faculdade de direito do sul de minas

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FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS DANIEL LIMONGI ALVARENGA ALVES A INICIATIVA INSTRUTÓRIA DO JUIZ E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DIANTE DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO À LUZ DA TEORIA DO GARANTISMO PENAL COMO DIMENSÃO TEÓRICA DO CONSTITUCIONALISMO Pouso Alegre - MG 2013

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Page 1: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

DANIEL LIMONGI ALVARENGA ALVES

A INICIATIVA INSTRUTÓRIA DO JUIZ E A

PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

DIANTE DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL

BRASILEIRO À LUZ DA TEORIA DO GARANTISMO

PENAL COMO DIMENSÃO TEÓRICA DO

CONSTITUCIONALISMO

Pouso Alegre - MG

2013

Page 2: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

DANIEL LIMONGI ALVARENGA ALVES

A INICIATIVA INSTRUTÓRIA DO JUIZ E A

PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

DIANTE DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL

BRASILEIRO À LUZ DA TEORIA DO GARANTISMO

PENAL COMO DIMENSÃO TEÓRICA DO

CONSTITUCIONALISMO

Dissertação de Mestrado apresentada como exigência

parcial para obtenção do Título de Mestre em Direito

ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de

Direito do Sul de Minas.

Orientador: Prof. Dr. Eduardo Henrique Lopes

Figueiredo.

FDSM – MG

2013

Page 3: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

A474i Alves, Daniel Limongi Alvarenga.

A iniciativa instrutória do juiz e a proteção dos direitos fundamentais diante do sistema processual penal brasileiro à luz da teoria do garantismo penal como dimensão teórica do constitucionalismo/ Daniel Limongi Alvarenga Alves. Pouso Alegre – MG: FDSM, 2013.

119p. Orientador: Dr. Eduardo Henrique Lopes Figueiredo

Dissertação (mestrado) – Faculdade de Direito do Sul de Minas, Mestrado em Direito.

1. Constitucionalismo. 2. Garantismo penal. 3. Sistema processual penal brasileiro. 4. Instrução jurisdicional. 5. Motivação decisional. I. Figueiredo, Eduardo Henrique Lopes. II. Faculdade de Direito do Sul de Minas. Mestrado em Direito. III. Título.

340

Page 4: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

DANIEL LIMONGI ALVARENGA ALVES

A INICIATIVA INSTRUTÓRIA DO JUIZ E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS

FUNDAMENTAIS DIANTE DO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO À

LUZ DA TEORIA DO GARANTISMO PENAL COMO DIMENSÃO TEÓRICA DO

CONSTITUCIONALISMO

FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

Data da Aprovação 28/06/2013

Banca Examinadora

_____________________________________________

Prof. Dr. Eduardo Henrique Lopes Figueiredo.

Orientador

Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM)

_____________________________________________

Profª. Drª. Flaviane de Magalhães Barros

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas)

_____________________________________________

Prof. Dr. Alexandre Gustavo de Melo Franco Bahia

Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM)

Pouso Alegre – MG

2013

Page 5: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

Dedico aos que indiretamente participaram de todo

o processo de desenvolvimento deste estudo, com

os quais compartilhei minhas angústias, ansiedades

e, ao final, alegrias: minha mãe Lia e meu pai

Álvaro, exemplos de lisura e determinação,

detentores de minha eterna gratidão. Aqui, dedico

também a quem me incentivou durante todo o

curso de mestrado, com quem dividi, diretamente,

pensamentos, dúvidas e conclusões: minha irmã

Angela, referência de dedicação, competência e

brilhantismo acadêmico.

Dedico ainda a minha esposa Paola que soube

compreender com maestria todas as minhas

necessidades, proporcionando condições para que

eu pudesse seguir em frente.

Em especial, dedico este trabalho ao meu filho

Miguel de quem subtraí momentos de atenção e

convivência em benefício de atividades

profissionais e dos estudos simultâneos. Mesmo

diante da ausência, sempre me recebeu novamente

com sorriso e carinho reconfortantes, fazendo com

que eu me sentisse forte novamente.

Page 6: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

Agradeço,

Deus a quem supliquei força, coragem e sabedoria.

Professor Dr. Eduardo Henrique Lopes Figueiredo meu orientador,

fonte de segurança, conhecimento e motivação.

Professor Dr. Denilson Victor Machado Teixeira, meu amigo, irmão e compadre,

pelo incentivo e exemplo de vida ética profissional e pessoal.

Dimas Daniel de Carvalho, Nélida Reis Caseca Machado e Luiz Cláudio Borges,

companheiros de estrada e do curso de Mestrado.

Aos amigos do Curso de Mestrado, especialmente Ricardo Alves de Lima, Claudinei Ferreira

Moscardini Chavasco, Thiago Alves Miranda, pelo incentivo.

Anna Carolina Azevedo, amiga e secretária do Programa de Pós-Graduação em Direito da

FDSM.

Edson Vieira da Silva Filho, pela iniciativa e dedicação como coordenador do Grupo de Estudos

Razão Crítica e Justiça Penal da FDSM, cujos frutos estenderam-se até a presente pesquisa.

A todos os Professores do Programa de Pós-Graduação em Direito da FDSM, em especial

Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia, Liliana Lyra Jubilut e Rafael Lazzarotto Simioni.

Ana Maria Dinardi pelo incentivo e revisão voluntária deste trabalho.

Page 7: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

“A verdade, de modo absoluto, objetivamente considerada,

não pertence ao homem, mas, tão só, a Deus”

Rogério Lauria Tucci

in Do corpo de delito no direito processual penal brasileiro.

Page 8: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

RESUMO

O presente estudo investigará a iniciativa instrutória e os limites constitucionais da Jurisdição no

processo penal brasileiro, articulando as premissas constitucionais da aplicação da lei Penal no

contexto da Justiça Penal edificada no Estado Democrático de Direito. Para tanto, a exploração

dos sistemas processuais penais historicamente construídos e normativamente positivados

constituem premissa para a crítica indicativa da construção de decisões processualmente

formadas.

Na mesma medida, a conjugação da busca pela verdade e de sua respectiva limitação pela

observância dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, tornaria legítima a atuação

judicial, característica marcante dos sistemas processuais modernos.

Estes mesmos direitos fundamentais inibidores do arbítrio estatal, não comportariam

flexibilização que autorizasse o juiz a arvorar-se na colheita da prova, horizonte que encontra na

releitura da Teoria do Garantismo Penal de Luigi Ferrajoli elementos que fortalecem o

constitucionalismo como alicerce da justiça penal.

Palavras-chave: Constitucionalismo; garantismo penal; sistema processual penal brasileiro;

instrução jurisdicional; motivação decisional.

Page 9: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

ABSTRACT

The present study investigates the initiative to investigate and constitutional limits of

jurisdiction in Brazilian criminal proceedings. This question is articulating with the

constitutional premises of law enforcement in the context of Criminal Justice built in a

democratic state. Therefore, the operation of the systems of criminal procedure is historically

constructed. Furthermore, this system of justice have normatively sources as a premise for

criticism so as indicative building of decisions that came from procedurally formed.

In the same measure, the combination of the search for truth and their respective limitations

observance of fundamental rights and guarantees of citizens, would legitimize the judicial

action, striking characteristic of modern procedural systems.

These same fundamental rights inhibitors state will not behave flexibility to authorize the judge

to fly up in the harvest of proof is on the horizon that rereading the Theory of Criminal

guaranteeism Luigi Ferrajoli elements that strengthen constitutionalism as a foundation of

criminal justice.

Key-Words: Constitutionalism; guaranteeism criminal; Brazilian criminal justice system; court

statement; decisional motivation.

Page 10: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

SUMÁRIO

Introdução ............................................................................................................................ 9

1. GARANTISMO PENAL

1.1 Teoria ........................................................................................................................ 15

1.2 Direitos Fundamentais: neoconstitucionalismo e garantismo ................................... 19

1.3 Garantismo, democracia e paradigmas do Estado de Direito ................................... 24

1.4 Garantismo, minimalismo e transformação social .................................................... 29

2. JUSTIÇA PENAL NO CONTEXTO DOS SISTEMAS PROCESSUAIS

PENAIS

2.1 O que são Sistemas Processuais Penais? ................................................................... 45

2.2 Sistema Acusatório, Garantismo e Iniciativa Instrutória do Juiz .............................. 47

2.3 Sistema Inquisitivo, Garantismo e Iniciativa Instrutória do Juiz .............................. 57

2.4 Sistema Misto, Garantismo e Iniciativa Instrutória do Juiz ...................................... 72

2.5 Sistema Brasileiro: Leitura Tradicional das Garantias Fundamentais –

Normatividade (Legalidade Penal e Formalismo Processual) ..................................

75

3. A INICIATIVA INSTRUTÓRIA DA JURISDIÇÃO E OS LIMITES NA

DIMENSÃO DO GARANTISMO

3.1 Garantismo e a matriz publicista do processo penal ................................................. 79

3.2 Iniciativa instrutória e aspectos psicológicos do juiz no modelo acusatório ............ 81

3.3 Iniciativa instrutória do juiz e a busca pela verdade ................................................. 83

3.4 A perspectiva de um novo modelo acusatório brasileiro e a busca da verdade no

processo penal ...........................................................................................................

89

3.5 A busca pela verdade formal como horizonte possível ao julgador .......................... 93

3.6 Os direitos fundamentais como critério limitador da busca desmedida pela verdade

e a imparcialidade do julgador como direito fundamental e humano .......................

99

3.7 A imparcialidade do julgador e a impossibilidade de relativização dos direitos

fundamentais .............................................................................................................

103

Síntese Conclusiva ................................................................................................................. 108

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 112

Page 11: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

9

INTRODUÇÃO:

O estudo pretende investigar teoricamente a iniciativa instrutória do

juiz e os sistemas processuais penais, norteada pela Teoria do Garantismo Penal de Luigi

Ferrajoli. Especificamente, pretende-se lançar um olhar sobre a atuação do juiz no processo

penal quando da colheita da prova em juízo, seus reflexos no sistema processual penal brasileiro

e respectivas características garantistas. Para tanto, necessário inicialmente seria dissertar sobre

o real alcance da Teoria do Garantismo Penal, na medida em que reflete o descompasso que

existiria entre a normatividade constitucional e a práxis, conforme apontado pelo autor italiano.

Na mesma linha, importante ainda seria trazer ao estudo os principais pontos que possibilitariam

a distinção entre os sistemas processuais penais, especificamente a participação ativa do juiz na

produção e colheita de provas, para que se possa então reconhecer o sistema processual penal

que seria hoje utilizado no Brasil. Deste ponto, as características apontadas pelo sistema

processual penal brasileiro devem ser investigadas à luz do garantismo penal para que se possa

apontar pela (in)adequação do atual sistema processual penal brasileiro aos ditames do

constitucionalismo.

Percebe-se que a Constituição Federal de 1988 não teria apontado em

seu texto, de forma expressa, opção por qualquer sistema processual a ser adotado no Brasil,1

bem como não existiria disposição no mesmo sentido nas normas infraconstitucionais. Ao

reverso, seria importante também lançarmos olhares o futuro. Estaria em curso projeto do novo

Código de Processo Penal,2 onde haveria previsão da figura do juiz das garantias,

3 que

funcionaria na fase de investigações, sem, contudo, presidi-la, até o recebimento da denúncia,

possivelmente nos mesmos moldes da convenção americana de direitos humanos.4 Entretanto,

após a produção da prova pelas partes, restando dúvida, estaria o juiz legitimado em sua busca

1 O artigo 129 da Constituição Federal de 1988 traz em seu texto a imposição de que a acusação, na ação

penal pública, está a cargo do Ministério Público, apontando no sentido de que teria sido, a princípio,

adotado o sistema acusatório. 2 Proveniente de anteprojeto formulado por uma comissão especial de juristas, presidida pelo Ministro do

Superior Tribunal de Justiça (STJ) Hamilton Carvalhido, o texto (PLS 156/2009) teve como relator o

senador Renato Casagrande (PSB/ES). 3 O texto encaminhado à Câmara dos Deputados coloca cada operador do Direito no devido lugar.

Estabelece, por exemplo, que juízes não podem participar de investigações, nem formular acusação no

lugar do promotor. “É preciso que quem julga não esteja contaminado por pré-julgamento”, explicou o

Ministro Carvalhido. Disponível em:< http://www.escoladaajuris.org.br>. Acesso em: 30 maio 2012. 4 GOMES, Luiz Flávio. Novo CPP: juiz das garantias. Disponível em:< http://www.youtube.com>.

Acesso em: 26 maio 2012. Cf. Artigo 8.º, item 1, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Page 12: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

10

para formar seu convencimento. Assim, caso seja sancionado e publicado, seria esta iniciativa

um sinal de evolução do sistema processual penal brasileiro, na medida em que surgiria assim

uma preocupação de não contaminação do juiz quanto a sua imparcialidade? Estar-se-ia

inaugurando um novo modelo de sistema processual penal no Brasil? Esta questão deve ser

enfrentada sempre à luz do garantismo, como marco teórico importante do constitucionalismo.

Mereceria atenção especial o item relativo às características de cada

sistema processual penal, que, na maioria das vezes são apontadas como a mera presença do

princípio dispositivo, o qual seria reitor do sistema acusatório e do princípio inquisitivo,

norteador do sistema inquisitório, e que, por sua vez, o sistema misto seria a preponderância do

sistema inquisitorial na fase pré-processual e do sistema acusatório na fase processual. Assim,

os sistemas seriam diferenciados pela presença de elementos essenciais, quais sejam o princípio

dispositivo e o inquisitivo, figurando os demais de forma secundária.5

Em linha diametralmente oposta, pode-se encontrar inclusive

posicionamento relevante no sentido de que não existiriam mais os sistemas puros, todos seriam

atualmente mistos.6

Entretanto, existiria ainda posicionamento no sentido de que dois são

os elementos fixos nos sistemas processuais penais, podendo os demais caracterizar mais de um

sistema, conforme a ideologia do momento histórico.7 Seriam elementos fixos do sistema

acusatório a separação entre as funções de acusar e julgar, sendo a figura do acusador distinta do

juiz, correspondendo ao princípio acusatório. Além desta característica, seria necessário ainda,

como elemento fixo do sistema acusatório, a presença do “efeito produzido pelo ajuizamento da

acusação, que é determinar a abertura do processo”.8 Assim, a abertura do processo seria ato

exclusivo inerente a uma acusação. Quanto ao sistema inquisitivo, também dois seriam os seus

elementos fixos, sendo eles a desnecessária distinção entre a figura do acusador diversa da do

juiz e a possibilidade de instauração do processo por acusação, notitia criminis ou mesmo de

ofício pelo juiz. Por sua vez, o sistema misto seria dividido em duas fases, nas quais se valeria

de elementos fixos presentes tanto no sistema inquisitivo quanto no sistema acusatório. A forma

de abertura do processo no sistema misto observaria a sistemática inquisitiva, podendo ser

5 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1. p. 51-76. 6 Exceto no Direito Canônico que conservaria seu caráter de pureza inquisitorial até os dias atuais. Cf.

LUZ, Denise. A busca da verdade no sistema acusatório e a investigação criminal no projeto de reforma

do código de processo penal brasileiro. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, n. 48,

jun./jul. 2012. 7 ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba:

Juruá, 2011. 8 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1. p. 51-76.

Page 13: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

11

aberto por meio de noticia criminis, delação secreta ou de ofício, ao passo que a legitimidade

ativa na fase de julgamento seria exercida por meio de uma acusação, cuja figura seria distinta

do juiz, característica marcante do sistema acusatório.9

Paralelamente, o garantismo penal de Luigi Ferrajoli pode ser

identificado, como uma das características do sistema acusatório, na mesma medida em que um

modelo autoritário estaria relacionado ao sistema inquisitório.10

A mencionada teoria do

garantismo sustentaria a observação dos preceitos garantistas normativados na Constituição

Federal pelas autoridades e instituições investidas nos poderes persecutórios criminais.

Entretanto, a teoria também apontaria um descompasso existente entre esta normatividade

garantista e a efetividade de atuação das autoridades criminais. Nesta perspectiva seria possível

perceber que o garantismo penal estaria intimamente ligado ao sistema acusatório,11

na medida

em que aquele defende, entre outros, a separação de funções entre a acusação e o ato de julgar,

exigindo atores diversos, convergindo diretamente com a maior característica percebida no

sistema acusatório. Luigi Ferrajoli trataria do tema quando apresenta dez axiomas que são

considerados pelo autor como “modelo garantista de direito”.12

Ao nosso estudo interessaria

diretamente o oitavo axioma (A8) definido, in verbis como “nullum judicium sine accusatione”.

O próprio Ferrajoli afirmaria que:

O sistema [...] que configura o método inquisitivo, deriva, por sua vez, da

subtração do axioma A8 sobre a imparcialidade do juiz e sobre sua separação

da acusação. Aparece em todos os ordenamentos nos quais o juiz tem funções

acusatórias ou a acusação tem funções jurisdicionais. Em tais sistemas, a

mistura de acusação e juízo compromete, sem dúvida, a imparcialidade do

segundo e, por seu turno, frequentemente, a publicidade e oralidade do

processo.13

Quanto ao modelo brasileiro, entende-se que o sistema processual

penal adotado teria sido o misto,14

com prevalência do procedimento inquisitório na fase pré-

processual e o acusatório na processual, podendo ainda o juiz atuar perante as deficiências das

9 ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba:

Juruá, 2011, p. 258. 10

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Madrid: Trotta, 1989. Cf. LOPES JUNIOR, Aury. Direito

processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1. p.

69-70. 11

As garantias estão presentes também nos sistemas inquisitivo e misto, cf. ANDRADE, Mauro Fonseca.

Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011, p. 455. 12

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi

Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002, p. 91. 13

Op. cit., p. 96. 14

LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 52. ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e

seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011. p. 457-458.

Page 14: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

12

partes.15

Encontra-se também posição no sentido de que o sistema processual penal brasileiro

seria o acusatório, por força argumentativa sustentada no artigo 129, I da Constituição Federal

de 1988, também pela presença das garantias constitucionais ao acusado, bem como pela adoção

do Estado Democrático de Direito.16

Há quem sustente ainda, fundado no Código de Processo

Penal, que o sistema inquisitivo tenha sido adotado no Brasil, pela possibilidade de o juiz, de

ofício, determinar a produção de provas.17

Por fim, há quem lecione no sentido de que “nosso

país não adota nenhum tipo de sistema processual penal, pois o que temos hoje são modelos de

processo”, concluindo que se viveria “uma grave e antiga crise de identidade, que tem

provocado um clima de profunda insegurança”.18

Pragmaticamente, o estudo revelaria ainda uma gama de

possibilidades argumentativas em benefício do acusado, tais como, v.g., a suspeição do

magistrado que teve sua imparcialidade contaminada pela proximidade com a colheita da prova.

Em certa medida, seria ainda ilícita a prova produzida diante de um cenário de atuação ativa do

juiz na gestão da prova, ensejando seu desentranhamento. Por outro lado, diante da

possibilidade de publicação de um novo Código de Processo Penal, caso seja sancionado, as

mesmas argumentações restariam pertinentes? A inovação chamada de “o juiz das garantias”

teria o condão de superar a mácula da contaminação da sua imparcialidade ou do julgamento

como um todo? A atual organização judiciária brasileira permitiria a efetivação do juiz das

garantias conforme o modelo previsto no projeto?

O estudo pretende ainda fazer uma sistematização ou reorganização

do conhecimento já existente sobre os sistemas penais e sobre a gestão da prova pelo juiz no

processo penal brasileiro, à luz do garantismo de Ferrajoli, podendo possibilitar futuras

15

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.

Curitiba: Juruá, 2011, p. 457-458. No mesmo sentido, cf. GRINOVER, Ada Pelegrini. A iniciativa

instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e

Penitenciária, Brasília, jan./jul. 2005, p. 20. 16

Idem. 17

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.

Curitiba: Juruá, 2011. O fato de um determinado processo consagrar a separação (inicial) de

atividades, oralidade, publicidade, coisa julgada, livre convencimento motivado etc., não lhe isenta de

ser inquisitório. É o caso do sistema brasileiro, claramente inquisitório na sua essência, ainda que com

alguns “acessórios” que normalmente ajudam a vestir o sistema acusatório (mas que por si só não o

transforma em acusatório). Cf. LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade

constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 69. O sistema processual penal

brasileiro é, na sua essência, inquisitório, [...], já que a gestão da prova está, primordialmente, nas

mãos do juiz. Cf. COUTINHO, Jacinto apud LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua

conformidade constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 72. A seu turno, o

Supremo Tribunal Federal teria firmado entendimento no sentido de que o atual sistema processual

penal brasileiro seria o acusatório. 18

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.

Curitiba: Juruá, 2011.

Page 15: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

13

pesquisas ou mesmo o desenvolvimento das questões teóricas e seus reflexos práticos na

sociedade.

Na mesma medida, o presente esforço poderia convergir para o

alcance de estratégias para resolução efetiva do problema apresentado ou poderia propiciar o

encaminhamento de uma possível solução, abrindo novas vias de entendimento.

A jurisprudência pátria também caminharia neste sentido, conforme

decisão do STJ que ressaltaria a importância do tema.19

A utilidade prática da pesquisa estaria

presente nas lides, atingindo diretamente os jurisdicionados, não sendo limitada às discussões

acadêmicas. Na mesma linha, decidiu o STF que o juiz que participa do planejamento de

investigações policiais apresenta-se diante do réu como parte acusadora.20

Assim, seria possível identificar como ponto nevrálgico do estudo, a

posição do juiz no processo penal brasileiro que, conforme sua atuação passiva ou ativa na

gestão da prova resguardaria ou afastaria a garantia constitucional da imparcialidade do

julgador.

Diante deste cenário, surgiria a necessidade de posicionamento

legislativo expresso no sentido da definição de qual deverá ser o sistema de processo penal

brasileiro, mediante uma reforma total.21

Assim, seria possível o “encadeamento lógico-

normativo” de todos os institutos processuais penais, bem como “dar-se-ia legitimidade a todas

as previsões contidas na nova legislação adjetiva”, afastando-se o rótulo atual de não ter nascido

sob a égide de um estado democrático.22

Lado outro, sem elidir as profundas transformações sofridas pela

ciência jurídica a partir do último quarto do século passado, é pertinente ressaltar alguns traços

marcantes que alterariam substancialmente a ciência do direito e o constitucionalismo,23

e, por

via reflexa, inspiram a elaboração das alterações no Código de Processo Penal, convergindo-o a

um “novo constitucionalismo”.

19

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC n. 23.945 / RJ, Rel. Min. Jane Silva, DJe 16.03.2009.

Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2012. 20

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC n. 95.009-4 / SP, Rel. Min. Eros Grau, DJe 19.12.2008.

Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 maio 2012. 21

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.

Curitiba: Juruá, 2011, p. 462. 22

Idem. 23

ALVES, Angela Limongi Alvarenga. Projeto de lei 166/2010: neoprocessualismo ou protagonismo

judicial? Revista CEJ. Brasília, v. XIV, n.53, p. 55-62, abril-jun 2011. p. 56.

Page 16: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

14

Entretanto, é imperioso destacar que essas mudanças envolveriam

vários entendimentos diferentes, mas concatenados,24

como o reconhecimento da formação

normativa dos princípios jurídicos e valorização da sua importância no processo de aplicação do

direito; a rejeição ao formalismo e o recurso frequente a métodos ou estilos mais abertos de

raciocínio jurídico: ponderação, tópica, teorias da argumentação etc; a constitucionalização do

direito, com irradiação das normas e valores constitucionais, sobretudo aos direitos

fundamentais, para todos os ramos do ordenamento; a reaproximação entre o direito e a moral,

com a penetração cada vez maior da filosofia nos debates jurídicos; a judicialização da política e

das relações sociais, com o significativo deslocamento do poder da esfera do Legislativo e do

Executivo para o Poder Judiciário.25

Por fim, fala-se de um modelo de processo penal democrático, como

aquele em que as partes participariam ativamente, apresentando o órgão acusador uma pretensão

ao órgão julgador que, por sua vez, de forma imparcial, decidiria. Este modelo seria a

“plataforma na construção de uma ciência penal democrática”.26

Estes são alguns dos desafios a que se propõe enfrentar o presente

estudo, repita-se, sempre tendo como norte o garantismo penal como dimensão teórica

importante do constitucionalismo.

24

Ibidem. 25

SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no brasil: riscos e possibilidades. In: LEITE, George

Salomão; SARLET, Ingo Wofgang. (Coord.). Direitos fundamentais e estado constitucional: estudos

em homenagem a J.J. Gomes Canotilho. São Paulo: RT, 2009, p. 09-10. 26

LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 71.

Page 17: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

15

1 - A TEORIA DO GARANTISMO PENAL

1.1. Teoria

O curso da presença de seres racionais sobre a face do planeta foi

marcado pela evolução da reação do próprio homem às violações da “ordem” de convívio

social.

A reação do homem ao delito teria se tornado monopólio do Poder

Estatal, característica da civilização, na medida em que representaria uma resposta à fase da

vingança privada, pela qual, sabe-se, era dado a cada cidadão fazer “justiça pelas próprias

mãos”. Por meio do poder do Estado busca-se a preservação do indivíduo e do grupo ao qual

este pertence, tornando-se “imprescindível limitar os excessos decorrentes da vingança privada,

sendo então o jus puniendi transferido a um poder central, que passaria a ser responsável pela

aplicação de uma punição àqueles que transgredissem as regras vigentes”.27

Presenciamos,

assim, o nascimento da fase da vingança pública, que “com a melhor organização social [...] o

Estado afastou a vindita privada, assumindo o poder-dever de manter a ordem e a segurança

social”. 28 / 29

Entretanto, teria sido necessário, para legitimar a ação do Estado na

defesa dos interesses coletivos, o reconhecimento de direitos fundamentais, sendo certo que a

grande maioria desses direitos fora conquistada depois de muitas lutas, inclusive seculares, das

gerações anteriores30

e,

se hoje esses direitos parecem já pacíficos na condição política, em verdade

se moveram em cada país constitucional num processo dinâmico e

ascendente […] permitindo visualizar a cada passo uma trajetória que parte

com frequência do mero reconhecimento formal para concretizações parciais

27

MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 28

BITENCOURT, César Roberto. Tratado de direito penal. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 1, p. 28-

30. 29

Importante destacar que no início da fase da vingança pública, o objetivo teria sido garantir a segurança

do soberano ou monarca, por meio da aplicação da sanção penal, ainda dominada pela crueldade e

desumanidade, características do direito criminal da época. Cf. BITENCOURT, op. cit., p. 28-30. 30

Pode-se tranquilamente afirmar que não houve nenhum direito fundamental, na história do homem, que

tivesse caído do céu ou nascido de uma escrivaninha, já escrito e confeccionado nas cartas

constitucionais. Todos são fruto de conflitos, às vezes seculares, e foram conquistados com revoluções e

rupturas, a preço de transgressões, repressões, sacrifícios e sofrimentos [...]. Cf. FERRAJOLI, Luigi.

Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr,

Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002, p. 755-756.

Page 18: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

16

e progressivas, até ganhar a máxima amplitude nos quadros consensuais de

efetivação democrática do poder.31

Na trilha destas conquistas, os ideais garantistas surgiriam como norte

a oferecer guarida ao cidadão contra os abusos e desmandos de um sistema penal que não

propiciaria a efetivação de todos os direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. O

direito ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório, bem como à presunção de

inocência, assegurado como garantia em face ao arbítrio, estariam na linha de frente no combate

ao autoritarismo.

Os intitulados direitos fundamentais de primeira geração32

exaltariam

o homem no que tange à sua individualidade. Advindos da filosofia liberal, requerem a proteção

de um núcleo singular de faculdades de direitos civis e políticos, no qual se encontram os

direitos referentes à liberdade da pessoa. Conforme definição de Jellinek, esses direitos teriam o

status negativus, carregando como forma de concretização a não intervenção estatal em relação

à sua essência, e a oponibilidade em relação ao Estado, constituindo esta última a sua mais

marcante característica garantista.33

Em relação à tutela da liberdade, o princípio do devido processo legal

expressamente previsto na constituição Federal de 1988, teria significativa importância para o

garantismo penal.

A imposição de uma série de formalidades, por si só, contudo, não

conferem ao processo legitimidade. Há necessidade do âmbito material, ou substancial, do

devido processo legal, como afirmou o ministro do STF Gilmar Mendes:

31

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2010. 32

Esta expressão pode ser substituída pela noção de „dimensão‟ e não geração, pois eles não se sucedem,

uns em detrimento dos outros, pelo contrário, eles se complementam. Neste sentido: “A doutrina

tradicional usa a palavra “gerações”, mas como ela traz a ideia de algo que se torna obsoleto e é

substituído, a doutrina moderna prefere a palavra “dimensões” cf. JUBILUT, Liliana Lyra.

MONACO, Gustavo Ferraz de Campos. Direito internacional público. São Paulo: Lex Editora, 2010,

p. 89. No mesmo sentido LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13 ed. São Paulo.

Saraiva, 2009, p. 670. 33

Para um melhor entendimento da função do Estado diante da proteção dos direitos fundamentais, vale

discorrer sobre a teoria dos quatro status do publicista alemão Georg Jellinek (final do séc. XIX),

teoria esta que serviu como molde para a classificação dos direitos fundamentais e do reconhecimento

de sua multifuncionalidade. Status significa situação, estado, portanto, status sob o ponto de vista da

teoria de Jelinek significa situações jurídicas entre o indivíduo e o Estado. Jellinek dividiu em quatro

tipos os status: passivo, negativus, positivus e activus. Cf. BEÇAK, Rubens. AMARAL, João Ricardo

de Castro Barbosa do. A efetivação dos direitos fundamentais por via do ensino médio. Publicado nos

Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI. Nov. 2009. No mesmo sentido, cf. LENZA,

Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13 ed. São Paulo. Saraiva, 2009, p. 673-674. Em

construção semelhante, referindo-se aos direitos e liberdades públicas, cf. CANOTILHO, José

Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. 2. reeimp. Coimbra: Almedina,

2003, p. 395-396.

Page 19: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

17

O princípio do devido processo legal, que lastreia todo o leque de garantias

constitucionais voltadas para afetividade dos processos jurisdicionais e

administrativos, assegura que todo julgamento seja realizado com

observância das regras procedimentais previamente estabelecidas, e, além

disso, representa uma exigência de fair trial, no sentido de garantir a

participação equânime, justa, leal, enfim, sempre imbuída pela boa-fé e pela

ética dos sujeitos processuais.34

Advindos do direito ao devido processo legal, entende-se que as

garantias fundamentais da ampla defesa e do contraditório também seriam indispensáveis ao

garantismo penal. A ampla defesa constitui direito inerente à pessoa humana, conferindo-a

dignidade, no contexto das relações sociais, bem como representa uma proteção voltada à

acusação criminal. Por sua vez, associado ao acusado sob o prisma da ampla defesa, o

contraditório constitui peça das mais relevantes no processo penal. Por certo, não haveria um

processo de partes, com igualdade de oportunidades e isenção estatal na condução do feito, se

não houvesse o contraditório. De forma simplificada, o contraditório poderia ser entendido

como a oportunidade concedida a uma parte do processo para que, querendo, apresente a sua

contrariedade a alguma coisa.35

Também como forma de inibir o arbítrio estatal, seria assegurada

constitucionalmente a garantia da presunção de inocência, ou do estado de inocência, que “tem

por objetivo garantir, primordialmente, que o ônus da prova cabe à acusação e não à defesa”.36

Até que a sentença condenatória seja transitada em julgado, o acusado seria presumido

naturalmente inocente, e, havendo dúvida, tal presunção permaneceria, sendo legitimada pelo

princípio também constitucional in dubio pro reo.

Ao longo deste estudo estabelecer-se-ia uma relação de tensão entre os

fundamentos garantistas constitucionais e a efetividade de atuação do poder público na esfera

penal, na medida em que ambos os elementos (garantias e poder estatal) quando elevados ao

extremo, poderiam ensejar total anarquia e impunidade ou, ao revés, o autoritarismo. A partir do

prisma da Teoria do Garantismo Penal,37

de Luigi Ferrajoli, é que poderíamos entender como

equilibrar estes dois aspectos em constante colisão.38

34 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo de Instrumento n. 529.733, Rel. Min. Gilmar Mendes. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 20 fev. 2012. 35 NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios constitucionais penais e processuais penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.

263 e 286. 36 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 8 ed. São Paulo: RT, 2011. 37 Obra Diritto i Ragione publicada em 1989 na Itália e traduzida para o espanhol (Derecho y razón) em 1995. 38 Merece destaque: “convém lembrar que o próprio Ferrajoli alertou, em artigo publicado no Brasil, que a Teoria do Garantismo

ainda é obra inacabada. Ainda assim, os elementos gerais de uma Teoria Garantista desenvolvidos nos capítulos acima referidos

são suficientes para dar conta do modelo de Estado de Direito e propor um resgate de sua legitimação”. Cf. BORTOLI, Adriano de. Garantismo Jurídico, Estado Constitucional de Direito e Administração Pública. Artigo publicado nos anais do Conpedi,

Manaus, disponível em: < http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/adriano_de_

bortoli.pdf>. Acesso em: 29 jan. 2013.

Page 20: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

18

Um dos nortes do garantismo penal de Ferrajoli seria concentrado no

descompasso39

existente entre os princípios garantistas constitucionais e a atuação efetiva do

poder público durante a persecução penal que, por vezes, seria afastada da estrita observância

das garantias ao acusado, no que se refere ao delito, ao processo e à pena.

Entretanto, antes de prosseguir, necessário alertar o leitor de que o

garantismo é um modelo ideal “do qual nos podemos mais ou menos aproximar. Como modelo,

representa uma meta que permanece como tal, ainda que não seja alcançada e não possa ser

alcançada inteiramente”.40

Assim, o garantismo pode ser visto como um balizamento ou

termômetro a mensurar o grau de observância de um sistema penal às garantias constitucionais

ao acusado, conforme veremos com mais vigor adiante.

Sob o plano jurídico, o garantismo penal seria definido por Ferrajoli

como “um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia aos direitos

dos cidadãos”.41

O garantismo de Ferrajoli poderia ainda ser visualizado como um “modelo

normativo de direito, como sistema de limites das autoridades punitivas”,42

podendo ser

estendido a todos os direitos fundamentais não só aos direitos de liberdade, mas aos direitos

sociais, aos direitos civis e políticos.

Esta acepção do termo garantismo como modelo normativo de Direito,

no plano jurídico, define a composição do Estado de Direito, pelo governo per leges e governo

sub lege. Nesta linha, no que se refere ao Direito penal, Ferrajoli afirmaria que o Estado de

Direito designa ambas as coisas: o poder judicial de descobrir e castigar os delitos é, em efeito,

sub lege, enquanto que o poder legislativo de defini-los se exercita per leges; e o poder

39

O garantismo traz como “questão teórica central”, a divergência existente nos ordenamentos complexos

entre modelos normativos (tendentemente garantistas) e práticas operacionais (tendentemente

antigarantistas) interpretando-a com a antinomia que subsiste entre validade (e não efetividade) dos

primeiros e efetividade (e invalidade) das segundas”, cf. FERRAJOLI, 2002. p. 684. 40

BOBBIO, Norberto. Cf. Prefácio in FERRAJOLI, op. cit., p. 9. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão:

teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares

e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 91, 785/786. No sentido de que o mencionado

descompasso depende dos “vícios de fato do sistema jurídico”, cf. op. cit. p. 809. No sentido de que “a

divergência entre normatividade e efetividade se manifesta também na criminalidade mesma, isto é,

na não efetividade do direito penal, e na sua impunidade, isto é, na não efetividade do direito

processual”, cf. op. cit. p. 862. 41

“É, consequentemente, „garantista‟ todo sistema penal que se conforma normativamente com tal

modelo e que o satisfaz efetivamente”, cf. FERRAJOLI, op. cit., p. 684. 42

FERRAJOLI, Luigi. Entrevista concedida a Carmela Grune editora do Jornal Estado de Direito, na

Cidade de Porto Alegre/RS. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=mwsbEV1tKvg>.

Acesso em: 04 fev. 2013.

Page 21: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

19

legislativo se exercita per leges enquanto, por sua vez, está sub lege, quer dizer, está prescrita

por lei constitucional a reserva de lei geral e abstrata em matéria penal.43

Pormenorizando a questão, o governo sub lege teria dois sentidos, o

primeiro chamado de débil, lato ou formal, pelo qual todo poder deveria ser conferido pela lei e

exercido nas formas e procedimentos por ela estabelecidos. Seriam incluídos aqui inclusive

ordenamentos autoritários e totalitários, na medida em que o poder tem uma fonte e uma forma

legal. Aqui se perceberia “a noção de legalidade em sentido lato ou validade formal, que exige

somente que sejam predeterminados por lei os sujeitos titulares e as firmas de exercício do

poder”.44

O Rechtsstaat alemão seria um exemplo de contextualização deste modelo de Estado

de Direito. O outro sentido seria chamado de forte, estrito ou substancial, pelo qual todo poder

deveria ser limitado pela lei, que condiciona não só suas formas, mas também seus conteúdos.

Como exemplo de contextualização do The Rule of Law inglês. Seriam encontrados neste

sentido Estados de Direito os Estados constitucionais que, nos níveis normativos incorporam

limites não só formais, mas substanciais ao exercício de qualquer poder. Este segundo modelo é

utilizado por Ferrajoli como sendo o que caracteriza o “Estado de Direito Garantista”, nascido

das modernas constituições e caracterizado, no que interessa diretamente ao nosso estudo, no

plano substancial, pela funcionalização de todos os poderes do Estado em proteção aos Direitos

fundamentais, mediante a constitucionalização das proibições de lesar os direitos de liberdade e

das obrigações de satisfação dos direitos sociais, passíveis de tutela jurisdicional.45

1.2. Direitos Fundamentais: neoconstitucionalismo e garantismo

Trilhando pelo contexto de direitos fundamentais, necessários ainda

mais alguns apontamentos no sentido de que o constitucionalismo lhes traria uma nova

medida.46

Neste marco paradigmático, os direitos fundamentais passariam a representar direitos

juridicamente positivados “vigentes em uma ordem constitucional”.47

Entretanto, salienta-se que

43

Cf. BORTOLI, Adriano de. Garantismo Jurídico, Estado Constitucional de Direito e Administração

Pública. Artigo publicado nos anais do Conpedi, Manaus, disponível em:

<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/adriano_de_bortoli.pdf>. Acesso em: 29 jan.

2013. 44

Idem. 45

Ibidem. 46

Nascidos na consagração de liberdade e igualdade possuem, desde o nascedouro, um caráter de

universalidade: baseados no caráter inclusivo da razão – pois que se todos os homens são racionais,

logo há um critério certo para erigirmos um todos: “Todos os homens são iguais por natureza e diante

da lei”, como proclama o artigo 3.° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Cf.

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco; NUNES, Dierle José Coelho. O potencial transformador dos

direitos “privados” no constitucionalismo pós-88: igualdade, feminismo e risco. Revista dos Tribunais,

n. 882, abril 2009, p. 46. 47

A positivação de direitos fundamentais significa a incorporação na ordem jurídica positiva dos direitos

considerados “naturais” e “inalienáveis” do indivíduo, cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito

constitucional e teoria da constituição. 7. ed. 2. reeimp. Coimbra: Almedina, 2003, p. 377.

Page 22: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

20

esta concepção positivamente fechada estaria em clara “dessintonia”48

com as premissas básicas

de um sistema aberto de regras e princípios.49

Estes mesmos direitos podem ainda revestirem-se de caráter formal e

materialmente fundamentais, na medida em que, na primeira hipótese, seriam colocados em

ponto superior da ordem jurídica, possuindo procedimentos agravados e limites materiais de

revisão e de vinculatividade imediata dos poderes públicos, como parâmetros de escolhas,

decisões e controle dos poderes. Materialmente fundamentais quando ofereceriam suporte para a

abertura da Constituição para outros direitos, também fundamentais, mas não

constitucionalizados, na medida em que poderiam ser aos mesmos atribuídos aspectos do

regime jurídico inerente à fundamentalidade formal. Estas características seriam conhecidas

como cláusulas abertas dos direitos fundamentais que proporcionariam uma concretização e

desenvolvimento plural de todo o sistema constitucional.50

Internacionalmente, existem dois pactos no âmbito das Nações Unidas

sobre os direitos fundamentais. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP)51

e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC).52

No Brasil, a expressão desta compreensão de cláusulas abertas seria

consagrada pela própria Constituição Federal, na medida em que traz consigo previsão expressa

do caráter aberto dos direitos fundamentais.53

Expressamente previstos, a Constituição Federal

Brasileira traria assim os direitos e garantias fundamentais em seus artigos 5º (direitos

individuais e coletivos), artigos 6º e 193 e seguintes (direitos sociais), artigo 12 (direitos à

nacionalidade), artigos 14 a 16 (direitos políticos), artigo 17 (direitos dos partidos políticos) e

48

Idem. 49

“A constitucionalização tem como consequência mais notória a proteção dos direitos fundamentais

mediante o controlo jurisdicional da constitucionalidade dos actos normativos reguladores destes

direitos. Por isso e para isso, os direitos fundamentais devem ser compreendidos, interpretados e

aplicados como normas jurídicas vinculativas e não trechos ostentatórios ao jeito das grandes

declarações de direitos”. Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da

constituição. 7. ed. 2. reeimp. Coimbra: Almedina, 2003, p. 378. 50

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. 2. reeimp.

Coimbra: Almedina, 2003, p. 379-380. 51

Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/pacto_dir_politicos.htm>. Acesso em: 23

mar. 2013. 52

Disponível em: < http://www.unfpa.org.br/Arquivos/pacto_internacional.pdf>. Acesso em: 23 mar.

2013. 53

Conforme redação do artigo 5º, § 2º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

“Assim, o elenco de incisos do art. 5º é exemplificativo, pois os direitos e garantias expressos na

Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos

tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil for parte.” Cf. BULOS, Uadi

Lammêgo. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009,. p. 433. Atribuindo ao

tema maior relevância após a EC n. 45/2004 que acrescentou o § 3º ao artigo 5º da Constituição

Federal, cf. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009,

p. 673.

Page 23: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

21

artigos 170 a 192 (relações econômicas), não deixando à margem a lembrança de que esta lista é

exemplificativa.54

Entretanto, necessária uma diferenciação entre os direitos do homem e

os direitos fundamentais. O primeiro refere-se a uma dimensão universal, sendo observados a

todos os povos em todos os tempos, ao passo que os direitos fundamentais seriam aqueles

mesmos direitos do homem “jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-

temporalmente”.55

Em outras palavras, os direitos do homem seriam aqueles inerentes a própria

natureza humana, na medida em que os direitos fundamentais seriam aqueles objetivamente

vigentes em um ordenamento jurídico.

Ainda na linha de diferenciações, apesar da redação do Título II da

Constituição Federal de 1988 referir-se a direitos e garantias fundamentais,56

os mesmos não

possuem o mesmo significado. As garantias fundamentais “traduziam-se quer no direito dos

cidadãos a exigir dos poderes públicos a proteção dos seus direitos, quer no reconhecimento de

meios processuais adequados a essa finalidade”.57

Em outras palavras, as garantias fundamentais

seriam “ferramentas jurídicas por meio das quais tais direitos [fundamentais] se exercem,

limitando os poderes do Estado”.58

As garantias seria vistas ainda como “vínculos normativos

idôneos a assegurar efetividade aos direitos subjetivos [...] são direcionadas a assegurar a

máxima correspondência entre normatividade e efetividade da tutela dos direitos”.59

Seria

correto ressalvar que numa mesma norma constitucional, garantias podem vir disciplinadas

junto com direitos, v.g. direito de crença e garantia da liberdade de culto, conforme artigo 5º, VI

da Constituição Federal Brasileira de 1988. Por fim, vale aqui a advertência de que

“[r]igorosamente, as clássicas garantias são também direitos, embora muitas vezes se

salientasse nelas o carácter instrumental de proteção dos direitos”.60

Os direitos e as garantias fundamentais mencionadas possuiriam a

“função de defesa da pessoa humana e da sua dignidade perante os poderes do Estado (e de

54

Neste sentido já se manifestou o STF, ADIn 939-7, MC/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, RTJ 150:68.

Cf. ainda LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 13. ed. São Paulo. Saraiva, 2009, p.

673. 55

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. 2. reeimp.

Coimbra: Almedina, 2003, p. 393. 56

BRASIL. Constituição Federal. Título II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais, artigos 5º ao 17. 57

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. 2. reeimp.

Coimbra: Almedina, 2003, p. 396. 58

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 407. 59

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,

Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 21. 60

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. 2. reeimp.

Coimbra: Almedina, 2003, p. 396.

Page 24: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

22

outros esquemas políticos coativos).”61

Além da proteção da pessoa humana e de sua dignidade,

os direitos fundamentais teriam ainda a função de prestação social, proteção perante terceiros e

de não discriminação. Como prestação social, seriam vistos como o direito do particular obter

algo através do Estado como saúde, educação e segurança. Perante terceiros, teriam função de

proteção dos titulares de direitos fundamentais contra violações por parte de outros indivíduos.

Por fim, a função de não discriminação asseguraria, alicerçada pelo princípio da igualdade, que

o Estado promovesse tratamento igualitário a todos os seus cidadãos.

Mesmo que admitidas todas as funções de proteção do cidadão e dos

estrangeiros em território nacional,62

os direitos além da característica de serem fundamentais

não possuiriam um caráter absoluto. Em outras palavras, os direitos e garantias fundamentais

sofreriam de uma limitação ou relativização. Esta seria uma regra geral, sendo as liberdades

públicas relativas, especialmente as estabelecidas no artigo 5º da Constituição Federal.63

A própria Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948

reconheceria estas mesmas limitações “[...] com a única finalidade de assegurar o respeito dos

direitos e liberdades dos demais [...].”64

Este vértice de limitação ou de relativização seria recortado por força

de “três universos normativos com valor de lei”, por meio de restrições feitas pela própria

Constituição, por lei, mas expressamente autorizada pela Constituição e por meio de lei sem

autorização constitucional. Além das limitações legais, existiriam ainda as medidas ou

intervenções restritivas praticadas pelo poder público incidentes de modo concreto e imediato

sobre um direito.65

Estas leis restritivas estariam sujeitas a uma série de requisitos

restritivos dessas mesmas leis, o que levaria a entender-se a questão como “restrições às

restrições ou limites dos limites”. Aqui se destacariam as noções de a) exigência de autorização

de restrição expressa; b) o requisito de lei formal; c) o requisito da generalidade e abstração da

61

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. 2. reeimp.

Coimbra: Almedina, 2003, p. 407. 62

Cf. artigo 5º caput da Constituição Federal de 1988. 63

Conforme reconhecido pelo STF, RT 709:408. Neste mesmo sentido cf. BULOS, Uadi Lammêgo.

Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009,. p. 672. 64

No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas

pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e

liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de

uma sociedade democrática. Cf. Artigo XXIX, 2. Disponível em:

<http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm. Acesso em: 23 mar. 2013. 65

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. 2. reeimp.

Coimbra: Almedina, 2003, p. 450.

Page 25: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

23

lei restritiva; d) o requisito da não retroatividade da lei restritiva; e) o princípio da proibição do

excesso e f) o princípio da salvaguarda do núcleo essencial. 66

Desenvolvendo a construção deste último item de restrições as

restrições seria interessante tecer alguns comentários, no que interessa a nosso estudo, sobre a

construção do chamado núcleo essencial. Este núcleo essencial dos direitos, liberdades e

garantias seria um oásis inviolável e irrestringível ou mesmo um reduto intransponível por

qualquer medida legal restritiva diante da aridez de direitos fundamentais em conflito, segundo

uma visão “subjectiva” quanto ao objeto de proteção e pela adoção de uma teoria “absoluta”.

Mesmo assim, esta limitação poderia ocorrer mesmo no núcleo essencial, segundo uma visão

“objectiva” do objeto de proteção e uma teoria “relativa” sobre o valor da proteção.67

Considerada a divergência entre o real alcance e o objeto do núcleo

essencial dos direitos, liberdades e garantias, segundo Canotilho o entendimento que lhe

pareceria mais adequado seria aquele que estaria em conformidade com a Constituição

Europeia, segundo a qual “qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades deve

respeitar o conteúdo essencial desses direitos e liberdades”.68

Diante da relatividade dos direitos e garantias fundamentais haveria

situações em que, ao reverso, determinado direito ou garantia fundamental seria absoluto (e nem

referimo-nos aqui a núcleo essencial) devendo ser exercido por seu titular de forma absoluta.

Como exemplo a proibição da tortura, mesmo diante do maior dos criminosos e em benefício de

toda a ordem pública.

Luigi Ferrajoli defenderia em sua Teoria do Garantismo Penal uma

visão similar, onde seria possível a existência de “direitos fundamentais por assim dizer

absolutos”. A justificativa apresentada pelo autor italiano seria no sentido de que estes direitos

fundamentais absolutos estariam “supraordenados” aos demais, sem limitações de ordem

alguma tampouco para a tutela de outros direitos fundamentais. Como exemplos seriam

mencionados o direito à vida, liberdade de consciência e de opinião (diversamente da liberdade

de expressão), a imunidade à tortura. Por outro lado, seria ainda reconhecida, nesta mesma

ordem de pensamento a dificuldade de balanço dos direitos sociais.69

66 Com referência a doutrina alemã Schranken der Schranken, cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e

teoria da constituição. 7. ed. 2. reeimp. Coimbra: Almedina, 2003, p. 451-458. 67 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. 2. reeimp. Coimbra: Almedina, 2003,

p. 458-461. 68 Artigo II-52. 69 Com destaque no original. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer

Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 843-844.

Page 26: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

24

Nesta linha de dificuldade de reconhecimento da teoria aos direitos

sociais, reconhece o autor em comento que, fundado no princípio da legalidade, seria

relativamente simples a efetivação do direito à subsistência, menos simples seria o

reconhecimento das garantias legais à instrução e saúde. Mas seria imensamente mais difícil,

por sua vez, a realização dos direitos ao trabalho e à moradia, por causa do caráter “irrealizável

de sua satisfação igualitária, mesmo que mínima.” A justificativa a esta indubitável irrealização

estaria contida nas afirmações do mesmo autor de que a uma, o Estado incorporaria valores

utópicos nas Constituições e a duas, pela imperfeição inevitável de qualquer sistema jurídico.70

Quanto ao direito penal na visão garantista, a garantia fundamental a

ser observada sob a qual se reduz a sua legitimidade substancial seria a da estrita legalidade,

diversamente dos outros setores do ordenamento. Esta estrita legalidade seria refletida pela

sujeição do juiz apenas à lei e isto deriva do nexo que existiria entre a verdade processual e a

liberdade do inocente contra o arbítrio.71

1.3. Garantismo, Democracia, paradigmas do Estado de Direito

O garantismo penal poderia ser entendido assim como meta a

observação das garantias constitucionais aos acusados em processos criminais, evitando-se

abusos, arbitrariedades e violações de direitos fundamentais durante a persecução penal.72

No que se refere ainda aos direitos fundamentais para o garantismo

penal, a construção de Ferrajoli apontaria no sentido de que os mesmos orientam o Estado,

quando da visão liberal de prestações negativas voltadas para o não fazer,73

sobre a utilização da

força, na medida em que este seria considerado o campo mais importante. Estas vedações ao uso

da força seriam melhor visualizadas no direito punitivo. Neste campo, as Constituições teriam

mais rigidamente vinculado os poderes públicos. Desta forma, as garantias penais e processuais

constituem um “sistema de vedações legais inderrogáveis”.74

70 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr,

Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 844-847. 71 Idem. p. 845. 72 “[N]ão se perca de vista a ideia inspiradora do obra: a ideia iluminista e liberal – iluminista em filosofia e liberal em política –

segundo a qual, diante da grande antítese entre liberdade e poder que domina a história humana – em que, nas relações entre

indivíduos e entre grupos, quanto maior seja a liberdade tanto menor será o poder e vice-versa [...]”. Cf. BOBBIO, Norberto.

Prefácio in FERRAJOLI, 2002. p. 8. 73 Isso significava que liberdade, igualdade e propriedade eram assegurados contra o Estado. É, pois, uma sociedade que rejeita

qualquer fundamento religioso que venha querer ditar normas morais ou jurídicas e que possui uma profunda desconfiança para

com o Estado e suas instituições (principalmente na Europa recém exorcizada do absolutismo). [...]. Não se esperava do Estado

que provesse direitos [...]. Idem. 74 Vedações legais de punir, de prender, de perseguir, de censurar ou, de outro modo, sancionar, sem que concorram as condições

estabelecidas pela lei para a tutela dos cidadãos contra os arbítrios. Vedações análogas seriam também impostas aos poderes

privados, não sendo possível sua violação nem mesmo por consentimento de seus titulares. Nem por contrato um homem poderia ser privado de suas liberdades fundamentais, reconhecidas como personalíssimas. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria

do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São

Paulo: RT, 2010, p. 794.

Page 27: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

25

Mas o modelo de Ferrajoli não fecharia os olhos para o fato de que as

Constituições também teriam reconhecido outros direitos vitais ou fundamentais além dos

direitos de liberdade que correspondem às vedações. Seriam reconhecidos também direitos

“sociais” ou “materiais”, correspondentes a obrigações, na medida em que representariam

deveres públicos de fazer, prestações positivas para garantia dos direitos sociais.75

Desta forma,

a técnica garantista seria construída pela “incorporação limitativa de direitos civis e de deveres

públicos nos níveis normativos superiores do ordenamento”.76

Seria ainda perceptível nesta dicotomia entre garantias liberais

negativas e sociais positivas, segundo o autor da teoria do garantismo penal, uma mudança da

estrutura normativa do Estado, voltada não mais apenas em vedações legais, mas também por

obrigações de satisfazer direitos. A base de legitimação do Estado também mudaria, na medida

em que o Estado de direito liberal deveria apenas não piorar as condições de vida dos cidadãos,

o Estado de direito social deveria ir além, melhorando-as. Esta diferença está fundada na

diferente natureza dos bens assegurados. As garantias liberais protegeriam as condições naturais

de existência, como a vida, a liberdade, a imunidade ao arbítrio, etc., ao passo que as garantias

sociais lançariam amarras nas pretensões e aquisições de condições sociais de vida, quais sejam,

subsistência, trabalho, saúde, etc; as primeiras voltadas à preservação do passado e as segundas

ao futuro, com alcance inovador.

Façamos constar ainda que ambas as garantias não se excluiriam entre

si, restando, logicamente independentes.77

Seguindo o pensamento apresentado, as prestações positivas teriam

crescido juntamente com o chamado Welfare State e a multiplicação das funções públicas

econômicas e sociais. A enunciação constitucional dos direitos dos cidadãos a prestações

positivas não teria sido acompanhada pela elaboração de adequadas garantias sociais ou

positivas, isto é, de técnicas de defesa e possibilidades de serem deduzidas em juízo. Na visão

75

Em razão da exploração econômica e da desregulamentação do Mercado, causando pobreza em massa,

o Estado Liberal teria entrado em crise, abrindo caminho para uma forma de governo chamada de

Estado Social que, além de proporcionar a todos igual tratamento perante a lei, deveria materializar esta

igualdade em ações concretas. A liberdade estaria agora não mais na ausência de lei, mas em sentido

oposto, na presença de leis protetivas que garantam o direito de agir. Ocorre um processo de

publicização dos direitos privados e de propriedade, como política de bem-estar social. Cf. BAHIA,

Alexandre Gustavo Melo Franco. NUNES, Dierle José Coelho. O potencial transformador dos direitos

“privados” no constitucionalismo pós-88: igualdade, feminismo e risco. Revista dos Tribunais, n. 882,

abr. 2009, p. 48. 76

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,

Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 794. 77

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,

Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 796.

Page 28: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

26

de Ferrajoli, em suma, “não foi ainda nem teorizado nem realizado um Estado social de direito”,

caracterizado por obrigações taxativamente estabelecidas e sancionadas.78

/ 79

Nesta linha, para Bahia e Nunes, mantendo o destaque do texto

original, “o que se percebeu é que direitos individuais não podem ser tidos como bens a serem

distribuídos pelo Estado, pois que assim deixam de ser direitos”. Citando Habermas, os mesmos

autores defendem que uma “liberdade assegurada paternalisticamente significa ao mesmo tempo

subtração de liberdade”.80

Esta seria uma lição, por exemplo, compreensiva de questões que

podem ser observadas no Estado brasileiro

onde muitos há que ainda insistem em políticas assistencialistas ou em sua

versão mais sofisticada: o tratamento dos direitos fundamentais como

valores, como bens que podem ser maximizados o que reflete uma atitude

debitaria ainda do Estado de Bem-estar, já que este supunha uma

homogeneidade social que nunca existiu na modernidade.81

As críticas ao Estado de Bem-estar caminhariam no sentido de que o

mesmo seria incapaz de promover a cidadania, nos países mais bem sucedidos. “O paradigma

estava se dissolvendo e, com ele, a crença nessa posição privilegiada do Estado (associado com

o público) sobre os indivíduos (privado)”.82

Assim, o Estado Social que se limitava a incrementar o Estado Liberal

com políticas assistencialistas, “entregando o peixe” ao cidadão, passa a “ensinar a pescar”,

mediante a adoção de políticas de inclusão, incorporando e implementando os anteriores.

As naturais diferenças de classes percebidas no feudalismo e em toda

Antiguidade, após as Revoluções burguesas, o Liberalismo e as grandes Declarações de

Direitos, consagra-se a igualdade como identidade. Todos são formalmente iguais perante a lei.

Desta forma, o Estado de Bem-estar teria surgido com a meta de materializar a igualdade (e a

liberdade), objetivando gerar cidadania. Agora, somente um terceiro estágio poderia superar os

78

Idem. 79

A grande promessa do Estado de Bem-estar – qual seja, materializar os direitos a fim de criar condições

para gerar cidadania – não se efetivou. Ao invés, o que se viu, inclusive nos países onde ele

aparentemente funcionou melhor foi a formação de uma clientela dependente do Estado-Providência;

[...]. Cf. BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. NUNES, Dierle José Coelho. O potencial

transformador dos direitos “privados” no constitucionalismo pós-88: igualdade, feminismo e risco.

Revista dos Tribunais, n. 882, abr. 2009, p. 48. 80

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. NUNES, Dierle José Coelho. Op. cit., p. 49. 81

Idem. Acrescentando que “o Brasil jamais viveu o estado de Bem-estar social”, cf. BAHIA, Alexandre

Gustavo Melo Franco. Aula ministrada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de

Direito do Sul de Minas, disciplina Teoria da Democracia, 2011. 82

Ibidem.

Page 29: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

27

dois anteriores e redefinir uma igualdade que reconhece as diferenças, que não as explora por

padrões de dominação ou subordinação.83

Neste ponto, inicia-se uma abordagem sobre um Estado que passaria a

ser denominado de Democrático de Direito, pois incorporaria as preocupações dos estados

anteriores, com decisões democráticas, audiências públicas, etc. Juridicamente, aqui estaria

nascendo a noção tão decantada de neoconstitucionalismo, caracterizado por uma tensão entre

constitucionalismo (convicção de que existem princípios que devem prevalecer mesmo contra a

vontade da maioria – direitos fundamentais, cláusulas pétreas, etc.) e democracia (as decisões

devem ser tomadas pela vontade da maioria). Esta tensão seria o motor do Estado Democrático

de Direito, segundo Habermas. O equilíbrio entre o constitucionalismo e a democracia somente

o pós-positivismo conseguiria, na medida em que este modelo teria melhores condições de

conciliar ou resgatar o conceito e o significado de prudência do direito romano, na medida em

que precisaríamos decidir o direito observando a lei, mas sem ferir os valores morais e éticos. O

direito deveria estar com concordância com a moral e a ética, mas poderia contrariá-las, quando

necessário. Seria este o único mecanismo social que poderia se opor a convicções morais. Não

se trataria também de atrelar direito, moral e ética, pois isso poderia pulverizar o direito. Seria o

direito quem conseguiria transformar o pluralismo ético e moral em norma, para possuir

legitimidade, estando em concordância com a moral. Esta seria a razão de existência, o

“porque” do pós-positivismo, na medida em que este conseguiria mediar esta tensão. Desta

forma, existiria uma relação circular entre “neo-positivismo” e o constitucionalismo.

Estas breves considerações fizeram-se necessárias, na medida em que,

conforme a construção teórica do precursor do garantismo, o Estado de direito, como resultado

do conjunto das garantias liberais e sociais, poderia ser configurado sobre o que chamou de

“metaregras” em relação às regras mesmas da democracia política. Em um sentido não formal e

político, mas substancial e social de democracia, o Estado de Direito equivaleria à democracia,

no sentido que reflete, além da vontade da maioria, os interesses e necessidades vitais de todos:

o garantismo, como técnica de limitação e disciplina dos poderes públicos,

voltado a determinar o que estes não devem e o que devem decidir, pode bem

ser concebido como a conotação (não formal, mas) substancial da

democracia: as garantias, sejam liberais ou sociais, exprimem de fato os

direitos fundamentais dos cidadãos contra os poderes do Estado, os interesses

dos fracos respectivamente aos dos fortes, a tutela das minorias

marginalizadas ou dissociadas em relação às maiorias integradas, as razões

de baixo relativamente às razões do alto.84

83

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco; NUNES, Dierle José Coelho. Op. cit., p. 50. 84

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,

Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 797.

Page 30: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

28

No entender de Ferrajoli, estas questões ensejariam uma redefinição

do conceito de “democracia”, que receberia o nome de democracia substancial ou social o

“Estado de direito” dotado de efetivas garantias, liberais ou sociais. Por outro lado, o mesmo

autor denominou de democracia formal ou política o “Estado político representativo”, fundado

no princípio da maioria como fonte de legalidade.

[A] democracia substancial incorpora valores mais importantes, e de tal

maneira prejudiciais à formal. Nenhuma maioria, se tem dito, pode decidir a

condenação de um inocente ou a privação dos direitos fundamentais de um

sujeito ou de um grupo minoritário; e nem mesmo pode não decidir pelas

medidas necessárias para que a um cidadão sejam asseguradas a subsistência

e a sobrevivência.85

A expansão da democracia poderia ocorrer, segundo Ferrajoli, com a

extensão dos vínculos estruturais e funcionais impostos a todos os poderes para a tutela

substancial de sempre novos direitos vitais, junto com a elaboração de novas técnicas

garantistas idôneas a assegurar-lhes uma maior efetividade, na medida em que “hoje o elenco

dos bens fundamentais está mais extenso, tendo crescido o número de ameaças às condições

naturais de vida”.86

Um projeto de democracia social é, portanto, formado por todos aqueles

elementos com os quais se faz um Estado social de direito: este consiste na

expansão dos direitos dos cidadãos e correlativamente dos deveres do Estado,

ou, se se preferir, na maximização da liberdade e das expectativas de

minimização dos poderes.

Ferrajoli proporia que o sistema como um todo atue norteado por dez

axiomas, que serão verificados também no decorrer do presente estudo. Contudo, importante

frisar ainda que não se trataria aqui de promover a impunidade velada, o objeto a ser buscado é

um processo justo, culminando com eventual punição pela prática de conduta ilícita, tudo sob o

olhar atento e preservador das garantias constitucionais. A forma no processo penal seria

também uma garantia inarredável, eis que sua violação corresponderia à ilegitimidade da

decisão. Ao contrário, sim, o “atropelo” das garantias processuais constituiria fator de

impunidade e, consequentemente, grave risco de injustiça.87

Nesta linha, não podemos nos prender à função do processo penal

como mera busca pela verdade real.88

O curso que se pretende trilhar possui escarpa cujo topo é

aparentemente inatingível, na medida em que se busca um processo justo, no qual o resultado de

85 FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 798. 86 Idem. 87 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v.

1. Nota do autor, p. xliv. 88 A proteção do indivíduo também resulta de uma imposição do Estado Democrático, pois a democracia trouxe a exigência de que o

homem tenha uma dimensão jurídica que o Estado ou a coletividade não pode sacrificar ad nutum. O Estado de Direito, mesmo

em sua origem, já representava uma relevante superação das estruturas do Estado de Polícia, que negava ao cidadão toda

garantia de liberdade. Cf. LOPES JUNIOR, 2011, p. 12.

Page 31: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

29

nada nos socorre sem que as garantias constitucionais sejam observadas. Por vezes, as normas e

princípios da Magna Carta são afastados em nome de dispositivos infraconstitucionais, como

exemplo as normas da lei de drogas sobre o interrogatório.89

Quanto ao aspecto pontual da verdade no processo, seria percebida

uma diferenciação em sua busca ao longo da história, refletida nos sistemas processuais penais

existentes, bem como na postura da iniciativa instrutória do juiz. Neste aspecto, seria encontrado

um juiz mais ativo na colheita da prova, frente a um modelo de sistema processual penal

inquisitório, ao passo que um juiz de postura mais passiva, como gestor do processo e

garantidor dos direitos do acusado, estaria presente no processo de matriz acusatória.

A mencionada busca pela verdade apresentaria ainda aspectos

decisivos na atuação do juiz perante o processo. Seria ele integrante dos quadros da acusação,

concorrendo com o órgão acusador, como fonte de defesa social, revestindo-se de caráter

“justiceiro”? Ou seria o juiz um mero espectador do jogo entre as partes, atuando apenas quando

provocado, sendo sua postura frente ao processo penal equiparada a uma “samambaia”? Estes

dois extremos refletiriam bem a trilha pela qual devemos caminhar neste estudo.

Ainda sobre a verdade, seria válida sua busca desmedida, procurada “a

qualquer custo”? Neste tema, as garantias constitucionais fundamentais do cidadão seriam

entendidas também como fonte de limitação ao poder punitivo estatal. A verdade real buscada

pela inquisição já não mais representaria o ideal de justiça no processo. O juiz teria deixado de

ser entendido como aplicador da lei divina, transformando-se em garantidor dos direitos do

acusado.

1.4. Garantismo, minimalismo e transformação social

Entretanto, de que forma adequar as garantias constitucionais dos

acusados em geral com os anseios da sociedade que clama por mais segurança e redução nos

índices de criminalidade? Por sua vez, o Estado em busca de uma efetiva resposta à violação da

89

A Lei Federal de n. 11.343/06 determina a realização do interrogatório do denunciado como primeiro

ato durante a audiência de instrução e julgamento, nos termos do artigo 57 da referida lei. Entendemos

que este dispositivo fere o princípio do contraditório e da ampla defesa estampados na Constituição

Federal de 1988. Entretanto, esta não é a posição de nossos tribunais: “1. Nos termos do art. 394, § 2º,

salvo disposições em contrário do Código de Processo Penal ou de lei especial, o procedimento comum

será aplicado a todos os processos. Logo, possuindo a Lei 11.343/06 rito próprio, afastadas estão, em

regra, as normas do procedimento comum. 2. O art. 57 da Lei 11.343/06 dispõe que o interrogatório

inaugura a audiência de instrução e julgamento, ao contrário do rito do Estatuto Processual Penal que o

fixou como último ato da instrução, nos termos do seu art. 400. 3. In casu, denota-se que o

interrogatório foi realizado nos termos estabelecidos no rito especial da Lei de Drogas, razão por que

não se verifica a existência de nulidade em face da alegada inobservância do art. 400 do CPP”, cf. STJ,

HC 152.776 - RS, 5ª Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 17.11.2011. Disponível em:

<http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 20 fev. 2012.

Page 32: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

30

ordem social poderia, da mesma forma que o criminoso, violar a ordem social, na medida em

que não observa as garantias previstas na Constituição Federal? Seria o poder do Estado durante

a persecutio criminis in judicio ilimitado? Seria legítima a busca pela justiça “a qualquer

custo”?

O italiano Luigi Ferrajoli teria desenvolvido a Teoria do Garantismo

Penal após ter vivenciado ativamente anos difíceis em seu país, onde participou de debates e

escreveu artigos na imprensa “na defesa do respeito à legalidade, durante anos em que uma

imprevista e imprevisível explosão de violência política [...] provocou a legislação de

emergência”.90

Pelo que aqui se verificaria, segundo Bobbio, Ferrajoli desenvolveu sua teoria

exatamente para impor limites à voracidade punitiva estatal, em especial durante um período de

instabilidade social,91

/ 92

na medida em que o poder público precisava apresentar uma resposta à

sociedade daquele país. Entretanto, esta resposta necessária não deveria, segundo o

entendimento do nosso autor, afastar-se da vinculação aos direitos e garantias fundamentais dos

acusados.

Quanto ao que se referiria ao Brasil, teríamos vivido um período de

incertezas durante o regime militar. A redemocratização do Estado exigia uma nova ordem

social. O Direito ofereceria, em 1988, uma resposta aos anos de ferro na forma da chamada

Constituição Cidadã por proteger, ao menos teoricamente, os interesses e/ou direitos do povo.

As festejadas garantias constitucionais ao cidadão apresentam-se na forma de princípios.93

/ 94

Da conjugação do direito penal com a Constituição poderíamos extrair a conclusão de que doze

são os mais relevantes princípios constitucionais penais, que funcionariam como limites

internos do poder punitivo. Alguns estariam expressamente contemplados na Constituição (são

explícitos a dignidade, igualdade, legalidade, etc.), outros, implícitos:

90 BOBBIO, Norberto. Cf. Prefácio in FERRAJOLI, 2002, p. 11. 91 No final da década de 1970 e início da próxima, as reformas do sistema penal italiano não puderam ser levadas adiante “por causa

dos graves problemas enfrentados por ataques terroristas e outras manifestações do crime organizado, realizados contra

instituições democráticas”, cf ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011, p. 108-109. Para melhor visão sobre este período da história, especificamente em relação à atuação das

famosas máfias italianas, cf. FALCONE, Giovanni; PADOVANI, Marcelle. Coisas da cosa mostra: a máfia vista por seu pior

inimigo. Tradução de Luís de Paula. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. Destaque-se ainda, como alerta, o fato de que o Juiz de Direito italiano possuía poderes instrutórios, em forma diferente do sistema penal brasileiro, cf. FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 517.

92 “A emergência do terrorismo, a crescente burocratização e homologação dos partidos e sindicatos, a crise de sua capacidade de

representação das demandas sociais e de mediação de conflitos, a concentração oligopolista da informação e a sua penetração e entrelaçamento com os partidos, o ocaso, enfim, das perspectivas passadas de transformação. Este fechamento, como sempre

ocorre, produziu a crise de legalidade e das garantias jurídicas [...] e até mesmo fenômenos de infidelidade constitucional,

manifestados no desenvolvimento de tramas subversivas e de tentativas golpistas”. Cf. FERRAJOLI, 2002, p. 754. 93 Os princípios - diferentemente das regras - não prescrevem uma determinada conduta, porque não contêm a especificação

suficiente de uma situação fática e sua correlativa consequência jurídica. Os princípios expressam critérios e razões para uma determinada decisão, mas não a definem detalhadamente. Distintamente do que se passa com as regras, os princípios podem se

realizar em maior ou menor medida, porque são “mandamentos de otimização” que têm uma “dimensão de peso”. Cf. Santiago

MIR PUIG, seguindo a DWORKIN (Derecho penal: parte general, cit., p. 261), apud GOMES, Luiz Flávio. Limites do “ius puniendi” e bases principiológicas do garantismo penal. Disponível em: <http://www.lfg.blog.br>. Acesso em: 20 fev. 2012.

94 Abandonando a teoria da metodologia jurídica tradicional que distinguia entre princípios e normas, “os princípios e regras são

duas espécies de normas e que a distinção entre princípios e regras é uma distinção entre duas espécies de normas.” Entretanto, o mesmo autor adverte que, quanto aos chamados “princípios-garantia” é lhes atribuída uma “densidade de autêntica norma jurídica

e uma força determinante, positiva e negativa”, Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da

constituição. 7. ed. 2. reeimp. Coimbra: Almedina, 2003, p. 1160 e 1167.

Page 33: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

31

(a) princípios relacionados com a missão fundamental do Direito penal: (1)

princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos e (2) princípio da

intervenção mínima; (b) princípios relacionados com o fato do agente: (3)

princípio da exteriorização ou materialização do fato, (4) princípio da

legalidade do fato e (5) princípio da ofensividade do fato; (c) princípios

relacionados com o agente do fato: (6) princípio da responsabilidade pessoal,

(7) princípio da responsabilidade subjetiva, (8) princípio da culpabilidade e

(9) princípio da igualdade, e (d) princípios relacionados com a pena: (10)

princípio da proibição da pena indigna, (11) princípio da humanização das

penas e (12) princípio da proporcionalidade, sendo certo que este último

possui várias dimensões: princípio da necessidade concreta da pena, princípio

da individualização da pena, princípio da personalidade da pena, princípio da

suficiência da pena alternativa e princípio da proporcionalidade em sentido

estrito. 95

Ademais, merece destaque o princípio da dignidade da pessoa

humana, que é considerado como

a base ou o alicerce de todos os demais princípios constitucionais penais.

Qualquer violação a outro princípio afeta igualmente o da dignidade da

pessoa humana. O homem (o ser humano) não é coisa, não é só cidadão, é,

antes de tudo, pessoa dotada de direitos, por força da vinculação normativa

da Constituição e do Direito humanitário internacional.96

A dignidade humana, sem sombra de dúvida, é a base ou o alicerce de todos

os demais princípios constitucionais penais. Qualquer violação a outro

princípio afeta igualmente o da dignidade da pessoa humana. O Homem (sic)

não é coisa, é, antes de tudo, pessoa dotada de direitos, sobretudo perante o

poder punitivo do Estado.97

Destaque-se aqui que os princípios ostentariam plena eficácia

normativa, pois seriam verdadeiras normas e não meras orientações procedimentais a nortear

toda ação do Poder Público.98

Após a verificação dos princípios norteadores do Direito e processo

penal, resta necessária ainda uma distinção importante. O garantismo não se confunde com o

minimalismo, sendo certo, entretanto, que ambos compartilham os mesmos objetivos, na

medida em que visualizam a mínima atuação do Estado. O primeiro prega restringir ao mínimo

necessário o poder estatal punitivo em face da ampliação das liberdades do homem, entendidas

como garantias, ao passo que o segundo pretende que o Estado atue somente na defesa de bens

jurídicos relevantes, em oposição ao direito penal máximo.

95

GOMES, Luiz Flávio. Limites do “ius puniendi” e bases principiológicas do garantismo penal.

Disponível em: <http://www.lfg.blog.br>. Acesso em: 20 fev. 2012. 96

Id. 97

Id. 98

“Os princípios (especialmente os constitucionais) são normas fundamentais ou gerais do sistema. São

fruto de uma generalização sucessiva e constituem a própria essência do sistema jurídico, com

inegável caráter de norma.” Cf. LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade

constitucional. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 108.

Page 34: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

32

A diferença entre o modelo de direito penal mínimo e o de direito

penal máximo residiria no fato de serem ambos os pontos extremos da resposta penal, na

medida em que o primeiro apresentaria limitação máxima ao poder punitivo, já o segundo, ao

reverso, apresentaria o poder punitivo estatal ilimitado.99

/

100 A certeza perseguida pelo direito

penal máximo seria no sentido de que nenhum culpado fique sem punição, à custa da incerteza

de que algum inocente possa ser punido. A certeza perseguida pelo direito penal mínimo seria,

ao contrário, que nenhum inocente seja punido, à custa da incerteza de que algum culpado reste

impune.101

/ 102

A noção de direito penal máximo exigiria a inobservância das

garantias às quais se arvoram em face do acusado, o que traria uma noção de tensão com os

princípios elementares de um Estado de Direito Democrático, em especial o traçado por nossa

Constituição Federal de 1988. “Assim, direito penal e processual se complementam no sentido

de funcionar contra o discurso que o sustenta, ou seja, o das garantias de um Estado

democrático de direito”.103

Desta forma, garantista “é o sistema penal em que a pena fica excluída

da incerteza e da imprevisibilidade de sua intervenção, ou seja, que se prende a um ideal de

racionalidade, condicionado exclusivamente na direção do máximo grau de tutela da liberdade

do cidadão contra o arbítrio punitivo”.104

Retomado o conceito de garantismo, a grande questão que enfrentaria

a teoria seria como equilibrar a incoerência existente entre as previsões garantistas do sistema

penal e a sua efetivação perante o caso concreto, na medida em que, como dito, o excesso de

garantias poderia caminhar para a impunidade e o excesso do poder estatal punitivo, sem

garantias fundamentais ao acusado, na forma de abuso do direito de punir, poderia caminhar

99

CARVALHO, Salo. Pena e garantias. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 82-84. 100

“Na visão do Direito Penal Máximo, os direitos e garantias individuais do acusado seriam

interpretados como entraves burocráticos a um sistema sedento por “justiça” e notadamente falho por

punir pouco e de forma branda”. Cf. SILVA FILHO, Edson Vieira da. A sedução do sistema

inquisitorial no sistema penal. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, n. 25, jul./dez. 2007,

p. 80. 101

FERRAJOLI, 2002, p. 83. 102

Como expoentes de uma teoria minimalista, podemos apontar Louk Hulsman, Eugênio Raúl Zaffaroni,

Luigi Ferrajoli, Alessandro Baratta e Juarez Cirino dos Santos. Cf. VIEIRA, Edson (Org.). O direito

penal e suas faces: da modernidade ao neoconstitucionalismo. v. 1. O direito penal visto em uma

perspectiva minimalista. Curitiba: CRV, 2012. Como contraponto, por uma visão de direito penal

máximo, cf. VIEIRA, Edson (Org.). O direito penal e suas faces: da modernidade ao

neoconstitucionalismo. v. 2. O direito penal visto em uma perspectiva máxima. Ainda sem publicação. 103

SILVA FILHO, Edson Vieira da. A sedução do sistema inquisitorial no sistema penal. Revista da

Faculdade de Direito do Sul de Minas, n. 25, jul./dez. 2007, p. 80. 104

GOMES, Luiz Flávio. Princípios constitucionais reitores do direito penal e da política criminal.

Disponível em: <http://www.lfg.blog.br>. Acesso em: 20 fev. 2012.

Page 35: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

33

para o autoritarismo. Então como é possível ampliar as liberdades e, ao mesmo tempo, restringir

o poder estatal?

Mínima intervenção penal com as máximas garantias, nisso pode ser

sintetizado o garantismo de Ferrajoli,105

que está fundado na irrestrita observância de dez

axiomas106

sequenciais e lógicos,107

acompanhados da respectiva tradução:

(A1) Nulla poena sine crimine (não há pena sem crime); (A2) Nullum

crimen sine lege (não há crime sem lei); (A3) Nulla lex (poenalis) sine

necessitate (não há lei penal sem necessidade); (A4) Nulla necessitas sine

iniuria (não há necessidade sem ofensa ao bem jurídico); (A5) Nulla iniuria

sine actione (não há ofensa ao bem jurídico sem conduta); (A6) Nulla actio

sine culpa (não há conduta penalmente relevante sem culpa, ou seja, sem

dolo ou culpa); (A7) Nulla culpa sine judicio (não há culpabilidade ou

responsabilidade sem o devido processo criminal); (A8) Nullum judicium

sine accusatione (não há processo sem acusação; nemo iudex sine actori);

(A9) Nulla accusatio sine probatione (não há acusação sem provas, ou seja,

não se derruba a presunção de inocência sem provas válidas) e (A10) Nulla

probatio sine defensione (não há provas sem defesa, ou seja, sem o

contraditório e a ampla defesa).108

A sequencia principiológica109

apresentada por Ferrajoli se apresenta

como instrumento de graduação de todo o sistema penal, na medida em que funciona como

sendo as “regras do jogo”110

nos Estados Democráticos de Direito. Configurariam assim,

sistemas garantistas ou autoritários, segundo este critério.

Contudo, apesar de o modelo garantista ferrajoliano mostrar-se atual,

em 1794, conforme já sustentado, de matriz iluminista, nos deparamos com seus fundamentos

105

GOMES, Luiz Flávio. Princípios constitucionais reitores do direito penal e da política criminal.

Disponível em: <http://www.lfg.blog.br>. Acesso em: 20 fev. 2012. 106

Axioma: Premissa imediatamente evidente que se admite como universalmente verdadeira sem

exigência de demonstração. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio

eletrônico – século XXI. São Paulo: Nova Fronteira, 1999. 107

Sobre as condições metodológicas de uma teoria axiomatizada, remetemos a FERRAJOLI, Luigi.

Teoria assiomatizzada del diritto. Parte generale. Milano: Giuffrè, 1970 e FERRAJOLI, Luigi. La

semantica dela teoria del diritto, cit., p. 104. Em artigo publicado na revista Doxa, Ferrajoli apresenta

alguns parágrafos extraídos dos primeiros três capítulos de uma Teoria Axiomatizada do Direito, com

publicação futura pela editora Laterza sob o título Principia iuris. Teoria giuridica della democrazia.

Cf. FERRAJOLI, Luigi. Expectativas y garantías. Primeras Tesis de uma teoría axiomatizada del

derecho. Doxa – Cuadernos de Filosofia del Derecho, Alicante (ES), n. 20, p. 235- 278, 1997.

Disponível em <http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/12493875355693728543657/cua

derno20/Doxa20_08.pdf>. Acesso em: 30 jan. 2013. 108

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,

Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 91. 109

Dos dez axiomas apontados acima derivam, mediante silogismos triviais, quarenta e cinco teoremas

que, ao todo, após todas as possíveis conjugações, somam cinquenta e seis teses, das quais dez

primitivas e as demais derivadas, que conjuntamente configuram o modelo penal garantista. Cf.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,

Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 92. 110

CARVALHO, Salo. Pena e garantias. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 82-84.

Page 36: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

34

na obra de Cesare Beccaria.111

No início deste livro, observa-se a máxima de que “só as leis

podem fixar as penas de cada delito e que o direito de fazer leis penais não pode residir senão na

pessoa do legislador”,112

remetendo-a aos dois primeiros axiomas propostos por Ferrajoli, os

quais depositam na lei a função de definir a pena aos respectivos delitos.

Beccaria afirma que “é melhor prevenir os crimes que ter de puni-los;

e todo legislador sábio deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo”. Observa-se, então,

que a aplicação da lei penal só acontece se não se conseguir a prevenção do delito, remetendo à

ideia de subsidiariedade do direito penal, assim como a exigibilidade da ofensa ao bem jurídico,

que consiste em “crimes que pertencem ao homem natural e que violam o contrato social”,113

remetendo aos axiomas Nulla iniuria sine actione e Nulla necessitas sine iniuria.

Na mesma linha, a exigibilidade da culpa deve ser demonstrada por

meio de provas válidas “que demonstram positivamente que é impossível que o acusado seja

inocente […] embora deva, se é inocente, ter meios de justificar-se”.114

O direito de justificar-se

em relação à prova incriminadora, embora de forma mitigada, remete à ideia dos princípios do

contraditório e da ampla defesa. Demonstra-se assim que no século XVIII, com Beccaria,

portanto, o anseio por garantias aos indivíduos já se mostrava presente.

Observados os princípios minimalistas entrelaçados aos ideais

garantistas, possibilita-se agora o estudo de um sistema penal minimalista garantista, assim

apresentado:

1) o Direito penal tem por finalidade (precípua) a exclusiva proteção de bens

jurídicos (princípio da proteção exclusiva de bens jurídicos); 2) jamais pode o

Direito penal ter incidência senão quando absolutamente necessário

(princípio da intervenção mínima - Nulla lex poenalis sine necessitate: não há

lei penal sem necessidade); 3) o Direito penal (do fato) exige

obrigatoriamente a exteriorização de um fato criminoso (princípio da

exteriorização ou materialização do fato), mesmo porque não há pena sem

crime - Nulla poena sine crimine - e não existe crime sem conduta - Nullum

crimen sine actione; 4) fato previsto na lei (princípio da legalidade do fato -

Nullum crimen sine lege – fato formalmente típico); 5) fato ofensivo a bens

jurídicos de terceiros (princípio da ofensividade do fato - Nulla necessitas

nullum crimen sine iniuria – fato materialmente típico); 6) fato próprio, ou

seja, ninguém pode ser punido por fato criminoso alheio (princípio da

responsabilidade pessoal); 7) fato exteriorizado por meio do dolo ou da culpa

(princípio da responsabilidade subjetiva – Nullum crimen nulla actio sine

culpa); 8) a sanção penal só pode incidir, ademais, contra o agente com

capacidade de se motivar de acordo com a norma e de se comportar de forma

distinta, conforme o Direito (princípio da culpabilidade); 9) não há

culpabilidade (não há comprovação da responsabilidade penal) sem o devido

111

BECCARIA, 2000. 112

Id. 113

Id. 114

Id.

Page 37: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

35

processo criminal - Nulla culpa sine judicio; 10) não há processo criminal

sem acusação - Nullum judicium sine accusatione ou nemo iudex sine actori

(sistema acusatório); 11) não há acusação sem provas, ou seja, não se derruba

a presunção de inocência sem provas válidas e incriminatórias - Nulla

accusatio sine probatione; 12) não há provas sem defesa, ou seja, sem o

contraditório e a ampla defesa – Nulla probatio sine defensione; 13) é

intolerável qualquer tipo de tratamento desigual discriminatório, isto é, os

iguais devem ser tratados igualmente, os desiguais desigualmente (princípio

da igualdade); 14) está proibida a cominação ou aplicação de pena que seja

indigna (princípio da proibição da pena indigna); 15) a cominação, aplicação

e execução das penas devem se orientar pelo princípio da humanização e

seguir rigorosamente a proporcionalidade, que se manifesta por meio de

várias dimensões: 16) princípio da necessidade concreta da pena; 17)

princípio da individualização da pena; 18) princípio da personalidade ou

pessoalidade da pena; 19) princípio da suficiência da pena alternativa e 20)

princípio da proporcionalidade em sentido estrito.115

Desta conjugação, retomando apontamento anterior, o garantismo de

Ferrajoli surgiria pelo “descompasso” existente entre a realidade praticada pelas instituições

jurídicas em suas atividades cotidianas que, insistentemente, negariam os princípios e as

previsões legais que limitam a atuação destas mesmas instituições.116

Este “descompasso” teria

reflexos quanto à práxis que sustenta, na medida em que o garantismo penal em suas várias

facetas proporcionaria condições para que as violações cotidianas das liberdades, direitos e

garantias fundamentais, reconhecidas, pudessem ocasionar a nulidade destas mesmas práticas

abusivas. Mais ainda. Seria justificável a observância da matriz garantista do processo penal por

força do surgimento de tendências neo-absolutistas, especialmente quando referentes à possível

legislação de emergência, como teria ocorrido na Itália nos anos 80 do século passado. Estas

legislações surgiriam como o pretexto de defesa da sociedade, mas agiriam em afetiva violação

dos direitos e garantias fundamentais. Em outro sentido ainda, o garantismo poderia efetivar-se

como critério de legitimidade de atuação das instituições e como norte a ser alcançado por todo

sistema penal, em verdadeiro balizamento garantista. No Brasil, haveria uma inflação legislativa

penal que visaria resolver os problemas da sociedade criminalizando todas as condutas

entendidas legislativamente como nocivas. Como exemplo recente, as alterações perpetradas no

Código de Trânsito Brasileiro, pelas quais deveria o cidadão ser coagido a produzir prova contra

si mesmo ao submete-se ao teste do etilômetro. Neste contexto específico, assegurando sua

função de guardião da constituição o Supremo Tribunal Federal teria adotado uma postura

115

GOMES, Luiz Flávio. Princípios constitucionais reitores do direito penal e da política criminal.

Disponível em: <http://www.lfg.blog.br>. Acesso em: 20 fev. 2012. 116

Luigi Ferrajoli centra sua abordagem partindo do pressuposto de que o garantismo surge exatamente

pela incoerência existente entre a normatização estatal e as práticas que deveriam estar fundamentadas

nelas. No aspecto penal, destaca o autor que as atuações administrativas e policiais andam em

descompasso com os preceitos estabelecidos nas normas jurídicas estatais. In: FERRAJOLI, Luigi:

Derecho y razón – Teoría del garantismo penal. Madrid: Trotta, 1998. p. 851. Então, a ideia do

garantismo é, de um modo geral, a busca de uma melhor adequação dos acontecimentos do mundo

empírico às prescrições normativas oficiais. Cf. MAIA, Alexandre da. O garantismo jurídico de Luigi

Ferrajoli: notas preliminares. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br>. Acesso em: 20 fev. 2012.

Page 38: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

36

garantista do princípio nemo tenetur se detegere. A postura do Supremo aliada a forte anseio

popular, teria culminado com nova reforma voltada para a preservação dos direitos e garantias

fundamentais. Ao que parece, ainda neste mesmo exemplo, hoje teria sido encontrado um

caminho de satisfação popular e preservação das liberdades particulares do cidadão.

Ainda na linha de adequação à práxis, fica a ressalva de que o termo

garantismo possui várias acepções,117

e que, conforme Ferrajoli, poderiam construir o que

chamou de uma „Teoria Geral do Garantismo‟, afastada, inclusive, do direito penal.118

O

princípio da legalidade como base do Estado de Direito é o primeiro norte do garantismo,

proporcionando a observância do Estado às normas garantistas. Igualmente, validade e

efetividade também se evidenciam no pensamento do autor, na medida em que existem graus de

garantismo,119

dependendo do grau de observação.

O garantismo seria então, no entender de Ferrajoli,

uma forma de direito que se preocupa com aspectos formais e substanciais

que devem sempre existir para que o direito seja válido. Essa junção de

aspectos formais e substanciais teria a função de resgatar a possibilidade de

se garantir, efetivamente, aos sujeitos de direito, todos os direitos

fundamentais existentes. É como se a categoria dos direitos fundamentais

fosse um dado ontológico para que se pudesse aferir a existência ou não de

um direito; em outras palavras, se uma norma é ou não válida.120

Observe-se ainda questão importante a ser enfrentada. O garantismo

de Ferrajoli é, por vezes, confundido com mero formalismo ou impunidade,121

conforme já

apontado. A teoria consiste na tutela dos direitos fundamentais, cujo desfrute por parte de todos

constitui a base substancial da democracia. Dessa afirmação de Ferrajoli é possível extrair um

imperativo básico, relembrando: o Direito existe para tutelar os direitos fundamentais.122

117 MAIA, op. cit. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi

Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010. 118 Possível aplicação a sistemas estruturalmente análogos ao penal, como o civil, administrativo, constitucional, internacional e do

trabalho. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan

Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 21. 119 A exclusão ou inclusão de premissas garantistas em um sistema penal é que o define como de maior ou de menor grau de

garantismo, na medida em que se aproximam ou se afastam do modelo idealizado, cf. op. cit. p. 95. O grau de garantismo de um

sistema penal pode ser definido ainda, segundo Ferrajoli, como o “conjunto de vínculos normativos” que minimizam os espaços

decisórios, reservados mais ou menos irredutivelmente à atividade do juiz, cf. op. cit. p. 532. 120 MAIA, op. cit. 121 “as garantias consistem em mecanismos que, porquanto a sua vez normativos, são direcionadas a assegurar a máxima

correspondência entre normatividade e efetividade da tutela dos direitos. Entende-se, nesse sentido, o “garantismo” não tem nada

a ver com o mero legalismo ou processualismo. Aquele [garantismo] consiste sim na satisfação dos direitos fundamentais: o quais

– da vida à liberdade pessoal, da liberdade civil e política às expectativas sociais de subsistência, dos direitos individuais aos coletivos – representam os valores, os bens e os interesses, matérias e pré-políticos, que fundam e justificam a existência daqueles

artifícios – como os chamou Hobbes – que são o direito e o Estado, e cujo gozo por todos forma a base substancial da democracia.

Cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 22.

122 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr,

Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 312. LOPES JUNIOR, Aury. Fundamento da existência do processo penal: instrumentalidade constitucional. Disponível em: <http://jus.com.br>. Acesso em: 20 fev. 2012. LOPES

JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p.

247.

Page 39: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

37

No prólogo da obra de Ferrajoli, Bobbio define as grandes linhas de

um modelo geral de garantismo:

Antes que nada, elevándolo a modelo ideal del estado de derecho, entendido

no sólo como estado liberal protector de los derechos sociales; en segundo

lugar, presentándolo como una teoría del derecho que propone un

iuspositivismo crítico contrapuesto al iuspositivismo dogmático; y, por

último, interpretándolo como una filosofia política que funda el estado sobre

los derechos fundamentales de los ciudadanos y que precisamente del

reconocimiento y de la efectiva protección (¡no basta el reconocimiento!) de

estos derechos extrae su legitimidad y también la capacidad de renovarse sin

recurrir a la violencia subversiva.123

Ferrajoli trata ainda de uma questão “ético-política” norteadora da

legitimidade de seus preceitos, na busca de uma justificativa externa. Afirma o autor que “tais

elementos políticos são as bases fundamentais para o surgimento dos comandos jurídicos do

Estado”. Por sua vez, a norma jurídica somente seria válida se estivesse em conformidade com

os direitos fundamentais normatizados na Constituição.124

Na mesma medida, como contraponto, a questão da observância e

proteção efetiva dos direitos fundamentais traz consigo a necessidade imperiosa de tecer mais

um comentário. Estes mesmos direitos fundamentais, no que consistiriam exatamente? Maia125

chama a questão de “vazio ontológico”. Para o mesmo autor, a teoria de Ferrajoli seria fundada

em conceito aberto, podendo servir de alicerce a regimes autoritários, os quais elegeriam os

direitos fundamentais que melhor lhes aprouvesse. Desta forma, todas as formas de poder,

democráticas ou não, estariam legitimadas pela teoria de Ferrajoli.126

Sopesados os principais aspectos do Garantismo Penal de Ferrajoli,

resta-nos direcionar nosso estudo ao ponto onde a teoria do garantismo penal refere-se,

estritamente, às garantias processuais inseridas na Constituição Federal. Para tanto, devemos

apresentar ao leitor alguns números.

123 Primeiro, elevando-o a um modelo ideal do Estado de Direito, entendido não só como estado liberal protetor dos direitos sociais,

em segundo lugar, apresentando-a como uma teoria do direito que propõe um juspositivismo crítico em oposição a um

juspositivismo dogmático; e, finalmente, interpretando-o como uma filosofia política que funda o Estado sobre os direitos fundamentais dos cidadãos e que, precisam de reconhecimento e de efetiva protecção (não basta o reconhecimento!) desses

direitos extrai-se sua legitimidade e também a capacidade de renovar-se sem recorrer a violência subversiva. FERRAJOLI, 1998.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr,

Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010. 124 Norma jurídica não no sentido de lei, mas no sentido de resultado da interpretação da lei. Diferente ainda da decisão jurídica. 125 MAIA, Alexandre da. O garantismo jurídico de Luigi Ferrajoli: notas preliminares. Disponível em:

<http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/11690-11690-1-PB.htm>. Acesso em: 20 fev. 2012. 126 Em um estudo posterior à obra Derecho y Razón, Ferrajoli apresenta uma definição teórica, formal ou estrutural de Direitos

fundamentais. Direitos fundamentais são, portanto, segundo esta definição, “aquellos derechos subjetivos que corresponden

universalmente a „todos‟ los seres humanos en cuanto dotados del status de personas,de ciudadanos o personas con capacidad de

obrar.” (aqueles direitos subjetivos que correspondem universalmente a “todos” os seres humanos enquanto dotados do status de pessoas, de cidadãos ou pessoas com capacidade jurídica.). cf. BORTOLI, Adriano de. Garantismo Jurídico, Estado

Constitucional de Direito e Administração Pública. Artigo publicado nos anais do Conpedi, Manaus, disponível em

<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/adriano_de_bortoli.pdf>. Acesso em 29 jan. 2013.

Page 40: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

38

O Brasil possuiria hoje uma população carcerária de mais de meio

milhão de pessoas, da qual cerca de quarenta e sete por cento é composta por presos

provisórios.127

Verifica-se, pelos números apresentados, que o sistema penal está enviando uma

grande quantidade de pessoas ao cárcere, sem perder de vista o fato de que a população

carcerária mais que dobrou nos últimos dez anos. Assim, resta importante o balizamento do

sistema penal como um todo. Resta ainda imperioso que se pense em um sistema penal capaz de

punir, após oferecer ao acusado todas as garantias que a Constituição lhe assegura,

principalmente diante de um quadro de pessoas presas que aumenta vertiginosamente. Impõe-se

harmonizar a realidade do sistema prisional brasileiro com as normas constitucionais que

garantam ao acusado em geral a observância de regras mínimas de proteção em detrimento de

um entendimento do cárcere como vingança ao apenado pela infração praticada.

Sabe-se das precárias condições do cumprimento da pena no Brasil. A

sentença penal condenatória retiraria do apenado a liberdade e seus direitos políticos. As demais

condições de sobrevivência restariam preservadas, na medida em que a dignidade da pessoa

humana estaria presente mesmo em guarida aos mais desafortunados e esquecidos pelo poder

público. Os direitos fundamentais não atingidos pela condenação deveriam ser garantidos

também aos reeducandos, priorizando seu regresso ao convívio social.

As violações de direitos fundamentais daquele que se encontra na

condição de objeto da persecução penal ou mesmo daquele que já tenha sido atingido pela

sentença condenatória, podem ser relembradas historicamente até mesmo pela prática da tortura,

na medida em que a mesma teria servido como meio legal de prova. Atualmente tal prática

odiosa, apesar de configurar fato típico, ainda seria relatada em diversas regiões.128

Não se pode ainda entender o garantismo penal como abolicionismo

penal129

conforme proposto por Hulsman,130

mas é preciso reforçar que garantismo penal e

127

Exatos 513.802 presos em junho de 2011. Em junho de 2006, eram 401.236 presos, ao passo que em

2001, eram 233.859 as pessoas presas no Brasil. Cf. BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento

Penitenciário Nacional. Sistema Integrado de Informações Penitenciárias – InfoPen. Disponível em:

<http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509C

PTBRIE.htm>. Acesso em: 20 fev. 2012. 128

SABADELL, Ana Lúcia. Evoluções e rupturas no processo penal. In: ANDRADE, Vera Regina

Pereira de. Verso e reverso do controle penal. Florianópolis: Boiteux, 2002. 129

O que pode ser verificado, neste sentido, na obra Direito e Razão de Ferrajoli é a defesa pelo mesmo

da abolição da pena privativa de liberdade e suas alternativas, cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão:

teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares

e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 366 e 377-381. 130

HULSMAN, Louck. CELIS, Jaqueline Nernard de. Penas perdidas: o sistema penal em questão.

Tradução de Maria Lúcia Karan. 2. ed. Rio de Janeiro: Luan, 1997.

Page 41: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

39

minimalismo131

caminham pela mesma linha. Trilha-se pelo estudo da defesa das garantias

processuais protegidas pela Constituição da República. Igualmente, insiste-se, não

compartilharia com a ideia de impunidade, ao reverso, defenderia o devido processo legal, a

ampla defesa e, principalmente, a presunção de inocência, bem como que é possível punir,

garantindo a proteção dos direitos e garantias fundamentais.

Ademais, na hipótese do Estado observar, investido no exercício de

seu jus persequendi todas as garantias ao acusado, seria possível sustentar ainda que, ao final,

sobrevindo uma condenação, esta ficaria lastreada por uma maior legitimidade. Ciente da

condenação, a práxis informa que a sociedade legitima a ação estatal, pois está certa de que

foram observadas todas as garantias processuais inerentes à defesa do acusado. Na mesma linha,

o apenado teoricamente também se conforma com o decisum, pois convicto de que teve ao seu

dispor todos os meios de provar sua inocência, bem como não foi vítima de arbitrariedades,

desmandos e violências.

Seguindo norteados pelo repúdio ao autoritarismo, merece destaque

aqui o princípio da presunção de inocência ou da presunção de não culpabilidade.132

A

Constituição da República de 1988 asseguraria entre os direitos e garantias individuais que

“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.

A presunção de inocência atuaria como garantia de tratamento do acusado ao longo do processo,

não permitindo que ele receba tratamento como se culpado fosse.133

Assim, como exemplo, seria impossível, no processo penal brasileiro,

a existência da “execução provisória da pena”, na medida em que esta apontaria nítida violação

ao princípio da presunção de inocência. Entretanto, sabemos que esta prática vem sendo

utilizada em larga escala em nosso país, inclusive por força de entendimento do Supremo

Tribunal Federal (STF).134

Desta forma, o preso provisório estaria antecipando os efeitos de

eventual condenação, violando a garantia da presunção de inocência e lotando o sistema

carcerário. Referimo-nos aqui aos presos preventivamente cuja sanção cautelar seria

131

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal.

Tradução de Vania Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. 132

Não há diferença de conteúdo entre presunção de inocência e presunção de não - culpabilidade. As

expressões “inocente” e “não-culpável” constituem somente variantes semânticas de um idêntico

conteúdo. É inútil e contraproducente a tentativa de apartar ambas ideias – se é que isto é possível –,

devendo ser reconhecida a equivalência de tais fórmulas. Procurar distingui-las é uma tentativa inútil

do ponto de vista processual. Cf. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Garantias processuais e o

sistema acusatório. In: Direito processual penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. 133

Id. 134

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula 716 - Admite-se a progressão de regime de cumprimento

da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em

julgado da sentença condenatória.

Page 42: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

40

desnecessária, mas apresenta-se como a única medida possível, em que pese os esforços da

novel lei n. 12.403/2011135

no sentido de substituir a prisão por outras medidas cautelares.

Somente a título de argumentação, seria a novel lei, inclusive, juntamente com a reforma do

processo penal brasileiro de 2008,136

apontamento importante no sentido garantista, na medida

em que a primeira afasta o cidadão da prisão desnecessária, impondo medidas cautelares

diversas.

O estudo da Teoria do Garantismo Penal de Ferrajoli ainda seria

importante e seus ideais garantistas transcendem a nossos dias.137

Eventualmente relegá-la à

teoria ultrapassada seria, talvez, fechar os olhos para a práxis que sustenta. Muitas práticas

penais e processuais penais atuais remontariam, certamente, à escola da exegese.138

Quando

presenciamos flagrantes violações aos direitos fundamentais, mesmo em um Estado que se

intitula Democrático de Direito, percebemos a contemporaneidade da obra. Apesar de vivermos

em pleno século XXI, ainda existiriam sistemas penais extremamente autoritários que

reduziriam o homem ao mais longínquo estado de natureza.

Vimos que o modelo penal garantista seria abandonado em larga

escala, na medida em que reflete parâmetro de racionalidade, justiça e legitimidade da

135

BRASIL. Lei n. 12.403, de 04 de maio de 2011. Altera dispositivos do CPP sobre prisões e dá outras

providências. Brasília: Diário Oficial da União, 05 maio 2011. 136

Reforma promovida pelas Leis Federais de n. 11.690/08 e 11.719/08. 137

Há quem sustente, além dos vagos apelos à impunidade, que a Teoria do Garantismo Penal de Luigi

Ferrajoli teria herdado do positivismo o fato de que não encontraria solução à problemática da

discricionariedade do julgador, na medida em que esta representaria espaços de indeterminação.

Mesmo reconhecendo a discricionariedade em favor do réu, o garantismo deixaria “depender do

arbítrio do juiz definir o que seja pró ou contra”. Cf. PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do

garantismo: uma proposta hermenêutica de controle da decisão penal. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2013, p. 183. Por sua vez, haveria afirmação incisiva neste mesmo sentido, referindo-se

agora expressamente ao Brasil, qualificando como “gap” do garantismo, elevando a questão como

“ponto central da fragilização do direito e, portanto, das garantias processuais penais”. A eventual

solução estaria na hermenêutica filosófica e na Crítica Hermenêutica do Direito, cf. STRECK, Lênio.

À guisa do prefácio. In: PINHO, Ana Cláudia Bastos de. Para além do garantismo: uma proposta

hermenêutica de controle da decisão penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 12-14.

Entretanto, o próprio Ferrajoli rechaçaria esta posição, na medida em que o garantismo

consubstanciado em seu denominado “constitucionalismo garantista” também seria oposto ao

decisionismo judicial. Entretanto, Ferrajoli admitiria a impossibilidade de anulação de toda atividade

discricionária do julgador, que devido à natureza linguística do direito sempre existira um certo grau

de decisionismo judicial e que sua teoria visaria justamente sua máxima restrição. Cf. STRECK,

Lênio. FERRAJOLI, Luigi; TRINDADE, André Karam. (Org.). Garantismo, hermenêutica e

(neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012,

p. 294. 138

[...] a Escola da Exegese procurou constituir critérios lógicos, fortemente dogmatizados, de modo a

evitar qualquer decisão construtiva do direito. E cumprir assim com um dos lemas da Revolução,

segundo o qual o juiz é tão-somente a boca da lei. [...]. Nos dias atuais pode-se constatar a presença do

estilo de interpretação, de argumentação e também de decisão da Escola da Exegese. A justificação

jurídica da segurança e da simplicidade das súmulas vinculantes é apenas uma das ilustrações

possíveis. Cf. SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Seminários de teoria da interpretação e da decisão

jurídica. p. 27.

Page 43: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

41

intervenção punitiva. Esta divergência entre normatividade do modelo em nível constitucional e

sua não efetividade, na visão de Ferrajoli, correria o risco de torná-la uma simples referência,

com mera função de mistificação ideológica no seu conjunto. O garantismo teria surgido então

como uma resposta ao crescimento desta diversidade imposta, quase sempre, em nome da

defesa do Estado de Direito e do ordenamento democrático.

Luigi Ferrajoli encerra o livro Direito e Razão – Teoria do

Garantismo Penal tratando o tema, partindo da diversidade mencionada, em quatro itens

distintos e conexos entre si, definidos pelo autor como “significados de garantismo”. No

primeiro significado, traria a ideia de um modelo normativo de Direito, na medida em que

pregaria a estrita legalidade própria do Estado de Direito que, sob o plano epistemológico, seria

caracterizado como um sistema cognitivo ou de poder mínimo; sob o plano político, possuiria

como característica uma técnica idônea a minimizar a violência e maximizar a liberdade e, sob o

plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia

dos direitos dos cidadãos.

O segundo significado proposto por Ferrajoli diria respeito à teoria

jurídica de validade e efetividade das normas. Exprimiria uma aproximação teórica que mantém

separados o “ser” e o “dever ser” no Direito, inserindo como questão teórica central a

divergência entre o modelo normativo e as respectivas práticas operacionais, interpretando-a

como a validade das normas e a efetividade (e invalidade) destas práticas, em verdadeira “teoria

da divergência” entre normatividade e realidade, entre direito válido e direito efetivo, ambos

vigentes.139

Designando uma filosofia política, Ferrajoli atribui um terceiro

significado ao garantismo, na medida em que pressupõe uma doutrina laica de separação entre

Direito e moral, entre validade e justiça, ponto de vista próprio do iluminismo.140

Um elemento corrente atribuído ao pensamento de Ferrajoli lança

amarras na questão da separação entre direito e moral. Entretanto, esta visão não seria

139 Os juízos sobre a vigência e aqueles sobre a validade de uma norma se diferenciam por serem os primeiros, juízos de fato

(analisam a correspondência a critérios de forma) e os segundos, juízos de valor (analisam a adequação valorativa de normas

inferiores às superiores). Por ser juízo de valor, o juízo de validade comporta um grau de discricionariedade que conduz a um

espaço de ilegitimidade que não se pode reduzir; porém, isto não compromete o modelo do Estado de Direito de forma

importante. FERRAJOLI aponta esta dissociação estrutural entre estes dois juízos como uma aporia teórica à qual o Garantismo está adstrito. Cf. BORTOLI, Adriano de. Garantismo jurídico, Estado Constitucional de Direito e Administração Pública.

Artigo publicado nos anais do Conpedi, Manaus, disponível em

<http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/adriano_de_bortoli.pdf>. Acesso em 29 jan. 2013. 140 Entretanto, anote-se que Ferrajoli teria criticado a matriz iluminista, traçando em sua teoria do garantismo penal uma “revisão

teórica do modelo garantista de legalidade penal e processual o qual fora traçado pelo pensamento iluminista. [...] o esquema

garantista transmitido pelo iluminismo, fundado sobre a ideia do julgamento como um silogismo perfeito e do juiz como boca da lei, possui uma intrínseca fraqueza política, devida entre outras coisas ao seu total inatendimento epistemológico e à sua

consequente impraticabilidade jurídica.” Cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana

Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p.17.

Page 44: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

42

adequadamente tratada. A separação laica e liberal entre direito e moral na doutrina do

garantismo pode ser percebida quando o autor faz explanação sobre a exterioridade da ação,

defendendo que somente poderiam ser consideradas como criminosas as ações ou condutas

humanas relevantes que tenham uma relação de causalidade com o resultado danoso ou

perigoso. Em outras palavras, seriam subtraídos da criminalização e do controle penal “o

interior da pessoa em seu conjunto”, ante a critérios de “periculosidade”, “capacidade de

delinquir”, “caráter do réu”. Assim, “o homem delinque não pelo que é, senão pelo que faz”.141

Nosso autor italiano teria publicado inúmeras vezes seu entendimento

sobre a relação entre direito e moral. Na última delas, teria assim sintetizado a questão:

[a] separação quer dizer penas duas coisas, dependendo se formulada em

termos assertivos ou prescritivos: segundo a tese assertiva, que é um

corolário do princípio juspositivista da legalidade, a justiça é um ponto de

vista externo, variável de pessoa para pessoa, e o juízo sobre moralidade ou

sobre a justiça de uma lei não implica nem está implicado pela tese sobre a

sua existência ou validade jurídica; segundo a tese prescritiva, que é um

corolário do princípio da ofensividade, o juízo sobre a imoralidade (não de

uma lei, mas) de um comportamento não é uma condição suficiente (mesmo

se necessária) para justificar a sua proibição.142

Segue o mesmo autor argumentando que “geralmente não existe

apenas uma ou a „verdadeira‟ interpretação correta, mas que cada interpretação é

inevitavelmente orientada, [...], por opções morais e políticas do intérprete”. Disso decorre a

indagação sobre qual aquela mais objetivamente correta. Qualquer que seja a resposta

considerada (como a melhor motivada ou a mais completa) não a tornaria “objetivamente

verdadeira” ou “a única correta”. Desta forma o juiz resolveria a demanda “dando-lhe – e

motivando-lhe – a solução mais plausível e imparcial”, mas sempre orientada pela probabilidade

factual e discutível da verdade jurídica das teses por ele assumidas como fundamento da

decisão. “Uma teoria garantista do direito e do processo pode apenas promover a redução da

ventania das soluções incorretas através da redução do arbítrio por meio de adequadas garantias

substanciais e processuais”. O autor seguiria reconhecendo, entretanto, que mesmo esta, seria

apenas uma solução relativa e não inteiramente satisfatória do problema, na medida em que

sempre existiriam divergências interpretativas e múltiplas escolhas “plausivelmente

discutíveis”, cujo número seria reduzido pela coerência com os princípios constitucionais.

141

Sustentado em Pessina, Filangieri, Romagnosi, Carmignani, Carrara, e Condorcet. Cf. FERRAJOLI,

Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan

Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 441-443. Poderíamos

afirmar tratar-se aqui da noção de Direito Penal do Fato em repúdio ao Direito Penal do Autor ou do

Inimigo (Jackobs). 142

STRECK, Lênio. FERRAJOLI, Luigi. TRINDADE, André Karam. (Org.). Garantismo, hermenêutica

e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012,

p. 300.

Page 45: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

43

Assim, a abordagem garantista consistiria em “promover técnicas normativas e garantias

jurisdicionais em condições de limitar o arbítrio e de permitir que os juízes criem direito”.143

Por esta construção, presente o binômio direito e moral na teoria

ferrajoliana, possível a conjugação do garantismo penal com o pós-positivismo, na medida em

que o resgate dos valores morais afastados pelo positivismo coadunaria com os propósitos

garantistas, mesmo que de forma involuntária.

Por fim, o autor italiano apresentaria um quarto e último significado

de garantismo, retratando as dificuldades enfrentadas pelo modelo por ele proposto. O próprio

Ferrajoli reconhece que seria muito difícil modelar técnicas legislativas e judiciárias idôneas a

assegurar o fiel cumprimento dos princípios constitucionais e dos direitos fundamentais por eles

consagrados, e, mais difícil ainda, seria defender, na prática, o sistema das garantias. Desta

forma, o último item trata de questões denominadas por ele de “falácia politicalha” e “falácia

garantista”.144

A primeira reflete a ideia de que bastaria a força de um poder bom para satisfazer

as funções de tutela atribuídas ao Direito. A segunda falácia apontaria no sentido de que bastam

as razões de um Direito bom, dotado de sistemas avançados e realizáveis de garantias

constitucionais, para conter os poderes e para pôr os direitos fundamentais a salvo de suas

distorções.

O problema do garantismo seria, segundo o próprio Ferrajoli, elaborar

técnicas apropriadas de formulação e aplicação das leis aos fatos julgados, a fundamentação dos

juízos sobre a verdade, mediante controles lógicos e empíricos, subtraídas ao erro e ao arbítrio,

torná-las vinculantes no plano normativo e assegurar sua efetividade no plano prático.145

Para nosso autor, a questão envolvendo o garantismo seria hoje uma

utopia, mesmo que parcial e imperfeita. O próprio direito penal também seria uma utopia, na

medida em que um sistema penal (aqui no sentido do conjunto de todos os atos desde a

acusação até a execução penal) seria justificado se, e somente se, minimiza a violência arbitrária

na sociedade. As garantias corresponderiam como outras condições de justificação do direito

penal.146

Consciente das dificuldades do sistema garantista penal, o autor

italiano proporia que os beneficiários dos direitos fundamentais objeto da visão garantista,

exerçam-nos efetivamente e que as forças políticas e sociais solidarizem-se com seus titulares,

143

Idem, op. cit., p. 301-302. 144

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,

Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 865. 145

FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 71. 146

FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 318.

Page 46: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

44

sob pena de perecimento dos mesmos direitos. Esta seria, segundo Ferrajoli, a praxe do

garantismo. Assim, conclui que o sistema, por si só, nada pode garantir.

O autor do garantismo conclamaria uma transformação social em

favor da luta pelos direitos. Para tanto, além de propor uma fidelidade dos poderes públicos e da

sociedade à legalidade constitucional e aos direitos fundamentais, o autor mediterrâneo

invoca147

os dizeres de Ihering, datados de 1872, segundo o qual a luta pelos direitos é “um

dever da pessoa para consigo mesma” e, ao mesmo tempo, “para com a comunidade”,148

não

somente como instrumento dos direitos violados, mas também como mecanismo de

reivindicação de novos direitos.

]

147

FERRAJOLI, op. cit. p. 869. 148

IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. 6 ed. São Paulo: RT, 2010.

Page 47: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

45

2. JUSTIÇA PENAL NO CONTEXTO DOS SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS

2.1. O que são Sistemas Processuais Penais?

No item anterior discorremos sobre a Teoria do Garantismo Penal que,

segundo Luigi Ferrajoli, seu maior expoente, o sistema penal que melhor se amolda ao

garantismo é o sistema acusatório. Afirmou-se ainda que um dos alicerces do garantismo é a

garantia da imparcialidade do julgador que, dependendo da forma de atuação do juiz no

processo como ativa na colheita da prova, a mesma garantia poderia restar violada. Desta forma,

importante agora trazer a lume estudo sobre os sistemas processuais penais, para que se possa, à

luz do garantismo, identificar as garantias constitucionais presentes e delimitar a esfera de

atribuições do julgador em cada sistema individualizado. Por fim, impõe-se ainda discorrer

sobre o sistema processual penal brasileiro para que seja possibilitado o estudo da posição do

juiz em nosso sistema, aliado às características acusatórias, inquisitoriais ou mistas, norteadas

pela busca da verdade e pelo garantismo, atribuindo-se ao presente estudo um viés voltado

também à práxis.

Firme neste propósito, e partindo inicialmente de uma noção mais

ampla, os sistemas processuais penais podem ser entendidos como manifestações ou espécies de

sistema aplicado exclusivamente à ciência do direito. Entretanto, torna-se conveniente alertar

que existe uma dificuldade de conceituação precisa e pacífica sobre o que seja um sistema. Nem

mesmo autores consagrados149

em nenhum momento definiram de forma clara e direta o que

seria sistema jurídico. Nesta linha, após a realização de uma pesquisa sobre o sentido da palavra

sistema em nossa cultura jurídica, bem como naquelas mais próximas,150

pode-se entender,

concatenando os pontos de convergência entre todas as definições encontradas, que sistema

pode ser inicialmente definido como

a reunião, conscientemente ordenada, de entes, conceitos, enunciados

jurídicos, princípios gerais, normas ou regras jurídicas, fazendo com que se

estabeleça, entre os sistemas jurídicos e esses elementos, uma relação de

continente e conteúdo, respectivamente.151

149

Jürgen Habermas e Niklas Luhmann cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e

seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011. p. 29. 150

O conceito de sistema foi verificado sobre a base de conhecimento das línguas espanhola, italiana,

portuguesa, francesa e inglesa. 151

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.

Curitiba: Juruá, 2011. p. 30-31.

Page 48: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

46

A palavra sistema significa, assim podemos entender, uma ideia

vinculada a algo amplo e complexo, que não se limita a apenas um elemento. Destaque-se que

esta ideia de complexidade será importante para o desenvolvimento do restante deste estudo, na

medida em que cada sistema processual penal a ser individualizado é composto de princípios,

normas, regras, etc., concatenados e não constituído de um único elemento identificador.152

Estabelecido o alcance dos sistemas jurídicos, por sua vez, os sistemas

processuais penais podem ser, de forma sintética, entendidos como subsistemas153

dos sistemas

jurídicos. Tais sistemas seriam caracterizados pela reunião de elementos processuais penais

organizados e conceituados como “subsistemas jurídicos formados a partir da reunião ordenada

de elementos fixos e variáveis de natureza processual penal”.154

A questão pode ser compreendida também em termos segundo os

quais os sistemas processuais penais podem ser vistos também como “manifestações históricas

de como o processo penal de um determinado período da humanidade foi regulamentado”.155/156

Ainda na mesma linha de estabelecer proposições que antecedem o

efetivo estudo dos sistemas processuais penais, merece destaque ainda o fato de que os sistemas

conhecidos são considerados teoricamente como puros,157

modelos ou tipos ideais.158

São puros

ou ideais porque os sistemas processuais penais “na experiência prática estes nunca aparecem

152

Existe diferenciação entre os elementos que compõe os sistemas processuais penais, chamados de

fixos ou variáveis, principais ou secundários, inerentes ou essenciais e não essenciais, fundamentais

ou acessórios, cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios

reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011, p. 35. 153

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 34. 154

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 35. O mesmo autor defende ainda que os sistemas processuais

estão sujeitos a “mutações” no sentido de que os mesmos sofrem alterações em seus elementos com o

passar do tempo. 155

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 37. 156

Bem mais complexos e articulados [do que no plano teórico] são os lineamentos históricos das duas

tradições [inquisitorial e acusatória], tais como vêm se desenvolvendo e alternando nos séculos

paralelamente aos ciclos dos regimes políticos – ora democráticos, ora despóticos – dos quais sempre

foram expressão. Somente a título de ilustração, na Roma republicana o processo era de matriz

acusatória, depois, na Roma Imperial o processo se desenvolveu pelo modelo inquisitório e, após a

queda do Império romano, o processo volta a ser acusatório. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão:

teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares

e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 520-521. 157

“Todos os sistemas processuais penais conhecidos mundo afora são mistos. Isto significa que não há

mais sistemas puros, ou seja, na forma como foram concebidos”. Cf. COUTINHO, Jacinto Nelson de

Miranda. Sistema acusatório. Cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Disponível em:<

http://www2.senado.gov.br>. Acesso em: 27 jan. 2013. 158

Os tipos ideais são, na visão de Max Weber, modelos de comparação, para fins de mensurar uma

determinada realidade a um tipo ideal específico, devendo ser reconhecidos como um meio para

alcançar o conhecimento e não a materialização deste mesmo conhecimento, como se fossem um

exemplo, conscientemente aproximar-se ou afastar-se. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas

processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011. p. 40-41. No mesmo

sentido, LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 8 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011,

v.1, p. 52.

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47

em estado puro, mas sempre misturados a outros não logicamente e nem axiologicamente

necessários”159

e por “serem dificilmente encontrados na realidade histórica”.160

Os sistemas mencionados teriam assim a função de servir de modelo

comparativo de uma determinada realidade para que se possa classificá-la e também como

modelos para reforma ou construção de novos ordenamentos, aos quais serão eleitos elementos

característicos de um ou outro modelo ideal.161

Partindo destes apontamentos iniciais, podemos agora, efetivamente,

adentrar nas nuances dos sistemas processuais penais, inclusive trazendo os conceitos

encontrados. A propósito, no que se refere aos conceitos propriamente ditos, necessária ainda

uma colocação importante: a grande maioria dos manuais aponta conceitos superficiais e,

muitas vezes, deslocados de qualquer investigação prévia. Acrescente-se a isso o fato de que

alguns autores inserem em seus conceitos seus próprios valores ideológicos para justificar ou

rechaçar a presença de alguns elementos característicos deste ou daquele sistema, sem nenhuma

pesquisa sobre como realmente os sistemas se formaram e se desenvolveram, em verdadeira

“falsificação histórica”.162

Diante desta questão da superficial e não unívoca visão sobre os

sistemas processuais penais, aqui valemo-nos, primordialmente, de estudos fundados em seus

próprios documentos históricos, depois traduzidos e, quanto ao Brasil, adaptados a nossa

realidade.163

2.2. Sistema Acusatório, Garantismo e Iniciativa Instrutória do Juiz

Inicialmente torna-se forçoso destacar que a opção de nosso estudo

sobre os sistemas processuais penais seria sustentada em uma intensa pesquisa realizada em

seus próprios documentos históricos, efetivada por Mauro Fonseca Andrade.164

Entretanto, o

referencial teórico utilizado até o momento (que trilharia os mesmos caminhos que Luigi

Ferrajoli) seria mantido, servindo-nos da pesquisa de Andrade como alicerce histórico sobre o

159 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr,

Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 521. 160 WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito do capitalismo”, apud ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais

penais e seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 201, p. 40. 161 ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011, p. 44. Em

outras palavras, os sistemas processuais penais teriam como função “servir como instrumento de auxílio ao legislador, à hora de

estabelecer a política criminal em âmbito processual”, cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 468. 162 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr,

Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 563. 163 ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011. Nota do

autor, p. 8. 164 Promotor de Justiça do rio Grande do Sul; Doutor em Direito Processual pela Universidade de Barcelona; Professor da Faculdade

de Direito e do Programa de Pós-Graduação da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul, do

Instituto de Desenvolvimento Cultural e do Centro Universitário Ritter dos Reis.

Page 50: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

48

qual pretendemos lançar amarras, sem, contudo, promover mera repetição dos caminhos

percorridos pelo referido autor. Mesmo porque, segundo Ferrajoli “a distinção entre sistema

acusatório e sistema inquisitório pode ter um caráter teórico ou histórico”, sendo necessário

alertar que “as diferenças identificáveis no plano teórico não coincidem necessariamente com

aquelas verificáveis no plano histórico”. Assim, pretende-se aqui desenvolver um estudo a partir

das constatações e verificações encontradas naquela pesquisa histórica, mencionada apenas no

essencial e contrastada, no necessário ao estudo, com o referencial teórico adotado.

Na mesma medida é preciso nos atentar para outra questão

metodológica a ser adotada. O processo acusatório foi vivenciado, historicamente, no período

clássico e ressurgiu no século XX. Assim, o estudo deste sistema deverá lançar seu olhar aos

dois períodos distintos mencionados para que, ao final, possa ser formulada uma definição de

seus elementos fixos e elementos variáveis, moldado sobre à realidade histórica e atual deste

sistema.165

/ 166

Desta forma, o estudo dos sistemas reflete profundamente nas

garantias procedimentais167

de acordo com a matriz inquisitória ou acusatória do processo ao

qual pertencem e que, em conjunto, caracterizam. Além disso, Ferrajoli alertaria para o fato de

que a seleção dos elementos teoricamente essenciais nos dois modelos principais seria,

inevitavelmente, condicionada por juízos de valor em virtude da “conexão” que pode ser

instituída entre sistema acusatório e modelo garantista e, por outro lado, entre sistema

inquisitório, modelo autoritário e eficiência repressiva.168

Iniciando pelo plano teórico, a diferenciação entre sistema acusatório

e inquisitório poderia ser entendida como uma dúplice alternativa. A primeira seria entre dois

modelos opostos de organização judiciária, na medida em que refletiriam duas figuras de juiz.

Na mesma medida, em segundo lugar, a alternativa seria entre dois métodos contrapostos de

investigação processual, e, portanto, entre dois tipos de juízo.

Assim, seria entendido como acusatório todo o modelo que possuiria

como característica

165

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.

Curitiba: Juruá, 2011, p. 49-50. 166

“El procedimento acusatorio rigió, praticamente, durante toda la antigüedad (Grécia, Roma) y en lá

Edad Media hasta el siglo XIII (Derecho germano), momento em el cual, sobre las bases del último

Derecho romano imperial, antes de la caída de Roma, fue reemplazado por la Inquisición”. Cf.

MAIER, Júlio B. J. Derecho processal penal: tomo I fundamentos. 2.ed. 3. reimp. Buenos Aires:

Editores Del Puerto, 2004, p. 446. 167

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,

Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 518. 168

FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 519.

Page 51: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

49

o juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das partes e o

julgamento de um debate paritário, iniciado pela acusação, à qual compete o

ônus da prova, desenvolvida com a defesa mediante um contraditório público

e oral e solucionado pelo juiz, com base em sua livre convicção.169

Inversamente, seria considerado de sistema inquisitório todo sistema

que apresentasse uma matriz em que

o juiz procede de ofício à procura, à colheita e à avaliação das provas,

produzindo um julgamento após uma instrução escrita e secreta, na

qual são excluídos ou limitados o contraditório e os direitos da

defesa.170

Desta forma ficaria claro que, segundo Ferrajoli, aos dois modelos de

sistemas processuais associam-se sistemas diferentes de garantias, na medida em que se o

sistema acusatório favorece modelos de juiz popular e procedimentos que valorizam o

contraditório como método de busca da verdade, o sistema inquisitório tende a privilegiar

estruturas jurídicas burocráticas e procedimentos fundados nos poderes instrutórios do juiz,

compensados talvez pelos vínculos das provas legais e pela pluralidade dos graus de juízo, as

instâncias.171

Segundo agora uma visão delineada por aspectos históricos, bem mais

complexos, Ferrajoli sustenta que ambas as tradições alternaram-se na mesma medida em que se

alternaram regimes políticos ora democráticos, ora despóticos.172

Seria pacífico que na Antiguidade tal como teria se configurado na

Grécia e na Roma republicana, a estrutura do processo seria essencialmente acusatória,173

na

medida em que a acusação seria predominantemente privada de consequente natureza arbitral

tanto do juiz como do juízo. A titularidade da acusação permanece nas mãos da parte ofendida

ou de seus familiares para, em época mais tardia, ser transferida à sociedade como um todo e,

por meio dela, a todo cidadão singular.

Desta natureza privada que surgiria no processo romano ordinário, as

características do sistema acusatório, dentre as quais mais diretamente relacionadas ao nosso

estudo, a discricionariedade da ação, o ônus acusatório da prova, a igualdade de partes com

atribuição das mesmas de toda atividade probatória, inclusive sua disponibilidade. Destaque

169

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,

Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 519-520. 170

FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 520. 171

Idem. 172

Ibidem, com suporte em Lucchini, Carrara, Cordero e Taruffo. 173

“En general, se puede decidir que esta forma de llevar a cabo el enjuiciamiento penal dominó todo el

mundo antiguo”. Cf. MAIER, Júlio B. J. Derecho processal penal: tomo I fundamentos. 2.ed. 3.

reimp. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2004, p. 443.

Page 52: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

50

para a posição do juiz que seria vista como de árbitro ou espectador.174

Este juiz aqui descrito

adotaria como postura aquela que seria contemporaneamente idealizada em nosso estudo.

Eis que na Roma imperial é que teriam surgido as primeiras

manifestações do processo de cunho inquisitório. Entretanto, é preciso registrar que após a

queda do Império Romano a matriz de cunho acusatório ressurge, confundindo-se no início com

o sistema das ordálias e duelos judiciais, transformado mais tarde para as formas da disputatio e

do contraditório, entre o fim do primeiro milênio e o século XII, “tendo sido desenvolvidas e

consolidadas na Inglaterra e no mundo anglo-saxão nas formas do adversary system”.175

Após a queda do Império Romano, a inquisição teria voltado a

florescer e proporcionado inominados “horrores” aos quais, na medida do repúdio ao arbítrio e à

irracionalidade desse procedimento, torna-se um dos ideais do iluminismo penal reformador,

com o redescobrimento dos valores garantistas da tradição acusatória.176

Por sua vez, na reconstrução histórica de Andrade, como contraponto,

o mesmo sustenta que o sistema acusatório clássico teve seu curso em Atenas, considerada

como seu berço, apesar de não ter sido o primeiro a por lá vigorar. Antes, o modelo de processo

era inquisitivo, mas, após as mudanças na organização social promovidas por Sólon (por volta

de 640 a.C.), principalmente no intuito de frear a ira popular, inserindo-o como passo decisivo

na criação da democracia ateniense, o sistema acusatório começou a surgir.

Este modelo de processo contava com várias categorias de

magistrados, entre elas os tesmótetas e os arcontes. Os primeiros deveriam, entre várias outras

atribuições, designar o dia dos julgamentos, ao passo que aos segundos, por sua vez, caberia

examinar os requisitos processuais formais e preservavam as provas apresentadas pelas partes,

presidiam os julgamentos gerindo o rito e sua realização.177

Assim, aos magistrados não era

permitido exercer suas funções públicas com o exercício da acusação, em flagrante separação de

funções. Para a hipótese de descumprimento desta regra, havia a previsão de uma exceção

processual com o fim de evitar a continuidade do processo.178

Entretanto, como exceção a regra, aos tesmótetas era possível atuar

como investigadores quando “estavam em jogo seus interesses ou sua própria sobrevivência”,179

informando os fatos ao Senado ou à Assembleia do Povo. Poderiam atuar ainda como

174

Ibidem. 175

Idem. 176

FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 521. 177

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 57. 178

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 57-58. 179

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 58.

Page 53: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

51

investigadores quando os magistrados não prestassem corretamente suas contas e nos casos de

traição, ilegalidade e proposição de lei ilegal, sicofantia e falso testemunho ante o Areópago.

Quando o acusador oferecia a acusação, como regra, a investigação já

não pertencia aos magistrados, sendo que sua passividade seria imposta expressamente.180

Aqui

se torna necessário destacar a inatividade dos juízes que não teriam possuído atribuição de se

arvorarem na colheita da prova.

Apesar da proclamada perfeição do modelo ateniense, conclamado por

vezes como ideal, o mesmo apresentava problemas como v.g. a impunidade, na medida em que

o custo financeiro da acusação teria sido suportado por quem de direito, sob pena de não ser

iniciado. Com isso, a impunidade de alguns delitos não teria sido exceção. Por outro lado,

existiriam ainda alguns obstáculos ao exercício da acusação que teria sido confiada aos cidadãos

comuns que ficariam, por vezes, sob ameaças ou pressões políticas.

Outros obstáculos também teriam surgido como a possibilidade de

manipulação dos juízes populares frente às incursões retóricas dos oradores. As falas seriam

“verdadeiros teatros” tentando despertar a compaixão nos juízes, chegando, por vezes, a

transformar-se em “espetáculo de baixo nível”, com insultos recíprocos e considerações sobre o

comportamento pessoal, profissional e familiar de seus oponentes.181

/ 182

Havia ainda em Atenas outro modelo processual paralelo, onde não

existiria, em algumas hipóteses, a presença de um acusador distinto do julgador. Este processo

seria verificado quando o próprio Conselho do Areópago chamava para si a responsabilidade de

punir os indivíduos sem a formação de causa ou prévio julgamento, “abandonando por completo

as características do que conhecemos por sistema acusatório clássico. [...] Na verdade o

Conselho adotava a estrutura de um modelo processual que existia no passado”, podendo hoje

receber uma rotulação semelhante a do sistema inquisitivo.183

Por meio deste processo marcado pela atuação inquisitiva, Atenas

teria recebido como legado, em plena democracia, marcas atualmente indesejadas, ainda que em

hipóteses concretas e excepcionais.

180

“Nesse momento, sua função era receber a acusação e os escritos de defesa do acusado, assistindo-os

durante o período de investigação, mas sem intervir em sua realização”. Cf. ANDRADE, Mauro

Fonseca. Op.cit. p. 59. 181

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 65. 182

O único tribunal que não permitia essas práticas era o Areópago, pois era formado por magistrados, ao

invés de juízes populares. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 65. 183

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 67.

Page 54: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

52

Por outro lado, o processo penal romano também teria vivenciado ao

longo de vários séculos de perseguição aos criminosos, estruturas de processo diferenciadas

entre acusatório e inquisitivo, circunstância normal por ter passado por períodos políticos

distintos: o monárquico, o republicano e o imperial (ou principado).184

Quanto ao período Monárquico, existe dúvida sobre a real atuação do

rei, quando investido da iudicatio. Não se sabe se o rei julgava sozinho ou se existiam

consultores no período de instrução do caso, entretanto, haveriam notícias de que existiam

pessoas vinculadas ao rei.185

No que se refere ao período republicano, como primeira

consequência do fim do período Monárquico, teria sido a divisão dos poderes acumulados pelo

rei. Assim, o magistrado supremo da república teria sido o “máximo responsável pela repressão

criminal, correspondendo-lhe o ofício de investigar, acusar e julgar os fatos delitivos de que

tivesse conhecimento”.186

Este procedimento repressivo de ofício teria sido denominado de

cognitio187

e não possuía regras fixas, sendo o direito de defesa uma liberalidade do

magistrado.188

Ao final deste período, o modelo de processo utilizado poderia ser

entendido como “aquele que melhor representou o processo acusatório romano, como a forma

mais perfeita de organização desse sistema no mundo antigo”.189

Aqui teria havido notável

separação de funções entre os acusadores,190

julgadores e o Pretor, presidente do Tribunal.191

Quanto ao acusado, não lhe teria sido permitida participação na inquisitio, atividade de

investigação promovida pelo acusador.192

Esta forma de condução do procedimento guardaria sintonia com os

atuais anseios delineados no presente estudo, na medida em que resguardaria a imparcialidade

do julgador através de sua não participação na atividade acusatória.

184 Aqui têm lugar as palavras de Goldschmidt: los principios de la política procesal de uma nación no son outra cosa que

segmentos de su política estatal em general. Apud ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 68. 185 Os tribunus celerum, os praefectus urbi, os quaestores par(r)icidii e os duumviri perduellionis. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca.

Op.cit. p. 70. 186 ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 71. 187 “A cognitio era encomendada aos órgãos do Estado – magistrados. Outorgava os maiores poderes ao magistrado, podendo este

esclarecer os fatos na forma que entendesse melhor”, cf. LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade

constitucional. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 53. 188 ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 71. 189 ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 75-76. 190 “A legitimidade ativa era reconhecida a qualquer cidadão de boa reputação, que poderia acusar em nome próprio, por

representação de outras pessoas ou, inclusive, por representação de toda uma cidade”, cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit.

p. 80. 191 ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 79. 192 Teria existido ainda outra forma de processo penal, diversa da cognitio, a chamada accusatio que consubstanciava-se na atuação,

de quando em quando, espontaneamente por um cidadão do povo. Surgida no último século da República, promovendo profunda inovação. “Tratando-se de delicta publica, a persecução e o exercício da ação penal eram encomendados a um órgão

distinto do juiz, não pertencente ao Estado”. Cf. LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade

constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 53.

Page 55: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

53

Enfim, no período imperial, num primeiro momento, foi mantida a

base do processo republicano e após a reforma do sistema processual como um todo, o

magistrado romano teria se caracterizado por um comportamento inativo, restando como dever

do acusador a investigação e a obtenção de provas. Como consequência, algumas mudanças

teriam sido percebidas, referentes a legitimidade acusatória do ofendido ou de seus familiares e

uma gradual intervenção imperial em substituição a atuação dos tribunais permanentes. Essa

intervenção imperial teria sido exercida pelo próprio Imperador ou por algum delegado dele,

com funções de acusação, investigação, instrução e sentença. O procedimento previa ainda o

início de ofício, sem investigação prévia e não teria havido direito de defesa daqueles acusados

rotulados como “inimigos do Imperador”. Esta jurisdição imperial poderia ser delegada a outros

funcionários, compreendendo atos de investigação, acusação e julgamento ou somente

julgamento.193

O Imperador poderia ainda determinar a remessa ao Senado de

determinada causa, quando recusasse a acusação, mantendo as características do sistema

acusatório por meio desta jurisdição delegada. A intervenção de César teria maculado a forma

acusatória, pois interferia na decisão dos membros do Senado, na forma de “controle” ou

“fiscalização”, na medida em que se revestia de garantia da observação da técnica nos

julgamentos.194

Extinta a jurisdição do Senado, a figura do acusador tornou-se

prescindível, sendo que os delegados do Imperador instruíam e julgavam sem vinculação com

as provas existentes, podendo buscar outras.195

No baixo Império, os magistrados organizados em diversas classes

poderiam iniciar o processo de ofício, atuando como investigadores, acusadores, instrutores e

julgadores. Algumas mudanças foram perpetradas neste período de forma que a obtenção de

provas teria sido uma tarefa do acusador-julgador, fazendo parte de todos os atos do processo o

segredo, exceto quanto à sentença.196

“As sentenças, que na época Republicana eram lidas

oralmente desde o alto do tribunal, no Império assumem a forma escrita e passam a ser lidas na

audiência”.197

193

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 95. 194

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 95-97. 195

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 98. 196

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 98-99. 197

LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 54.

Page 56: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

54

Percebeu-se assim em face do sistema acusatório clássico que o

mesmo teria proporcionado um predomínio do acusador popular sobre o acusador público.

Entretanto, atualmente, no “sistema acusatório contemporâneo”,198

ocorre exatamente o

contrário. O problema identificado na figura do acusador popular, conforme já mencionado,

residiria na impunidade do sistema, pelo fato de que o mesmo é mais propício a pressões, a

postulação de acusações falsas, ausência de sua proteção contra possível ira dos acusados,

deturpação da verdade e a não execução da sentença. Algumas destas características teriam

proporcionado a criação do sistema inquisitivo, revelando-se então a presença do acusar público

como um dos traços mais marcantes do atual sistema acusatório.199

O estudo deste sistema acusatório contemporâneo faz-se necessário

pela divergência em seus elementos iniciais percebidos no modelo clássico. O tempo trouxe a

necessidade de adaptações e correções, sem que, contudo, o sistema perdesse a característica de

acusatório.

Segundo Andrade,200

na atualidade, analisando a realidade processual

de alguns países,201

seria possível perceber alguns traços comuns, como por exemplo, a

participação mais ativa do julgador ao longo da fase probatória, sendo que sua investigação

criminal seria tarefa da polícia judiciária e do Ministério Público que, por sua vez, seria

legitimado para dar início ao processo judicial.

Diante desta construção, seria possível, neste momento, identificar o

sistema acusatório, considerando-se todos os elementos apontados como caracterizadores do

mencionado sistema, bem como sua adequação aos dias atuais e a uma análise confrontativa

com seus aspectos históricos, que o mesmo seria caracterizado por dois elementos fixos. Neste

sentido, o primeiro elemento fixo seria a separação entre as figuras do acusador e do julgador,

distintos, o que corresponde ao princípio acusatório. O segundo, por sua vez, refere-se a um

particular efeito produzido pelo ajuizamento da acusação, que é determinar a abertura do

processo. Os demais elementos que eventualmente podem estar presentes variam em

198

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 99. 199

Chamado também de “sistema acusatório original ou originário”, “sistema acusatório público”,

“sistema acusatório moderno” e “sistema acusatório público moderno”, entretanto, a expressão que

melhor se amolda à realidade seria “sistema acusatório contemporâneo”, considerando-se somente o

aspecto temporal, cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 100-102. 200

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 103. 201

Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, Portugal e Itália, todos apontados como de matriz acusatória e

fonte de influência do direito brasileiro. cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op.cit. p. 105, 107, 108, 110

e 202. Entretanto, o mesmo autor informa que o sistema processual penal de alguns destes países

apresentaria traços característicos do sistema inquisitivo, cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p.

329-340.

Page 57: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

55

conformidade com a ideologia do momento histórico. A ausência de um deles provocará uma

mudança na categoria do sistema.202

Segundo entendimento de Maier a característica fundamental do

sistema acusatório “residiria na divisão dos poderes exercidos no processo, por um lado, o

acusador, quem persegue penalmente e exerce o poder requerente, e por outro o imputado, quem

pode resistir à imputação, exercendo o direito de defender-se [...].”203

Este modelo de processo que permitiria a busca da prova pelo juiz

atrairia, segundo Lopes Júnior,204

severas críticas pela postura adotada pelo magistrado. O juiz

deveria resignar-se com as consequências de uma atividade defeituosa das partes, tendo que

decidir com base em material incompleto apresentado pelas mesmas. Este sempre teria sido o

fundamento histórico de atribuição da função instrutória ao juiz, “e revelou-se (através da

inquisição) um gravíssimo erro”.205

Não satisfeito, o mesmo autor segue argumentando que “o

mais interessante é que não aprendemos com os erros”,206

bastando verificar o atual CPP

brasileiro para constatar a possibilidade de iniciativa instrutória do juiz, reconhecendo que esta

postura inerte não seria a posição majoritária da doutrina ou jurisprudência.

Na mesma linha, seria o sistema acusatório um “imperativo do

moderno processo penal, frente a atual estrutura social e política do Estado”.207

O sistema em

comento asseguraria a imparcialidade do julgador, “garantindo o trato digno e respeitoso com o

acusado, que deixa de ser um mero objeto para assumir sua posição de autêntica parte passiva

do processo penal”.208

A inércia do julgador atribuiria um aumento da responsabilidade das

partes, cabendo ao Estado garantir uma estrutura que seja capaz de oferecer o mesmo grau de

representação processual.

O que se destacaria como um inconveniente no sistema acusatório

seria a atividade incompleta das partes, conforme já mencionado. Entretanto, caberia ao Estado

202

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.

Curitiba: Juruá, 2011, p. 258. 203

MAIER, Júlio B. J. Derecho processal penal: tomo I fundamentos. 2.ed. 3. reimp. Buenos Aires:

Editores Del Puerto, 2004. p. 444. 204

LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2011. v. 1. p. 55. 205

Idem. 206

Ibidem. 207

Ibidem. 208

Idibem.

Page 58: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

56

promover condições e manter um “serviço público de defesa” que pudesse fazer frente ao

existente “serviço público de acusação (Ministério Público)”.209

Esta visão de correlação entre acusação e defesa faria surgir mais uma

discussão que, independentemente de toda relevância que o tem reclama, não se faz

indispensável ao presente estudo, qual seja, a denominada paridade de armas.

Neste aspecto, Lopes Júnior apesar de não externar diretamente em

sua obra pesquisada faz crer que esta paridade não existe e que existiria uma vantagem, neste

aspecto, ao Ministério Público. Por outro lado, Andrade defende a ideia de que realmente esta

paridade não existe, pois, ao reverso, o acusado teria maiores armas frente ao acusador. No

mesmo sentido, a desigualdade de armas no processo penal contemporâneo deve sempre existir,

em favor do acusado.210

Por sua vez, Zilli sustentaria que quando for percebido um

desequilíbrio entre a atuação das partes no processo, caberia ao juiz afastá-lo ou atenuá-lo o que,

por si só, exigiria um comportamento mais atuante ao longo da marcha processual, incompatível

com qualquer postura distanciada.211

Quanto à imparcialidade do julgador no sistema acusatório, Lopes

Júnior sustenta que somente a separação de funções é quem pode criar as condições para que

aquela se opere, defendendo que esta característica é fundante do sistema acusatório.212

Devemos aqui nos atentar ainda para um aspecto, neste mesmo

contexto, que seria importante, qual seja a separação das funções de acusar e julgar deveria

permanecer ao longo de toda a marcha processual, não ficando adstrita apenas ao início do

processo. Seria necessário que esta estrutura de separação permanecesse, sob pena de

rompimento da estrutura. Aqui, referimo-nos à iniciativa instrutória nas mãos das partes, pois,

“somente isso permite a imparcialidade do juiz”.213

209

Ibidem. 210

Esta visão de Andrade sustenta-se no fato de que, em síntese, ao acusado estariam disponíveis

mecanismos que inexistem para serem utilizados pelo Ministério Público, como, por exemplo, a

Revisão Criminal, o uso de provas ilícitas, etc. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais

penais e seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011, p. 183-187. 211

ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: RT,

2003, p. 129. Na mesma obra, o autor defende a postura supletiva do juiz, comedida e equidistante das

partes, sem empenhar-se ao lado de uma contra a outra, seja desenvolvendo atuação policial, seja

como advogado de defesa, cf. ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. Op. cit., p. 181. 212

LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7. ed. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 56. 213

LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. p. 64.

Page 59: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

57

2.3. Sistema Inquisitivo, Garantismo e Iniciativa Instrutória do Juiz

O breve estudo do direito romano, em seus três períodos distintos, que

foi desenvolvido no item destinado ao sistema acusatório, poderia também nos ajudar agora no

estudo sobre a forma embrionária do sistema inquisitivo, que teria sido representado pela

cognitio, bem como pela cognitio extra ordinem.214

/ 215

Segundo Andrade,216

o fator

preponderante para a consolidação do sistema inquisitivo não teria sido a sua recepção pelo

poder central, mas o reconhecimento por Constantino (325 d.C.) do cristianismo como religião

oficial. Desta forma, mesmo depois da queda do Império Romano, esse sistema teria

sobrevivido por meio do direito canônico,217

até ser reinserido na Idade Média, “sob outra

significação política”.218

As primeiras manifestações do processo inquisitório se desenvolveram

na Roma imperial, segundo Ferrajoli, com os procedimentos de ofício para os delicta publica,

em que se presumira ofendido um direto interesse do príncipe e a parte ofendida se identificaria

com o Estado. Nesta época “a acusação teria se transformado na denúncia fatal e na calúnia

oculta”, que se tornaram instrumento de tirania. Teria nascido assim com a cognitio extra

ordinem, o sistema inquisitório.

A propósito, Maier defenderia a construção de que a Inquisição seria

um sistema de perseguição penal que corresponderia a uma concepção absoluta de poder

central, bem como seria ainda a noção extrema sobre o poder da autoridade e a reunião de todos

os atributos da soberania exercidos por uma única pessoa. Como consequência, o pequeno valor

atribuído à pessoa humana perante a ordem social, manifestada pela máxima salus publica

suprema lex est, reduziria a figura do acusado a um mero objeto de investigação, com o qual se

214

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.

Curitiba: Juruá, 2011, p. 267. 215

“La fuente jurídica de inspiración fue el Derecho romano imperial de la última época (cognitio extra

ordinem), com su tênue introduccíon de los rasgos principales de la Inquisición, conservado por la

Iglesia y perfeccionado por el Derecho canónico, el cual, a su vez, constituyó la fuente donde abrevó

la Inquisición laica, de paso triunfante por toda Europa continental a partir del siglo XII”, cf.

MAIER, Júlio B. J. Derecho processal penal: tomo I fundamentos. 2.ed. 3. reimp. Buenos Aires:

Editores Del Puerto, 2004, p. 446. 216

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.

Curitiba: Juruá, 2011, p. 267. 217

Entretanto, faz-se necessária uma advertência: “Ao contrário do que por vezes se afirma, o sistema

inquisitivo não foi uma criação da Igreja Católica. Na verdade, foi ela influenciada por um modelo de

processo já vigente na época em que o cristianismo foi erigido à condição de religião oficial do

Império Romano (380 d.C.), sendo sua prática mantida e conservada no meio eclesiástico mesmo após

a queda do último César”. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Inquisição espanhola e seu processo

criminal: as instruções de Torquemada e Valdés. Curitiba: Juruá, 2011, p. 10-11. 218

Ibidem.

Page 60: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

58

perde o entendimento de que o mesmo seria sujeito de direitos, autoriza a utilização de qualquer

meio, por mais cruel que fosse, para alcançar seus fins: reprimir a ordem, averiguar a verdade.219

Esta nova forma de lidar com o processo teria sido desenvolvida e

decidida de ofício, secretamente e em documentos escritos por magistrados estatais delegados

do príncipe (os irenarchi, os curiosi e os stationarii), “baseado na detenção do acusado e na sua

utilização como fonte de prova, acompanhada bem de perto pela tortura”.220

A noção da figura

do acusado como parte detentora de direitos e deveres, bem como a oportunidade de influenciar

na decisão final observadas garantias mínimas, revelar-se-ia inexistente.

Findo o Império Romano, a inquisição teria tornado a florescer no

século XIII221

com as Constituições de Frederico II nos processos por crimes de lesa-

majestade222

e “de forma mais terrível e feroz” no processo eclesiástico, nos quais o ofendido

era Deus e, por isso, a acusação seria obrigatória e pública. Neste ponto em linha mais próxima

a nosso estudo, não era admitida a incerteza na busca da verdade, nem tolerado o contraditório,

sendo antes exigida a colaboração forçada do acusado.223

Destaque-se que o processo inquisitório teria sido considerado em

caráter extraordinário em relação ao acusatório e que, de fato, assumiu posteriormente um

caráter ordinário, espalhando-se depois do século XVI por toda a Europa, para todos os tipos de

crimes.

Este procedimento de matriz inquisitória teria acabado se complicando

em virtude da multiplicação dos foros e das incertezas das competências, organizando-se

segundo um complexo código de provas legais, técnicas que seriam inquisitórias, tortura e

cânones da magistratura, que, por cinco séculos fizeram da doutrina do processo penal “uma

espécie de ciência dos horrores”.224

Retornando à pesquisa de Andrade, a Idade Média teria proporcionado

o surgimento de um direito local, fruto da tradição popular, sem os traços de um poder central

219

MAIER, Júlio B. J. Derecho processal penal: tomo I fundamentos. 2.ed. 3. reimp. Buenos Aires:

Editores Del Puerto, 2004, p. 446. 220

FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 521. 221

“El procidimiento inquisitivo se extendió por toda Europa continental, triunfando sobre el Derecho

germano y la organización señorial (feudal) de la administración de justiça, desde siglo XIII hasta el

siglo XVIII.” Cf. MAIER, Júlio B. J. Derecho processal penal: tomo I fundamentos. 2.ed. 3. reimp.

Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2004, p. 449. 222

Trazendo sustentação em Pagano, Carmignani e Carrara, Ferrajoli acentua o retrocesso bem maior que

teve o processo na Roma imperial do período fredericiano com respeito à inquisição da cognitio extra

ordinem. Acrescente-se que “neste período da inquisição introduzida por Frederico, tomou o lugar do

processo acusatório e só se procedeu a condenações”. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Op. cit. p. 589, nota 93. 223

FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 521. 224

Idem.

Page 61: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

59

como foi o romano. A forma de persecução criminal era fundamentalmente acusatória, mas não

na mesma medida em que ocorria em Atenas e em Roma. Este sistema apresentava-se sob forma

da legitimidade da acusação pertencente ao ofendido ou a seus familiares cujas provas seriam

sociais, verbais, físicas (representadas pelos enfrentamentos públicos ou duelos), do juramento e

às ordálias, em prejuízo de uma estreita tentativa de reconstrução da verdade. Neste cenário, o

papel do juiz poderia ser exercido pelo soberano ou por terceiro designado pelos contendores,

cuja função teria sido, basicamente, verificar a regularidade do procedimento. 225

Este direito local teria sido basilar para a instalação do conflito de

interesses entre os senhores feudais e os da monarquia que pretendia ampliar seus poderes. Ao

cabo desta disputa, teria sido consagrada a vitória dos soberanos, tendo ensejado o início do

absolutismo ou monarquia absoluta, com cumulação dos poderes de legislar, julgar e

administrar.226

Uma das formas que teriam sido utilizadas pelos soberanos para retirar

o poder dos senhores feudais teria sido a unificação de todo o poder jurisdicional na figura do

rei. Este novo modelo processual deveria substituir o antigo que seria marcado por uma total

ausência de fórmulas. Desta maneira, o modelo que teria sido eleito como o que melhor se

adaptava a essa necessidade era o proveniente do direito canônico, mantido vivo pela igreja,

universidades e glosadores.227

Em razão desta ruptura, o modelo local teria sido substituído por um

modelo processual mais civilizado e adequado a realidade histórica daquela época, sendo que a

ausência da utilização da força e a retomada da busca pela reconstrução da verdade teriam sido

seus traços marcantes. Assim, no que se refere a este aspecto, teria sido promovida uma

verdadeira “humanização do processo” que, em breve, apresentaria seus defeitos.228

Em que pese a difusão do sistema inquisitivo por quase toda a Europa,

o mesmo teria se apresentado em “diversas formas de regulamentação”, dependendo dos ideias

políticos de cada país e pela maior ou menor influência neles da Igreja Católica contra a

heresia.229

Diante destas distintas formas de manifestação do sistema inquisitivo,

dentro do que interessa ao presente estudo, pretendemos abordá-las de forma breve e objetiva

225

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 276-268. 226

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 268. 227

A substituição do direito local pelo direito determinado pelo monarca deu-se o nome de “recepção do

direito romano-canônico” que, na Europa, somente não obteve êxito na Inglaterra. Idem. 228

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 269. 229

Idem.

Page 62: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

60

sem contudo pretender esgotar o tema, eis que o mesmo não é objeto principal de nossa atenção

neste momento. Para tanto, o estudo lançará olhares ao período denominado de Idade Média e,

em seguida, ao direito contemporâneo, “pois, ao contrário do que comumente se pensa, o

processo inquisitivo continua presente entre nós”.230

Inicialmente, vale destacar que o sistema inquisitivo não teria sido o

mais utilizado pela Igreja Católica, principalmente no período compreendido entre o Império

Romano e a Idade Média. Ao reverso, o sistema mais adotado foi o acusatório.231

O processo acusatório teria sido abandonado por Inocêncio III,

fazendo ressurgir o processo inquisitório. Posteriormente, Lúcio III teria abandonado a

necessidade da presença dos inquisidores esperarem por uma denúncia (no sentido da atual

notitia criminis) podendo atuar contra os hereges “nos lugares suspeitos de heresia”.232

Este

modelo teria como alicerce a necessidade de consolidação da Igreja Católica em toda Europa,

afastando outras formas de manifestações religiosas, cuja caça aos hereges transformou-se seu

principal objetivo. Desta forma a Igreja Católica fez surgir um processo que ficou conhecido

pelo termo inquisição que, para uma melhor compreensão, deve ser divida em inquisição

medieval, espanhola e romana.233

Como forma de unificação do procedimento da Inquisição Católica,234

entre os instrumentos jurídicos utilizados como “guia aos inquisidores”,235

merecem destaque,

os “diretórios” ou “manuais dos inquisidores”. Os diretórios que mais de destacaram foram os

de Bernard Gui,236

o de Nicolás Eymerich237

e o de Heinrich Kramer e James Sprenger.238

230

Ididem. 231

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 269-270. 232

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 270-271. 233

Idem. 234

As “instruções” eram ditadas pela autoridade suprema do Santo Ofício, e nem sempre mantinham uma

mesma forma. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 271. 235

Ibidem. 236

Practica officii Inquisitionis heretice pravitalis de 1323. A obra também ficou conhecida como o

“Manual do Inquisidor”, destinada ao uso exclusivo dos inquisidores, tratava de como funcionava o

Tribunal de Inquisição do século XIII e XIV (medievo francês) e para facilitar a investigação da

heresia. “Seu poder e crueldade [do autor] foram objeto de atenção na obra Il Nome dela Rosa, de

Umberto Eco.” Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 271. 237

Directorium Inquisitorum de 1376. Nicolás Eymerich foi capelão dos Papas Gregório XI e Clemente

VII e nomeado Inquisidor-Geral da Coroa de Aragón em 1357. Posteriormente, Francisco Peña

comentou a obra e colocou-a em dia com a prática e instruções espanholas. Cf. ANDRADE, Mauro

Fonseca. Op. cit. p. 271. 238

Malleus Maleficarum de 1484. Para maiores informações sobre esta obra, inclusive para o fato de que

o livro não teria recebido reconhecimento oficial da Igreja Católica, como se costuma afirmar,

recomendamos também assistir ao documentário produzido pelo National Geographic Channel

(NatGeo) de 2010. Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=LXSMTABPa9E>. Acesso

em: 13 jan. 2013.

Page 63: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

61

Deste ponto, seguindo a pesquisa de Andrade,239

o procedimento

judicial inquisitório será estudado a partir dos instrumentos jurídicos utilizados pelos próprios

inquisidores.

Fundado nestes documentos, a Inquisição Católica medieval teria

produzido sua primeira manifestação em 1178, na região Sudeste da França. Entretanto, teria

sido em 1233 que os tribunais inquisitoriais teriam se institucionalizado e adquirido caráter

permanente, “outorgando competência geral aos delegados para o exercício do poder

inquisitorial”.240

Estes tribunais teriam sido formados por um inquisidor que atuava por

delegação do Papa, recebendo o poder jurisdicional eclesiástico. Além do inquisidor, teriam

havido ainda outros funcionários, dos quais, os mais importantes eram os vicários e os notários.

Os primeiros desempenhavam funções variadas no processo e teriam sido os segundos quem

transcreviam o interrogatório do imputado, a prova testemunhal e todos os demais atos

praticados no processo.241

O processo teria tido por finalidade, além da punição aos hereges, a

conversão dos mesmos. As penas, por sua vez, eram, inicialmente, o exílio e o desterro,

estendendo-se, posteriormente para a deportação com a possibilidade de aplicação de apena de

morte aos casos mais graves. Num terceiro momento, as penas poderiam ser de prisão, confisco

de bens, a destruição da casa do herege ou outra pena infamante.242

O procedimento teria possuído dois editos, o de graça e o de fé. O

edito de graça teria permitido que o herege confessasse sua culpa, suportando ao invés da pena

mais grave, penitências leves. Por outro lado, o edito de fé “ordenava a todas as pessoas que

denunciassem ao inquisidor os casos suspeitos de heresia”.243

O edito de fé teria tido seu início com a citação do herege motivada

por uma notitia criminis ou pela simples diffamatio da opinião púbica. Destaque-se aqui que o

depoimento de apenas duas testemunhas que confirmassem os termos da notitia criminis ou

diffamatio era suficiente para uma condenação,244

ao passo que para que tivesse direito a um

defensor, teriam sido necessárias as palavras de dez testemunhas em favor do acusado.245

239

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.

Curitiba: Juruá, 2011. 240

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 274. 241

Idem. 242

Ibidem. 243

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 274-275. 244

LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 8. ed. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 60. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 275. 245

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 278.

Page 64: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

62

Evidente e talvez inconcebível no atual momento do desenvolvimento

do processo penal a posição do acusado diante desta forma de responsabilização criminal.

Mesmo o direito mais elementar, qual seja, a assistência por defensor não raramente teria sido

inviabilizada. Imaginem-se então as demais garantias ao acusado! Nesta época nem sempre teria

sido garantido o direito ao contraditório, o conhecimento dos nomes das testemunhas e

tampouco o direito a um defensor. A tortura considerada hoje como garantia fundamental

negativa absoluta teria sido introduzida em 1252 e a respectiva sentença teria sido pública, mas

irrecorrível.246

Segundo as disposições do Directorium Inquisitorum e do Malleus

Maleficarum, o processo canônico da inquisição medieval teria possuído como características,

dentro do que aqui interessa diretamente ao nosso estudo, o fato de que o processo poderia ser

iniciado por meio de uma acusação, notitia criminis ou de ofício.247

Neste ponto, merece

destaque a circunstância de que, quase invariavelmente, o inquisidor era procurado por um

delator que narrava casos de heresia. Assim, seria facultado ao delator figurar no processo como

acusador ou apenas como fonte dos fatos. Pretendendo figurar como acusador, o delator seria

informado da existência da pena de talião. Por meio de tal reprimenda, “caso não fosse

demonstrada a veracidade da acusação, a pena prevista inicialmente ao acusado deveria ser

aplicada ao acusador”.248

Em razão desta característica, a figura do acusador não teria sido

muito utilizada para ensejar o início do processo.249

Desta forma, após a negativa de figurar

como acusador no processo, a informação apresentada pelo delator era admitida como notitia

criminis, ensejando a abertura do processo.250

Neste ponto, a inatividade das partes (no caso a

acusação) teria tido, basicamente, como consequência, a substituição do modelo acusatório pelo

inquisitório, pois comprometida a eficácia do combate à delinquência.251

246

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 275. 247

Anote-se que até os dias atuais existem em algumas antigas Igrejas Espanholas as chamadas “bocas de

leão” ou “bocas da verdade”, que eram gavetas ou caixas destinadas a receber denúncias anônimas de

heresia. Cf. LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 8.

ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 60. 248

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 276. 249

A ideia da figura do acusador, inclusive, teria sido desencorajada pelo Malleus Maleficarum, pois este

documento teria previsto o dever do juiz de tentar evitar o processo por meio de uma acusação. A

justificativa teria sido assim apresentada, pois “os atos criminosos das bruxas em conjunto com os

demônios são praticados em segredo, e o acusador, por esse motivo, não pode ter provas conclusivas

da veracidade de seu depoimento”. Neste mesmo sentido, o Directorum Inquisitorum teria trazido a

inscrição “Nella pratica inquisitoriale non è il método migliore; è pericoloso e molto discutibile”.

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 276. 250

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. idem. 251

LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 8. ed. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 57.

Page 65: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

63

Na mesma medida, o procedimento teria previsto a atuação de ofício

pelo inquisidor, quando não houvesse um acusador ou delator, mas sempre que “vozes públicas”

indicassem a prática de heresia.252

Assim, o inquisidor atuaria de ofício na abertura do processo.

No que se refere à defesa, o Directorium Inquisitorum e o Malleus

Maleficarum teriam apontado a ausência das figuras do juiz253

e do advogado, sendo que ao

acusado não teria sido permitido o conhecimento do conteúdo das imputações, os debates e

apelações.254

Mais uma vez seria percebida a posição de inferioridade e a forma de

mero objeto de investigação na qual se revestia a figura do acusado. O processo teria sido

vislumbrado como forma de investigação secreta pela qual a ausência de participação e de

garantias ao acusado seriam traços definidores.

Seguindo ainda a linha das várias manifestações do sistema

inquisitivo, o presente estudo restaria incompleto se não estivesse presente o procedimento

adotado pela Inquisição Espanhola, rotulada pelo seu “rigor exorbitante” 255

ou mesmo por ter

sido “considerada a mais violenta e sanguinária entre as Inquisições Católicas”.256

A Inquisição Espanhola teria sido criada em 1478,257

teria tido a

finalidade de reprimir a heresia258

sendo a obra de Eymerich utilizada inicialmente como

documento fundante. Entretanto, os excessos praticados pelos inquisidores teriam exigido uma

nova postura e novos regramentos. Assim, para evitar novos excessos e atualizar o direito

inquisitorial vigente, teria sido promovido, em 1483, a Inquisidor-Geral de Aragón e de

Castilha, cargo máximo do Santo Ofício, o frade Tomás de Torquemada.259

252 Ibidem. 253 Apesar desta orientação, teria sido possível identificar em algumas passagens do procedimento, a atuação do juiz, como, por

exemplo, na autorização da utilização de tortura. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 281. 254 Quanto ao recurso de apelação, somente teria sido admitido quando fossem inobservadas pelo inquisidor as regras processuais,

conduzindo a invalidade ou nulidade da sentença. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 284. 255 MANZINI, Vincenzo apud ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 285. 256 As instruções de Torquemada teriam deito menção expressa a “guerra santa”. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Inquisição

espanhola e seu processo criminal: as instruções de Torquemada e Valdés. Curitiba: Juruá Entretanto, isto não quer dizer, 2011.

p. 10. 257 “Entretanto, isto não quer dizer que a Inquisição Medieval não houvesse chagado à Espanha. Ela se estabeleceu em território

espanhol em 1232”. Cf. ASENJO, Enrique apud ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios

reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011, p. 285. 258 Entretanto, teria sido em realidade, um dos motores da criação da inquisição na Espanha, a necessidade de oferecer uma

“repressão política” para a manutenção da unidade do Estado espanhol. Teria sido criada a pedido dos reis católicos Isabel de

Castilha e Fernando de Aragón. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 285. 259 ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 286.

Page 66: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

64

Desta forma, como complemento aos diretórios e decretos já

existentes, teriam sido expedidas instruções por Torquemada, a primeira delas em 1484,

reunidas posteriormente, em 1532, numa compilação.260

As novas instruções teriam se diferenciado de suas antecessoras, na

medida em que, em síntese,

Enquanto os outros textos regulamentadores do processo repressivo

católico seguiam à risca o modelo processual recebido do direito

romano – que concedida uma maior liberdade ao julgador para atuar

em substituição ao acusador – as instruções espanholas inovaram ao

exigir a presença obrigatória de um acusador público identificado

como sendo o “Fiscal” ou “promotor fiscal”, que tinha o dever de

apresentar uma denúncia (que hoje corresponderia a uma notitia

criminis) ou uma acusação formal, que deveriam satisfazer a certos

requisitos sob pena de nulidade. Em razão disso, as instruções da

inquisição espanhola retiraram dos inquisidores a possibilidade de

acusar, fato que as erige à condição de ser um dos primeiros diplomas

a conceder ao Ministério Público a exclusividade acusatória.261

Neste período de observância das instruções de Torquemada crime e

heresia teriam se confundido. Apenas no ponto que nos interessa ao estudo, os processos teriam

sido iniciados do mesmo modo que na Inquisição Medieval, através da acusação, notitia

criminis ou de ofício.262

Nesta primeira fase do procedimento, chamada também de pesquisa, o

que teria ficado bem claro era a não participação do acusado e, até mesmo seu total

desconhecimento das investigações e/ou existência de um processo contra ele, ante a ausência

de qualquer previsão de sua intervenção.

Ao fim da pesquisa, a legitimidade ativa exclusiva para acusar

pertenceria ao Fiscal ou Promotor Fiscal, restando excluída a figura do acusador particular ou

do acusador popular. Aqui teriam sido diferenciadas as funções de julgar a acusar, percebida,

260

Copilación delas Inftructiones del Officio dela fancta Inquificion, hechas poe el muy Reuerendo feñor

fray Thomas de Torquemada Prior del monafterio de fancta cruz de Segouia, primero Inquifidor

general delos reynos y feñoríos de Efpaña. 261

ANDRADE, Mauro Fonseca. Inquisição espanhola e seu processo criminal: as instruções de

Torquemada e Valdés. Curitiba: Juruá, 2011, p. 12. 262

Teriam existido também os editos de graça e os editos de fé. Por este motivo, teria também existido a

atuação dos chamados de qualificadores, que se encarregavam de investigar sumariamente a

confirmação da suspeita. Note-se que em casos notórios, como os de maometismo ou judaísmo, esta

investigação teria sido desnecessária. Esta inquisitio era teria sido a forma habitual de início do

processo e teria ocorrido de duas maneiras, pela atuação preventiva realizada anualmente pela Igreja

Católica, quando os inquisidores visitavam vilas ou povoados, chamada de inquisitio geral e pela

chamada inquisitio especial, quando, de antemão, o inquisidor sabia quem era o suspeito pela prática

de atos de heresia. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios

reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011, p. 287-288.

Page 67: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

65

diga-se de passagem, como “ícone do sistema acusatório”,263

mas que teria sido utilizada pelo

sistema inquisitivo em estudo.

Quanto à defesa, as Instruções de Torquemada teriam previsto a

possibilidade de assistência por intermédio de um advogado, sempre que o acusado solicitasse e,

quando este não tinha condições financeiras, os custos eram suportados pelo Santo Ofício, por

meio dos bens confiscados de outros hereges. Aqui teria havido total deturpação das funções

advocatícias, na medida em que apesar de poder apresentar testemunhas e todo tipo de

argumento permitido legalmente a figura do advogado teria sido “inquisitorializada”,264

deixando de ser um membro da sociedade, convertendo-se em outro funcionário do Santo

Ofício a serviço da inquisição. Desta forma, o advogado foi um verdadeiro “colaborador do

inquisidor” ou ainda um “delator de seu próprio cliente”.265

O rompimento definitivo da Inquisição Espanhola com a Inquisição

Medieval teria ocorrido décadas mais tarde com as instruções emitidas no período em que

Fernando Valdés foi o Inquisidor-Geral, tendo pretendido colocar em dia e uniformizar o

procedimento que deveria ser adotado pelos inquisidores.266

As instruções de Valdés por sua vez teriam sido publicadas na cidade

de Madri, em 1561 e apenas no que aqui nos interessa, teriam previsto a continuidade da

confusão entre heresia e delito, bem como das inquisições geral e especial, observando-se,

entretanto, diferença em relação à natureza jurídica da pesquisa.267

Durante o período de Torquemada a natureza jurídica da pesquisa

teria sido processual, no período de Valdés, esta mesma fase teria recebido natureza jurídica de

atividade meramente “administrativa ou pré-processual”.268

Assim tornou-se tendo em vista que

a fase processual orquestrada por Valdés somente poderia ser iniciada após o oferecimento de

uma notitia criminis apresentada exclusivamente pela figura do Fiscal.269

Finalizada a inquisitivo, em seguida, tendo os inquisidores qualificado

os fatos investigados como heréticos, o Fiscal deveria apresentar sua notitia criminis contra a

263

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 288. 264

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 290. 265

Idem. 266

As instruções mencionadas teriam ficado também conhecidas como Copilación delas Inftructiones del

Officio dela fancta Inquificion, fechas em Toledo, año de mil y quinhentos y fefenta y um años. Cf.

ANDRADE, Mauro Fonseca. Inquisição espanhola e seu processo criminal: as instruções de

Torquemada e Valdés. Curitiba: Juruá, 2011, p. 15. 267

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.

Curitiba: Juruá, 2011, p. 294. 268

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 294. 269

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 294.

Page 68: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

66

pessoa investigada. Além da heresia, o Fiscal também teria acumulado a função de promover

acusação de crime diverso que eventualmente tivesse sido confessado pelo herege durante seu

interrogatório. Entretanto, esta nova acusação de crime não eclesiástico se destinava “apenas ao

agravamento dos delitos de heresia, como sinônimo de sua má cristandade”.270

Oferecida a acusação, o notário deveria lê-la na presença do imputado,

e os inquisidores obrigatoriamente lhe nomeariam um advogado que, mais uma vez, seria

funcionário do Santo Ofício e que admoestava o acusado para que confessasse a verdade,271

fazendo tábula rasa das atribuições inerentes ao ofício.

Quanto aos inquisidores, teriam seguido as mesmas diretrizes do

período de Torquemada, “não havendo qualquer instrução que permita uma atuação de ofício

por parte do inquisidor, tanto para acusar, como para apresentar alguma prova condenatória”.

Pelo contrário, as instruções de Valdés teriam deixado claro que qualquer acusação somente

poderia ter sido oferecida pelo Fiscal, bem como a tortura e todas as diligências destinadas a

formação da culpa do acusado deveriam ser requeridas expressamente pelo acusador.272

Neste momento histórico, mais uma vez se constataria a distinção

entre acusador e julgador, chegando a serem atribuídas as denominações ao acusador e ao

acusado de “partes” ou “parte”, evidenciando a diferença entre estes e o órgão julgador. Após a

instrução, os inquisidores, o juiz ordinário e os consultores do Santo Ofício se reuniam para

julgar o processo em segredo, sendo os inquisidores os últimos a votar, apresentando parecer

devidamente fundamentado. Teria sido possível a apelação que seria encaminhada ao conselho

do Santo Ofício, exceto se apresentada contra a sentença de tortura, pela qual os inquisidores

poderiam não dar seguimento a ela.273

A Inquisição Espanhola teria sido alvo de extinção por Napoleão

Bonaparte em 1808, mas a mesma foi revivida por Fernando VII em 1814. A extinção definitiva

teria ocorrido pelas mãos da regente Maria Cristina em 1834.

Por fim, também apenas no que aqui nos interessa diretamente, Roma

teria também vivido a inquisição, em “caráter mais brando e civilizado, mais técnica e menos

270

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 296. 271

Idem. 272

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 299. 273

“A única oportunidade em que as instruções de Valdés orientaram a atuação subjetiva dos inquisidores

foi para chamar-lhes atenção para que atuassem com grande cuidado nos assuntos relacionados à

defesa do imputado. Mais especificamente, que atuassem com o mesmo zelo que exerciam durante a

averiguação da culpa deste último, de modo que a inocência dele também pudesse ser comprovada”.

Idem.

Page 69: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

67

sanguinária”274

que as demais. Teria sido iniciada em 1542 com Paulo III, com o objetivo de

figurar como resposta à reforma protestante e para funcionar como Supremo Tribunal da Igreja

nos delitos de fé.275

Na verdade, a Inquisição Romana não teria sido nenhuma novidade

para a Itália, pois o mesmo país teria vivenciado seus princípios através da Inquisição Medieval,

através do Directorium Inquisitorum de Eymerich, atualizado após duzentos anos de

existência.276

Ao que consta, a Inquisição Romana teria tentado, realmente,

diferenciar os culpados dos inocentes, produzindo, não raramente, a escusa do imputado do

procedimento inquisitorial. Entretanto, a inquisição Romana não teria ficado imune às

influências da Inquisição Espanhola, tendo sido incorporadas ao seu procedimento.277

Na mesma medida em que na Espanhola, o processo na Inquisição

Romana iniciava-se também por meio de uma acusação, notitia criminis ou de ofício, mas

admitia, ao reverso, a figura do acusador público. Também a defesa teria sido entendida como

direito do imputado e aos carentes de recursos financeiros nomeava-se um defensor, funcionário

da Inquisição.278

O direito canônico teria influenciado o direito comum onde o sistema

inquisitivo naturalmente teria surgido como o modelo de persecução penal idealizado pelo rei,

com o objetivo de colocar fim ao direito local e substituir os tribunais locais e populares,

reforçando a monarquia como única fonte válida de emanação de qualquer tipo de poder.279

Esta

disputa de poder entre os senhores feudais e a monarquia já foi objeto de nossos estudos.

Este novo olhar à justiça rapidamente teria se espalhado pela Europa,

variando os componentes do sistema entre os países, mas mantendo-se a estrutura. Como regra,

a acusação poderia iniciar-se de ofício, sem “qualquer possibilidade de existência de um poder

exclusivo em mãos alheias ao rei”.280

Neste modelo, teria tido o juiz a possibilidade de atuar na

investigação e na instrução criminal, mas que, não necessariamente tomava o depoimento das

testemunhas, podendo haver a delegação de tal mister. Desta forma, a decisão seria tomada com

274

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 300-301. 275

Idem. 276

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 301. 277

Idem. 278

Ibidem. 279

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 302-303. 280

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 303.

Page 70: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

68

fundamento no “material probatório que o juiz ou esses funcionários haviam obtido”.281

Entretanto, para diminuir o poder daqueles encarregados de julgar, o método de valoração da

prova teria sido o legal.

Mais uma vez, como em uma reprise, no que se referiria ao acusado,

este em quase nada poderia intervir, entretanto, era permitido ao mesmo apelar das decisões,

onde o último degrau teria sido representado pelo próprio rei.282

Desta forma, encerramos o estudo do sistema inquisitivo em suas

manifestações católica e comum, chamada de “histórica”,283

e, assim, poderíamos constatar pelo

estudo do sistema inquisitivo que existiria um certo padrão, no que se refere à legitimidade para

praticar os atos que dão início ao processo.284

Este padrão seria representado pelo fato de que, em todos os modelos

estudados, conforme seus documentos históricos, o início do processo teria ocorrido por ato do

acusador, do noticiador (a própria vítima ou um cidadão comum) ou do próprio juiz. Estas

características podem ser traduzidas como a desnecessidade de um acusador distinto do juiz,

onde se teria feito ausente o princípio acusatório.285

Ademais, segundo Andrade,286

alguns países hoje em dia,

apresentariam ainda traços típicos do sistema inquisitivo, que não teria sido extinto pela

Revolução Francesa.287

/ 288

Nesta linha, atualmente na Itália e Alemanha, por exemplo, o sistema

processual penal daqueles países ostentaria característica, em determinadas circunstâncias, do

sistema inquisitivo. A afirmação teria fundamento nas hipóteses previstas naqueles sistemas de

que o Ministério Público, “em termos práticos, será um mero representante do Poder Judiciário,

unificando neste último as figuras de quem tem a missão de acusar e julgar”289

de maneira

“disfarçada”.290

281

Idem. 282

Ibidem. 283

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 328. 284

Idem. 285

Ibidem. 286

Ibidem. 287

Ibidem. 288

“o sistema inquisitório vem, de forma velada, ganhando espaço entre alguns operadores do direito.

[...]. ”. O sistema inquisitorial, nascido na Idade Média, vem florescendo ao invés de ser combatido

ferrenhamente.” Cf. SILVA FILHO, Edson Vieira da. A sedução do sistema inquisitorial no sistema

penal. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, n. 25, jul./dez. 2007, p. 71. 289

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 331. 290

Idem.

Page 71: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

69

A justificativa apresentada, em síntese, referir-se-ia a possibilidade de

o Ministério público não possuir autonomia para requerer o arquivamento da ação penal, sendo

obrigado a oferecê-la, sob determinação expressa do Poder Judiciário, em verdadeiro controle

externo do acusador público italiano e alemão. Ademais, o exercício do princípio acusatório

material que, em sua plenitude pertenceria ao Ministério Público daqueles países, não se

confirmaria na realidade, representada apenas pelo princípio acusatório formal, ante a ausência

efetiva do princípio acusatório.291

Como exemplo ainda da atual presença de traços inquisitoriais em

sistemas penais, poderíamos mencionar o caso da Espanha, mais claro e evidente do que os

demais. Tratar-se-ia aqui do chamado juicio de faltas, que podem ser equiparadas, segundo o

Direito brasileiro, às Contravenções Penais. Assim, diante da pouca ofensividade das condutas

típicas, a legislação espanhola de 1992, reformada, mas mantida a mesma redação em 2002,

teria tornado prescindível a atuação do acusador público quando do início do processo. Desta

forma, teria havido a equiparação, por decisão do Tribunal Constitucional espanhol, das

expressões notitia criminis e acusação, tendo restado a cargo do juiz as funções de acusação e

julgamento.292

Por fim, há quem sustente que o sistema inquisitório ainda existiria,

em sua forma pura, “permanecendo em sua mais radical constituição no Direito Canônico, com

todo vigor em pleno século XXI”,293

onde haveria não mais a “queima pública, mas psíquica e

moral”294

ou ainda a “morte psicológica do condenado”.295

Desta forma, ausente a figura do acusador público, as funções de

acusar e julgar teriam ficado ao encargo exclusivo do juiz, traço marcante percebido no sistema

inquisitivo, como já estudado.

Nesta linha de exposição, podemos perceber que o juiz que teria

atuado no sistema inquisitivo histórico ou o que atua no sistema inquisitivo contemporâneo

exerceria, por vezes, as funções de acusador, de investigação e de julgamento. Assim, em quase

todos os modelos estudados, o juiz que participava da investigação também participava do

julgamento.

291

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 332. 292

Existem entendimentos em contrário, ratificando a decisão do Tribunal Constitucional espanhol,

segundo os quais a imparcialidade do juiz foi preservada pelo Tribunal, não havendo cumulação de

funções. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 332-340. 293

LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 8. ed. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2011,v. 1, p. 56. 294

KÜNG, Hans. Preguntas sobre la inquisición. Apud LOPES JUNIOR, op. cit. p. 56. 295

BOFF, Leonardo. In Prefácio da tradução brasileira do Manual dos Inquisidores, p. 24. Apud LOPES

JUNIOR, Aury. Op. cit. p. 56.

Page 72: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

70

Entretanto, Andrade296

adverte que, por esta razão, parte da doutrina

sustenta que este acúmulo de funções investigadora e decisória seria um dos elementos

característicos do sistema inquisitivo.297

Concatenadas as variações do sistema inquisitorial, poder-se-ia

perceber que este acúmulo das funções de investigar e julgar não seria um seu elemento fixo,

podendo esta mesma característica ser percebida também em outros sistemas. Como exemplo, o

sistema misto que teria sido criado em 1808 pelo Code d‟Istruction Criminelle na França298

e

que serviu de modelo para vários países para dar fim ao sistema inquisitivo, onde se permitia ao

juiz que investigasse também a função de julgamento. Na verdade, esta proibição de acúmulo de

funções teria ocorrido em momentos posteriores e de modo progressivo, como exemplo o Brasil

em 1824, a Espanha em 1882 e a própria França somente em 1897. Destaque-se ainda que, o

acúmulo de funções do juiz passou a ser elemento exclusivo do sistema inquisitivo após a sua

retirada do sistema misto.299

A hoje almejada separação de funções teria sido justificada também

naquela época pela preocupação com a neutralidade do julgador. Em outras palavras, o acúmulo

destas funções no sistema inquisitivo poderia levar-se a crer que o mesmo sistema não estava

minimamente preocupado com a questão da neutralidade ou imparcialidade do julgador.

Entretanto, ressalva seja feita a este entendimento, na medida em que o sistema inquisitivo

permitia ao acusado a recusa do juiz em casos de reiteradas violações do procedimento e na

hipótese de interesse na causa. Com isso, a decantada imparcialidade do juiz também teria sido

objeto de busca pelo sistema em questão. A matéria seria entendida em outra medida, pois o que

não existia era uma relação entre o acúmulo das funções e a violação da imparcialidade do

julgador. Investigar e julgar não teriam sido consideradas funções incompatíveis.300

296

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 367. 297

LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro:

Lumen Juris, 2001, p. 244-245. Na mesma linha “El poder de perseguir penalmente se confunde,

según hemos visto, com el de juzgar y, por ello, está colocado em las manos de la misma persona, el

inquisidor”, cf. MAIER, Júlio B. J. Derecho processal penal: tomo I fundamentos. 2.ed. 3. reimp.

Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2004, p. 447. 298

Entretanto, admitindo inclusive a „surpresa‟ da afirmação, a primeira manifestação de um modelo de

processo com os mesmos elementos fixos e estrutura do sistema misto, dataria de 1561, pois “a forma

como este sistema está estruturado já esteve presente cerca de duzentos e cinquenta anos antes [...],

pois as instruções de Fernando de Valdés possuíam os mesmos elementos fixos e a mesma estrutura

bipartida do sistema misto. [...]. Assim, não há como dizer que Napoleão haja sido o criador do

sistema misto”, cf. ANDRADE. Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios

reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011, p. 415 e 429. 299

ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 368. 300

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 368-370.

Page 73: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

71

Entretanto, conforme apontado por alguns autores301

reconhece-se que

a ausência de imparcialidade do julgador, quando comparada ao modelo acusatório, seria o

principal defeito do sistema inquisitivo.302

Nesta linha, Andrade propõe uma conduta ativa do

juiz durante a fase probatória, “desde que condicionada à observância de certos requisitos”,303

sem, contudo, aponta-los, como forma de possível solução, dentre outras, ao modelo inquisitivo.

Por outro lado, há quem sustente que “o sistema inquisitório foi desacreditado – principalmente

– por incidir em um erro psicológico: crer que uma mesma pessoa possa exercer funções tão

antagônicas como investigar, acusar, defender e julgar”.304

Merece aqui atenção a posição de Andrade305

quanto ao preconceito

que existiria em relação ao sistema inquisitivo. O autor constrói entendimento segundo o qual

também o sistema acusatório teria produzido tantos problemas quanto o inquisitivo e que os

problemas que foram percebidos no sistema inquisitivo, teriam ocorrido em seus elementos

variáveis que, por sua vez, podem estar presentes em outros sistemas processuais. Em outras

palavras, afirma que o sistema acusatório teria proporcionado, da mesma forma que o

inquisitivo, os mesmos abusos e excessos. Como exemplo, menciona a tortura praticada no

modelo acusatório ateniense e romano,306

as ordálias como critério divino e os duelos como

critério de força.307

O mesmo autor menciona ainda o fato de que, dentre todas as

variantes, não teriam sido todos os modelos de sistema inquisitivo existentes que

proporcionaram os excessos conhecidos e que o modelo em questão não seria incompatível com

regimes democráticos. Exemplo da possibilidade de coexistência do sistema inquisitivo e

democracia seriam os sistemas inquisitivos contemporâneos.308

Estudado o sistema inquisitivo, por fim, retornando aos apontamentos

anteriores, seríamos então levados a entender que os elementos fixos que definem o sistema em

tela são exatamente os opostos aos que definem o sistema acusatório, quais sejam, o caráter

prescindível da presença de um acusador distinto do juiz, e o fato de o processo ser instaurado

301

BUZAID, Alfredo. Da apelação ex-offício no sistema do código do processo civil. MARQUES, José

Frederico. Elementos de direito processual penal. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Cf.

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 388. 302

Este comprometimento da imparcialidade seria “inevitável”, cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas

processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp. Curitiba: Juruá, 2011, p 448. 303

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 389. 304

Cf. LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 8. ed. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 62. 305

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 383-390. 306

Em sentido contrário, pela característica garantista destes modelos, Luigi Ferrajoli, Fauzi Hassan

Choukr e Antônio María Lorca Navarrete, cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 386. 307

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 387. 308

ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 389.

Page 74: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

72

por acusação, notitia criminis ou de ofício pelo juiz. Ainda não se perca de vista que, conforme

estudado, o maior defeito do sistema inquisitivo seria o risco de inexistência da necessária

neutralidade do julgador diante da acumulação das funções inerentes ao sistema.

2.4. Sistema Misto, Garantismo e Iniciativa Instrutória do Juiz

Seguindo com nosso estudo sobre os sistemas processuais e,

especificamente, sobre a atuação do julgador em relação aos atos de investigação em cada

sistema, sem pretender esgotar o assunto e nem mesmo discorrer sobre todos os fatores que

levaram ao fim do sistema inquisitivo, substituído pelo misto, iniciamos pelos fatores de seu

surgimento.

Na construção de Ferrajoli, o Código tertoriano de 1795 e depois o

Código napoleônico de 1808 teriam dado vida ao que o autor chamaria, citando Pagano, de

“monstro, nascido da junção entre os processos acusatório e inquisitório, que foi assim

denominado de processo misto”,309

com prevalência inquisitória na primeira fase, escrita, secreta,

dominada pela acusação pública e pela ausência de participação do

imputado quando este era privado de liberdade; tendentemente

acusatório na fase seguinte dos debates, caracterizada pela

observância do contraditório público e oral entre acusação e defesa,

porém destinado a se tornar uma mera repetição ou encenação da

primeira fase.310

Esta orientação de matriz mista se espalhou por toda a Europa,311

tendo adquirido robustez especialmente na Itália inclusive no Código Rocco de 1930, “com

apenas algumas variações marginais”. A relação entre os dois sistemas continuaria na era

republicana italiana, com a introdução “de fracos elementos acusatórios na fase instrutória e um

progressivo esvaziamento da fase dos debates, reduzida a mera e prejulgada duplicação da

primeira”. Problemas que seriam superados, em parte, pelo novo código de processo italiano.312

Para Andrade, a prática da tortura como meio de busca da verdade, os

erros judiciários causados por ela e a defesa processual deficitária, teriam sido os grandes

motivadores de um movimento que teve seu início na segunda metade do século XVIII,

chamado de Movimento Iluminista que, entre outras, teria tido como aspiração, dar fim ao

309

Idem. 310

FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 522. 311

Adotado por exemplo, na Holanda, Bélgica, Espanha, Portugal, Prússia, Luxemburgo, Sérvia, Rússia,

Grécia, Romênia, além de outras regiões como no Egito, México e Japão. Cf. FERRAJOLI, Luigi. Op.

cit., p. 593, nota 105. 312

FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 522.

Page 75: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

73

sistema inquisitivo. Este movimento teria ainda sustentado a adoção de um novo modelo de

processo, equivalente ao acusatório romano.313

Maier compartilharia do mesmo entendimento, na medida em que

entenderia que a Revolução Francesa e o Movimento Iluminista teriam iniciado uma “nova era”.

Entretanto, apresentaria construção no sentido de que o surgimento do sistema misto

representaria a consequência de uma reforma no sistema inquisitivo.314

As chamadas “metas absolutas” do sistema inquisitivo, quais seriam, a

persecução penal pública e a busca da verdade histórica, a ponto de permitir-se a utilização de

quaisquer meios para alcançar estes fins, se transformaram em “valores relativos” importantes,

mas superados pelos atributos da pessoa humana que teriam passado a prevalecer sobre aqueles

e teriam condicionado os meios pelos quais poderiam ser alcançadas aquelas metas. Estes

atributos seriam entendidos como “regras de garantias e direitos individuais”. Entretanto, a

colisão entre estas ideias teria sido inevitável, originando como solução legislativa a divisão do

procedimento em duas etapas principais, ligadas por uma intermediária. Estas fases seriam

iniciadas por uma investigação de cunho inquisitivo norteada por certos limites, seguida por

outra que teria a condão de assegurar a lisura da imputação e, por fim, a “imitação formal de um

juízo acusatório” que culminaria com a absolvição ou condenação “fundadas unicamente nos

atos praticados durante esta última fase”.315

Diante deste novo entendimento sobre a persecução penal, o imputado

retoma seus status de sujeito de direitos, cuja posição jurídica durante o procedimento

corresponderia como a de um inocente, até ser declarado culpado e condenado por sentença

irrecorrível. Por esta razão, caberia ao Estado (acusador) demonstrar com clareza sua

culpabilidade e destruir este estado de inocência, adotando-se a máxima in dubio pro reo. Por

sua vez a privação da liberdade teria sido excepcional, reconhecendo-se a liberdade da defesa,

bem como a necessidade de defesa técnica. Teria havido ainda a equiparação entre acusado e

acusador em todas as suas faculdades.316

Após os movimentos de reforma, ter-se-ia optado pela máxima

aproximação ao processo acusatório romano, “erigindo-se o processo penal inglês como modelo

313

ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 398. 314

MAIER, Júlio B. J. Derecho processal penal: tomo I fundamentos. 2.ed. 3. reimp. Buenos Aires:

Editores Del Puerto, 2004, p. 449. 315

Em tradução livre, cf. MAIER, Júlio B. J. Derecho processal penal: tomo I fundamentos. 2.ed. 3.

reimp. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2004, p. 450-451. 316

Op cit. p. 452-453.

Page 76: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

74

para as reformas que vieram a se realizar”. Resultado disso foi reorganização do processo

francês em 1790 e 1791.317

O modelo de processo adotado teria repetido os mesmos defeitos do

processo penal acusatório romano, tendo sido elevados os níveis de impunidade. Para corrigir

esses problemas, houve uma sucessão de reformas, onde teria sido preservada a figura do

acusador público e a manutenção de uma fase prévia ao julgamento. O que teria sido feito então,

“foi misturar as características do modelo de processo presente no Code Louis – último

representante do modelo inquisitivo na França – às características do modelo acusatório

romano”.318

Desta forma, teriam sido afastados os problemas dos sistemas inquisitivo e do

acusatório e teriam sido aproveitadas as características que atingissem a finalidade do processo,

mas sem abusos em sua tramitação. Com esta intensão, nasceu o Code d‟Instruction Criminelle

de 1808, cujo modelo passou a ser chamado de sistema misto.319

Considerando o que interessa diretamente ao presente estudo, o Code

de 1808, previa então que a investigação criminal teria sido realizada pela polícia judiciária, da

qual teria feito parte, dentre outros, os juízes de instrução, nomeados e subordinados ao

Imperador. Os juízes de instrução ostentavam os mesmos poderes que um procurador imperial

tinha para investigar criminalmente e deveriam apresentar ao Procurador-Geral Imperial um

relatório sobre os fatos investigados, para que o mesmo apresentasse a acusação.320

Na segunda fase do processo, teria havido o abandono da prova legal e

adoção do critério do livre convencimento motivado dos juízes, sob pena de nulidade. Admitia-

se a apelação contra determinadas decisões.321

Esta forma de construção processual teria influenciado diversos países

da Europa e América, mas os problemas na fase de instrução não tardaram a serem percebidos,

pois sua ideologia se chocava com os ideais revolucionários. Com isso, teria sido iniciado um

movimento de reforma do Code em 1870. Entretanto, somente em 1897 este movimento obteve

êxito com a promulgação da Lei Constans que teria promovido uma grande renovação da fase

de investigação. Teria sido abandonada a característica inquisitorial e introduzidas algumas

317

ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 399. 318

ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 401. 319

Entretanto, conforme já noticiado, não teria sido o Code de 1808 a primeira manifestação deste modelo

de processo. A primeira manifestação teria sido na Espanha, em pleno período inquisitivo, nas

Instruções de Fernando Valdés, de 1561. Idem. 320

ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 403-404. 321

ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 405.

Page 77: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

75

garantias existentes no sistema acusatório. Dentre as novidades, teria sido encontrado o

princípio pelo qual o juiz que investiga não pode julgar.322

O procedimento em comento também teria recebido inúmeras críticas

e talvez, a maior delas seria no sentido de que teria servido a Napoleão, “um tirano” e que,

assim, “serviria a qualquer senhor; não serve a democracia”.323

O mesmo autor segue expondo

que:

ora, ou alguém imagina que Napoleão aceitaria o tal sistema bifásico

se não tivesse certeza de que era apenas mudar para continuar tudo

igual? Como bom tirano, jamais concordaria com uma mudança dessa

natureza se não tivesse certeza de que continuaria com o controle

total, através da fase inquisitiva, de todo o processo.324

Assim, somente a título de revisão, retomando apontamentos de nosso

estudo, o sistema acusatório seria caracterizado pela necessária distinção das figuras do

acusador e do juiz e pelo fato de que o processo somente poderia ser iniciado por meio de uma

acusação. Por sua vez, o sistema inquisitivo seria caracterizado pela prescindibilidade de um

acusador distinto do juiz e o processo poder ser iniciado por meio de uma acusação, notitia

criminis ou de ofício pelo juiz.

Nesta mesma medida, encerrado o estudo sobre o sistema misto,

poderíamos defini-lo pela presença de seus elementos fixos que, por sua vez, são percebidos nos

sistemas inquisitivo e no acusatório. Assim, seria caraterizado, na primeira fase, pela presença

de elemento fixo encontrado no sistema inquisitivo, qual seja, seu processo poderia ser iniciado

por notitia criminis, acusação ou de ofício. Por outro lado, no que se refere à segunda fase, esta

seria caracterizada pela presença de elemento fixo presente no sistema acusatório, qual seja, a

fase de julgamento somente poderia ser iniciada através de uma acusação oferecida por um

acusador distinto do juiz, não somente para a abertura, mas também ao longo do processo. Em

suma, na primeira fase imperaria, como forma de abertura do processo elemento fixo presente

no sistema inquisitivo e na segunda, ao reverso, de elemento fixo característico do sistema

acusatório, quanto a legitimidade ativa.

2.5. Sistema Brasileiro: Leitura Tradicional das Garantias Fundamentais – Normatividade

(legalidade Penal e Formalismo Processual)

322

ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 405-406. 323

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 8 ed.. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v.1, p. 64. 324

LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. p. 65.

Page 78: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

76

Após a Constituição Federal de 1988,325

os juristas brasileiros teriam

passado a dividir-se quanto ao sistema processual penal adotado. Estaríamos vivenciando um

sistema acusatório, inquisitório ou misto?

Em breves linhas, há quem sustente que o Brasil teria adotado o

sistema acusatório, também há quem sustente que teria sido adotado um sistema misto e até

mesmo quem aponte o sistema inquisitório como o modelo processual penal brasileiro.326

Quanto à jurisprudência brasileira, especialmente a do Supremo

Tribunal Federal, esta já teria sido firmada no sentido da adoção de um sistema acusatório no

Brasil.327

Por sua vez, sempre é pertinente recordar, Andrade328

defende que a

grande maioria da doutrina, algumas vezes norteada pela “manipulação de conceitos para

obtenção de resultados que convalidem posições ideológicas”,329

apresenta conceitos distintos

sobre o mesmo sistema processual penal, sem que os documentos históricos que os vivenciaram

fossem sequer mencionados.

325

Antes da Constituição, a doutrina “quase de forma unânime” caracterizava o sistema processual penal

brasileiro como misto. Cf. ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 455. 326

Reconhecendo a opção acusatória da Constituição Federal de 1988 (p. 73), mas defendendo que,

segundo a doutrina, esta “majoritariamente, aponta que o sistema brasileiro contemporâneo é misto

(predomina o inquisitório na fase pré-processual e o acusatório, na processual)” (p. 52). O mesmo

autor sustentaria ainda que, “fugindo da maquiagem conceitual”, preferiria adotar a expressão

“(neo)inquisitório” para definir nosso sistema (p. 63). Cf. LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual

penal. ed. v. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. No mesmo sentido de ser o sistema misto o

adotado no Brasil, cf. BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 167. Na linha de que o sistema acusatório foi a opção

legislativa em 1988, além da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro, cf.

FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 7. ed. São Paulo: RT, 2012. p. 240;

cf. LUZ, Denise. A busca da verdade no sistema acusatório e a investigação criminal no projeto de

reforma do código de processo penal brasileiro. Revista Magister de Direito Penal e Processual

Penal, n. 48, jun./jul. 2012, p. 62. O atual CPP, orientado pela CF/88, “adota o sistema

predominantemente acusatório, mas permite ao juiz determinar a realização de diligências, no curso

da instrução, para dirimir dúvidas sobre ponto relevante, cf. art. 156”. Cf. MARQUES, Leonardo

Augusto Marinho. O juiz moderno diante da fase de produção de provas: as limitações impostas pela

Constituição. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 24, p. 166. Conforme já apontado,

cabe aqui também a lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: “Todos os sistemas processuais

penais conhecidos mundo afora são mistos. Isto significa que não há mais sistemas puros, ou seja, na

forma como foram concebidos. [...].O sistema processual penal brasileiro atual, assentado no CPP de

41 (cópia do Codice Rocco, da Itália, de 1930, o fascista Vincenzo Manzini na dianteira), tem por base

– e sempre teve – a estrutura inquisitorial.”. Cf. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema

acusatório. Cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Disponível em:

<http://www2.senado.gov.br>. Acesso em: 27 jan. 2013. 327

Neste sentido: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental n. 2.913 / MT. Rel. Min.

Dias Toffoli, DJe 21.06.2012. Disponível em http://www.stf.jus.br. Acesso em 14 dez. 2012.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 102650 / RJ. Rel. Min. Ayres Britto, DJe

19.12.2011. Disponível em:< http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 14 dez. 2012. 328

ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas processuais penais e seus princípios reitores. 3. reimp.

Curitiba: Juruá, 2011, p. 452-463. 329

ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 452.

Page 79: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

77

Após o estudo sobre as posições existentes sobre o tema,

especialmente considerando a corrente majoritária que defende a adoção do sistema acusatório

no Brasil, segue o mesmo autor sustentando que “não haverá, de nossa parte, nenhum exagero

em se afirmar que nosso país não adota nenhum tipo de sistema processual penal, pois o que

temos hoje são modelos de processo”,330

e nosso direito processual penal vive uma “grave e

antiga crise de identidade”, o que provocaria um clima de profunda insegurança entre os

operadores do Direito.331

O afastamento do sistema acusatório pelo autor supramencionado

segundo ele próprio deve-se ao fato de que, nos sistemas inquisitório e misto, a titularidade da

ação penal também já teria sido em algum momento, concedida ao Ministério Público,

afastando-se a imagem de que esta característica é encontrada somente no sistema acusatório.332

Na mesma linha, as garantias processuais concedidas ao acusado pela

Constituição Federal de 1988333

que, por vezes são tidas como características marcantes do

modelo acusatório, também não seriam exclusividade do sistema em comento. Os processos

inquisitório e misto também já concederam garantias ao acusado, inclusive o sistema inquisitivo

denominado de “contemporâneo”.334

Por fim, a adoção do Estado Democrático de Direito não seria

condição que obrigaria a adoção de um sistema acusatório. A afirmativa não seria correta em

virtude da existência de processos de natureza inquisitiva em países democráticos, “como ocorre

na Alemanha, Itália e Espanha”.335

Como não bastasse, o modelo processual vigente em Atenas,

tida como berço da democracia, apontava uma matriz inquisitiva em pleno regime democrático.

Ainda como exemplo final, a Roma Republicana, no período do auge da democracia, teria

vivenciado situação similar.336

Importante assim destacar que os elementos apontados pela doutrina

em geral como essenciais ao sistema acusatório, analisados pelo contexto e documentos

históricos, não se confirmam. Segundo Andrade, o Brasil não adotou um sistema acusatório,

330 A expressão „modelos de processo‟ teria como referência a ausência de unidade da normatização processual penal do país, na

medida em que haveria a quebra do principium unitatis, que se constitui em um dos requisitos determinantes para a existência dos

sistemas processuais penais. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 468. “Não há um modelo processual penal definido na

Constituição da República. Há um sistema de garantias, inerente às determinações normativas de um Estado Democrático de

Direito, cuja função, essencial, é a realização dos direitos fundamentais”. Cf. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 5.

331 Com destaque em itálico no original. Cf. ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 461. 332 ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 454. 333 Registre-se que antes da Constituição Federal de 1988, o processo penal brasileiro concedia garantias ao acusado. A Constituição

de 1967 teria previsto a partir do artigo 153, os direitos e garantias individuais, mantidas pela Emenda Constitucional 1 de 1969,

inseridas em um “contexto não-democrático” . Cf. ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 455. 334 ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 455. 335 ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit. p. 456. 336 Idem.

Page 80: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

78

pois, as características apontadas como integrantes deste modelo também estariam presentes em

outros sistemas.

Noutra linha, Lopes Júnior definiria o processo penal brasileiro como

sendo um “monstro de duas cabeças (inquérito policial totalmente inquisitório e fase processual

com „ares‟ de acusatório [...]) é a nossa realidade diária, nos foros e tribunais do País inteiro”.337

Após, segue ainda definindo o sistema brasileiro ainda como “claramente inquisitório na sua

essência, ainda que com alguns „acessórios‟ que normalmente ajudam a vestir o sistema

acusatório (mas que por si só não o transforma em acusatório).” 338

O mesmo autor denunciaria uma “fraude”, argumentando que a prova

seria colhida na “inquisição do inquérito”339

e trazida integralmente para dentro do processo

que, ao final, resta imunizada pelo discurso do julgador de que, por exemplo, a prova do

inquérito foi corroborada pela prova judiciária. Assim, o processo terminaria por converter-se

em uma “mera repetição ou encenação da primeira fase”. Mas ainda não basta, Lopes Júnior

levanta a seguinte questão:

ademais, mesmo que não faça menção expressa a algum elemento do

inquérito, quem garante que a decisão não foi tomada com base nele? A

eleição (culpado ou inocente) é o ponto nevrálgico do ato decisório e pode

ser feita com base nos elementos do inquérito policial e disfarçada com um

bom discurso.

Ainda na linha de argumentação sobre o sistema brasileiro, admitindo

a oscilação doutrinária a respeito do tema, mesmo considerando a hipótese de ter o Brasil

adotado o sistema acusatório ou mesmo o misto, em ambos os casos, recordando os estudos

anteriores, um fator nos parece comum a ambos os sistemas, qual seja, a necessidade da

presença do princípio acusatório. Este princípio reitor ou elemento fixo estaria presente em

ambos os sistemas em comento. Desta forma, não seria ele suficiente para diferenciá-los.

Entretanto, se considerarmos este princípio como a necessidade da presença obrigatória de um

acusador distinto do juiz, há quem defenda340

que esta separação deve ocorrer durante todo o

curso do processo.

337 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 8 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v.1, p. 64-65. 338 LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. p. 69. 339 Alerta seja feito, conforme visão de GRINOVER, de que na fase do inquérito policial não se admite a iniciativa instrutória do

juiz na colheita da prova, o que somente poderia ocorrer, de forma supletiva, no curso do processo. Ao inquérito restaria apenas

uma atividade voltada para “providências cautelares”. A mesma autora defendia, já em 2005, uma separação entre o juiz do inquérito e o juiz da instrução. Cf. GRINOVER, Ada Pelegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório.

Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, jan./jul.2005. p. 15-26. 340 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 8 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v.1, p. 66-68.

Page 81: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

79

3 A INICIATIVA INSTRUTÓRIA DA JURISDIÇÃO E OS LIMITES NA DIMENSÃO

DO GARANTISMO

3.1 Garantismo e a matriz publicista do processo penal

Seguindo a mesma ideia apresentada no item anterior sobre a

separação de funções ao longo de todo o processo, uma separação apenas inicial seria

insuficiente, na medida em que durante o curso do processo o juiz assumisse uma postura ativa

na busca da prova ou mesmo na prática de atos tipicamente da parte acusadora. Como exemplo,

no Brasil, poderiam ser aqui mencionados a decretação de ofício da prisão preventiva ou mesmo

a conversão da prisão em flagrante em preventiva (artigo 310), busca e apreensão (artigo 242), a

decretação da medida de sequestro (artigo 127), o interrogatório do réu a qualquer tempo (artigo

196), a determinação de diligências (artigo 156, I e II), o reconhecimento de agravantes não

alegadas (artigo 385), condenação mesmo com pedido de absolvição do Ministério Público

(artigo 385), alteração da classificação jurídica do fato (artigo 383), etc., todos do CPP.341

Assim, “dispositivos que atribuam ao juiz poderes instrutórios [...] externam a adoção do

princípio inquisitivo, que funda um sistema inquisitório, pois representam uma quebra da

igualdade, do contraditório, da própria estrutura dialética do processo”.342

Desta forma, a

imparcialidade do julgador, principal garantia da jurisdição, restaria violada.343

Interessante registrar, neste momento, que haveria decisão proferida

pelo STJ344

confirmando tal posicionamento. Entretanto, o mesmo tribunal já proferiu decisão

no sentido de diferenciar iniciativa probatória e iniciativa acusatória do juiz, sendo inadmissível

apenas a segunda.345

A iniciativa instrutória do juiz seria sustentada pela escolha política

pertinente à concepção publicista346

à função social, na medida em que os objetivos da

341

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 8 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v.1, p. 66. 342

LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. p. 70. 343

Idem. 344

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus n. 23.945 / RJ, 6ª Turma, Rel. Min.

convidada do TJMG Jane Silva, DJe 16.03.2009. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em:

20 nov. 2012. 345

“[...]. 4. São diferentes iniciativa probatória e iniciativa acusatória, aquela é lícita, claro é, ao juiz em

atitude complementar – por exemplo, tratando-se de diligências cuja necessidade se origine de

circunstâncias ou fatos apurados na instrução (atual art. 402). 5. Já a iniciativa acusatória – o

desempenho das funções que competem a outrem – bate de frente com princípios outros, entre os

quais o da imparcialidade do julgador, e o da presunção de inocência do réu, e o do contraditório, e o

da isonomia [...]”. Cf. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 143.889 / SP, 6ª

Turma, Rel. Min. Nilson Naves, DJe 21.06.2010. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em:

20 nov. 2012. 346

No sentido da visão publicista do processo em divergência com a chamada “filosofia liberal-

individualista e de concepção minimalista de Estado”, cf. MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. O

juiz moderno diante da fase de produção de provas: as limitações impostas pela Constituição. Revista

da Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 24, p. 167.

Page 82: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

80

jurisdição e do processo se colocam em função do Estado e dos objetivos dele. A observância

das normas de direito material interessa à sociedade. O Estado tem que zelar por seu

cumprimento, pois “o processo possui uma função social”. O papel do juiz seria, considerando-

se a característica publicista do processo, obrigatoriamente ativo:

O objetivo da atividade jurisdicional seria a manutenção da integridade do

ordenamento jurídico. Para o atendimento da paz social, o juiz deve

desenvolver todos os esforços para alcança-lo. Entretanto, o mesmo papel

deste juiz deve, para que se torne efetivo e concreto, estimular o

contraditório. Deve ainda suprir as deficiências das partes, na medida em que

estaria superando a desigualdade e favorecer a par condicio.347

Complementando este entendimento, “o processo deixou de ser, há

muito tempo, a forma pela forma, [...]. O processo é uma ciência vocacionada ao debate,

vocacionada à participação e à formação de decisões constitucionalmente adequadas. É para

isso que o processo serve como ciência”.348

Por meio de outras palavras, há também quem sustente ser o processo

algo mais do que simplesmente a forma pela forma ou a técnica pela técnica, destacando aspecto

dualístico:

O processo penal não é apenas um instrumento técnico, refletindo em si

valores políticos e ideológicos de uma nação. Espelha, em determinado

momento histórico, as diretrizes básicas do sistema político do país, na eterna

busca de equilíbrio na concretização de dois interesses fundamentais: o de

assegurar ao Estado mecanismos para atuar o seu poder punitivo e o de

garantir ao indivíduo instrumentos para defender os seus direitos e garantias

fundamentais e preservar a sua liberdade.349

A compreensão do processo para Ferrajoli também seria sustentada no

fato de que ele ostentaria uma dupla função, com alicerces em Filangieri, Carrara e Lucchini, a

da punição dos culpados juntamente com a tutela dos inocentes,350

sendo esta segunda

preocupação que estaria na base de todas as garantias processuais que circundariam o processo e

que condicionariam de vários modos as instâncias repressivas. Ferrajoli sustentaria que o

processo possuiria ainda como fim “a descoberta da verdade”, diferenciando, contudo, a forma

como esta verdade é compreendida no sistema inquisitório e no acusatório. As garantias

347

Desta forma não seria possível imaginar um juiz “refém” das partes. Cf. GRINOVER, Ada Pelegrini.

A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista do Conselho Nacional de Política

Criminal e Penitenciária, Brasília, jan./jul.2005, p. 17. 348

NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático. Entrevista concedida a Gladston

Mamede no programa Direito em Debate. Disponível em:<http://www.youtube.com.br>. Acesso em:

27 jan. 2013. 349

FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 7. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 26. 350

Chamada pelo autor de “a lei do mais fraco”, cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do

garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz

Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 311-312.

Page 83: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

81

processuais poderiam ser consideradas como “garantias de verdade controlada pelas partes em

causa e da liberdade do inocente contra o erro e o arbítrio”.351

3.2. Iniciativa instrutória e aspectos psicológicos do juiz no modelo acusatório

A vedação aos poderes instrutórios, segundo alguns autores, seria

justificável, na medida em que traduziriam um verdadeiro “quadro mental paranoico”.352

Esta

afirmação se sustenta no fato de que se instalaria um primado das hipóteses sobre os fatos, pois

o juiz que atuasse na colheita da prova primeiro decidiria e depois iria à busca das provas que

justificariam aquela decisão.353

Assim, restaria evidente que “o recolhimento da prova por parte

do juiz antecipa a formação do juízo”.354

“Nesta linha, não haveria investigador imparcial, seja

ele juiz ou promotor”.355

Aqui, o convencimento não se daria pela prova produzida, mas esta

apenas serviria para demonstrar o acerto da imputação feita, ainda que inconscientemente, pelo

próprio juiz.

Ainda trabalhando com aspectos psicológicos do julgador,

considerando que o mesmo seria o destinatário da prova, o juiz somente poderia sair em busca

da prova, caso existisse no processo algum indício que ele acredita poder confirmar ou refutar

com ela para formar seu livre convencimento. Mesmo sem saber o que vai encontrar, criar-se-ia

uma expectativa com vista do que ele percebe no processo, mesmo inconscientemente. Esta

expectativa contaminaria sua convicção e a prova ganharia seu “caráter alucinatório”, capaz de

converter em verdade o que é apenas percepção e significação.356

351

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,

Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 556-557. 352

CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Apud LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual

penal. 8 ed. v. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 73. No mesmo sentido, citando a mesma fonte,

cf. LUZ, Denise. A busca da verdade no sistema acusatório e a investigação criminal no projeto de

reforma do código de processo penal brasileiro. Revista Magister de Direito Penal e Processual

Penal, n. 48, jun./jul. 2012, p. 52. Também COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema

acusatório. Cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Disponível em:

<http://www2.senado.gov.br>. Acesso em: 27 jan. 2013. 353

Neste mesmo sentido: COUTINHO, Jacinto Nélson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do

processo penal brasileiro apud LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. p. 73. 354

PRADO, Geraldo. Sistema acusatório apud LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. p. 73. 355

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 8 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v.1, p. 74. 356

LUZ, Denise. A busca da verdade no sistema acusatório e a investigação criminal no projeto de

reforma do código de processo penal brasileiro. Revista Magister de Direito Penal e Processual

Penal, n. 48, jun./jul. 2012, p. 51-52. Em sentido contrário, sustentando que “a iniciativa oficial no

campo da prova não embaça a imparcialidade do juiz. Quando atua, ainda não conhece o resultado,

nem sabe qual parte será beneficiada por sua produção. Longe de afetar a imparcialidade, a iniciativa

oficial assegura o verdadeiro equilíbrio e proporciona uma apuração mais completa dos fatos. Ao juiz

não importa quem vença o autor ou réu. Ainda que não atinja a verdade completa, a atuação ativa lhe

facultará o encontro de uma parcela desta.” Cf. GRINOVER, Ada Pelegrini. A iniciativa instrutória

do juiz no processo penal acusatório. Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e

Penitenciária, Brasília, jan./jul. 2005, p. 20.

Page 84: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

82

Poder-se-ia dizer que toda iniciativa probatória geraria também uma

expectativa, inclusive a produzida pela acusação, na medida em que pretende demonstrar a

culpabilidade do acusado. “Esta expectativa funde presunção e normalidade e reclama por

preenchimento, sendo que, quando ela é do juiz, compromete o contraditório e a afirmação do

sistema acusatório”.357

Não se diga que o juiz deveria manter-se absolutamente alheio à

realidade da vida. Pelo contrário, deveria o juiz estar atento à complexidade e pluralidade da

sociedade atual, aberto para ouvir e entender o diferente. Entretanto, isso não diria respeito à

iniciativa probatória e à gestão da prova como um todo. Quando este se agiganta na colheita da

prova, o critério do livre convencimento acabaria incentivando o “solipsismo” e a “alucinação”,

na medida em que o juiz tenderia a atribuir maior valoração à prova por ele mesmo arrecadada,

“bastando uma boa retórica para imunizar a decisão”.358

Neste sentido, “o livre convencimento

acaba sendo confundido com discricionariedade com graves prejuízos para a democracia”.359

Além das peculiaridades apontadas, Eurico Altavilla chama a atenção

ainda para o perigo que poderia representar a exagerada importância que alguns magistrados

atribuem à intuição:

Às vezes este juízo antecipado cristaliza-se tão potentemente na consciência

do juiz, que não só as conclusões processuais não conseguirão modificá-lo,

mas até ele, inconscientemente, se esforçara por adaptar esses resultados à

sua convicção.” A supervalorização da experiência também reserva algumas

conseqüências indevidas, visto que “cria o perigo de uma semelhança poder

fazer com que não se percepcionem aspectos diferenciais e ser tomada por

identidade (…) A intuição pode (…) ser um utilíssimo instrumento de justiça,

desde que seja logo seguida pela verificação, através do exame objetivo, do

que se apurou no processo. Acrescente-se que a vulgar intuição não é mais,

muitas vezes, que uma enganadora impressão de simpatia ou de antipatia, que

gera um apressado juízo de inocência ou de culpabilidade.

Não se pode negar que tão logo o fato é apresentado ao juiz, este elabora um

juízo sumário ou preliminar, que tem (ou deveria ter) um valor elementar e

provisório. Esta primeira hipótese pode ir se reforçando, e, de possibilidade

vir a tornar-se probabilidade, para, mais tarde, transmudar-se em certeza.

Ainda na lição de Altavilla, “a realidade tem sempre (…) um valor subjetivo

e, por conseguinte, relativo, porque é uma projeção do mundo exterior que

chega ao nosso eu, deformado pelos nossos sentidos e por todos os nossos

processos psíquicos.

Este processo de formação de uma convicção abriga um inconveniente

gravíssimo: a hipótese provisória pode seduzir o investigador, deixando

encoberta ou até invisível outra possibilidade que, eventualmente, possa

357

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal. 8 ed. v. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 74. 358

Ibidem. 359

STRECK, Lênio. O que é isso – decido conforme minha consciência? 2. ed. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2011. p. 48.

Page 85: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

83

chegar mais perto da verdade. Além disto, como este juízo sumário se forma

no início do processo, o magistrado, já na colheita da prova, estará

conduzindo-a no sentido de fortalecer o seu convencimento. Ou seja, o

julgador, ainda que de forma inconsciente, buscará reforços para a sua

convicção, enquanto que sua tarefa deveria ser a de apreender o maior

número de informações possíveis, a fim de, ao final, chegar a alguma

conclusão sobre os fatos que lhe foram apresentados. “Deixar-se fascinar por

uma tese, limitando-se a procurar demonstrar a sua exatidão, descurando

todos os elementos contrários, pode ser permitido a um defensor, mas será o

maior dos erros por parte do juiz, vítima, na formação do seu convencimento,

daquele a que poderemos chamar de idéia prevalente, que pretende dominar

sem oposição e tudo deforma e repele, no seu monoideísmo.360

Partindo destas afirmações, poderíamos imaginar, entretanto, que esta

rotina de confirmação ou refutação da hipótese inicial sempre existiria. O que saltaria aos olhos

aqui, admitindo os pensamentos acima relativos ao “quadro paranoico” e à “intuição” do

julgador, seria no sentido de que a iniciativa instrutória do juiz resta, mais uma vez,

inviabilizada, na medida em que poderia ser conduzida no sentido de confirmar uma hipótese

levantada ainda no início da investigação. Assim, seria neste sentido, para evitar-se este

desvirtuamento da atividade probatória, vedada a iniciativa instrutória do juiz que, colocaria em

risco sua imparcialidade, diante da busca, mesmo que inconsciente, de confirmação da hipótese

inicial.

Diante de tais construções, poderiam ser levantadas vozes no sentido

de afirmar que se não houvesse iniciativa instrutória alguma por parte do julgador, ainda sim, o

mesmo estaria sujeito aos mesmos argumentos apresentados. Mas nesta construção hipotética, a

iniciativa instrutória seria um fator que possibilitaria, de forma mais intensa, o alcance dos

objetivos traçados pelo julgador, de confirmar ou afastar a acusação ou alguma característica

inerente ao processo.

3.3. Iniciativa instrutória do juiz e a busca pela verdade

A certeza criminal seria o resultado tanto da intuição quanto da

reflexão. Certeza, neste sentido, seria identificada como a verdade subjetiva: “[a] certeza é um

estado subjetivo de alma que pode muito bem não corresponder à verdade objetiva”.361

Esta

correspondência inundada de caráter subjetivo está sujeita assim, a inúmeros condicionamentos

de caráter individual, como o amor, o ódio, o interesse e outras infinitas circunstâncias.362

360 ALTAVILLA, Eurico. Psicologia judiciária apud BIANCHINI, Alice. Aspectos subjetivos da sentença penal. Disponível em: <

http://atualidadesdodireito.com.br/alicebianchini/2011/09/10/artigo-aspectos-subjetivos-da-sentenca-penal/>. Acesso em: 25 jan. 2013.

361 MALATESTA, Nicola Framarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. Tradução de Paolo Capitanio. 6. ed. Campinas:

Bookseller, 2005. Nota 14, p. 17. 362 TÔRRES, Anamaria. Devido processo legal e natureza da prova: da verdade, da certeza, da convicção, da probabilidade. In:

BRANDÂO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício. (Org.). Princípio da legalidade: da dogmática

jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1, p. 420.

Page 86: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

84

A certeza pode ser entendida ainda como a persuasão da verdade,

traduzindo-se na verdade captada. Segundo Mittermayer

“[q]uando a convicção chega ao ponto de repelir vitoriosamente todos os

motivos contrários, e quando estes não podem abalar a massa importante dos

motivos afirmativos, toma o nome de certeza”.363

Assim, o campo da certeza criminal seria o das verdades sensíveis,

tanto materiais quanto verdades sensíveis morais. As primeiras seriam relacionam-se aos

sentidos e as segundas fatos psíquicos, captáveis pelo material em que se exteriorizam. As

primeiras são percebidas pela reflexão e as segundas, pela intuição.364

Deste entendimento, surgiria a noção de que a certeza no processo

penal seria mista, consistente na “percepção da realidade física por obra do sentido, a qual se

adere acessoriamente, a inteligência com a intuição do sentido”.365

Esta certeza seria o campo de repouso do direito penal. Sem que haja

certeza, não haverá sentenças justas. Entre certeza física – advinda apenas dos sentidos, e o

raciocínio, seria a certeza lógica e, mais além desta, a certeza mista que determinaria os juízos

conclusivos.

Retornando aos posicionamentos jurisprudenciais, nesta oportunidade

referindo-nos agora ao Supremo Tribunal Federal que já teria se manifestado também neste

sentido, afirmando, conforme trecho do voto do Ministro Eros Grau que “a independência do

juiz criminal impõe sua cabal desvinculação da atividade investigatória e do combate ao crime,

na teoria e na prática”.366

Insistindo no argumento e trazendo à baila mais uma decisão do

Supremo Tribunal Federal, destacar-se-ia aqui a atuação do juiz no curso do inquérito policial e

sua vinculação ao sistema acusatório, em síntese,

[o] sistema processual penal acusatório, mormente na fase pré-processual,

reclama deva ser o juiz apenas um “magistrado de garantias”, mercê da

363

MITTERMAYER, C. J. A. Tratado da prova em matéria criminal. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Ribeiro

dos Santos, 1909. Nota 11, p. 107. 364

TÔRRES, Anamaria. Devido processo legal e natureza da prova: da verdade, da certeza, da convicção,

da probabilidade. In: BRANDÃO, Cláudio; CAVALCANTI; ADEODATO, João Maurício (Org.).

Princípio da Legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1,

p. 421. 365

MALATESTA, Nicola Framarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. Tradução de Paolo

Capitanio. 6. ed. Campinas: Bookseller, 2005. Nota 14, p. 21. 366

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 95.009-4 / SP, Rel. Min. Eros Grau, DJe

19.12.2008. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 20 nov. 2012.

Page 87: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

85

inércia que se exige do Judiciário enquanto ainda não formada a opinio

delicti do Ministério Público.367

Como contraponto, o próprio Supremo Tribunal Federal já teria

decidido no sentido de que o magistrado:

preside o inquérito, apenas como um administrador, um supervisor, um

coordenador, no que concerne à montagem do acervo probatório e às

providências acautelatórias, agindo sempre por provocação, jamais de ofício.

Não exteriorização de qualquer juízo de valor acerca dos fatos ou das

questões de direito emergentes na fase preliminar que o impeça de atuar com

imparcialidade no curso da ação penal.368

Desta forma, entenderia o Supremo Tribunal Federal que o juiz

poderia atuar na fase do inquérito policial, desde que se contenha ou limite-se a figurar como

gestor da legalidade e da marcha investigatória, jamais se arvorando na colheita direta da prova,

usurpando a função do acusador.

Lopes Júnior segue ainda sustentando sobre o critério da separação de

funções de acusação e julgamento, que quando focada apenas no aspecto histórico, seria

“reducionista”, pois alheia ao “nível atual de desenvolvimento e complexidade do processo

penal” que, por sua vez, “não admite mais tais simplificações”.369

Neste ponto, recordando a lição de Ferrajoli, a posição do juiz seria o

ponto nevrálgico da questão, na medida em que ao sistema acusatório corresponderia um juiz-

espectador, dedicado, sobretudo, à objetiva e imparcial valoração dos fatos, mais sábio do que

experto. Em sentido oposto, ao sistema inquisitivo corresponderia um juiz-ator, representante do

poder punitivo.370

De todos os elementos que estariam presentes em um sistema de

matriz acusatória, o mais importante deles, na teoria ferrajoliana, por ser estrutural e

logicamente pressuposto de todos os outros, seria a separação entre juiz e acusação. Esta

separação, a título de recordação, seria externada pela teoria do garantismo penal no “axioma

A8”, qual seja, nullum iudicium sine accusatione, em virtude da proibição ne procedat iudex ex

367

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ag. Reg. n. 2913 / MT, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 21.06.2012.

Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 20 nov. 2012. 368

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n. 97.553 / PR, Rel. Min. Dias Toffoli, Dje

10.09.2010. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 20 nov. 2012. 369

LOPES JÚNIOR, Aury. Op. cit. p. 67. 370

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,

Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010.

Page 88: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

86

officio. Destaque-se que esta separação seria mais evidente na vedação da postura do juiz como

parte, em posição de paridade com a defesa, como órgão de acusação.371

Esta equidistância do juiz entre as partes seria, a título de

argumentação, também uma condição orgânica. A Imparcialidade exigiria uma separação

institucional do juiz da acusação pública, bem como, na media em que o Poder Judiciário se

configuraria, em relação aos outros poderes do Estado, como um “contrapoder”, no sentido de

que se arvoraria no controle de legalidade ou de validade dos atos legislativos assim como

administrativos e à tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos contra as lesões ocasionadas

pelo Estado. Citando Montesquieu, Ferrajoli afirmaria que “é necessário que, pela disposição

das coisas, o poder freie o poder”. Neste sentido a função judiciária seria também uma garantia

de todos os cidadãos contra o mesmo governo, contra seus próprios erros.372

A relação triangular entre os três sujeitos da relação processual,

nortearia a posição equidistante do julgador aos interesses conflitantes das outras partes

contrárias. Somente assim, seria possível preservar a imparcialidade do julgador, alheio a

interesses públicos ou institucionais. Este seria o grande ponto de nosso estudo, segundo a teoria

construída por Ferrajoli.

Além do interesse privado ou pessoal, o interesse público, na teoria de

Ferrajoli não deve ser considerado pelo julgador,373

na medida inversa de que se sustentaria o

caráter publicista do processo penal moderno. Noutra medida, seria este entendimento aplicável

aos reais anseios do processo penal de matriz (neo)constitucionalista, insculpido em um Estado

que se intitula Democrático de Direito?

Neste ponto, possivelmente ironizando o juiz idealizado por Ferrajoli,

uma expressão seria utilizada em alguns julgados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio

Grande do Sul e do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, quando se referem ao “juiz

samambaia”. Esta figura representaria o juiz inerte, passivo, mero expectador do duelo entre as

partes no processo penal. In verbis: “não vejo, portanto, nenhuma boa razão para exigir que o

juiz se transforme, para usar a feliz expressão de Nucci, numa samambaia de sala de

audiência”.374

371 Com amparo em Filangieri e Tocqueville, cf. FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 522. 372 FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 534-535. 373 FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 536. 374 Por todas, cf. Apelação Criminal de n. 70046554374, da 7ª Câmara Criminal do TJRS, no voto do Rel. Des. Carlos Alberto

Etcheverry, data do julgamento 22.03.2012. Conste aqui ainda que a referência feita a Nucci não foi encontrada na página da obra citada pelo magistrado em seu voto. Por fim, o critério de busca “samambaia” retornou sem registros em consulta jurisprudencial

no sítio do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, no sítio do Tribunal Regional Federal das 1ª e 4ª Regiões, bem como

no do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal.

Page 89: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

87

Este pensamento de repúdio ao juiz inativo diverge do pensamento de

Busato, para quem o afastamento do juiz garantiria exatamente o controle e não a similitude à

“diminuta condição de vegetal decorativo”:

é justamente este afastamento, esta isenção, que permite o real controle sobre

a realização das provas pertencentes às partes, pois somente uma prudente

distância dos interesses debatidos na causa permite que o juiz exerça sua

função de garantir os direitos fundamentais do acusado. A ele incumbirá

justamente evitar a realização de pressão sobre a testemunha, controlando o

deferimento ou indeferimento de perguntas.375

No mais, saliente-se ainda pela defesa da equidistância, que o juiz

seria um sujeito imperfeito na condição humana, passível de sofrer influências da história da

sociedade em que vive, bem como de sua própria história. Esta afirmação encontra relevo, pois

no momento em que o julgador afasta-se de sua função constitucional, qual seja equidistante e

imparcial, inúmeras garantias seriam devassadas, na medida em que tenderia, na busca da prova,

à uma das partes, violando sua imparcialidade.376

Seguindo a linha de repúdio ao “juiz samambaia”, o que, de início,

parece a postura mais próxima ao pensamento externado pelo STF, há quem sustente que não é

incompatível com um sistema processual penal acusatório o reconhecimento e a concessão de

poderes instrutórios ao juiz, “desde que este sujeito processual não concentre, além da função

decisória, também a função acusatória”, na medida em que nem toda e qualquer iniciativa

instrutória do julgador estaria terminantemente proibida no processo. Para um efetivo estudo

sobre o tema, a posição que deveria ser adotada seria no sentido de entendermos uma diferença

em graus de iniciativa, seja preponderante no sistema inquisitório e restrito no sistema

acusatório.377

Ao reverso da figura dos “juízes samambaias” existiriam ainda,

segundo alguma doutrina, os juízes chamados de “justiceiros” e os que padecem do “complexo

de Nicolas Marshall”, no sentido de pretenderem “fazer justiça com as próprias mãos”.378

Mas os poderes instrutórios do juiz não poderiam ser ilimitados.

Como regras restritivas da atividade instrutória do juiz, deveria ser observado o juiz natural,

375 BUSATO, Paulo César. De magistrados, inquisidores, promotores de justiça e samambaias: um estudo sobre os sujeitos no

processo em um sistema acusatório. Disponível em: <http://periodicos.ufsc.br>. Acesso em: 27 jan. 2013. 376 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal apud SOUZA, Bernardo de Azevedo;

OLIVEIRA, Daniel Kessler de. Entre justiceiros e samambaias: reflexões constitucionais sobre a iniciativa probatória do juiz no processo penal. Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, n. 70, out./nov. 2011.

377 ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: RT, 2003, p. 72. 378 Quanto aos justiceiros, cf. SOUZA, Bernardo de Azevedo e. OLIVEIRA, Daniel Kessler de. Entre justiceiros e samambaias:

reflexões constitucionais sobre a iniciativa probatória do juiz no processo penal. Revista Síntese Direito Penal e Processual

Penal, n. 70, out./nov. 2011. Alexandre Morais da Rosa retratou um comportamento que seria identificado em alguns juízes, o

qual denominou de “Complexo de Nicolas Marshall”. Nicolas Marshall era o protagonista de um seriado de televisão americano denominado Dark Justice, que foi exibido durante três anos (1991-1993). Tratava-se da história de um juiz que cumpria as leis

durante o dia e, à noite, longe dos Tribunais, decidia “fazer justiça com as próprias mãos”. Nesse sentido, cf. ROSA, Alexandre

Morais da. O juiz e o complexo de Nicolas Marshall. Disponível em:<http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 23 jan. 2013.

Page 90: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

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bem como sua imparcialidade, a presunção de inocência, a motivação dos atos decisórios, a

duração razoável do processo, a obrigatoriedade de publicidade dos atos processuais, a licitude e

legitimidade das provas, a ampla defesa e o contraditório. “Onde a iniciativa instrutória do juiz

tiver desrespeitado estas orientações e limitações, ter-se-á violado o devido processo penal e, em

última análise, o próprio Estado Democrático de Direito”.379

Pensamento convergente no sentido de que a iniciativa instrutória

“não é ilimitada” e que existiriam “barreiras intransponíveis”, é o pensamento de Grinover.

Segundo ela, a melhor maneira de preservar a imparcialidade é não vedar sua iniciativa

instrutória, na medida em que todas as provas deveriam ser submetidas ao contraditório,

inclusive as obtidas ex officio. Além do contraditório, outra baliza norteadora seria a motivação

das decisões judiciárias, seja na determinação de sua produção ou na sua valoração. A ausência

ou carência acarretaria a invalidade da prova. Por fim, ainda segundo a mesma autora, tanto as

partes quanto o juiz encontrariam outro limite à atividade instrutória na licitude e legitimidade

das provas, pois haveria “uma regra moral intransponível explícita nas constituições de diversos

países”. Trata-se aqui das provas ilícitas e ilegítimas que não podem ingressar no processo.380

Seguindo na mesma construção, adverte Grinover, a certeza buscada

em juízo deveria ser ética, constitucional e processualmente válida. Antes da reforma legislativa

do Código de Processo Penal Brasileiro de 2008,381

/ 382

quanto à iniciativa instrutória do juiz, a

autora afirmou que “tudo isso nada tem a ver com o sistema acusatório, tem a ver com a visão

publicista do processo”.383

A mesma iniciativa instrutória em estudo deveria ser admitida em

caráter excepcional, concretizável apenas quando as partes não tiverem oferecido acervo

probatório suficientemente hábil ao ponto de esclarecer o fato em questão, na medida em que

379

ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. Op. cit., p. 133-134. 380

GRINOVER, Ada Pelegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista do

Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, jan./jul. 2005, p. 22. Inclusive, a

título de ilustração, após a percepção de que os poderes instrutórios do juiz representavam uma

abertura do procedimento acusatório a uma característica notadamente inquisitória, “o processo penal

procurou balancear a relação processual, concedendo ao acusado inúmeras garantias para torná-lo

imune às arbitrariedades do passado.” Cf. MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. O juiz moderno

diante da fase de produção de provas: as limitações impostas pela Constituição. Revista da Faculdade

de Direito do Sul de Minas, v. 24, p. 168. 381

Especificamente a alteração da redação do artigo 156 pela Lei Federal de n. 11.690 de 9.6.2008. Cf.

GRINOVER, Ada Pelegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista do

Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, jan./jul. 2005, p. 23. 382

Para estudo pormenorizado da reforma legislativa mencionada, cf. SOUZA, Bernardo de Azevedo e.

OLIVEIRA, Daniel Kessler de. Entre justiceiros e samambaias: reflexões constitucionais sobre a

iniciativa probatória do juiz no processo penal. Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, n.

70, out./nov. 2011, p. 90-102. 383

GRINOVER, Ada Pelegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista do

Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, jan./jul. 2005, p. 23.

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não poderia assumir ares de atividade. Diante deste quadro, ao invés de afetar a imparcialidade,

a iniciativa oficial asseguraria o equilíbrio, pois proporcionaria uma apuração mais completa

dos fatos,384

bem como garantiria o equilíbrio da igualdade real entre as partes. Na visão de

Grinover, “o processo não é um jogo, mas instrumento de justiça”.385

A nova ordem constitucional teria inserido a figura de um Estado mais

ativo, assim, a atual iniciativa instrutória do juiz não seria mais que um reflexo da releitura que

a amolde ao espírito democrático, na medida em que este fator exige um processo penal mais

participativo, que proporcione espaço e autonomia às partes. Seria neste contexto de equilíbrio,

que deveria se posicionar o novo processo penal, cobrando dos agentes públicos maior

atividade.386

Segundo ainda esta mesma orientação, o risco da parcialidade ronda o juiz a todo

momento no processo, não sendo a iniciativa instrutória o único ou fundamental fio condutor.

3.4 A perspectiva de um novo modelo acusatório brasileiro e a busca da verdade no

processo penal

Para solucionar esta questão de oscilação entre o real sistema adotado

pelo Brasil, haveria a necessidade de uma previsão legislativa expressa que poderia ser inserida

no artigo 5º da Constituição Federal, como garantia de que o sistema será o acusatório. Após

esta inserção, seria possível um “encadeamento lógico-normativo” de todos os institutos

processuais penais, seguindo esta diretriz, em um novo código de processo penal. Depois, dar-

se-ia “legitimidade a todas as previsões contidas na nova legislação adjetiva, evitando-se o mal

que aflige a diversas disposições do atual Código de Processo Penal: [...] de não haverem

nascido sob a égide e influência de um regime democrático”.387

Lançando olhares ao futuro, existe em tramitação um projeto de novo

Código de Processo Penal brasileiro.388

O projeto prevê a figura do juiz das garantias,

estampada no artigo 4º com a seguinte redação: “O processo penal terá estrutura acusatória, nos

limites definidos neste Código, vedada a iniciativa do juiz na fase de investigação e a

substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.

384

ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. Op. cit., p. 144. 385

GRINOVER, Ada Pelegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista do

Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, jan./jul. 2005. p. 22. 386

ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. Op. cit., p. 177. 387

ANDRADE. Mauro Fonseca. Op. cit., p. 463. 388

“O Projeto de Lei n° 156/2009, que visa à aprovação do novo Código de Processo Penal, foi concebido

com o escopo de atualizar a legislação processual penal em vigor, de forma a compatibilizar alguns

institutos com a ordem Constitucional surgida a partir de 1988”. Cf. Nota técnica da Presidência do

Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de n. 10. DJ-e 01/09/2010, p. 2-4. Disponível em:

<http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/317-notas-tecnicas/11221-nota-tecni

ca-no-102010a>. Acesso em: 20 nov. 2012. O projeto mencionado foi convertido pela Câmara dos

Deputados no Projeto de Lei n. 8.045/10.

Page 92: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

90

Em outros termos, a construção seria no sentido de uma alteração no

critério de fixação de competência, excluindo a atuação na fase de julgamento daquele juiz que

tenha atuado na fase de investigação, ao invés de um critério de atração, como ocorre com o

atual instituto da prevenção.389

Assim, a pretendida criação de um novo código que buscaria a adoção

formal e expressa de um modelo acusatório com privilegio da figura do juiz imparcial, não

contaminado pela fase de investigações.390

Nos parece aqui a tentativa de efetivação dos anseios

da teoria do garantismo penal de Ferrajoli, tornando certa a separação das funções de

investigação e julgamento em pessoas distintas, visando a manutenção da imparcialidade.

A Exposição de Motivos do anteprojeto do novo código apresentou no

Capítulo III, uma justificativa pela inserção da nova figura do juiz das garantias no processo

penal brasileiro como forma de consolidar o princípio acusatório, bem como para os fins de

preservação da já mencionada imparcialidade do juiz do processo.391

A Agência Senado publicou, por sua vez, informação explicativa

sobre a nova figura do juiz das garantias, no sentido de que

Atualmente, um mesmo juiz participa da fase de inquérito e profere a

sentença, porque foi o primeiro a tomar conhecimento do fato (art. 73,

parágrafo único do CPP). Com as mudanças, caberá ao juiz das garantias

atuar na fase da investigação e ao juiz do processo julgar o caso – este tendo

ampla liberdade em relação ao material colhido na fase de investigação.392

O projeto definiu expressamente o juiz das garantias como sendo o

“responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos

direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder

Judiciário”.393

No contexto de atuação do juiz na fase do Inquérito Policial, teria o mesmo a

função de proporcionar ao investigado a garantia da preservação dos direitos fundamentais.

Mesmo assim, esta atuação deveria ser muito limitada, como controlador da legalidade, além,

389

Considerando o critério da prevenção como problemático, cf. LOPES JUNIOR, Aury. Direito

processual penal e sua conformidade constitucional. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1. p.

249. 390

Entretanto, merece aqui apontamento no sentido de que “a perda da imparcialidade não leva ao sistema

inquisitivo”. cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Juiz das garantias. Curitiba: Juruá, 2011, p. 58. 391

“Seja do ponto de vista da preservação do distanciamento do julgador, seja da perspectiva da

consolidação institucional do parquet, não há razão alguma para permitir qualquer atuação

substitutiva do órgão da acusação pelo juiz do processo.” 392

BRASIL. Senado Federal. Agência Senado. Disponível em: <http:// www.senado.gov.br/noticias

/agencia/quadros/qd_167.html>. Acesso em: 20 nov. 2012. 393

Conforme redação dos artigos 14 e 15 do texto original.

Page 93: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

91

como dito, de garantidor do respeito aos direitos fundamentais.394

Tradicionalmente, o que se vê

na investigação preliminar seria a atuação afastada do juiz, contingente, excepcional, limitado a

exercer o controle formal da prisão e medidas restritivas de direitos. 395

Mereceria ressalva relevante ao cenário aqui instalado àquela referente

ao impedimento de atuação na fase de julgamento ao juiz único da comarca.396

O problema que

existiria estaria nas estatísticas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que apontaria que 40%

das varas da Justiça Estadual brasileiras funcionam com apenas um único juiz de Direito. 397

/ 398

A mesma ressalva também se encontra quanto à exclusão do processo para apuração de prática

de infrações penais de menor potencial ofensivo399

e para ações penais originárias.400

Estes

dados colocariam em risco a efetividade da norma, na medida em que seria inobservada em

grande parcela dos processos em curso no país.

394

Defendendo que não há direito coletivo mais relevante que aqueles fundamentais dos cidadãos, “A

cultura acusatória, do seu lado, impõe aos juízes o lugar que a Constituição lhes reservou e de

importância fundamental: a função de garante! Contra tudo e todos, se constitucional, devem os

magistrados assegurar a ordem posta e, de consequência, os cidadãos individualmente tomados”. Cf.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório. Cada parte no lugar

constitucionalmente demarcado. Disponível em: <http://www2.senado.gov.br>. Acesso em: 27 jan.

2013. 395

LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 8. ed. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2011, v. 1, p. 247-249. 396

Conforme artigo 748, I do Projeto. 397

Colaciona-se aqui a íntegra do item 8, referente ao juiz das garantias: “Contudo, a consolidação dessa

ideia, sob o aspecto operacional, mostra-se incompatível com a atual estrutura das justiças estadual e

federal. O levantamento efetuado pela Corregedoria Nacional de Justiça no sistema Justiça Aberta

revela que 40% das varas da Justiça Estadual no Brasil constituem-se de comarca única, com apenas

um magistrado encarregado da jurisdição. Assim, nesses locais, sempre que o único magistrado da

comarca atuar na fase do inquérito, ficará automaticamente impedido de jurisdicionar no processo,

impondo-se o deslocamento de outro magistrado de comarca distinta. Logo, a adoção de tal

regramento acarretará ônus ao já minguado orçamento da maioria dos judiciários estaduais quanto ao

aumento do quadro de juízes e servidores, limitados que estão pela Lei de Responsabilidade Fiscal,

bem como no que tange ao gasto com deslocamentos e diárias dos magistrados que deverão atender

outras comarcas. Ademais, diante de tais dificuldades, com a eventual implementação de tal medida

haverá riscos ao atendimento do princípio da razoável duração do processo, a par de um perigo

iminente de prescrição de muitas ações penais. Também é necessário anotar que há outros motivos de

afastamentos dos magistrados de suas unidades judiciais, como nos casos de licença, férias,

convocações para Turmas Recursais ou para composição de Tribunais”. (grifamos). Cf. Nota técnica

da Presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de n. 10. DJ-e 01/09/2010, p. 2-4, item 8.

Disponível em <http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/317-notas-tecnicas

/11221-nota-tecnica-no-102010a>. Acesso em 20 nov. 2012. 398

“De acordo com o conselheiro Paulo Tamburini, embora os dados do Justiça em Números revelem que

o número de juízes é baixo no Brasil, em comparação com países como Espanha, França, Portugal e

Itália - que possuem entre 10 e 17 magistrados por cada cem mil habitantes, por outro lado mostram

que está na média internacional - que é de oito juízes para cada cem mil habitantes” (dados de 2011).

Cf. CONJUR, Artigo de autoria da redação do site Consultor Jurídico, Brasil tem oito juízes para

cada cem mil habitantes. Disponível em:< http://www.conjur.com.br/2011-fev-12/media-brasil-oito-

juizes-cada-cem-mil-habitantes>. Acesso em: 20 nov. 2012. 399

Conforme artigo 15 do projeto. Lembrando que as infrações de menor potencial ofensivo seriam

aquelas descritas na Lei 9.099/95 em seu artigo 61. 400

Conforme redação do artigo 314 do Projeto, o juiz das garantias que atuar na fase de julgamento

somente estará excluído de figurar como relator.

Page 94: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

92

Por outro lado, apesar da compreensão de que a figura do juiz das

garantias é bem-vinda em nosso processo, há quem sustente que esta nova figura “é um

mecanismo inócuo”401

que “não apresenta progresso algum”.402

As afirmações teriam como

justificativa a circunstância de que a importação desta figura do direito estrangeiro não se

justificaria ao Brasil, pois as realidades vivenciadas pelo direito seriam diversas. A figura

mencionada teria maior valia, conforme jurisprudência internacional,403

em relação ao juiz

investigador, “o que não ocorre em relação ao juiz projetado no texto em tramitação”.404

/ 405

Críticas ainda surgiriam no sentido de que a figura em estudo seria

também “burocrática”,406

pois poderia gerar confusões, erros e desencontros, retardando

investigações e medidas urgentes, ensejando a prescrição e incrementando a impunidade, na

medida em que a estrutura atual do Poder Judiciário não suportaria a efetiva implementação

desta figura. Na mesma linha, o juiz das garantias seria ainda “desnecessário” porque o juiz do

processo, hoje no Brasil, já exerce as mesmas funções “sem prejuízo algum em relação à sua

imparcialidade”.407

E mais, o juiz das garantias poderia ser visto, inclusive, como “arbitrário”,

pois todas as suas decisões seriam irrecorríveis, não se enquadrando na hipótese de agravo

(artigo 473)408

e nem na de apelação (artigo 480) ambos do mesmo projeto do novo CPP.409

Apesar das críticas, a figura do juiz das garantias, por todo o estudo,

apresentaria uma nítida inovação no caminho do reconhecimento da necessidade da separação

de funções no processo penal brasileiro. Mesmo com todas as dificuldades que existiriam para a

401 Este mecanismo seria “criado para curar um mal inexistente”. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 76. 402 ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 129. 403 Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) que defende a figura do juiz das garantias pela perda de

imparcialidade do julgador ocorreria somente quando houver anterior análise de mérito, justificando a proibição de atuação do

mesmo juiz em ambas as fases. No mais, o TEDH teria afastado o argumento de que a quebra da imparcialidade do julgador que

tenha atuado na fase de investigação seja presumida. Ao contrário, ela seria pro judicato, exigindo prova em sentido contrário. “E, se aplicarmos aqueles critérios traçados pelo TEDH à nossa realidade, facilmente veremos que não há como justificar, a partir da

jurisprudência dessa mesma Corte, que o juiz brasileiro, por simplesmente haver atuado na fase de investigação, estará

contaminado”. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 23-26 e 30. Em sentido contrario, há posicionamento segundo o qual o TEDH sustentaria a separação de funções, sem mencionar nenhuma condição ou particularidade. Cf. LOPES JÚNIOR, Aury.

Direito processual penal. 8 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, v.1, p. 67. Neste último sentido também seria a visão de

ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo: RT, 2003. p. 141. 404 Idem. Discorrendo sobre a afirmativa, o mesmo autor traz a lume, relembrando a figura do juiz investigador que está presente

somente nos sistemas inquisitivo e misto. Desta forma, o novo código teria adotado o modelo acusatório, a restrição ao juiz

brasileiro torna-se sem sentido. Cf. ANDRADE, Mauro Fonseca. Op. cit. p. 21. 405 A Associação dos Juízes Federais (AJUFE) argumentando a importância da participação ativa do juiz “diante de possíveis e

eventuais falhas, não só da defesa, mas também da acusação”. O poder de instrução complementar seria fundamental para que o

processo não se transforme em “mera disputa entre acusação e a defesa, com a vitória do melhor profissional e com prejuízos à descoberta da verdade e a correta aplicação da lei penal” cf. ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES FEDERAIS. Nota técnica n. 3/2010 de

19.05.2010. Disponível em: <http://www.ajufe.org.br>. Acesso em: 26 jan. 2013. 406 406 NOGUEIRA, Carlos Frederico Coelho. Juiz das garantias do novo CPP é arbitrário. Disponível em:

<http//www.conjur.com.br>. Acesso em: 22 nov. 2012. Em sentido contrário, defendendo a desburocratização, na medida em que

“o diálogo entre a polícia e procuradores e promotores passa a ser direto, e não por intermédio do juiz”. Cf. Agência Senado. Criação do juiz das garantias dá maior isenção a julgamento. Disponível em: <http//www.senado.gov.br/noticias>. Acesso em:

22 nov. 2012. 407 NOGUEIRA, Carlos Frederico Coelho. Juiz das garantias do novo CPP é arbitrário. Disponível em:

<http//www.conjur.com.br>. Acesso em: 22 nov. 2012. 408 Apear da redação do inciso V do mesmo artigo prever seja possível o agravo quando o juiz das garantias “deferir, negar, impor,

revogar, prorrogar, manter ou substituir qualquer das medidas cautelares, pessoais ou reais”, nos artigos subsequentes haveria noção de que seria possível o recurso apenas contra as decisões proferidas no curso do processo.

409 NOGUEIRA, Carlos Frederico Coelho. Juiz das garantias do novo CPP é arbitrário. Disponível em:

<http//www.conjur.com.br>. Acesso em: 22 nov. 2012.

Page 95: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

93

implementação desta figura, o que poderíamos extrair de positivo seria a confirmação expressa

da adoção do sistema acusatório no Brasil, bem como a preocupação com a garantia dos direitos

fundamentais do acusado e a imparcialidade do julgador.

3.5 A busca pela verdade formal como horizonte possível ao julgador

Neste novo item seria necessário agora abordar mais uma questão

relevante para nosso estudo, a busca da verdade no processo penal. Verdade, qual verdade? A

iniciativa instrutória do juiz relaciona-se à busca da verdade no processo penal? Seria possível

encontrar a verdade real? A que custo? Os direitos e garantias fundamentais do cidadão seriam

entendidos como obstáculo à construção da verdade? Em que medida os sistemas processuais

penais atingiriam maior ou menor grau de verdade? A verdade seria formal ou material? A estas

questões, dentre outras, dedicaremos nossos próximos passos.

Incialmente interessante ressaltar que, segundo entendimento de

Ferrajoli, o próprio processo seria uma condição de verdade e de liberdade. Esta afirmação seria

sustentada pela recordação da história dos julgamentos, na medida em que poderia ser percebida

uma enorme sucessão de erros, fundados na tortura e mesmo no abuso da prisão preventiva.

Assim, colacionando Francesco Pagano, as nações bárbaras desconheciam completamente o

processo.410

Em norte distinto ao da justiça pelas próprias mãos, o processo

perseguiria, em coerência com uma dúplice função preventiva do direito penal, duas finalidades

já estudadas. Relembrando, primeiro a punição dos culpados e depois a tutela dos inocentes,

sendo esta segunda que estaria na base de todas as garantias processuais e que condicionariam

de vários modos as instâncias repressivas. Estas duas finalidades teriam vivido em contraste

durante toda a história do processo. Os modelos de processo de matriz acusatória e os de cunho

inquisitório ostentariam maior aproximação de uma ou outra função. Não se afirmaria que o

processo acusatório não se dedicaria à punição dos culpados e nem que o processo inquisitório

abriria mão da tutela dos inocentes. A questão aqui se relacionaria agora com a verdade,

conforme demonstrado pelo autor do garantismo:

Enquanto o método inquisitório exprime uma confiança tendencialmente

ilimitada na bondade do poder e na sua capacidade de alcançar o verdadeiro,

o método acusatório se caracteriza por uma confiança do mesmo modo

ilimitada no poder como autônoma fonte de verdade. Disso deriva que o

primeiro confia não só a verdade, mas, também, a tutela do inocente às

presumidas virtudes do poder julgador; enquanto o segundo concebe a

verdade como o resultado de uma controvérsia entre partes contrapostas por

410

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,

Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 556.

Page 96: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

94

serem portadoras respectivamente do interesse na punição dos culpados e do

interesse na tutela do acusado presumido inocente até prova em contrário.411

Em todos esses casos de opostas epistemologias de juízo, o processo

tem por fim a “descoberta da verdade”. Entretanto, seriam diversas as maneiras de entender a

verdade e os métodos empregados para atingi-la. Especificamente, “enquanto o método

inquisitório se baseia em uma epistemologia substancial e decisionista, o método acusatório

pode ser configurado como a transposição jurídica da epistemologia da falsificação”.412

Neste sentido, as garantias processuais seriam consideradas,

principalmente as da separação de funções entre acusação e julgador, bem como a decorrente

imparcialidade, como fonte de uma verdade controlada pelas partes em causa da liberdade do

inocente contra o erro e o arbítrio.

Os diversos estilos processuais assinalariam a diversa relação entre

meios e fins do processo. O primado “do fim” de uma verdade máxima no processo inquisitório,

qualquer que seja o meio para atingi-la; o primado “dos meios” no processo acusatório,

enquanto garantias de uma verdade mínima, mas o mais certa possível. E são o reflexo de um

conteúdo de legalidade processual nos dois sistemas: enquanto no processo acusatório é livre a

valoração, mas é vinculado o método de aquisição das provas, no processo inquisitório é

vinculada a valoração das provas, mas é livre o seu método de formação.413

A humanidade sempre teria valorizado muito a verdade,414

deixando

aqui, como passagem obrigatória desta busca incessante, o diálogo Bíblico entre Jesus e Pôncio

Pilatos, onde este último teria perguntado “que é a verdade?”.415

Não pretendendo adentrar no mérito da discussão infindável sobre um

conceito e qual seria o alcance da verdade para a filosofia ou mesmo para a metafísica, ocupamo-nos aqui

apenas com o que mais se aproxima do enfoque jurídico. Assim, do ponto de vista da atividade

411

FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 560. 412

FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 563. 413

FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 563-564. 414

De Aristóteles (384 a.C.) a Santo Agostinho (354 d.C.), chegando a kant, Hegel, ortega e Gasset,

Tarski, Bertrand, Russell, Heidegger, Habermas, Alexy, etc. Atribui-se a Santo Agostinho a definição

de verdade: “Verum es id quo est”, (a verdade é o que é). Relacionando intelecto humano como sede

da verdade, esta seria então “a conformidade da coisa com a inteligência”, cf. BARROS, Marco

Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p.

27. Segundo MITTERMAYER, “Verdade é a concordância entre um fato real e a ideia dele

representada em nosso espírito”, na lição de Framarino MALATESTA, trata-se da conformidade da

noção ideológica com a realidade, por sua vez, Antônio DELLE PIANE identifica a verdade como o

acordo do pensamento com o objeto, apud TÔRRES, Anamaria. Devido processo legal e natureza da

prova: da verdade, da certeza, da convicção, da probabilidade. In: BRANDÂO, Cláudio;

CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício (Org.). Princípio da legalidade: da

dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1, p. 419-420. 415

Bíblia Sagrada. Evangelho narrado por João 18, 33-38.

Page 97: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

95

jurisdicional, teríamos a “verdade de fato” e a “verdade de direito”.416

A primeira configurar-se-ia quando

o juízo de valor que o julgador forma acerca de certo caso, ou acontecimento, está inteiramente

conforme com as provas existentes a seu respeito. A segunda seria verificada ao tempo da

aplicação da lei ao caso concreto, isto é, quando o juiz declara a regra que dá o verdadeiro

sentido ao fato, em conformidade com o pensamento que apreende do legislador. Destaque-se

aqui, como alerta que a verdade seria uma, indivisível. O que pode suceder é que “na mesma

proposição estejam reunidos vários juízos, distintos uns dos outros, dos quais uns são

verdadeiros e outros falsos”.417

Acrescente-se a isto o fato de que a percepção da verdade

poderia ainda sofrer influências do momento histórico vivido, sendo que a verdade de um

momento pode não ser a de outro.418

Neste contexto, há quem defenda que seria muito comum o consenso

de que o juiz julga os fatos, quando na verdade ele julga um “resumo da prova”.419

Na mesma

medida, a ordem jurídica só se concretizaria a respeito de fatos reconstruídos, nunca chegaria

aos fatos efetivamente acontecidos.420

A autoridade jurisdicional toma em consideração os fatos

como entender que ficaram oficialmente provados.

A verdade inerente ao processo penal, por sua vez, seria assimilada

com esteio nas provas produzidas no curso do procedimento, chamada de “verdade

processual”.421

Em sentido contrário, haveria entendimento pelo qual a verdade que se busca é a

verdade material, mesmo que não absoluta ou ontológica, mas que seja uma verdade judicial

não obtida a qualquer custo, mas processualmente válida.422

/ 423

Trazendo o enfoque quanto ao entendimento tendencioso das partes

no processo penal, estas possuiriam as suas próprias verdades, segundo sua forma mentis, sob o

influxo dos seus próprios interesses e das suas paixões. E seriam somente pela experiência e

416 BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 28. 417 Ibidem. 418 BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 30. 419 CASTRO, Amilcar de. Direito internacional privado. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 19. 420 LIEBMAN, Enrico Tullio. O despacho saneador e o julgamento de mérito. Apud CASTRO, Amilcar de. Direito internacional

privado. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 19. 421 BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 29. 422 Cf. FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito processual penal. Apud BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no

processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 33. “O processo penal moderno passa a se orientar pelo compromisso ético com os valores fundamentais da pessoa humana. Os limites constitucionais à produção da prova [...],

confirmam que o Estado não busca a verdade a qualquer custo.” Cf. MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. O juiz moderno

diante da fase de produção de provas: as limitações impostas pela Constituição. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas,

v. 24, p. 159-174. 423 Trazemos por oportuno conhecida decisão do STF proferida em caso paradigmático sobre provas ilícitas produzidas por meio de

interceptações telefônicas. Ementa: “1. [...]. 2. Da explícita proscrição da prova ilícita, sem distinções quanto ao crime objeto do

processo (CF, art. 5º, LVI), resulta a prevalência da garantia nela estabelecida sobre o interesse na busca, a qualquer custo, da

verdade real no processo: consequente impertinência de apelar-se ao princípio da proporcionalidade – à luz de teorias estrangeiras inadequadas à ordem constitucional brasileira – para sobrepor, à vedação constitucional da admissão da prova ilícita,

considerações sobre a gravidade da infração penal objeto da investigação ou da imputação. [...]. 23. Ora, até onde vá a definição

constitucional da supremacia dos direitos fundamentais, violados pela obtenção da prova ilícita, sobre o interesse da busca da verdade real no processo, [...].” O item 24 faz repúdio nostálgico expresso às inquisições medievais. cf. BRASIL. Supremo

Tribunal Federal. HC. n. 80.949 / RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJe 14.12.2001. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>.

Acesso em: 26 jan. 2013. (grifamos.)

Page 98: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

96

controle crítico dos seus constantes “pontos de vista”, que se poderia chegar àquela “verdade do

juiz”, que é depois aquela que vale para o ordenamento jurídico. Neste sentido, caberia aqui a

orientação segundo a qual pela substituição da atividade das partes pela atividade do juiz, o fato

pode não ser aquele que os interessados viram acontecer, mas seria o que o juiz verificou nos

autos e declara que aconteceu.424

Em outra medida, esta mesma verdade que se manifestaria de forma

diversa nos homens, dependendo da percepção, interesses e paixões de cada um, somente seria

considerada válida no processo quando construída sobre uma base sólida de legalidade.425

Na hipótese de considerarmos que seria impossível426

o alcance da

verdade material, verdade real427

ou verdade substancial, diante de que seria escarpa cujo topo

inatingível, deveríamos então nos contentar com a possível reconstrução dos fatos

consubstanciada na verdade formal.428

Assim, nem digamos que ambas as verdades não se

apresentariam no processo penal, na medida em que não mais existiria, como em outrora, o

predomínio absoluto da verdade material que, segundo Ferrajoli, seria carente de limites e de

confins legais, degeneraria em juízo de valor, amplamente arbitrário de fato. A verdade formal

não representaria, necessariamente, também como produto do intelecto humano, o espelho da

verdade. Esta outra faceta da verdade que, não nos esqueçamos, a verdade seria única,

indivisível, caracteriza-se pela ideia de que a mesma não reflete exatamente a realidade dos

fatos, mas estaria produzindo os efeitos da chamada “verdade judicial” ou “verdade

processual”.429

Esta verdade seria encontrada pelo respeito de regras precisas. “Esta verdade não

pretende ser a verdade; não é obtida mediante indagações inquisitivas alheias ao objeto pessoal;

está condicionada em si mesma pelo respeito aos procedimentos e às garantias da defesa”.430

424 TÔRRES, Anamaria. Devido processo legal e natureza da prova: da verdade, da certeza, da convicção, da probabilidade. In:

BRANDÂO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício (Org.). Princípio da legalidade: da dogmática

jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1, p. 419. 425 BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 30 426 Por todos: TÔRRES, Anamaria. Devido processo legal e natureza da prova: da verdade, da certeza, da convicção, da

probabilidade. In: BRANDÃO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício (Org.). Princípio da Legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1, p. 423. Admitindo que “verdade e

certeza são conceitos absolutos dificilmente atingíveis no processo ou fora dele”, cf. GRINOVER, Ada Pelegrini. A iniciativa

instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, jan./jul.2005. p. 19.

427 “A verdade real passou a ser aquela extraída inquisitorialmente pelo juiz”. Cf. STREK, Lênio. O que é isso – decido conforme

minha consciência? 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 10 e 48. 428 “Faz-se justiça com fatos narrados, não com fatos acontecidos, porque com estes seria impossível funcionar o regime de justiça

pública, já que a autoridade jurisdicional não poderia ter o do da ubigüidade, para tudo presenciar”. Cf. TÔRRES, Anamaria. Devido processo legal e natureza da prova: da verdade, da certeza, da convicção, da probabilidade. In: BRANDÃO, Cláudio;

CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício (Org.). Princípio da legalidade: da dogmática jurídica à teoria do

direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1, p. 20. 429 “O juiz só pode buscar a verdade processual, que nada mais é do que o estágio mais próximo possível da certeza”, cf.

GRINOVER, Ada Pellegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista do Conselho Nacional de

Política Criminal e Penitenciária, v. 1, Brasília, jan/05 a jul/05, p. 15-26. Disponível em: <http//www.portal.mj.gov.br>. Acesso em: 24 jan. 2013.

430 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr,

Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 48.

Page 99: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

97

Por sua vez, em construção diversa, Ferrajoli sustenta que a justiça

penal fundada integralmente numa verdade seria utopia, por outro lado, uma justiça penal sem

verdade, seria o equivalente a um sistema de arbitrariedades e que as garantias legais e

processuais, além de garantias de liberdade, são garantias de verdade.431

Deste estudo, poderíamos entender então que, visualizada a iniciativa

instrutória do juiz, a verdade material ou processual definiria o horizonte e atuação do juiz. A

iniciativa instrutória do juiz seria mais ativa quando ao mesmo fosse incorporada a verdade

material, na medida em que o esclarecimento da verdade não poderia escapar-lhe às mãos. Por

outro lado, uma postura mais passiva e distante do acervo probatório pelo juiz, seria a

incorporação da verdade formal, trazida pelas partes e compreendida pelo julgador.432

A “verdade formal” ou “processual” seria uma verdade mais

controlada quanto ao método de aquisição, porém reduzida quanto ao conteúdo informativo,

apenas provável e opinativa.433

Agora seria possível notar ainda que a verdade “provável” não atende

aos anseios do processo penal, notadamente no que se refere a uma sentença condenatória.

Neste sentido, sendo a verdade mera probabilidade, poder-se-ia concluir que o juiz também não

logrou êxito em sua busca.434

Faltando a certeza, não se poderia condenar.435

436

Segundo a Teoria do Garantismo Penal havendo dúvida, ou na falta de

acusação ou de provas ritualmente formadas, prevaleceria a presunção de não culpabilidade.

Este seria o valor, ou melhor, o preço do “formalismo”, protegendo a liberdade dos cidadãos.437

Aqui, seria necessário ainda sustentar que não caberia ao juiz garantir

efetividade à acusação, propondo e produzindo diretamente a prova, já que esta só serve para

condenar, pois ao réu, a dúvida lhe favoreceria. Esta atitude do juiz seria substancialmente uma

cumulação de funções com as da acusação.

431

FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 48-49. 432

BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010, p. 39. 433

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,

Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 48. 434

BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010, p. 34. 435

MALATESTA, Nicola Framarino dei. A lógica das provas em matéria criminal. Tradução de Paolo

Capitanio. 6. ed. Campinas: Bookseller, 2005, p. 54-58. 436

No mesmo sentido, cf. LUZ, Denise. A busca da verdade no sistema acusatório e a investigação

criminal no projeto de reforma do código de processo penal brasileiro. Revista Magister de Direito

Penal e Processual Penal, n. 48, jun./jul. 2012, p. 49. 437

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica,

Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010, p. 48.

Page 100: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

98

Caminhando um pouco mais adiante, há quem sustente que o juiz seria

o destinatário da prova, desta forma, estaria autorizado em sua perseguição, com norte na

obtenção da verdade. Diga-se de passagem, entretanto que, perquirir a verdade, mesmo que de

forma supletiva438

à atuação das partes, por si só, não justificaria os poderes instrutórios do juiz.

A questão aqui seria mais bem identificada no modo de obtenção desta verdade e qual a verdade

bastaria ao processo penal.

Diante disso, seguindo entendimento no sentido de que o objetivo do

processo seria a realização da justiça439

e que para tanto, seria exigida certeza, não se poderia

fundamentar uma condenação em mera probabilidade,440

sob pena de não se fazer justiça.

Adverte Torres que “a falta de segurança, advinda de julgamentos injustos, seria mais temerosa

que o próprio ato de delinquir”.441

O mais acertado seria que a probabilidade teria sim relevante interesse

ao processo, na medida em que se transformasse em certeza, fundado no entendimento de que a

primeira pode ser o primeiro passo para a realização da segunda.442

Razão assistiria, segundo Marques, ao argumento de que a dúvida

precisaria estar relacionada com a qualidade ou idoneidade da prova, não podendo originar da

438

Leia-se aqui o parágrafo único do artigo 212 do CPP com redação determinada pela Lei 11.690/08,

que trata da oitiva de testemunhas: “Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a

inquirição”. Como contraponto à atuação supletiva do juiz na busca da prova: “O juiz pode intervir na

realização da prova para formar seu convencimento, mas essa intervenção não se confunde com

poderes para investigar a verdade. [...]. No plano concreto, a tutela dos direitos fundamentais

sobrepõe-se ao mito da verdade real. [...]. A iniciativa instrutória do juiz está adstrita à tutela da

liberdade, sendo-lhe vedado suprir a deficiência ou omissão na produção da prova, por parte do órgão

legitimado para promover a acusação”. Cf. MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. O juiz moderno

diante da fase de produção de provas: as limitações impostas pela Constituição. Revista da Faculdade

de Direito do Sul de Minas, v. 24, p. 174. 439

Segundo Ferrajoli, o objetivo do processo é a preservação dos direitos fundamentais. Cf. FERRAJOLI,

Luigi. Direito e razão. No mesmo sentido, cf. MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. O juiz

moderno diante da fase de produção de provas: as limitações impostas pela Constituição. Revista da

Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 24, p. 159-174. 440

A probabilidade é considerada por alguns como o único juízo firmado no criminal. “Os que defendem

tal posição se baseiam no fato de que em matéria criminal não se procura mais acuradamente a

verdade com certeza, porque se sabe de antemão, ser impossível”. Cf. TÔRRES, Anamaria. Devido

processo legal e natureza da prova: da verdade, da certeza, da convicção, da probabilidade. In:

BRANDÃO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício (Org.). Princípio da

legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito.. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1, p. 423. 441

TÔRRES, Anamaria. Devido processo legal e natureza da prova: da verdade, da certeza, da convicção,

da probabilidade. In: BRANDÃO, Cláudio; CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício

(Org.). Princípio da legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense,

2009, v. 1, p. 423. 442

Probabilidade e certeza seriam diferentes, pois a primeira admite graus maiores ou menores de

existência, ao passo que a segunda não. Cf. MALATESTA, Nicola Framarino dei. A lógica das

provas em matéria criminal. Tradução de Paolo Capitanio. 6. ed. Campinas: Bookseller, 2005, p. 53.

Page 101: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

99

falta desta, na medida em que a ausência ou mesmo deficiência se resolveriam sempre em

prejuízo de quem exerceu a atividade persecutória.443

Desta forma, na área do direito, a busca pela verdade revelar-se-ia de

grande importância para a aplicação da lei. Quanto ao ramo processual penal, a busca pela

verdade corresponderia, na medida em que representaria a reconstituição histórica dos fatos, ao

dever estatal de responder com a prestação jurisdicional justa e adequada às provas dos autos.

Assim, a lei poderia ser aplicada corretamente. Entretanto, não deveria ser confundida a busca

da verdade com o objetivo do processo. A busca da verdade seria um meio e não o fim do

processo que, por sua vez, teria como finalidade, na medida em que representa a efetividade do

direito, produzir justiça.444

A propósito, do ponto de vista do julgador, a atividade de busca da

verdade ou a iniciativa instrutória como forma de se fazer justiça deveria estar cercada por

algumas “cautelas”, conforme já estudado.445

Estas cautelas seriam os limites de atuação do juiz,

evitando-se a busca da verdade “a qualquer custo”, cautelas que não podem ser afastadas, sob

pena de ilegalidade, ou até mesmo de um desvio ético.

Os direitos e garantias fundamentais revestem-se na forma de

obstáculos à busca da verdade desmedida, repise-se. A investigação não pode invadir a órbita da

ilegalidade ou da imoralidade, em relação de tensão com a justiça, objetivo do processo.

Também por esta razão, poderíamos admitir, sem sermos repetitivos, que a verdade material

“estaria mais próxima de um idealismo utópico, [...], não científico”.446

3.6 Os direitos fundamentais como critério limitador da busca desmedida pela verdade e a

imparcialidade do julgador como direito fundamental e humano

As decantadas “cautelas” instrutórias do julgador durante a busca pela

verdade mencionadas no item anterior, poderiam ser entendidas como os direitos e garantias

fundamentais do cidadão. O argumento que se sustentaria neste ponto é o fato de que existiria

no processo penal interesse público e, desta forma, estaria legitimado o julgador a arvorar-se na

443

MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. O juiz moderno diante da fase de produção de provas: as

limitações impostas pela Constituição. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 24, p.

173. 444

Justiça no sentido de um conceito normativo, definida como um fim social ou como uma noção de

ética fundamental e não determinada. Verdade e justiça se complementam. cf. BARROS, Marco

Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.

32. 445

BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010, p. 30-32. 446

BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2010. p. 43-44.

Page 102: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

100

colheita das provas, mesmo que respeitadas todas as garantias fundamentais do acusado ou

investigado.447

Entretanto, não poderia ser afastada aqui a noção de que tal iniciativa poderia

ferir mortalmente a imparcialidade do juiz,448

também garantia constitucional derivada do

princípio do juiz natural.449

A formação da verdade para o juiz possuiria então regras legais, já

chamadas aqui de cautelas. Estas regras legais, cautelas ou garantias consubstanciam-se na via

pela qual deveria o julgador trilhar para chegar à verificação dos fatos. Por isto, na sentença,

seria possível chegar a uma verdade formal, legal, fictícia ou presumida, que pode ou não,

coincidir com a verdade efetiva. Por esta razão, costuma-se dizer que “a coisa julgada faz do

branco, preto e do quadrado, redondo”.450

Admitindo-se o entendimento que seria hoje majoritário, o juiz

poderia buscar a verdade, diante da deficiência das partes, dentro de critérios de legalidade, sem

que sua imparcialidade reste maculada.451

Por outro lado, não poderia ser confundida esta

atuação supletiva, complementar, comedida e legal, com a atuação no sentido de usurpação das

funções do acusador, como estudado no sistema inquisitivo de processo penal. A esta

inadmissível atuação “lado a lado” com o acusador estaria vinculada a violação da garantia da

imparcialidade452

e da própria estrutura do Estado brasileiro.

Interessante recordar posicionamento do STJ pelo qual haveria

distinção entre os poderes inquisitórios e os poderes instrutórios do juiz no processo penal. No

mesmo sentido do Superior Tribunal, admitem-se na doutrina também os chamados poderes

447

Conforme entendimento de que, segundo interesse público refletido no processo, o juiz poderia adotar

uma postura mais ativa na colheita da prova, mormente na deficiência das partes, sempre buscando a

verdade material, mesmo utópica, que, ao final, reveste-se em verdade processual. 448

O juiz que participaria ativamente da instrução probatória restaria contaminado pela mesma, afastado a

imparcialidade. 449

“A abrangência do juiz natural envolve, inequivocamente, o juiz imparcial”. Esta imparcialidade seria

entendida como garantia humana fundamental, cf. NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios

constitucionais penais e processuais penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 303 e 305. 450

CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Campinas: Bookseller, 2008, v.1, p.

340. Entretanto, há quem sustente que a busca da verdade pelo julgador deva ser irrestrita, mas dentro

de uma verdade que represente o ideal de justiça: “para que não deixem impunes os delinquentes ou

para que se aplique a lei justamente, não se pode atingir o extremo de impor ao julgador formas e

fórmulas certas e seguras para a consecução da verdade. Mas deve-se atingir a verdade processual

para que a sentença surgida seja reflexo do ideal do justo”, cf. TÔRRES, Anamaria. Devido processo

legal e natureza da prova: da verdade, da certeza, da convicção, da probabilidade. In: BRANDÃO,

Cláudio; CAVALCANTI, Francisco; ADEODATO, João Maurício (Org.). Princípio da legalidade:

da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. 1, p. 420. 451

Neste sentido, GRINOVER, Ada Pelegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal

acusatório. Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, jan./jul.2005.

p. 22. A possível justificativa seria no sentido de que haveria a prática de atos sem que fosse

necessário adentrar no mérito da questão, seriam decisões superficiais norteadas pela probabilidade. 452

Gerando nulidade, conforme artigo 564, I do CPP brasileiro.

Page 103: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

101

instrutórios, consubstanciados na realização de diligências, norteadas pela busca da verdade no

processo penal. Estes poderes, inclusive, seriam submetidos ao crivo da garantia constitucional

do contraditório. Por sua vez, os poderes inquisitórios atribuídos ao juiz não encontrariam

guarida em nosso ordenamento, na medida em que extrapolariam as funções institucionais do

órgão julgador. Há, inclusive, quem sustente que a reforma de 2008 que deu nova redação ao

artigo 156 do CPP453

“surpreendeu os processualistas com a inclusão de norma legal que

apresenta resquícios do antigo modelo de processo penal inquisitivo”.454

Neste particular, ainda sobre a reforma do CPP de 2008, dentre

inúmeras alterações, teria o legislador buscado, ao reverso, a substituição de um sistema

centralizado no juiz, pois deveria agora adotar uma postura passiva diante da colheita da prova,

impedido de inquirir diretamente as testemunhas, esclarecendo apenas pontos relevantes.

A partir daí, inúmeras críticas teriam surgido sobre a nova postura

passiva do julgador no processo. Entretanto, a mesma reforma teria afirmado também a

iniciativa instrutória do juiz com a autorização de produção de provas mesmo antes de iniciada a

ação penal, motivo de novas críticas.

A eventual oscilação e possível incerteza do legislador pátrio quanto

ao entendimento sobre a postura do juiz no processo, qual seja mais ativa ou passiva, não teria

se repetido por quem de direito no que se fere aos padrões internacionais.

Quando a maioria dos países da América Latina ainda adotaria uma

legislação processual penal de matriz inquisitiva, pela qual as etapas da investigação, da

instrução e da sentença seriam confiadas ao mesmo juiz, em 1988 no Rio de Janeiro, o Projeto

Final de Código Modelo de Processo Penal para Ibero-América teria sido apresentado às XI

Jornadas Ibero-americanas de Direito Processual.455

453

“Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I –

ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas

urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II –

determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para

dirimir dúvida sobre ponto relevante.” Cf. BRASIL, Código de Processo Penal. 454

Cf. BARROS, Marco Antônio de. A busca da verdade no processo penal. 2. ed. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2010. p. 167. 455

“Os estudos teriam sido iniciados em 1977 pelas propostas das V Jornadas Ibero-americanas de

Cartagena, acolhendo as bases de Alcalá-Zamora para o Código de Córdoba e as bases de Clariá-

Olmedo e Velez Mariconde para a união legislativa em matéria processual penal da América Latina”.

Cf. GRINOVER, Ada Pelegrini. As garantias constitucionais do novo processo penal na américa

latina. In: FUX, Luiz; NERY JR., Nelson; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim. (Org.). Processo e

constituição: estudos em homenagem ao professor José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: RT,

2006. p. 488.

Page 104: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

102

O Código-Modelo de Processo Penal para Ibero-América teria servido

de base para a profunda reforma dos sistemas processuais de países como a Argentina,

Guatemala, Costa Rica, El Salvador, Venezuela, Paraguai e para os projetos do Chile, Bolívia e

Honduras, proporcionado também reformas no Brasil, Itália e Portugal.456

Em que pese o entendimento de Grinover no sentido de que o Código-

Modelo adotaria como referência para Ibero-América “o modelo acusatório, com nítida

separação das funções de acusar, defender e julgar”,457

o mesmo documento autoriza

suplementação ou ampliação das provas.

Por meio deste Código-Modelo, a atuação judicial na colheita das

provas seria admitida, secundaria ou supletivamente, diante da deficiência das partes.

Entretanto, na hipótese de serem apuradas novas provas ou ampliadas as existentes, seria

permitido nova oitiva das partes. Neste sentido, especificamente,

Art. 147. Objetividad, investigación judicial autónoma. Salvo que la ley penal

disponga lo contrario, el ministerio público y los tribunales tienen el deber de

procurar por sí la averiguación de la verdad mediante los medios de prueba

permitidos y de cumplir estrictamente con los preceptos de los arts. 232, 250

y 272, párr. 1.

Durante el juicio, los tribunales sólo podrán proceder de oficio a la

incorporación de prueba no ofrecida por los intervinientes en las

oportunidades y bajo las condiciones que fijan los arts. 285, 289, 316, 317 y

320.458

Art. 320. Reapertura del debate. Si el tribunal estimare imprescindible,

durante la deliberación, recibir nuevas pruebas o ampliar las incorporadas,

conforme al art. 317, podrá disponer, a ese fin, la apertura del debate.

Resuelta la reapertura, se convocará a los intervinientes a la audiencia,

ordenándose la citación urgente de los que deban declarar o la realización de

los actos correspondientes. La discusión final quedará limitada al examen de

los nuevos elementos.

Apesar da expressa previsão de iniciativa probatória supletiva a ser

exercida nos próprios limites da legalidade previstos no mesmo Código-Modelo, existem ainda

outros documentos internacionais que trazem previsões distintas.

456

GRINOVER, Ada Pelegrini. A reforma do código de processo penal. Disponível em:

<http://www.egov.ufsc.br>. Acesso em: 7 mar. 2013. 457

GRINOVER, Ada Pelegrini. As garantias constitucionais do novo processo penal na américa latina. In:

FUX, Luiz; NERY JR., Nelson; WAMBIER, Tereza Arruda Alvim. (Org.). Processo e constituição:

estudos em homenagem ao professor José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: RT, 2006. p. 488 458

Capítulo 5 – Prova. Seção 1ª: Disposições gerais. Art. 147. Objetividade, investigação judicial

autônoma. 1- Salvo quando a lei penal dispuser o contrário, o Ministério Público e os tribunais têm o

dever de averiguar a verdade mediante os meios de prova permitidos e de cumprir estritamente com os

preceitos dos arts. 232, 250, e 272, § 1º. 2 – Durante o julgamento, os tribunais só poderão proceder

de ofício à produção de prova não oferecida pelos intervenientes nas oportunidades e sob as condições

estabelecidas nos arts. 285, 289, 316, 317 e 320.” Disponível em: <http://direitoprocessual.org.br>.

Acesso em: 5 mar. 2013.

Page 105: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

103

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) de 1969

conhecida como Pacto de São José da Costa Rica459

que seria o principal documento do Sistema

Interamericano de Direitos Humanos, também trouxe previsão em seu artigo 8º, I, o direito de

ser ouvida por um juiz ou tribunal imparciais.460

Por fim, a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) de

1948, que seria o principal instrumento do Sistema Global de Direitos Humanos, após as

flagrantes violações perpetradas durante a Segunda Guerra Mundial, reconhece também o

mesmo direito.461

A declaração em comento reconheceria o direito em questão apesar

de, conforme já estudado e sem querermos aqui ser repetitivos, em seu artigo XXIX, 2,

reconhecer a limitação de seu exercício.462

Nesta esteira destes entendimentos, não haveria divergência quanto ao

reconhecimento da imparcialidade do julgador como garantia fundamental e humana. A questão

latente residiria na hipótese da iniciativa instrutória do juiz interferir ou não em sua

imparcialidade, legal e amplamente garantida. Em relação a este aspecto tão delicado,

argumentos existem em extremas e contraditórias direções, conforme já estudado.

3.7 A imparcialidade do julgador e a impossibilidade de relativização dos direitos

fundamentais

Os direitos e garantias fundamentais seriam relativos, conforme a

maioria da doutrina e a posição de nossos tribunais, na medida em que serviriam ao cidadão e,

ao mesmo tempo, seriam negados ou, ao menos, reduzido seu alcance diante de eventual colisão

em face de outro direito fundamental. Mesmo assim, há quem sustente sua força absoluta e

inflexível.

459

Ratificada pelo Brasil pelo Decreto Presidencial n. 678 de 1992. 460

“Artigo 8 - Garantias Judiciais. 1. Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e

dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial,

estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação pena formulada contra ela, ou

para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer

outra natureza”. 461

“Artigo X - Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de

um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de

qualquer acusação criminal contra ele”. 462

“Artigo XXIX, 2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às

limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e

respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem

pública e do bem-estar de uma sociedade democrática”.

Page 106: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

104

A imparcialidade do julgador resultaria da garantia do juiz natural,

conforme já estudado. Desta forma, como garantia fundamental, segundo alguma construção

teórica, seria absoluta, não passível de flexibilização, na medida em que restaria impossibilitada

qualquer atuação do juiz que arvorasse na colheita da prova, ainda que de forma supletiva, ante

a deficiência das partes.

Antecedendo a construção sobre seu caráter absoluto, seria necessário

mais um pequeno entendimento sobre os direitos fundamentais. Reconhece-se que os direitos

fundamentais seriam conceituados e compreendidos conforme o referencial teórico adotado.463

Desta forma, para uma matriz liberal e, na sequência, para uma matriz

comunitarista os direitos fundamentais seriam admitidos de forma diversa, como sendo:

um conjunto de direitos reconhecidos aos indivíduos e por eles titularizados

antes mesmo da configuração da sociedade e do Estado, os quais são

elementos necessários à proteção de sua autonomia individual, na medida em

que funcionam como anteparos à atuação do Estado.

categorias que, na comunidade atribuem ao homem certas características

comuns que configuram sua identidade, categorias essas produzidas pela

própria comunidade. Por serem produzidas pela própria comunidade, estas

categorias não gozam de primazia contra a comunidade e, por isso mesmo,

não podem servir de exceção às pretensões comunitárias.

O estudo destes referenciais teóricos levaria ao entendimento de que

estariam ressaltadas tanto a autonomia privada na primeira quanto a pública na segunda, na

medida em que ambas estariam em oposição constante, prevalecendo em detrimento da outra.

Importante lembrar então que comumente parte-se do entendimento de

que o interesse estatal prevaleceria sobre o interesse individual, na medida em que o interesse

público ou coletivo seria “auto-evidente”, prevalecendo sobre os “meros”, “egoístas e contrários

ao bem comum” interesses privados. A questão seria talvez melhor entendida como o conflito

público versus privado, em outras palavras, entre a soberania popular e entre os direitos

humanos.464

Admitindo outra perspectiva, esta mesma contradição de interesses

seria inexistente, eis que seria possível e talvez necessário equilibrar esta relação de tensão entre

público e privado. Este entendimento encontraria sustentação na teoria discursiva, por meio de

uma concepção procedimental do Direito, que partiria da análise construída tanto por liberais

463

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Processo constitucional e direitos fundamentais. Revista da

Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 25, n. 02, jul/dez 2009, p. 141-142. 464

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Teoria da democracia: o surgimento do sistema de direitos

e a emergência do público e do privado, Estado, política e constituição na modernidade. Revista da

Faculdade de Direito do Sul de Minas, 2008, p. 5-6. Edição especial.

Page 107: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

105

quanto por comunitaristas. Assim, os direitos fundamentais passariam a ser entendidos como

“forma de permitir a preservação de uma esfera privada e garantir a participação em arenas

públicas”.465

Assim, o cidadão exerceria simultaneamente, segundo esta concepção do direito,

ambas as esferas de autonomia, pública e privada.

Ainda com amparo na teoria discursiva fundada no pensamento de

Jürgen Habermas, os direitos fundamentais não comportariam relativização pois haveria uma

substituição das teorias contratualistas explicativas do Estado para um modelo

procedimentalista discursivo:

Habermas substitui o modelo do “contrato social” por um modelo

procedimentalista de discurso ou deliberação: “a comunidade jurídica não se

constitui através de um contrato social, mas na base de um entendimento

obtido através do discurso”. Esse discurso será regulado “por uma forma

procedimental de gestação discursiva da opinião e da vontade. Só assim é

possível uma mediação entre os interesses individuais da autonomia privada

de cada um dos cidadãos com os interesses coletivos de bem comum da

autonomia pública dos cidadãos. Enquanto que na tradição do direito essa

tensão entre autonomia privada e pública era resolvida pela forma geral e

abstrata da lei, para Habermas, essa tensão só pode ser resolvida

satisfatoriamente por um procedimento discursivo de formação da vontade e

da opinião. Nessas condições, Habermas propõe um novo modelo de forma

do direito, onde as liberdades privadas e a “vontade da maioria” podem ser

compatibilizadas discursivamente, pela força dos melhores argumentos. E

isso significa: sem a força da repressão.466

A perspectiva em comento rechaçaria a ideia de supremacia do

interesse público, alçando os direitos ditos “privados” a uma autonomia individual ao mesmo

nível (de importância) conferido ao Estado, deixando de creditar a ele a tutela dessas liberdades.

Esse raciocínio permitiria visualizar que os direitos fundamentais não comportariam

relativização, pois escapariam do binômio reconhecimento-restrição de direitos, na mesma

medida em que o reconhecimento do direito do escravo à liberdade se oporia ao da restrição do

direito de escravizar, conferido ao senhor.

Por meio desta matriz discursiva, em outras palavras, para que o

cidadão possa fazer uso “adequado” de sua autonomia pública, este deveria

ser suficientemente independente na configuração de sua vida privada,

assegurada simetricamente. Porém, os cidadãos da sociedade [...] só podem

gozar simetricamente sua autonomia privada, se, enquanto cidadãos, do

Estado [...], fizerem uso adequado de sua autonomia política – uma vez que

465

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Processo constitucional e direitos fundamentais. Revista da

Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 25, n. 02, jul/dez 2009, p. 141-142. 466

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Page 108: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

106

as liberdades de ação subjetivas, igualmente distribuídas, têm para eles o

“mesmo valor.467

Estas mesmas autonomias, pertencentes a todos os indivíduos e que

estariam em constante rota de colisão, possivelmente equilibradas pela teoria discursiva, seriam

ainda respeitadas pela noção de Estado Democrático de Direito, cuja tensão entre democracia e

constitucionalismo constitutiva do Estado de Direito, encontraria no processo constitucional o

respeito aos direitos fundamentais, o aspecto democrático é garantido e a participação popular

preservada.468

Por fim, nosso referencial teórico fundado na teoria do garantismo

penal também cuidaria do tema em questão, na medida em que refutaria a possibilidade já

estudada de ponderação entre direitos fundamentais. Para Ferrajoli, haveriam relações de

subordinação entre direitos e garantias fundamentais, sobre os quais, como estruturas primárias

e inabaláveis estariam os direitos de liberdade, não limitáveis, mas limitadores dos demais. Sem

a preocupação com a extensão da citação ante a riqueza que nos proporcionaria, trazemos aqui,

in verbis, o pensamento do autor do garantismo:469

Geralmente, todavia, as relações entre direitos são, sobretudo, de sinergia:

sem a garantia dos direitos sociais, em especial à educação e à informação, os

direitos de liberdade não são exercitáveis com conhecimento de causa, e sem

garantia dos direitos de liberdade não o são os direitos políticos. Mas,

sobretudo, como já disse, os teóricos da ponderação veem, frequentemente,

conflitos onde não há, trocando por conflitos as relações de subordinação que

ocorrem entre os direitos constitucionalmente estabelecidos e os atos de grau

subordinado que constituem seu respectivo exercício: particularmente, entre

os direitos primários, de liberdade e sociais, e os direitos secundários de

autonomia, sejam civis ou políticos, que são direitos-poderes cujo exercício

consiste em atos e cujos efeitos estão em grau subordinado à lei, seja

constitucional ou ordinária.

O neoconstitucionalismo, não diversamente do realismo e do

neopandectismo, comporta, em suma, um enfraquecimento e, em última

análise, um colapso da normatividade das normas constitucionais e uma

degradação dos direitos fundamentais nelas estabelecidos a genéricas

recomendações de tipo ético-político. Subverte, além disso, a hierarquia das

fontes, confiando a atuação das normas constitucionais à ponderação

legislativa e àquela judicial e, por isso, à discricionariedade potestativa do

legislador ordinário e dos juízes constitucionais. Ciência jurídica e

jurisprudência, graças ao papel associado à ponderação dos princípios,

voltam assim a reivindicar o seu papel de fontes supremas do direito. Com o resultado paradoxal que a experiência jurídica mais avançada da

467

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Teoria da democracia: o surgimento do Sistema de Direitos

e a emergência do Público e do Privado, Estado, Política e Constituição na Modernidade. Revista da

Faculdade de Direito do Sul de Minas, 2008. p. 1-12. Edição especial. 468

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Processo constitucional e direitos fundamentais. Revista da

Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 25, n. 02, jul/dez 2009, p. 141-142. 469

FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo garantista e neoconstitucionalismo. Tradução de André

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mar. 2013.

Page 109: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

107

modernidade, representada pela positivação do dever ser do direito e pela

sujeição a limites e a vínculos jurídicos de todos os poderes, a ponderação

vem interpretada como um tipo de regressão ao direito jurisprudencial pré-

moderno.

Ao contrário, o constitucionalismo garantista, teorizando os desnível

normativo e a consequente divergência entre normas constitucionais sobre a

produção e normas legislativas produzidas, impõe reconhecer, como sua

inevitável consequência, o direito ilegítimo, inválido por comissão ou

inadimplente por omissão, porque viola o seu “dever ser jurídico”. E,

portanto, confere à ciência jurídica um papel crítico do próprio direito: das

antinomias, geradas pela indevida presença de normas em contraste, e das

lacunas, geradas pela indevida falta de normas implícitas em princípios

constitucionais. Comporta, em síntese, o reconhecimento de uma

normatividade forte das Constituições rígidas, em razão da qual, posto um

direito fundamental constitucionalmente estabelecido, se a Constituição é

levada a sério, não devem existir normas com ele em contradição e deve

existir – no sentido de que deve ser encontrado através de interpretação

sistemática, ou deve ser introduzido mediante legislação ordinária – o dever

correspondente por parte da esfera pública. Trata-se de uma normatividade

relacionada, em via primária, à legislação, à qual impõe evitar as antinomias

e colmatar as lacunas com leis idôneas de atuação; e, em via secundária, à

jurisdição, à qual impõe remover as antinomias e apontar as lacunas.

Pelo que poderia ser extraído do texto, em que pese o presente

reducionismo, a questão da ponderação seria entendida pelo autor do garantismo como

incoerente, na medida em que a relação de colisão entre direitos fundamentais seria afastada

pela subordinação entre os mesmos. Aqueles que se sobreporiam, chamados de primários

(direitos de liberdade e sociais), não entrariam em relação de tensão com os demais, chamados

de secundários, restando então desnecessária a ponderação entre os mesmos.

Page 110: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

108

SÍNTESE CONCLUSIVA

Houve época em que a busca pela verdade no processo penal seria

realizada “a qualquer custo”, destacando-se seu aspecto material. Aqui poderíamos mencionar o

sistema inquisitivo, pelo qual a figura do acusador era desnecessária, incorporando-a o julgador.

Em outra medida, o moderno direito processual penal caminha no

sentido de que existiriam parâmetros que regem a busca da verdade. Exatamente por este

motivo é que seria a verdade formal aquela passível de reconstrução no processo penal, eis que

limitada pelo garantismo penal, na medida em que, ao buscar a verdade, esta deveria trilhar

pelos caminhos da preservação dos direitos e garantias individuais estampadas na Constituição

ou dela compreendidos. Neste ponto, seria o sistema processual penal acusatório, como opção

de política criminal, aquele que melhor se amoldaria a estes novos ares. Por oportuno, a figura

do juiz das garantias inserida no projeto do novo CPP manifesta-se como corolário de todo este

sistema estruturado para a preservação dos direitos fundamentais do cidadão, bem como no

sentido da consolidação do sistema acusatório e da imparcialidade do julgador.

A Teoria do Garantismo Penal desenvolvida e explanada por Luigi

Ferrajoli na qualidade de protetora dos direitos e garantias fundamentais, bem como critério de

legitimação da atuação dos poderes punitivos, exerceria papel central neste contexto. O respeito

à visão do processo como meio de proteção do acusado em face do arbítrio estatal exigiria uma

postura do julgador no sentido de manter-se afastado da produção das provas, na medida em que

ao mesmo seria vedada a atuação em igualdade de trincheiras com o órgão acusador. Na mesma

linha, ao juiz caberia ainda manter-se equidistante das partes para que as mesmas pudessem

apresentar-lhe, em igualdade de condições, as provas com que pretendem formar seu

convencimento em confirmação ou refutação da hipótese acusatória.

Page 111: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

109

Sobre esta relação de demonstrações da verdade, a mesma receberia

especial atenção, na medida em que a sua produção e consequente tentativa de reconstrução não

estivesse presente de forma desregrada e irrestrita. Aqui estaria presente a grande diferenciação

entre os sistemas penais idealizados e positivados historicamente. Na mesma medida em que o

sistema inquisitório almejaria a busca pela verdade incondicional, eis que o fundamento de seu

procedimento restaria lastreado pela ilusão de alcance da verdade absoluta, ao sistema

acusatório satisfaria encontrar e verdade formal ou processual, aquela possível de ser

visualizada diante da observância das garantias constitucionais reservadas ao cidadão.

Não haja engano em entender o conjunto de garantias constitucionais

oferecidas em proteção do acusado como mero formalismo ou sinônimo de impunidade. A

Teoria do Garantismo Penal de Ferrajoli teria como meta a determinação do grau de garantismo

de um sistema penal, na medida em que poderia proporcionar uma mensuração do inevitável

descompasso percebido em nível normativo superior e à práxis das autoridades e instituições

encarregadas do poder punitivo. Assim, a ilegitimidade de todo o sistema punitivo restaria

denunciada pela inobservância dos direitos e garantias fundamentais. Nesta medida, o excesso

de liberdade poderia resultar em total anarquia no mesmo sentido em que o poder punitivo

ilimitado transformaria todo o sistema em absolutista.

Diante da crescente escalada da criminalidade, a Teoria do

Garantismo Penal seria entendida como ponto de equilíbrio entre a proteção do acusado em face

do arbítrio desmedido. Esta escarpa cujo topo parece inatingível poderia ser alcançada pela

observância de dez axiomas que comporiam toda a estrutura de um sistema garantista.

O axioma denominado por Ferrajoli de “A8”, dentre os dez

mencionados, refere-se a separação dos atores no processo penal. Especificamente faz menção a

necessária separação entre as funções de acusar e julgar. Quanto à postura do julgador,

conforme já apontado, Ferrajoli em sua teoria entenderia que a confusão entre ambas as funções

contaminaria a necessária imparcialidade dos julgamentos. Pois bem, esta posição encontraria

relação de tensão com o entendimento corrente, que volta sua atenção para o fato de que o ideal

iluminista de um processo de partes, onde o juiz seria um mero expectador atuando apenas

como fiscal e destinatário da prova, seria a violação do novo sentido do processo

contemporâneo.

O novo juiz deveria atuar ativamente na condução do processo, mas

não somente limitado à sua gestão, mas norteado pela visão publicista do processo, voltado ao

ideal de que a justiça seja feita. A busca pela verdade deixaria de ser o fundamento do processo,

bem como a mera punição dos culpados. Agora o processo assumiria uma roupagem em

Page 112: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

110

conformidade com os novos ares da modernidade. Ao juiz não caberia mais o diminuto rótulo

de “boca da lei”, uma figura inanimada, mera aplicadora da vontade, por vezes ilegítima, do

parlamento. Ao novo juiz caberia a realização da justiça, na medida em que, por imperativo de

um novo constitucionalismo, a aplicação da lei deve ser legitimada pela vontade e pelo interesse

popular. Este equilíbrio é a missão que tem pela frente o novo juiz, na medida em que

constitucionalismo e democracia devem caminhar juntos rumo à legitimidade de todo poder.

Quanto ao Brasil, nosso país teria adotado o sistema acusatório,

estampado na Constituição Federal, conforme declarado pelo Supremo Tribunal Federal. Esta

visão encontra conforto na doutrina que justifica a escolha por força do artigo 129, I da

Constituição, bem como pelo fato de ser o mesmo sistema o que melhor se amolda a um Estado

Democrático de Direito. Esta mesma visão encontraria resistência no entendimento daqueles

que sustentam estarmos diante de um modelo misto. Por meio deste sistema haveria no processo

penal uma primeira fase de cunho inquisitório e uma segunda fase de matriz acusatória. Este

entendimento ainda guardaria sustentação naqueles que entendem que os sistemas puros não

existem, restando assim, a rotulação de misto a todos os sistemas penais hoje existentes.

Há entendimento inclusive no sentido de que o Brasil possui um

processo de matriz predominantemente inquisitória, posto que a produção e colheita de provas

aconteceriam em uma primeira fase onde o contraditório e a ampla defesa restariam mitigados,

havendo mera repetição destas em uma segunda fase, com aparência de garantias atribuídas ao

acusado. Mesmo diante de expressões do tipo “a prova inquisitorial foi corroborada em juízo”, o

julgador não estaria imune à influência da fase inquisitória e o acusado por sua vez, apenas se

renderia diante das provas produzidas com ares medievais.

A iniciativa instrutória do juiz na colheita da prova durante a segunda

fase acusatória teria o condão de fazer com que a igualdade das forças contrárias que atuam no

processo sofresse um deslocamento em favor da acusação. Entretanto, há quem sustente que

este desequilíbrio de forças antagônicas sempre existira e que é a função do juiz atuar

ativamente, exatamente para restabelecer as condições de igualdade entre as partes litigantes ou

mesmo minimizar seus efeitos.

Neste cenário, o juiz deveria portar-se inerte diante da instrução

processual. Entretanto, a postura chamada por alguns de “juiz samambaia” poderia refletir

diretamente na busca da verdade no processo. O juiz poderia atuar determinando a

complementação das provas já apontadas ou produzidas pelas partes, de forma supletiva.

Determinar a produção de diligências meramente complementares, por exemplo, seria uma

atividade de equilíbrio ante a deficiência das partes.

Page 113: FACULDADE DE DIREITO DO SUL DE MINAS

111

Merece neste ponto esclarecer que a atuação do juiz aqui em comento,

seria aquela ocorrida na instrução probatória no curso do processo, depois de apresentada a

pretensão acusatório por órgão distinto e instalada a ação penal. Necessário ainda esclarecer que

a separação de funções mencionada não seja mera separação formal das funções de acusação e

julgamento. Esta separação deveria ser efetiva e permanecer durante todo o curso da pretensão

punitiva estatal, sendo que a atuação do juiz na fase investigatória, chamada de inquisitorial,

antes de formada oficialmente a pretensão persecutória pelo órgão competente, seria quase

indiscutivelmente inadmitida.470

Em outra perspectiva, a mesma iniciativa instrutória do juiz, para que

esteja alinhada aos preceitos de um Estado de direito não pode ser exercida livremente, sob pena

de retorno ao medievo inquisitorial. Aqui a busca pela verdade deve ser balizada pela

observância inarredável das garantias constitucionais, não se pretendendo “fazer justiça com as

próprias mãos” e nem mesmo “a qualquer custo”.

O modo de aquisição da verdade seria quem descortina o sistema

processual penal adotado. A aquisição ou revelação da verdade se compatibiliza com o sistema

inquisitório, ao passo que a construção da verdade no processo acusatório poderia ser obtida

diante do contraditório e por partes iguais diante de um juiz imparcial. Estas garantias exigiriam

que a gestão da prova seja entendida como atribuição das mesmas partes, vedada a iniciativa

probatória e instrutória do juiz, respeitando, sempre, as garantias do cidadão.

A postura do juiz que se espera, bem como a respectiva decisão

jurídica, do ponto da verdade processual delimitada pelo garantismo, deve trilhar à luz da

Constituição e em defesa das garantias do acusado, o que não mais comportaria um juiz

absolutamente inerte, com ares de um vegetal inanimado, nem mesmo um julgador ativo,

confundido como “inimigo do acusado” na busca pela prova que confirme a hipótese acusatória

pré-concebida, adotando ares de parcial e justiceiro.471

470 A garantia da imparcialidade como ponto nevrálgico do sistema “e o reconhecimento dos sistemas evidenciadores de uma

parcialidade são tarefas por demais difíceis, justamente pelo subjetivismo e pelo relativismo inerente à questão. Por isso é que

diversos ordenamentos procuram estabelecer critérios objetivos para delimitá-la. Normalmente é fixada uma relação de situações que implicariam a perda ou mesmo a diminuição da imparcialidade do julgador, mesmo que, efetivamente, ela não

tenha sido abalada”. 471 “No plano teórico, o problema é conciliar, por meio de garantias idôneas, imparcialidade e capacidade técnica, livre

convencimento e motivação, independência e sujeição à lei.” Cf. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo

penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 532. “O receio de ser mal empregada não justifica os argumentos tendentes a considerar perniciosa toda e qualquer

iniciativa instrutória, simplesmente porque sempre haverá bons e maus julgadores. O problema não repousará no sistema, mas,

sim, na formação do juiz, o qual deverá estar sempre consciente da imperiosa necessidade de buscar a harmonia equilibrada de suas opções. É isso que torna a sua tarefa tão dignificante”. Cf. ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do

juiz no processo penal. São Paulo: RT, 2003, p. 143 e 275. “O papel do juiz moderno é eminentemente constitucional. O juiz

precisa conjugar imparcialidade possível e capacidade técnica, independência e sujeição à lei, livre convencimento e motivação, mas precisa sobretudo compreender a magnitude de sua missão constitucional e assumir sua condição humana.” MARQUES,

Leonardo Augusto Marinho. O juiz moderno diante da fase de produção de provas: as limitações impostas pela Constituição.

Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 24, p. 174.

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