º As pessoas mencionadas no caput deste artigo responderão civil, criminal e disciplinarmente pelos excessos cometidos.46

44 Ibidem. p. 291.45 MACHADO, André Augusto Mendes. Op. cit. p. 127.46 VILARES, Fernanda Regina. Op. cit. p. 329.

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O que parece ter sido inspirado no modelo italiano pois traz elementos desse modelo, mas de forma superficial; no entanto, com a indicação de ser uma introdução ao tema investigação preliminar realizada pela defesa, pode significar o início de uma mudança significativa no modelo investigatório, no qual o envolvido não é tratado mais como estranho e jamais deveria ter sido tratado assim, pois afastá-lo para obstar o direito de defesa quebranta a Constituição da República.47

O § 5º é um pouco duvidoso, pois o material produzido só será juntado aos autos de inquérito se a autoridade policial permitir.48 Assim, todo material produzido pela defesa deverá passar pelo crivo da autoridade policial, sem que sejam apontados critérios objetivos para que seja aceito ou não.

Muitos que já escreveram sobre o tema vislumbram a possibilidade do desenvolvimento da ideia de que o investigado possa a partir desse artigo defender-se provando na investigação preliminar. No entanto, o que não se debate é a demora de o Projeto de Lei ser aprovado no Congresso Nacional e uma vez não aprovado, como ficam todos essas discussões acerca das dificuldades que enfrentam os investigados? Por isso, o presente trabalho pretende encorajar os defensores – e não só eles, mas todos os envolvidos na investigação pré-processual – a praticarem e aceitarem a investigação defensiva.

Para André Augusto Mendes Machado, o inquérito policial por prestigiar o viés acusatório da investigação não atende a necessidade da defesa de obter informes favoráveis ao imputado e por isso, deve-se instituir procedimento detalhado, que estipule os principais aspectos formais e substanciais da atividade investigatória do defensor, em conformidade com as diretrizes constitucionais e pressupostos da eficiência e do garantismo.49

Mesmo não existindo qualquer limitação à livre investigação de fatos e informações por qualquer cidadão, essa atuação sempre esbarra em alguns óbices50, pois praticamente, sem exceção, a polícia é realmente a dona e senhora da investigação. Como disse Fauzi, redefinir estes papéis parece tarefa ingente, porém é necessário afrontá-lo e fazê-lo.51

Há que se derrubar a ideia de que uma investigação bem sucedida é somente aquela que enseja uma condenação, pois a colheita dos elementos no inquérito somente tem a função de sustentar ou não uma futura acusação pelo MP. Segundo Antonio Scarance

47 PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Op. cit. p. 116. 48 VILARES, Fernanda Regina. Op. cit. p. 330.49 MACHADO, André Augusto Mendes. Op. cit. p. 120.50 VILARES, Fernanda Regina. Op. cit. p. 281.51 CHOUKR, Fauzi Hassan; AMBOS, Kai. Op. cit. p. 210.

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Fernandes52, a utilização dos elementos colhidos durante esse período pré-processual não podem ir além de sua finalidade essencial: permitir acusação.

A polícia conta com agentes especializados para promover a persecução penal preliminar, enquanto que a Defesa não tem qualquer ajuda daquela, bem como a Defensoria Pública não está aparelhada para tanto e a vasta maioria da clientela do sistema penal depende de assistência judiciária que é precária. Além disso, não há nenhuma previsão de qualquer espécie de sanção nos casos em que o defensor técnico do acusado é omisso ou ineficiente.

No sentido de suprir tais obstáculos, dever-se-á começar pela necessidade de sedimentação no caldo cultural dos legisladores e operadores jurídicos brasileiros da ideia de que existe dever ético de investigar imposto ao defensor técnico, como parte integrante do seu dever de propiciar defesa penal efetiva, por meio de uma atuação profissional com capacitação técnica e empenho pessoal.53

3.2 A LEI N. 13.245, DE 12 DE JANEIRO DE 2016

A Lei n. 13.245/2016 contribuiu para a ampliação do espaço defensivo na fase pré-processual, mesmo que timidamente. Com a sua promulgação, alguns dispositivos do EOAB (Lei n. 8.906/1994) apresentaram mudanças, mas não perderam seu caráter inquisitório, pois primeiramente, conforme ensina Aury Lopes Jr., o que demarca o sistema inquisitório ou acusatório é a gestão da prova nas mãos de quem decide (acúmulo de funções) e na investigação preliminar incumbe ao delegado (ou ao MP) presidir o procedimento, praticar atos de investigação e também decidir nos limites legais. Delegado ou MP tomam decisões ao longo da investigação e ele mesmo realiza os atos de investigação, acumulando papéis.54

Estabelece o novel inciso XIV do art. 7º do EOAB que são direitos dos advogados:

Examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital.

A principal mudança que nos interessa deste inciso foi a substituição da expressão “qualquer repartição policial” por “qualquer instituição responsável por conduzir

52 FERNANDES, Antonio Scarance. Op. cit. p. 76.53 MALAN, Diogo. Op. cit. p. 298.54 LOPES JR., Aury. Lei 13.245/2016 não acabou com o caráter “inquisitório” da investigação. Consultor

Jurídico, São Paulo, 29 jan. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-jan-29/limite-penal-lei-132452016-nao-acabou-carater-carater-inquisitorio-investigacao>. Acesso em: 29 jan. 2016.

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investigação”, ampliando assim o acesso a qualquer procedimento investigatório de qualquer natureza. Isso resultou no alargamento do acesso aos atos do caderno investigativo em procedimentos conduzidos pelo MP, Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), entre outros, no entanto, essa previsão já existia na Lei Orgânica da Defensoria Pública (Lei Complementar n. 80/94).

E importante frisar que, segundo o Supremo Tribunal Federal (STF), não há direito de vista se o peticionante não for investigado55. Aditou-se também o art. 7º, § 11º, prevendo que a:

[...] autoridade competente poderá delimitar o acesso do advogado aos elementos de prova relacionados a diligências em andamento e ainda não documentados nos autos, quando houver risco de comprometimento da eficiência, da eficácia ou da finalidade das diligências.

Essa disposição não pode trazer limitação ao exercício do direito de defesa, sendo que o acesso só não poderá ser dado quando houver risco efetivo (e sério) de comprometimento da eficácia ou da finalidade das diligências. O resto poderá ser considerado abuso de poder, podendo a parte se valer de Habeas Corpus ou Reclamação Constitucional, com a responsabilização funcional e criminal da autoridade que prejudicar o exercício da defesa.56

Vale lembrar que em se tratando de investigação referente a organizações criminosas, o acesso do advogado aos atos do caderno investigatório dependerá de autorização judicial, se foi decretado o sigilo do caderno investigatório.

Há duas correntes quanto à natureza da investigação preliminar57, a que mencionado procedimento está sujeito ao contraditório diferido e ampla defesa, argumenta que o art. 5º, inc. LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”; não pode ser objeto de interpretação restritiva, como já falado neste trabalho, pois quando a Constituição Federal menciona processo, também quer abarcar o procedimento administrativo, como o inquérito policial ou outro procedimento investigatório. Quanto à

55 CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de; COSTA, Adriano Souza. Consultor Jurídico, São Paulo, 14 jan. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-jan-14/advogado-importante-inquerito-policial-nao-obrigatorio>. Acesso em: 25 jan. 2016. STF, Rcl 9.789, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ 18/08/2010.

56 MOREIRA, Rômulo de Andrade; ROSA, Alexandre Morais da. Lei Nova 13.245/16: saiba quando, onde e como o advogado deve ter vista da investigação preliminar. Empório do Direito, 13 jan. 2016. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/lei-nova-13-24516-saiba-quando-onde-e-como-o-advogado-deve-ter-vista-da-investigacao-preliminar-por-romulo-de-andrade-moreira-e-alexandre-morais-da-rosa>. Acesso em: 26 jan. 2016.

57 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 4. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 190.

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expressão “acusados em geral”, também não são apenas aqueles já denunciados, devendo ser lida como imputados, investigados, suspeitos, indiciados.

A corrente que entende que a investigação preliminar é procedimento inquisitorial (e assim deve continuar sendo) preconiza que, como dele não resulta sanção, o procedimento é meramente preparatório, instrumental, e a investigação está concentrada na discricionariedade da autoridade sob pena de esvaziamento da eficácia da instrução prévia.

No entanto, o ponto nevrálgico das discussões sobre mencionada lei diz respeito à inovação trazida no inciso XXI, do art. 7º: a previsão do direito do advogado de assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do interrogatório ou depoimento, bem como de todos os elementos investigatórios, podendo, inclusive, apresentar razões e quesitos (foi vetada a parte final que trazia a possibilidade de o advogado requerer diligências à autoridade investigativa).

Apesar de o atual presidente nacional da OAB, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, considerar a medida uma vitória para a categoria, concluindo que:

O fato de ter o advogado no inquérito evita equívocos, principalmente, na fase de indiciamento de pessoas. O inquérito não é apenas uma peça informativa para o Ministério Público ou a instituição policial. Quando ele é mal construído, ofende frontalmente a imagem e a honra do cidadão. A aprovação reitera a essencialidade do advogado à defesa dos interesses das pessoas e à administração da Justiça.58

Deve ser levado em conta que a mudança não se deu no Código de Processo Penal e por isso não se pode concluir que a presença do advogado é obrigatória sob pena de nulidade.

Segundo Aury Lopes Jr., se vingar a interpretação de presença obrigatória do advogado no interrogatório sob pena de nulidade, realmente ter-se-ia uma mudança relevante, mas que irá gerar muita resistência, especialmente diante da impossibilidade de a defensoria pública dar conta da demanda (pela falta de defensores públicos no momento) e também porque poderá criar um grande obstáculo para a atuação policial nessas situações em que não há defensor constituído presente.59

No tocante à obrigatoriedade do advogado em todas as oitivas de testemunhas e demais atos da investigação, o mesmo autor entende que seria uma interpretação

58 GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Senado aprova obrigatoriedade do advogado no inquérito. Gen Jurídico, São Paulo, 16 dez. 2015. Disponível em:<http://genjuridico.com.br/2015/12/16/senado-aprova-obrigatoriedade-do-advogado-no-inquerito>. Acesso em: 26 jan. 2016.

59 LOPES JR., Aury. Op. cit.

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excessivamente elástica e incompatível com a própria natureza da investigação e que a lei assegura apenas a prerrogativa do advogado de assistir ao cliente em sua oitiva e em momento algum determina que a presença do advogado é imprescindível na oitiva de todas as testemunhas e vítima(s). Ressalta também que isso poderia resultar na duplicidade de instruções, com o perigo de transformar o que é ato de investigação em ato de prova, sem a garantia da ampla defesa, pleno contraditório, publicidade.

Nesse ponto, ousa-se discordar do renomado processualista, pois embora os elementos colhidos no inquérito não sejam considerados provas e não devem se dirigir à sentença, o que se observa é justamente o contrário, por isso, é preferível ocorrer a uma dupla instrução com a observância do contraditório em ambas as fases (instrução prévia e instrução processual) a ceifar o direito do acusado à efetiva defesa na investigação, pois se está a tratar constantemente da liberdade de um sujeito, mas é óbvio que a dupla instrução não é a solução mais adequada.

A nulidade absoluta apresentada se dá pelo fato de que o defensor é condição à validade do ato e sua ausência contamina, ex vi legis, a sua formação. Uma vez reconhecida a imprestabilidade dos atos investigatórios (e dos eventuais atos de prova) produzidos na fase investigatória, evidentemente que faltará justa causa para o MP oferecer denúncia (se for oferecida, deverá ser rejeitada om base no art. 395, inciso III do Código de Processo Penal e se for recebida, o processo deve ser trancado via Habeas Corpus).60

Quanto à apresentação de razões e quesitos, o advogado tem a possibilidade de participar mais efetivamente das apurações, fazendo questionamento ou expondo razões para a autoridade que preside a investigação, pois agora pode intervir nesse sentido. Razões pode-se entender como petição apresentada à autoridade, por exemplo, apontando elementos a justificar um desindiciamento; quesitos alguns limitam à indagações feitas ao perito, mas também pode-se interpretar como questionamentos dirigidos às testemunhas.

A alínea b do inciso XXI foi vetada. Ela trazia a possibilidade da defesa requisitar diligências no curso da investigação. Segundo o Ministério da Justiça, “da forma como redigido, o dispositivo poderia levar à interpretação equivocada de que a requisição a que faz referência seria mandatória, resultando em embaraços no âmbito de investigações e consequentes prejuízos à administração da justiça”. No entanto, há a previsão no art. 14 do Código de Processo Penal de que o ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade, razão pela qual não se acompanha o veto presidencial.

60 MOREIRA, Rômulo de Andrade; ROSA, Alexandre Morais da. Op. cit.

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Tal juízo não deve ser mais um puro poder discricionário da autoridade policial, ditado por critérios de conveniência e oportunidade do êxito da sua investigação, pois devem ser observados: o interesse público na apuração do crime e a garantia individual da dignidade da pessoa humana, da isonomia, do devido processo legal. Assim, o único “juízo” possível, segundo Baldan,61 consiste na aferição pelo Delegado de Polícia, quanto à legalidade da prova indicada pela pessoa investigada e só será passível de vedação no caso de ilegalidade (ilicitude ou ilegitimidade).

Certamente que a solicitação de diligências não pode ser um instrumento protelatório e, por isso, caberá à autoridade decidir sobre esse sentido, sem prejudicar o direito de defesa.

Leonardo Marcondes Machado62 reconhece que, com a edição da lei em questão, a defesa ganhou novos mecanismos formais de atuação, e pode funcionar como importante instrumento de resistência a eventuais manobras fraudulentas durante o pré-jogo processual, pois entende que não só o processo penal pode ser estudado como a teoria dos jogos, mas também a investigação preliminar. A persecução prévia, em muitos casos, é o verdadeiro local do resultado e o placar (antecipado) tem sido constantemente definido na investigação.

Aury Lopes Jr. conclui que a nova lei não é a revolução copérnica da investigação, tampouco acaba com seu caráter inquisitório ou institui o contraditório pleno. No entanto salienta que contribui para a ampliação do espaço defensivo na fase pré-processual, mesmo que timidamente, mas ainda está muito longe de resolver os graves problemas da investigação preliminar.63

Portanto, tem-se com a nova lei uma ampliação tímida do direito dos advogados nas investigações, no entanto, qualquer mudança que direcione para o amadurecimento da investigação criminal defensiva é válida, a fim de que a garantia do direito de defesa dos investigados não seja violada.

61 BALDAN, Edson Luís. Op. cit. p. 266.62 MACHADO, Leonardo Marcondes. O amadorismo na investigação cobra seu preço no jogo processual.

Consultor Jurídico, São Paulo, 26 jan. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-jan-26/academia-policia-amadorismo-investigacao-cobra-preco-jogo-processual>. Acesso em: 2 mar. 2016.

63 LOPES JR., Aury. Op. cit.

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CONCLUSÃO

Com os argumentos expostos, conclui-se que já passou da hora de o inquérito policial, bem como outros meios de investigação, como a presidida pelo MP, serem reformados, a fim de possibilitar a efetiva participação do imputado na persecução penal prévia. Com essa participação, haveria uma maior paridade de armas entre acusação e imputado.

No entanto, a investigação defensiva produzida pelo imputado na instrução prévia não pode se tornar privilégio de poucos acusados que possuem condições de arcar financeiramente com defesa técnica especializada e sim, deve se tornar um direito fundamental assegurado a qualquer cidadão.

Quanto à discussão da aplicação do contraditório, conclui-se que mesmo que não seja possível um contraditório pleno na investigação, sob pena de frustrar a eficácia desta, é forçoso admitir que é necessário um contraditório mínimo, e mesmo sendo mínimo, não afastaria uma participação mais efetiva do imputado. Repita-se, necessário sim é a investigação preliminar sob o crivo do contraditório, o inquérito policial não se trata de peça meramente informativa.

Embora exista o Projeto de Lei n. 8.045/2010, que introduz timidamente o tema investigação criminal defensiva, esse projeto ainda não foi aprovado. No tocante à Lei n. 13.245/2016 que alterou o EOAB, trazendo algumas mudanças positivas sobre o tema, também não foram alterações que ensejarão na efetiva reforma que o tema demanda.

Acredita-se que existam tentativas de inserção da investigação defensiva no Brasil e, em que pese não serem inovações legislativas que representam grandes mudanças, propõe-se, neste estudo, que operadores do Direito, como advogados, juízes, promotores e policiais, passem a admitir o direito do imputado à defesa na investigação prévia.

Conforme a conclusão brilhante de Baldan: “Por isso, façamos de nossos gabinetes e escritórios a trincheira da legalidade investigatória... não somos escravos do que é legal e sim discípulos do que é justo... a lei, ora a lei... abandonemos a lei, busquemos a Justiça...”64.

64 BALDAN, Edson Luís. Op. Cit.

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A VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE FRENTE À INDETERMINAÇÃO TEMPORAL DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA

THE VIOLATION OF THE PRINCIPLE OF LEGALITY FRONT OF THE TEMPORARY INDETERMINACIÓN OF THE SECURITY MEASURES

Jaiza Sâmmara de Araújo Alves1

RESUMO

Este artigo tem por finalidade tratar sobre a possibilidade de violação do princípio da legalidade em virtude da aplicação de medidas de segurança por prazo indeterminado. Durante o estudo, foram abordadas considerações gerais sobre o princípio da legalidade e também sobre as medidas de segurança, buscando uma análise crítica e fazendo referências à bibliografia sobre o assunto. Ademais, também foram expostas as normas sobre as medidas de segurança no Brasil e na Argentina, a fim de compreender como os dois países tratam legalmente este tipo de sanção penal.

Palavras chave: Princípio da Legalidade. Medidas de Segurança. Prazo Indeterminado.

ABSTRACT

This article aims to discuss the possibility of violation of the principle of legality under the application of security measures for an indefinite period. During the study, they were addressed general considerations concerning the principle of legality and on the security measures, seeking a critical analysis, making references to the literature on the subject. Moreover, they were also exposed the rules on security measures in Brazil and Argentina in order to understand how the two countries legally treat this type of criminal sanction.

Keywords: Principle of Legality. Security Measures. Indefinite Period.

1 Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UNISEB/PRAETORIUM e em Direito Empresarial pela Universidade Regional do Cariri (URCA). Especialista em Psicologia Jurídica pela Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina (FACAPE). Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires (UBA). Professora da disciplina de Direito Penal II da FACAPE. Coordenadora do Núcleo de Práticas Jurídicas da FACAPE. Advogada. E-mail: [email protected]

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INTRODUÇÃO

O princípio da legalidade serve como instrumento de limitação do poder estatal, representando uma forma de proteção dos cidadãos contra a aplicação de leis incertas ou que possam retroagir com a finalidade de prejudicar os indivíduos. Ademais, a lei somente poderá alcançar determinados fatos se ela é anterior à prática da conduta delitiva, havendo a proibição de leis penais retroativas mais severas.

Do princípio da legalidade resultam proibições; dentre elas está a proibição de leis penais indeterminadas ou imprecisas, que seriam a expressão da não limitação do poder punitivo estatal, que poderá causar arbitrariedades.

As medidas de segurança são, a princípio, sanções penais aplicadas às pessoas que cometeram condutas tipificadas em lei e contrárias ao ordenamento jurídico-penal. No entanto, não são consideradas culpáveis. Assim, ao contrário das penas, o fundamento das medidas de segurança não é a culpabilidade, mas a periculosidade do agente, sendo esta presumida, nos casos de inimputabilidade, e real, nos casos de semi-imputabilidade. Tais sanções penais foram criadas pela Escola Positivista e pelo seu ideal cientificista.

Segundo Ferrajoli:

El mayor impulso a la introducción de las medidas de seguridad en nuestro ordenamiento, o cuando menos a su legitimación ideológica, fue, sin duda, el dado por la Escuela positiva o antropológica del derecho penal, que, como ya hemos visto, sustituyó la responsabilidad por la peligrosidad y consideró al delito como síntoma. de patología psicosomática, que, en cuanto tal, debe ser tratado y prevenido, más que reprimido, con medidas pedagógicas y terapéuticas dirigidas a neutralizar su etiología2.

Tanto no Brasil como na Argentina há a aplicação das medidas de segurança como meio de prevenção especial negativa, que possui a finalidade de neutralizar ou eliminar o indivíduo da sociedade, fazendo com que não volte a delinquir. Contudo, nos dois países, as medidas de segurança não possuem um prazo legalmente estabelecido, fazendo com que a pessoa que esteja submissa a elas permaneça detida por tempo indeterminado, enquanto durar a sua periculosidade, ocorrendo, assim, a possibilidade de sanção perpétua.

2 “O maior impulso à introdução das medidas de segurança em nosso ordenamento, ou quando menos a sua legitimação ideológica, foi, sem dúvida, dado pela Escola Positivista ou antropológica de direito penal, que, como já vimos, substituiu a responsabilidade pela periculosidade e considerou o delito como sintoma de patologia psicosomática, que, enquanto tal, deve ser tratado e prevenido, mais que reprimido, com medidas pedagógicas e terapêuticas dirigidas a neutralizar sua etiologia” (tradução nossa). FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoría del garantismo penal. Trad. Perfecto Andrés Ibañez. Madrid: Trotta, 1995. p. 776.

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Com tal situação, ocorre a contradição entre o direito e a moral, posto que não se pode dizer ser moral deixar uma pessoa encarcerada por tempo indeterminado, baseando-se na justificação de que é perigosa. Ademais, toda pessoa que está no cárcere tem o direito de saber quanto tempo permanecerá detida, pois caso contrário, poderia estar sendo violada sua dignidade de pessoa humana. Assim, a lei, quando não faz uma previsão de duração das medidas de segurança, está violando a legalidade das sanções penais, e, por consequência, o princípio da dignidade da pessoa humana.

Dessa forma, no presente artigo, será feita uma análise das medidas de segurança sob o ponto de vista do princípio da legalidade, posto que, sendo aquelas aplicadas por um prazo indeterminado, pode ocorrer a violação da formulação legal “nulla poena sine lege”, proposta por Feuerbach.

1 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Um Estado de Direito deve utilizar o Direito penal como forma de proteger o cidadão. No entanto, tal Estado deverá proteger este mesmo cidadão do próprio Direito penal, impondo limites, com a finalidade de que ele não se torne um instrumento arbitrário nas mãos de um poder autoritário3. Para tanto, podem ser utilizados os princípios da culpabilidade e da proporcionalidade das penas, mas deve ser levado em consideração, principalmente, o princípio da legalidade, para que se evite punir uma pessoa sem lhe dar uma devida segurança.

Segundo o princípio da legalidade, uma conduta somente poderá ser punida se, anteriormente à sua prática, houver uma lei definindo esta conduta como infração penal. Para Roxin, “es decir, por mucho que una conducta sea en alto grado socialmente nociva y reveladora de necesidad de pena, el Estado solo podrá tomarla como motivo de sancionar jurídico penales si antes lo ha advertido expresamente en la ley”4. No mesmo sentido, Zaffaroni: “El princípio de legalidad implica la prohibición de la ley post facto”5. Assim, qualquer pessoa, honrada ou não, somente poderá ser punida se a sua conduta estiver tipificada em lei como infração penal, sendo a lei anterior à prática da conduta do agente.

3 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Tomo I. Fundamentos. Estructura de la teoría del delito. Trad. Diego Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. p. 137.

4 “é afirmar veementemente que sendo uma conduta em alto grau socialmente nociva y reveladora de necessidade de pena, o Estado somente poderá tomá-la como motivo de sancionar jurídico penalmente se antes tiver advertido expressamente na lei” (tradução nossa). Ibidem.

5 “O princípio da legalidade implica a proibição da lei post facto” (tradução nossa). ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Tratado de derecho penal: parte general. 4. ed. Buenos Aires: Ediar, 1985. p. 107.

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A questão é que, com o princípio da legalidade, ocorre uma delimitação das condutas descritas como criminosas, de forma que alguém poderá praticar uma conduta nociva, mas não sofrerá uma punição, posto que aquela não está descrita em lei. Assim, o princípio da legalidade funciona como um instrumento para impedir as arbitrariedades. No entanto, como restringe o rol de infrações penais àquelas tipificadas em algum diploma legal, faz com que certas condutas nocivas, que não tiveram tipificação, deixem de ser punidas, por não haver uma lei que as defina como crimes.

Ocorre que não somente os crimes, mas também as penas devem estar descritas em leis anteriores à prática delitiva como forma de dar maior segurança ao sujeito do delito. Ademais, para o mesmo fato, não poderá ser aplicada uma lei penal mais severa que tenha surgido posteriormente à sua prática. Portanto, é proibida a agravação retroativa da pena.

Do princípio da legalidade derivam proibições: a proibição do uso da analogia; a proibição do direito consuetudinário para fundamentar ou agravar a pena; a proibição da retroatividade e a proibição de leis penais indeterminadas ou imprecisas. As duas primeiras proibições são destinadas ao juiz, enquanto as duas últimas são destinadas aos legisladores.

Para Roxin, a analogia consiste em “trasladar una regla jurídica a otro caso no regulado en la ley por la vía del argumento de la semejanza (de los casos)”6. Dessa forma, ainda que em outros campos do direito haja usualmente a utilização da analogia, no Direito Penal não é utilizada a analogia em malan partem como meio de proteger o réu, impedindo que ele seja prejudicado e punido por uma conduta que não esteja fixada em lei. A proibição com relação ao uso do direito consuetudinário ocorre porque os costumes não bastam para fundamentar ou agravar uma pena. Isso somente pode ocorrer por meio de uma determinação legal.

A retroatividade de uma lei penal somente pode ocorrer em benefício do réu. Desse modo, é vedada a retroatividade de leis que venham a criar tipos penais ou agravar sanções, com a finalidade de alcançar os fatos que ocorreram antes da sua vigência. Assim como a retroatividade, também ao legislador está dirigida a proibição de leis penais e penas indeterminadas, “ya que quedarian sin determinar legalmente que pena y que cuantía se puede imponer”7, gerando, obviamente, arbítrios. Portanto, por mais que seja uma tarefa difícil para o legislador tipificar em leis todos os feitos que sejam considerados infrações penais, ao juiz caberá somente interpretar a lei de acordo com aquilo que se apreenda das palavras do legislador. Assim, “lo que no está prescrito, no rige”8, estando o juiz vinculado à lei.

6 “transportar uma regra jurídica a outro caso não regulado na lei por via do argumento da semelhança (dos casos)” (tradução nossa). ROXIN, Claus. Derecho penal… Op. cit. p. 140.

7 “já que ficariam sem determinar que pena e qual quantidade se pode impor” (tradução nossa). Ibidem. p. 141.8 “o que não está prescrito, não rege” (tradução nossa). Ibidem.

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Uma lei imprecisa não pode proteger da arbitrariedade os indivíduos, posto que o jus puniendi estatal não estará limitado. Por exemplo, se uma lei define um determinado crime, porém não prescreve sua sanção penal, caberá ao juiz criar esta sanção para que seja aplicada a um caso concreto. No entanto, uma lei como esta viola o princípio da separação dos poderes, pois os juízes passarão a legislar, criando sanções, tarefa que pertence ao legislador. Dessa forma, as penas indeterminadas geram a insegurança jurídica, algo que pode convertê-las em inconstitucional. Segundo Radbruch, “de ninguna manera es derecho todo lo que al pueblo aprovecha, en último análisis, solo lo que es derecho, lo que crea seguridad jurídica y lo que aspira a ser justicia”9.

Ressalte-se que o princípio da legalidade formal no âmbito penal foi organizado por Feurbach, com a formulação latina: nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege, nullum crimen sine poena legal.

Segundo Welzel (citado por Roxin), “el auténtico peligro que amenaza al princípio nulla poena sine lege no procede de la analogía, sino de las leyes penales indeterminadas”10. Dessa forma, um preceito legal será suficientemente preciso e determinado na medida em que possa ser deduzida a intenção de proteção do legislador e que o sentido literal da lei ponha limites à extensão arbitrária de interpretação.

O princípio da legalidade é complementado pelo princípio da reserva legal. Segundo Zaffaroni, eles “constituyen dos manifestaciones de la misma garantía de legalidad, que responde a un único requerimiento de racionalidad en el ejercicio de poder, emergente del princípio republicano de gobierno”11. O mesmo autor ainda afirma que, do ponto de vista formal,

la única fuente productora de la ley penal en el sistema argentino son los órganos constitucionalmente habilitados y la única ley penal es la ley formal de ellos emanada, conforme el procedimiento que establece la propia Constitución12.

9 “de nenhuma maneira é direito tudo o que ao povo aproveita, em última análise, somente o que é direito, o que cria segurança jurídica e o que aspira a ser justiça” (tradução nossa). RADBRUCH, Gustave. Arbitrariedad legal y derecho supralegal. Trad. Maria Isabel Azareto de Vasquez. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1962. p. 51.

10 “o autêntico perigo que ameaça o princípio nulla poena sine lege não procede da analogia, mas de leies penais indeterminadas” (tradução nossa). ROXIN, Claus. Derecho penal… Op. cit. p. 170.

11 “constituem duas manifestações da mesma garantía de legalidade, que responde a um único requerimento de racionalidade no exercício de poder, emergente do princípio republicano de governo” (tradução nossa). ZAFFARONI, Eugênio Raul. Derecho penal: parte general. Op. cit. p.107.

12 “A única fonte produtora da lei penal no sistema argentino são os órgãos constitucionalmente habilitados e a única lei penal é formal que deles emana, conforme o procedimento que estabelece a própria Constituição” (tradução nossa). Ibidem.

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Dessa forma, a doutrina, a jurisprudência e os costumes não podem habilitar o poder punitivo. No entanto, no caso dos costumes, há a possibilidade de serem utilizados quando as leis permitirem, sendo considerados limites da tipicidade penal. Porém, não podem ser utilizados para a arbitrariedade.

2 MEDIDAS DE SEGURANÇA

As medidas de segurança são sanções penais impostas às pessoas consideradas perigosas que, apesar de cometerem crimes, não são consideradas culpáveis13. Assim, estas pessoas são consideradas inimputáveis, e como consequência, não virão a receber uma pena, mas uma medida que tem como finalidade a prevenção da prática de novos delitos.

Tal como as penas, as medidas de segurança surgiram como forma de controle social, posto que, perante sociedades organizadas, o Estado deveria exercer um maior controle sobre os seus súditos, para isso foram criadas as primeiras leis que impuseram meios para castigar, e também para evitar a prática de outros crimes. No caso das medidas de segurança, por muito tempo foram utilizadas como alternativa à pena, ou seja, quando a aplicação da pena fosse insuficiente para prevenir a prática criminosa.

Para Guillermo Hassel:

El fundamento es el adecuado equilibrio entre los intereses de protección estatales del justiciable, en ocasiones que la peligrosidad de un sujeto puede ser en particular tan grande para la colectividad, que la pena resulte insuficiente14.

Na Idade Média, os inimputáveis não eram responsabilizados pelos seus atos e deveriam ficar sob à proteção da sua família, sendo esta responsabilizada por negligência caso o imputável voltasse a delinquir.

Segundo Rui Alvin:

De modo sistemático e desprovido de qualquer embasamento teórico, senão o espírito prático de uma necessidade imediata, começavam a assentar-se na

13 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 524.14 “O fundamento é o adequado equilíbrio entre os interesses de proteção estatal do justiciável, em ocasiões

em que a periculosidade de um sujeito pode ser em particular tão grande para a coletividade, que a pena resulte insuficiente” (tradução nossa). HASSEL, Guillermo Eduardo German. Las Medidas de seguridad. Buenos Aires , 200-. Disponível em: <http://www.monografias.com/trabajos44/derecho-penal-seguridad/derecho-penal-seguridad2.shtml#ixzz3WXw2eu35>. Acesso em: 27 mar. 2015.

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história do direito penal os rudimentos das futuras medidas de segurança: a custódia compulsória dos agentes penalmente irresponsáveis e dos penalmente renitentes15.

Ocorre que, as medidas de segurança, na forma como estão disciplinadas hoje, são um instituto recente. No entanto, suas bases surgiram há muito tempo, entre os séculos XVIII e XIX, quando houve a percepção da falência das penas privativas de liberdade. Ou seja, a função retribucionista das penas, tão defendida por Kant e Hegel, foi muito criticada e a partir desse momento – as penas passaram a ser analisadas sob a perspectiva da prevenção. No entanto, o que fundamenta as medidas de segurança não é a prevenção geral que é dirigida à sociedade, seja em seu âmbito negativo-intimidador ou positivo-integrador, mas a perspectiva da prevenção especial negativa, que tem a finalidade de neutralizar ou eliminar o indivíduo da sociedade para que ele não volte a praticar outros delitos na mesma sociedade.

Com o surgimento da Escola Antropológica, houve um confronto entre os juristas e os médicos/antropólogos, posto que, enquanto as ideias daqueles eram fundamentadas no livre-arbítrio, as ideias destes tinham como base o determinismo do comportamento humano (figura do criminoso nato). Inclusive, esta ideia contestou bastante vários institutos importantes do Direito penal, como a gravidade do delito para basear a quantidade de pena a ser aplicada; a obrigatoriedade da lei anterior para definir as condutas criminosas e as sanções; bem como a própria prática do crime como pressuposto à aplicação de uma sanção penal.

Segundo Lira e Moura-Fé:

Isso porque os discípulos de Lombroso afirmavam que com a simples detectação de tendência do criminoso nato, este já poderia ser submetido a uma sanção, visando, desta forma, o resguardo da sociedade. Sendo o criminoso uma forma humana não evoluída, não seria este um digno detentor de direitos inerentes à pessoa.16

Complementando a ideias das autoras, estão as palavras de Von Liszt (citado por Zysman Quirós):

La sociedad ha de protegerse frente a los sujetos incorregibles. Sin embargo, si nosotros no queremos decapitar ni ahorcar, y no podemos deportar, únicamente nos queda la cadena perpetua (o, en su caso, por un tiempo indeterminado)17.

15 ALVIN, Rui Carlos Machado. Uma pequena história das medidas de segurança. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2007. p. 83.

16 FE, Bruna Maria Pinto Marques de Moura; LIRA, Nathália Maria Lins. Medidas de Segurança: evolução, reforma psiquiátrica e Lei n. 10.216/2001. Revista Jus Navigandi, Teresina, v. 17, n. 3262, 6 jun. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/21941/medida-de-seguranca-evolucao-reforma-psiquiatrica-e-lei-n-10-216-2001#ixzz3WYGjVI5z>. Acesso em: 27 mar. 2015.

17 “A sociedade tem que se proteger diante dos sujeitos incorrigíveis. No entanto, se nós não queremos decapitar nem enforcar, e não podemos deportar, unicamente nos resta a prisão perpétua (ou, em seu

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3 AS MEDIDAS DE SEGURANÇA NO BRASIL

No Brasil, as medidas de segurança estão disciplinadas no Código Penal e na Lei de Execuções Penais – Lei n. 7.210/84. E importante ressaltar que quando o Código Penal de 1940, ainda vigente, entrou em vigor, era adotado o sistema do duplo binário, em que eram aplicadas medidas de segurança aos inimputáveis; e aos imputáveis considerados perigosos e aos semi-imputáveis, eram aplicadas penas privativas de liberdade cumulativamente às medidas de segurança. Para César Roberto Bitencourt, tal aplicação era feita de forma incorreta posto que “por mais que se diga que o fundamento e os fins de uma e de outra são distintos, na realidade, é o mesmo indivíduo que suporta as duas consequências pelo mesmo fato praticado”18. Dessa maneira, com a reforma da parte geral do Código Penal brasileiro, ocorrida em 1984, pela Lei n. 7.209, o sistema do duplo binário foi substituído pelo sistema vicariante ou unitário, de modo que as medidas de segurança são aplicadas somente aos inimputáveis, enquanto as penas são aplicadas aos imputáveis (independentemente de serem considerados perigosos ou não). Frise-se que as penas serão também aplicadas aos semi-imputáveis, porém com uma redução de 1/3 a 2/3. Entretanto, ainda no caso dos semi-imputáveis, caso o juiz ao analisar o caso concreto observe que o semi-imputável necessita de tratamento psiquiátrico e/ou psicológico, poderá substituir a pena reduzida por uma medida de segurança.

Os princípios que regem as medidas de segurança no Brasil são os mesmos que regem as penas: princípio da legalidade, princípio da anterioridade; princípio da retroatividade; e também o princípio da dignidade da pessoa humana, em que a medida de segurança deve obedecer à condição humana da pessoa submetida a ela, não causando danos ou tratamentos cruéis e/ou degradantes.

E importante ressaltar que as medidas de segurança estão fundamentadas na periculosidade do agente, ou seja, pressupõem, segundo Guillermo Hassel, “una peligrosidad duradera del autor”19.

A periculosidade, segundo Cléber Masson, “é a efetiva probabilidade, relativa ao responsável por uma infração penal, inimputável ou semi-imputável, de voltar a envolver-se

caso, por um tempo indeterminado)” (tradução nossa). ZYSMAN QUIRÓS, Diego. Sociología del castigo: genealogía de la determinación de la pena. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Didot, 2013.

18 BITENCOURT, César Roberto. Tratado de direito penal. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 942.19 “uma periculosidade duradoura do autor” (tradução nossa). HASSEL, Guillermo Eduardo German. Las

Medidas de Seguridad… Op. cit.

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em crimes ou contravenções penais”20. Dessa forma, a periculosidade é a possibilidade de voltar a delinquir. Trata-se, portanto, de um dos pressupostos das medidas de segurança, posto que somente podem ser aplicadas, no direito brasileiro, caso o agente inimputável pratique um crime e tenha a probabilidade de voltar a delinquir.

Assim, o inimputável demonstra uma periculosidade presumida (presunção juri et de iures), que não admite prova em contrário, sendo, portanto, absoluta. Já o semi-imputável, demonstra uma periculosidade real (presunção juris tantum), que deverá ser analisada de acordo com o caso concreto, sendo assim, relativa.

O Código Penal brasileiro21, em seu art. 9622, lista as espécies de medidas de segurança. São elas a internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico e o tratamento ambulatorial.

Dispõe o Código Penal, em seu art. 97, que a internação deverá ser aplicada obrigatoriamente, todas as vezes em que a conduta criminosa praticada pelo agente for apenada com reclusão. Já se o crime praticado for apenado com detenção, o juiz tem a discricionariedade de aplicar ao agente a internação ou o tratamento ambulatorial. Para Guilherme Nucci, “a determinação do art. 97 do Código Penal é injusta, pois apesar de estabelecer um padrão às sanções, não resolve a situação de doentes mentais que poderiam não ser internados”23. Na prática, a sanção deveria ser estabelecida de acordo com a periculosidade do agente, respeitando o princípio da proporcionalidade, não se baseando somente pela pena em abstrato do crime que o agente praticou.24

Outro ponto a ser destacado é que as medidas de segurança possuem prazo indeterminado legalmente, diferentemente das penas que possuem prazo determinado abstratamente na lei. Inclusive, aquelas terão duração enquanto não ocorrer uma melhora no estado mental do inimputável. Dessa forma, o agente poderá permanecer internado perpetuamente, posto que, se a sua enfermidade mental não melhorar, não poderá ser desinternado, até porque sempre será considerado perigoso e com potencialidade de voltar a delinquir.

20 MASSON, Cléber. Direito penal esquematizado. 3. d. São Paulo: Método, 2011. p. 949.21 BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Diário Oficial da União, Poder Executivo,

Brasília, DF, 31 dez. 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 1 abr. 2015.

22 “Art. 96. As medidas de segurança são: I - Internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento

adequado;” (Redação dada pela Lei n. 7.209, de 11.7.1984).23 NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena... Op. cit. p. 524.24 Ibidem.

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Para tentar não tornar as medidas de segurança uma espécie de sanção perpétua, o Código Penal brasileiro traz em seu art. 97, §1º, a possibilidade de realização de um exame chamado cessação de periculosidade. Tal exame terá um prazo mínimo de um a três anos para a sua realização. No entanto, como o prazo é mínimo, o perito não está obrigado a fazê-lo tão logo o prazo mínimo acabe, ou seja, não gerará nenhuma sanção administrativa ao perito se ele não o fizer tão logo o prazo mínimo seja exaurido.

Assim, ainda que a intenção do legislador tenha sido dar um limite às medidas de segurança, isso não ocorreu, posto que, deixando à discricionariedade do perito em fazer ou não o exame, tornou ainda mais evidente que tais medidas são, em verdade, sanções com prazo totalmente indeterminado.

4 AS MEDIDAS DE SEGURANÇA NA ARGENTINA

Na Argentina, as medidas de segurança são medidas coativas, já que para a sua imposição não há necessidade de conformação do destinatário. Tais medidas têm como efeito uma privação ou restrição de direitos. Ademais, são reservadas para os adultos inimputáveis e menores infratores, mas também são aplicadas aos imputáveis, por exemplo, na reclusão por tempo indeterminado para o homicídio qualificado e em determinados casos de reincidência.

O Código Penal argentino, no seu art. 34, trata da imputabilidade. No entanto, assim como o Código Penal brasileiro, não traz o conceito de imputabilidade, mas sim as causas que a excluem, havendo a necessidade de aplicação das medidas de segurança em determinados casos.

Andrea Lombraña traz a classificação das medidas de segurança na Argentina:

”Educativas” y “tutelares”, previstas para los menores que delinquen y para las personas con probada tenencia de estupefacientes que no dependen de ellos; “curativas”, previstas para personas que en estado de inimputabilidad cometen una acción penada por la ley y son consideradas “peligrosas”, para sí o para terceros, y también para aquellos que, aún condenados por un delito, dependan física o psíquicamente del consumo de estupefacientes; y, finalmente, “de mejoramiento”, para los sujetos con multireincidencia, una vez que hubieran cumplido su pena.25

25 “Educativas e tutelares, previstas para os menores que delinquem e para as pessoas com provada tendência a estupefacientes que não dependam deles; ‘curativas’, previstas para pessoas que em estado de inimputabilidade cometem uma ação apenada por lei e são consideradas ‘perigosas’, para si ou para

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Ressalte-se que para a aplicação de qualquer uma dessas medidas, deve haver a intervenção de outras instituições assistindo o Judiciário, tais como as psicológicas, psiquiátricas, criminológicas, pedagógicas e médicas.

Segundo o parágrafo 1º do art. 34 do Código Penal argentino, em caso de alienação, o juiz poderá determinar a reclusão do indivíduo no manicômio. Enquanto que, nos demais casos, ou seja, quando não há alienação mental, o juiz ordenará a reclusão em estabelecimento adequado.

Quanto ao prazo de duração, as medidas de segurança na Argentina também não possuem prazo determinado. Ou seja, persistem durante o tempo que dure a periculosidade do agente. Nos casos de alienação mental, o juiz conta com a assistência do perito para averiguar se desapareceu o perigo de dano para o enfermo ou para terceiras pessoas. Dessa forma, poderá determinar a desinternação do indivíduo anteriormente submetido à medida de segurança. O mesmo ocorre com as medidas curativas aplicadas aos dependentes de álcool e tóxicos.

Ademais das situações dos enfermos mentais e de dependentes de álcool e estupefacientes, o Código Penal argentino, em seu art. 52, traz a possibilidade de aplicação das medidas de segurança, igualmente, por tempo indeterminado, nos casos de reincidência múltipla, quando o agente: a) houver sido apenado com quatro penas privativas de liberdade, sendo uma delas maior de três anos; b) cinco penas privativas de liberdade, de três anos ou menores. Este sistema se assemelha a lei norte americana de three strikes ou you’re out26.

terceiros, e também para aqueles que, ainda condenados por um delito, dependam física ou psiquicamente do consumo de estupefacientes; e, finalmente, ‘de melhoramento’, para os sujeitos multirreincidência, uma vez que cumpriram a sua pena” (tradução nossa). LOMBRAÑA, Andrea N. El derecho penal del “peligroso”: medidas de seguridad y regímenes de excepción una lectura antropológica. Publicar, Buenos Aires, v. 10, p. 49-67, Dic. 2012. Disponível em: <http://ppct.caicyt.gov.ar/index.php/publicar/article/view/1316>. Acesso em: 8 abr. 2015.

26 Segundo Maurício Dieter, a lei Theee Strikes, de 1994, modificou o a seção 667 do Código Penal da Califórnia, estabelecendo que indivíduos com prévia condenação por crimes mais graves devem ter como pena mínima o dobro do previsto para o tipo legal em julgamento. Em seguida, que qualquer pessoa com duas ou mais condenações por crimes de mesma natureza – equivalente a dois ou mais episódios de reincidência específica – deve ter a pena do novo crime multiplicada por três, desde que oscilando entre o mínimo de 25 anos e a prisão perpétua – tudo isso sem direito a qualquer benefício em direção à liberdade. DIETER, Maurício Stegemann. Política criminal atuarial: a criminologia do fim da história. Rio de Janeiro: Reavan, 2013. p. 103.

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5 A VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE FRENTE À INDETERMINAÇÃO TEMPORAL DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA

Os problemas da legalidade surgem da discrepância entre as leis que existem no momento em que o agente pratica o crime e as leis que são consideradas necessárias para exercer o castigo.27 Também podem existir problemas quando há muitas leis, podendo isso determinar a impunidade dos criminosos, mas o mesmo pode ocorrer quando há poucas leis sobre uma matéria, como é o caso das medidas de segurança, diante da indeterminação legal dos seus prazos.

Assim, as medidas de segurança dão a juízes e a outros funcionários da justiça, como os peritos, a discricionariedade na sua aplicação, o que pode levar a uma situação até mesmo imoral, posto que aquele que está submetido a ela não sabe quando vai sair dela, pois a sanção, diversa da pena, não possui tempo determinado abstratamente na lei, nem concretamente na sentença judicial.

E certo que o direito e a moral estão intimamente relacionados entre si, pois o direito deve refletir os valores morais em que acreditamos.28 Radbruch afirma que “una ley que contraríe los princípios básicos de la moralidad no es derecho, aunque sea ‘formalmente válida’”29. A questão é que nem sempre a lei está de acordo com a moral. No entanto, em virtude do legalismo, a lei deve ser respeitada. Sobre isso, Hart (citado por Radbruch) afirma que “la existencia de una ley válida no elimina el problema moral de la decisión individual de obedecerla o no, en razón de justicia o injusticia”30. Ademais, Hart ainda afirma que “el derecho no puede reemplazar la moral”31.

Contudo, o que fazer quando a lei deixa uma brecha, como nos casos das medidas de segurança que sequer possuem um prazo legal? Não seria contrário à moralidade deixar um inimputável detido por um prazo indefinido, tornando sua sanção em perpétua, inclusive em países que, legalmente, afirmam não haver este tipo de sanção, como é o caso do Brasil?

Dessa forma, segundo Zaffaroni:

El enajenado es sometido a reclusión, pues no saldrá del manicomio – es decir que permanecerá encerrado – hasta decisión judicial –, por tiempo

27 NINO, Carlos S. Juício al mal absoluto. Buenos Aires: Ariel, 2006. p. 219.28 Ibidem. p. 223.29 “uma lei que contrarie os princípios básicos da moralidade não é direito ainda que seja formalmente válida”

(tradução nossa). RADBRUCH, Gustave. Arbitrariedad Legal y Derecho Supralegal… Op. cit. p. 15. 30 “a existência de uma lei válida não elimina o problema moral da decisão individual de obediência ou não,

em razão da justiça ou injustiça” (tradução nossa). Ibidem. p. 16. 31 “o direito não pode substituir a moral” (tradução nossa). Ibidem.

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indeterminado, que puede ser el resto de su vida. En rigor es la única pena realmente perpetua que existe en el código, pues su término no depende de nada que pueda hacer la persona para ponerle fin. La idea rectora es que el enfermo mental requiere internación manicomial mientras sea peligroso y, siendo peligroso porque es enfermo, deberá permanecer en reclusión mientras continue la enfermedad.32

Para Nino, “[...] el castigo en ausencia de normas jurídicas equivaldraria a la venganza privada, y seria cuestionable basar el castigo en esas emociones individuales, aún cuando sea retroactivamente apoyadas por una sanción democrática”33.

A questão é que se a falta de normas leva a uma vingança privada em favor da sociedade, pode ocorrer a violação dos direitos humanos, posto que a neutralização ou eliminação de um indivíduo da sociedade pode retirar-lhe a condição de pessoa, transformando-o num objeto, “uma coisa” que está submetida a um sistema penal. Segundo Radbruch, “nosotros apelamos a los derechos humanos que están por encima de toda norma escrita, al inalienable y inmemorial derecho que niega validez a las ordenes delictivas de los tiranos inhumanos”34.

Ressalte-se que retirar um inimputável da sociedade obedece à função preventiva especial negativa da pena, ou seja, a retirada deste indivíduo da sociedade impede, a priori, que ele venha a praticar crimes nesta mesma sociedade. Para Ferrajolli:

Bajo este aspecto, las medidas de seguridad, aunque aplicadas por el juez penal las más de las veces mediante sentencia (art. 205), son, en esencia, medidas de defensa social, bastante más parecidas a las medidas de prevención que a las penas, y refuerzan, como aquéllas, el paradigma constitutivo que da relevancia a la naturaleza del sujeto desviado más que a sus comportamientos35.

32 “O alienado é submetido à reclusão, pois não sairá do manicômio – é dizer que permanecerá trancado – até a decisão judicial – por tempo indeterminado, que pode ser o resto da sua vida. Em rigor é a única pena realmente perpétua que existe no código, pois seu término não depende de nada que possa fazer a pessoa para pôr um fim. A ideia regente é que o enfermo mental requer internação manicomial enquanto seja perigoso e, sendo perigoso porque é enfermo, deverá permanecer em reclusão enquanto continue a enfermidade” (tradução nossa). ZAFFARONI, Eugênio Raul. Tratado del derecho penal… Op. cit. p. 885.

33 “[…] o castigo na ausência de normas jurídicas equivaleria à vingança privada, e seria questionável fundamentar o castigo nessas emoções individuais ainda quando seja retroativamente apoiada por uma sanção democrática” (tradução nossa). NINO, Carlos S. Juício al mal absoluto. Op. cit. p. 233.

34 “nós apelamos aos direitos humanos que se sobrepõem à toda norma escrita, ao inalienável e imemorial direito que nega a validade às ordens delitivas dos tiranos desumanos” (tradução nossa). RADBRUCH, Gustave. Arbitrariedad legal y derecho supralegal… Op. cit. p. 31.

35 “Sob este aspecto, as medidas de segurança, ainda que aplicadas pelo juiz penal, na maioria das vezes mediante sentença, são, em essência, medidas de defesa social, mais parecidas às medidas de prevenção que às penas, e reforçam, como aquelas, o paradigma constitutivo que dá relevância a natureza do sujeito desviado mais que ao seus comportamentos” (tradução nossa). FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón… Op. cit. p. 776.

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Contudo, se a função preventiva especial negativa chega a ser cruel, como uma pessoa imputável que sofre uma condenação certa e determinada, o que poderá causar a um inimputável que, ainda que tenha cometido um delito, não saberá quanto tempo ficará submisso a uma medida de segurança? As leis brasileira e argentina não versam sobre prazo, somente afirmam que a medida de segurança será por tempo indeterminado, enquanto durar a periculosidade do agente. Assim, o critério posto pela lei é a periculosidade, que significa a possibilidade de voltar a delinquir. No entanto, e se o indivíduo não tiver uma melhora, mesmo estando submetido a um tratamento psiquiátrico, cumprirá a medida de segurança para sempre, enquanto estiver vivo?

Impor uma medida de segurança para proteger a sociedade, causando um prejuízo à pessoa a ela submetida fere o princípio da dignidade da pessoa humana, posto que ninguém poderá ser submetido a tratamentos cruéis e desumanos, que são proibidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1945. Ademais, causa uma situação de insegurança jurídica, posto que o inimputável não tem a definição de quando estará novamente em liberdade. Utilizando, novamente, as palavras de Radbruch, “de ninguna manera es derecho todo lo que el pueblo aprovecha, en último análisis, solo que es derecho, lo que crea la seguridad y lo que aspira a ser justicia”36.

Com relação ao princípio da legalidade, quando não se fixa a quantidade de tempo em que uma pessoa estará submetida a uma sanção, há a violação da formulação latina proposta por Feuerbach, nulla poena sine lege, pois a sanção exige uma determinação legal.

Ferrajoli afirma que a medida de segurança “no se refiere a la garantía de estricta legalidad exigida al derecho penal sino a la mera o lata legalidad que preside el ejercicio de todo poder público”37. Isso porque para que haja a obediência ao princípio da estrita legalidade, não basta o ditame “ninguém poderá ser submetido a uma medida de segurança, salvo nos casos previstos em lei”. Seria necessário que os casos de aplicação dessas medidas fossem taxativos, ou seja, fixados rigidamente na lei, de forma clara e predeterminada, bem como o seu tempo de duração. Ademais, há uma contradição entre o princípio da taxatividade das medidas de segurança e seus pressupostos com relação à escolha do tipo de medida a ser aplicada, pois muitas vezes a decisão sobre qual medida aplicar cabe ao juiz, que, analisando a periculosidade do agente com discricionariedade, se baseia mais naquela do que na natureza da conduta praticada pelo delinquente.

36 “de nenhuma maneira é direito tudo o que ao povo aproveita, em última análise, somente o que é direito, o que cria segurança jurídica e o que aspira a ser justiça” (tradução nossa). RADBRUCH, Gustave. Arbitrariedad Legal y Derecho Supralegal. Op. cit. p. 31.

37 “não se refere à garantia de estrita legalidade exigida ao direito penal, mas à mera ou lata legalidade que preside o exercício de todo poder público” (tradução nossa).FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón. Op. cit. p. 778.

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Para Ferrajolli:

Lo más grave es que ni siquiera la duración de la medida de seguridad está predeterminada legalmente ni determinada definitivamente en la resolución sobre su aplicación. Esta duración indeterminada y la ausencia de toda garantía relativa al momento en que han de cesar representan, sin duda, el aspecto más vejatório de las medidas de seguridad personales38.

E complementa o mesmo autor:

La duración indeterminada, en ocasiones, se traduce en una especie de segregación de por vida para los internados en hospitales psiquiátricos, cárceles-hospitales o hospitales-cárceles donde se consuma una doble violencia institucional-cárcel más manicomio y donde se consumen, olvidados por el mundo [...].39

Assim, a situação de brecha legal do tempo de aplicação das medidas de segurança fere, não somente o princípio da legalidade, que é o pilar do sistema penal, mas também o princípio da dignidade da pessoa humana, posto que a segregação feita pela medida de segurança faz com que o submetido a ela fique fora da sociedade enquanto estiver vivo, sendo que a perda da sua liberdade de forma perpétua pode levar à negação do seu status de pessoa.

CONCLUSÃO

O princípio da legalidade afirma que, assim como não há crime sem lei, da mesma forma, a pena deverá ser estabelecida com base na lei. Ademais, o princípio da legalidade é acompanhado pelos princípios da anterioridade e retroatividade. Todos esses princípios servem para dar maior segurança jurídica aos indivíduos.

As leis devem ser certas e determinadas, com a finalidade de não gerarem arbítrios e insegurança. Desse modo, funcionam como instrumento de controle dos poderes estatais, evitando que o Estado venha a realizar arbitrariedades com os seus súditos, que ao invés de possui-lo como órgão protetor, possam vê-lo como um inimigo.

38 “O mais grave é que nem sequer a duração da medida de segurança está predeterminada legalmente nem determinada definitivamente na resolução sobre sua aplicação. Esta duração indeterminada e a ausência de toda garantia relativa ao momento em que deverão cessar representam, sem dúvida, o aspecto mais vexatório das medidas de segurança pessoais” (tradução nossa). Ibidem, p. 779.

39 “A duração indeterminada, em ocasiões, se traduz numa espécie de segregação por toda a vida para os internados em hospitais psiquiátricos, cárceres-hospitais ou hospitais-cárceres onde se consuma uma dupla violência institucional-cárcere mais manicômio e onde se consomem, esquecidos pelo mundo [...]”. (tradução nossa). Ibidem. p. 780.

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Assim, as sanções penais devem ser estabelecidas por lei, como forma de limitar o poder estatal, porém ainda vai mais além: seus prazos também devem ser estritamente determinados com a finalidade de que elas não se transformem em sanções de caráter perpétuo, quando a lei não determinar esta característica. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 proíbe expressamente em seu art. 5º, XLVII, b, as penas de caráter perpétuo. Na Argentina, há a previsão de penas de caráter perpétuo nos arts. 6º e 9º do Código Penal. No entanto, com relação às medidas de segurança, nos dois países, não há previsão expressa de sua perpetuidade, mas de sua indeterminação temporal.

Dessa forma, diante da brecha existente em ambos os ordenamentos penais, torna-se indispensável que os dois países atuem para evitar que a medida de segurança se transforme numa sanção de caráter perpétuo, ferindo ainda mais o princípio da legalidade e também a dignidade humana das pessoas a ela submetidas. Uma forma de modificar a situação seria alterar as legislações e estabelecer o prazo da medida de segurança, baseando-se na pena máxima em abstrato do crime praticado pelo inimputável. Desse modo, a legalidade não seria prejudicada e seria dada maior segurança jurídica a ambos os ordenamentos.

Recentemente, o Brasil, por meio da Súmula 527 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), adotou este posicionamento, com a seguinte dicção: “O tempo de duração da medida de segurança não deve ultrapassar o limite máximo da pena abstratamente cominada ao delito praticado40”. Assim, houve a sinalização da tendência de limitar temporalmente as medidas de segurança, algo de extrema importância, que poderá culminar numa alteração legislativa futura, impedindo, de uma vez por todas, a indeterminação temporal das medidas de segurança no país.

40 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 527. Conteúdo Jurídico, Brasília, DF, 30 maio 2015. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/STJ-edita-mais-tr%C3%AAs-s%C3%BAmulas-na-%C3%A1rea-penal>. Acesso em: 30 dez. 2015.

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Orientações aos colaboradores da Revista Justiça e Sistema Criminal

Histórico e missão

A Revista Justiça e Sistema Criminal é um espaço para divulgação da produção científica e acadêmica de temas relativos ao sistema criminal, compreendendo aspectos relacionados tanto ao Direito e ao Processo Penal quanto à Criminologia, à Política Criminal, à Sociologia Jurídico-Penal e à Filosofia do Direito Penal, visando principalmente difundir modernas tendências das áreas referidas, em sentido crítico e evolutivo.

Os temas principais estão vinculados ao desenvolvimento dos trabalhos do Grupo de Estudos Modernas Tendências do Sistema Criminal, que reúne pesquisadores de diversas universidades e acadêmicos de graduação e pós-graduação da FAE Centro Universitário. Entre nossos leitores, encontram-se professores, alunos de graduação e pós-graduação, profissionais da área jurídica e consultores de empresas públicas e privadas.

Objetivo

O objetivo da Revista Justiça e Sistema Criminal é promover a publicação de temas relacionados ao Direito e ao Processo Penal quanto à Criminologia, à Política Criminal, à Sociologia Jurídico-Penal e à Filosofia do Direito Penal.

Pretende-se contribuir para o desenvolvimento teórico do modelo de controle social criminal a partir da difusão de ideias modernas e críticas que ajudem na construção de um perfil humanista do sistema criminal.

Assim, será dada prioridade à publicação de artigos que, além de inéditos, nacional e internacionalmente, tratem de temas contemporâneos relacionados com a matéria criminal e que tenham perfil preferencialmente crítico.

Orientação editorial

Os trabalhos selecionados pela Revista Justiça e Sistema Criminal serão aqueles que melhor se adequem às linhas de pesquisa desenvolvidas pelo Grupo de Estudos Modernas Tendências do Sistema Criminal, acessíveis pela plataforma de grupos de pesquisa do CNPq.

Os trabalhos podem versar tanto sobre análises teóricas quanto experiências da práxis jurídica, resultantes de estudos de casos ou pesquisas direcionadas que exemplifiquem ou tragam experiências, fundamentadas teoricamente e que contribuam com o debate estimulado pelo objetivo da revista.

Enfatiza-se a necessidade de os autores respeitarem as normas estabelecidas nas Notas para Colaboradores. Os trabalhos serão publicados de acordo com a ordem de aprovação.

Focos

O principal requisito para publicação na Revista Justiça e Sistema Criminal consiste em que o artigo represente, de fato, contribuição científica. Tal requisito pode ser desdobrado nos seguintes tópicos:

– O tema tratado deve ser relevante e pertinente ao contexto e ao momento e, preferencialmente, pertencer à orientação editorial.

– O referencial teórico-conceitual deve refletir o estado da arte do conhecimento na área.– O desenvolvimento do artigo deve ser consistente, com princípios de construção científica do

conhecimento.– A conclusão deve ser clara e concisa e apontar implicações do trabalho para a teoria e/ou para a prática

jurídico-penal. Espera-se, também, que os artigos publicados na Revista Justiça e Sistema Criminal desafiem o conhecimento e as práticas estabelecidas com perspectivas provocativas e inovadoras.

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Escopo

A Revista Justiça e Sistema Criminal tem interesse na publicação de artigos de desenvolvimento teórico e prático forense.

Os artigos de desenvolvimento teórico devem ser sustentados por ampla pesquisa bibliográfica e devem propor novos modelos e interpretações para aspectos relacionados ao sistema criminal.

Os trabalhos empíricos devem fazer avançar o conhecimento na área, por meio de pesquisas metodologicamente bem fundamentadas, criteriosamente conduzidas e adequadamente analisadas.

Normas de publicação para os autores

– Os artigos publicados são de inteira responsabilidade dos autores. A FAE não se responsabiliza pelas opiniões emitidas.

– Os autores devem enviar os artigos indicando sua afiliação acadêmica, isto é, apontando a universidade, a faculdade, o departamento, a cidade, o estado e o país a que estão vinculados.

– O envio dos artigos para submissão à análise, com vistas à publicação, implica que o autor abre mão de seus direitos autorais, ainda que a publicação em questão não tenha fins lucrativos.

– Caso os artigos tenham sido derivados de pesquisa subsidiada, é obrigatória a indicação da entidade de fomento participante.

– Os trabalhos encaminhados para publicação na Revista Justiça e Sistema Criminal serão considerados licenciados a esta pelo prazo de duração dos direitos patrimoniais do autor. Os trabalhos também poderão ser publicados em outros lugares, em qualquer tipo de mídia, impressa ou eletrônica, mas a responsabilidade referente aos direitos de autoria, em face da publicação na Revista Justiça e Sistema Criminal, serão de responsabilidade exclusiva do autor.

– Os trabalhos devem ser enviados pelo correio eletrônico, para o endereço [email protected]. Recomendamos a utilização do processador de texto Microsoft Word 97. Pode-se, no entanto, utilizar qualquer processador de texto, desde que os arquivos sejam gravados no formato RTF, que é um formato de leitura comum a todos os processadores de texto.

– Não há um número predeterminado de páginas para os textos. Esse número deve ser adequado ao assunto tratado. Os parágrafos devem ser alinhados à esquerda. Não devem ser usados recuos, deslocamentos, nem espaçamentos antes ou depois. Não se deve utilizar o tabulador <TAB> para determinar os parágrafos: o próprio <ENTER> já o determina. Como fonte, usar Arial, corpo 12. Os parágrafos devem ter entrelinha 1,5; as margens superior e inferior 2,0 cm e as laterais 3,0 cm. O tamanho do papel deve ser A4.

– Os trabalhos deverão ser precedidos por uma folha na qual deverá constar, impreterivelmente: título do trabalho, nome do autor (ou autores), qualificação (situação acadêmica, títulos, instituições às quais pertença e principal atividade exercida), endereço completo para correspondência, telefone, fax e e-mail, além da autorização de publicação do artigo.

– As referências bibliográficas deverão ser de acordo com a NRB 6023/2002 da ABNT. Deverão constar nas referências: SOBRENOME, Nome do autor. Título da obra em negrito. Tradução. Edição. Local: Editora, data.

– Os trabalhos deverão ser precedidos por um breve Resumo (10 linhas no máximo), em português e em outra língua estrangeira, e de um Sumário, no qual deverão constar os títulos com até três dígitos. (1, 1.1, 1.1.1).

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– Deverão ser destacadas as palavras-chave, limitadas ao número de 5 (cinco), também em português e em outra língua estrangeira. Devem ser palavras ou termos que expressem as ideias centrais do texto, que possam facilitar posterior pesquisa ao trabalho.

– Todo destaque que se queira dar ao texto deve ser feito com o uso de itálico. Jamais deve ser usado o negrito ou a sublinha. Citações de textos de outros autores deverão ser feitas entre aspas, sem o uso de itálico. A introdução e a bibliografia, no sumário, não deverão ser numeradas.

– Não será prestada nenhuma remuneração autoral pela licença de publicação dos trabalhos. Em contrapartida, o colaborador receberá 2 (dois) exemplares do periódico, em cujo número seu trabalho tenha sido publicado, ou do produto digital, quando contido em suporte físico.

– Os trabalhos que não se ativerem a essas normas serão devolvidos a seus autores, que poderão reenviá-los, desde que efetuadas as modificações necessárias.

– A seleção dos trabalhos para publicação é de competência do Conselho Editorial da Revista. Todos os trabalhos serão primeiramente lidos pelos coordenadores da Revista, que os distribuirão, conforme a matéria, para os conselheiros ou ainda para pesquisadores que não sejam conselheiros da Revista, mas tenham reconhecida produção científica na área. Eventualmente, os trabalhos poderão ser devolvidos ao autor com sugestões de caráter científico. Caso o autor as aceite, ele poderá adaptá-lo e reencaminhá-lo para nova análise. Não será informada a identidade dos responsáveis pela análise dos trabalhos. Os trabalhos recebidos e não publicados não serão devolvidos.

Permuta

A Revista Justiça e Sistema Criminal faz permuta com as principais faculdades e universidades do Brasil, da Espanha, da Argentina e da Nicarágua.

Envio de artigos

Os artigos deverão ser encaminhados para:

FAE Centro Universitário - Grupo de Pesquisa Modernas Tendências do Sistema Criminal

Rua 24 de Maio, 135

80230-080 Curitiba -PR

E-mail: [email protected]

Site: www.sistemacriminal.org

Fone: (41) 2105-4098 - Fax: (41) 2105-4195

Agradecemos o seu interesse pela Revista Justiça e Sistema Criminal e esperamos tê-lo(a) como colaborador(a) frequente.

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