faculdade de direito do sul de minas
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FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS
DANIEL LIMONGI ALVARENGA ALVES
A INICIATIVA INSTRUTÓRIA DO JUIZ E A
PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
DIANTE DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL
BRASILEIRO À LUZ DA TEORIA DO GARANTISMO
PENAL COMO DIMENSÃO TEÓRICA DO
CONSTITUCIONALISMO
Pouso Alegre - MG
2013
DANIEL LIMONGI ALVARENGA ALVES
A INICIATIVA INSTRUTÓRIA DO JUIZ E A
PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
DIANTE DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL
BRASILEIRO À LUZ DA TEORIA DO GARANTISMO
PENAL COMO DIMENSÃO TEÓRICA DO
CONSTITUCIONALISMO
Dissertação de Mestrado apresentada como exigência
parcial para obtenção do Título de Mestre em Direito
ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de
Direito do Sul de Minas.
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Henrique Lopes
Figueiredo.
FDSM – MG
2013
A474i Alves, Daniel Limongi Alvarenga.
A iniciativa instrutória do juiz e a proteção dos direitos fundamentais diante do sistema processual penal brasileiro à luz da teoria do garantismo penal como dimensão teórica do constitucionalismo/ Daniel Limongi Alvarenga Alves. Pouso Alegre – MG: FDSM, 2013.
119p. Orientador: Dr. Eduardo Henrique Lopes Figueiredo
Dissertação (mestrado) – Faculdade de Direito do Sul de Minas, Mestrado em Direito.
1. Constitucionalismo. 2. Garantismo penal. 3. Sistema processual penal brasileiro. 4. Instrução jurisdicional. 5. Motivação decisional. I. Figueiredo, Eduardo Henrique Lopes. II. Faculdade de Direito do Sul de Minas. Mestrado em Direito. III. Título.
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DANIEL LIMONGI ALVARENGA ALVES
A INICIATIVA INSTRUTÓRIA DO JUIZ E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS DIANTE DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO À
LUZ DA TEORIA DO GARANTISMO PENAL COMO DIMENSÃO TEÓRICA DO
CONSTITUCIONALISMO
FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS
Data da Aprovação 28/06/2013
Banca Examinadora
_____________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Henrique Lopes Figueiredo.
Orientador
Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM)
_____________________________________________
Profª. Drª. Flaviane de Magalhães Barros
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas)
_____________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Gustavo de Melo Franco Bahia
Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM)
Pouso Alegre – MG
2013
Dedico aos que indiretamente participaram de todo
o processo de desenvolvimento deste estudo, com
os quais compartilhei minhas angústias, ansiedades
e, ao final, alegrias: minha mãe Lia e meu pai
Álvaro, exemplos de lisura e determinação,
detentores de minha eterna gratidão. Aqui, dedico
também a quem me incentivou durante todo o
curso de mestrado, com quem dividi, diretamente,
pensamentos, dúvidas e conclusões: minha irmã
Angela, referência de dedicação, competência e
brilhantismo acadêmico.
Dedico ainda a minha esposa Paola que soube
compreender com maestria todas as minhas
necessidades, proporcionando condições para que
eu pudesse seguir em frente.
Em especial, dedico este trabalho ao meu filho
Miguel de quem subtraí momentos de atenção e
convivência em benefício de atividades
profissionais e dos estudos simultâneos. Mesmo
diante da ausência, sempre me recebeu novamente
com sorriso e carinho reconfortantes, fazendo com
que eu me sentisse forte novamente.
Agradeço,
Deus a quem supliquei força, coragem e sabedoria.
Professor Dr. Eduardo Henrique Lopes Figueiredo meu orientador,
fonte de segurança, conhecimento e motivação.
Professor Dr. Denilson Victor Machado Teixeira, meu amigo, irmão e compadre,
pelo incentivo e exemplo de vida ética profissional e pessoal.
Dimas Daniel de Carvalho, Nélida Reis Caseca Machado e Luiz Cláudio Borges,
companheiros de estrada e do curso de Mestrado.
Aos amigos do Curso de Mestrado, especialmente Ricardo Alves de Lima, Claudinei Ferreira
Moscardini Chavasco, Thiago Alves Miranda, pelo incentivo.
Anna Carolina Azevedo, amiga e secretária do Programa de Pós-Graduação em Direito da
FDSM.
Edson Vieira da Silva Filho, pela iniciativa e dedicação como coordenador do Grupo de Estudos
Razão Crítica e Justiça Penal da FDSM, cujos frutos estenderam-se até a presente pesquisa.
A todos os Professores do Programa de Pós-Graduação em Direito da FDSM, em especial
Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia, Liliana Lyra Jubilut e Rafael Lazzarotto Simioni.
Ana Maria Dinardi pelo incentivo e revisão voluntária deste trabalho.
“A verdade, de modo absoluto, objetivamente considerada,
não pertence ao homem, mas, tão só, a Deus”
Rogério Lauria Tucci
in Do corpo de delito no direito processual penal brasileiro.
RESUMO
O presente estudo investigará a iniciativa instrutória e os limites constitucionais da Jurisdição no
processo penal brasileiro, articulando as premissas constitucionais da aplicação da lei Penal no
contexto da Justiça Penal edificada no Estado Democrático de Direito. Para tanto, a exploração
dos sistemas processuais penais historicamente construídos e normativamente positivados
constituem premissa para a crítica indicativa da construção de decisões processualmente
formadas.
Na mesma medida, a conjugação da busca pela verdade e de sua respectiva limitação pela
observância dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, tornaria legítima a atuação
judicial, característica marcante dos sistemas processuais modernos.
Estes mesmos direitos fundamentais inibidores do arbítrio estatal, não comportariam
flexibilização que autorizasse o juiz a arvorar-se na colheita da prova, horizonte que encontra na
releitura da Teoria do Garantismo Penal de Luigi Ferrajoli elementos que fortalecem o
constitucionalismo como alicerce da justiça penal.
Palavras-chave: Constitucionalismo; garantismo penal; sistema processual penal brasileiro;
instrução jurisdicional; motivação decisional.
ABSTRACT
The present study investigates the initiative to investigate and constitutional limits of
jurisdiction in Brazilian criminal proceedings. This question is articulating with the
constitutional premises of law enforcement in the context of Criminal Justice built in a
democratic state. Therefore, the operation of the systems of criminal procedure is historically
constructed. Furthermore, this system of justice have normatively sources as a premise for
criticism so as indicative building of decisions that came from procedurally formed.
In the same measure, the combination of the search for truth and their respective limitations
observance of fundamental rights and guarantees of citizens, would legitimize the judicial
action, striking characteristic of modern procedural systems.
These same fundamental rights inhibitors state will not behave flexibility to authorize the judge
to fly up in the harvest of proof is on the horizon that rereading the Theory of Criminal
guaranteeism Luigi Ferrajoli elements that strengthen constitutionalism as a foundation of
criminal justice.
Key-Words: Constitutionalism; guaranteeism criminal; Brazilian criminal justice system; court
statement; decisional motivation.
SUMÁRIO
Introdução ............................................................................................................................ 9
1. GARANTISMO PENAL
1.1 Teoria ........................................................................................................................ 15
1.2 Direitos Fundamentais: neoconstitucionalismo e garantismo ................................... 19
1.3 Garantismo, democracia e paradigmas do Estado de Direito ................................... 24
1.4 Garantismo, minimalismo e transformação social .................................................... 29
2. JUSTIÇA PENAL NO CONTEXTO DOS SISTEMAS PROCESSUAIS
PENAIS
2.1 O que são Sistemas Processuais Penais? ................................................................... 45
2.2 Sistema Acusatório, Garantismo e Iniciativa Instrutória do Juiz .............................. 47
2.3 Sistema Inquisitivo, Garantismo e Iniciativa Instrutória do Juiz .............................. 57
2.4 Sistema Misto, Garantismo e Iniciativa Instrutória do Juiz ...................................... 72
2.5 Sistema Brasileiro: Leitura Tradicional das Garantias Fundamentais –
Normatividade (Legalidade Penal e Formalismo Processual) ..................................
75
3. A INICIATIVA INSTRUTÓRIA DA JURISDIÇÃO E OS LIMITES NA
DIMENSÃO DO GARANTISMO
3.1 Garantismo e a matriz publicista do processo penal ................................................. 79
3.2 Iniciativa instrutória e aspectos psicológicos do juiz no modelo acusatório ............ 81
3.3 Iniciativa instrutória do juiz e a busca pela verdade ................................................. 83
3.4 A perspectiva de um novo modelo acusatório brasileiro e a busca da verdade no
processo penal ...........................................................................................................
89
3.5 A busca pela verdade formal como horizonte possível ao julgador .......................... 93
3.6 Os direitos fundamentais como critério limitador da busca desmedida pela verdade
e a imparcialidade do julgador como direito fundamental e humano .......................
99
3.7 A imparcialidade do julgador e a impossibilidade de relativização dos direitos
fundamentais .............................................................................................................
103
Síntese Conclusiva ................................................................................................................. 108
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 112
9
INTRODUÇÃO:
O estudo pretende investigar teoricamente a iniciativa instrutória do
juiz e os sistemas processuais penais, norteada pela Teoria do Garantismo Penal de Luigi
Ferrajoli. Especificamente, pretende-se lançar um olhar sobre a atuação do juiz no processo
penal quando da colheita da prova em juízo, seus reflexos no sistema processual penal brasileiro
e respectivas características garantistas. Para tanto, necessário inicialmente seria dissertar sobre
o real alcance da Teoria do Garantismo Penal, na medida em que reflete o descompasso que
existiria entre a normatividade constitucional e a práxis, conforme apontado pelo autor italiano.
Na mesma linha, importante ainda seria trazer ao estudo os principais pontos que possibilitariam
a distinção entre os sistemas processuais penais, especificamente a participação ativa do juiz na
produção e colheita de provas, para que se possa então reconhecer o sistema processual penal
que seria hoje utilizado no Brasil. Deste ponto, as características apontadas pelo sistema
processual penal brasileiro devem ser investigadas à luz do garantismo penal para que se possa
apontar pela (in)adequação do atual sistema processual penal brasileiro aos ditames do
constitucionalismo.
Percebe-se que a Constituição Federal de 1988 não teria apontado em
seu texto, de forma expressa, opção por qualquer sistema processual a ser adotado no Brasil,1
bem como não existiria disposição no mesmo sentido nas normas infraconstitucionais. Ao
reverso, seria importante também lançarmos olhares o futuro. Estaria em curso projeto do novo
Código de Processo Penal,2 onde haveria previsão da figura do juiz das garantias,
3 que
funcionaria na fase de investigações, sem, contudo, presidi-la, até o recebimento da denúncia,
possivelmente nos mesmos moldes da convenção americana de direitos humanos.4 Entretanto,
após a produção da prova pelas partes, restando dúvida, estaria o juiz legitimado em sua busca
1 O artigo 129 da Constituição Federal de 1988 traz em seu texto a imposição de que a acusação, na ação
penal pública, está a cargo do Ministério Público, apontando no sentido de que teria sido, a princípio,
adotado o sistema acusatório. 2 Proveniente de anteprojeto formulado por uma comissão especial de juristas, presidida pelo Ministro do
Superior Tribunal de Justiça (STJ) Hamilton Carvalhido, o texto (PLS 156/2009) teve como relator o
senador Renato Casagrande (PSB/ES). 3 O texto encaminhado à Câmara dos Deputados coloca cada operador do Direito no devido lugar.
Estabelece, por exemplo, que juízes não podem participar de investigações, nem formular acusação no
lugar do promotor. “É preciso que quem julga não esteja contaminado por pré-julgamento”, explicou o
Ministro Carvalhido. Disponível em:< http://www.escoladaajuris.org.br>. Acesso em: 30 maio 2012. 4 GOMES, Luiz Flávio. Novo CPP: juiz das garantias. Disponível em:< http://www.youtube.com>.
Acesso em: 26 maio 2012. Cf. Artigo 8.º, item 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
10
para formar seu convencimento. Assim, caso seja sancionado e publicado, seria esta iniciativa
um sinal de evolução do sistema processual penal brasileiro, na medida em que surgiria assim
uma preocupação de não contaminação do juiz quanto a sua imparcialidade? Estar-se-ia
inaugurando um novo modelo de sistema processual penal no Brasil? Esta questão deve ser
enfrentada sempre à luz do garantismo, como marco teórico importante do constitucionalismo.
Mereceria atenção especial o item relativo às características de cada
sistema processual penal, que, na maioria das vezes são apontadas como a mera presença do
princípio dispositivo, o qual seria reitor do sistema acusatório e do princípio inquisitivo,
norteador do sistema inquisitório, e que, por sua vez, o sistema misto seria a preponderância do
sistema inquisitorial na fase pré-processual e do sistema acusatório na fase processual. Assim,
os sistemas seriam diferenciados pela presença de elementos essenciais, quais sejam o princípio
dispositivo e o inquisitivo, figurando os demais de forma secundária.5
Em linha diametralmente oposta, pode-se encontrar inclusive
posicionamento relevante no sentido de que não existiriam mais os sistemas puros, todos seriam
atualmente mistos.6
Entretanto, existiria ainda posicionamento no sentido de que dois são
os elementos fixos nos sistemas processuais penais, podendo os demais caracterizar mais de um
sistema, conforme a ideologia do momento histórico.7 Seriam elementos fixos do sistema
acusatório a separação entre as funções de acusar e julgar, sendo a figura do acusador distinta do
juiz, correspondendo ao princípio acusatório. Além desta característica, seria necessário ainda,
como elemento fixo do sistema acusatório, a presença do “efeito produzido pelo ajuizamento da
acusação, que é determinar a abertura do processo”.8 Assim, a abertura do processo seria ato
exclusivo inerente a uma acusação. Quanto ao sistema inquisitivo, também dois seriam os seus
elementos fixos, sendo eles a desnecessária distinção entre a figura do acusador diversa da do
juiz e a possibilidade de instauração do processo por acusação, notitia criminis ou mesmo de
ofício pelo juiz. Por sua vez, o sistema misto seria dividido em duas fases, nas quais se valeria
de elementos fixos presentes tanto no sistema inquisitivo quanto no sistema acusatório. A forma
de abertura do processo no sistema misto observaria a sistemática inquisitiva, podendo ser
5 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1. p. 51-76. 6 Exceto no Direito Canônico que conservaria seu caráter de pureza inquisitorial até os dias atuais. Cf.
LUZ, Denise. A busca da verdade no sistema acusatório e a investigação criminal no projeto de reforma
do código de processo penal brasileiro. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, n. 48,
jun./jul. 2012. 7 ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba:
Juruá, 2011. 8 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1. p. 51-76.
11
aberto por meio de noticia criminis, delação secreta ou de ofício, ao passo que a legitimidade
ativa na fase de julgamento seria exercida por meio de uma acusação, cuja figura seria distinta
do juiz, característica marcante do sistema acusatório.9
Paralelamente, o garantismo penal de Luigi Ferrajoli pode ser
identificado, como uma das características do sistema acusatório, na mesma medida em que um
modelo autoritário estaria relacionado ao sistema inquisitório.10
A mencionada teoria do
garantismo sustentaria a observação dos preceitos garantistas normativados na Constituição
Federal pelas autoridades e instituições investidas nos poderes persecutórios criminais.
Entretanto, a teoria também apontaria um descompasso existente entre esta normatividade
garantista e a efetividade de atuação das autoridades criminais. Nesta perspectiva seria possível
perceber que o garantismo penal estaria intimamente ligado ao sistema acusatório,11
na medida
em que aquele defende, entre outros, a separação de funções entre a acusação e o ato de julgar,
exigindo atores diversos, convergindo diretamente com a maior característica percebida no
sistema acusatório. Luigi Ferrajoli trataria do tema quando apresenta dez axiomas que são
considerados pelo autor como “modelo garantista de direito”.12
Ao nosso estudo interessaria
diretamente o oitavo axioma (A8) definido, in verbis como “nullum judicium sine accusatione”.
O próprio Ferrajoli afirmaria que:
O sistema [...] que configura o método inquisitivo, deriva, por sua vez, da
subtração do axioma A8 sobre a imparcialidade do juiz e sobre sua separação
da acusação. Aparece em todos os ordenamentos nos quais o juiz tem funções
acusatórias ou a acusação tem funções jurisdicionais. Em tais sistemas, a
mistura de acusação e juízo compromete, sem dúvida, a imparcialidade do
segundo e, por seu turno, frequentemente, a publicidade e oralidade do
processo.13
Quanto ao modelo brasileiro, entende-se que o sistema processual
penal adotado teria sido o misto,14
com prevalência do procedimento inquisitório na fase pré-
processual e o acusatório na processual, podendo ainda o juiz atuar perante as deficiências das
9 ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba:
Juruá, 2011, p. 258. 10
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Madrid: Trotta, 1989. Cf. LOPES JUNIOR, Aury. Direito
processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1. p.
69-70. 11
As garantias estão presentes também nos sistemas inquisitivo e misto, cf. ANDRADE, Mauro Fonseca.
Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011, p. 455. 12
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002, p. 91. 13
Op. cit., p. 96. 14
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 52. ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e
seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011. p. 457-458.
12
partes.15
Encontra-se também posição no sentido de que o sistema processual penal brasileiro
seria o acusatório, por força argumentativa sustentada no artigo 129, I da Constituição Federal
de 1988, também pela presença das garantias constitucionais ao acusado, bem como pela adoção
do Estado Democrático de Direito.16
Há quem sustente ainda, fundado no Código de Processo
Penal, que o sistema inquisitivo tenha sido adotado no Brasil, pela possibilidade de o juiz, de
ofício, determinar a produção de provas.17
Por fim, há quem lecione no sentido de que “nosso
país não adota nenhum tipo de sistema processual penal, pois o que temos hoje são modelos de
processo”, concluindo que se viveria “uma grave e antiga crise de identidade, que tem
provocado um clima de profunda insegurança”.18
Pragmaticamente, o estudo revelaria ainda uma gama de
possibilidades argumentativas em benefício do acusado, tais como, v.g., a suspeição do
magistrado que teve sua imparcialidade contaminada pela proximidade com a colheita da prova.
Em certa medida, seria ainda ilícita a prova produzida diante de um cenário de atuação ativa do
juiz na gestão da prova, ensejando seu desentranhamento. Por outro lado, diante da
possibilidade de publicação de um novo Código de Processo Penal, caso seja sancionado, as
mesmas argumentações restariam pertinentes? A inovação chamada de “o juiz das garantias”
teria o condão de superar a mácula da contaminação da sua imparcialidade ou do julgamento
como um todo? A atual organização judiciária brasileira permitiria a efetivação do juiz das
garantias conforme o modelo previsto no projeto?
O estudo pretende ainda fazer uma sistematização ou reorganização
do conhecimento já existente sobre os sistemas penais e sobre a gestão da prova pelo juiz no
processo penal brasileiro, à luz do garantismo de Ferrajoli, podendo possibilitar futuras
15
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.
Curitiba: Juruá, 2011, p. 457-458. No mesmo sentido, cf. GRINOVER, Ada Pelegrini. A iniciativa
instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária, Brasília, jan./jul. 2005, p. 20. 16
Idem. 17
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.
Curitiba: Juruá, 2011. O fato de um determinado processo consagrar a separação (inicial) de
atividades, oralidade, publicidade, coisa julgada, livre convencimento motivado etc., não lhe isenta de
ser inquisitório. É o caso do sistema brasileiro, claramente inquisitório na sua essência, ainda que com
alguns “acessórios” que normalmente ajudam a vestir o sistema acusatório (mas que por si só não o
transforma em acusatório). Cf. LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade
constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 69. O sistema processual penal
brasileiro é, na sua essência, inquisitório, [...], já que a gestão da prova está, primordialmente, nas
mãos do juiz. Cf. COUTINHO, Jacinto apud LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua
conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 72. A seu turno, o
Supremo Tribunal Federal teria firmado entendimento no sentido de que o atual sistema processual
penal brasileiro seria o acusatório. 18
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.
Curitiba: Juruá, 2011.
13
pesquisas ou mesmo o desenvolvimento das questões teóricas e seus reflexos práticos na
sociedade.
Na mesma medida, o presente esforço poderia convergir para o
alcance de estratégias para resolução efetiva do problema apresentado ou poderia propiciar o
encaminhamento de uma possível solução, abrindo novas vias de entendimento.
A jurisprudência pátria também caminharia neste sentido, conforme
decisão do STJ que ressaltaria a importância do tema.19
A utilidade prática da pesquisa estaria
presente nas lides, atingindo diretamente os jurisdicionados, não sendo limitada às discussões
acadêmicas. Na mesma linha, decidiu o STF que o juiz que participa do planejamento de
investigações policiais apresenta-se diante do réu como parte acusadora.20
Assim, seria possível identificar como ponto nevrálgico do estudo, a
posição do juiz no processo penal brasileiro que, conforme sua atuação passiva ou ativa na
gestão da prova resguardaria ou afastaria a garantia constitucional da imparcialidade do
julgador.
Diante deste cenário, surgiria a necessidade de posicionamento
legislativo expresso no sentido da definição de qual deverá ser o sistema de processo penal
brasileiro, mediante uma reforma total.21
Assim, seria possível o “encadeamento lógico-
normativo” de todos os institutos processuais penais, bem como “dar-se-ia legitimidade a todas
as previsões contidas na nova legislação adjetiva”, afastando-se o rótulo atual de não ter nascido
sob a égide de um estado democrático.22
Lado outro, sem elidir as profundas transformações sofridas pela
ciência jurídica a partir do último quarto do século passado, é pertinente ressaltar alguns traços
marcantes que alterariam substancialmente a ciência do direito e o constitucionalismo,23
e, por
via reflexa, inspiram a elaboração das alterações no Código de Processo Penal, convergindo-o a
um “novo constitucionalismo”.
19
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC n. 23.945 / RJ, Rel. Min. Jane Silva, DJe 16.03.2009.
Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2012. 20
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC n. 95.009-4 / SP, Rel. Min. Eros Grau, DJe 19.12.2008.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2012. 21
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.
Curitiba: Juruá, 2011, p. 462. 22
Idem. 23
ALVES, Angela Limongi Alvarenga. Projeto de lei 166/2010: neoprocessualismo ou protagonismo
judicial? Revista CEJ. Brasília, v. XIV, n.53, p. 55-62, abril-jun 2011. p. 56.
14
Entretanto, é imperioso destacar que essas mudanças envolveriam
vários entendimentos diferentes, mas concatenados,24
como o reconhecimento da formação
normativa dos princípios jurídicos e valorização da sua importância no processo de aplicação do
direito; a rejeição ao formalismo e o recurso frequente a métodos ou estilos mais abertos de
raciocínio jurídico: ponderação, tópica, teorias da argumentação etc; a constitucionalização do
direito, com irradiação das normas e valores constitucionais, sobretudo aos direitos
fundamentais, para todos os ramos do ordenamento; a reaproximação entre o direito e a moral,
com a penetração cada vez maior da filosofia nos debates jurídicos; a judicialização da política e
das relações sociais, com o significativo deslocamento do poder da esfera do Legislativo e do
Executivo para o Poder Judiciário.25
Por fim, fala-se de um modelo de processo penal democrático, como
aquele em que as partes participariam ativamente, apresentando o órgão acusador uma pretensão
ao órgão julgador que, por sua vez, de forma imparcial, decidiria. Este modelo seria a
“plataforma na construção de uma ciência penal democrática”.26
Estes são alguns dos desafios a que se propõe enfrentar o presente
estudo, repita-se, sempre tendo como norte o garantismo penal como dimensão teórica
importante do constitucionalismo.
24
Ibidem. 25
SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no brasil: riscos e possibilidades. In: LEITE, George
Salomão; SARLET, Ingo Wofgang. (Coord.). Direitos fundamentais e estado constitucional: estudos
em homenagem a J.J. Gomes Canotilho. São Paulo: RT, 2009, p. 09-10. 26
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 71.
15
1 - A TEORIA DO GARANTISMO PENAL
1.1. Teoria
O curso da presença de seres racionais sobre a face do planeta foi
marcado pela evolução da reação do próprio homem às violações da “ordem” de convívio
social.
A reação do homem ao delito teria se tornado monopólio do Poder
Estatal, característica da civilização, na medida em que representaria uma resposta à fase da
vingança privada, pela qual, sabe-se, era dado a cada cidadão fazer “justiça pelas próprias
mãos”. Por meio do poder do Estado busca-se a preservação do indivíduo e do grupo ao qual
este pertence, tornando-se “imprescindível limitar os excessos decorrentes da vingança privada,
sendo então o jus puniendi transferido a um poder central, que passaria a ser responsável pela
aplicação de uma punição àqueles que transgredissem as regras vigentes”.27
Presenciamos,
assim, o nascimento da fase da vingança pública, que “com a melhor organização social [...] o
Estado afastou a vindita privada, assumindo o poder-dever de manter a ordem e a segurança
social”. 28 / 29
Entretanto, teria sido necessário, para legitimar a ação do Estado na
defesa dos interesses coletivos, o reconhecimento de direitos fundamentais, sendo certo que a
grande maioria desses direitos fora conquistada depois de muitas lutas, inclusive seculares, das
gerações anteriores30
e,
se hoje esses direitos parecem já pacíficos na condição política, em verdade
se moveram em cada país constitucional num processo dinâmico e
ascendente […] permitindo visualizar a cada passo uma trajetória que parte
com frequência do mero reconhecimento formal para concretizações parciais
27
MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 28
BITENCOURT, César Roberto. Tratado de direito penal. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 1, p. 28-
30. 29
Importante destacar que no início da fase da vingança pública, o objetivo teria sido garantir a segurança
do soberano ou monarca, por meio da aplicação da sanção penal, ainda dominada pela crueldade e
desumanidade, características do direito criminal da época. Cf. BITENCOURT, op. cit., p. 28-30. 30
Pode-se tranquilamente afirmar que não houve nenhum direito fundamental, na história do homem, que
tivesse caído do céu ou nascido de uma escrivaninha, já escrito e confeccionado nas cartas
constitucionais. Todos são fruto de conflitos, às vezes seculares, e foram conquistados com revoluções e
rupturas, a preço de transgressões, repressões, sacrifícios e sofrimentos [...]. Cf. FERRAJOLI, Luigi.
Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr,
Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002, p. 755-756.
16
e progressivas, até ganhar a máxima amplitude nos quadros consensuais de
efetivação democrática do poder.31
Na trilha destas conquistas, os ideais garantistas surgiriam como norte
a oferecer guarida ao cidadão contra os abusos e desmandos de um sistema penal que não
propiciaria a efetivação de todos os direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. O
direito ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório, bem como à presunção de
inocência, assegurado como garantia em face ao arbítrio, estariam na linha de frente no combate
ao autoritarismo.
Os intitulados direitos fundamentais de primeira geração32
exaltariam
o homem no que tange à sua individualidade. Advindos da filosofia liberal, requerem a proteção
de um núcleo singular de faculdades de direitos civis e políticos, no qual se encontram os
direitos referentes à liberdade da pessoa. Conforme definição de Jellinek, esses direitos teriam o
status negativus, carregando como forma de concretização a não intervenção estatal em relação
à sua essência, e a oponibilidade em relação ao Estado, constituindo esta última a sua mais
marcante característica garantista.33
Em relação à tutela da liberdade, o princípio do devido processo legal
expressamente previsto na constituição Federal de 1988, teria significativa importância para o
garantismo penal.
A imposição de uma série de formalidades, por si só, contudo, não
conferem ao processo legitimidade. Há necessidade do âmbito material, ou substancial, do
devido processo legal, como afirmou o ministro do STF Gilmar Mendes:
31
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2010. 32
Esta expressão pode ser substituída pela noção de „dimensão‟ e não geração, pois eles não se sucedem,
uns em detrimento dos outros, pelo contrário, eles se complementam. Neste sentido: “A doutrina
tradicional usa a palavra “gerações”, mas como ela traz a ideia de algo que se torna obsoleto e é
substituído, a doutrina moderna prefere a palavra “dimensões” cf. JUBILUT, Liliana Lyra.
MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. Direito internacional público. São Paulo: Lex Editora, 2010,
p. 89. No mesmo sentido LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13 ed. São Paulo.
Saraiva, 2009, p. 670. 33
Para um melhor entendimento da função do Estado diante da proteção dos direitos fundamentais, vale
discorrer sobre a teoria dos quatro status do publicista alemão Georg Jellinek (final do séc. XIX),
teoria esta que serviu como molde para a classificação dos direitos fundamentais e do reconhecimento
de sua multifuncionalidade. Status significa situação, estado, portanto, status sob o ponto de vista da
teoria de Jelinek significa situações jurídicas entre o indivíduo e o Estado. Jellinek dividiu em quatro
tipos os status: passivo, negativus, positivus e activus. Cf. BEÇAK, Rubens. AMARAL, João Ricardo
de Castro Barbosa do. A efetivação dos direitos fundamentais por via do ensino médio. Publicado nos
Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI. Nov. 2009. No mesmo sentido, cf. LENZA,
Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13 ed. São Paulo. Saraiva, 2009, p. 673-674. Em
construção semelhante, referindo-se aos direitos e liberdades públicas, cf. CANOTILHO, José
Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. 2. reeimp. Coimbra: Almedina,
2003, p. 395-396.
17
O princípio do devido processo legal, que lastreia todo o leque de garantias
constitucionais voltadas para afetividade dos processos jurisdicionais e
administrativos, assegura que todo julgamento seja realizado com
observância das regras procedimentais previamente estabelecidas, e, além
disso, representa uma exigência de fair trial, no sentido de garantir a
participação equânime, justa, leal, enfim, sempre imbuída pela boa-fé e pela
ética dos sujeitos processuais.34
Advindos do direito ao devido processo legal, entende-se que as
garantias fundamentais da ampla defesa e do contraditório também seriam indispensáveis ao
garantismo penal. A ampla defesa constitui direito inerente à pessoa humana, conferindo-a
dignidade, no contexto das relações sociais, bem como representa uma proteção voltada à
acusação criminal. Por sua vez, associado ao acusado sob o prisma da ampla defesa, o
contraditório constitui peça das mais relevantes no processo penal. Por certo, não haveria um
processo de partes, com igualdade de oportunidades e isenção estatal na condução do feito, se
não houvesse o contraditório. De forma simplificada, o contraditório poderia ser entendido
como a oportunidade concedida a uma parte do processo para que, querendo, apresente a sua
contrariedade a alguma coisa.35
Também como forma de inibir o arbítrio estatal, seria assegurada
constitucionalmente a garantia da presunção de inocência, ou do estado de inocência, que “tem
por objetivo garantir, primordialmente, que o ônus da prova cabe à acusação e não à defesa”.36
Até que a sentença condenatória seja transitada em julgado, o acusado seria presumido
naturalmente inocente, e, havendo dúvida, tal presunção permaneceria, sendo legitimada pelo
princípio também constitucional in dubio pro reo.
Ao longo deste estudo estabelecer-se-ia uma relação de tensão entre os
fundamentos garantistas constitucionais e a efetividade de atuação do poder público na esfera
penal, na medida em que ambos os elementos (garantias e poder estatal) quando elevados ao
extremo, poderiam ensejar total anarquia e impunidade ou, ao revés, o autoritarismo. A partir do
prisma da Teoria do Garantismo Penal,37
de Luigi Ferrajoli, é que poderíamos entender como
equilibrar estes dois aspectos em constante colisão.38
34 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento n. 529.733, Rel. Min. Gilmar Mendes. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 20 fev. 2012. 35 NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios constitucionais penais e processuais penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.
263 e 286. 36 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 8 ed. São Paulo: RT, 2011. 37 Obra Diritto i Ragione publicada em 1989 na Itália e traduzida para o espanhol (Derecho y razón) em 1995. 38 Merece destaque: “convém lembrar que o próprio Ferrajoli alertou, em artigo publicado no Brasil, que a Teoria do Garantismo
ainda é obra inacabada. Ainda assim, os elementos gerais de uma Teoria Garantista desenvolvidos nos capítulos acima referidos
são suficientes para dar conta do modelo de Estado de Direito e propor um resgate de sua legitimação”. Cf. BORTOLI, Adriano de. Garantismo Jurídico, Estado Constitucional de Direito e Administração Pública. Artigo publicado nos anais do Conpedi,
Manaus, disponível em: < http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/adriano_de_
bortoli.pdf>. Acesso em: 29 jan. 2013.
18
Um dos nortes do garantismo penal de Ferrajoli seria concentrado no
descompasso39
existente entre os princípios garantistas constitucionais e a atuação efetiva do
poder público durante a persecução penal que, por vezes, seria afastada da estrita observância
das garantias ao acusado, no que se refere ao delito, ao processo e à pena.
Entretanto, antes de prosseguir, necessário alertar o leitor de que o
garantismo é um modelo ideal “do qual nos podemos mais ou menos aproximar. Como modelo,
representa uma meta que permanece como tal, ainda que não seja alcançada e não possa ser
alcançada inteiramente”.40
Assim, o garantismo pode ser visto como um balizamento ou
termômetro a mensurar o grau de observância de um sistema penal às garantias constitucionais
ao acusado, conforme veremos com mais vigor adiante.
Sob o plano jurídico, o garantismo penal seria definido por Ferrajoli
como “um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia aos direitos
dos cidadãos”.41
O garantismo de Ferrajoli poderia ainda ser visualizado como um “modelo
normativo de direito, como sistema de limites das autoridades punitivas”,42
podendo ser
estendido a todos os direitos fundamentais não só aos direitos de liberdade, mas aos direitos
sociais, aos direitos civis e políticos.
Esta acepção do termo garantismo como modelo normativo de Direito,
no plano jurídico, define a composição do Estado de Direito, pelo governo per leges e governo
sub lege. Nesta linha, no que se refere ao Direito penal, Ferrajoli afirmaria que o Estado de
Direito designa ambas as coisas: o poder judicial de descobrir e castigar os delitos é, em efeito,
sub lege, enquanto que o poder legislativo de defini-los se exercita per leges; e o poder
39
O garantismo traz como “questão teórica central”, a divergência existente nos ordenamentos complexos
entre modelos normativos (tendentemente garantistas) e práticas operacionais (tendentemente
antigarantistas) interpretando-a com a antinomia que subsiste entre validade (e não efetividade) dos
primeiros e efetividade (e invalidade) das segundas”, cf. FERRAJOLI, 2002. p. 684. 40
BOBBIO, Norberto. Cf. Prefácio in FERRAJOLI, op. cit., p. 9. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão:
teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares
e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 91, 785/786. No sentido de que o mencionado
descompasso depende dos “vícios de fato do sistema jurídico”, cf. op. cit. p. 809. No sentido de que “a
divergência entre normatividade e efetividade se manifesta também na criminalidade mesma, isto é,
na não efetividade do direito penal, e na sua impunidade, isto é, na não efetividade do direito
processual”, cf. op. cit. p. 862. 41
“É, consequentemente, „garantista‟ todo sistema penal que se conforma normativamente com tal
modelo e que o satisfaz efetivamente”, cf. FERRAJOLI, op. cit., p. 684. 42
FERRAJOLI, Luigi. Entrevista concedida a Carmela Grune editora do Jornal Estado de Direito, na
Cidade de Porto Alegre/RS. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=mwsbEV1tKvg>.
Acesso em: 04 fev. 2013.
19
legislativo se exercita per leges enquanto, por sua vez, está sub lege, quer dizer, está prescrita
por lei constitucional a reserva de lei geral e abstrata em matéria penal.43
Pormenorizando a questão, o governo sub lege teria dois sentidos, o
primeiro chamado de débil, lato ou formal, pelo qual todo poder deveria ser conferido pela lei e
exercido nas formas e procedimentos por ela estabelecidos. Seriam incluídos aqui inclusive
ordenamentos autoritários e totalitários, na medida em que o poder tem uma fonte e uma forma
legal. Aqui se perceberia “a noção de legalidade em sentido lato ou validade formal, que exige
somente que sejam predeterminados por lei os sujeitos titulares e as firmas de exercício do
poder”.44
O Rechtsstaat alemão seria um exemplo de contextualização deste modelo de Estado
de Direito. O outro sentido seria chamado de forte, estrito ou substancial, pelo qual todo poder
deveria ser limitado pela lei, que condiciona não só suas formas, mas também seus conteúdos.
Como exemplo de contextualização do The Rule of Law inglês. Seriam encontrados neste
sentido Estados de Direito os Estados constitucionais que, nos níveis normativos incorporam
limites não só formais, mas substanciais ao exercício de qualquer poder. Este segundo modelo é
utilizado por Ferrajoli como sendo o que caracteriza o “Estado de Direito Garantista”, nascido
das modernas constituições e caracterizado, no que interessa diretamente ao nosso estudo, no
plano substancial, pela funcionalização de todos os poderes do Estado em proteção aos Direitos
fundamentais, mediante a constitucionalização das proibições de lesar os direitos de liberdade e
das obrigações de satisfação dos direitos sociais, passíveis de tutela jurisdicional.45
1.2. Direitos Fundamentais: neoconstitucionalismo e garantismo
Trilhando pelo contexto de direitos fundamentais, necessários ainda
mais alguns apontamentos no sentido de que o constitucionalismo lhes traria uma nova
medida.46
Neste marco paradigmático, os direitos fundamentais passariam a representar direitos
juridicamente positivados “vigentes em uma ordem constitucional”.47
Entretanto, salienta-se que
43
Cf. BORTOLI, Adriano de. Garantismo Jurídico, Estado Constitucional de Direito e Administração
Pública. Artigo publicado nos anais do Conpedi, Manaus, disponível em:
<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/adriano_de_bortoli.pdf>. Acesso em: 29 jan.
2013. 44
Idem. 45
Ibidem. 46
Nascidos na consagração de liberdade e igualdade possuem, desde o nascedouro, um caráter de
universalidade: baseados no caráter inclusivo da razão – pois que se todos os homens são racionais,
logo há um critério certo para erigirmos um todos: “Todos os homens são iguais por natureza e diante
da lei”, como proclama o artigo 3.° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Cf.
BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco; NUNES, Dierle José Coelho. O potencial transformador dos
direitos “privados” no constitucionalismo pós-88: igualdade, feminismo e risco. Revista dos Tribunais,
n. 882, abril 2009, p. 46. 47
A positivação de direitos fundamentais significa a incorporação na ordem jurídica positiva dos direitos
considerados “naturais” e “inalienáveis” do indivíduo, cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito
constitucional e teoria da constituição. 7. ed. 2. reeimp. Coimbra: Almedina, 2003, p. 377.
20
esta concepção positivamente fechada estaria em clara “dessintonia”48
com as premissas básicas
de um sistema aberto de regras e princípios.49
Estes mesmos direitos podem ainda revestirem-se de caráter formal e
materialmente fundamentais, na medida em que, na primeira hipótese, seriam colocados em
ponto superior da ordem jurídica, possuindo procedimentos agravados e limites materiais de
revisão e de vinculatividade imediata dos poderes públicos, como parâmetros de escolhas,
decisões e controle dos poderes. Materialmente fundamentais quando ofereceriam suporte para a
abertura da Constituição para outros direitos, também fundamentais, mas não
constitucionalizados, na medida em que poderiam ser aos mesmos atribuídos aspectos do
regime jurídico inerente à fundamentalidade formal. Estas características seriam conhecidas
como cláusulas abertas dos direitos fundamentais que proporcionariam uma concretização e
desenvolvimento plural de todo o sistema constitucional.50
Internacionalmente, existem dois pactos no âmbito das Nações Unidas
sobre os direitos fundamentais. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP)51
e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC).52
No Brasil, a expressão desta compreensão de cláusulas abertas seria
consagrada pela própria Constituição Federal, na medida em que traz consigo previsão expressa
do caráter aberto dos direitos fundamentais.53
Expressamente previstos, a Constituição Federal
Brasileira traria assim os direitos e garantias fundamentais em seus artigos 5º (direitos
individuais e coletivos), artigos 6º e 193 e seguintes (direitos sociais), artigo 12 (direitos à
nacionalidade), artigos 14 a 16 (direitos políticos), artigo 17 (direitos dos partidos políticos) e
48
Idem. 49
“A constitucionalização tem como consequência mais notória a proteção dos direitos fundamentais
mediante o controlo jurisdicional da constitucionalidade dos actos normativos reguladores destes
direitos. Por isso e para isso, os direitos fundamentais devem ser compreendidos, interpretados e
aplicados como normas jurídicas vinculativas e não trechos ostentatórios ao jeito das grandes
declarações de direitos”. Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da
constituição. 7. ed. 2. reeimp. Coimbra: Almedina, 2003, p. 378. 50
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. 2. reeimp.
Coimbra: Almedina, 2003, p. 379-380. 51
Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/pacto_dir_politicos.htm>. Acesso em: 23
mar. 2013. 52
Disponível em: < http://www.unfpa.org.br/Arquivos/pacto_internacional.pdf>. Acesso em: 23 mar.
2013. 53
Conforme redação do artigo 5º, § 2º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
“Assim, o elenco de incisos do art. 5º é exemplificativo, pois os direitos e garantias expressos na
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil for parte.” Cf. BULOS, Uadi
Lammêgo. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009,. p. 433. Atribuindo ao
tema maior relevância após a EC n. 45/2004 que acrescentou o § 3º ao artigo 5º da Constituição
Federal, cf. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009,
p. 673.
21
artigos 170 a 192 (relações econômicas), não deixando à margem a lembrança de que esta lista é
exemplificativa.54
Entretanto, necessária uma diferenciação entre os direitos do homem e
os direitos fundamentais. O primeiro refere-se a uma dimensão universal, sendo observados a
todos os povos em todos os tempos, ao passo que os direitos fundamentais seriam aqueles
mesmos direitos do homem “jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-
temporalmente”.55
Em outras palavras, os direitos do homem seriam aqueles inerentes a própria
natureza humana, na medida em que os direitos fundamentais seriam aqueles objetivamente
vigentes em um ordenamento jurídico.
Ainda na linha de diferenciações, apesar da redação do Título II da
Constituição Federal de 1988 referir-se a direitos e garantias fundamentais,56
os mesmos não
possuem o mesmo significado. As garantias fundamentais “traduziam-se quer no direito dos
cidadãos a exigir dos poderes públicos a proteção dos seus direitos, quer no reconhecimento de
meios processuais adequados a essa finalidade”.57
Em outras palavras, as garantias fundamentais
seriam “ferramentas jurídicas por meio das quais tais direitos [fundamentais] se exercem,
limitando os poderes do Estado”.58
As garantias seria vistas ainda como “vínculos normativos
idôneos a assegurar efetividade aos direitos subjetivos [...] são direcionadas a assegurar a
máxima correspondência entre normatividade e efetividade da tutela dos direitos”.59
Seria
correto ressalvar que numa mesma norma constitucional, garantias podem vir disciplinadas
junto com direitos, v.g. direito de crença e garantia da liberdade de culto, conforme artigo 5º, VI
da Constituição Federal Brasileira de 1988. Por fim, vale aqui a advertência de que
“[r]igorosamente, as clássicas garantias são também direitos, embora muitas vezes se
salientasse nelas o carácter instrumental de proteção dos direitos”.60
Os direitos e as garantias fundamentais mencionadas possuiriam a
“função de defesa da pessoa humana e da sua dignidade perante os poderes do Estado (e de
54
Neste sentido já se manifestou o STF, ADIn 939-7, MC/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, RTJ 150:68.
Cf. ainda LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13. ed. São Paulo. Saraiva, 2009, p.
673. 55
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. 2. reeimp.
Coimbra: Almedina, 2003, p. 393. 56
BRASIL. Constituição Federal. Título II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais, artigos 5º ao 17. 57
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. 2. reeimp.
Coimbra: Almedina, 2003, p. 396. 58
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 407. 59
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,
Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 21. 60
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. 2. reeimp.
Coimbra: Almedina, 2003, p. 396.
22
outros esquemas políticos coativos).”61
Além da proteção da pessoa humana e de sua dignidade,
os direitos fundamentais teriam ainda a função de prestação social, proteção perante terceiros e
de não discriminação. Como prestação social, seriam vistos como o direito do particular obter
algo através do Estado como saúde, educação e segurança. Perante terceiros, teriam função de
proteção dos titulares de direitos fundamentais contra violações por parte de outros indivíduos.
Por fim, a função de não discriminação asseguraria, alicerçada pelo princípio da igualdade, que
o Estado promovesse tratamento igualitário a todos os seus cidadãos.
Mesmo que admitidas todas as funções de proteção do cidadão e dos
estrangeiros em território nacional,62
os direitos além da característica de serem fundamentais
não possuiriam um caráter absoluto. Em outras palavras, os direitos e garantias fundamentais
sofreriam de uma limitação ou relativização. Esta seria uma regra geral, sendo as liberdades
públicas relativas, especialmente as estabelecidas no artigo 5º da Constituição Federal.63
A própria Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948
reconheceria estas mesmas limitações “[...] com a única finalidade de assegurar o respeito dos
direitos e liberdades dos demais [...].”64
Este vértice de limitação ou de relativização seria recortado por força
de “três universos normativos com valor de lei”, por meio de restrições feitas pela própria
Constituição, por lei, mas expressamente autorizada pela Constituição e por meio de lei sem
autorização constitucional. Além das limitações legais, existiriam ainda as medidas ou
intervenções restritivas praticadas pelo poder público incidentes de modo concreto e imediato
sobre um direito.65
Estas leis restritivas estariam sujeitas a uma série de requisitos
restritivos dessas mesmas leis, o que levaria a entender-se a questão como “restrições às
restrições ou limites dos limites”. Aqui se destacariam as noções de a) exigência de autorização
de restrição expressa; b) o requisito de lei formal; c) o requisito da generalidade e abstração da
61
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. 2. reeimp.
Coimbra: Almedina, 2003, p. 407. 62
Cf. artigo 5º caput da Constituição Federal de 1988. 63
Conforme reconhecido pelo STF, RT 709:408. Neste mesmo sentido cf. BULOS, Uadi Lammêgo.
Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009,. p. 672. 64
No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas
pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e
liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de
uma sociedade democrática. Cf. Artigo XXIX, 2. Disponível em:
<http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm. Acesso em: 23 mar. 2013. 65
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. 2. reeimp.
Coimbra: Almedina, 2003, p. 450.
23
lei restritiva; d) o requisito da não retroatividade da lei restritiva; e) o princípio da proibição do
excesso e f) o princípio da salvaguarda do núcleo essencial. 66
Desenvolvendo a construção deste último item de restrições as
restrições seria interessante tecer alguns comentários, no que interessa a nosso estudo, sobre a
construção do chamado núcleo essencial. Este núcleo essencial dos direitos, liberdades e
garantias seria um oásis inviolável e irrestringível ou mesmo um reduto intransponível por
qualquer medida legal restritiva diante da aridez de direitos fundamentais em conflito, segundo
uma visão “subjectiva” quanto ao objeto de proteção e pela adoção de uma teoria “absoluta”.
Mesmo assim, esta limitação poderia ocorrer mesmo no núcleo essencial, segundo uma visão
“objectiva” do objeto de proteção e uma teoria “relativa” sobre o valor da proteção.67
Considerada a divergência entre o real alcance e o objeto do núcleo
essencial dos direitos, liberdades e garantias, segundo Canotilho o entendimento que lhe
pareceria mais adequado seria aquele que estaria em conformidade com a Constituição
Europeia, segundo a qual “qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades deve
respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades”.68
Diante da relatividade dos direitos e garantias fundamentais haveria
situações em que, ao reverso, determinado direito ou garantia fundamental seria absoluto (e nem
referimo-nos aqui a núcleo essencial) devendo ser exercido por seu titular de forma absoluta.
Como exemplo a proibição da tortura, mesmo diante do maior dos criminosos e em benefício de
toda a ordem pública.
Luigi Ferrajoli defenderia em sua Teoria do Garantismo Penal uma
visão similar, onde seria possível a existência de “direitos fundamentais por assim dizer
absolutos”. A justificativa apresentada pelo autor italiano seria no sentido de que estes direitos
fundamentais absolutos estariam “supraordenados” aos demais, sem limitações de ordem
alguma tampouco para a tutela de outros direitos fundamentais. Como exemplos seriam
mencionados o direito à vida, liberdade de consciência e de opinião (diversamente da liberdade
de expressão), a imunidade à tortura. Por outro lado, seria ainda reconhecida, nesta mesma
ordem de pensamento a dificuldade de balanço dos direitos sociais.69
66 Com referência a doutrina alemã Schranken der Schranken, cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e
teoria da constituição. 7. ed. 2. reeimp. Coimbra: Almedina, 2003, p. 451-458. 67 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. 2. reeimp. Coimbra: Almedina, 2003,
p. 458-461. 68 Artigo II-52. 69 Com destaque no original. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer
Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 843-844.
24
Nesta linha de dificuldade de reconhecimento da teoria aos direitos
sociais, reconhece o autor em comento que, fundado no princípio da legalidade, seria
relativamente simples a efetivação do direito à subsistência, menos simples seria o
reconhecimento das garantias legais à instrução e saúde. Mas seria imensamente mais difícil,
por sua vez, a realização dos direitos ao trabalho e à moradia, por causa do caráter “irrealizável
de sua satisfação igualitária, mesmo que mínima.” A justificativa a esta indubitável irrealização
estaria contida nas afirmações do mesmo autor de que a uma, o Estado incorporaria valores
utópicos nas Constituições e a duas, pela imperfeição inevitável de qualquer sistema jurídico.70
Quanto ao direito penal na visão garantista, a garantia fundamental a
ser observada sob a qual se reduz a sua legitimidade substancial seria a da estrita legalidade,
diversamente dos outros setores do ordenamento. Esta estrita legalidade seria refletida pela
sujeição do juiz apenas à lei e isto deriva do nexo que existiria entre a verdade processual e a
liberdade do inocente contra o arbítrio.71
1.3. Garantismo, Democracia, paradigmas do Estado de Direito
O garantismo penal poderia ser entendido assim como meta a
observação das garantias constitucionais aos acusados em processos criminais, evitando-se
abusos, arbitrariedades e violações de direitos fundamentais durante a persecução penal.72
No que se refere ainda aos direitos fundamentais para o garantismo
penal, a construção de Ferrajoli apontaria no sentido de que os mesmos orientam o Estado,
quando da visão liberal de prestações negativas voltadas para o não fazer,73
sobre a utilização da
força, na medida em que este seria considerado o campo mais importante. Estas vedações ao uso
da força seriam melhor visualizadas no direito punitivo. Neste campo, as Constituições teriam
mais rigidamente vinculado os poderes públicos. Desta forma, as garantias penais e processuais
constituem um “sistema de vedações legais inderrogáveis”.74
70 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr,
Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 844-847. 71 Idem. p. 845. 72 “[N]ão se perca de vista a ideia inspiradora do obra: a ideia iluminista e liberal – iluminista em filosofia e liberal em política –
segundo a qual, diante da grande antítese entre liberdade e poder que domina a história humana – em que, nas relações entre
indivíduos e entre grupos, quanto maior seja a liberdade tanto menor será o poder e vice-versa [...]”. Cf. BOBBIO, Norberto.
Prefácio in FERRAJOLI, 2002. p. 8. 73 Isso significava que liberdade, igualdade e propriedade eram assegurados contra o Estado. É, pois, uma sociedade que rejeita
qualquer fundamento religioso que venha querer ditar normas morais ou jurídicas e que possui uma profunda desconfiança para
com o Estado e suas instituições (principalmente na Europa recém exorcizada do absolutismo). [...]. Não se esperava do Estado
que provesse direitos [...]. Idem. 74 Vedações legais de punir, de prender, de perseguir, de censurar ou, de outro modo, sancionar, sem que concorram as condições
estabelecidas pela lei para a tutela dos cidadãos contra os arbítrios. Vedações análogas seriam também impostas aos poderes
privados, não sendo possível sua violação nem mesmo por consentimento de seus titulares. Nem por contrato um homem poderia ser privado de suas liberdades fundamentais, reconhecidas como personalíssimas. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria
do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São
Paulo: RT, 2010, p. 794.
25
Mas o modelo de Ferrajoli não fecharia os olhos para o fato de que as
Constituições também teriam reconhecido outros direitos vitais ou fundamentais além dos
direitos de liberdade que correspondem às vedações. Seriam reconhecidos também direitos
“sociais” ou “materiais”, correspondentes a obrigações, na medida em que representariam
deveres públicos de fazer, prestações positivas para garantia dos direitos sociais.75
Desta forma,
a técnica garantista seria construída pela “incorporação limitativa de direitos civis e de deveres
públicos nos níveis normativos superiores do ordenamento”.76
Seria ainda perceptível nesta dicotomia entre garantias liberais
negativas e sociais positivas, segundo o autor da teoria do garantismo penal, uma mudança da
estrutura normativa do Estado, voltada não mais apenas em vedações legais, mas também por
obrigações de satisfazer direitos. A base de legitimação do Estado também mudaria, na medida
em que o Estado de direito liberal deveria apenas não piorar as condições de vida dos cidadãos,
o Estado de direito social deveria ir além, melhorando-as. Esta diferença está fundada na
diferente natureza dos bens assegurados. As garantias liberais protegeriam as condições naturais
de existência, como a vida, a liberdade, a imunidade ao arbítrio, etc., ao passo que as garantias
sociais lançariam amarras nas pretensões e aquisições de condições sociais de vida, quais sejam,
subsistência, trabalho, saúde, etc; as primeiras voltadas à preservação do passado e as segundas
ao futuro, com alcance inovador.
Façamos constar ainda que ambas as garantias não se excluiriam entre
si, restando, logicamente independentes.77
Seguindo o pensamento apresentado, as prestações positivas teriam
crescido juntamente com o chamado Welfare State e a multiplicação das funções públicas
econômicas e sociais. A enunciação constitucional dos direitos dos cidadãos a prestações
positivas não teria sido acompanhada pela elaboração de adequadas garantias sociais ou
positivas, isto é, de técnicas de defesa e possibilidades de serem deduzidas em juízo. Na visão
75
Em razão da exploração econômica e da desregulamentação do Mercado, causando pobreza em massa,
o Estado Liberal teria entrado em crise, abrindo caminho para uma forma de governo chamada de
Estado Social que, além de proporcionar a todos igual tratamento perante a lei, deveria materializar esta
igualdade em ações concretas. A liberdade estaria agora não mais na ausência de lei, mas em sentido
oposto, na presença de leis protetivas que garantam o direito de agir. Ocorre um processo de
publicização dos direitos privados e de propriedade, como política de bem-estar social. Cf. BAHIA,
Alexandre Gustavo Melo Franco. NUNES, Dierle José Coelho. O potencial transformador dos direitos
“privados” no constitucionalismo pós-88: igualdade, feminismo e risco. Revista dos Tribunais, n. 882,
abr. 2009, p. 48. 76
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,
Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 794. 77
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,
Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 796.
26
de Ferrajoli, em suma, “não foi ainda nem teorizado nem realizado um Estado social de direito”,
caracterizado por obrigações taxativamente estabelecidas e sancionadas.78
/ 79
Nesta linha, para Bahia e Nunes, mantendo o destaque do texto
original, “o que se percebeu é que direitos individuais não podem ser tidos como bens a serem
distribuídos pelo Estado, pois que assim deixam de ser direitos”. Citando Habermas, os mesmos
autores defendem que uma “liberdade assegurada paternalisticamente significa ao mesmo tempo
subtração de liberdade”.80
Esta seria uma lição, por exemplo, compreensiva de questões que
podem ser observadas no Estado brasileiro
onde muitos há que ainda insistem em políticas assistencialistas ou em sua
versão mais sofisticada: o tratamento dos direitos fundamentais como
valores, como bens que podem ser maximizados o que reflete uma atitude
debitaria ainda do Estado de Bem-estar, já que este supunha uma
homogeneidade social que nunca existiu na modernidade.81
As críticas ao Estado de Bem-estar caminhariam no sentido de que o
mesmo seria incapaz de promover a cidadania, nos países mais bem sucedidos. “O paradigma
estava se dissolvendo e, com ele, a crença nessa posição privilegiada do Estado (associado com
o público) sobre os indivíduos (privado)”.82
Assim, o Estado Social que se limitava a incrementar o Estado Liberal
com políticas assistencialistas, “entregando o peixe” ao cidadão, passa a “ensinar a pescar”,
mediante a adoção de políticas de inclusão, incorporando e implementando os anteriores.
As naturais diferenças de classes percebidas no feudalismo e em toda
Antiguidade, após as Revoluções burguesas, o Liberalismo e as grandes Declarações de
Direitos, consagra-se a igualdade como identidade. Todos são formalmente iguais perante a lei.
Desta forma, o Estado de Bem-estar teria surgido com a meta de materializar a igualdade (e a
liberdade), objetivando gerar cidadania. Agora, somente um terceiro estágio poderia superar os
78
Idem. 79
A grande promessa do Estado de Bem-estar – qual seja, materializar os direitos a fim de criar condições
para gerar cidadania – não se efetivou. Ao invés, o que se viu, inclusive nos países onde ele
aparentemente funcionou melhor foi a formação de uma clientela dependente do Estado-Providência;
[...]. Cf. BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. NUNES, Dierle José Coelho. O potencial
transformador dos direitos “privados” no constitucionalismo pós-88: igualdade, feminismo e risco.
Revista dos Tribunais, n. 882, abr. 2009, p. 48. 80
BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. NUNES, Dierle José Coelho. Op. cit., p. 49. 81
Idem. Acrescentando que “o Brasil jamais viveu o estado de Bem-estar social”, cf. BAHIA, Alexandre
Gustavo Melo Franco. Aula ministrada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de
Direito do Sul de Minas, disciplina Teoria da Democracia, 2011. 82
Ibidem.
27
dois anteriores e redefinir uma igualdade que reconhece as diferenças, que não as explora por
padrões de dominação ou subordinação.83
Neste ponto, inicia-se uma abordagem sobre um Estado que passaria a
ser denominado de Democrático de Direito, pois incorporaria as preocupações dos estados
anteriores, com decisões democráticas, audiências públicas, etc. Juridicamente, aqui estaria
nascendo a noção tão decantada de neoconstitucionalismo, caracterizado por uma tensão entre
constitucionalismo (convicção de que existem princípios que devem prevalecer mesmo contra a
vontade da maioria – direitos fundamentais, cláusulas pétreas, etc.) e democracia (as decisões
devem ser tomadas pela vontade da maioria). Esta tensão seria o motor do Estado Democrático
de Direito, segundo Habermas. O equilíbrio entre o constitucionalismo e a democracia somente
o pós-positivismo conseguiria, na medida em que este modelo teria melhores condições de
conciliar ou resgatar o conceito e o significado de prudência do direito romano, na medida em
que precisaríamos decidir o direito observando a lei, mas sem ferir os valores morais e éticos. O
direito deveria estar com concordância com a moral e a ética, mas poderia contrariá-las, quando
necessário. Seria este o único mecanismo social que poderia se opor a convicções morais. Não
se trataria também de atrelar direito, moral e ética, pois isso poderia pulverizar o direito. Seria o
direito quem conseguiria transformar o pluralismo ético e moral em norma, para possuir
legitimidade, estando em concordância com a moral. Esta seria a razão de existência, o
“porque” do pós-positivismo, na medida em que este conseguiria mediar esta tensão. Desta
forma, existiria uma relação circular entre “neo-positivismo” e o constitucionalismo.
Estas breves considerações fizeram-se necessárias, na medida em que,
conforme a construção teórica do precursor do garantismo, o Estado de direito, como resultado
do conjunto das garantias liberais e sociais, poderia ser configurado sobre o que chamou de
“metaregras” em relação às regras mesmas da democracia política. Em um sentido não formal e
político, mas substancial e social de democracia, o Estado de Direito equivaleria à democracia,
no sentido que reflete, além da vontade da maioria, os interesses e necessidades vitais de todos:
o garantismo, como técnica de limitação e disciplina dos poderes públicos,
voltado a determinar o que estes não devem e o que devem decidir, pode bem
ser concebido como a conotação (não formal, mas) substancial da
democracia: as garantias, sejam liberais ou sociais, exprimem de fato os
direitos fundamentais dos cidadãos contra os poderes do Estado, os interesses
dos fracos respectivamente aos dos fortes, a tutela das minorias
marginalizadas ou dissociadas em relação às maiorias integradas, as razões
de baixo relativamente às razões do alto.84
83
BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco; NUNES, Dierle José Coelho. Op. cit., p. 50. 84
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,
Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 797.
28
No entender de Ferrajoli, estas questões ensejariam uma redefinição
do conceito de “democracia”, que receberia o nome de democracia substancial ou social o
“Estado de direito” dotado de efetivas garantias, liberais ou sociais. Por outro lado, o mesmo
autor denominou de democracia formal ou política o “Estado político representativo”, fundado
no princípio da maioria como fonte de legalidade.
[A] democracia substancial incorpora valores mais importantes, e de tal
maneira prejudiciais à formal. Nenhuma maioria, se tem dito, pode decidir a
condenação de um inocente ou a privação dos direitos fundamentais de um
sujeito ou de um grupo minoritário; e nem mesmo pode não decidir pelas
medidas necessárias para que a um cidadão sejam asseguradas a subsistência
e a sobrevivência.85
A expansão da democracia poderia ocorrer, segundo Ferrajoli, com a
extensão dos vínculos estruturais e funcionais impostos a todos os poderes para a tutela
substancial de sempre novos direitos vitais, junto com a elaboração de novas técnicas
garantistas idôneas a assegurar-lhes uma maior efetividade, na medida em que “hoje o elenco
dos bens fundamentais está mais extenso, tendo crescido o número de ameaças às condições
naturais de vida”.86
Um projeto de democracia social é, portanto, formado por todos aqueles
elementos com os quais se faz um Estado social de direito: este consiste na
expansão dos direitos dos cidadãos e correlativamente dos deveres do Estado,
ou, se se preferir, na maximização da liberdade e das expectativas de
minimização dos poderes.
Ferrajoli proporia que o sistema como um todo atue norteado por dez
axiomas, que serão verificados também no decorrer do presente estudo. Contudo, importante
frisar ainda que não se trataria aqui de promover a impunidade velada, o objeto a ser buscado é
um processo justo, culminando com eventual punição pela prática de conduta ilícita, tudo sob o
olhar atento e preservador das garantias constitucionais. A forma no processo penal seria
também uma garantia inarredável, eis que sua violação corresponderia à ilegitimidade da
decisão. Ao contrário, sim, o “atropelo” das garantias processuais constituiria fator de
impunidade e, consequentemente, grave risco de injustiça.87
Nesta linha, não podemos nos prender à função do processo penal
como mera busca pela verdade real.88
O curso que se pretende trilhar possui escarpa cujo topo é
aparentemente inatingível, na medida em que se busca um processo justo, no qual o resultado de
85 FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 798. 86 Idem. 87 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v.
1. Nota do autor, p. xliv. 88 A proteção do indivíduo também resulta de uma imposição do Estado Democrático, pois a democracia trouxe a exigência de que o
homem tenha uma dimensão jurídica que o Estado ou a coletividade não pode sacrificar ad nutum. O Estado de Direito, mesmo
em sua origem, já representava uma relevante superação das estruturas do Estado de Polícia, que negava ao cidadão toda
garantia de liberdade. Cf. LOPES JUNIOR, 2011, p. 12.
29
nada nos socorre sem que as garantias constitucionais sejam observadas. Por vezes, as normas e
princípios da Magna Carta são afastados em nome de dispositivos infraconstitucionais, como
exemplo as normas da lei de drogas sobre o interrogatório.89
Quanto ao aspecto pontual da verdade no processo, seria percebida
uma diferenciação em sua busca ao longo da história, refletida nos sistemas processuais penais
existentes, bem como na postura da iniciativa instrutória do juiz. Neste aspecto, seria encontrado
um juiz mais ativo na colheita da prova, frente a um modelo de sistema processual penal
inquisitório, ao passo que um juiz de postura mais passiva, como gestor do processo e
garantidor dos direitos do acusado, estaria presente no processo de matriz acusatória.
A mencionada busca pela verdade apresentaria ainda aspectos
decisivos na atuação do juiz perante o processo. Seria ele integrante dos quadros da acusação,
concorrendo com o órgão acusador, como fonte de defesa social, revestindo-se de caráter
“justiceiro”? Ou seria o juiz um mero espectador do jogo entre as partes, atuando apenas quando
provocado, sendo sua postura frente ao processo penal equiparada a uma “samambaia”? Estes
dois extremos refletiriam bem a trilha pela qual devemos caminhar neste estudo.
Ainda sobre a verdade, seria válida sua busca desmedida, procurada “a
qualquer custo”? Neste tema, as garantias constitucionais fundamentais do cidadão seriam
entendidas também como fonte de limitação ao poder punitivo estatal. A verdade real buscada
pela inquisição já não mais representaria o ideal de justiça no processo. O juiz teria deixado de
ser entendido como aplicador da lei divina, transformando-se em garantidor dos direitos do
acusado.
1.4. Garantismo, minimalismo e transformação social
Entretanto, de que forma adequar as garantias constitucionais dos
acusados em geral com os anseios da sociedade que clama por mais segurança e redução nos
índices de criminalidade? Por sua vez, o Estado em busca de uma efetiva resposta à violação da
89
A Lei Federal de n. 11.343/06 determina a realização do interrogatório do denunciado como primeiro
ato durante a audiência de instrução e julgamento, nos termos do artigo 57 da referida lei. Entendemos
que este dispositivo fere o princípio do contraditório e da ampla defesa estampados na Constituição
Federal de 1988. Entretanto, esta não é a posição de nossos tribunais: “1. Nos termos do art. 394, § 2º,
salvo disposições em contrário do Código de Processo Penal ou de lei especial, o procedimento comum
será aplicado a todos os processos. Logo, possuindo a Lei 11.343/06 rito próprio, afastadas estão, em
regra, as normas do procedimento comum. 2. O art. 57 da Lei 11.343/06 dispõe que o interrogatório
inaugura a audiência de instrução e julgamento, ao contrário do rito do Estatuto Processual Penal que o
fixou como último ato da instrução, nos termos do seu art. 400. 3. In casu, denota-se que o
interrogatório foi realizado nos termos estabelecidos no rito especial da Lei de Drogas, razão por que
não se verifica a existência de nulidade em face da alegada inobservância do art. 400 do CPP”, cf. STJ,
HC 152.776 - RS, 5ª Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 17.11.2011. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 20 fev. 2012.
30
ordem social poderia, da mesma forma que o criminoso, violar a ordem social, na medida em
que não observa as garantias previstas na Constituição Federal? Seria o poder do Estado durante
a persecutio criminis in judicio ilimitado? Seria legítima a busca pela justiça “a qualquer
custo”?
O italiano Luigi Ferrajoli teria desenvolvido a Teoria do Garantismo
Penal após ter vivenciado ativamente anos difíceis em seu país, onde participou de debates e
escreveu artigos na imprensa “na defesa do respeito à legalidade, durante anos em que uma
imprevista e imprevisível explosão de violência política [...] provocou a legislação de
emergência”.90
Pelo que aqui se verificaria, segundo Bobbio, Ferrajoli desenvolveu sua teoria
exatamente para impor limites à voracidade punitiva estatal, em especial durante um período de
instabilidade social,91
/ 92
na medida em que o poder público precisava apresentar uma resposta à
sociedade daquele país. Entretanto, esta resposta necessária não deveria, segundo o
entendimento do nosso autor, afastar-se da vinculação aos direitos e garantias fundamentais dos
acusados.
Quanto ao que se referiria ao Brasil, teríamos vivido um período de
incertezas durante o regime militar. A redemocratização do Estado exigia uma nova ordem
social. O Direito ofereceria, em 1988, uma resposta aos anos de ferro na forma da chamada
Constituição Cidadã por proteger, ao menos teoricamente, os interesses e/ou direitos do povo.
As festejadas garantias constitucionais ao cidadão apresentam-se na forma de princípios.93
/ 94
Da conjugação do direito penal com a Constituição poderíamos extrair a conclusão de que doze
são os mais relevantes princípios constitucionais penais, que funcionariam como limites
internos do poder punitivo. Alguns estariam expressamente contemplados na Constituição (são
explícitos a dignidade, igualdade, legalidade, etc.), outros, implícitos:
90 BOBBIO, Norberto. Cf. Prefácio in FERRAJOLI, 2002, p. 11. 91 No final da década de 1970 e início da próxima, as reformas do sistema penal italiano não puderam ser levadas adiante “por causa
dos graves problemas enfrentados por ataques terroristas e outras manifestações do crime organizado, realizados contra
instituições democráticas”, cf ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011, p. 108-109. Para melhor visão sobre este período da história, especificamente em relação à atuação das
famosas máfias italianas, cf. FALCONE, Giovanni; PADOVANI, Marcelle. Coisas da cosa mostra: a máfia vista por seu pior
inimigo. Tradução de Luís de Paula. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. Destaque-se ainda, como alerta, o fato de que o Juiz de Direito italiano possuía poderes instrutórios, em forma diferente do sistema penal brasileiro, cf. FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 517.
92 “A emergência do terrorismo, a crescente burocratização e homologação dos partidos e sindicatos, a crise de sua capacidade de
representação das demandas sociais e de mediação de conflitos, a concentração oligopolista da informação e a sua penetração e entrelaçamento com os partidos, o ocaso, enfim, das perspectivas passadas de transformação. Este fechamento, como sempre
ocorre, produziu a crise de legalidade e das garantias jurídicas [...] e até mesmo fenômenos de infidelidade constitucional,
manifestados no desenvolvimento de tramas subversivas e de tentativas golpistas”. Cf. FERRAJOLI, 2002, p. 754. 93 Os princípios - diferentemente das regras - não prescrevem uma determinada conduta, porque não contêm a especificação
suficiente de uma situação fática e sua correlativa consequência jurídica. Os princípios expressam critérios e razões para uma determinada decisão, mas não a definem detalhadamente. Distintamente do que se passa com as regras, os princípios podem se
realizar em maior ou menor medida, porque são “mandamentos de otimização” que têm uma “dimensão de peso”. Cf. Santiago
MIR PUIG, seguindo a DWORKIN (Derecho penal: parte general, cit., p. 261), apud GOMES, Luiz Flávio. Limites do “ius puniendi” e bases principiológicas do garantismo penal. Disponível em: <http://www.lfg.blog.br>. Acesso em: 20 fev. 2012.
94 Abandonando a teoria da metodologia jurídica tradicional que distinguia entre princípios e normas, “os princípios e regras são
duas espécies de normas e que a distinção entre princípios e regras é uma distinção entre duas espécies de normas.” Entretanto, o mesmo autor adverte que, quanto aos chamados “princípios-garantia” é lhes atribuída uma “densidade de autêntica norma jurídica
e uma força determinante, positiva e negativa”, Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da
constituição. 7. ed. 2. reeimp. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1160 e 1167.
31
(a) princípios relacionados com a missão fundamental do Direito penal: (1)
princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos e (2) princípio da
intervenção mínima; (b) princípios relacionados com o fato do agente: (3)
princípio da exteriorização ou materialização do fato, (4) princípio da
legalidade do fato e (5) princípio da ofensividade do fato; (c) princípios
relacionados com o agente do fato: (6) princípio da responsabilidade pessoal,
(7) princípio da responsabilidade subjetiva, (8) princípio da culpabilidade e
(9) princípio da igualdade, e (d) princípios relacionados com a pena: (10)
princípio da proibição da pena indigna, (11) princípio da humanização das
penas e (12) princípio da proporcionalidade, sendo certo que este último
possui várias dimensões: princípio da necessidade concreta da pena, princípio
da individualização da pena, princípio da personalidade da pena, princípio da
suficiência da pena alternativa e princípio da proporcionalidade em sentido
estrito. 95
Ademais, merece destaque o princípio da dignidade da pessoa
humana, que é considerado como
a base ou o alicerce de todos os demais princípios constitucionais penais.
Qualquer violação a outro princípio afeta igualmente o da dignidade da
pessoa humana. O homem (o ser humano) não é coisa, não é só cidadão, é,
antes de tudo, pessoa dotada de direitos, por força da vinculação normativa
da Constituição e do Direito humanitário internacional.96
A dignidade humana, sem sombra de dúvida, é a base ou o alicerce de todos
os demais princípios constitucionais penais. Qualquer violação a outro
princípio afeta igualmente o da dignidade da pessoa humana. O Homem (sic)
não é coisa, é, antes de tudo, pessoa dotada de direitos, sobretudo perante o
poder punitivo do Estado.97
Destaque-se aqui que os princípios ostentariam plena eficácia
normativa, pois seriam verdadeiras normas e não meras orientações procedimentais a nortear
toda ação do Poder Público.98
Após a verificação dos princípios norteadores do Direito e processo
penal, resta necessária ainda uma distinção importante. O garantismo não se confunde com o
minimalismo, sendo certo, entretanto, que ambos compartilham os mesmos objetivos, na
medida em que visualizam a mínima atuação do Estado. O primeiro prega restringir ao mínimo
necessário o poder estatal punitivo em face da ampliação das liberdades do homem, entendidas
como garantias, ao passo que o segundo pretende que o Estado atue somente na defesa de bens
jurídicos relevantes, em oposição ao direito penal máximo.
95
GOMES, Luiz Flávio. Limites do “ius puniendi” e bases principiológicas do garantismo penal.
Disponível em: <http://www.lfg.blog.br>. Acesso em: 20 fev. 2012. 96
Id. 97
Id. 98
“Os princípios (especialmente os constitucionais) são normas fundamentais ou gerais do sistema. São
fruto de uma generalização sucessiva e constituem a própria essência do sistema jurídico, com
inegável caráter de norma.” Cf. LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade
constitucional. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 108.
32
A diferença entre o modelo de direito penal mínimo e o de direito
penal máximo residiria no fato de serem ambos os pontos extremos da resposta penal, na
medida em que o primeiro apresentaria limitação máxima ao poder punitivo, já o segundo, ao
reverso, apresentaria o poder punitivo estatal ilimitado.99
/
100 A certeza perseguida pelo direito
penal máximo seria no sentido de que nenhum culpado fique sem punição, à custa da incerteza
de que algum inocente possa ser punido. A certeza perseguida pelo direito penal mínimo seria,
ao contrário, que nenhum inocente seja punido, à custa da incerteza de que algum culpado reste
impune.101
/ 102
A noção de direito penal máximo exigiria a inobservância das
garantias às quais se arvoram em face do acusado, o que traria uma noção de tensão com os
princípios elementares de um Estado de Direito Democrático, em especial o traçado por nossa
Constituição Federal de 1988. “Assim, direito penal e processual se complementam no sentido
de funcionar contra o discurso que o sustenta, ou seja, o das garantias de um Estado
democrático de direito”.103
Desta forma, garantista “é o sistema penal em que a pena fica excluída
da incerteza e da imprevisibilidade de sua intervenção, ou seja, que se prende a um ideal de
racionalidade, condicionado exclusivamente na direção do máximo grau de tutela da liberdade
do cidadão contra o arbítrio punitivo”.104
Retomado o conceito de garantismo, a grande questão que enfrentaria
a teoria seria como equilibrar a incoerência existente entre as previsões garantistas do sistema
penal e a sua efetivação perante o caso concreto, na medida em que, como dito, o excesso de
garantias poderia caminhar para a impunidade e o excesso do poder estatal punitivo, sem
garantias fundamentais ao acusado, na forma de abuso do direito de punir, poderia caminhar
99
CARVALHO, Salo. Pena e garantias. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 82-84. 100
“Na visão do Direito Penal Máximo, os direitos e garantias individuais do acusado seriam
interpretados como entraves burocráticos a um sistema sedento por “justiça” e notadamente falho por
punir pouco e de forma branda”. Cf. SILVA FILHO, Edson Vieira da. A sedução do sistema
inquisitorial no sistema penal. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, n. 25, jul./dez. 2007,
p. 80. 101
FERRAJOLI, 2002, p. 83. 102
Como expoentes de uma teoria minimalista, podemos apontar Louk Hulsman, Eugênio Raúl Zaffaroni,
Luigi Ferrajoli, Alessandro Baratta e Juarez Cirino dos Santos. Cf. VIEIRA, Edson (Org.). O direito
penal e suas faces: da modernidade ao neoconstitucionalismo. v. 1. O direito penal visto em uma
perspectiva minimalista. Curitiba: CRV, 2012. Como contraponto, por uma visão de direito penal
máximo, cf. VIEIRA, Edson (Org.). O direito penal e suas faces: da modernidade ao
neoconstitucionalismo. v. 2. O direito penal visto em uma perspectiva máxima. Ainda sem publicação. 103
SILVA FILHO, Edson Vieira da. A sedução do sistema inquisitorial no sistema penal. Revista da
Faculdade de Direito do Sul de Minas, n. 25, jul./dez. 2007, p. 80. 104
GOMES, Luiz Flávio. Princípios constitucionais reitores do direito penal e da política criminal.
Disponível em: <http://www.lfg.blog.br>. Acesso em: 20 fev. 2012.
33
para o autoritarismo. Então como é possível ampliar as liberdades e, ao mesmo tempo, restringir
o poder estatal?
Mínima intervenção penal com as máximas garantias, nisso pode ser
sintetizado o garantismo de Ferrajoli,105
que está fundado na irrestrita observância de dez
axiomas106
sequenciais e lógicos,107
acompanhados da respectiva tradução:
(A1) Nulla poena sine crimine (não há pena sem crime); (A2) Nullum
crimen sine lege (não há crime sem lei); (A3) Nulla lex (poenalis) sine
necessitate (não há lei penal sem necessidade); (A4) Nulla necessitas sine
iniuria (não há necessidade sem ofensa ao bem jurídico); (A5) Nulla iniuria
sine actione (não há ofensa ao bem jurídico sem conduta); (A6) Nulla actio
sine culpa (não há conduta penalmente relevante sem culpa, ou seja, sem
dolo ou culpa); (A7) Nulla culpa sine judicio (não há culpabilidade ou
responsabilidade sem o devido processo criminal); (A8) Nullum judicium
sine accusatione (não há processo sem acusação; nemo iudex sine actori);
(A9) Nulla accusatio sine probatione (não há acusação sem provas, ou seja,
não se derruba a presunção de inocência sem provas válidas) e (A10) Nulla
probatio sine defensione (não há provas sem defesa, ou seja, sem o
contraditório e a ampla defesa).108
A sequencia principiológica109
apresentada por Ferrajoli se apresenta
como instrumento de graduação de todo o sistema penal, na medida em que funciona como
sendo as “regras do jogo”110
nos Estados Democráticos de Direito. Configurariam assim,
sistemas garantistas ou autoritários, segundo este critério.
Contudo, apesar de o modelo garantista ferrajoliano mostrar-se atual,
em 1794, conforme já sustentado, de matriz iluminista, nos deparamos com seus fundamentos
105
GOMES, Luiz Flávio. Princípios constitucionais reitores do direito penal e da política criminal.
Disponível em: <http://www.lfg.blog.br>. Acesso em: 20 fev. 2012. 106
Axioma: Premissa imediatamente evidente que se admite como universalmente verdadeira sem
exigência de demonstração. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio
eletrônico – século XXI. São Paulo: Nova Fronteira, 1999. 107
Sobre as condições metodológicas de uma teoria axiomatizada, remetemos a FERRAJOLI, Luigi.
Teoria assiomatizzada del diritto. Parte generale. Milano: Giuffrè, 1970 e FERRAJOLI, Luigi. La
semantica dela teoria del diritto, cit., p. 104. Em artigo publicado na revista Doxa, Ferrajoli apresenta
alguns parágrafos extraídos dos primeiros três capítulos de uma Teoria Axiomatizada do Direito, com
publicação futura pela editora Laterza sob o título Principia iuris. Teoria giuridica della democrazia.
Cf. FERRAJOLI, Luigi. Expectativas y garantías. Primeras Tesis de uma teoría axiomatizada del
derecho. Doxa – Cuadernos de Filosofia del Derecho, Alicante (ES), n. 20, p. 235- 278, 1997.
Disponível em <http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/12493875355693728543657/cua
derno20/Doxa20_08.pdf>. Acesso em: 30 jan. 2013. 108
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,
Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 91. 109
Dos dez axiomas apontados acima derivam, mediante silogismos triviais, quarenta e cinco teoremas
que, ao todo, após todas as possíveis conjugações, somam cinquenta e seis teses, das quais dez
primitivas e as demais derivadas, que conjuntamente configuram o modelo penal garantista. Cf.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,
Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 92. 110
CARVALHO, Salo. Pena e garantias. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 82-84.
34
na obra de Cesare Beccaria.111
No início deste livro, observa-se a máxima de que “só as leis
podem fixar as penas de cada delito e que o direito de fazer leis penais não pode residir senão na
pessoa do legislador”,112
remetendo-a aos dois primeiros axiomas propostos por Ferrajoli, os
quais depositam na lei a função de definir a pena aos respectivos delitos.
Beccaria afirma que “é melhor prevenir os crimes que ter de puni-los;
e todo legislador sábio deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo”. Observa-se, então,
que a aplicação da lei penal só acontece se não se conseguir a prevenção do delito, remetendo à
ideia de subsidiariedade do direito penal, assim como a exigibilidade da ofensa ao bem jurídico,
que consiste em “crimes que pertencem ao homem natural e que violam o contrato social”,113
remetendo aos axiomas Nulla iniuria sine actione e Nulla necessitas sine iniuria.
Na mesma linha, a exigibilidade da culpa deve ser demonstrada por
meio de provas válidas “que demonstram positivamente que é impossível que o acusado seja
inocente […] embora deva, se é inocente, ter meios de justificar-se”.114
O direito de justificar-se
em relação à prova incriminadora, embora de forma mitigada, remete à ideia dos princípios do
contraditório e da ampla defesa. Demonstra-se assim que no século XVIII, com Beccaria,
portanto, o anseio por garantias aos indivíduos já se mostrava presente.
Observados os princípios minimalistas entrelaçados aos ideais
garantistas, possibilita-se agora o estudo de um sistema penal minimalista garantista, assim
apresentado:
1) o Direito penal tem por finalidade (precípua) a exclusiva proteção de bens
jurídicos (princípio da proteção exclusiva de bens jurídicos); 2) jamais pode o
Direito penal ter incidência senão quando absolutamente necessário
(princípio da intervenção mínima - Nulla lex poenalis sine necessitate: não há
lei penal sem necessidade); 3) o Direito penal (do fato) exige
obrigatoriamente a exteriorização de um fato criminoso (princípio da
exteriorização ou materialização do fato), mesmo porque não há pena sem
crime - Nulla poena sine crimine - e não existe crime sem conduta - Nullum
crimen sine actione; 4) fato previsto na lei (princípio da legalidade do fato -
Nullum crimen sine lege – fato formalmente típico); 5) fato ofensivo a bens
jurídicos de terceiros (princípio da ofensividade do fato - Nulla necessitas
nullum crimen sine iniuria – fato materialmente típico); 6) fato próprio, ou
seja, ninguém pode ser punido por fato criminoso alheio (princípio da
responsabilidade pessoal); 7) fato exteriorizado por meio do dolo ou da culpa
(princípio da responsabilidade subjetiva – Nullum crimen nulla actio sine
culpa); 8) a sanção penal só pode incidir, ademais, contra o agente com
capacidade de se motivar de acordo com a norma e de se comportar de forma
distinta, conforme o Direito (princípio da culpabilidade); 9) não há
culpabilidade (não há comprovação da responsabilidade penal) sem o devido
111
BECCARIA, 2000. 112
Id. 113
Id. 114
Id.
35
processo criminal - Nulla culpa sine judicio; 10) não há processo criminal
sem acusação - Nullum judicium sine accusatione ou nemo iudex sine actori
(sistema acusatório); 11) não há acusação sem provas, ou seja, não se derruba
a presunção de inocência sem provas válidas e incriminatórias - Nulla
accusatio sine probatione; 12) não há provas sem defesa, ou seja, sem o
contraditório e a ampla defesa – Nulla probatio sine defensione; 13) é
intolerável qualquer tipo de tratamento desigual discriminatório, isto é, os
iguais devem ser tratados igualmente, os desiguais desigualmente (princípio
da igualdade); 14) está proibida a cominação ou aplicação de pena que seja
indigna (princípio da proibição da pena indigna); 15) a cominação, aplicação
e execução das penas devem se orientar pelo princípio da humanização e
seguir rigorosamente a proporcionalidade, que se manifesta por meio de
várias dimensões: 16) princípio da necessidade concreta da pena; 17)
princípio da individualização da pena; 18) princípio da personalidade ou
pessoalidade da pena; 19) princípio da suficiência da pena alternativa e 20)
princípio da proporcionalidade em sentido estrito.115
Desta conjugação, retomando apontamento anterior, o garantismo de
Ferrajoli surgiria pelo “descompasso” existente entre a realidade praticada pelas instituições
jurídicas em suas atividades cotidianas que, insistentemente, negariam os princípios e as
previsões legais que limitam a atuação destas mesmas instituições.116
Este “descompasso” teria
reflexos quanto à práxis que sustenta, na medida em que o garantismo penal em suas várias
facetas proporcionaria condições para que as violações cotidianas das liberdades, direitos e
garantias fundamentais, reconhecidas, pudessem ocasionar a nulidade destas mesmas práticas
abusivas. Mais ainda. Seria justificável a observância da matriz garantista do processo penal por
força do surgimento de tendências neo-absolutistas, especialmente quando referentes à possível
legislação de emergência, como teria ocorrido na Itália nos anos 80 do século passado. Estas
legislações surgiriam como o pretexto de defesa da sociedade, mas agiriam em afetiva violação
dos direitos e garantias fundamentais. Em outro sentido ainda, o garantismo poderia efetivar-se
como critério de legitimidade de atuação das instituições e como norte a ser alcançado por todo
sistema penal, em verdadeiro balizamento garantista. No Brasil, haveria uma inflação legislativa
penal que visaria resolver os problemas da sociedade criminalizando todas as condutas
entendidas legislativamente como nocivas. Como exemplo recente, as alterações perpetradas no
Código de Trânsito Brasileiro, pelas quais deveria o cidadão ser coagido a produzir prova contra
si mesmo ao submete-se ao teste do etilômetro. Neste contexto específico, assegurando sua
função de guardião da constituição o Supremo Tribunal Federal teria adotado uma postura
115
GOMES, Luiz Flávio. Princípios constitucionais reitores do direito penal e da política criminal.
Disponível em: <http://www.lfg.blog.br>. Acesso em: 20 fev. 2012. 116
Luigi Ferrajoli centra sua abordagem partindo do pressuposto de que o garantismo surge exatamente
pela incoerência existente entre a normatização estatal e as práticas que deveriam estar fundamentadas
nelas. No aspecto penal, destaca o autor que as atuações administrativas e policiais andam em
descompasso com os preceitos estabelecidos nas normas jurídicas estatais. In: FERRAJOLI, Luigi:
Derecho y razón – Teoría del garantismo penal. Madrid: Trotta, 1998. p. 851. Então, a ideia do
garantismo é, de um modo geral, a busca de uma melhor adequação dos acontecimentos do mundo
empírico às prescrições normativas oficiais. Cf. MAIA, Alexandre da. O garantismo jurídico de Luigi
Ferrajoli: notas preliminares. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br>. Acesso em: 20 fev. 2012.
36
garantista do princípio nemo tenetur se detegere. A postura do Supremo aliada a forte anseio
popular, teria culminado com nova reforma voltada para a preservação dos direitos e garantias
fundamentais. Ao que parece, ainda neste mesmo exemplo, hoje teria sido encontrado um
caminho de satisfação popular e preservação das liberdades particulares do cidadão.
Ainda na linha de adequação à práxis, fica a ressalva de que o termo
garantismo possui várias acepções,117
e que, conforme Ferrajoli, poderiam construir o que
chamou de uma „Teoria Geral do Garantismo‟, afastada, inclusive, do direito penal.118
O
princípio da legalidade como base do Estado de Direito é o primeiro norte do garantismo,
proporcionando a observância do Estado às normas garantistas. Igualmente, validade e
efetividade também se evidenciam no pensamento do autor, na medida em que existem graus de
garantismo,119
dependendo do grau de observação.
O garantismo seria então, no entender de Ferrajoli,
uma forma de direito que se preocupa com aspectos formais e substanciais
que devem sempre existir para que o direito seja válido. Essa junção de
aspectos formais e substanciais teria a função de resgatar a possibilidade de
se garantir, efetivamente, aos sujeitos de direito, todos os direitos
fundamentais existentes. É como se a categoria dos direitos fundamentais
fosse um dado ontológico para que se pudesse aferir a existência ou não de
um direito; em outras palavras, se uma norma é ou não válida.120
Observe-se ainda questão importante a ser enfrentada. O garantismo
de Ferrajoli é, por vezes, confundido com mero formalismo ou impunidade,121
conforme já
apontado. A teoria consiste na tutela dos direitos fundamentais, cujo desfrute por parte de todos
constitui a base substancial da democracia. Dessa afirmação de Ferrajoli é possível extrair um
imperativo básico, relembrando: o Direito existe para tutelar os direitos fundamentais.122
117 MAIA, op. cit. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi
Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010. 118 Possível aplicação a sistemas estruturalmente análogos ao penal, como o civil, administrativo, constitucional, internacional e do
trabalho. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 21. 119 A exclusão ou inclusão de premissas garantistas em um sistema penal é que o define como de maior ou de menor grau de
garantismo, na medida em que se aproximam ou se afastam do modelo idealizado, cf. op. cit. p. 95. O grau de garantismo de um
sistema penal pode ser definido ainda, segundo Ferrajoli, como o “conjunto de vínculos normativos” que minimizam os espaços
decisórios, reservados mais ou menos irredutivelmente à atividade do juiz, cf. op. cit. p. 532. 120 MAIA, op. cit. 121 “as garantias consistem em mecanismos que, porquanto a sua vez normativos, são direcionadas a assegurar a máxima
correspondência entre normatividade e efetividade da tutela dos direitos. Entende-se, nesse sentido, o “garantismo” não tem nada
a ver com o mero legalismo ou processualismo. Aquele [garantismo] consiste sim na satisfação dos direitos fundamentais: o quais
– da vida à liberdade pessoal, da liberdade civil e política às expectativas sociais de subsistência, dos direitos individuais aos coletivos – representam os valores, os bens e os interesses, matérias e pré-políticos, que fundam e justificam a existência daqueles
artifícios – como os chamou Hobbes – que são o direito e o Estado, e cujo gozo por todos forma a base substancial da democracia.
Cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 22.
122 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr,
Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 312. LOPES JUNIOR, Aury. Fundamento da existência do processo penal: instrumentalidade constitucional. Disponível em: <http://jus.com.br>. Acesso em: 20 fev. 2012. LOPES
JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p.
247.
37
No prólogo da obra de Ferrajoli, Bobbio define as grandes linhas de
um modelo geral de garantismo:
Antes que nada, elevándolo a modelo ideal del estado de derecho, entendido
no sólo como estado liberal protector de los derechos sociales; en segundo
lugar, presentándolo como una teoría del derecho que propone un
iuspositivismo crítico contrapuesto al iuspositivismo dogmático; y, por
último, interpretándolo como una filosofia política que funda el estado sobre
los derechos fundamentales de los ciudadanos y que precisamente del
reconocimiento y de la efectiva protección (¡no basta el reconocimiento!) de
estos derechos extrae su legitimidad y también la capacidad de renovarse sin
recurrir a la violencia subversiva.123
Ferrajoli trata ainda de uma questão “ético-política” norteadora da
legitimidade de seus preceitos, na busca de uma justificativa externa. Afirma o autor que “tais
elementos políticos são as bases fundamentais para o surgimento dos comandos jurídicos do
Estado”. Por sua vez, a norma jurídica somente seria válida se estivesse em conformidade com
os direitos fundamentais normatizados na Constituição.124
Na mesma medida, como contraponto, a questão da observância e
proteção efetiva dos direitos fundamentais traz consigo a necessidade imperiosa de tecer mais
um comentário. Estes mesmos direitos fundamentais, no que consistiriam exatamente? Maia125
chama a questão de “vazio ontológico”. Para o mesmo autor, a teoria de Ferrajoli seria fundada
em conceito aberto, podendo servir de alicerce a regimes autoritários, os quais elegeriam os
direitos fundamentais que melhor lhes aprouvesse. Desta forma, todas as formas de poder,
democráticas ou não, estariam legitimadas pela teoria de Ferrajoli.126
Sopesados os principais aspectos do Garantismo Penal de Ferrajoli,
resta-nos direcionar nosso estudo ao ponto onde a teoria do garantismo penal refere-se,
estritamente, às garantias processuais inseridas na Constituição Federal. Para tanto, devemos
apresentar ao leitor alguns números.
123 Primeiro, elevando-o a um modelo ideal do Estado de Direito, entendido não só como estado liberal protetor dos direitos sociais,
em segundo lugar, apresentando-a como uma teoria do direito que propõe um juspositivismo crítico em oposição a um
juspositivismo dogmático; e, finalmente, interpretando-o como uma filosofia política que funda o Estado sobre os direitos fundamentais dos cidadãos e que, precisam de reconhecimento e de efetiva protecção (não basta o reconhecimento!) desses
direitos extrai-se sua legitimidade e também a capacidade de renovar-se sem recorrer a violência subversiva. FERRAJOLI, 1998.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr,
Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010. 124 Norma jurídica não no sentido de lei, mas no sentido de resultado da interpretação da lei. Diferente ainda da decisão jurídica. 125 MAIA, Alexandre da. O garantismo jurídico de Luigi Ferrajoli: notas preliminares. Disponível em:
<http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/11690-11690-1-PB.htm>. Acesso em: 20 fev. 2012. 126 Em um estudo posterior à obra Derecho y Razón, Ferrajoli apresenta uma definição teórica, formal ou estrutural de Direitos
fundamentais. Direitos fundamentais são, portanto, segundo esta definição, “aquellos derechos subjetivos que corresponden
universalmente a „todos‟ los seres humanos en cuanto dotados del status de personas,de ciudadanos o personas con capacidad de
obrar.” (aqueles direitos subjetivos que correspondem universalmente a “todos” os seres humanos enquanto dotados do status de pessoas, de cidadãos ou pessoas com capacidade jurídica.). cf. BORTOLI, Adriano de. Garantismo Jurídico, Estado
Constitucional de Direito e Administração Pública. Artigo publicado nos anais do Conpedi, Manaus, disponível em
<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/adriano_de_bortoli.pdf>. Acesso em 29 jan. 2013.
38
O Brasil possuiria hoje uma população carcerária de mais de meio
milhão de pessoas, da qual cerca de quarenta e sete por cento é composta por presos
provisórios.127
Verifica-se, pelos números apresentados, que o sistema penal está enviando uma
grande quantidade de pessoas ao cárcere, sem perder de vista o fato de que a população
carcerária mais que dobrou nos últimos dez anos. Assim, resta importante o balizamento do
sistema penal como um todo. Resta ainda imperioso que se pense em um sistema penal capaz de
punir, após oferecer ao acusado todas as garantias que a Constituição lhe assegura,
principalmente diante de um quadro de pessoas presas que aumenta vertiginosamente. Impõe-se
harmonizar a realidade do sistema prisional brasileiro com as normas constitucionais que
garantam ao acusado em geral a observância de regras mínimas de proteção em detrimento de
um entendimento do cárcere como vingança ao apenado pela infração praticada.
Sabe-se das precárias condições do cumprimento da pena no Brasil. A
sentença penal condenatória retiraria do apenado a liberdade e seus direitos políticos. As demais
condições de sobrevivência restariam preservadas, na medida em que a dignidade da pessoa
humana estaria presente mesmo em guarida aos mais desafortunados e esquecidos pelo poder
público. Os direitos fundamentais não atingidos pela condenação deveriam ser garantidos
também aos reeducandos, priorizando seu regresso ao convívio social.
As violações de direitos fundamentais daquele que se encontra na
condição de objeto da persecução penal ou mesmo daquele que já tenha sido atingido pela
sentença condenatória, podem ser relembradas historicamente até mesmo pela prática da tortura,
na medida em que a mesma teria servido como meio legal de prova. Atualmente tal prática
odiosa, apesar de configurar fato típico, ainda seria relatada em diversas regiões.128
Não se pode ainda entender o garantismo penal como abolicionismo
penal129
conforme proposto por Hulsman,130
mas é preciso reforçar que garantismo penal e
127
Exatos 513.802 presos em junho de 2011. Em junho de 2006, eram 401.236 presos, ao passo que em
2001, eram 233.859 as pessoas presas no Brasil. Cf. BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento
Penitenciário Nacional. Sistema Integrado de Informações Penitenciárias – InfoPen. Disponível em:
<http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509C
PTBRIE.htm>. Acesso em: 20 fev. 2012. 128
SABADELL, Ana Lúcia. Evoluções e rupturas no processo penal. In: ANDRADE, Vera Regina
Pereira de. Verso e reverso do controle penal. Florianópolis: Boiteux, 2002. 129
O que pode ser verificado, neste sentido, na obra Direito e Razão de Ferrajoli é a defesa pelo mesmo
da abolição da pena privativa de liberdade e suas alternativas, cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão:
teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares
e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 366 e 377-381. 130
HULSMAN, Louck. CELIS, Jaqueline Nernard de. Penas perdidas: o sistema penal em questão.
Tradução de Maria Lúcia Karan. 2. ed. Rio de Janeiro: Luan, 1997.
39
minimalismo131
caminham pela mesma linha. Trilha-se pelo estudo da defesa das garantias
processuais protegidas pela Constituição da República. Igualmente, insiste-se, não
compartilharia com a ideia de impunidade, ao reverso, defenderia o devido processo legal, a
ampla defesa e, principalmente, a presunção de inocência, bem como que é possível punir,
garantindo a proteção dos direitos e garantias fundamentais.
Ademais, na hipótese do Estado observar, investido no exercício de
seu jus persequendi todas as garantias ao acusado, seria possível sustentar ainda que, ao final,
sobrevindo uma condenação, esta ficaria lastreada por uma maior legitimidade. Ciente da
condenação, a práxis informa que a sociedade legitima a ação estatal, pois está certa de que
foram observadas todas as garantias processuais inerentes à defesa do acusado. Na mesma linha,
o apenado teoricamente também se conforma com o decisum, pois convicto de que teve ao seu
dispor todos os meios de provar sua inocência, bem como não foi vítima de arbitrariedades,
desmandos e violências.
Seguindo norteados pelo repúdio ao autoritarismo, merece destaque
aqui o princípio da presunção de inocência ou da presunção de não culpabilidade.132
A
Constituição da República de 1988 asseguraria entre os direitos e garantias individuais que
“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.
A presunção de inocência atuaria como garantia de tratamento do acusado ao longo do processo,
não permitindo que ele receba tratamento como se culpado fosse.133
Assim, como exemplo, seria impossível, no processo penal brasileiro,
a existência da “execução provisória da pena”, na medida em que esta apontaria nítida violação
ao princípio da presunção de inocência. Entretanto, sabemos que esta prática vem sendo
utilizada em larga escala em nosso país, inclusive por força de entendimento do Supremo
Tribunal Federal (STF).134
Desta forma, o preso provisório estaria antecipando os efeitos de
eventual condenação, violando a garantia da presunção de inocência e lotando o sistema
carcerário. Referimo-nos aqui aos presos preventivamente cuja sanção cautelar seria
131
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal.
Tradução de Vania Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. 132
Não há diferença de conteúdo entre presunção de inocência e presunção de não - culpabilidade. As
expressões “inocente” e “não-culpável” constituem somente variantes semânticas de um idêntico
conteúdo. É inútil e contraproducente a tentativa de apartar ambas ideias – se é que isto é possível –,
devendo ser reconhecida a equivalência de tais fórmulas. Procurar distingui-las é uma tentativa inútil
do ponto de vista processual. Cf. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Garantias processuais e o
sistema acusatório. In: Direito processual penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. 133
Id. 134
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 716 - Admite-se a progressão de regime de cumprimento
da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em
julgado da sentença condenatória.
40
desnecessária, mas apresenta-se como a única medida possível, em que pese os esforços da
novel lei n. 12.403/2011135
no sentido de substituir a prisão por outras medidas cautelares.
Somente a título de argumentação, seria a novel lei, inclusive, juntamente com a reforma do
processo penal brasileiro de 2008,136
apontamento importante no sentido garantista, na medida
em que a primeira afasta o cidadão da prisão desnecessária, impondo medidas cautelares
diversas.
O estudo da Teoria do Garantismo Penal de Ferrajoli ainda seria
importante e seus ideais garantistas transcendem a nossos dias.137
Eventualmente relegá-la à
teoria ultrapassada seria, talvez, fechar os olhos para a práxis que sustenta. Muitas práticas
penais e processuais penais atuais remontariam, certamente, à escola da exegese.138
Quando
presenciamos flagrantes violações aos direitos fundamentais, mesmo em um Estado que se
intitula Democrático de Direito, percebemos a contemporaneidade da obra. Apesar de vivermos
em pleno século XXI, ainda existiriam sistemas penais extremamente autoritários que
reduziriam o homem ao mais longínquo estado de natureza.
Vimos que o modelo penal garantista seria abandonado em larga
escala, na medida em que reflete parâmetro de racionalidade, justiça e legitimidade da
135
BRASIL. Lei n. 12.403, de 04 de maio de 2011. Altera dispositivos do CPP sobre prisões e dá outras
providências. Brasília: Diário Oficial da União, 05 maio 2011. 136
Reforma promovida pelas Leis Federais de n. 11.690/08 e 11.719/08. 137
Há quem sustente, além dos vagos apelos à impunidade, que a Teoria do Garantismo Penal de Luigi
Ferrajoli teria herdado do positivismo o fato de que não encontraria solução à problemática da
discricionariedade do julgador, na medida em que esta representaria espaços de indeterminação.
Mesmo reconhecendo a discricionariedade em favor do réu, o garantismo deixaria “depender do
arbítrio do juiz definir o que seja pró ou contra”. Cf. PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do
garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da decisão penal. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2013, p. 183. Por sua vez, haveria afirmação incisiva neste mesmo sentido, referindo-se
agora expressamente ao Brasil, qualificando como “gap” do garantismo, elevando a questão como
“ponto central da fragilização do direito e, portanto, das garantias processuais penais”. A eventual
solução estaria na hermenêutica filosófica e na Crítica Hermenêutica do Direito, cf. STRECK, Lênio.
À guisa do prefácio. In: PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo: uma proposta
hermenêutica de controle da decisão penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 12-14.
Entretanto, o próprio Ferrajoli rechaçaria esta posição, na medida em que o garantismo
consubstanciado em seu denominado “constitucionalismo garantista” também seria oposto ao
decisionismo judicial. Entretanto, Ferrajoli admitiria a impossibilidade de anulação de toda atividade
discricionária do julgador, que devido à natureza linguística do direito sempre existira um certo grau
de decisionismo judicial e que sua teoria visaria justamente sua máxima restrição. Cf. STRECK,
Lênio. FERRAJOLI, Luigi; TRINDADE, André Karam. (Org.). Garantismo, hermenêutica e
(neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012,
p. 294. 138
[...] a Escola da Exegese procurou constituir critérios lógicos, fortemente dogmatizados, de modo a
evitar qualquer decisão construtiva do direito. E cumprir assim com um dos lemas da Revolução,
segundo o qual o juiz é tão-somente a boca da lei. [...]. Nos dias atuais pode-se constatar a presença do
estilo de interpretação, de argumentação e também de decisão da Escola da Exegese. A justificação
jurídica da segurança e da simplicidade das súmulas vinculantes é apenas uma das ilustrações
possíveis. Cf. SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Seminários de teoria da interpretação e da decisão
jurídica. p. 27.
41
intervenção punitiva. Esta divergência entre normatividade do modelo em nível constitucional e
sua não efetividade, na visão de Ferrajoli, correria o risco de torná-la uma simples referência,
com mera função de mistificação ideológica no seu conjunto. O garantismo teria surgido então
como uma resposta ao crescimento desta diversidade imposta, quase sempre, em nome da
defesa do Estado de Direito e do ordenamento democrático.
Luigi Ferrajoli encerra o livro Direito e Razão – Teoria do
Garantismo Penal tratando o tema, partindo da diversidade mencionada, em quatro itens
distintos e conexos entre si, definidos pelo autor como “significados de garantismo”. No
primeiro significado, traria a ideia de um modelo normativo de Direito, na medida em que
pregaria a estrita legalidade própria do Estado de Direito que, sob o plano epistemológico, seria
caracterizado como um sistema cognitivo ou de poder mínimo; sob o plano político, possuiria
como característica uma técnica idônea a minimizar a violência e maximizar a liberdade e, sob o
plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia
dos direitos dos cidadãos.
O segundo significado proposto por Ferrajoli diria respeito à teoria
jurídica de validade e efetividade das normas. Exprimiria uma aproximação teórica que mantém
separados o “ser” e o “dever ser” no Direito, inserindo como questão teórica central a
divergência entre o modelo normativo e as respectivas práticas operacionais, interpretando-a
como a validade das normas e a efetividade (e invalidade) destas práticas, em verdadeira “teoria
da divergência” entre normatividade e realidade, entre direito válido e direito efetivo, ambos
vigentes.139
Designando uma filosofia política, Ferrajoli atribui um terceiro
significado ao garantismo, na medida em que pressupõe uma doutrina laica de separação entre
Direito e moral, entre validade e justiça, ponto de vista próprio do iluminismo.140
Um elemento corrente atribuído ao pensamento de Ferrajoli lança
amarras na questão da separação entre direito e moral. Entretanto, esta visão não seria
139 Os juízos sobre a vigência e aqueles sobre a validade de uma norma se diferenciam por serem os primeiros, juízos de fato
(analisam a correspondência a critérios de forma) e os segundos, juízos de valor (analisam a adequação valorativa de normas
inferiores às superiores). Por ser juízo de valor, o juízo de validade comporta um grau de discricionariedade que conduz a um
espaço de ilegitimidade que não se pode reduzir; porém, isto não compromete o modelo do Estado de Direito de forma
importante. FERRAJOLI aponta esta dissociação estrutural entre estes dois juízos como uma aporia teórica à qual o Garantismo está adstrito. Cf. BORTOLI, Adriano de. Garantismo jurídico, Estado Constitucional de Direito e Administração Pública.
Artigo publicado nos anais do Conpedi, Manaus, disponível em
<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/adriano_de_bortoli.pdf>. Acesso em 29 jan. 2013. 140 Entretanto, anote-se que Ferrajoli teria criticado a matriz iluminista, traçando em sua teoria do garantismo penal uma “revisão
teórica do modelo garantista de legalidade penal e processual o qual fora traçado pelo pensamento iluminista. [...] o esquema
garantista transmitido pelo iluminismo, fundado sobre a ideia do julgamento como um silogismo perfeito e do juiz como boca da lei, possui uma intrínseca fraqueza política, devida entre outras coisas ao seu total inatendimento epistemológico e à sua
consequente impraticabilidade jurídica.” Cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana
Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p.17.
42
adequadamente tratada. A separação laica e liberal entre direito e moral na doutrina do
garantismo pode ser percebida quando o autor faz explanação sobre a exterioridade da ação,
defendendo que somente poderiam ser consideradas como criminosas as ações ou condutas
humanas relevantes que tenham uma relação de causalidade com o resultado danoso ou
perigoso. Em outras palavras, seriam subtraídos da criminalização e do controle penal “o
interior da pessoa em seu conjunto”, ante a critérios de “periculosidade”, “capacidade de
delinquir”, “caráter do réu”. Assim, “o homem delinque não pelo que é, senão pelo que faz”.141
Nosso autor italiano teria publicado inúmeras vezes seu entendimento
sobre a relação entre direito e moral. Na última delas, teria assim sintetizado a questão:
[a] separação quer dizer penas duas coisas, dependendo se formulada em
termos assertivos ou prescritivos: segundo a tese assertiva, que é um
corolário do princípio juspositivista da legalidade, a justiça é um ponto de
vista externo, variável de pessoa para pessoa, e o juízo sobre moralidade ou
sobre a justiça de uma lei não implica nem está implicado pela tese sobre a
sua existência ou validade jurídica; segundo a tese prescritiva, que é um
corolário do princípio da ofensividade, o juízo sobre a imoralidade (não de
uma lei, mas) de um comportamento não é uma condição suficiente (mesmo
se necessária) para justificar a sua proibição.142
Segue o mesmo autor argumentando que “geralmente não existe
apenas uma ou a „verdadeira‟ interpretação correta, mas que cada interpretação é
inevitavelmente orientada, [...], por opções morais e políticas do intérprete”. Disso decorre a
indagação sobre qual aquela mais objetivamente correta. Qualquer que seja a resposta
considerada (como a melhor motivada ou a mais completa) não a tornaria “objetivamente
verdadeira” ou “a única correta”. Desta forma o juiz resolveria a demanda “dando-lhe – e
motivando-lhe – a solução mais plausível e imparcial”, mas sempre orientada pela probabilidade
factual e discutível da verdade jurídica das teses por ele assumidas como fundamento da
decisão. “Uma teoria garantista do direito e do processo pode apenas promover a redução da
ventania das soluções incorretas através da redução do arbítrio por meio de adequadas garantias
substanciais e processuais”. O autor seguiria reconhecendo, entretanto, que mesmo esta, seria
apenas uma solução relativa e não inteiramente satisfatória do problema, na medida em que
sempre existiriam divergências interpretativas e múltiplas escolhas “plausivelmente
discutíveis”, cujo número seria reduzido pela coerência com os princípios constitucionais.
141
Sustentado em Pessina, Filangieri, Romagnosi, Carmignani, Carrara, e Condorcet. Cf. FERRAJOLI,
Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan
Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 441-443. Poderíamos
afirmar tratar-se aqui da noção de Direito Penal do Fato em repúdio ao Direito Penal do Autor ou do
Inimigo (Jackobs). 142
STRECK, Lênio. FERRAJOLI, Luigi. TRINDADE, André Karam. (Org.). Garantismo, hermenêutica
e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012,
p. 300.
43
Assim, a abordagem garantista consistiria em “promover técnicas normativas e garantias
jurisdicionais em condições de limitar o arbítrio e de permitir que os juízes criem direito”.143
Por esta construção, presente o binômio direito e moral na teoria
ferrajoliana, possível a conjugação do garantismo penal com o pós-positivismo, na medida em
que o resgate dos valores morais afastados pelo positivismo coadunaria com os propósitos
garantistas, mesmo que de forma involuntária.
Por fim, o autor italiano apresentaria um quarto e último significado
de garantismo, retratando as dificuldades enfrentadas pelo modelo por ele proposto. O próprio
Ferrajoli reconhece que seria muito difícil modelar técnicas legislativas e judiciárias idôneas a
assegurar o fiel cumprimento dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais por eles
consagrados, e, mais difícil ainda, seria defender, na prática, o sistema das garantias. Desta
forma, o último item trata de questões denominadas por ele de “falácia politicalha” e “falácia
garantista”.144
A primeira reflete a ideia de que bastaria a força de um poder bom para satisfazer
as funções de tutela atribuídas ao Direito. A segunda falácia apontaria no sentido de que bastam
as razões de um Direito bom, dotado de sistemas avançados e realizáveis de garantias
constitucionais, para conter os poderes e para pôr os direitos fundamentais a salvo de suas
distorções.
O problema do garantismo seria, segundo o próprio Ferrajoli, elaborar
técnicas apropriadas de formulação e aplicação das leis aos fatos julgados, a fundamentação dos
juízos sobre a verdade, mediante controles lógicos e empíricos, subtraídas ao erro e ao arbítrio,
torná-las vinculantes no plano normativo e assegurar sua efetividade no plano prático.145
Para nosso autor, a questão envolvendo o garantismo seria hoje uma
utopia, mesmo que parcial e imperfeita. O próprio direito penal também seria uma utopia, na
medida em que um sistema penal (aqui no sentido do conjunto de todos os atos desde a
acusação até a execução penal) seria justificado se, e somente se, minimiza a violência arbitrária
na sociedade. As garantias corresponderiam como outras condições de justificação do direito
penal.146
Consciente das dificuldades do sistema garantista penal, o autor
italiano proporia que os beneficiários dos direitos fundamentais objeto da visão garantista,
exerçam-nos efetivamente e que as forças políticas e sociais solidarizem-se com seus titulares,
143
Idem, op. cit., p. 301-302. 144
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,
Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 865. 145
FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 71. 146
FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 318.
44
sob pena de perecimento dos mesmos direitos. Esta seria, segundo Ferrajoli, a praxe do
garantismo. Assim, conclui que o sistema, por si só, nada pode garantir.
O autor do garantismo conclamaria uma transformação social em
favor da luta pelos direitos. Para tanto, além de propor uma fidelidade dos poderes públicos e da
sociedade à legalidade constitucional e aos direitos fundamentais, o autor mediterrâneo
invoca147
os dizeres de Ihering, datados de 1872, segundo o qual a luta pelos direitos é “um
dever da pessoa para consigo mesma” e, ao mesmo tempo, “para com a comunidade”,148
não
somente como instrumento dos direitos violados, mas também como mecanismo de
reivindicação de novos direitos.
]
147
FERRAJOLI, op. cit. p. 869. 148
IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. 6 ed. São Paulo: RT, 2010.
45
2. JUSTIÇA PENAL NO CONTEXTO DOS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS
2.1. O que são Sistemas Processuais Penais?
No item anterior discorremos sobre a Teoria do Garantismo Penal que,
segundo Luigi Ferrajoli, seu maior expoente, o sistema penal que melhor se amolda ao
garantismo é o sistema acusatório. Afirmou-se ainda que um dos alicerces do garantismo é a
garantia da imparcialidade do julgador que, dependendo da forma de atuação do juiz no
processo como ativa na colheita da prova, a mesma garantia poderia restar violada. Desta forma,
importante agora trazer a lume estudo sobre os sistemas processuais penais, para que se possa, à
luz do garantismo, identificar as garantias constitucionais presentes e delimitar a esfera de
atribuições do julgador em cada sistema individualizado. Por fim, impõe-se ainda discorrer
sobre o sistema processual penal brasileiro para que seja possibilitado o estudo da posição do
juiz em nosso sistema, aliado às características acusatórias, inquisitoriais ou mistas, norteadas
pela busca da verdade e pelo garantismo, atribuindo-se ao presente estudo um viés voltado
também à práxis.
Firme neste propósito, e partindo inicialmente de uma noção mais
ampla, os sistemas processuais penais podem ser entendidos como manifestações ou espécies de
sistema aplicado exclusivamente à ciência do direito. Entretanto, torna-se conveniente alertar
que existe uma dificuldade de conceituação precisa e pacífica sobre o que seja um sistema. Nem
mesmo autores consagrados149
em nenhum momento definiram de forma clara e direta o que
seria sistema jurídico. Nesta linha, após a realização de uma pesquisa sobre o sentido da palavra
sistema em nossa cultura jurídica, bem como naquelas mais próximas,150
pode-se entender,
concatenando os pontos de convergência entre todas as definições encontradas, que sistema
pode ser inicialmente definido como
a reunião, conscientemente ordenada, de entes, conceitos, enunciados
jurídicos, princípios gerais, normas ou regras jurídicas, fazendo com que se
estabeleça, entre os sistemas jurídicos e esses elementos, uma relação de
continente e conteúdo, respectivamente.151
149
Jürgen Habermas e Niklas Luhmann cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e
seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011. p. 29. 150
O conceito de sistema foi verificado sobre a base de conhecimento das línguas espanhola, italiana,
portuguesa, francesa e inglesa. 151
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.
Curitiba: Juruá, 2011. p. 30-31.
46
A palavra sistema significa, assim podemos entender, uma ideia
vinculada a algo amplo e complexo, que não se limita a apenas um elemento. Destaque-se que
esta ideia de complexidade será importante para o desenvolvimento do restante deste estudo, na
medida em que cada sistema processual penal a ser individualizado é composto de princípios,
normas, regras, etc., concatenados e não constituído de um único elemento identificador.152
Estabelecido o alcance dos sistemas jurídicos, por sua vez, os sistemas
processuais penais podem ser, de forma sintética, entendidos como subsistemas153
dos sistemas
jurídicos. Tais sistemas seriam caracterizados pela reunião de elementos processuais penais
organizados e conceituados como “subsistemas jurídicos formados a partir da reunião ordenada
de elementos fixos e variáveis de natureza processual penal”.154
A questão pode ser compreendida também em termos segundo os
quais os sistemas processuais penais podem ser vistos também como “manifestações históricas
de como o processo penal de um determinado período da humanidade foi regulamentado”.155/156
Ainda na mesma linha de estabelecer proposições que antecedem o
efetivo estudo dos sistemas processuais penais, merece destaque ainda o fato de que os sistemas
conhecidos são considerados teoricamente como puros,157
modelos ou tipos ideais.158
São puros
ou ideais porque os sistemas processuais penais “na experiência prática estes nunca aparecem
152
Existe diferenciação entre os elementos que compõe os sistemas processuais penais, chamados de
fixos ou variáveis, principais ou secundários, inerentes ou essenciais e não essenciais, fundamentais
ou acessórios, cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios
reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011, p. 35. 153
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 34. 154
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 35. O mesmo autor defende ainda que os sistemas processuais
estão sujeitos a “mutações” no sentido de que os mesmos sofrem alterações em seus elementos com o
passar do tempo. 155
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 37. 156
Bem mais complexos e articulados [do que no plano teórico] são os lineamentos históricos das duas
tradições [inquisitorial e acusatória], tais como vêm se desenvolvendo e alternando nos séculos
paralelamente aos ciclos dos regimes políticos – ora democráticos, ora despóticos – dos quais sempre
foram expressão. Somente a título de ilustração, na Roma republicana o processo era de matriz
acusatória, depois, na Roma Imperial o processo se desenvolveu pelo modelo inquisitório e, após a
queda do Império romano, o processo volta a ser acusatório. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão:
teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares
e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 520-521. 157
“Todos os sistemas processuais penais conhecidos mundo afora são mistos. Isto significa que não há
mais sistemas puros, ou seja, na forma como foram concebidos”. Cf. COUTINHO, Jacinto Nelson de
Miranda. Sistema acusatório. Cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Disponível em:<
http://www2.senado.gov.br>. Acesso em: 27 jan. 2013. 158
Os tipos ideais são, na visão de Max Weber, modelos de comparação, para fins de mensurar uma
determinada realidade a um tipo ideal específico, devendo ser reconhecidos como um meio para
alcançar o conhecimento e não a materialização deste mesmo conhecimento, como se fossem um
exemplo, conscientemente aproximar-se ou afastar-se. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas
processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011. p. 40-41. No mesmo
sentido, LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 8 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011,
v.1, p. 52.
47
em estado puro, mas sempre misturados a outros não logicamente e nem axiologicamente
necessários”159
e por “serem dificilmente encontrados na realidade histórica”.160
Os sistemas mencionados teriam assim a função de servir de modelo
comparativo de uma determinada realidade para que se possa classificá-la e também como
modelos para reforma ou construção de novos ordenamentos, aos quais serão eleitos elementos
característicos de um ou outro modelo ideal.161
Partindo destes apontamentos iniciais, podemos agora, efetivamente,
adentrar nas nuances dos sistemas processuais penais, inclusive trazendo os conceitos
encontrados. A propósito, no que se refere aos conceitos propriamente ditos, necessária ainda
uma colocação importante: a grande maioria dos manuais aponta conceitos superficiais e,
muitas vezes, deslocados de qualquer investigação prévia. Acrescente-se a isso o fato de que
alguns autores inserem em seus conceitos seus próprios valores ideológicos para justificar ou
rechaçar a presença de alguns elementos característicos deste ou daquele sistema, sem nenhuma
pesquisa sobre como realmente os sistemas se formaram e se desenvolveram, em verdadeira
“falsificação histórica”.162
Diante desta questão da superficial e não unívoca visão sobre os
sistemas processuais penais, aqui valemo-nos, primordialmente, de estudos fundados em seus
próprios documentos históricos, depois traduzidos e, quanto ao Brasil, adaptados a nossa
realidade.163
2.2. Sistema Acusatório, Garantismo e Iniciativa Instrutória do Juiz
Inicialmente torna-se forçoso destacar que a opção de nosso estudo
sobre os sistemas processuais penais seria sustentada em uma intensa pesquisa realizada em
seus próprios documentos históricos, efetivada por Mauro Fonseca Andrade.164
Entretanto, o
referencial teórico utilizado até o momento (que trilharia os mesmos caminhos que Luigi
Ferrajoli) seria mantido, servindo-nos da pesquisa de Andrade como alicerce histórico sobre o
159 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr,
Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 521. 160 WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito do capitalismo”, apud ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais
penais e seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 201, p. 40. 161 ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011, p. 44. Em
outras palavras, os sistemas processuais penais teriam como função “servir como instrumento de auxílio ao legislador, à hora de
estabelecer a política criminal em âmbito processual”, cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 468. 162 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr,
Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 563. 163 ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011. Nota do
autor, p. 8. 164 Promotor de Justiça do rio Grande do Sul; Doutor em Direito Processual pela Universidade de Barcelona; Professor da Faculdade
de Direito e do Programa de Pós-Graduação da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul, do
Instituto de Desenvolvimento Cultural e do Centro Universitário Ritter dos Reis.
48
qual pretendemos lançar amarras, sem, contudo, promover mera repetição dos caminhos
percorridos pelo referido autor. Mesmo porque, segundo Ferrajoli “a distinção entre sistema
acusatório e sistema inquisitório pode ter um caráter teórico ou histórico”, sendo necessário
alertar que “as diferenças identificáveis no plano teórico não coincidem necessariamente com
aquelas verificáveis no plano histórico”. Assim, pretende-se aqui desenvolver um estudo a partir
das constatações e verificações encontradas naquela pesquisa histórica, mencionada apenas no
essencial e contrastada, no necessário ao estudo, com o referencial teórico adotado.
Na mesma medida é preciso nos atentar para outra questão
metodológica a ser adotada. O processo acusatório foi vivenciado, historicamente, no período
clássico e ressurgiu no século XX. Assim, o estudo deste sistema deverá lançar seu olhar aos
dois períodos distintos mencionados para que, ao final, possa ser formulada uma definição de
seus elementos fixos e elementos variáveis, moldado sobre à realidade histórica e atual deste
sistema.165
/ 166
Desta forma, o estudo dos sistemas reflete profundamente nas
garantias procedimentais167
de acordo com a matriz inquisitória ou acusatória do processo ao
qual pertencem e que, em conjunto, caracterizam. Além disso, Ferrajoli alertaria para o fato de
que a seleção dos elementos teoricamente essenciais nos dois modelos principais seria,
inevitavelmente, condicionada por juízos de valor em virtude da “conexão” que pode ser
instituída entre sistema acusatório e modelo garantista e, por outro lado, entre sistema
inquisitório, modelo autoritário e eficiência repressiva.168
Iniciando pelo plano teórico, a diferenciação entre sistema acusatório
e inquisitório poderia ser entendida como uma dúplice alternativa. A primeira seria entre dois
modelos opostos de organização judiciária, na medida em que refletiriam duas figuras de juiz.
Na mesma medida, em segundo lugar, a alternativa seria entre dois métodos contrapostos de
investigação processual, e, portanto, entre dois tipos de juízo.
Assim, seria entendido como acusatório todo o modelo que possuiria
como característica
165
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.
Curitiba: Juruá, 2011, p. 49-50. 166
“El procedimento acusatorio rigió, praticamente, durante toda la antigüedad (Grécia, Roma) y en lá
Edad Media hasta el siglo XIII (Derecho germano), momento em el cual, sobre las bases del último
Derecho romano imperial, antes de la caída de Roma, fue reemplazado por la Inquisición”. Cf.
MAIER, Júlio B. J. Derecho processal penal: tomo I fundamentos. 2.ed. 3. reimp. Buenos Aires:
Editores Del Puerto, 2004, p. 446. 167
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,
Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 518. 168
FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 519.
49
o juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das partes e o
julgamento de um debate paritário, iniciado pela acusação, à qual compete o
ônus da prova, desenvolvida com a defesa mediante um contraditório público
e oral e solucionado pelo juiz, com base em sua livre convicção.169
Inversamente, seria considerado de sistema inquisitório todo sistema
que apresentasse uma matriz em que
o juiz procede de ofício à procura, à colheita e à avaliação das provas,
produzindo um julgamento após uma instrução escrita e secreta, na
qual são excluídos ou limitados o contraditório e os direitos da
defesa.170
Desta forma ficaria claro que, segundo Ferrajoli, aos dois modelos de
sistemas processuais associam-se sistemas diferentes de garantias, na medida em que se o
sistema acusatório favorece modelos de juiz popular e procedimentos que valorizam o
contraditório como método de busca da verdade, o sistema inquisitório tende a privilegiar
estruturas jurídicas burocráticas e procedimentos fundados nos poderes instrutórios do juiz,
compensados talvez pelos vínculos das provas legais e pela pluralidade dos graus de juízo, as
instâncias.171
Segundo agora uma visão delineada por aspectos históricos, bem mais
complexos, Ferrajoli sustenta que ambas as tradições alternaram-se na mesma medida em que se
alternaram regimes políticos ora democráticos, ora despóticos.172
Seria pacífico que na Antiguidade tal como teria se configurado na
Grécia e na Roma republicana, a estrutura do processo seria essencialmente acusatória,173
na
medida em que a acusação seria predominantemente privada de consequente natureza arbitral
tanto do juiz como do juízo. A titularidade da acusação permanece nas mãos da parte ofendida
ou de seus familiares para, em época mais tardia, ser transferida à sociedade como um todo e,
por meio dela, a todo cidadão singular.
Desta natureza privada que surgiria no processo romano ordinário, as
características do sistema acusatório, dentre as quais mais diretamente relacionadas ao nosso
estudo, a discricionariedade da ação, o ônus acusatório da prova, a igualdade de partes com
atribuição das mesmas de toda atividade probatória, inclusive sua disponibilidade. Destaque
169
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,
Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 519-520. 170
FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 520. 171
Idem. 172
Ibidem, com suporte em Lucchini, Carrara, Cordero e Taruffo. 173
“En general, se puede decidir que esta forma de llevar a cabo el enjuiciamiento penal dominó todo el
mundo antiguo”. Cf. MAIER, Júlio B. J. Derecho processal penal: tomo I fundamentos. 2.ed. 3.
reimp. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2004, p. 443.
50
para a posição do juiz que seria vista como de árbitro ou espectador.174
Este juiz aqui descrito
adotaria como postura aquela que seria contemporaneamente idealizada em nosso estudo.
Eis que na Roma imperial é que teriam surgido as primeiras
manifestações do processo de cunho inquisitório. Entretanto, é preciso registrar que após a
queda do Império Romano a matriz de cunho acusatório ressurge, confundindo-se no início com
o sistema das ordálias e duelos judiciais, transformado mais tarde para as formas da disputatio e
do contraditório, entre o fim do primeiro milênio e o século XII, “tendo sido desenvolvidas e
consolidadas na Inglaterra e no mundo anglo-saxão nas formas do adversary system”.175
Após a queda do Império Romano, a inquisição teria voltado a
florescer e proporcionado inominados “horrores” aos quais, na medida do repúdio ao arbítrio e à
irracionalidade desse procedimento, torna-se um dos ideais do iluminismo penal reformador,
com o redescobrimento dos valores garantistas da tradição acusatória.176
Por sua vez, na reconstrução histórica de Andrade, como contraponto,
o mesmo sustenta que o sistema acusatório clássico teve seu curso em Atenas, considerada
como seu berço, apesar de não ter sido o primeiro a por lá vigorar. Antes, o modelo de processo
era inquisitivo, mas, após as mudanças na organização social promovidas por Sólon (por volta
de 640 a.C.), principalmente no intuito de frear a ira popular, inserindo-o como passo decisivo
na criação da democracia ateniense, o sistema acusatório começou a surgir.
Este modelo de processo contava com várias categorias de
magistrados, entre elas os tesmótetas e os arcontes. Os primeiros deveriam, entre várias outras
atribuições, designar o dia dos julgamentos, ao passo que aos segundos, por sua vez, caberia
examinar os requisitos processuais formais e preservavam as provas apresentadas pelas partes,
presidiam os julgamentos gerindo o rito e sua realização.177
Assim, aos magistrados não era
permitido exercer suas funções públicas com o exercício da acusação, em flagrante separação de
funções. Para a hipótese de descumprimento desta regra, havia a previsão de uma exceção
processual com o fim de evitar a continuidade do processo.178
Entretanto, como exceção a regra, aos tesmótetas era possível atuar
como investigadores quando “estavam em jogo seus interesses ou sua própria sobrevivência”,179
informando os fatos ao Senado ou à Assembleia do Povo. Poderiam atuar ainda como
174
Ibidem. 175
Idem. 176
FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 521. 177
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 57. 178
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 57-58. 179
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 58.
51
investigadores quando os magistrados não prestassem corretamente suas contas e nos casos de
traição, ilegalidade e proposição de lei ilegal, sicofantia e falso testemunho ante o Areópago.
Quando o acusador oferecia a acusação, como regra, a investigação já
não pertencia aos magistrados, sendo que sua passividade seria imposta expressamente.180
Aqui
se torna necessário destacar a inatividade dos juízes que não teriam possuído atribuição de se
arvorarem na colheita da prova.
Apesar da proclamada perfeição do modelo ateniense, conclamado por
vezes como ideal, o mesmo apresentava problemas como v.g. a impunidade, na medida em que
o custo financeiro da acusação teria sido suportado por quem de direito, sob pena de não ser
iniciado. Com isso, a impunidade de alguns delitos não teria sido exceção. Por outro lado,
existiriam ainda alguns obstáculos ao exercício da acusação que teria sido confiada aos cidadãos
comuns que ficariam, por vezes, sob ameaças ou pressões políticas.
Outros obstáculos também teriam surgido como a possibilidade de
manipulação dos juízes populares frente às incursões retóricas dos oradores. As falas seriam
“verdadeiros teatros” tentando despertar a compaixão nos juízes, chegando, por vezes, a
transformar-se em “espetáculo de baixo nível”, com insultos recíprocos e considerações sobre o
comportamento pessoal, profissional e familiar de seus oponentes.181
/ 182
Havia ainda em Atenas outro modelo processual paralelo, onde não
existiria, em algumas hipóteses, a presença de um acusador distinto do julgador. Este processo
seria verificado quando o próprio Conselho do Areópago chamava para si a responsabilidade de
punir os indivíduos sem a formação de causa ou prévio julgamento, “abandonando por completo
as características do que conhecemos por sistema acusatório clássico. [...] Na verdade o
Conselho adotava a estrutura de um modelo processual que existia no passado”, podendo hoje
receber uma rotulação semelhante a do sistema inquisitivo.183
Por meio deste processo marcado pela atuação inquisitiva, Atenas
teria recebido como legado, em plena democracia, marcas atualmente indesejadas, ainda que em
hipóteses concretas e excepcionais.
180
“Nesse momento, sua função era receber a acusação e os escritos de defesa do acusado, assistindo-os
durante o período de investigação, mas sem intervir em sua realização”. Cf. ANDRADE, Mauro
Fonseca. Op.cit. p. 59. 181
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 65. 182
O único tribunal que não permitia essas práticas era o Areópago, pois era formado por magistrados, ao
invés de juízes populares. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 65. 183
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 67.
52
Por outro lado, o processo penal romano também teria vivenciado ao
longo de vários séculos de perseguição aos criminosos, estruturas de processo diferenciadas
entre acusatório e inquisitivo, circunstância normal por ter passado por períodos políticos
distintos: o monárquico, o republicano e o imperial (ou principado).184
Quanto ao período Monárquico, existe dúvida sobre a real atuação do
rei, quando investido da iudicatio. Não se sabe se o rei julgava sozinho ou se existiam
consultores no período de instrução do caso, entretanto, haveriam notícias de que existiam
pessoas vinculadas ao rei.185
No que se refere ao período republicano, como primeira
consequência do fim do período Monárquico, teria sido a divisão dos poderes acumulados pelo
rei. Assim, o magistrado supremo da república teria sido o “máximo responsável pela repressão
criminal, correspondendo-lhe o ofício de investigar, acusar e julgar os fatos delitivos de que
tivesse conhecimento”.186
Este procedimento repressivo de ofício teria sido denominado de
cognitio187
e não possuía regras fixas, sendo o direito de defesa uma liberalidade do
magistrado.188
Ao final deste período, o modelo de processo utilizado poderia ser
entendido como “aquele que melhor representou o processo acusatório romano, como a forma
mais perfeita de organização desse sistema no mundo antigo”.189
Aqui teria havido notável
separação de funções entre os acusadores,190
julgadores e o Pretor, presidente do Tribunal.191
Quanto ao acusado, não lhe teria sido permitida participação na inquisitio, atividade de
investigação promovida pelo acusador.192
Esta forma de condução do procedimento guardaria sintonia com os
atuais anseios delineados no presente estudo, na medida em que resguardaria a imparcialidade
do julgador através de sua não participação na atividade acusatória.
184 Aqui têm lugar as palavras de Goldschmidt: los principios de la política procesal de uma nación no son outra cosa que
segmentos de su política estatal em general. Apud ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 68. 185 Os tribunus celerum, os praefectus urbi, os quaestores par(r)icidii e os duumviri perduellionis. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca.
Op.cit. p. 70. 186 ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 71. 187 “A cognitio era encomendada aos órgãos do Estado – magistrados. Outorgava os maiores poderes ao magistrado, podendo este
esclarecer os fatos na forma que entendesse melhor”, cf. LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade
constitucional. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 53. 188 ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 71. 189 ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 75-76. 190 “A legitimidade ativa era reconhecida a qualquer cidadão de boa reputação, que poderia acusar em nome próprio, por
representação de outras pessoas ou, inclusive, por representação de toda uma cidade”, cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit.
p. 80. 191 ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 79. 192 Teria existido ainda outra forma de processo penal, diversa da cognitio, a chamada accusatio que consubstanciava-se na atuação,
de quando em quando, espontaneamente por um cidadão do povo. Surgida no último século da República, promovendo profunda inovação. “Tratando-se de delicta publica, a persecução e o exercício da ação penal eram encomendados a um órgão
distinto do juiz, não pertencente ao Estado”. Cf. LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade
constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 53.
53
Enfim, no período imperial, num primeiro momento, foi mantida a
base do processo republicano e após a reforma do sistema processual como um todo, o
magistrado romano teria se caracterizado por um comportamento inativo, restando como dever
do acusador a investigação e a obtenção de provas. Como consequência, algumas mudanças
teriam sido percebidas, referentes a legitimidade acusatória do ofendido ou de seus familiares e
uma gradual intervenção imperial em substituição a atuação dos tribunais permanentes. Essa
intervenção imperial teria sido exercida pelo próprio Imperador ou por algum delegado dele,
com funções de acusação, investigação, instrução e sentença. O procedimento previa ainda o
início de ofício, sem investigação prévia e não teria havido direito de defesa daqueles acusados
rotulados como “inimigos do Imperador”. Esta jurisdição imperial poderia ser delegada a outros
funcionários, compreendendo atos de investigação, acusação e julgamento ou somente
julgamento.193
O Imperador poderia ainda determinar a remessa ao Senado de
determinada causa, quando recusasse a acusação, mantendo as características do sistema
acusatório por meio desta jurisdição delegada. A intervenção de César teria maculado a forma
acusatória, pois interferia na decisão dos membros do Senado, na forma de “controle” ou
“fiscalização”, na medida em que se revestia de garantia da observação da técnica nos
julgamentos.194
Extinta a jurisdição do Senado, a figura do acusador tornou-se
prescindível, sendo que os delegados do Imperador instruíam e julgavam sem vinculação com
as provas existentes, podendo buscar outras.195
No baixo Império, os magistrados organizados em diversas classes
poderiam iniciar o processo de ofício, atuando como investigadores, acusadores, instrutores e
julgadores. Algumas mudanças foram perpetradas neste período de forma que a obtenção de
provas teria sido uma tarefa do acusador-julgador, fazendo parte de todos os atos do processo o
segredo, exceto quanto à sentença.196
“As sentenças, que na época Republicana eram lidas
oralmente desde o alto do tribunal, no Império assumem a forma escrita e passam a ser lidas na
audiência”.197
193
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 95. 194
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 95-97. 195
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 98. 196
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 98-99. 197
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 54.
54
Percebeu-se assim em face do sistema acusatório clássico que o
mesmo teria proporcionado um predomínio do acusador popular sobre o acusador público.
Entretanto, atualmente, no “sistema acusatório contemporâneo”,198
ocorre exatamente o
contrário. O problema identificado na figura do acusador popular, conforme já mencionado,
residiria na impunidade do sistema, pelo fato de que o mesmo é mais propício a pressões, a
postulação de acusações falsas, ausência de sua proteção contra possível ira dos acusados,
deturpação da verdade e a não execução da sentença. Algumas destas características teriam
proporcionado a criação do sistema inquisitivo, revelando-se então a presença do acusar público
como um dos traços mais marcantes do atual sistema acusatório.199
O estudo deste sistema acusatório contemporâneo faz-se necessário
pela divergência em seus elementos iniciais percebidos no modelo clássico. O tempo trouxe a
necessidade de adaptações e correções, sem que, contudo, o sistema perdesse a característica de
acusatório.
Segundo Andrade,200
na atualidade, analisando a realidade processual
de alguns países,201
seria possível perceber alguns traços comuns, como por exemplo, a
participação mais ativa do julgador ao longo da fase probatória, sendo que sua investigação
criminal seria tarefa da polícia judiciária e do Ministério Público que, por sua vez, seria
legitimado para dar início ao processo judicial.
Diante desta construção, seria possível, neste momento, identificar o
sistema acusatório, considerando-se todos os elementos apontados como caracterizadores do
mencionado sistema, bem como sua adequação aos dias atuais e a uma análise confrontativa
com seus aspectos históricos, que o mesmo seria caracterizado por dois elementos fixos. Neste
sentido, o primeiro elemento fixo seria a separação entre as figuras do acusador e do julgador,
distintos, o que corresponde ao princípio acusatório. O segundo, por sua vez, refere-se a um
particular efeito produzido pelo ajuizamento da acusação, que é determinar a abertura do
processo. Os demais elementos que eventualmente podem estar presentes variam em
198
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 99. 199
Chamado também de “sistema acusatório original ou originário”, “sistema acusatório público”,
“sistema acusatório moderno” e “sistema acusatório público moderno”, entretanto, a expressão que
melhor se amolda à realidade seria “sistema acusatório contemporâneo”, considerando-se somente o
aspecto temporal, cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 100-102. 200
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 103. 201
Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, Portugal e Itália, todos apontados como de matriz acusatória e
fonte de influência do direito brasileiro. cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 105, 107, 108, 110
e 202. Entretanto, o mesmo autor informa que o sistema processual penal de alguns destes países
apresentaria traços característicos do sistema inquisitivo, cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p.
329-340.
55
conformidade com a ideologia do momento histórico. A ausência de um deles provocará uma
mudança na categoria do sistema.202
Segundo entendimento de Maier a característica fundamental do
sistema acusatório “residiria na divisão dos poderes exercidos no processo, por um lado, o
acusador, quem persegue penalmente e exerce o poder requerente, e por outro o imputado, quem
pode resistir à imputação, exercendo o direito de defender-se [...].”203
Este modelo de processo que permitiria a busca da prova pelo juiz
atrairia, segundo Lopes Júnior,204
severas críticas pela postura adotada pelo magistrado. O juiz
deveria resignar-se com as consequências de uma atividade defeituosa das partes, tendo que
decidir com base em material incompleto apresentado pelas mesmas. Este sempre teria sido o
fundamento histórico de atribuição da função instrutória ao juiz, “e revelou-se (através da
inquisição) um gravíssimo erro”.205
Não satisfeito, o mesmo autor segue argumentando que “o
mais interessante é que não aprendemos com os erros”,206
bastando verificar o atual CPP
brasileiro para constatar a possibilidade de iniciativa instrutória do juiz, reconhecendo que esta
postura inerte não seria a posição majoritária da doutrina ou jurisprudência.
Na mesma linha, seria o sistema acusatório um “imperativo do
moderno processo penal, frente a atual estrutura social e política do Estado”.207
O sistema em
comento asseguraria a imparcialidade do julgador, “garantindo o trato digno e respeitoso com o
acusado, que deixa de ser um mero objeto para assumir sua posição de autêntica parte passiva
do processo penal”.208
A inércia do julgador atribuiria um aumento da responsabilidade das
partes, cabendo ao Estado garantir uma estrutura que seja capaz de oferecer o mesmo grau de
representação processual.
O que se destacaria como um inconveniente no sistema acusatório
seria a atividade incompleta das partes, conforme já mencionado. Entretanto, caberia ao Estado
202
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.
Curitiba: Juruá, 2011, p. 258. 203
MAIER, Júlio B. J. Derecho processal penal: tomo I fundamentos. 2.ed. 3. reimp. Buenos Aires:
Editores Del Puerto, 2004. p. 444. 204
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011. v. 1. p. 55. 205
Idem. 206
Ibidem. 207
Ibidem. 208
Idibem.
56
promover condições e manter um “serviço público de defesa” que pudesse fazer frente ao
existente “serviço público de acusação (Ministério Público)”.209
Esta visão de correlação entre acusação e defesa faria surgir mais uma
discussão que, independentemente de toda relevância que o tem reclama, não se faz
indispensável ao presente estudo, qual seja, a denominada paridade de armas.
Neste aspecto, Lopes Júnior apesar de não externar diretamente em
sua obra pesquisada faz crer que esta paridade não existe e que existiria uma vantagem, neste
aspecto, ao Ministério Público. Por outro lado, Andrade defende a ideia de que realmente esta
paridade não existe, pois, ao reverso, o acusado teria maiores armas frente ao acusador. No
mesmo sentido, a desigualdade de armas no processo penal contemporâneo deve sempre existir,
em favor do acusado.210
Por sua vez, Zilli sustentaria que quando for percebido um
desequilíbrio entre a atuação das partes no processo, caberia ao juiz afastá-lo ou atenuá-lo o que,
por si só, exigiria um comportamento mais atuante ao longo da marcha processual, incompatível
com qualquer postura distanciada.211
Quanto à imparcialidade do julgador no sistema acusatório, Lopes
Júnior sustenta que somente a separação de funções é quem pode criar as condições para que
aquela se opere, defendendo que esta característica é fundante do sistema acusatório.212
Devemos aqui nos atentar ainda para um aspecto, neste mesmo
contexto, que seria importante, qual seja a separação das funções de acusar e julgar deveria
permanecer ao longo de toda a marcha processual, não ficando adstrita apenas ao início do
processo. Seria necessário que esta estrutura de separação permanecesse, sob pena de
rompimento da estrutura. Aqui, referimo-nos à iniciativa instrutória nas mãos das partes, pois,
“somente isso permite a imparcialidade do juiz”.213
209
Ibidem. 210
Esta visão de Andrade sustenta-se no fato de que, em síntese, ao acusado estariam disponíveis
mecanismos que inexistem para serem utilizados pelo Ministério Público, como, por exemplo, a
Revisão Criminal, o uso de provas ilícitas, etc. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais
penais e seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011, p. 183-187. 211
ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: RT,
2003, p. 129. Na mesma obra, o autor defende a postura supletiva do juiz, comedida e equidistante das
partes, sem empenhar-se ao lado de uma contra a outra, seja desenvolvendo atuação policial, seja
como advogado de defesa, cf. ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. Op. cit., p. 181. 212
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 56. 213
LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. p. 64.
57
2.3. Sistema Inquisitivo, Garantismo e Iniciativa Instrutória do Juiz
O breve estudo do direito romano, em seus três períodos distintos, que
foi desenvolvido no item destinado ao sistema acusatório, poderia também nos ajudar agora no
estudo sobre a forma embrionária do sistema inquisitivo, que teria sido representado pela
cognitio, bem como pela cognitio extra ordinem.214
/ 215
Segundo Andrade,216
o fator
preponderante para a consolidação do sistema inquisitivo não teria sido a sua recepção pelo
poder central, mas o reconhecimento por Constantino (325 d.C.) do cristianismo como religião
oficial. Desta forma, mesmo depois da queda do Império Romano, esse sistema teria
sobrevivido por meio do direito canônico,217
até ser reinserido na Idade Média, “sob outra
significação política”.218
As primeiras manifestações do processo inquisitório se desenvolveram
na Roma imperial, segundo Ferrajoli, com os procedimentos de ofício para os delicta publica,
em que se presumira ofendido um direto interesse do príncipe e a parte ofendida se identificaria
com o Estado. Nesta época “a acusação teria se transformado na denúncia fatal e na calúnia
oculta”, que se tornaram instrumento de tirania. Teria nascido assim com a cognitio extra
ordinem, o sistema inquisitório.
A propósito, Maier defenderia a construção de que a Inquisição seria
um sistema de perseguição penal que corresponderia a uma concepção absoluta de poder
central, bem como seria ainda a noção extrema sobre o poder da autoridade e a reunião de todos
os atributos da soberania exercidos por uma única pessoa. Como consequência, o pequeno valor
atribuído à pessoa humana perante a ordem social, manifestada pela máxima salus publica
suprema lex est, reduziria a figura do acusado a um mero objeto de investigação, com o qual se
214
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.
Curitiba: Juruá, 2011, p. 267. 215
“La fuente jurídica de inspiración fue el Derecho romano imperial de la última época (cognitio extra
ordinem), com su tênue introduccíon de los rasgos principales de la Inquisición, conservado por la
Iglesia y perfeccionado por el Derecho canónico, el cual, a su vez, constituyó la fuente donde abrevó
la Inquisición laica, de paso triunfante por toda Europa continental a partir del siglo XII”, cf.
MAIER, Júlio B. J. Derecho processal penal: tomo I fundamentos. 2.ed. 3. reimp. Buenos Aires:
Editores Del Puerto, 2004, p. 446. 216
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.
Curitiba: Juruá, 2011, p. 267. 217
Entretanto, faz-se necessária uma advertência: “Ao contrário do que por vezes se afirma, o sistema
inquisitivo não foi uma criação da Igreja Católica. Na verdade, foi ela influenciada por um modelo de
processo já vigente na época em que o cristianismo foi erigido à condição de religião oficial do
Império Romano (380 d.C.), sendo sua prática mantida e conservada no meio eclesiástico mesmo após
a queda do último César”. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Inquisição espanhola e seu processo
criminal: as instruções de Torquemada e Valdés. Curitiba: Juruá, 2011, p. 10-11. 218
Ibidem.
58
perde o entendimento de que o mesmo seria sujeito de direitos, autoriza a utilização de qualquer
meio, por mais cruel que fosse, para alcançar seus fins: reprimir a ordem, averiguar a verdade.219
Esta nova forma de lidar com o processo teria sido desenvolvida e
decidida de ofício, secretamente e em documentos escritos por magistrados estatais delegados
do príncipe (os irenarchi, os curiosi e os stationarii), “baseado na detenção do acusado e na sua
utilização como fonte de prova, acompanhada bem de perto pela tortura”.220
A noção da figura
do acusado como parte detentora de direitos e deveres, bem como a oportunidade de influenciar
na decisão final observadas garantias mínimas, revelar-se-ia inexistente.
Findo o Império Romano, a inquisição teria tornado a florescer no
século XIII221
com as Constituições de Frederico II nos processos por crimes de lesa-
majestade222
e “de forma mais terrível e feroz” no processo eclesiástico, nos quais o ofendido
era Deus e, por isso, a acusação seria obrigatória e pública. Neste ponto em linha mais próxima
a nosso estudo, não era admitida a incerteza na busca da verdade, nem tolerado o contraditório,
sendo antes exigida a colaboração forçada do acusado.223
Destaque-se que o processo inquisitório teria sido considerado em
caráter extraordinário em relação ao acusatório e que, de fato, assumiu posteriormente um
caráter ordinário, espalhando-se depois do século XVI por toda a Europa, para todos os tipos de
crimes.
Este procedimento de matriz inquisitória teria acabado se complicando
em virtude da multiplicação dos foros e das incertezas das competências, organizando-se
segundo um complexo código de provas legais, técnicas que seriam inquisitórias, tortura e
cânones da magistratura, que, por cinco séculos fizeram da doutrina do processo penal “uma
espécie de ciência dos horrores”.224
Retornando à pesquisa de Andrade, a Idade Média teria proporcionado
o surgimento de um direito local, fruto da tradição popular, sem os traços de um poder central
219
MAIER, Júlio B. J. Derecho processal penal: tomo I fundamentos. 2.ed. 3. reimp. Buenos Aires:
Editores Del Puerto, 2004, p. 446. 220
FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 521. 221
“El procidimiento inquisitivo se extendió por toda Europa continental, triunfando sobre el Derecho
germano y la organización señorial (feudal) de la administración de justiça, desde siglo XIII hasta el
siglo XVIII.” Cf. MAIER, Júlio B. J. Derecho processal penal: tomo I fundamentos. 2.ed. 3. reimp.
Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2004, p. 449. 222
Trazendo sustentação em Pagano, Carmignani e Carrara, Ferrajoli acentua o retrocesso bem maior que
teve o processo na Roma imperial do período fredericiano com respeito à inquisição da cognitio extra
ordinem. Acrescente-se que “neste período da inquisição introduzida por Frederico, tomou o lugar do
processo acusatório e só se procedeu a condenações”. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Op. cit. p. 589, nota 93. 223
FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 521. 224
Idem.
59
como foi o romano. A forma de persecução criminal era fundamentalmente acusatória, mas não
na mesma medida em que ocorria em Atenas e em Roma. Este sistema apresentava-se sob forma
da legitimidade da acusação pertencente ao ofendido ou a seus familiares cujas provas seriam
sociais, verbais, físicas (representadas pelos enfrentamentos públicos ou duelos), do juramento e
às ordálias, em prejuízo de uma estreita tentativa de reconstrução da verdade. Neste cenário, o
papel do juiz poderia ser exercido pelo soberano ou por terceiro designado pelos contendores,
cuja função teria sido, basicamente, verificar a regularidade do procedimento. 225
Este direito local teria sido basilar para a instalação do conflito de
interesses entre os senhores feudais e os da monarquia que pretendia ampliar seus poderes. Ao
cabo desta disputa, teria sido consagrada a vitória dos soberanos, tendo ensejado o início do
absolutismo ou monarquia absoluta, com cumulação dos poderes de legislar, julgar e
administrar.226
Uma das formas que teriam sido utilizadas pelos soberanos para retirar
o poder dos senhores feudais teria sido a unificação de todo o poder jurisdicional na figura do
rei. Este novo modelo processual deveria substituir o antigo que seria marcado por uma total
ausência de fórmulas. Desta maneira, o modelo que teria sido eleito como o que melhor se
adaptava a essa necessidade era o proveniente do direito canônico, mantido vivo pela igreja,
universidades e glosadores.227
Em razão desta ruptura, o modelo local teria sido substituído por um
modelo processual mais civilizado e adequado a realidade histórica daquela época, sendo que a
ausência da utilização da força e a retomada da busca pela reconstrução da verdade teriam sido
seus traços marcantes. Assim, no que se refere a este aspecto, teria sido promovida uma
verdadeira “humanização do processo” que, em breve, apresentaria seus defeitos.228
Em que pese a difusão do sistema inquisitivo por quase toda a Europa,
o mesmo teria se apresentado em “diversas formas de regulamentação”, dependendo dos ideias
políticos de cada país e pela maior ou menor influência neles da Igreja Católica contra a
heresia.229
Diante destas distintas formas de manifestação do sistema inquisitivo,
dentro do que interessa ao presente estudo, pretendemos abordá-las de forma breve e objetiva
225
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 276-268. 226
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 268. 227
A substituição do direito local pelo direito determinado pelo monarca deu-se o nome de “recepção do
direito romano-canônico” que, na Europa, somente não obteve êxito na Inglaterra. Idem. 228
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 269. 229
Idem.
60
sem contudo pretender esgotar o tema, eis que o mesmo não é objeto principal de nossa atenção
neste momento. Para tanto, o estudo lançará olhares ao período denominado de Idade Média e,
em seguida, ao direito contemporâneo, “pois, ao contrário do que comumente se pensa, o
processo inquisitivo continua presente entre nós”.230
Inicialmente, vale destacar que o sistema inquisitivo não teria sido o
mais utilizado pela Igreja Católica, principalmente no período compreendido entre o Império
Romano e a Idade Média. Ao reverso, o sistema mais adotado foi o acusatório.231
O processo acusatório teria sido abandonado por Inocêncio III,
fazendo ressurgir o processo inquisitório. Posteriormente, Lúcio III teria abandonado a
necessidade da presença dos inquisidores esperarem por uma denúncia (no sentido da atual
notitia criminis) podendo atuar contra os hereges “nos lugares suspeitos de heresia”.232
Este
modelo teria como alicerce a necessidade de consolidação da Igreja Católica em toda Europa,
afastando outras formas de manifestações religiosas, cuja caça aos hereges transformou-se seu
principal objetivo. Desta forma a Igreja Católica fez surgir um processo que ficou conhecido
pelo termo inquisição que, para uma melhor compreensão, deve ser divida em inquisição
medieval, espanhola e romana.233
Como forma de unificação do procedimento da Inquisição Católica,234
entre os instrumentos jurídicos utilizados como “guia aos inquisidores”,235
merecem destaque,
os “diretórios” ou “manuais dos inquisidores”. Os diretórios que mais de destacaram foram os
de Bernard Gui,236
o de Nicolás Eymerich237
e o de Heinrich Kramer e James Sprenger.238
230
Ididem. 231
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 269-270. 232
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 270-271. 233
Idem. 234
As “instruções” eram ditadas pela autoridade suprema do Santo Ofício, e nem sempre mantinham uma
mesma forma. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 271. 235
Ibidem. 236
Practica officii Inquisitionis heretice pravitalis de 1323. A obra também ficou conhecida como o
“Manual do Inquisidor”, destinada ao uso exclusivo dos inquisidores, tratava de como funcionava o
Tribunal de Inquisição do século XIII e XIV (medievo francês) e para facilitar a investigação da
heresia. “Seu poder e crueldade [do autor] foram objeto de atenção na obra Il Nome dela Rosa, de
Umberto Eco.” Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 271. 237
Directorium Inquisitorum de 1376. Nicolás Eymerich foi capelão dos Papas Gregório XI e Clemente
VII e nomeado Inquisidor-Geral da Coroa de Aragón em 1357. Posteriormente, Francisco Peña
comentou a obra e colocou-a em dia com a prática e instruções espanholas. Cf. ANDRADE, Mauro
Fonseca. Op. cit. p. 271. 238
Malleus Maleficarum de 1484. Para maiores informações sobre esta obra, inclusive para o fato de que
o livro não teria recebido reconhecimento oficial da Igreja Católica, como se costuma afirmar,
recomendamos também assistir ao documentário produzido pelo National Geographic Channel
(NatGeo) de 2010. Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=LXSMTABPa9E>. Acesso
em: 13 jan. 2013.
61
Deste ponto, seguindo a pesquisa de Andrade,239
o procedimento
judicial inquisitório será estudado a partir dos instrumentos jurídicos utilizados pelos próprios
inquisidores.
Fundado nestes documentos, a Inquisição Católica medieval teria
produzido sua primeira manifestação em 1178, na região Sudeste da França. Entretanto, teria
sido em 1233 que os tribunais inquisitoriais teriam se institucionalizado e adquirido caráter
permanente, “outorgando competência geral aos delegados para o exercício do poder
inquisitorial”.240
Estes tribunais teriam sido formados por um inquisidor que atuava por
delegação do Papa, recebendo o poder jurisdicional eclesiástico. Além do inquisidor, teriam
havido ainda outros funcionários, dos quais, os mais importantes eram os vicários e os notários.
Os primeiros desempenhavam funções variadas no processo e teriam sido os segundos quem
transcreviam o interrogatório do imputado, a prova testemunhal e todos os demais atos
praticados no processo.241
O processo teria tido por finalidade, além da punição aos hereges, a
conversão dos mesmos. As penas, por sua vez, eram, inicialmente, o exílio e o desterro,
estendendo-se, posteriormente para a deportação com a possibilidade de aplicação de apena de
morte aos casos mais graves. Num terceiro momento, as penas poderiam ser de prisão, confisco
de bens, a destruição da casa do herege ou outra pena infamante.242
O procedimento teria possuído dois editos, o de graça e o de fé. O
edito de graça teria permitido que o herege confessasse sua culpa, suportando ao invés da pena
mais grave, penitências leves. Por outro lado, o edito de fé “ordenava a todas as pessoas que
denunciassem ao inquisidor os casos suspeitos de heresia”.243
O edito de fé teria tido seu início com a citação do herege motivada
por uma notitia criminis ou pela simples diffamatio da opinião púbica. Destaque-se aqui que o
depoimento de apenas duas testemunhas que confirmassem os termos da notitia criminis ou
diffamatio era suficiente para uma condenação,244
ao passo que para que tivesse direito a um
defensor, teriam sido necessárias as palavras de dez testemunhas em favor do acusado.245
239
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.
Curitiba: Juruá, 2011. 240
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 274. 241
Idem. 242
Ibidem. 243
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 274-275. 244
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 8. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 60. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 275. 245
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 278.
62
Evidente e talvez inconcebível no atual momento do desenvolvimento
do processo penal a posição do acusado diante desta forma de responsabilização criminal.
Mesmo o direito mais elementar, qual seja, a assistência por defensor não raramente teria sido
inviabilizada. Imaginem-se então as demais garantias ao acusado! Nesta época nem sempre teria
sido garantido o direito ao contraditório, o conhecimento dos nomes das testemunhas e
tampouco o direito a um defensor. A tortura considerada hoje como garantia fundamental
negativa absoluta teria sido introduzida em 1252 e a respectiva sentença teria sido pública, mas
irrecorrível.246
Segundo as disposições do Directorium Inquisitorum e do Malleus
Maleficarum, o processo canônico da inquisição medieval teria possuído como características,
dentro do que aqui interessa diretamente ao nosso estudo, o fato de que o processo poderia ser
iniciado por meio de uma acusação, notitia criminis ou de ofício.247
Neste ponto, merece
destaque a circunstância de que, quase invariavelmente, o inquisidor era procurado por um
delator que narrava casos de heresia. Assim, seria facultado ao delator figurar no processo como
acusador ou apenas como fonte dos fatos. Pretendendo figurar como acusador, o delator seria
informado da existência da pena de talião. Por meio de tal reprimenda, “caso não fosse
demonstrada a veracidade da acusação, a pena prevista inicialmente ao acusado deveria ser
aplicada ao acusador”.248
Em razão desta característica, a figura do acusador não teria sido
muito utilizada para ensejar o início do processo.249
Desta forma, após a negativa de figurar
como acusador no processo, a informação apresentada pelo delator era admitida como notitia
criminis, ensejando a abertura do processo.250
Neste ponto, a inatividade das partes (no caso a
acusação) teria tido, basicamente, como consequência, a substituição do modelo acusatório pelo
inquisitório, pois comprometida a eficácia do combate à delinquência.251
246
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 275. 247
Anote-se que até os dias atuais existem em algumas antigas Igrejas Espanholas as chamadas “bocas de
leão” ou “bocas da verdade”, que eram gavetas ou caixas destinadas a receber denúncias anônimas de
heresia. Cf. LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 8.
ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 60. 248
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 276. 249
A ideia da figura do acusador, inclusive, teria sido desencorajada pelo Malleus Maleficarum, pois este
documento teria previsto o dever do juiz de tentar evitar o processo por meio de uma acusação. A
justificativa teria sido assim apresentada, pois “os atos criminosos das bruxas em conjunto com os
demônios são praticados em segredo, e o acusador, por esse motivo, não pode ter provas conclusivas
da veracidade de seu depoimento”. Neste mesmo sentido, o Directorum Inquisitorum teria trazido a
inscrição “Nella pratica inquisitoriale non è il método migliore; è pericoloso e molto discutibile”.
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 276. 250
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. idem. 251
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 8. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 57.
63
Na mesma medida, o procedimento teria previsto a atuação de ofício
pelo inquisidor, quando não houvesse um acusador ou delator, mas sempre que “vozes públicas”
indicassem a prática de heresia.252
Assim, o inquisidor atuaria de ofício na abertura do processo.
No que se refere à defesa, o Directorium Inquisitorum e o Malleus
Maleficarum teriam apontado a ausência das figuras do juiz253
e do advogado, sendo que ao
acusado não teria sido permitido o conhecimento do conteúdo das imputações, os debates e
apelações.254
Mais uma vez seria percebida a posição de inferioridade e a forma de
mero objeto de investigação na qual se revestia a figura do acusado. O processo teria sido
vislumbrado como forma de investigação secreta pela qual a ausência de participação e de
garantias ao acusado seriam traços definidores.
Seguindo ainda a linha das várias manifestações do sistema
inquisitivo, o presente estudo restaria incompleto se não estivesse presente o procedimento
adotado pela Inquisição Espanhola, rotulada pelo seu “rigor exorbitante” 255
ou mesmo por ter
sido “considerada a mais violenta e sanguinária entre as Inquisições Católicas”.256
A Inquisição Espanhola teria sido criada em 1478,257
teria tido a
finalidade de reprimir a heresia258
sendo a obra de Eymerich utilizada inicialmente como
documento fundante. Entretanto, os excessos praticados pelos inquisidores teriam exigido uma
nova postura e novos regramentos. Assim, para evitar novos excessos e atualizar o direito
inquisitorial vigente, teria sido promovido, em 1483, a Inquisidor-Geral de Aragón e de
Castilha, cargo máximo do Santo Ofício, o frade Tomás de Torquemada.259
252 Ibidem. 253 Apesar desta orientação, teria sido possível identificar em algumas passagens do procedimento, a atuação do juiz, como, por
exemplo, na autorização da utilização de tortura. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 281. 254 Quanto ao recurso de apelação, somente teria sido admitido quando fossem inobservadas pelo inquisidor as regras processuais,
conduzindo a invalidade ou nulidade da sentença. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 284. 255 MANZINI, Vincenzo apud ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 285. 256 As instruções de Torquemada teriam deito menção expressa a “guerra santa”. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Inquisição
espanhola e seu processo criminal: as instruções de Torquemada e Valdés. Curitiba: Juruá Entretanto, isto não quer dizer, 2011.
p. 10. 257 “Entretanto, isto não quer dizer que a Inquisição Medieval não houvesse chagado à Espanha. Ela se estabeleceu em território
espanhol em 1232”. Cf. ASENJO, Enrique apud ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios
reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011, p. 285. 258 Entretanto, teria sido em realidade, um dos motores da criação da inquisição na Espanha, a necessidade de oferecer uma
“repressão política” para a manutenção da unidade do Estado espanhol. Teria sido criada a pedido dos reis católicos Isabel de
Castilha e Fernando de Aragón. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 285. 259 ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 286.
64
Desta forma, como complemento aos diretórios e decretos já
existentes, teriam sido expedidas instruções por Torquemada, a primeira delas em 1484,
reunidas posteriormente, em 1532, numa compilação.260
As novas instruções teriam se diferenciado de suas antecessoras, na
medida em que, em síntese,
Enquanto os outros textos regulamentadores do processo repressivo
católico seguiam à risca o modelo processual recebido do direito
romano – que concedida uma maior liberdade ao julgador para atuar
em substituição ao acusador – as instruções espanholas inovaram ao
exigir a presença obrigatória de um acusador público identificado
como sendo o “Fiscal” ou “promotor fiscal”, que tinha o dever de
apresentar uma denúncia (que hoje corresponderia a uma notitia
criminis) ou uma acusação formal, que deveriam satisfazer a certos
requisitos sob pena de nulidade. Em razão disso, as instruções da
inquisição espanhola retiraram dos inquisidores a possibilidade de
acusar, fato que as erige à condição de ser um dos primeiros diplomas
a conceder ao Ministério Público a exclusividade acusatória.261
Neste período de observância das instruções de Torquemada crime e
heresia teriam se confundido. Apenas no ponto que nos interessa ao estudo, os processos teriam
sido iniciados do mesmo modo que na Inquisição Medieval, através da acusação, notitia
criminis ou de ofício.262
Nesta primeira fase do procedimento, chamada também de pesquisa, o
que teria ficado bem claro era a não participação do acusado e, até mesmo seu total
desconhecimento das investigações e/ou existência de um processo contra ele, ante a ausência
de qualquer previsão de sua intervenção.
Ao fim da pesquisa, a legitimidade ativa exclusiva para acusar
pertenceria ao Fiscal ou Promotor Fiscal, restando excluída a figura do acusador particular ou
do acusador popular. Aqui teriam sido diferenciadas as funções de julgar a acusar, percebida,
260
Copilación delas Inftructiones del Officio dela fancta Inquificion, hechas poe el muy Reuerendo feñor
fray Thomas de Torquemada Prior del monafterio de fancta cruz de Segouia, primero Inquifidor
general delos reynos y feñoríos de Efpaña. 261
ANDRADE, Mauro Fonseca. Inquisição espanhola e seu processo criminal: as instruções de
Torquemada e Valdés. Curitiba: Juruá, 2011, p. 12. 262
Teriam existido também os editos de graça e os editos de fé. Por este motivo, teria também existido a
atuação dos chamados de qualificadores, que se encarregavam de investigar sumariamente a
confirmação da suspeita. Note-se que em casos notórios, como os de maometismo ou judaísmo, esta
investigação teria sido desnecessária. Esta inquisitio era teria sido a forma habitual de início do
processo e teria ocorrido de duas maneiras, pela atuação preventiva realizada anualmente pela Igreja
Católica, quando os inquisidores visitavam vilas ou povoados, chamada de inquisitio geral e pela
chamada inquisitio especial, quando, de antemão, o inquisidor sabia quem era o suspeito pela prática
de atos de heresia. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios
reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011, p. 287-288.
65
diga-se de passagem, como “ícone do sistema acusatório”,263
mas que teria sido utilizada pelo
sistema inquisitivo em estudo.
Quanto à defesa, as Instruções de Torquemada teriam previsto a
possibilidade de assistência por intermédio de um advogado, sempre que o acusado solicitasse e,
quando este não tinha condições financeiras, os custos eram suportados pelo Santo Ofício, por
meio dos bens confiscados de outros hereges. Aqui teria havido total deturpação das funções
advocatícias, na medida em que apesar de poder apresentar testemunhas e todo tipo de
argumento permitido legalmente a figura do advogado teria sido “inquisitorializada”,264
deixando de ser um membro da sociedade, convertendo-se em outro funcionário do Santo
Ofício a serviço da inquisição. Desta forma, o advogado foi um verdadeiro “colaborador do
inquisidor” ou ainda um “delator de seu próprio cliente”.265
O rompimento definitivo da Inquisição Espanhola com a Inquisição
Medieval teria ocorrido décadas mais tarde com as instruções emitidas no período em que
Fernando Valdés foi o Inquisidor-Geral, tendo pretendido colocar em dia e uniformizar o
procedimento que deveria ser adotado pelos inquisidores.266
As instruções de Valdés por sua vez teriam sido publicadas na cidade
de Madri, em 1561 e apenas no que aqui nos interessa, teriam previsto a continuidade da
confusão entre heresia e delito, bem como das inquisições geral e especial, observando-se,
entretanto, diferença em relação à natureza jurídica da pesquisa.267
Durante o período de Torquemada a natureza jurídica da pesquisa
teria sido processual, no período de Valdés, esta mesma fase teria recebido natureza jurídica de
atividade meramente “administrativa ou pré-processual”.268
Assim tornou-se tendo em vista que
a fase processual orquestrada por Valdés somente poderia ser iniciada após o oferecimento de
uma notitia criminis apresentada exclusivamente pela figura do Fiscal.269
Finalizada a inquisitivo, em seguida, tendo os inquisidores qualificado
os fatos investigados como heréticos, o Fiscal deveria apresentar sua notitia criminis contra a
263
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 288. 264
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 290. 265
Idem. 266
As instruções mencionadas teriam ficado também conhecidas como Copilación delas Inftructiones del
Officio dela fancta Inquificion, fechas em Toledo, año de mil y quinhentos y fefenta y um años. Cf.
ANDRADE, Mauro Fonseca. Inquisição espanhola e seu processo criminal: as instruções de
Torquemada e Valdés. Curitiba: Juruá, 2011, p. 15. 267
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.
Curitiba: Juruá, 2011, p. 294. 268
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 294. 269
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 294.
66
pessoa investigada. Além da heresia, o Fiscal também teria acumulado a função de promover
acusação de crime diverso que eventualmente tivesse sido confessado pelo herege durante seu
interrogatório. Entretanto, esta nova acusação de crime não eclesiástico se destinava “apenas ao
agravamento dos delitos de heresia, como sinônimo de sua má cristandade”.270
Oferecida a acusação, o notário deveria lê-la na presença do imputado,
e os inquisidores obrigatoriamente lhe nomeariam um advogado que, mais uma vez, seria
funcionário do Santo Ofício e que admoestava o acusado para que confessasse a verdade,271
fazendo tábula rasa das atribuições inerentes ao ofício.
Quanto aos inquisidores, teriam seguido as mesmas diretrizes do
período de Torquemada, “não havendo qualquer instrução que permita uma atuação de ofício
por parte do inquisidor, tanto para acusar, como para apresentar alguma prova condenatória”.
Pelo contrário, as instruções de Valdés teriam deixado claro que qualquer acusação somente
poderia ter sido oferecida pelo Fiscal, bem como a tortura e todas as diligências destinadas a
formação da culpa do acusado deveriam ser requeridas expressamente pelo acusador.272
Neste momento histórico, mais uma vez se constataria a distinção
entre acusador e julgador, chegando a serem atribuídas as denominações ao acusador e ao
acusado de “partes” ou “parte”, evidenciando a diferença entre estes e o órgão julgador. Após a
instrução, os inquisidores, o juiz ordinário e os consultores do Santo Ofício se reuniam para
julgar o processo em segredo, sendo os inquisidores os últimos a votar, apresentando parecer
devidamente fundamentado. Teria sido possível a apelação que seria encaminhada ao conselho
do Santo Ofício, exceto se apresentada contra a sentença de tortura, pela qual os inquisidores
poderiam não dar seguimento a ela.273
A Inquisição Espanhola teria sido alvo de extinção por Napoleão
Bonaparte em 1808, mas a mesma foi revivida por Fernando VII em 1814. A extinção definitiva
teria ocorrido pelas mãos da regente Maria Cristina em 1834.
Por fim, também apenas no que aqui nos interessa diretamente, Roma
teria também vivido a inquisição, em “caráter mais brando e civilizado, mais técnica e menos
270
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 296. 271
Idem. 272
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 299. 273
“A única oportunidade em que as instruções de Valdés orientaram a atuação subjetiva dos inquisidores
foi para chamar-lhes atenção para que atuassem com grande cuidado nos assuntos relacionados à
defesa do imputado. Mais especificamente, que atuassem com o mesmo zelo que exerciam durante a
averiguação da culpa deste último, de modo que a inocência dele também pudesse ser comprovada”.
Idem.
67
sanguinária”274
que as demais. Teria sido iniciada em 1542 com Paulo III, com o objetivo de
figurar como resposta à reforma protestante e para funcionar como Supremo Tribunal da Igreja
nos delitos de fé.275
Na verdade, a Inquisição Romana não teria sido nenhuma novidade
para a Itália, pois o mesmo país teria vivenciado seus princípios através da Inquisição Medieval,
através do Directorium Inquisitorum de Eymerich, atualizado após duzentos anos de
existência.276
Ao que consta, a Inquisição Romana teria tentado, realmente,
diferenciar os culpados dos inocentes, produzindo, não raramente, a escusa do imputado do
procedimento inquisitorial. Entretanto, a inquisição Romana não teria ficado imune às
influências da Inquisição Espanhola, tendo sido incorporadas ao seu procedimento.277
Na mesma medida em que na Espanhola, o processo na Inquisição
Romana iniciava-se também por meio de uma acusação, notitia criminis ou de ofício, mas
admitia, ao reverso, a figura do acusador público. Também a defesa teria sido entendida como
direito do imputado e aos carentes de recursos financeiros nomeava-se um defensor, funcionário
da Inquisição.278
O direito canônico teria influenciado o direito comum onde o sistema
inquisitivo naturalmente teria surgido como o modelo de persecução penal idealizado pelo rei,
com o objetivo de colocar fim ao direito local e substituir os tribunais locais e populares,
reforçando a monarquia como única fonte válida de emanação de qualquer tipo de poder.279
Esta
disputa de poder entre os senhores feudais e a monarquia já foi objeto de nossos estudos.
Este novo olhar à justiça rapidamente teria se espalhado pela Europa,
variando os componentes do sistema entre os países, mas mantendo-se a estrutura. Como regra,
a acusação poderia iniciar-se de ofício, sem “qualquer possibilidade de existência de um poder
exclusivo em mãos alheias ao rei”.280
Neste modelo, teria tido o juiz a possibilidade de atuar na
investigação e na instrução criminal, mas que, não necessariamente tomava o depoimento das
testemunhas, podendo haver a delegação de tal mister. Desta forma, a decisão seria tomada com
274
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 300-301. 275
Idem. 276
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 301. 277
Idem. 278
Ibidem. 279
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 302-303. 280
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 303.
68
fundamento no “material probatório que o juiz ou esses funcionários haviam obtido”.281
Entretanto, para diminuir o poder daqueles encarregados de julgar, o método de valoração da
prova teria sido o legal.
Mais uma vez, como em uma reprise, no que se referiria ao acusado,
este em quase nada poderia intervir, entretanto, era permitido ao mesmo apelar das decisões,
onde o último degrau teria sido representado pelo próprio rei.282
Desta forma, encerramos o estudo do sistema inquisitivo em suas
manifestações católica e comum, chamada de “histórica”,283
e, assim, poderíamos constatar pelo
estudo do sistema inquisitivo que existiria um certo padrão, no que se refere à legitimidade para
praticar os atos que dão início ao processo.284
Este padrão seria representado pelo fato de que, em todos os modelos
estudados, conforme seus documentos históricos, o início do processo teria ocorrido por ato do
acusador, do noticiador (a própria vítima ou um cidadão comum) ou do próprio juiz. Estas
características podem ser traduzidas como a desnecessidade de um acusador distinto do juiz,
onde se teria feito ausente o princípio acusatório.285
Ademais, segundo Andrade,286
alguns países hoje em dia,
apresentariam ainda traços típicos do sistema inquisitivo, que não teria sido extinto pela
Revolução Francesa.287
/ 288
Nesta linha, atualmente na Itália e Alemanha, por exemplo, o sistema
processual penal daqueles países ostentaria característica, em determinadas circunstâncias, do
sistema inquisitivo. A afirmação teria fundamento nas hipóteses previstas naqueles sistemas de
que o Ministério Público, “em termos práticos, será um mero representante do Poder Judiciário,
unificando neste último as figuras de quem tem a missão de acusar e julgar”289
de maneira
“disfarçada”.290
281
Idem. 282
Ibidem. 283
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 328. 284
Idem. 285
Ibidem. 286
Ibidem. 287
Ibidem. 288
“o sistema inquisitório vem, de forma velada, ganhando espaço entre alguns operadores do direito.
[...]. ”. O sistema inquisitorial, nascido na Idade Média, vem florescendo ao invés de ser combatido
ferrenhamente.” Cf. SILVA FILHO, Edson Vieira da. A sedução do sistema inquisitorial no sistema
penal. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, n. 25, jul./dez. 2007, p. 71. 289
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 331. 290
Idem.
69
A justificativa apresentada, em síntese, referir-se-ia a possibilidade de
o Ministério público não possuir autonomia para requerer o arquivamento da ação penal, sendo
obrigado a oferecê-la, sob determinação expressa do Poder Judiciário, em verdadeiro controle
externo do acusador público italiano e alemão. Ademais, o exercício do princípio acusatório
material que, em sua plenitude pertenceria ao Ministério Público daqueles países, não se
confirmaria na realidade, representada apenas pelo princípio acusatório formal, ante a ausência
efetiva do princípio acusatório.291
Como exemplo ainda da atual presença de traços inquisitoriais em
sistemas penais, poderíamos mencionar o caso da Espanha, mais claro e evidente do que os
demais. Tratar-se-ia aqui do chamado juicio de faltas, que podem ser equiparadas, segundo o
Direito brasileiro, às Contravenções Penais. Assim, diante da pouca ofensividade das condutas
típicas, a legislação espanhola de 1992, reformada, mas mantida a mesma redação em 2002,
teria tornado prescindível a atuação do acusador público quando do início do processo. Desta
forma, teria havido a equiparação, por decisão do Tribunal Constitucional espanhol, das
expressões notitia criminis e acusação, tendo restado a cargo do juiz as funções de acusação e
julgamento.292
Por fim, há quem sustente que o sistema inquisitório ainda existiria,
em sua forma pura, “permanecendo em sua mais radical constituição no Direito Canônico, com
todo vigor em pleno século XXI”,293
onde haveria não mais a “queima pública, mas psíquica e
moral”294
ou ainda a “morte psicológica do condenado”.295
Desta forma, ausente a figura do acusador público, as funções de
acusar e julgar teriam ficado ao encargo exclusivo do juiz, traço marcante percebido no sistema
inquisitivo, como já estudado.
Nesta linha de exposição, podemos perceber que o juiz que teria
atuado no sistema inquisitivo histórico ou o que atua no sistema inquisitivo contemporâneo
exerceria, por vezes, as funções de acusador, de investigação e de julgamento. Assim, em quase
todos os modelos estudados, o juiz que participava da investigação também participava do
julgamento.
291
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 332. 292
Existem entendimentos em contrário, ratificando a decisão do Tribunal Constitucional espanhol,
segundo os quais a imparcialidade do juiz foi preservada pelo Tribunal, não havendo cumulação de
funções. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 332-340. 293
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 8. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011,v. 1, p. 56. 294
KÜNG, Hans. Preguntas sobre la inquisición. Apud LOPES JUNIOR, op. cit. p. 56. 295
BOFF, Leonardo. In Prefácio da tradução brasileira do Manual dos Inquisidores, p. 24. Apud LOPES
JUNIOR, Aury. Op. cit. p. 56.
70
Entretanto, Andrade296
adverte que, por esta razão, parte da doutrina
sustenta que este acúmulo de funções investigadora e decisória seria um dos elementos
característicos do sistema inquisitivo.297
Concatenadas as variações do sistema inquisitorial, poder-se-ia
perceber que este acúmulo das funções de investigar e julgar não seria um seu elemento fixo,
podendo esta mesma característica ser percebida também em outros sistemas. Como exemplo, o
sistema misto que teria sido criado em 1808 pelo Code d‟Istruction Criminelle na França298
e
que serviu de modelo para vários países para dar fim ao sistema inquisitivo, onde se permitia ao
juiz que investigasse também a função de julgamento. Na verdade, esta proibição de acúmulo de
funções teria ocorrido em momentos posteriores e de modo progressivo, como exemplo o Brasil
em 1824, a Espanha em 1882 e a própria França somente em 1897. Destaque-se ainda que, o
acúmulo de funções do juiz passou a ser elemento exclusivo do sistema inquisitivo após a sua
retirada do sistema misto.299
A hoje almejada separação de funções teria sido justificada também
naquela época pela preocupação com a neutralidade do julgador. Em outras palavras, o acúmulo
destas funções no sistema inquisitivo poderia levar-se a crer que o mesmo sistema não estava
minimamente preocupado com a questão da neutralidade ou imparcialidade do julgador.
Entretanto, ressalva seja feita a este entendimento, na medida em que o sistema inquisitivo
permitia ao acusado a recusa do juiz em casos de reiteradas violações do procedimento e na
hipótese de interesse na causa. Com isso, a decantada imparcialidade do juiz também teria sido
objeto de busca pelo sistema em questão. A matéria seria entendida em outra medida, pois o que
não existia era uma relação entre o acúmulo das funções e a violação da imparcialidade do
julgador. Investigar e julgar não teriam sido consideradas funções incompatíveis.300
296
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 367. 297
LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2001, p. 244-245. Na mesma linha “El poder de perseguir penalmente se confunde,
según hemos visto, com el de juzgar y, por ello, está colocado em las manos de la misma persona, el
inquisidor”, cf. MAIER, Júlio B. J. Derecho processal penal: tomo I fundamentos. 2.ed. 3. reimp.
Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2004, p. 447. 298
Entretanto, admitindo inclusive a „surpresa‟ da afirmação, a primeira manifestação de um modelo de
processo com os mesmos elementos fixos e estrutura do sistema misto, dataria de 1561, pois “a forma
como este sistema está estruturado já esteve presente cerca de duzentos e cinquenta anos antes [...],
pois as instruções de Fernando de Valdés possuíam os mesmos elementos fixos e a mesma estrutura
bipartida do sistema misto. [...]. Assim, não há como dizer que Napoleão haja sido o criador do
sistema misto”, cf. ANDRADE. Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios
reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011, p. 415 e 429. 299
ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 368. 300
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 368-370.
71
Entretanto, conforme apontado por alguns autores301
reconhece-se que
a ausência de imparcialidade do julgador, quando comparada ao modelo acusatório, seria o
principal defeito do sistema inquisitivo.302
Nesta linha, Andrade propõe uma conduta ativa do
juiz durante a fase probatória, “desde que condicionada à observância de certos requisitos”,303
sem, contudo, aponta-los, como forma de possível solução, dentre outras, ao modelo inquisitivo.
Por outro lado, há quem sustente que “o sistema inquisitório foi desacreditado – principalmente
– por incidir em um erro psicológico: crer que uma mesma pessoa possa exercer funções tão
antagônicas como investigar, acusar, defender e julgar”.304
Merece aqui atenção a posição de Andrade305
quanto ao preconceito
que existiria em relação ao sistema inquisitivo. O autor constrói entendimento segundo o qual
também o sistema acusatório teria produzido tantos problemas quanto o inquisitivo e que os
problemas que foram percebidos no sistema inquisitivo, teriam ocorrido em seus elementos
variáveis que, por sua vez, podem estar presentes em outros sistemas processuais. Em outras
palavras, afirma que o sistema acusatório teria proporcionado, da mesma forma que o
inquisitivo, os mesmos abusos e excessos. Como exemplo, menciona a tortura praticada no
modelo acusatório ateniense e romano,306
as ordálias como critério divino e os duelos como
critério de força.307
O mesmo autor menciona ainda o fato de que, dentre todas as
variantes, não teriam sido todos os modelos de sistema inquisitivo existentes que
proporcionaram os excessos conhecidos e que o modelo em questão não seria incompatível com
regimes democráticos. Exemplo da possibilidade de coexistência do sistema inquisitivo e
democracia seriam os sistemas inquisitivos contemporâneos.308
Estudado o sistema inquisitivo, por fim, retornando aos apontamentos
anteriores, seríamos então levados a entender que os elementos fixos que definem o sistema em
tela são exatamente os opostos aos que definem o sistema acusatório, quais sejam, o caráter
prescindível da presença de um acusador distinto do juiz, e o fato de o processo ser instaurado
301
BUZAID, Alfredo. Da apelação ex-offício no sistema do código do processo civil. MARQUES, José
Frederico. Elementos de direito processual penal. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Cf.
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 388. 302
Este comprometimento da imparcialidade seria “inevitável”, cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas
processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011, p 448. 303
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 389. 304
Cf. LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 8. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 62. 305
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 383-390. 306
Em sentido contrário, pela característica garantista destes modelos, Luigi Ferrajoli, Fauzi Hassan
Choukr e Antônio María Lorca Navarrete, cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 386. 307
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 387. 308
ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 389.
72
por acusação, notitia criminis ou de ofício pelo juiz. Ainda não se perca de vista que, conforme
estudado, o maior defeito do sistema inquisitivo seria o risco de inexistência da necessária
neutralidade do julgador diante da acumulação das funções inerentes ao sistema.
2.4. Sistema Misto, Garantismo e Iniciativa Instrutória do Juiz
Seguindo com nosso estudo sobre os sistemas processuais e,
especificamente, sobre a atuação do julgador em relação aos atos de investigação em cada
sistema, sem pretender esgotar o assunto e nem mesmo discorrer sobre todos os fatores que
levaram ao fim do sistema inquisitivo, substituído pelo misto, iniciamos pelos fatores de seu
surgimento.
Na construção de Ferrajoli, o Código tertoriano de 1795 e depois o
Código napoleônico de 1808 teriam dado vida ao que o autor chamaria, citando Pagano, de
“monstro, nascido da junção entre os processos acusatório e inquisitório, que foi assim
denominado de processo misto”,309
com prevalência inquisitória na primeira fase, escrita, secreta,
dominada pela acusação pública e pela ausência de participação do
imputado quando este era privado de liberdade; tendentemente
acusatório na fase seguinte dos debates, caracterizada pela
observância do contraditório público e oral entre acusação e defesa,
porém destinado a se tornar uma mera repetição ou encenação da
primeira fase.310
Esta orientação de matriz mista se espalhou por toda a Europa,311
tendo adquirido robustez especialmente na Itália inclusive no Código Rocco de 1930, “com
apenas algumas variações marginais”. A relação entre os dois sistemas continuaria na era
republicana italiana, com a introdução “de fracos elementos acusatórios na fase instrutória e um
progressivo esvaziamento da fase dos debates, reduzida a mera e prejulgada duplicação da
primeira”. Problemas que seriam superados, em parte, pelo novo código de processo italiano.312
Para Andrade, a prática da tortura como meio de busca da verdade, os
erros judiciários causados por ela e a defesa processual deficitária, teriam sido os grandes
motivadores de um movimento que teve seu início na segunda metade do século XVIII,
chamado de Movimento Iluminista que, entre outras, teria tido como aspiração, dar fim ao
309
Idem. 310
FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 522. 311
Adotado por exemplo, na Holanda, Bélgica, Espanha, Portugal, Prússia, Luxemburgo, Sérvia, Rússia,
Grécia, Romênia, além de outras regiões como no Egito, México e Japão. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Op.
cit., p. 593, nota 105. 312
FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 522.
73
sistema inquisitivo. Este movimento teria ainda sustentado a adoção de um novo modelo de
processo, equivalente ao acusatório romano.313
Maier compartilharia do mesmo entendimento, na medida em que
entenderia que a Revolução Francesa e o Movimento Iluminista teriam iniciado uma “nova era”.
Entretanto, apresentaria construção no sentido de que o surgimento do sistema misto
representaria a consequência de uma reforma no sistema inquisitivo.314
As chamadas “metas absolutas” do sistema inquisitivo, quais seriam, a
persecução penal pública e a busca da verdade histórica, a ponto de permitir-se a utilização de
quaisquer meios para alcançar estes fins, se transformaram em “valores relativos” importantes,
mas superados pelos atributos da pessoa humana que teriam passado a prevalecer sobre aqueles
e teriam condicionado os meios pelos quais poderiam ser alcançadas aquelas metas. Estes
atributos seriam entendidos como “regras de garantias e direitos individuais”. Entretanto, a
colisão entre estas ideias teria sido inevitável, originando como solução legislativa a divisão do
procedimento em duas etapas principais, ligadas por uma intermediária. Estas fases seriam
iniciadas por uma investigação de cunho inquisitivo norteada por certos limites, seguida por
outra que teria a condão de assegurar a lisura da imputação e, por fim, a “imitação formal de um
juízo acusatório” que culminaria com a absolvição ou condenação “fundadas unicamente nos
atos praticados durante esta última fase”.315
Diante deste novo entendimento sobre a persecução penal, o imputado
retoma seus status de sujeito de direitos, cuja posição jurídica durante o procedimento
corresponderia como a de um inocente, até ser declarado culpado e condenado por sentença
irrecorrível. Por esta razão, caberia ao Estado (acusador) demonstrar com clareza sua
culpabilidade e destruir este estado de inocência, adotando-se a máxima in dubio pro reo. Por
sua vez a privação da liberdade teria sido excepcional, reconhecendo-se a liberdade da defesa,
bem como a necessidade de defesa técnica. Teria havido ainda a equiparação entre acusado e
acusador em todas as suas faculdades.316
Após os movimentos de reforma, ter-se-ia optado pela máxima
aproximação ao processo acusatório romano, “erigindo-se o processo penal inglês como modelo
313
ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 398. 314
MAIER, Júlio B. J. Derecho processal penal: tomo I fundamentos. 2.ed. 3. reimp. Buenos Aires:
Editores Del Puerto, 2004, p. 449. 315
Em tradução livre, cf. MAIER, Júlio B. J. Derecho processal penal: tomo I fundamentos. 2.ed. 3.
reimp. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2004, p. 450-451. 316
Op cit. p. 452-453.
74
para as reformas que vieram a se realizar”. Resultado disso foi reorganização do processo
francês em 1790 e 1791.317
O modelo de processo adotado teria repetido os mesmos defeitos do
processo penal acusatório romano, tendo sido elevados os níveis de impunidade. Para corrigir
esses problemas, houve uma sucessão de reformas, onde teria sido preservada a figura do
acusador público e a manutenção de uma fase prévia ao julgamento. O que teria sido feito então,
“foi misturar as características do modelo de processo presente no Code Louis – último
representante do modelo inquisitivo na França – às características do modelo acusatório
romano”.318
Desta forma, teriam sido afastados os problemas dos sistemas inquisitivo e do
acusatório e teriam sido aproveitadas as características que atingissem a finalidade do processo,
mas sem abusos em sua tramitação. Com esta intensão, nasceu o Code d‟Instruction Criminelle
de 1808, cujo modelo passou a ser chamado de sistema misto.319
Considerando o que interessa diretamente ao presente estudo, o Code
de 1808, previa então que a investigação criminal teria sido realizada pela polícia judiciária, da
qual teria feito parte, dentre outros, os juízes de instrução, nomeados e subordinados ao
Imperador. Os juízes de instrução ostentavam os mesmos poderes que um procurador imperial
tinha para investigar criminalmente e deveriam apresentar ao Procurador-Geral Imperial um
relatório sobre os fatos investigados, para que o mesmo apresentasse a acusação.320
Na segunda fase do processo, teria havido o abandono da prova legal e
adoção do critério do livre convencimento motivado dos juízes, sob pena de nulidade. Admitia-
se a apelação contra determinadas decisões.321
Esta forma de construção processual teria influenciado diversos países
da Europa e América, mas os problemas na fase de instrução não tardaram a serem percebidos,
pois sua ideologia se chocava com os ideais revolucionários. Com isso, teria sido iniciado um
movimento de reforma do Code em 1870. Entretanto, somente em 1897 este movimento obteve
êxito com a promulgação da Lei Constans que teria promovido uma grande renovação da fase
de investigação. Teria sido abandonada a característica inquisitorial e introduzidas algumas
317
ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 399. 318
ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 401. 319
Entretanto, conforme já noticiado, não teria sido o Code de 1808 a primeira manifestação deste modelo
de processo. A primeira manifestação teria sido na Espanha, em pleno período inquisitivo, nas
Instruções de Fernando Valdés, de 1561. Idem. 320
ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 403-404. 321
ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 405.
75
garantias existentes no sistema acusatório. Dentre as novidades, teria sido encontrado o
princípio pelo qual o juiz que investiga não pode julgar.322
O procedimento em comento também teria recebido inúmeras críticas
e talvez, a maior delas seria no sentido de que teria servido a Napoleão, “um tirano” e que,
assim, “serviria a qualquer senhor; não serve a democracia”.323
O mesmo autor segue expondo
que:
ora, ou alguém imagina que Napoleão aceitaria o tal sistema bifásico
se não tivesse certeza de que era apenas mudar para continuar tudo
igual? Como bom tirano, jamais concordaria com uma mudança dessa
natureza se não tivesse certeza de que continuaria com o controle
total, através da fase inquisitiva, de todo o processo.324
Assim, somente a título de revisão, retomando apontamentos de nosso
estudo, o sistema acusatório seria caracterizado pela necessária distinção das figuras do
acusador e do juiz e pelo fato de que o processo somente poderia ser iniciado por meio de uma
acusação. Por sua vez, o sistema inquisitivo seria caracterizado pela prescindibilidade de um
acusador distinto do juiz e o processo poder ser iniciado por meio de uma acusação, notitia
criminis ou de ofício pelo juiz.
Nesta mesma medida, encerrado o estudo sobre o sistema misto,
poderíamos defini-lo pela presença de seus elementos fixos que, por sua vez, são percebidos nos
sistemas inquisitivo e no acusatório. Assim, seria caraterizado, na primeira fase, pela presença
de elemento fixo encontrado no sistema inquisitivo, qual seja, seu processo poderia ser iniciado
por notitia criminis, acusação ou de ofício. Por outro lado, no que se refere à segunda fase, esta
seria caracterizada pela presença de elemento fixo presente no sistema acusatório, qual seja, a
fase de julgamento somente poderia ser iniciada através de uma acusação oferecida por um
acusador distinto do juiz, não somente para a abertura, mas também ao longo do processo. Em
suma, na primeira fase imperaria, como forma de abertura do processo elemento fixo presente
no sistema inquisitivo e na segunda, ao reverso, de elemento fixo característico do sistema
acusatório, quanto a legitimidade ativa.
2.5. Sistema Brasileiro: Leitura Tradicional das Garantias Fundamentais – Normatividade
(legalidade Penal e Formalismo Processual)
322
ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 405-406. 323
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 8 ed.. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v.1, p. 64. 324
LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. p. 65.
76
Após a Constituição Federal de 1988,325
os juristas brasileiros teriam
passado a dividir-se quanto ao sistema processual penal adotado. Estaríamos vivenciando um
sistema acusatório, inquisitório ou misto?
Em breves linhas, há quem sustente que o Brasil teria adotado o
sistema acusatório, também há quem sustente que teria sido adotado um sistema misto e até
mesmo quem aponte o sistema inquisitório como o modelo processual penal brasileiro.326
Quanto à jurisprudência brasileira, especialmente a do Supremo
Tribunal Federal, esta já teria sido firmada no sentido da adoção de um sistema acusatório no
Brasil.327
Por sua vez, sempre é pertinente recordar, Andrade328
defende que a
grande maioria da doutrina, algumas vezes norteada pela “manipulação de conceitos para
obtenção de resultados que convalidem posições ideológicas”,329
apresenta conceitos distintos
sobre o mesmo sistema processual penal, sem que os documentos históricos que os vivenciaram
fossem sequer mencionados.
325
Antes da Constituição, a doutrina “quase de forma unânime” caracterizava o sistema processual penal
brasileiro como misto. Cf. ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 455. 326
Reconhecendo a opção acusatória da Constituição Federal de 1988 (p. 73), mas defendendo que,
segundo a doutrina, esta “majoritariamente, aponta que o sistema brasileiro contemporâneo é misto
(predomina o inquisitório na fase pré-processual e o acusatório, na processual)” (p. 52). O mesmo
autor sustentaria ainda que, “fugindo da maquiagem conceitual”, preferiria adotar a expressão
“(neo)inquisitório” para definir nosso sistema (p. 63). Cf. LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual
penal. ed. v. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. No mesmo sentido de ser o sistema misto o
adotado no Brasil, cf. BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 167. Na linha de que o sistema acusatório foi a opção
legislativa em 1988, além da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro, cf.
FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 7. ed. São Paulo: RT, 2012. p. 240;
cf. LUZ, Denise. A busca da verdade no sistema acusatório e a investigação criminal no projeto de
reforma do código de processo penal brasileiro. Revista Magister de Direito Penal e Processual
Penal, n. 48, jun./jul. 2012, p. 62. O atual CPP, orientado pela CF/88, “adota o sistema
predominantemente acusatório, mas permite ao juiz determinar a realização de diligências, no curso
da instrução, para dirimir dúvidas sobre ponto relevante, cf. art. 156”. Cf. MARQUES, Leonardo
Augusto Marinho. O juiz moderno diante da fase de produção de provas: as limitações impostas pela
Constituição. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 24, p. 166. Conforme já apontado,
cabe aqui também a lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: “Todos os sistemas processuais
penais conhecidos mundo afora são mistos. Isto significa que não há mais sistemas puros, ou seja, na
forma como foram concebidos. [...].O sistema processual penal brasileiro atual, assentado no CPP de
41 (cópia do Codice Rocco, da Itália, de 1930, o fascista Vincenzo Manzini na dianteira), tem por base
– e sempre teve – a estrutura inquisitorial.”. Cf. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema
acusatório. Cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Disponível em:
<http://www2.senado.gov.br>. Acesso em: 27 jan. 2013. 327
Neste sentido: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental n. 2.913 / MT. Rel. Min.
Dias Toffoli, DJe 21.06.2012. Disponível em http://www.stf.jus.br. Acesso em 14 dez. 2012.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 102650 / RJ. Rel. Min. Ayres Britto, DJe
19.12.2011. Disponível em:< http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 14 dez. 2012. 328
ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.
Curitiba: Juruá, 2011, p. 452-463. 329
ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 452.
77
Após o estudo sobre as posições existentes sobre o tema,
especialmente considerando a corrente majoritária que defende a adoção do sistema acusatório
no Brasil, segue o mesmo autor sustentando que “não haverá, de nossa parte, nenhum exagero
em se afirmar que nosso país não adota nenhum tipo de sistema processual penal, pois o que
temos hoje são modelos de processo”,330
e nosso direito processual penal vive uma “grave e
antiga crise de identidade”, o que provocaria um clima de profunda insegurança entre os
operadores do Direito.331
O afastamento do sistema acusatório pelo autor supramencionado
segundo ele próprio deve-se ao fato de que, nos sistemas inquisitório e misto, a titularidade da
ação penal também já teria sido em algum momento, concedida ao Ministério Público,
afastando-se a imagem de que esta característica é encontrada somente no sistema acusatório.332
Na mesma linha, as garantias processuais concedidas ao acusado pela
Constituição Federal de 1988333
que, por vezes são tidas como características marcantes do
modelo acusatório, também não seriam exclusividade do sistema em comento. Os processos
inquisitório e misto também já concederam garantias ao acusado, inclusive o sistema inquisitivo
denominado de “contemporâneo”.334
Por fim, a adoção do Estado Democrático de Direito não seria
condição que obrigaria a adoção de um sistema acusatório. A afirmativa não seria correta em
virtude da existência de processos de natureza inquisitiva em países democráticos, “como ocorre
na Alemanha, Itália e Espanha”.335
Como não bastasse, o modelo processual vigente em Atenas,
tida como berço da democracia, apontava uma matriz inquisitiva em pleno regime democrático.
Ainda como exemplo final, a Roma Republicana, no período do auge da democracia, teria
vivenciado situação similar.336
Importante assim destacar que os elementos apontados pela doutrina
em geral como essenciais ao sistema acusatório, analisados pelo contexto e documentos
históricos, não se confirmam. Segundo Andrade, o Brasil não adotou um sistema acusatório,
330 A expressão „modelos de processo‟ teria como referência a ausência de unidade da normatização processual penal do país, na
medida em que haveria a quebra do principium unitatis, que se constitui em um dos requisitos determinantes para a existência dos
sistemas processuais penais. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 468. “Não há um modelo processual penal definido na
Constituição da República. Há um sistema de garantias, inerente às determinações normativas de um Estado Democrático de
Direito, cuja função, essencial, é a realização dos direitos fundamentais”. Cf. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 5.
331 Com destaque em itálico no original. Cf. ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 461. 332 ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 454. 333 Registre-se que antes da Constituição Federal de 1988, o processo penal brasileiro concedia garantias ao acusado. A Constituição
de 1967 teria previsto a partir do artigo 153, os direitos e garantias individuais, mantidas pela Emenda Constitucional 1 de 1969,
inseridas em um “contexto não-democrático” . Cf. ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 455. 334 ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 455. 335 ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 456. 336 Idem.
78
pois, as características apontadas como integrantes deste modelo também estariam presentes em
outros sistemas.
Noutra linha, Lopes Júnior definiria o processo penal brasileiro como
sendo um “monstro de duas cabeças (inquérito policial totalmente inquisitório e fase processual
com „ares‟ de acusatório [...]) é a nossa realidade diária, nos foros e tribunais do País inteiro”.337
Após, segue ainda definindo o sistema brasileiro ainda como “claramente inquisitório na sua
essência, ainda que com alguns „acessórios‟ que normalmente ajudam a vestir o sistema
acusatório (mas que por si só não o transforma em acusatório).” 338
O mesmo autor denunciaria uma “fraude”, argumentando que a prova
seria colhida na “inquisição do inquérito”339
e trazida integralmente para dentro do processo
que, ao final, resta imunizada pelo discurso do julgador de que, por exemplo, a prova do
inquérito foi corroborada pela prova judiciária. Assim, o processo terminaria por converter-se
em uma “mera repetição ou encenação da primeira fase”. Mas ainda não basta, Lopes Júnior
levanta a seguinte questão:
ademais, mesmo que não faça menção expressa a algum elemento do
inquérito, quem garante que a decisão não foi tomada com base nele? A
eleição (culpado ou inocente) é o ponto nevrálgico do ato decisório e pode
ser feita com base nos elementos do inquérito policial e disfarçada com um
bom discurso.
Ainda na linha de argumentação sobre o sistema brasileiro, admitindo
a oscilação doutrinária a respeito do tema, mesmo considerando a hipótese de ter o Brasil
adotado o sistema acusatório ou mesmo o misto, em ambos os casos, recordando os estudos
anteriores, um fator nos parece comum a ambos os sistemas, qual seja, a necessidade da
presença do princípio acusatório. Este princípio reitor ou elemento fixo estaria presente em
ambos os sistemas em comento. Desta forma, não seria ele suficiente para diferenciá-los.
Entretanto, se considerarmos este princípio como a necessidade da presença obrigatória de um
acusador distinto do juiz, há quem defenda340
que esta separação deve ocorrer durante todo o
curso do processo.
337 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 8 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v.1, p. 64-65. 338 LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. p. 69. 339 Alerta seja feito, conforme visão de GRINOVER, de que na fase do inquérito policial não se admite a iniciativa instrutória do
juiz na colheita da prova, o que somente poderia ocorrer, de forma supletiva, no curso do processo. Ao inquérito restaria apenas
uma atividade voltada para “providências cautelares”. A mesma autora defendia, já em 2005, uma separação entre o juiz do inquérito e o juiz da instrução. Cf. GRINOVER, Ada Pelegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório.
Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, jan./jul.2005. p. 15-26. 340 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 8 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v.1, p. 66-68.
79
3 A INICIATIVA INSTRUTÓRIA DA JURISDIÇÃO E OS LIMITES NA DIMENSÃO
DO GARANTISMO
3.1 Garantismo e a matriz publicista do processo penal
Seguindo a mesma ideia apresentada no item anterior sobre a
separação de funções ao longo de todo o processo, uma separação apenas inicial seria
insuficiente, na medida em que durante o curso do processo o juiz assumisse uma postura ativa
na busca da prova ou mesmo na prática de atos tipicamente da parte acusadora. Como exemplo,
no Brasil, poderiam ser aqui mencionados a decretação de ofício da prisão preventiva ou mesmo
a conversão da prisão em flagrante em preventiva (artigo 310), busca e apreensão (artigo 242), a
decretação da medida de sequestro (artigo 127), o interrogatório do réu a qualquer tempo (artigo
196), a determinação de diligências (artigo 156, I e II), o reconhecimento de agravantes não
alegadas (artigo 385), condenação mesmo com pedido de absolvição do Ministério Público
(artigo 385), alteração da classificação jurídica do fato (artigo 383), etc., todos do CPP.341
Assim, “dispositivos que atribuam ao juiz poderes instrutórios [...] externam a adoção do
princípio inquisitivo, que funda um sistema inquisitório, pois representam uma quebra da
igualdade, do contraditório, da própria estrutura dialética do processo”.342
Desta forma, a
imparcialidade do julgador, principal garantia da jurisdição, restaria violada.343
Interessante registrar, neste momento, que haveria decisão proferida
pelo STJ344
confirmando tal posicionamento. Entretanto, o mesmo tribunal já proferiu decisão
no sentido de diferenciar iniciativa probatória e iniciativa acusatória do juiz, sendo inadmissível
apenas a segunda.345
A iniciativa instrutória do juiz seria sustentada pela escolha política
pertinente à concepção publicista346
à função social, na medida em que os objetivos da
341
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 8 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v.1, p. 66. 342
LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. p. 70. 343
Idem. 344
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus n. 23.945 / RJ, 6ª Turma, Rel. Min.
convidada do TJMG Jane Silva, DJe 16.03.2009. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em:
20 nov. 2012. 345
“[...]. 4. São diferentes iniciativa probatória e iniciativa acusatória, aquela é lícita, claro é, ao juiz em
atitude complementar – por exemplo, tratando-se de diligências cuja necessidade se origine de
circunstâncias ou fatos apurados na instrução (atual art. 402). 5. Já a iniciativa acusatória – o
desempenho das funções que competem a outrem – bate de frente com princípios outros, entre os
quais o da imparcialidade do julgador, e o da presunção de inocência do réu, e o do contraditório, e o
da isonomia [...]”. Cf. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 143.889 / SP, 6ª
Turma, Rel. Min. Nilson Naves, DJe 21.06.2010. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em:
20 nov. 2012. 346
No sentido da visão publicista do processo em divergência com a chamada “filosofia liberal-
individualista e de concepção minimalista de Estado”, cf. MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. O
juiz moderno diante da fase de produção de provas: as limitações impostas pela Constituição. Revista
da Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 24, p. 167.
80
jurisdição e do processo se colocam em função do Estado e dos objetivos dele. A observância
das normas de direito material interessa à sociedade. O Estado tem que zelar por seu
cumprimento, pois “o processo possui uma função social”. O papel do juiz seria, considerando-
se a característica publicista do processo, obrigatoriamente ativo:
O objetivo da atividade jurisdicional seria a manutenção da integridade do
ordenamento jurídico. Para o atendimento da paz social, o juiz deve
desenvolver todos os esforços para alcança-lo. Entretanto, o mesmo papel
deste juiz deve, para que se torne efetivo e concreto, estimular o
contraditório. Deve ainda suprir as deficiências das partes, na medida em que
estaria superando a desigualdade e favorecer a par condicio.347
Complementando este entendimento, “o processo deixou de ser, há
muito tempo, a forma pela forma, [...]. O processo é uma ciência vocacionada ao debate,
vocacionada à participação e à formação de decisões constitucionalmente adequadas. É para
isso que o processo serve como ciência”.348
Por meio de outras palavras, há também quem sustente ser o processo
algo mais do que simplesmente a forma pela forma ou a técnica pela técnica, destacando aspecto
dualístico:
O processo penal não é apenas um instrumento técnico, refletindo em si
valores políticos e ideológicos de uma nação. Espelha, em determinado
momento histórico, as diretrizes básicas do sistema político do país, na eterna
busca de equilíbrio na concretização de dois interesses fundamentais: o de
assegurar ao Estado mecanismos para atuar o seu poder punitivo e o de
garantir ao indivíduo instrumentos para defender os seus direitos e garantias
fundamentais e preservar a sua liberdade.349
A compreensão do processo para Ferrajoli também seria sustentada no
fato de que ele ostentaria uma dupla função, com alicerces em Filangieri, Carrara e Lucchini, a
da punição dos culpados juntamente com a tutela dos inocentes,350
sendo esta segunda
preocupação que estaria na base de todas as garantias processuais que circundariam o processo e
que condicionariam de vários modos as instâncias repressivas. Ferrajoli sustentaria que o
processo possuiria ainda como fim “a descoberta da verdade”, diferenciando, contudo, a forma
como esta verdade é compreendida no sistema inquisitório e no acusatório. As garantias
347
Desta forma não seria possível imaginar um juiz “refém” das partes. Cf. GRINOVER, Ada Pelegrini.
A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista do Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária, Brasília, jan./jul.2005, p. 17. 348
NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Entrevista concedida a Gladston
Mamede no programa Direito em Debate. Disponível em:<http://www.youtube.com.br>. Acesso em:
27 jan. 2013. 349
FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 7. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 26. 350
Chamada pelo autor de “a lei do mais fraco”, cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do
garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz
Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 311-312.
81
processuais poderiam ser consideradas como “garantias de verdade controlada pelas partes em
causa e da liberdade do inocente contra o erro e o arbítrio”.351
3.2. Iniciativa instrutória e aspectos psicológicos do juiz no modelo acusatório
A vedação aos poderes instrutórios, segundo alguns autores, seria
justificável, na medida em que traduziriam um verdadeiro “quadro mental paranoico”.352
Esta
afirmação se sustenta no fato de que se instalaria um primado das hipóteses sobre os fatos, pois
o juiz que atuasse na colheita da prova primeiro decidiria e depois iria à busca das provas que
justificariam aquela decisão.353
Assim, restaria evidente que “o recolhimento da prova por parte
do juiz antecipa a formação do juízo”.354
“Nesta linha, não haveria investigador imparcial, seja
ele juiz ou promotor”.355
Aqui, o convencimento não se daria pela prova produzida, mas esta
apenas serviria para demonstrar o acerto da imputação feita, ainda que inconscientemente, pelo
próprio juiz.
Ainda trabalhando com aspectos psicológicos do julgador,
considerando que o mesmo seria o destinatário da prova, o juiz somente poderia sair em busca
da prova, caso existisse no processo algum indício que ele acredita poder confirmar ou refutar
com ela para formar seu livre convencimento. Mesmo sem saber o que vai encontrar, criar-se-ia
uma expectativa com vista do que ele percebe no processo, mesmo inconscientemente. Esta
expectativa contaminaria sua convicção e a prova ganharia seu “caráter alucinatório”, capaz de
converter em verdade o que é apenas percepção e significação.356
351
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,
Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 556-557. 352
CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Apud LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual
penal. 8 ed. v. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 73. No mesmo sentido, citando a mesma fonte,
cf. LUZ, Denise. A busca da verdade no sistema acusatório e a investigação criminal no projeto de
reforma do código de processo penal brasileiro. Revista Magister de Direito Penal e Processual
Penal, n. 48, jun./jul. 2012, p. 52. Também COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema
acusatório. Cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Disponível em:
<http://www2.senado.gov.br>. Acesso em: 27 jan. 2013. 353
Neste mesmo sentido: COUTINHO, Jacinto Nélson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do
processo penal brasileiro apud LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. p. 73. 354
PRADO, Geraldo. Sistema acusatório apud LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. p. 73. 355
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 8 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v.1, p. 74. 356
LUZ, Denise. A busca da verdade no sistema acusatório e a investigação criminal no projeto de
reforma do código de processo penal brasileiro. Revista Magister de Direito Penal e Processual
Penal, n. 48, jun./jul. 2012, p. 51-52. Em sentido contrário, sustentando que “a iniciativa oficial no
campo da prova não embaça a imparcialidade do juiz. Quando atua, ainda não conhece o resultado,
nem sabe qual parte será beneficiada por sua produção. Longe de afetar a imparcialidade, a iniciativa
oficial assegura o verdadeiro equilíbrio e proporciona uma apuração mais completa dos fatos. Ao juiz
não importa quem vença o autor ou réu. Ainda que não atinja a verdade completa, a atuação ativa lhe
facultará o encontro de uma parcela desta.” Cf. GRINOVER, Ada Pelegrini. A iniciativa instrutória
do juiz no processo penal acusatório. Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária, Brasília, jan./jul. 2005, p. 20.
82
Poder-se-ia dizer que toda iniciativa probatória geraria também uma
expectativa, inclusive a produzida pela acusação, na medida em que pretende demonstrar a
culpabilidade do acusado. “Esta expectativa funde presunção e normalidade e reclama por
preenchimento, sendo que, quando ela é do juiz, compromete o contraditório e a afirmação do
sistema acusatório”.357
Não se diga que o juiz deveria manter-se absolutamente alheio à
realidade da vida. Pelo contrário, deveria o juiz estar atento à complexidade e pluralidade da
sociedade atual, aberto para ouvir e entender o diferente. Entretanto, isso não diria respeito à
iniciativa probatória e à gestão da prova como um todo. Quando este se agiganta na colheita da
prova, o critério do livre convencimento acabaria incentivando o “solipsismo” e a “alucinação”,
na medida em que o juiz tenderia a atribuir maior valoração à prova por ele mesmo arrecadada,
“bastando uma boa retórica para imunizar a decisão”.358
Neste sentido, “o livre convencimento
acaba sendo confundido com discricionariedade com graves prejuízos para a democracia”.359
Além das peculiaridades apontadas, Eurico Altavilla chama a atenção
ainda para o perigo que poderia representar a exagerada importância que alguns magistrados
atribuem à intuição:
Às vezes este juízo antecipado cristaliza-se tão potentemente na consciência
do juiz, que não só as conclusões processuais não conseguirão modificá-lo,
mas até ele, inconscientemente, se esforçara por adaptar esses resultados à
sua convicção.” A supervalorização da experiência também reserva algumas
conseqüências indevidas, visto que “cria o perigo de uma semelhança poder
fazer com que não se percepcionem aspectos diferenciais e ser tomada por
identidade (…) A intuição pode (…) ser um utilíssimo instrumento de justiça,
desde que seja logo seguida pela verificação, através do exame objetivo, do
que se apurou no processo. Acrescente-se que a vulgar intuição não é mais,
muitas vezes, que uma enganadora impressão de simpatia ou de antipatia, que
gera um apressado juízo de inocência ou de culpabilidade.
Não se pode negar que tão logo o fato é apresentado ao juiz, este elabora um
juízo sumário ou preliminar, que tem (ou deveria ter) um valor elementar e
provisório. Esta primeira hipótese pode ir se reforçando, e, de possibilidade
vir a tornar-se probabilidade, para, mais tarde, transmudar-se em certeza.
Ainda na lição de Altavilla, “a realidade tem sempre (…) um valor subjetivo
e, por conseguinte, relativo, porque é uma projeção do mundo exterior que
chega ao nosso eu, deformado pelos nossos sentidos e por todos os nossos
processos psíquicos.
Este processo de formação de uma convicção abriga um inconveniente
gravíssimo: a hipótese provisória pode seduzir o investigador, deixando
encoberta ou até invisível outra possibilidade que, eventualmente, possa
357
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 8 ed. v. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 74. 358
Ibidem. 359
STRECK, Lênio. O que é isso – decido conforme minha consciência? 2. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011. p. 48.
83
chegar mais perto da verdade. Além disto, como este juízo sumário se forma
no início do processo, o magistrado, já na colheita da prova, estará
conduzindo-a no sentido de fortalecer o seu convencimento. Ou seja, o
julgador, ainda que de forma inconsciente, buscará reforços para a sua
convicção, enquanto que sua tarefa deveria ser a de apreender o maior
número de informações possíveis, a fim de, ao final, chegar a alguma
conclusão sobre os fatos que lhe foram apresentados. “Deixar-se fascinar por
uma tese, limitando-se a procurar demonstrar a sua exatidão, descurando
todos os elementos contrários, pode ser permitido a um defensor, mas será o
maior dos erros por parte do juiz, vítima, na formação do seu convencimento,
daquele a que poderemos chamar de idéia prevalente, que pretende dominar
sem oposição e tudo deforma e repele, no seu monoideísmo.360
Partindo destas afirmações, poderíamos imaginar, entretanto, que esta
rotina de confirmação ou refutação da hipótese inicial sempre existiria. O que saltaria aos olhos
aqui, admitindo os pensamentos acima relativos ao “quadro paranoico” e à “intuição” do
julgador, seria no sentido de que a iniciativa instrutória do juiz resta, mais uma vez,
inviabilizada, na medida em que poderia ser conduzida no sentido de confirmar uma hipótese
levantada ainda no início da investigação. Assim, seria neste sentido, para evitar-se este
desvirtuamento da atividade probatória, vedada a iniciativa instrutória do juiz que, colocaria em
risco sua imparcialidade, diante da busca, mesmo que inconsciente, de confirmação da hipótese
inicial.
Diante de tais construções, poderiam ser levantadas vozes no sentido
de afirmar que se não houvesse iniciativa instrutória alguma por parte do julgador, ainda sim, o
mesmo estaria sujeito aos mesmos argumentos apresentados. Mas nesta construção hipotética, a
iniciativa instrutória seria um fator que possibilitaria, de forma mais intensa, o alcance dos
objetivos traçados pelo julgador, de confirmar ou afastar a acusação ou alguma característica
inerente ao processo.
3.3. Iniciativa instrutória do juiz e a busca pela verdade
A certeza criminal seria o resultado tanto da intuição quanto da
reflexão. Certeza, neste sentido, seria identificada como a verdade subjetiva: “[a] certeza é um
estado subjetivo de alma que pode muito bem não corresponder à verdade objetiva”.361
Esta
correspondência inundada de caráter subjetivo está sujeita assim, a inúmeros condicionamentos
de caráter individual, como o amor, o ódio, o interesse e outras infinitas circunstâncias.362
360 ALTAVILLA, Eurico. Psicologia judiciária apud BIANCHINI, Alice. Aspectos subjetivos da sentença penal. Disponível em: <
http://atualidadesdodireito.com.br/alicebianchini/2011/09/10/artigo-aspectos-subjetivos-da-sentenca-penal/>. Acesso em: 25 jan. 2013.
361 MALATESTA, Nicola Framarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. Tradução de Paolo Capitanio. 6. ed. Campinas:
Bookseller, 2005. Nota 14, p. 17. 362 TÔRRES, Anamaria. Devido processo legal e natureza da prova: da verdade, da certeza, da convicção, da probabilidade. In:
BRANDÂO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício. (Org.). Princípio da legalidade: da dogmática
jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1, p. 420.
84
A certeza pode ser entendida ainda como a persuasão da verdade,
traduzindo-se na verdade captada. Segundo Mittermayer
“[q]uando a convicção chega ao ponto de repelir vitoriosamente todos os
motivos contrários, e quando estes não podem abalar a massa importante dos
motivos afirmativos, toma o nome de certeza”.363
Assim, o campo da certeza criminal seria o das verdades sensíveis,
tanto materiais quanto verdades sensíveis morais. As primeiras seriam relacionam-se aos
sentidos e as segundas fatos psíquicos, captáveis pelo material em que se exteriorizam. As
primeiras são percebidas pela reflexão e as segundas, pela intuição.364
Deste entendimento, surgiria a noção de que a certeza no processo
penal seria mista, consistente na “percepção da realidade física por obra do sentido, a qual se
adere acessoriamente, a inteligência com a intuição do sentido”.365
Esta certeza seria o campo de repouso do direito penal. Sem que haja
certeza, não haverá sentenças justas. Entre certeza física – advinda apenas dos sentidos, e o
raciocínio, seria a certeza lógica e, mais além desta, a certeza mista que determinaria os juízos
conclusivos.
Retornando aos posicionamentos jurisprudenciais, nesta oportunidade
referindo-nos agora ao Supremo Tribunal Federal que já teria se manifestado também neste
sentido, afirmando, conforme trecho do voto do Ministro Eros Grau que “a independência do
juiz criminal impõe sua cabal desvinculação da atividade investigatória e do combate ao crime,
na teoria e na prática”.366
Insistindo no argumento e trazendo à baila mais uma decisão do
Supremo Tribunal Federal, destacar-se-ia aqui a atuação do juiz no curso do inquérito policial e
sua vinculação ao sistema acusatório, em síntese,
[o] sistema processual penal acusatório, mormente na fase pré-processual,
reclama deva ser o juiz apenas um “magistrado de garantias”, mercê da
363
MITTERMAYER, C. J. A. Tratado da prova em matéria criminal. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Ribeiro
dos Santos, 1909. Nota 11, p. 107. 364
TÔRRES, Anamaria. Devido processo legal e natureza da prova: da verdade, da certeza, da convicção,
da probabilidade. In: BRANDÃO, Cláudio; CAVALCANTI; ADEODATO, João Maurício (Org.).
Princípio da Legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1,
p. 421. 365
MALATESTA, Nicola Framarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. Tradução de Paolo
Capitanio. 6. ed. Campinas: Bookseller, 2005. Nota 14, p. 21. 366
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 95.009-4 / SP, Rel. Min. Eros Grau, DJe
19.12.2008. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 20 nov. 2012.
85
inércia que se exige do Judiciário enquanto ainda não formada a opinio
delicti do Ministério Público.367
Como contraponto, o próprio Supremo Tribunal Federal já teria
decidido no sentido de que o magistrado:
preside o inquérito, apenas como um administrador, um supervisor, um
coordenador, no que concerne à montagem do acervo probatório e às
providências acautelatórias, agindo sempre por provocação, jamais de ofício.
Não exteriorização de qualquer juízo de valor acerca dos fatos ou das
questões de direito emergentes na fase preliminar que o impeça de atuar com
imparcialidade no curso da ação penal.368
Desta forma, entenderia o Supremo Tribunal Federal que o juiz
poderia atuar na fase do inquérito policial, desde que se contenha ou limite-se a figurar como
gestor da legalidade e da marcha investigatória, jamais se arvorando na colheita direta da prova,
usurpando a função do acusador.
Lopes Júnior segue ainda sustentando sobre o critério da separação de
funções de acusação e julgamento, que quando focada apenas no aspecto histórico, seria
“reducionista”, pois alheia ao “nível atual de desenvolvimento e complexidade do processo
penal” que, por sua vez, “não admite mais tais simplificações”.369
Neste ponto, recordando a lição de Ferrajoli, a posição do juiz seria o
ponto nevrálgico da questão, na medida em que ao sistema acusatório corresponderia um juiz-
espectador, dedicado, sobretudo, à objetiva e imparcial valoração dos fatos, mais sábio do que
experto. Em sentido oposto, ao sistema inquisitivo corresponderia um juiz-ator, representante do
poder punitivo.370
De todos os elementos que estariam presentes em um sistema de
matriz acusatória, o mais importante deles, na teoria ferrajoliana, por ser estrutural e
logicamente pressuposto de todos os outros, seria a separação entre juiz e acusação. Esta
separação, a título de recordação, seria externada pela teoria do garantismo penal no “axioma
A8”, qual seja, nullum iudicium sine accusatione, em virtude da proibição ne procedat iudex ex
367
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ag. Reg. n. 2913 / MT, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 21.06.2012.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 20 nov. 2012. 368
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 97.553 / PR, Rel. Min. Dias Toffoli, Dje
10.09.2010. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 20 nov. 2012. 369
LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. p. 67. 370
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,
Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010.
86
officio. Destaque-se que esta separação seria mais evidente na vedação da postura do juiz como
parte, em posição de paridade com a defesa, como órgão de acusação.371
Esta equidistância do juiz entre as partes seria, a título de
argumentação, também uma condição orgânica. A Imparcialidade exigiria uma separação
institucional do juiz da acusação pública, bem como, na media em que o Poder Judiciário se
configuraria, em relação aos outros poderes do Estado, como um “contrapoder”, no sentido de
que se arvoraria no controle de legalidade ou de validade dos atos legislativos assim como
administrativos e à tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos contra as lesões ocasionadas
pelo Estado. Citando Montesquieu, Ferrajoli afirmaria que “é necessário que, pela disposição
das coisas, o poder freie o poder”. Neste sentido a função judiciária seria também uma garantia
de todos os cidadãos contra o mesmo governo, contra seus próprios erros.372
A relação triangular entre os três sujeitos da relação processual,
nortearia a posição equidistante do julgador aos interesses conflitantes das outras partes
contrárias. Somente assim, seria possível preservar a imparcialidade do julgador, alheio a
interesses públicos ou institucionais. Este seria o grande ponto de nosso estudo, segundo a teoria
construída por Ferrajoli.
Além do interesse privado ou pessoal, o interesse público, na teoria de
Ferrajoli não deve ser considerado pelo julgador,373
na medida inversa de que se sustentaria o
caráter publicista do processo penal moderno. Noutra medida, seria este entendimento aplicável
aos reais anseios do processo penal de matriz (neo)constitucionalista, insculpido em um Estado
que se intitula Democrático de Direito?
Neste ponto, possivelmente ironizando o juiz idealizado por Ferrajoli,
uma expressão seria utilizada em alguns julgados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul e do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, quando se referem ao “juiz
samambaia”. Esta figura representaria o juiz inerte, passivo, mero expectador do duelo entre as
partes no processo penal. In verbis: “não vejo, portanto, nenhuma boa razão para exigir que o
juiz se transforme, para usar a feliz expressão de Nucci, numa samambaia de sala de
audiência”.374
371 Com amparo em Filangieri e Tocqueville, cf. FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 522. 372 FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 534-535. 373 FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 536. 374 Por todas, cf. Apelação Criminal de n. 70046554374, da 7ª Câmara Criminal do TJRS, no voto do Rel. Des. Carlos Alberto
Etcheverry, data do julgamento 22.03.2012. Conste aqui ainda que a referência feita a Nucci não foi encontrada na página da obra citada pelo magistrado em seu voto. Por fim, o critério de busca “samambaia” retornou sem registros em consulta jurisprudencial
no sítio do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, no sítio do Tribunal Regional Federal das 1ª e 4ª Regiões, bem como
no do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.
87
Este pensamento de repúdio ao juiz inativo diverge do pensamento de
Busato, para quem o afastamento do juiz garantiria exatamente o controle e não a similitude à
“diminuta condição de vegetal decorativo”:
é justamente este afastamento, esta isenção, que permite o real controle sobre
a realização das provas pertencentes às partes, pois somente uma prudente
distância dos interesses debatidos na causa permite que o juiz exerça sua
função de garantir os direitos fundamentais do acusado. A ele incumbirá
justamente evitar a realização de pressão sobre a testemunha, controlando o
deferimento ou indeferimento de perguntas.375
No mais, saliente-se ainda pela defesa da equidistância, que o juiz
seria um sujeito imperfeito na condição humana, passível de sofrer influências da história da
sociedade em que vive, bem como de sua própria história. Esta afirmação encontra relevo, pois
no momento em que o julgador afasta-se de sua função constitucional, qual seja equidistante e
imparcial, inúmeras garantias seriam devassadas, na medida em que tenderia, na busca da prova,
à uma das partes, violando sua imparcialidade.376
Seguindo a linha de repúdio ao “juiz samambaia”, o que, de início,
parece a postura mais próxima ao pensamento externado pelo STF, há quem sustente que não é
incompatível com um sistema processual penal acusatório o reconhecimento e a concessão de
poderes instrutórios ao juiz, “desde que este sujeito processual não concentre, além da função
decisória, também a função acusatória”, na medida em que nem toda e qualquer iniciativa
instrutória do julgador estaria terminantemente proibida no processo. Para um efetivo estudo
sobre o tema, a posição que deveria ser adotada seria no sentido de entendermos uma diferença
em graus de iniciativa, seja preponderante no sistema inquisitório e restrito no sistema
acusatório.377
Ao reverso da figura dos “juízes samambaias” existiriam ainda,
segundo alguma doutrina, os juízes chamados de “justiceiros” e os que padecem do “complexo
de Nicolas Marshall”, no sentido de pretenderem “fazer justiça com as próprias mãos”.378
Mas os poderes instrutórios do juiz não poderiam ser ilimitados.
Como regras restritivas da atividade instrutória do juiz, deveria ser observado o juiz natural,
375 BUSATO, Paulo César. De magistrados, inquisidores, promotores de justiça e samambaias: um estudo sobre os sujeitos no
processo em um sistema acusatório. Disponível em: <http://periodicos.ufsc.br>. Acesso em: 27 jan. 2013. 376 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal apud SOUZA, Bernardo de Azevedo;
OLIVEIRA, Daniel Kessler de. Entre justiceiros e samambaias: reflexões constitucionais sobre a iniciativa probatória do juiz no processo penal. Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, n. 70, out./nov. 2011.
377 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: RT, 2003, p. 72. 378 Quanto aos justiceiros, cf. SOUZA, Bernardo de Azevedo e. OLIVEIRA, Daniel Kessler de. Entre justiceiros e samambaias:
reflexões constitucionais sobre a iniciativa probatória do juiz no processo penal. Revista Síntese Direito Penal e Processual
Penal, n. 70, out./nov. 2011. Alexandre Morais da Rosa retratou um comportamento que seria identificado em alguns juízes, o
qual denominou de “Complexo de Nicolas Marshall”. Nicolas Marshall era o protagonista de um seriado de televisão americano denominado Dark Justice, que foi exibido durante três anos (1991-1993). Tratava-se da história de um juiz que cumpria as leis
durante o dia e, à noite, longe dos Tribunais, decidia “fazer justiça com as próprias mãos”. Nesse sentido, cf. ROSA, Alexandre
Morais da. O juiz e o complexo de Nicolas Marshall. Disponível em:<http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 23 jan. 2013.
88
bem como sua imparcialidade, a presunção de inocência, a motivação dos atos decisórios, a
duração razoável do processo, a obrigatoriedade de publicidade dos atos processuais, a licitude e
legitimidade das provas, a ampla defesa e o contraditório. “Onde a iniciativa instrutória do juiz
tiver desrespeitado estas orientações e limitações, ter-se-á violado o devido processo penal e, em
última análise, o próprio Estado Democrático de Direito”.379
Pensamento convergente no sentido de que a iniciativa instrutória
“não é ilimitada” e que existiriam “barreiras intransponíveis”, é o pensamento de Grinover.
Segundo ela, a melhor maneira de preservar a imparcialidade é não vedar sua iniciativa
instrutória, na medida em que todas as provas deveriam ser submetidas ao contraditório,
inclusive as obtidas ex officio. Além do contraditório, outra baliza norteadora seria a motivação
das decisões judiciárias, seja na determinação de sua produção ou na sua valoração. A ausência
ou carência acarretaria a invalidade da prova. Por fim, ainda segundo a mesma autora, tanto as
partes quanto o juiz encontrariam outro limite à atividade instrutória na licitude e legitimidade
das provas, pois haveria “uma regra moral intransponível explícita nas constituições de diversos
países”. Trata-se aqui das provas ilícitas e ilegítimas que não podem ingressar no processo.380
Seguindo na mesma construção, adverte Grinover, a certeza buscada
em juízo deveria ser ética, constitucional e processualmente válida. Antes da reforma legislativa
do Código de Processo Penal Brasileiro de 2008,381
/ 382
quanto à iniciativa instrutória do juiz, a
autora afirmou que “tudo isso nada tem a ver com o sistema acusatório, tem a ver com a visão
publicista do processo”.383
A mesma iniciativa instrutória em estudo deveria ser admitida em
caráter excepcional, concretizável apenas quando as partes não tiverem oferecido acervo
probatório suficientemente hábil ao ponto de esclarecer o fato em questão, na medida em que
379
ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. Op. cit., p. 133-134. 380
GRINOVER, Ada Pelegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista do
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, jan./jul. 2005, p. 22. Inclusive, a
título de ilustração, após a percepção de que os poderes instrutórios do juiz representavam uma
abertura do procedimento acusatório a uma característica notadamente inquisitória, “o processo penal
procurou balancear a relação processual, concedendo ao acusado inúmeras garantias para torná-lo
imune às arbitrariedades do passado.” Cf. MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. O juiz moderno
diante da fase de produção de provas: as limitações impostas pela Constituição. Revista da Faculdade
de Direito do Sul de Minas, v. 24, p. 168. 381
Especificamente a alteração da redação do artigo 156 pela Lei Federal de n. 11.690 de 9.6.2008. Cf.
GRINOVER, Ada Pelegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista do
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, jan./jul. 2005, p. 23. 382
Para estudo pormenorizado da reforma legislativa mencionada, cf. SOUZA, Bernardo de Azevedo e.
OLIVEIRA, Daniel Kessler de. Entre justiceiros e samambaias: reflexões constitucionais sobre a
iniciativa probatória do juiz no processo penal. Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, n.
70, out./nov. 2011, p. 90-102. 383
GRINOVER, Ada Pelegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista do
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, jan./jul. 2005, p. 23.
89
não poderia assumir ares de atividade. Diante deste quadro, ao invés de afetar a imparcialidade,
a iniciativa oficial asseguraria o equilíbrio, pois proporcionaria uma apuração mais completa
dos fatos,384
bem como garantiria o equilíbrio da igualdade real entre as partes. Na visão de
Grinover, “o processo não é um jogo, mas instrumento de justiça”.385
A nova ordem constitucional teria inserido a figura de um Estado mais
ativo, assim, a atual iniciativa instrutória do juiz não seria mais que um reflexo da releitura que
a amolde ao espírito democrático, na medida em que este fator exige um processo penal mais
participativo, que proporcione espaço e autonomia às partes. Seria neste contexto de equilíbrio,
que deveria se posicionar o novo processo penal, cobrando dos agentes públicos maior
atividade.386
Segundo ainda esta mesma orientação, o risco da parcialidade ronda o juiz a todo
momento no processo, não sendo a iniciativa instrutória o único ou fundamental fio condutor.
3.4 A perspectiva de um novo modelo acusatório brasileiro e a busca da verdade no
processo penal
Para solucionar esta questão de oscilação entre o real sistema adotado
pelo Brasil, haveria a necessidade de uma previsão legislativa expressa que poderia ser inserida
no artigo 5º da Constituição Federal, como garantia de que o sistema será o acusatório. Após
esta inserção, seria possível um “encadeamento lógico-normativo” de todos os institutos
processuais penais, seguindo esta diretriz, em um novo código de processo penal. Depois, dar-
se-ia “legitimidade a todas as previsões contidas na nova legislação adjetiva, evitando-se o mal
que aflige a diversas disposições do atual Código de Processo Penal: [...] de não haverem
nascido sob a égide e influência de um regime democrático”.387
Lançando olhares ao futuro, existe em tramitação um projeto de novo
Código de Processo Penal brasileiro.388
O projeto prevê a figura do juiz das garantias,
estampada no artigo 4º com a seguinte redação: “O processo penal terá estrutura acusatória, nos
limites definidos neste Código, vedada a iniciativa do juiz na fase de investigação e a
substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.
384
ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. Op. cit., p. 144. 385
GRINOVER, Ada Pelegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista do
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, jan./jul. 2005. p. 22. 386
ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. Op. cit., p. 177. 387
ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit., p. 463. 388
“O Projeto de Lei n° 156/2009, que visa à aprovação do novo Código de Processo Penal, foi concebido
com o escopo de atualizar a legislação processual penal em vigor, de forma a compatibilizar alguns
institutos com a ordem Constitucional surgida a partir de 1988”. Cf. Nota técnica da Presidência do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de n. 10. DJ-e 01/09/2010, p. 2-4. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/317-notas-tecnicas/11221-nota-tecni
ca-no-102010a>. Acesso em: 20 nov. 2012. O projeto mencionado foi convertido pela Câmara dos
Deputados no Projeto de Lei n. 8.045/10.
90
Em outros termos, a construção seria no sentido de uma alteração no
critério de fixação de competência, excluindo a atuação na fase de julgamento daquele juiz que
tenha atuado na fase de investigação, ao invés de um critério de atração, como ocorre com o
atual instituto da prevenção.389
Assim, a pretendida criação de um novo código que buscaria a adoção
formal e expressa de um modelo acusatório com privilegio da figura do juiz imparcial, não
contaminado pela fase de investigações.390
Nos parece aqui a tentativa de efetivação dos anseios
da teoria do garantismo penal de Ferrajoli, tornando certa a separação das funções de
investigação e julgamento em pessoas distintas, visando a manutenção da imparcialidade.
A Exposição de Motivos do anteprojeto do novo código apresentou no
Capítulo III, uma justificativa pela inserção da nova figura do juiz das garantias no processo
penal brasileiro como forma de consolidar o princípio acusatório, bem como para os fins de
preservação da já mencionada imparcialidade do juiz do processo.391
A Agência Senado publicou, por sua vez, informação explicativa
sobre a nova figura do juiz das garantias, no sentido de que
Atualmente, um mesmo juiz participa da fase de inquérito e profere a
sentença, porque foi o primeiro a tomar conhecimento do fato (art. 73,
parágrafo único do CPP). Com as mudanças, caberá ao juiz das garantias
atuar na fase da investigação e ao juiz do processo julgar o caso – este tendo
ampla liberdade em relação ao material colhido na fase de investigação.392
O projeto definiu expressamente o juiz das garantias como sendo o
“responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos
direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder
Judiciário”.393
No contexto de atuação do juiz na fase do Inquérito Policial, teria o mesmo a
função de proporcionar ao investigado a garantia da preservação dos direitos fundamentais.
Mesmo assim, esta atuação deveria ser muito limitada, como controlador da legalidade, além,
389
Considerando o critério da prevenção como problemático, cf. LOPES JUNIOR, Aury. Direito
processual penal e sua conformidade constitucional. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1. p.
249. 390
Entretanto, merece aqui apontamento no sentido de que “a perda da imparcialidade não leva ao sistema
inquisitivo”. cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Juiz das garantias. Curitiba: Juruá, 2011, p. 58. 391
“Seja do ponto de vista da preservação do distanciamento do julgador, seja da perspectiva da
consolidação institucional do parquet, não há razão alguma para permitir qualquer atuação
substitutiva do órgão da acusação pelo juiz do processo.” 392
BRASIL. Senado Federal. Agência Senado. Disponível em: <http:// www.senado.gov.br/noticias
/agencia/quadros/qd_167.html>. Acesso em: 20 nov. 2012. 393
Conforme redação dos artigos 14 e 15 do texto original.
91
como dito, de garantidor do respeito aos direitos fundamentais.394
Tradicionalmente, o que se vê
na investigação preliminar seria a atuação afastada do juiz, contingente, excepcional, limitado a
exercer o controle formal da prisão e medidas restritivas de direitos. 395
Mereceria ressalva relevante ao cenário aqui instalado àquela referente
ao impedimento de atuação na fase de julgamento ao juiz único da comarca.396
O problema que
existiria estaria nas estatísticas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que apontaria que 40%
das varas da Justiça Estadual brasileiras funcionam com apenas um único juiz de Direito. 397
/ 398
A mesma ressalva também se encontra quanto à exclusão do processo para apuração de prática
de infrações penais de menor potencial ofensivo399
e para ações penais originárias.400
Estes
dados colocariam em risco a efetividade da norma, na medida em que seria inobservada em
grande parcela dos processos em curso no país.
394
Defendendo que não há direito coletivo mais relevante que aqueles fundamentais dos cidadãos, “A
cultura acusatória, do seu lado, impõe aos juízes o lugar que a Constituição lhes reservou e de
importância fundamental: a função de garante! Contra tudo e todos, se constitucional, devem os
magistrados assegurar a ordem posta e, de consequência, os cidadãos individualmente tomados”. Cf.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório. Cada parte no lugar
constitucionalmente demarcado. Disponível em: <http://www2.senado.gov.br>. Acesso em: 27 jan.
2013. 395
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 8. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 247-249. 396
Conforme artigo 748, I do Projeto. 397
Colaciona-se aqui a íntegra do item 8, referente ao juiz das garantias: “Contudo, a consolidação dessa
ideia, sob o aspecto operacional, mostra-se incompatível com a atual estrutura das justiças estadual e
federal. O levantamento efetuado pela Corregedoria Nacional de Justiça no sistema Justiça Aberta
revela que 40% das varas da Justiça Estadual no Brasil constituem-se de comarca única, com apenas
um magistrado encarregado da jurisdição. Assim, nesses locais, sempre que o único magistrado da
comarca atuar na fase do inquérito, ficará automaticamente impedido de jurisdicionar no processo,
impondo-se o deslocamento de outro magistrado de comarca distinta. Logo, a adoção de tal
regramento acarretará ônus ao já minguado orçamento da maioria dos judiciários estaduais quanto ao
aumento do quadro de juízes e servidores, limitados que estão pela Lei de Responsabilidade Fiscal,
bem como no que tange ao gasto com deslocamentos e diárias dos magistrados que deverão atender
outras comarcas. Ademais, diante de tais dificuldades, com a eventual implementação de tal medida
haverá riscos ao atendimento do princípio da razoável duração do processo, a par de um perigo
iminente de prescrição de muitas ações penais. Também é necessário anotar que há outros motivos de
afastamentos dos magistrados de suas unidades judiciais, como nos casos de licença, férias,
convocações para Turmas Recursais ou para composição de Tribunais”. (grifamos). Cf. Nota técnica
da Presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de n. 10. DJ-e 01/09/2010, p. 2-4, item 8.
Disponível em <http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/317-notas-tecnicas
/11221-nota-tecnica-no-102010a>. Acesso em 20 nov. 2012. 398
“De acordo com o conselheiro Paulo Tamburini, embora os dados do Justiça em Números revelem que
o número de juízes é baixo no Brasil, em comparação com países como Espanha, França, Portugal e
Itália - que possuem entre 10 e 17 magistrados por cada cem mil habitantes, por outro lado mostram
que está na média internacional - que é de oito juízes para cada cem mil habitantes” (dados de 2011).
Cf. CONJUR, Artigo de autoria da redação do site Consultor Jurídico, Brasil tem oito juízes para
cada cem mil habitantes. Disponível em:< http://www.conjur.com.br/2011-fev-12/media-brasil-oito-
juizes-cada-cem-mil-habitantes>. Acesso em: 20 nov. 2012. 399
Conforme artigo 15 do projeto. Lembrando que as infrações de menor potencial ofensivo seriam
aquelas descritas na Lei 9.099/95 em seu artigo 61. 400
Conforme redação do artigo 314 do Projeto, o juiz das garantias que atuar na fase de julgamento
somente estará excluído de figurar como relator.
92
Por outro lado, apesar da compreensão de que a figura do juiz das
garantias é bem-vinda em nosso processo, há quem sustente que esta nova figura “é um
mecanismo inócuo”401
que “não apresenta progresso algum”.402
As afirmações teriam como
justificativa a circunstância de que a importação desta figura do direito estrangeiro não se
justificaria ao Brasil, pois as realidades vivenciadas pelo direito seriam diversas. A figura
mencionada teria maior valia, conforme jurisprudência internacional,403
em relação ao juiz
investigador, “o que não ocorre em relação ao juiz projetado no texto em tramitação”.404
/ 405
Críticas ainda surgiriam no sentido de que a figura em estudo seria
também “burocrática”,406
pois poderia gerar confusões, erros e desencontros, retardando
investigações e medidas urgentes, ensejando a prescrição e incrementando a impunidade, na
medida em que a estrutura atual do Poder Judiciário não suportaria a efetiva implementação
desta figura. Na mesma linha, o juiz das garantias seria ainda “desnecessário” porque o juiz do
processo, hoje no Brasil, já exerce as mesmas funções “sem prejuízo algum em relação à sua
imparcialidade”.407
E mais, o juiz das garantias poderia ser visto, inclusive, como “arbitrário”,
pois todas as suas decisões seriam irrecorríveis, não se enquadrando na hipótese de agravo
(artigo 473)408
e nem na de apelação (artigo 480) ambos do mesmo projeto do novo CPP.409
Apesar das críticas, a figura do juiz das garantias, por todo o estudo,
apresentaria uma nítida inovação no caminho do reconhecimento da necessidade da separação
de funções no processo penal brasileiro. Mesmo com todas as dificuldades que existiriam para a
401 Este mecanismo seria “criado para curar um mal inexistente”. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 76. 402 ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 129. 403 Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) que defende a figura do juiz das garantias pela perda de
imparcialidade do julgador ocorreria somente quando houver anterior análise de mérito, justificando a proibição de atuação do
mesmo juiz em ambas as fases. No mais, o TEDH teria afastado o argumento de que a quebra da imparcialidade do julgador que
tenha atuado na fase de investigação seja presumida. Ao contrário, ela seria pro judicato, exigindo prova em sentido contrário. “E, se aplicarmos aqueles critérios traçados pelo TEDH à nossa realidade, facilmente veremos que não há como justificar, a partir da
jurisprudência dessa mesma Corte, que o juiz brasileiro, por simplesmente haver atuado na fase de investigação, estará
contaminado”. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 23-26 e 30. Em sentido contrario, há posicionamento segundo o qual o TEDH sustentaria a separação de funções, sem mencionar nenhuma condição ou particularidade. Cf. LOPES JÚNIOR, Aury.
Direito processual penal. 8 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v.1, p. 67. Neste último sentido também seria a visão de
ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: RT, 2003. p. 141. 404 Idem. Discorrendo sobre a afirmativa, o mesmo autor traz a lume, relembrando a figura do juiz investigador que está presente
somente nos sistemas inquisitivo e misto. Desta forma, o novo código teria adotado o modelo acusatório, a restrição ao juiz
brasileiro torna-se sem sentido. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 21. 405 A Associação dos Juízes Federais (AJUFE) argumentando a importância da participação ativa do juiz “diante de possíveis e
eventuais falhas, não só da defesa, mas também da acusação”. O poder de instrução complementar seria fundamental para que o
processo não se transforme em “mera disputa entre acusação e a defesa, com a vitória do melhor profissional e com prejuízos à descoberta da verdade e a correta aplicação da lei penal” cf. ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS. Nota técnica n. 3/2010 de
19.05.2010. Disponível em: <http://www.ajufe.org.br>. Acesso em: 26 jan. 2013. 406 406 NOGUEIRA, Carlos Frederico Coelho. Juiz das garantias do novo CPP é arbitrário. Disponível em:
<http//www.conjur.com.br>. Acesso em: 22 nov. 2012. Em sentido contrário, defendendo a desburocratização, na medida em que
“o diálogo entre a polícia e procuradores e promotores passa a ser direto, e não por intermédio do juiz”. Cf. Agência Senado. Criação do juiz das garantias dá maior isenção a julgamento. Disponível em: <http//www.senado.gov.br/noticias>. Acesso em:
22 nov. 2012. 407 NOGUEIRA, Carlos Frederico Coelho. Juiz das garantias do novo CPP é arbitrário. Disponível em:
<http//www.conjur.com.br>. Acesso em: 22 nov. 2012. 408 Apear da redação do inciso V do mesmo artigo prever seja possível o agravo quando o juiz das garantias “deferir, negar, impor,
revogar, prorrogar, manter ou substituir qualquer das medidas cautelares, pessoais ou reais”, nos artigos subsequentes haveria noção de que seria possível o recurso apenas contra as decisões proferidas no curso do processo.
409 NOGUEIRA, Carlos Frederico Coelho. Juiz das garantias do novo CPP é arbitrário. Disponível em:
<http//www.conjur.com.br>. Acesso em: 22 nov. 2012.
93
implementação desta figura, o que poderíamos extrair de positivo seria a confirmação expressa
da adoção do sistema acusatório no Brasil, bem como a preocupação com a garantia dos direitos
fundamentais do acusado e a imparcialidade do julgador.
3.5 A busca pela verdade formal como horizonte possível ao julgador
Neste novo item seria necessário agora abordar mais uma questão
relevante para nosso estudo, a busca da verdade no processo penal. Verdade, qual verdade? A
iniciativa instrutória do juiz relaciona-se à busca da verdade no processo penal? Seria possível
encontrar a verdade real? A que custo? Os direitos e garantias fundamentais do cidadão seriam
entendidos como obstáculo à construção da verdade? Em que medida os sistemas processuais
penais atingiriam maior ou menor grau de verdade? A verdade seria formal ou material? A estas
questões, dentre outras, dedicaremos nossos próximos passos.
Incialmente interessante ressaltar que, segundo entendimento de
Ferrajoli, o próprio processo seria uma condição de verdade e de liberdade. Esta afirmação seria
sustentada pela recordação da história dos julgamentos, na medida em que poderia ser percebida
uma enorme sucessão de erros, fundados na tortura e mesmo no abuso da prisão preventiva.
Assim, colacionando Francesco Pagano, as nações bárbaras desconheciam completamente o
processo.410
Em norte distinto ao da justiça pelas próprias mãos, o processo
perseguiria, em coerência com uma dúplice função preventiva do direito penal, duas finalidades
já estudadas. Relembrando, primeiro a punição dos culpados e depois a tutela dos inocentes,
sendo esta segunda que estaria na base de todas as garantias processuais e que condicionariam
de vários modos as instâncias repressivas. Estas duas finalidades teriam vivido em contraste
durante toda a história do processo. Os modelos de processo de matriz acusatória e os de cunho
inquisitório ostentariam maior aproximação de uma ou outra função. Não se afirmaria que o
processo acusatório não se dedicaria à punição dos culpados e nem que o processo inquisitório
abriria mão da tutela dos inocentes. A questão aqui se relacionaria agora com a verdade,
conforme demonstrado pelo autor do garantismo:
Enquanto o método inquisitório exprime uma confiança tendencialmente
ilimitada na bondade do poder e na sua capacidade de alcançar o verdadeiro,
o método acusatório se caracteriza por uma confiança do mesmo modo
ilimitada no poder como autônoma fonte de verdade. Disso deriva que o
primeiro confia não só a verdade, mas, também, a tutela do inocente às
presumidas virtudes do poder julgador; enquanto o segundo concebe a
verdade como o resultado de uma controvérsia entre partes contrapostas por
410
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,
Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 556.
94
serem portadoras respectivamente do interesse na punição dos culpados e do
interesse na tutela do acusado presumido inocente até prova em contrário.411
Em todos esses casos de opostas epistemologias de juízo, o processo
tem por fim a “descoberta da verdade”. Entretanto, seriam diversas as maneiras de entender a
verdade e os métodos empregados para atingi-la. Especificamente, “enquanto o método
inquisitório se baseia em uma epistemologia substancial e decisionista, o método acusatório
pode ser configurado como a transposição jurídica da epistemologia da falsificação”.412
Neste sentido, as garantias processuais seriam consideradas,
principalmente as da separação de funções entre acusação e julgador, bem como a decorrente
imparcialidade, como fonte de uma verdade controlada pelas partes em causa da liberdade do
inocente contra o erro e o arbítrio.
Os diversos estilos processuais assinalariam a diversa relação entre
meios e fins do processo. O primado “do fim” de uma verdade máxima no processo inquisitório,
qualquer que seja o meio para atingi-la; o primado “dos meios” no processo acusatório,
enquanto garantias de uma verdade mínima, mas o mais certa possível. E são o reflexo de um
conteúdo de legalidade processual nos dois sistemas: enquanto no processo acusatório é livre a
valoração, mas é vinculado o método de aquisição das provas, no processo inquisitório é
vinculada a valoração das provas, mas é livre o seu método de formação.413
A humanidade sempre teria valorizado muito a verdade,414
deixando
aqui, como passagem obrigatória desta busca incessante, o diálogo Bíblico entre Jesus e Pôncio
Pilatos, onde este último teria perguntado “que é a verdade?”.415
Não pretendendo adentrar no mérito da discussão infindável sobre um
conceito e qual seria o alcance da verdade para a filosofia ou mesmo para a metafísica, ocupamo-nos aqui
apenas com o que mais se aproxima do enfoque jurídico. Assim, do ponto de vista da atividade
411
FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 560. 412
FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 563. 413
FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 563-564. 414
De Aristóteles (384 a.C.) a Santo Agostinho (354 d.C.), chegando a kant, Hegel, ortega e Gasset,
Tarski, Bertrand, Russell, Heidegger, Habermas, Alexy, etc. Atribui-se a Santo Agostinho a definição
de verdade: “Verum es id quo est”, (a verdade é o que é). Relacionando intelecto humano como sede
da verdade, esta seria então “a conformidade da coisa com a inteligência”, cf. BARROS, Marco
Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p.
27. Segundo MITTERMAYER, “Verdade é a concordância entre um fato real e a ideia dele
representada em nosso espírito”, na lição de Framarino MALATESTA, trata-se da conformidade da
noção ideológica com a realidade, por sua vez, Antônio DELLE PIANE identifica a verdade como o
acordo do pensamento com o objeto, apud TÔRRES, Anamaria. Devido processo legal e natureza da
prova: da verdade, da certeza, da convicção, da probabilidade. In: BRANDÂO, Cláudio;
CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício (Org.). Princípio da legalidade: da
dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1, p. 419-420. 415
Bíblia Sagrada. Evangelho narrado por João 18, 33-38.
95
jurisdicional, teríamos a “verdade de fato” e a “verdade de direito”.416
A primeira configurar-se-ia quando
o juízo de valor que o julgador forma acerca de certo caso, ou acontecimento, está inteiramente
conforme com as provas existentes a seu respeito. A segunda seria verificada ao tempo da
aplicação da lei ao caso concreto, isto é, quando o juiz declara a regra que dá o verdadeiro
sentido ao fato, em conformidade com o pensamento que apreende do legislador. Destaque-se
aqui, como alerta que a verdade seria uma, indivisível. O que pode suceder é que “na mesma
proposição estejam reunidos vários juízos, distintos uns dos outros, dos quais uns são
verdadeiros e outros falsos”.417
Acrescente-se a isto o fato de que a percepção da verdade
poderia ainda sofrer influências do momento histórico vivido, sendo que a verdade de um
momento pode não ser a de outro.418
Neste contexto, há quem defenda que seria muito comum o consenso
de que o juiz julga os fatos, quando na verdade ele julga um “resumo da prova”.419
Na mesma
medida, a ordem jurídica só se concretizaria a respeito de fatos reconstruídos, nunca chegaria
aos fatos efetivamente acontecidos.420
A autoridade jurisdicional toma em consideração os fatos
como entender que ficaram oficialmente provados.
A verdade inerente ao processo penal, por sua vez, seria assimilada
com esteio nas provas produzidas no curso do procedimento, chamada de “verdade
processual”.421
Em sentido contrário, haveria entendimento pelo qual a verdade que se busca é a
verdade material, mesmo que não absoluta ou ontológica, mas que seja uma verdade judicial
não obtida a qualquer custo, mas processualmente válida.422
/ 423
Trazendo o enfoque quanto ao entendimento tendencioso das partes
no processo penal, estas possuiriam as suas próprias verdades, segundo sua forma mentis, sob o
influxo dos seus próprios interesses e das suas paixões. E seriam somente pela experiência e
416 BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 28. 417 Ibidem. 418 BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 30. 419 CASTRO, Amilcar de. Direito internacional privado. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 19. 420 LIEBMAN, Enrico Tullio. O despacho saneador e o julgamento de mérito. Apud CASTRO, Amilcar de. Direito internacional
privado. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 19. 421 BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 29. 422 Cf. FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito processual penal. Apud BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no
processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 33. “O processo penal moderno passa a se orientar pelo compromisso ético com os valores fundamentais da pessoa humana. Os limites constitucionais à produção da prova [...],
confirmam que o Estado não busca a verdade a qualquer custo.” Cf. MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. O juiz moderno
diante da fase de produção de provas: as limitações impostas pela Constituição. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas,
v. 24, p. 159-174. 423 Trazemos por oportuno conhecida decisão do STF proferida em caso paradigmático sobre provas ilícitas produzidas por meio de
interceptações telefônicas. Ementa: “1. [...]. 2. Da explícita proscrição da prova ilícita, sem distinções quanto ao crime objeto do
processo (CF, art. 5º, LVI), resulta a prevalência da garantia nela estabelecida sobre o interesse na busca, a qualquer custo, da
verdade real no processo: consequente impertinência de apelar-se ao princípio da proporcionalidade – à luz de teorias estrangeiras inadequadas à ordem constitucional brasileira – para sobrepor, à vedação constitucional da admissão da prova ilícita,
considerações sobre a gravidade da infração penal objeto da investigação ou da imputação. [...]. 23. Ora, até onde vá a definição
constitucional da supremacia dos direitos fundamentais, violados pela obtenção da prova ilícita, sobre o interesse da busca da verdade real no processo, [...].” O item 24 faz repúdio nostálgico expresso às inquisições medievais. cf. BRASIL. Supremo
Tribunal Federal. HC. n. 80.949 / RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJe 14.12.2001. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>.
Acesso em: 26 jan. 2013. (grifamos.)
96
controle crítico dos seus constantes “pontos de vista”, que se poderia chegar àquela “verdade do
juiz”, que é depois aquela que vale para o ordenamento jurídico. Neste sentido, caberia aqui a
orientação segundo a qual pela substituição da atividade das partes pela atividade do juiz, o fato
pode não ser aquele que os interessados viram acontecer, mas seria o que o juiz verificou nos
autos e declara que aconteceu.424
Em outra medida, esta mesma verdade que se manifestaria de forma
diversa nos homens, dependendo da percepção, interesses e paixões de cada um, somente seria
considerada válida no processo quando construída sobre uma base sólida de legalidade.425
Na hipótese de considerarmos que seria impossível426
o alcance da
verdade material, verdade real427
ou verdade substancial, diante de que seria escarpa cujo topo
inatingível, deveríamos então nos contentar com a possível reconstrução dos fatos
consubstanciada na verdade formal.428
Assim, nem digamos que ambas as verdades não se
apresentariam no processo penal, na medida em que não mais existiria, como em outrora, o
predomínio absoluto da verdade material que, segundo Ferrajoli, seria carente de limites e de
confins legais, degeneraria em juízo de valor, amplamente arbitrário de fato. A verdade formal
não representaria, necessariamente, também como produto do intelecto humano, o espelho da
verdade. Esta outra faceta da verdade que, não nos esqueçamos, a verdade seria única,
indivisível, caracteriza-se pela ideia de que a mesma não reflete exatamente a realidade dos
fatos, mas estaria produzindo os efeitos da chamada “verdade judicial” ou “verdade
processual”.429
Esta verdade seria encontrada pelo respeito de regras precisas. “Esta verdade não
pretende ser a verdade; não é obtida mediante indagações inquisitivas alheias ao objeto pessoal;
está condicionada em si mesma pelo respeito aos procedimentos e às garantias da defesa”.430
424 TÔRRES, Anamaria. Devido processo legal e natureza da prova: da verdade, da certeza, da convicção, da probabilidade. In:
BRANDÂO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício (Org.). Princípio da legalidade: da dogmática
jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1, p. 419. 425 BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 30 426 Por todos: TÔRRES, Anamaria. Devido processo legal e natureza da prova: da verdade, da certeza, da convicção, da
probabilidade. In: BRANDÃO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício (Org.). Princípio da Legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1, p. 423. Admitindo que “verdade e
certeza são conceitos absolutos dificilmente atingíveis no processo ou fora dele”, cf. GRINOVER, Ada Pelegrini. A iniciativa
instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, jan./jul.2005. p. 19.
427 “A verdade real passou a ser aquela extraída inquisitorialmente pelo juiz”. Cf. STREK, Lênio. O que é isso – decido conforme
minha consciência? 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 10 e 48. 428 “Faz-se justiça com fatos narrados, não com fatos acontecidos, porque com estes seria impossível funcionar o regime de justiça
pública, já que a autoridade jurisdicional não poderia ter o do da ubigüidade, para tudo presenciar”. Cf. TÔRRES, Anamaria. Devido processo legal e natureza da prova: da verdade, da certeza, da convicção, da probabilidade. In: BRANDÃO, Cláudio;
CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício (Org.). Princípio da legalidade: da dogmática jurídica à teoria do
direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1, p. 20. 429 “O juiz só pode buscar a verdade processual, que nada mais é do que o estágio mais próximo possível da certeza”, cf.
GRINOVER, Ada Pellegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista do Conselho Nacional de
Política Criminal e Penitenciária, v. 1, Brasília, jan/05 a jul/05, p. 15-26. Disponível em: <http//www.portal.mj.gov.br>. Acesso em: 24 jan. 2013.
430 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr,
Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 48.
97
Por sua vez, em construção diversa, Ferrajoli sustenta que a justiça
penal fundada integralmente numa verdade seria utopia, por outro lado, uma justiça penal sem
verdade, seria o equivalente a um sistema de arbitrariedades e que as garantias legais e
processuais, além de garantias de liberdade, são garantias de verdade.431
Deste estudo, poderíamos entender então que, visualizada a iniciativa
instrutória do juiz, a verdade material ou processual definiria o horizonte e atuação do juiz. A
iniciativa instrutória do juiz seria mais ativa quando ao mesmo fosse incorporada a verdade
material, na medida em que o esclarecimento da verdade não poderia escapar-lhe às mãos. Por
outro lado, uma postura mais passiva e distante do acervo probatório pelo juiz, seria a
incorporação da verdade formal, trazida pelas partes e compreendida pelo julgador.432
A “verdade formal” ou “processual” seria uma verdade mais
controlada quanto ao método de aquisição, porém reduzida quanto ao conteúdo informativo,
apenas provável e opinativa.433
Agora seria possível notar ainda que a verdade “provável” não atende
aos anseios do processo penal, notadamente no que se refere a uma sentença condenatória.
Neste sentido, sendo a verdade mera probabilidade, poder-se-ia concluir que o juiz também não
logrou êxito em sua busca.434
Faltando a certeza, não se poderia condenar.435
436
Segundo a Teoria do Garantismo Penal havendo dúvida, ou na falta de
acusação ou de provas ritualmente formadas, prevaleceria a presunção de não culpabilidade.
Este seria o valor, ou melhor, o preço do “formalismo”, protegendo a liberdade dos cidadãos.437
Aqui, seria necessário ainda sustentar que não caberia ao juiz garantir
efetividade à acusação, propondo e produzindo diretamente a prova, já que esta só serve para
condenar, pois ao réu, a dúvida lhe favoreceria. Esta atitude do juiz seria substancialmente uma
cumulação de funções com as da acusação.
431
FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 48-49. 432
BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010, p. 39. 433
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,
Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 48. 434
BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010, p. 34. 435
MALATESTA, Nicola Framarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. Tradução de Paolo
Capitanio. 6. ed. Campinas: Bookseller, 2005, p. 54-58. 436
No mesmo sentido, cf. LUZ, Denise. A busca da verdade no sistema acusatório e a investigação
criminal no projeto de reforma do código de processo penal brasileiro. Revista Magister de Direito
Penal e Processual Penal, n. 48, jun./jul. 2012, p. 49. 437
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,
Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 48.
98
Caminhando um pouco mais adiante, há quem sustente que o juiz seria
o destinatário da prova, desta forma, estaria autorizado em sua perseguição, com norte na
obtenção da verdade. Diga-se de passagem, entretanto que, perquirir a verdade, mesmo que de
forma supletiva438
à atuação das partes, por si só, não justificaria os poderes instrutórios do juiz.
A questão aqui seria mais bem identificada no modo de obtenção desta verdade e qual a verdade
bastaria ao processo penal.
Diante disso, seguindo entendimento no sentido de que o objetivo do
processo seria a realização da justiça439
e que para tanto, seria exigida certeza, não se poderia
fundamentar uma condenação em mera probabilidade,440
sob pena de não se fazer justiça.
Adverte Torres que “a falta de segurança, advinda de julgamentos injustos, seria mais temerosa
que o próprio ato de delinquir”.441
O mais acertado seria que a probabilidade teria sim relevante interesse
ao processo, na medida em que se transformasse em certeza, fundado no entendimento de que a
primeira pode ser o primeiro passo para a realização da segunda.442
Razão assistiria, segundo Marques, ao argumento de que a dúvida
precisaria estar relacionada com a qualidade ou idoneidade da prova, não podendo originar da
438
Leia-se aqui o parágrafo único do artigo 212 do CPP com redação determinada pela Lei 11.690/08,
que trata da oitiva de testemunhas: “Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a
inquirição”. Como contraponto à atuação supletiva do juiz na busca da prova: “O juiz pode intervir na
realização da prova para formar seu convencimento, mas essa intervenção não se confunde com
poderes para investigar a verdade. [...]. No plano concreto, a tutela dos direitos fundamentais
sobrepõe-se ao mito da verdade real. [...]. A iniciativa instrutória do juiz está adstrita à tutela da
liberdade, sendo-lhe vedado suprir a deficiência ou omissão na produção da prova, por parte do órgão
legitimado para promover a acusação”. Cf. MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. O juiz moderno
diante da fase de produção de provas: as limitações impostas pela Constituição. Revista da Faculdade
de Direito do Sul de Minas, v. 24, p. 174. 439
Segundo Ferrajoli, o objetivo do processo é a preservação dos direitos fundamentais. Cf. FERRAJOLI,
Luigi. Direito e razão. No mesmo sentido, cf. MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. O juiz
moderno diante da fase de produção de provas: as limitações impostas pela Constituição. Revista da
Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 24, p. 159-174. 440
A probabilidade é considerada por alguns como o único juízo firmado no criminal. “Os que defendem
tal posição se baseiam no fato de que em matéria criminal não se procura mais acuradamente a
verdade com certeza, porque se sabe de antemão, ser impossível”. Cf. TÔRRES, Anamaria. Devido
processo legal e natureza da prova: da verdade, da certeza, da convicção, da probabilidade. In:
BRANDÃO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício (Org.). Princípio da
legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito.. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1, p. 423. 441
TÔRRES, Anamaria. Devido processo legal e natureza da prova: da verdade, da certeza, da convicção,
da probabilidade. In: BRANDÃO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício
(Org.). Princípio da legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense,
2009, v. 1, p. 423. 442
Probabilidade e certeza seriam diferentes, pois a primeira admite graus maiores ou menores de
existência, ao passo que a segunda não. Cf. MALATESTA, Nicola Framarino dei. A lógica das
provas em matéria criminal. Tradução de Paolo Capitanio. 6. ed. Campinas: Bookseller, 2005, p. 53.
99
falta desta, na medida em que a ausência ou mesmo deficiência se resolveriam sempre em
prejuízo de quem exerceu a atividade persecutória.443
Desta forma, na área do direito, a busca pela verdade revelar-se-ia de
grande importância para a aplicação da lei. Quanto ao ramo processual penal, a busca pela
verdade corresponderia, na medida em que representaria a reconstituição histórica dos fatos, ao
dever estatal de responder com a prestação jurisdicional justa e adequada às provas dos autos.
Assim, a lei poderia ser aplicada corretamente. Entretanto, não deveria ser confundida a busca
da verdade com o objetivo do processo. A busca da verdade seria um meio e não o fim do
processo que, por sua vez, teria como finalidade, na medida em que representa a efetividade do
direito, produzir justiça.444
A propósito, do ponto de vista do julgador, a atividade de busca da
verdade ou a iniciativa instrutória como forma de se fazer justiça deveria estar cercada por
algumas “cautelas”, conforme já estudado.445
Estas cautelas seriam os limites de atuação do juiz,
evitando-se a busca da verdade “a qualquer custo”, cautelas que não podem ser afastadas, sob
pena de ilegalidade, ou até mesmo de um desvio ético.
Os direitos e garantias fundamentais revestem-se na forma de
obstáculos à busca da verdade desmedida, repise-se. A investigação não pode invadir a órbita da
ilegalidade ou da imoralidade, em relação de tensão com a justiça, objetivo do processo.
Também por esta razão, poderíamos admitir, sem sermos repetitivos, que a verdade material
“estaria mais próxima de um idealismo utópico, [...], não científico”.446
3.6 Os direitos fundamentais como critério limitador da busca desmedida pela verdade e a
imparcialidade do julgador como direito fundamental e humano
As decantadas “cautelas” instrutórias do julgador durante a busca pela
verdade mencionadas no item anterior, poderiam ser entendidas como os direitos e garantias
fundamentais do cidadão. O argumento que se sustentaria neste ponto é o fato de que existiria
no processo penal interesse público e, desta forma, estaria legitimado o julgador a arvorar-se na
443
MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. O juiz moderno diante da fase de produção de provas: as
limitações impostas pela Constituição. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 24, p.
173. 444
Justiça no sentido de um conceito normativo, definida como um fim social ou como uma noção de
ética fundamental e não determinada. Verdade e justiça se complementam. cf. BARROS, Marco
Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.
32. 445
BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010, p. 30-32. 446
BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2010. p. 43-44.
100
colheita das provas, mesmo que respeitadas todas as garantias fundamentais do acusado ou
investigado.447
Entretanto, não poderia ser afastada aqui a noção de que tal iniciativa poderia
ferir mortalmente a imparcialidade do juiz,448
também garantia constitucional derivada do
princípio do juiz natural.449
A formação da verdade para o juiz possuiria então regras legais, já
chamadas aqui de cautelas. Estas regras legais, cautelas ou garantias consubstanciam-se na via
pela qual deveria o julgador trilhar para chegar à verificação dos fatos. Por isto, na sentença,
seria possível chegar a uma verdade formal, legal, fictícia ou presumida, que pode ou não,
coincidir com a verdade efetiva. Por esta razão, costuma-se dizer que “a coisa julgada faz do
branco, preto e do quadrado, redondo”.450
Admitindo-se o entendimento que seria hoje majoritário, o juiz
poderia buscar a verdade, diante da deficiência das partes, dentro de critérios de legalidade, sem
que sua imparcialidade reste maculada.451
Por outro lado, não poderia ser confundida esta
atuação supletiva, complementar, comedida e legal, com a atuação no sentido de usurpação das
funções do acusador, como estudado no sistema inquisitivo de processo penal. A esta
inadmissível atuação “lado a lado” com o acusador estaria vinculada a violação da garantia da
imparcialidade452
e da própria estrutura do Estado brasileiro.
Interessante recordar posicionamento do STJ pelo qual haveria
distinção entre os poderes inquisitórios e os poderes instrutórios do juiz no processo penal. No
mesmo sentido do Superior Tribunal, admitem-se na doutrina também os chamados poderes
447
Conforme entendimento de que, segundo interesse público refletido no processo, o juiz poderia adotar
uma postura mais ativa na colheita da prova, mormente na deficiência das partes, sempre buscando a
verdade material, mesmo utópica, que, ao final, reveste-se em verdade processual. 448
O juiz que participaria ativamente da instrução probatória restaria contaminado pela mesma, afastado a
imparcialidade. 449
“A abrangência do juiz natural envolve, inequivocamente, o juiz imparcial”. Esta imparcialidade seria
entendida como garantia humana fundamental, cf. NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios
constitucionais penais e processuais penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 303 e 305. 450
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Campinas: Bookseller, 2008, v.1, p.
340. Entretanto, há quem sustente que a busca da verdade pelo julgador deva ser irrestrita, mas dentro
de uma verdade que represente o ideal de justiça: “para que não deixem impunes os delinquentes ou
para que se aplique a lei justamente, não se pode atingir o extremo de impor ao julgador formas e
fórmulas certas e seguras para a consecução da verdade. Mas deve-se atingir a verdade processual
para que a sentença surgida seja reflexo do ideal do justo”, cf. TÔRRES, Anamaria. Devido processo
legal e natureza da prova: da verdade, da certeza, da convicção, da probabilidade. In: BRANDÃO,
Cláudio; CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício (Org.). Princípio da legalidade:
da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1, p. 420. 451
Neste sentido, GRINOVER, Ada Pelegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal
acusatório. Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, jan./jul.2005.
p. 22. A possível justificativa seria no sentido de que haveria a prática de atos sem que fosse
necessário adentrar no mérito da questão, seriam decisões superficiais norteadas pela probabilidade. 452
Gerando nulidade, conforme artigo 564, I do CPP brasileiro.
101
instrutórios, consubstanciados na realização de diligências, norteadas pela busca da verdade no
processo penal. Estes poderes, inclusive, seriam submetidos ao crivo da garantia constitucional
do contraditório. Por sua vez, os poderes inquisitórios atribuídos ao juiz não encontrariam
guarida em nosso ordenamento, na medida em que extrapolariam as funções institucionais do
órgão julgador. Há, inclusive, quem sustente que a reforma de 2008 que deu nova redação ao
artigo 156 do CPP453
“surpreendeu os processualistas com a inclusão de norma legal que
apresenta resquícios do antigo modelo de processo penal inquisitivo”.454
Neste particular, ainda sobre a reforma do CPP de 2008, dentre
inúmeras alterações, teria o legislador buscado, ao reverso, a substituição de um sistema
centralizado no juiz, pois deveria agora adotar uma postura passiva diante da colheita da prova,
impedido de inquirir diretamente as testemunhas, esclarecendo apenas pontos relevantes.
A partir daí, inúmeras críticas teriam surgido sobre a nova postura
passiva do julgador no processo. Entretanto, a mesma reforma teria afirmado também a
iniciativa instrutória do juiz com a autorização de produção de provas mesmo antes de iniciada a
ação penal, motivo de novas críticas.
A eventual oscilação e possível incerteza do legislador pátrio quanto
ao entendimento sobre a postura do juiz no processo, qual seja mais ativa ou passiva, não teria
se repetido por quem de direito no que se fere aos padrões internacionais.
Quando a maioria dos países da América Latina ainda adotaria uma
legislação processual penal de matriz inquisitiva, pela qual as etapas da investigação, da
instrução e da sentença seriam confiadas ao mesmo juiz, em 1988 no Rio de Janeiro, o Projeto
Final de Código Modelo de Processo Penal para Ibero-América teria sido apresentado às XI
Jornadas Ibero-americanas de Direito Processual.455
453
“Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I –
ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas
urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II –
determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para
dirimir dúvida sobre ponto relevante.” Cf. BRASIL, Código de Processo Penal. 454
Cf. BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2010. p. 167. 455
“Os estudos teriam sido iniciados em 1977 pelas propostas das V Jornadas Ibero-americanas de
Cartagena, acolhendo as bases de Alcalá-Zamora para o Código de Córdoba e as bases de Clariá-
Olmedo e Velez Mariconde para a união legislativa em matéria processual penal da América Latina”.
Cf. GRINOVER, Ada Pelegrini. As garantias constitucionais do novo processo penal na américa
latina. In: FUX, Luiz; NERY JR., Nelson; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim. (Org.). Processo e
constituição: estudos em homenagem ao professor José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: RT,
2006. p. 488.
102
O Código-Modelo de Processo Penal para Ibero-América teria servido
de base para a profunda reforma dos sistemas processuais de países como a Argentina,
Guatemala, Costa Rica, El Salvador, Venezuela, Paraguai e para os projetos do Chile, Bolívia e
Honduras, proporcionado também reformas no Brasil, Itália e Portugal.456
Em que pese o entendimento de Grinover no sentido de que o Código-
Modelo adotaria como referência para Ibero-América “o modelo acusatório, com nítida
separação das funções de acusar, defender e julgar”,457
o mesmo documento autoriza
suplementação ou ampliação das provas.
Por meio deste Código-Modelo, a atuação judicial na colheita das
provas seria admitida, secundaria ou supletivamente, diante da deficiência das partes.
Entretanto, na hipótese de serem apuradas novas provas ou ampliadas as existentes, seria
permitido nova oitiva das partes. Neste sentido, especificamente,
Art. 147. Objetividad, investigación judicial autónoma. Salvo que la ley penal
disponga lo contrario, el ministerio público y los tribunales tienen el deber de
procurar por sí la averiguación de la verdad mediante los medios de prueba
permitidos y de cumplir estrictamente con los preceptos de los arts. 232, 250
y 272, párr. 1.
Durante el juicio, los tribunales sólo podrán proceder de oficio a la
incorporación de prueba no ofrecida por los intervinientes en las
oportunidades y bajo las condiciones que fijan los arts. 285, 289, 316, 317 y
320.458
Art. 320. Reapertura del debate. Si el tribunal estimare imprescindible,
durante la deliberación, recibir nuevas pruebas o ampliar las incorporadas,
conforme al art. 317, podrá disponer, a ese fin, la apertura del debate.
Resuelta la reapertura, se convocará a los intervinientes a la audiencia,
ordenándose la citación urgente de los que deban declarar o la realización de
los actos correspondientes. La discusión final quedará limitada al examen de
los nuevos elementos.
Apesar da expressa previsão de iniciativa probatória supletiva a ser
exercida nos próprios limites da legalidade previstos no mesmo Código-Modelo, existem ainda
outros documentos internacionais que trazem previsões distintas.
456
GRINOVER, Ada Pelegrini. A reforma do código de processo penal. Disponível em:
<http://www.egov.ufsc.br>. Acesso em: 7 mar. 2013. 457
GRINOVER, Ada Pelegrini. As garantias constitucionais do novo processo penal na américa latina. In:
FUX, Luiz; NERY JR., Nelson; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim. (Org.). Processo e constituição:
estudos em homenagem ao professor José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: RT, 2006. p. 488 458
Capítulo 5 – Prova. Seção 1ª: Disposições gerais. Art. 147. Objetividade, investigação judicial
autônoma. 1- Salvo quando a lei penal dispuser o contrário, o Ministério Público e os tribunais têm o
dever de averiguar a verdade mediante os meios de prova permitidos e de cumprir estritamente com os
preceitos dos arts. 232, 250, e 272, § 1º. 2 – Durante o julgamento, os tribunais só poderão proceder
de ofício à produção de prova não oferecida pelos intervenientes nas oportunidades e sob as condições
estabelecidas nos arts. 285, 289, 316, 317 e 320.” Disponível em: <http://direitoprocessual.org.br>.
Acesso em: 5 mar. 2013.
103
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) de 1969
conhecida como Pacto de São José da Costa Rica459
que seria o principal documento do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos, também trouxe previsão em seu artigo 8º, I, o direito de
ser ouvida por um juiz ou tribunal imparciais.460
Por fim, a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) de
1948, que seria o principal instrumento do Sistema Global de Direitos Humanos, após as
flagrantes violações perpetradas durante a Segunda Guerra Mundial, reconhece também o
mesmo direito.461
A declaração em comento reconheceria o direito em questão apesar
de, conforme já estudado e sem querermos aqui ser repetitivos, em seu artigo XXIX, 2,
reconhecer a limitação de seu exercício.462
Nesta esteira destes entendimentos, não haveria divergência quanto ao
reconhecimento da imparcialidade do julgador como garantia fundamental e humana. A questão
latente residiria na hipótese da iniciativa instrutória do juiz interferir ou não em sua
imparcialidade, legal e amplamente garantida. Em relação a este aspecto tão delicado,
argumentos existem em extremas e contraditórias direções, conforme já estudado.
3.7 A imparcialidade do julgador e a impossibilidade de relativização dos direitos
fundamentais
Os direitos e garantias fundamentais seriam relativos, conforme a
maioria da doutrina e a posição de nossos tribunais, na medida em que serviriam ao cidadão e,
ao mesmo tempo, seriam negados ou, ao menos, reduzido seu alcance diante de eventual colisão
em face de outro direito fundamental. Mesmo assim, há quem sustente sua força absoluta e
inflexível.
459
Ratificada pelo Brasil pelo Decreto Presidencial n. 678 de 1992. 460
“Artigo 8 - Garantias Judiciais. 1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e
dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial,
estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação pena formulada contra ela, ou
para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer
outra natureza”. 461
“Artigo X - Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de
um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de
qualquer acusação criminal contra ele”. 462
“Artigo XXIX, 2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às
limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e
respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem
pública e do bem-estar de uma sociedade democrática”.
104
A imparcialidade do julgador resultaria da garantia do juiz natural,
conforme já estudado. Desta forma, como garantia fundamental, segundo alguma construção
teórica, seria absoluta, não passível de flexibilização, na medida em que restaria impossibilitada
qualquer atuação do juiz que arvorasse na colheita da prova, ainda que de forma supletiva, ante
a deficiência das partes.
Antecedendo a construção sobre seu caráter absoluto, seria necessário
mais um pequeno entendimento sobre os direitos fundamentais. Reconhece-se que os direitos
fundamentais seriam conceituados e compreendidos conforme o referencial teórico adotado.463
Desta forma, para uma matriz liberal e, na sequência, para uma matriz
comunitarista os direitos fundamentais seriam admitidos de forma diversa, como sendo:
um conjunto de direitos reconhecidos aos indivíduos e por eles titularizados
antes mesmo da configuração da sociedade e do Estado, os quais são
elementos necessários à proteção de sua autonomia individual, na medida em
que funcionam como anteparos à atuação do Estado.
categorias que, na comunidade atribuem ao homem certas características
comuns que configuram sua identidade, categorias essas produzidas pela
própria comunidade. Por serem produzidas pela própria comunidade, estas
categorias não gozam de primazia contra a comunidade e, por isso mesmo,
não podem servir de exceção às pretensões comunitárias.
O estudo destes referenciais teóricos levaria ao entendimento de que
estariam ressaltadas tanto a autonomia privada na primeira quanto a pública na segunda, na
medida em que ambas estariam em oposição constante, prevalecendo em detrimento da outra.
Importante lembrar então que comumente parte-se do entendimento de
que o interesse estatal prevaleceria sobre o interesse individual, na medida em que o interesse
público ou coletivo seria “auto-evidente”, prevalecendo sobre os “meros”, “egoístas e contrários
ao bem comum” interesses privados. A questão seria talvez melhor entendida como o conflito
público versus privado, em outras palavras, entre a soberania popular e entre os direitos
humanos.464
Admitindo outra perspectiva, esta mesma contradição de interesses
seria inexistente, eis que seria possível e talvez necessário equilibrar esta relação de tensão entre
público e privado. Este entendimento encontraria sustentação na teoria discursiva, por meio de
uma concepção procedimental do Direito, que partiria da análise construída tanto por liberais
463
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Processo constitucional e direitos fundamentais. Revista da
Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 25, n. 02, jul/dez 2009, p. 141-142. 464
BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Teoria da democracia: o surgimento do sistema de direitos
e a emergência do público e do privado, Estado, política e constituição na modernidade. Revista da
Faculdade de Direito do Sul de Minas, 2008, p. 5-6. Edição especial.
105
quanto por comunitaristas. Assim, os direitos fundamentais passariam a ser entendidos como
“forma de permitir a preservação de uma esfera privada e garantir a participação em arenas
públicas”.465
Assim, o cidadão exerceria simultaneamente, segundo esta concepção do direito,
ambas as esferas de autonomia, pública e privada.
Ainda com amparo na teoria discursiva fundada no pensamento de
Jürgen Habermas, os direitos fundamentais não comportariam relativização pois haveria uma
substituição das teorias contratualistas explicativas do Estado para um modelo
procedimentalista discursivo:
Habermas substitui o modelo do “contrato social” por um modelo
procedimentalista de discurso ou deliberação: “a comunidade jurídica não se
constitui através de um contrato social, mas na base de um entendimento
obtido através do discurso”. Esse discurso será regulado “por uma forma
procedimental de gestação discursiva da opinião e da vontade. Só assim é
possível uma mediação entre os interesses individuais da autonomia privada
de cada um dos cidadãos com os interesses coletivos de bem comum da
autonomia pública dos cidadãos. Enquanto que na tradição do direito essa
tensão entre autonomia privada e pública era resolvida pela forma geral e
abstrata da lei, para Habermas, essa tensão só pode ser resolvida
satisfatoriamente por um procedimento discursivo de formação da vontade e
da opinião. Nessas condições, Habermas propõe um novo modelo de forma
do direito, onde as liberdades privadas e a “vontade da maioria” podem ser
compatibilizadas discursivamente, pela força dos melhores argumentos. E
isso significa: sem a força da repressão.466
A perspectiva em comento rechaçaria a ideia de supremacia do
interesse público, alçando os direitos ditos “privados” a uma autonomia individual ao mesmo
nível (de importância) conferido ao Estado, deixando de creditar a ele a tutela dessas liberdades.
Esse raciocínio permitiria visualizar que os direitos fundamentais não comportariam
relativização, pois escapariam do binômio reconhecimento-restrição de direitos, na mesma
medida em que o reconhecimento do direito do escravo à liberdade se oporia ao da restrição do
direito de escravizar, conferido ao senhor.
Por meio desta matriz discursiva, em outras palavras, para que o
cidadão possa fazer uso “adequado” de sua autonomia pública, este deveria
ser suficientemente independente na configuração de sua vida privada,
assegurada simetricamente. Porém, os cidadãos da sociedade [...] só podem
gozar simetricamente sua autonomia privada, se, enquanto cidadãos, do
Estado [...], fizerem uso adequado de sua autonomia política – uma vez que
465
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Processo constitucional e direitos fundamentais. Revista da
Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 25, n. 02, jul/dez 2009, p. 141-142. 466
SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Direito e racionalidade comunicativa: a teoria discursiva o direito no
pensamento de Jürgen Habermas. Curutiba: Juruá, 2007, p. 158-159.
106
as liberdades de ação subjetivas, igualmente distribuídas, têm para eles o
“mesmo valor.467
Estas mesmas autonomias, pertencentes a todos os indivíduos e que
estariam em constante rota de colisão, possivelmente equilibradas pela teoria discursiva, seriam
ainda respeitadas pela noção de Estado Democrático de Direito, cuja tensão entre democracia e
constitucionalismo constitutiva do Estado de Direito, encontraria no processo constitucional o
respeito aos direitos fundamentais, o aspecto democrático é garantido e a participação popular
preservada.468
Por fim, nosso referencial teórico fundado na teoria do garantismo
penal também cuidaria do tema em questão, na medida em que refutaria a possibilidade já
estudada de ponderação entre direitos fundamentais. Para Ferrajoli, haveriam relações de
subordinação entre direitos e garantias fundamentais, sobre os quais, como estruturas primárias
e inabaláveis estariam os direitos de liberdade, não limitáveis, mas limitadores dos demais. Sem
a preocupação com a extensão da citação ante a riqueza que nos proporcionaria, trazemos aqui,
in verbis, o pensamento do autor do garantismo:469
Geralmente, todavia, as relações entre direitos são, sobretudo, de sinergia:
sem a garantia dos direitos sociais, em especial à educação e à informação, os
direitos de liberdade não são exercitáveis com conhecimento de causa, e sem
garantia dos direitos de liberdade não o são os direitos políticos. Mas,
sobretudo, como já disse, os teóricos da ponderação veem, frequentemente,
conflitos onde não há, trocando por conflitos as relações de subordinação que
ocorrem entre os direitos constitucionalmente estabelecidos e os atos de grau
subordinado que constituem seu respectivo exercício: particularmente, entre
os direitos primários, de liberdade e sociais, e os direitos secundários de
autonomia, sejam civis ou políticos, que são direitos-poderes cujo exercício
consiste em atos e cujos efeitos estão em grau subordinado à lei, seja
constitucional ou ordinária.
O neoconstitucionalismo, não diversamente do realismo e do
neopandectismo, comporta, em suma, um enfraquecimento e, em última
análise, um colapso da normatividade das normas constitucionais e uma
degradação dos direitos fundamentais nelas estabelecidos a genéricas
recomendações de tipo ético-político. Subverte, além disso, a hierarquia das
fontes, confiando a atuação das normas constitucionais à ponderação
legislativa e àquela judicial e, por isso, à discricionariedade potestativa do
legislador ordinário e dos juízes constitucionais. Ciência jurídica e
jurisprudência, graças ao papel associado à ponderação dos princípios,
voltam assim a reivindicar o seu papel de fontes supremas do direito. Com o resultado paradoxal que a experiência jurídica mais avançada da
467
BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Teoria da democracia: o surgimento do Sistema de Direitos
e a emergência do Público e do Privado, Estado, Política e Constituição na Modernidade. Revista da
Faculdade de Direito do Sul de Minas, 2008. p. 1-12. Edição especial. 468
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Processo constitucional e direitos fundamentais. Revista da
Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 25, n. 02, jul/dez 2009, p. 141-142. 469
FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo garantista e neoconstitucionalismo. Tradução de André
Karam Trindade. Disponível em: < www.abdconst.com.br/revista3/luigiferrajoli.pdf>. Acesso em: 5
mar. 2013.
107
modernidade, representada pela positivação do dever ser do direito e pela
sujeição a limites e a vínculos jurídicos de todos os poderes, a ponderação
vem interpretada como um tipo de regressão ao direito jurisprudencial pré-
moderno.
Ao contrário, o constitucionalismo garantista, teorizando os desnível
normativo e a consequente divergência entre normas constitucionais sobre a
produção e normas legislativas produzidas, impõe reconhecer, como sua
inevitável consequência, o direito ilegítimo, inválido por comissão ou
inadimplente por omissão, porque viola o seu “dever ser jurídico”. E,
portanto, confere à ciência jurídica um papel crítico do próprio direito: das
antinomias, geradas pela indevida presença de normas em contraste, e das
lacunas, geradas pela indevida falta de normas implícitas em princípios
constitucionais. Comporta, em síntese, o reconhecimento de uma
normatividade forte das Constituições rígidas, em razão da qual, posto um
direito fundamental constitucionalmente estabelecido, se a Constituição é
levada a sério, não devem existir normas com ele em contradição e deve
existir – no sentido de que deve ser encontrado através de interpretação
sistemática, ou deve ser introduzido mediante legislação ordinária – o dever
correspondente por parte da esfera pública. Trata-se de uma normatividade
relacionada, em via primária, à legislação, à qual impõe evitar as antinomias
e colmatar as lacunas com leis idôneas de atuação; e, em via secundária, à
jurisdição, à qual impõe remover as antinomias e apontar as lacunas.
Pelo que poderia ser extraído do texto, em que pese o presente
reducionismo, a questão da ponderação seria entendida pelo autor do garantismo como
incoerente, na medida em que a relação de colisão entre direitos fundamentais seria afastada
pela subordinação entre os mesmos. Aqueles que se sobreporiam, chamados de primários
(direitos de liberdade e sociais), não entrariam em relação de tensão com os demais, chamados
de secundários, restando então desnecessária a ponderação entre os mesmos.
108
SÍNTESE CONCLUSIVA
Houve época em que a busca pela verdade no processo penal seria
realizada “a qualquer custo”, destacando-se seu aspecto material. Aqui poderíamos mencionar o
sistema inquisitivo, pelo qual a figura do acusador era desnecessária, incorporando-a o julgador.
Em outra medida, o moderno direito processual penal caminha no
sentido de que existiriam parâmetros que regem a busca da verdade. Exatamente por este
motivo é que seria a verdade formal aquela passível de reconstrução no processo penal, eis que
limitada pelo garantismo penal, na medida em que, ao buscar a verdade, esta deveria trilhar
pelos caminhos da preservação dos direitos e garantias individuais estampadas na Constituição
ou dela compreendidos. Neste ponto, seria o sistema processual penal acusatório, como opção
de política criminal, aquele que melhor se amoldaria a estes novos ares. Por oportuno, a figura
do juiz das garantias inserida no projeto do novo CPP manifesta-se como corolário de todo este
sistema estruturado para a preservação dos direitos fundamentais do cidadão, bem como no
sentido da consolidação do sistema acusatório e da imparcialidade do julgador.
A Teoria do Garantismo Penal desenvolvida e explanada por Luigi
Ferrajoli na qualidade de protetora dos direitos e garantias fundamentais, bem como critério de
legitimação da atuação dos poderes punitivos, exerceria papel central neste contexto. O respeito
à visão do processo como meio de proteção do acusado em face do arbítrio estatal exigiria uma
postura do julgador no sentido de manter-se afastado da produção das provas, na medida em que
ao mesmo seria vedada a atuação em igualdade de trincheiras com o órgão acusador. Na mesma
linha, ao juiz caberia ainda manter-se equidistante das partes para que as mesmas pudessem
apresentar-lhe, em igualdade de condições, as provas com que pretendem formar seu
convencimento em confirmação ou refutação da hipótese acusatória.
109
Sobre esta relação de demonstrações da verdade, a mesma receberia
especial atenção, na medida em que a sua produção e consequente tentativa de reconstrução não
estivesse presente de forma desregrada e irrestrita. Aqui estaria presente a grande diferenciação
entre os sistemas penais idealizados e positivados historicamente. Na mesma medida em que o
sistema inquisitório almejaria a busca pela verdade incondicional, eis que o fundamento de seu
procedimento restaria lastreado pela ilusão de alcance da verdade absoluta, ao sistema
acusatório satisfaria encontrar e verdade formal ou processual, aquela possível de ser
visualizada diante da observância das garantias constitucionais reservadas ao cidadão.
Não haja engano em entender o conjunto de garantias constitucionais
oferecidas em proteção do acusado como mero formalismo ou sinônimo de impunidade. A
Teoria do Garantismo Penal de Ferrajoli teria como meta a determinação do grau de garantismo
de um sistema penal, na medida em que poderia proporcionar uma mensuração do inevitável
descompasso percebido em nível normativo superior e à práxis das autoridades e instituições
encarregadas do poder punitivo. Assim, a ilegitimidade de todo o sistema punitivo restaria
denunciada pela inobservância dos direitos e garantias fundamentais. Nesta medida, o excesso
de liberdade poderia resultar em total anarquia no mesmo sentido em que o poder punitivo
ilimitado transformaria todo o sistema em absolutista.
Diante da crescente escalada da criminalidade, a Teoria do
Garantismo Penal seria entendida como ponto de equilíbrio entre a proteção do acusado em face
do arbítrio desmedido. Esta escarpa cujo topo parece inatingível poderia ser alcançada pela
observância de dez axiomas que comporiam toda a estrutura de um sistema garantista.
O axioma denominado por Ferrajoli de “A8”, dentre os dez
mencionados, refere-se a separação dos atores no processo penal. Especificamente faz menção a
necessária separação entre as funções de acusar e julgar. Quanto à postura do julgador,
conforme já apontado, Ferrajoli em sua teoria entenderia que a confusão entre ambas as funções
contaminaria a necessária imparcialidade dos julgamentos. Pois bem, esta posição encontraria
relação de tensão com o entendimento corrente, que volta sua atenção para o fato de que o ideal
iluminista de um processo de partes, onde o juiz seria um mero expectador atuando apenas
como fiscal e destinatário da prova, seria a violação do novo sentido do processo
contemporâneo.
O novo juiz deveria atuar ativamente na condução do processo, mas
não somente limitado à sua gestão, mas norteado pela visão publicista do processo, voltado ao
ideal de que a justiça seja feita. A busca pela verdade deixaria de ser o fundamento do processo,
bem como a mera punição dos culpados. Agora o processo assumiria uma roupagem em
110
conformidade com os novos ares da modernidade. Ao juiz não caberia mais o diminuto rótulo
de “boca da lei”, uma figura inanimada, mera aplicadora da vontade, por vezes ilegítima, do
parlamento. Ao novo juiz caberia a realização da justiça, na medida em que, por imperativo de
um novo constitucionalismo, a aplicação da lei deve ser legitimada pela vontade e pelo interesse
popular. Este equilíbrio é a missão que tem pela frente o novo juiz, na medida em que
constitucionalismo e democracia devem caminhar juntos rumo à legitimidade de todo poder.
Quanto ao Brasil, nosso país teria adotado o sistema acusatório,
estampado na Constituição Federal, conforme declarado pelo Supremo Tribunal Federal. Esta
visão encontra conforto na doutrina que justifica a escolha por força do artigo 129, I da
Constituição, bem como pelo fato de ser o mesmo sistema o que melhor se amolda a um Estado
Democrático de Direito. Esta mesma visão encontraria resistência no entendimento daqueles
que sustentam estarmos diante de um modelo misto. Por meio deste sistema haveria no processo
penal uma primeira fase de cunho inquisitório e uma segunda fase de matriz acusatória. Este
entendimento ainda guardaria sustentação naqueles que entendem que os sistemas puros não
existem, restando assim, a rotulação de misto a todos os sistemas penais hoje existentes.
Há entendimento inclusive no sentido de que o Brasil possui um
processo de matriz predominantemente inquisitória, posto que a produção e colheita de provas
aconteceriam em uma primeira fase onde o contraditório e a ampla defesa restariam mitigados,
havendo mera repetição destas em uma segunda fase, com aparência de garantias atribuídas ao
acusado. Mesmo diante de expressões do tipo “a prova inquisitorial foi corroborada em juízo”, o
julgador não estaria imune à influência da fase inquisitória e o acusado por sua vez, apenas se
renderia diante das provas produzidas com ares medievais.
A iniciativa instrutória do juiz na colheita da prova durante a segunda
fase acusatória teria o condão de fazer com que a igualdade das forças contrárias que atuam no
processo sofresse um deslocamento em favor da acusação. Entretanto, há quem sustente que
este desequilíbrio de forças antagônicas sempre existira e que é a função do juiz atuar
ativamente, exatamente para restabelecer as condições de igualdade entre as partes litigantes ou
mesmo minimizar seus efeitos.
Neste cenário, o juiz deveria portar-se inerte diante da instrução
processual. Entretanto, a postura chamada por alguns de “juiz samambaia” poderia refletir
diretamente na busca da verdade no processo. O juiz poderia atuar determinando a
complementação das provas já apontadas ou produzidas pelas partes, de forma supletiva.
Determinar a produção de diligências meramente complementares, por exemplo, seria uma
atividade de equilíbrio ante a deficiência das partes.
111
Merece neste ponto esclarecer que a atuação do juiz aqui em comento,
seria aquela ocorrida na instrução probatória no curso do processo, depois de apresentada a
pretensão acusatório por órgão distinto e instalada a ação penal. Necessário ainda esclarecer que
a separação de funções mencionada não seja mera separação formal das funções de acusação e
julgamento. Esta separação deveria ser efetiva e permanecer durante todo o curso da pretensão
punitiva estatal, sendo que a atuação do juiz na fase investigatória, chamada de inquisitorial,
antes de formada oficialmente a pretensão persecutória pelo órgão competente, seria quase
indiscutivelmente inadmitida.470
Em outra perspectiva, a mesma iniciativa instrutória do juiz, para que
esteja alinhada aos preceitos de um Estado de direito não pode ser exercida livremente, sob pena
de retorno ao medievo inquisitorial. Aqui a busca pela verdade deve ser balizada pela
observância inarredável das garantias constitucionais, não se pretendendo “fazer justiça com as
próprias mãos” e nem mesmo “a qualquer custo”.
O modo de aquisição da verdade seria quem descortina o sistema
processual penal adotado. A aquisição ou revelação da verdade se compatibiliza com o sistema
inquisitório, ao passo que a construção da verdade no processo acusatório poderia ser obtida
diante do contraditório e por partes iguais diante de um juiz imparcial. Estas garantias exigiriam
que a gestão da prova seja entendida como atribuição das mesmas partes, vedada a iniciativa
probatória e instrutória do juiz, respeitando, sempre, as garantias do cidadão.
A postura do juiz que se espera, bem como a respectiva decisão
jurídica, do ponto da verdade processual delimitada pelo garantismo, deve trilhar à luz da
Constituição e em defesa das garantias do acusado, o que não mais comportaria um juiz
absolutamente inerte, com ares de um vegetal inanimado, nem mesmo um julgador ativo,
confundido como “inimigo do acusado” na busca pela prova que confirme a hipótese acusatória
pré-concebida, adotando ares de parcial e justiceiro.471
470 A garantia da imparcialidade como ponto nevrálgico do sistema “e o reconhecimento dos sistemas evidenciadores de uma
parcialidade são tarefas por demais difíceis, justamente pelo subjetivismo e pelo relativismo inerente à questão. Por isso é que
diversos ordenamentos procuram estabelecer critérios objetivos para delimitá-la. Normalmente é fixada uma relação de situações que implicariam a perda ou mesmo a diminuição da imparcialidade do julgador, mesmo que, efetivamente, ela não
tenha sido abalada”. 471 “No plano teórico, o problema é conciliar, por meio de garantias idôneas, imparcialidade e capacidade técnica, livre
convencimento e motivação, independência e sujeição à lei.” Cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo
penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 532. “O receio de ser mal empregada não justifica os argumentos tendentes a considerar perniciosa toda e qualquer
iniciativa instrutória, simplesmente porque sempre haverá bons e maus julgadores. O problema não repousará no sistema, mas,
sim, na formação do juiz, o qual deverá estar sempre consciente da imperiosa necessidade de buscar a harmonia equilibrada de suas opções. É isso que torna a sua tarefa tão dignificante”. Cf. ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do
juiz no processo penal. São Paulo: RT, 2003, p. 143 e 275. “O papel do juiz moderno é eminentemente constitucional. O juiz
precisa conjugar imparcialidade possível e capacidade técnica, independência e sujeição à lei, livre convencimento e motivação, mas precisa sobretudo compreender a magnitude de sua missão constitucional e assumir sua condição humana.” MARQUES,
Leonardo Augusto Marinho. O juiz moderno diante da fase de produção de provas: as limitações impostas pela Constituição.
Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 24, p. 174.
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