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Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASCInstituto Teológico de Santa Catarina – ITESC

ISSN 1415-4471

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Preço de AssinAturA PArA o Ano 2012Contribuição a partir de R$ 40,00

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ou depósito bancário: Banco do Brasil, Agência 3191-7, Conta 09.645-8

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Revisão: Pe. Ney Brasil PereiraEditoração eletrônica e projeto gráfico da capa: Atta

Projeto gráfico: Antônio FrutuosoPrinted in Brasil

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FUNDAÇÃO DOM JAIME DE BARROS CÂMARAFACULDADE CATÓLICA DE SANTA CATARINAINSTITUTO TEOLÓGICO DE SANTA CATARINA

Diretor Geral da FACASC e do ITESC: Pe. Dr. Vitor Galdino FellerVice-Diretor do ITESC e Marketing da FACASC: Pe. Dr. Domingos Volney Nandi

Diretora Acadêmica da FACASC: Ana Cristina Barreto FlorianiDiretor Administrativo da FACASC: Pe. Dr. Vilmar Adelino Vicente

Coordenador Pedagógico da FACASC e Secretário do ITESC: Celso LoraschiCoordenador das Pós-Graduações da FACASC: Pe. Dr. Tarcísio Pedro Vieira

Corpo Técnico Administrativo:Assistente Administrativo da FACASC e ITESC: Donizeti Mendes Guimarães

Bibliotecária da FACASC e do ITESC: Adriana de Mello TomazRecursos Humanos: Aline Maria Pereira

Secretária Acadêmica da FACASC e do ITESC: Crisleine Daiana RadatzRecepcionista da FACASC e do ITESC: Mariana Fritegoto Guaita

Serviços Gerais da FACASC e do ITESC: Geane Teresa Nascimento

[Catalogação na fonte por Daurecy Camilo (Beto)]CRB-14/416

Encontros Teológicos. Revista da Faculdade Católica de Santa Catarina – FA-CASC e do Instituto Teológico de Santa Catarina – ITESC, n. 62, Florianópolis, 2012.

Quadrimestral ISSN 1415-4471

I. Instituto Teológico de Santa Catarina CDU 2 (05)

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ENCONTROS TEOLÓGICOSrevistA quAdrimestrAl fundAdA em 1986Diretor: Elias WolffEditor: Vitor Galdino FellerRedator: Ney Brasil Pereira

CONSELHO EDITORIAL: Celso Loraschi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SCDomingos Nandi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SCEdinei da Rosa Cândido – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Elias Wolff – FACASC/ITESC – Florianópolis, SCHelcion Ribeiro – PUC – Curitiba, PRInácio Neutzling – UNISINOS – São Leopoldo, RSJoão Batista Libânio – ISI-FAJE – Belo Horizonte, MGJosé Artulino Besen – FACASC/ITESC – Florianópolis, SCLilian Blanck de Oliveira – FURB – Blumenau, SCLuiz Carlos Susin – PUC-RS e ESTEF – Porto Alegre, RSMárcio Fabri dos Anjos – Pontifícia Faculdade N. Sra. da Assunção – São Paulo, SPMaria Clara Bingemmer – PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJMaria de Lourdes Pereira Dias – UFSC – Florianópolis, SCMarlene Bertoldi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SCNey Brasil Pereira – FACASC/ITESC – Florianópolis, SCRudolf von Sinner – EST – São Leopoldo, RSValter Maurício Goedert – FACASC/ITESC – Florianópolis, SCVilmar Adelino Vicente – FACASC/ITESC – Florianópolis, SCVitor Galdino Feller – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC

CONSELHO CONSULTIVO:Analita Candaten – Centro de Fomação Scalabriniana – Passo Fundo, RSArmando Lisboa – UFSC – Florianópolis, SC Cecília Hess – UNIVILLE – Joinville, SCÉrico Hammes – PUC-RS – Porto Alegre, RS Evaristo Debiasi – FACASC/ITESC – Florianópolis, SCFábio Régio Bento – UNISUL – Tubarão, SCGabriele Cipriani – CONIC – Brasília, DFJoaquim Cavalcante – Universidade Estadual de Goiás – Itumbiara, GOLuís Dietrich – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Luís Inácio Stadelmann SJ – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Márcio Bolda da Silva – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Mari Hammes – FACASC/ITESC – Florianópolis, SCMarta Magda Antunes Machado – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC Paulo Cezar da Costa – PUC-Rio, Rio de Janeiro, RJRoberto Iunskovski – UNISUL – Florianópolis, SCSérgio Rogério Junqueira Azevedo – PUC-PR – Curitiba, PRSiro Manoel de Oliveira – FACASC/ITESC – Florianópolis, SCVilson Groh – FACASC/ITESC – Florianópolis, SC

Nota: O autor de cada artigo desta publicação assume a responsabilidade das opiniões que expressa.

Publicação dirigida aos agentes de pastoral das igrejas e aos professores universitários, pesquisado-res e alunos nas áreas da Teologia, das Ciências da Religião e Ciências Humanas em geral, com o objetivo de favorecer a formação religiosa, social e humana, promover o debate e incentivar a troca de informações sobre temas teológicos, pastorais e sociais.

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Sumário

Editorial ....................................................................................................... 7

Como a Igreja do Brasil adubou o terreno para o Concílio Vaticano IIJosé Ernanne Pinheiro ............................................................................................. 13

A Igreja a 50 anos do Concílio Vaticano IIJ. B. Libanio ............................................................................................................. 29

Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: Antecedentes históricosAntonio Luiz Catelan Ferreira ................................................................................. 51

A Liturgia no Concílio Vaticano IIValter Maurício Goedert .......................................................................................... 81

A Palavra de Deus no Vaticano IINey Brasil Pereira ................................................................................................... 95

A “virada popular”: Discipulado missionário do Brasil para o mundo secularizado e pluricultural à luz do Vaticano II e da caminhada latino-americanaPaulo Suess ............................................................................................................. 107

Concílio Vaticano II: 50 anos depoisLuis Stadelmann, SJ ................................................................................................. 125

Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudançasVitor Hugo Mendes .................................................................................................. 139

Carta das Religiões e o Cuidado da TerraCNBB – Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-religioso ....................................................................................... 165

Recensões .................................................................................................... 169Crônicas ....................................................................................................... 181Encontros Teológicos 26 anos ...................................................................... 189

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7Encontros Teológicos nº 62Ano 27 / número 2 / 2012

Editorial

Em outubro de 2012 comemoramos o 50º. aniversário de abertura do Concílio Vaticano II (1962-1965). Trata-se do 21º. Concílio Geral da Igreja Católica e certamente o mais significativo desde os tempos da Reforma do século XVI. Eventos que invocam “o espírito do Vaticano II” estão em curso em todo o mundo católico. Fala-se de “revisitação” do Concílio, de “recuperação” de suas orientações pastorais, de “for-talecimento” do seu posicionamento de abertura eclesial. É o processo de recepção das orientações conciliares que se desenvolve no tempo.

Como foi possível o Vaticano II? O anúncio oficial do Concílio, no dia 25 de janeiro de 1959, domingo de encerramento da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, surpreendeu a todos. Era uma ideia pessoal do papa, a pouquíssimas pessoas confiada até então. Havia quem pensava não mais haver a necessidade de um Concílio na Igreja, depois que o Vaticano I (1870) estabeleceu a doutrina do primado do bispo de Roma, concedendo-lhe plenos poderes em tudo na Igreja do presente e do futuro.

Mas as mudanças na Igreja já estavam sendo preparadas há algu-mas décadas, sobretudo pelos movimentos litúrgico, bíblico e ecumênico. Tratava-se de um movimento teológico inspirado nas Escrituras e nos Padres da Igreja dos primeiros séculos. Esse fato preparou a Igreja para, pela primeira vez em sua história, realizar uma convicta, global e con-sequente revisão de si mesma, em seu ser e agir. Isso implicava na busca de reformas na sua organização, no seu ensino e na sua ação pastoral. Reforma não é para mudar o essencial, mas para ajudar a Igreja a viver na sua essência. A chave para tal foi o “retorno às fontes” bíblicas e patrísticas, o que lhe possibilitou o re-encontro consigo mesma, em sua identidade, natureza e missão.

Assim foi que o Papa João XXIII propôs como objetivos do Con-cílio a atualização (aggiornamento) da Igreja e a busca da unidade dos cristãos. Três questões mostram o seu propósito: Igreja, o que dizes de ti mesma? A resposta levou o Concílio a rever a identidade, a natureza e a missão da Igreja, com a necessária reorganização institucional; Igreja, quem é o mundo para você, e o que você tem a dizer para o mundo?

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8 Encontros Teológicos nº 62Ano 27 / número 2 / 2012

EditorialEditorial

Questão que levou a considerar a sociedade e as tendências da época não como antagonistas, inimigos a serem combatidos, mas contexto de missão, de parceria e de cooperação; Igreja, o que são para você as outras tradições eclesiais e religiosas? Questão que abriu o catolicismo para o movimento ecumênico e o diálogo inter-religioso.

A incidência do Concílio na vida eclesial foi notável nos primeiros anos consecutivos à sua realização. Mudanças na liturgia, no pensar teológico, no agir pastoral, nas relações entre os sujeitos eclesiais impactaram os meios católicos a partir do Concílio. Como horizonte maior dessas mudanças, estava o redimensionamento da consciência eclesial sobre si mesma, sobre a sociedade, sobre as outras igrejas e as religiões. Esse redimensionamento foi causa e também conseqüência de uma nova postura que a Igreja conciliar adotou: de não ser apenas “mater et magistra”, mas também aprendiz; de não apenas falar, mas também ouvir; de não apenas denunciar e condenar possíveis erros doutrinais, mas de exercer o diálogo e a misericórdia. Para alguns, tais mudanças são compreendidas como ganhos e atualização necessária da Igreja. Para outros, como perdas e desvios da antiga tradição. Seja como for, poucos duvidam da magnitude do impacto dessas mudanças na vida da Igreja.

A Igreja conciliar revê dois elementos que lhe são essenciais: sua organização social e sua vocação divina. Em sua dimensão social e humana, a Igreja organiza-se na complexidade das relações humanas, com opções teológicas e institucionais, situando-se nos contextos polí-tico, econômico, cultural e religioso do mundo. O Concílio enfatiza a humanidade da Igreja. De outro lado, o Concílio fortalece a dimensão divina da Igreja, em sua origem, seu desenvolvimento e seu fim. Essas duas dimensões interagem constantemente, de modo que o humano e o divino constituem a identidade da una, santa, católica e apostólica Igreja. A partir disso ela auto-compreende-se como Povo de Deus, Corpo Místico, Templo do Espírito Santo, Sacramento do Reino.

O Vaticano II foi, essencialmente, um concílio pastoral. Na glo-balidade dos temas tratados pelo Concílio, não se observa mudança no conteúdo de sempre da doutrina católica, mas em sua expressão, em sua organização ad intra e sua relação ad extra. A renovada configuração eclesial tem expressão na liturgia, nas estruturas pastorais, na presença e atuação do leigo na evangelização, no diálogo de conciliação e parceria com a sociedade, com as igrejas e as religiões. O Vaticano II não fez

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9Encontros Teológicos nº 62Ano 27 / número 2 / 2012

Editorial

acusações, condenações ou expulsões. Ao contrário, desenvolveu uma postura positiva frente às diferenças, reconhecendo no outro os elementos de enriquecimento para a fé em Deus e a promoção de uma nova ordem social, ensinando que é exatamente nas tensões e contradições que se deve buscar a conciliação.

Fundamental para que isso acontecesse foi a opção metodológica para a discussão nas aulas conciliares: um é o depósito da fé, outra a sua formulação. A verdade não se identifica com o conceito que a expressa. Isso é o que dá à mensagem da Igreja a plausibilidade de ser ouvida e acolhida em nosso tempo: “... A Igreja nunca poderá afastar-se do sagrado depósito da verdade ... Mas ao mesmo tempo, ela deve sempre olhar para o presente, para as novas condições e as novas formas de vida introduzidas no interior do mundo moderno” (João XXIII, Discurso de abertura). Essa opção metodológica foi chave para a realização do principal objetivo do Concílio, a atualização – aggiornamento da Igreja: “O maior objetivo do Concílio ecumênico é que o sagrado depósito da doutrina cristã deverá ser guardado e ensinado mais eficazmente (João XXIII, Discurso de abertura).

“Revisitar” o Concílio, retomar suas inspirações, é a forma atual de afirmar e fortalecer a sua recepção. Fala-se de três fases no processo de recepção do Vaticano II: a fase da “exuberância” dos primeiros tem-pos pós conciliares, com a impressão de que o Concílio foi um evento totalmente novo, e impelia à busca de novidades, não poucas vezes indo além do que o Concílio possibilitava.

Seguiu-se a fase do “desencanto” pelo fato de as expectativas de renovação na Igreja não terem sido realizadas em muitos níveis. Tal é o que se constata no quase abandono da concepção da Igreja como Povo de Deus e na fragilidade dos princípios da colegialidade e da subsi-diariedade que sustentam a concepção da Igreja como communio; na relação entre ministérios ordenados e os demais serviços eclesiais; na pouca valorização da Igreja local; na concepção dos sacramentos num horizonte mais ritual do que evangelizador. O desencanto é provocado também pelas atitudes de fechamento ao diálogo com o mundo, com as igrejas e com as religiões; no desequilíbrio entre o jurídico e o teológico, a instituição e o carisma, a disciplina e a caridade. Ares de intimidação se manifestam em atitudes disciplinares que geram um silêncio que paralisa a força pastoral e profética da primeira fase da recepção do Concílio. Para alguns, a atual fase os leva gera uma espécie de cansaço

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10 Encontros Teológicos nº 62Ano 27 / número 2 / 2012

Editorial

pastoral; outros refugiam-se na inércia e no comodismo. Enfim, surgem muitas perplexidades. O que dizer do retorno à missa em latim depois de 50 anos da reforma litúrgica proposta pelo Concílio...?

Vivemos agora um terceiro momento da recepção do Vaticano II. A celebração dos seus 50 anos pode trazer um novo movimento no interior da Igreja, o que mostra que sua recepção e implementação ainda não está concluída. Para isso, é fundamental ter presente alguns elementos:

Hermenêutica: no processo de recepção atual, uma questão fundamental é a interpretação do Concílio. As opções hermenêuticas diferem e divergem. O que alguns entendem como renovação, para outros é um perigo à identidade eclesial e à fundamentação da fé. Urge um consenso nos princípios de leitura do Vaticano II que possibilite a todos uma acolhida que sustente um caminhar juntos, respeitando o ritmo diferenciado dos passos, mas na mesma estrada do aggiornamento que o papa João XXIII propôs para a Igreja dos nossos tempos. É fundamental uma “hermenêutica da reforma”, que compreende o Vaticano II como “renovação na continuidade” do único sujeito eclesial que se aprofunda e desenvolve no tempo. Num processo de reforma, algumas desconti-nuidades podem necessariamente acontecer. Mas sem o abandono dos princípios que sustentam a identidade cristã e eclesial de sempre.

Eclesiologia: o Vaticano II foi um concílio eminentemente ecle-siológico, o que se expressa em seus 16 documentos finais. Há diferentes eclesiologias no Concílio, mas a ênfase está na compreensão da Igreja como Mistério, Povo de Deus, Comunhão, Corpo de Cristo, Templo do Espírito, Sacramento do Reino. Essas perspectivas eclesiológicas, distintas mas não separadas, perspectivas precisam ser equilibradas na organização institucional e pastoral da Igreja em cada tempo e lugar.

O “espírito” do Concílio: a recepção acontece com o sentire cum ecclesia. E isso significa assumir o “espírito” do Vaticano II que se caracteriza por relação, diálogo, parceria, comunhão. Nesse espírito, o Vaticano II nos desafia a vivermos a colegialidade, a sinodalidade, a koinonia; a acreditarmos numa Igreja servidora da humanidade, parceira em suas tristezas e alegrias; a termos coragem para repensar instituições e o exercício dos ministérios; a desenvolvermos o diálogo ecumênico e inter-religioso; a concretizarmos a inculturação do Evangelho...

Para isso, os esforços de recepção do Vaticano II precisam superar as crescentes manifestações de distanciamento do Concílio. Em alguns

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11Encontros Teológicos nº 62Ano 27 / número 2 / 2012

Editorial

ambientes eclesiais há uma sensação de que o legado do Concílio está sendo abandonado ou, no mínimo, ignorado. Mesmo falar positivamente do Concílio pode incorrer em suspeitas.

Urge buscar no Concílio a inspiração para o ser e agir da Igreja hoje; a orientação para o enfrentamento de questões que não apareciam no seu tempo (a biogenética, o poder da mídia e das redes sociais, as questões ambientais ...); urge olhar para o futuro, re-alimentar a uto-pia do Reino que se manifesta em uma nova ordem eclesial e social, de comunhão na fé e no amor. O que nos inspira no Concílio é, enfim, uma Igreja diferente nos métodos, no estilo.

A presente publicação de Encontros Teológicos quer dar a sua parcela de contribuição para os esforços de revisitação do Concílio Vaticano II, no contexto da celebração dos 50 anos de sua abertura. Já fizemos semelhante publicação pela ocasião dos 40 anos do Concílio (n. 33, 2002/2). Agora queremos aprofundar alguns dos temas ali tratados e apresentar novas perspectivas. Publicamos aqui “Como a Igreja do Brasil adubou o terreno para o Concílio Vaticano II”, por José Ernanne Pinheiro; “A Igreja a 50 anos do Concílio Vaticano II”, por J. B. Liba-nio; “Antecedentes históricos da eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II”, por Antonio Luiz Catelan Ferreira; “A Liturgia no Concí-lio Vaticano II”, por Valter Maurício Goedert; “A Palavra de Deus no Vaticano II”, por Ney Brasil Pereira; “A ‘virada popular’ – Discipulado missionário do Brasil para o mundo secularizado e pluricultural à luz do Vaticano II e da caminhada latino-americana”, por Paulo Suess; “Concí-lio Vaticano II: 50 anos depois”, por Luis Stadelmann, SJ; e “Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudanças”, por Vitor Hugo Mendes. Temos, ainda, a “Carta das Religiões e o Cuidado da Terra”, assinada por um grupo de líderes religiosos participantes da Conferência da Cúpula dos Povos, no Rio de Janeiro em junho deste ano, Recensões e Crônicas.

Pe Elias Wolff

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Encontros Teológicos nº 62Ano 27 / número 2 / 2012, p. 13-27.

Resumo: Para entendermos como a Igreja do Brasil acolheu “o novo” do Concílio Vaticano II temos que compreender o que aconteceu com as “minorias abraâ-micas” que prepararam o terreno para que as sementes de renovação caíssem em terreno adubado. O texto aqui apresentado salienta três eixos da renovação eclesial na década de 50 do século passado; a) a renovação litúrgica, raiz da renovação cristológica e eclesiológica; b) a consciência do social; c) a dimensão missionária e o compromisso eclesial na pastoral de conjunto.

Abstract: In order to understand how the Church in Brazil received the “inno-vations” of the Second Vatican Council we have to grasp what happened to the minority groups likened to the families of Abraham from of old which prepared and fertilized the soil for the plantation of the seeds of renovation. The text of this article lays stress on three main focal points inherent in the ecclesial renovation shown forth in the decade of the fifties of the last century: a) the liturgical renovation, developed from the Christological and ecclesiological renewal; b) awareness of the social dimension; c) the missionary activity of the Pastoral organizations of each diocese as the contribution to the good of the Church universal.

Como a Igreja do Brasil adubou o terreno para o Concílio Vaticano IIJosé Ernanne Pinheiro*

* Padre José Ernanne Pinheiro, natural do Ceará, atualmente incardinado na arquidio-cese de Brasília. É assessor da CNBB como secretário do Centro Nacional de Fé e Política (CEFEP).

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14 Encontros Teológicos nº 62Ano 27 / número 2 / 2012

Como a Igreja do Brasil adubou o terreno para o Concílio Vaticano II

“O Concílio Vaticano II foi um Concílio pastoral-eclesiológico... que não veio para definir ou condenar, mas para servir e salvar. Toda a sua postura não foi fuga do mundo, mas presença viva e atuante em favor do mundo e da humanidade. Quis ser um fermento evangélico inserido no coração do mundo e da humanidade, a fim de tornar o mundo o mais sau-dável possível no corpo e na alma” (Cardeal Aloísio Lorscheider).1

Vivemos tempos de jubileu. Há 50 anos, outubro de 1962, o Papa João XXIII declarava aberto o Concílio Vaticano II, evento marcante no século XX não só para os cristãos. Foi considerado um novo Pentecostes, uma nova primavera.

O aspecto “ecumênico” do Concílio quer expressar tanto a abertura para o diálogo com o mundo moderno como a sua dimensão universal. O Concílio foi ecumênico porque contou com a presença significativa de todos os continentes e, sobretudo, com expressões eclesiais diversificadas.

O Cardeal Aloisio Lorscheider, por ocasião das celebrações dos 40 anos do Vaticano II, “resume o evento com duas palavras-chave para compreender a sua pastoral e a sua eclesiologia – aggiornamento e diálogo. Aggiornamento – com os seus sinônimos: atualização, re-novação, rejuvenescimento – da Igreja: diaconia e serviço. Diálogo da Igreja consigo mesma, com as outras Igrejas e mesmo com as outras religiões e o mundo dos não-crentes. Sinônimo: comunhão, participação, corresponsabilidade.2

É certo que o Concílio Vaticano II só mereceu um grande destaque porque a Igreja vivia, nas décadas anteriores, um clima de criatividade e de liberdade para novas experiências, legitimadas pelo conclave que lhes ofereceu cidadania eclesial, maior aprofundamento e dimensão universal.

Nas pegadas do Concílio Vaticano II, em comunhão com toda a Igreja, celebramos com alegria os 50 anos da abertura do evento, mas ao mesmo tempo procuramos revitalizar e atualizar a herança que nos conduziu a este novo Pentecostes.

1 Cf. publicação coletiva Vaticano II – 40 anos depois, Paulus, 2002, pag. 492 Cf. obra citada, p. 40. Na mesma publicação, pp. 51-70, padre José Comblin, por

sua vez, expressa as Sete Palavras-chaves do Concílio Vaticano II: – Homem; – Liberdade; – Povo de Deus; – Colégio episcopal; – Diálogo; – Serviço; – Missão.

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15Encontros Teológicos nº 62Ano 27 / número 2 / 2012

José Ernanne Pinheiro

É certo que as sementes de renovação foram plantadas ao longo de períodos anteriores, mas acreditamos que elas deitaram raízes e pro-duziram frutos abundantes, entre nós, de modo muito especial na década de 50 do século passado.

Concordamos com Raimundo Caramuru Barros, no seu livro “Para entender a Igreja no Brasil”, que a nossa Igreja viveu nos anos 50 do século passado uma das fases mais criativas da sua história, o que quer dizer, adubou o terreno para receber as novidades do Concílio Va-ticano II. Os títulos dos capítulos do seu livro já expressam o conteúdo a ser tratado: as sementes de renovação (1931-1949); ... E a semente cresceu e multiplicou-se (1950-1957); anos de expansão, transição e conflito (1958-1962)... 3

Vivíamos, no Brasil, sobretudo nos anos que precederam o Con-cílio, um clima de renovação com sinais que indicavam pistas para nova fase da fidelidade evangélica. Expressando-nos numa linguagem aparentemente triunfalista (seguramente não o é), podemos dizer que o Concílio Vaticano II começou entre nós na década de 1950.

Destacamos três linhas básicas da renovação eclesial que prepa-raram a vivência conciliar entre nós (embora não só entre nós), através de três categorias:

1 – renovação litúrgica com uma nova mística que criava exigência de ação, explicitada através da renovação eclesiológica, base-ada numa visão de teologia da história e no desejo crescente de celebrar a vida;

3 São os títulos dos capítulos do livro que o autor Raimundo Caramuru Barros (Servus Mariae) escreve com autoridade: “Para entender a Igreja no Brasil – A Caminhada que culminou no Vaticano II (1930-1968)”, Vozes, 1994. Trata-se de uma leitura privilegiada dos acontecimentos porque ele foi assessor da CNBB durante vários destes anos e o formulador de muitas das chaves de renovação do período correspon-dente aos anos próximos ao Vaticano II; portanto, uma leitura mais nacional. Procuro complementá-la com minha experiência no período, vivenciada no Ceará, através do Seminário da Prainha e dos leigos/as da Ação Católica especializada, sobretudo na Juventude Agrária Católica (JAC), na Juventude Universitária Católica (JUC) e na Juventude Operária Católica (JOC)...

Contamos com uma bibliografia sólida sobre a ação da Igreja do Brasil nesses anos. Sobre a participação mais específica da Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II te-mos a excelente obra do padre José Oscar Beozzo: A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II(1959-1965), Paulinas, 2005

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16 Encontros Teológicos nº 62Ano 27 / número 2 / 2012

Como a Igreja do Brasil adubou o terreno para o Concílio Vaticano II

2 – nova consciência do social, fundamentada nas exigências do Evangelho, no Ensino Social da Igreja e nos apelos constantes de um país em ebulição;

3 – a corresponsabilidade missionária, com sementes plantadas em vários campos e em várias vertentes, qual um rio com seus afluentes correndo para o mar, desenvolveu a pastoral de con-junto, na unidade entre os membros da hierarquia e os leigos, até chegar a um a tentativa de planejamento de pastoral mais orgânico, como exigência da missão.

1 A renovação litúrgica

A renovação litúrgica era um guarda-chuva que dava cobertura a várias ramificações da renovação eclesial. Recebíamos influência de grupos especializados de outros países (França, Bélgica, Alemanha), de modo especial dos beneditinos, mas, também, despertávamos em cria-tividade com iniciativas próprias importantes. Na renovação litúrgica, redescobrimos a centralidade de Jesus Cristo, superando o devocionis-mo das celebrações. A espiritualidade do Corpo Místico de Cristo nos encaminhava tanto para Jesus Cristo como para uma nova relação entre os membros do corpo – na Igreja, levando para nova eclesiologia com fundamentos bíblicos e patrísticos. Também pela liturgia, começamos a acentuar a urgência do espírito comunitário – o sentido da assembleia, da participação e suas consequências para a missão. O papel do Mo-vimento do Mundo Melhor, do padre Lombardi, na mística do Corpo Místico, foi fundamental para desarmar os espíritos e criar um clima de compromisso evangélico.

Foram passos promissores para acolhermos a Ação Católica es-pecializada que, através do método ver, julgar e agir, nos formava para a contemplação na ação, elaborando uma sensibilidade para os aconte-cimentos, lendo-os à luz da Palavra de Deus para um agir em sintonia com a renovação eclesial. A dimensão política começa a despontar de maneira implícita ou mesmo explícita nos respectivos meios sociais. Todo este clima de renovação tinha seu desaguar, por intermédio de alguns bispos e padres, dos Seminários Maiores e dos Movimentos de ação católica especializada, também em algumas dioceses e paróquias e outras expressões eclesiais, embora através de minorias e com tensões entre modelos de Igreja.

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17Encontros Teológicos nº 62Ano 27 / número 2 / 2012

José Ernanne Pinheiro

2 A nova consciência do social

Uma nova consciência do social, emanada tanto da dimensão social dos movimentos sociais como da ação eclesial, penetrava de cheio no âmago da Igreja. Naturalmente uma nova metodologia, não mais só assistencial, mas também promocional, integrava os recintos dos cristãos. Uma grande novidade: os cristãos leigos, sobretudo os que se engajavam na realidade desafiante do nosso país, redescobriam a categoria “pobres”, em moldes novos, com a descoberta da dimensão política da pastoral. Estivera ela bastante ausente nas últimas décadas. Também vinha à tona o sentido da dignidade do trabalho humano como motivação das encíclicas sociais desde Leão XIII (cf. Rerum novarum), mas também vivenciada pela juventude operária católica (a JOC do padre José Cardijn), formando militantes admiráveis a quem muito devemos ao entrarmos no emaranhado da renovação industrial.

Podemos relembrar entre nós outras experiências levadas ao Con-cílio, mas sobretudo, novas feições de bispos pastores e missionários, muitos deles formados nas fileiras da Ação Católica especializada que assumem, com acentuado espírito missionário, a novidade do Espírito nos seus respectivos meios sociais – operário, camponês, estudantil e universitário, profissional...

Pensemos igualmente no Movimento de Educação de Base (MEB), na nascente Campanha da Fraternidade, nas semanas ruralistas defenden-do a Reforma Agrária, no apoio aos sindicatos rurais, no papel da JAC (Juventude Agrária Católica), no movimento de Natal que atingia todo o Nordeste, mas também iluminava novos caminhos em outros Estados da federação. De modo muito especial, tenhamos presente a ebulição no meio da Juventude Estudantil e Universitária (JEC, JUC), despertando para o ideal histórico, com repercussão no compromisso político, che-gando a criar um partido político – a AP (Ação Popular).

O teólogo peruano Gustavo Gutierrez, autor de muitas publicações sobre a Teologia na América Latina, por ocasião da elaboração do seu livro sobre a Teologia da Libertação, veio ao Brasil entrevistar alguns militantes da caminhada da Juventude Universitária Católica – suas in-tuições, seus pressupostos filosóficos e teológicos, sua prática política e sua metodologia de formação4.

4 Cf. Luiz Alberto Gomez de Sousa, no seu livro “A JUC: os estudantes católicos e a Política”, Vozes, p. 9

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Seguramente essas experiências estavam em sintonia com experi-ências similares de outros países: padres operários da França, os grupos do Abbé Pierre que trabalhavam a assistência aos pobres, de modo especial a moradia popular; a espiritualidade do irmão Charles de Foucauld e tantas outras. O Concílio Vaticano II não partia do zero, mas vinha carregado da “esperança que não decepciona” (Rom 5,5).

3 Planejamento Pastoral

Pudemos já caracterizar pelo menos quatro eixos-chave da nossa caminhava eclesial, que serão o sustentáculo ao conjunto do Concílio. Como estes quatro eixos foram vivenciados pela Igreja do Brasil no período anterior?

As sementes plantadas germinaram, colaborando para a pastoral de Conjunto, para o Planejamento da Pastoral e para o Plano de pastoral – Plano de Emergência, já antes do Concílio Vaticano II. Vejamo-las:

a) a volta às fontes da Palavra de Deus pelo movimento bíblico, através dos instrumentos que colocavam a Sagrada Escritura nas mãos do povo, tornando a Palavra de Deus luz para en-frentar os desafios correntes;

b) a consciência da vivência em comunidade na assembleia litúrgica (o Povo de Deus), de base bíblica com significado especial para a missão também do leigo/a; as assembleias litúrgicas, com suas exigências de participação e de vivência comunitária, fizeram germinar brotos de pequenas comunidades de onde desabrocharam as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), à luz da Palavra de Deus, levando à ação do laicato na mística da missão.

Caramuru já caracteriza as CEBs no período 1958-1962 ao afirmar: “Nesse momento, já começava a tomar corpo a ideia da comunidade eclesial de base. O nome, porém, ainda não havia sido cunhado. Sê-lo-ia logo depois, embora como “comunidade de base”. O termo eclesial só seria acrescentado em 1965”5

c) a questão da colegialidade-comunhão: Em 1952 um grande acontecimento eclesial: a criação da Con-

ferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), inclusive com

5 Obra citada, pag.141.

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ajuda dos leigos/as da Ação Católica especializada. Foi comple-mentada pela criação da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB) em l954, quais duas irmãs siamesas alimentando o espírito comunitário e profético na renovação eclesial entre nós. Também nascia o Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), em 1955, no Rio de Janeiro, abrindo horizontes para a mística latino-americana. Um novo panorama se abre para a missão da Igreja, com expectativa de novos passos em reconstrução.

“... É preciso deixar claro que um personagem central de nossa Igreja, a partir dos anos 40 do século XX, Helder Pessoa Câmara, terá papel destacado nesta reconstrução. Dom Helder foi um líder proativo nos diversos processos intra e extra-eclesiais do período. É também fonte de uma preciosa documentação, sem a qual seria impossível olhar sob a superfície de tais processos”6.

O trabalho colegial entre os Bispos na perspectiva da Pastoral de Conjunto foi produzindo um novo perfil de Episcopado nos anos 50, valorizando: a colaboração fecunda entre os Bispos e os Leigos, o exercício de corresponsabilidade colegial, os encontros de representantes das hierarquias latino-americanas e das hierarquias norte-americanas; o exercício da missão pro-fética em uma sociedade em rápida mutação.

Nesse campo teve um papel fundamental a chegada ao Brasil do novo Núncio Apostólico, Dom Armando Lombardi, com atuação de excepcional importância para a renovação da Igreja no Brasil até 19647.

d) os sinais dos tempos como sinais do Espírito Eles se expressaram no Concílio pela Gaudium et Spes, com

a forte presença dos documentos pontifícios de cunho social,

6 Cf. o recente artigo de Luiz Carlos Luz Marques em parceria com José Oscar Beozzo: A Igreja do Brasil na preparação do Vaticano II, publicado na Revista Horizonte, PUC-Minas, n.24 (especial) Dossiê: Concilio Vaticano II: 50 anos, dezembro, 2011, p. 988.

7 Diz Caramuru sobre o novo Núncio Armando Lombardi: “Durante dez anos visitou praticamente o país inteiro, até remotas prelazias da Amazônia. Seus pronunciamentos por ocasião das Assembleias do episcopado, eram programas de grande perspicácia e descortino pastoral. O apoio decisivo e ostensivo que deu ao apostolado dos leigos e, em especial, à criação de novas circunscrições eclesiásticas, a indicação para o episcopado de sacerdotes com grande visão e experiência pastoral, a atitude amiga e fraterna e ao mesmo tempo franca com que tratava os irmãos no episcopado, foram contribuições que ajudaram significativamente a plasmar, no longo de uma década, o novo perfil da Igreja no Brasil”, pag. 95.

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sobretudo as duas últimas encíclicas do Papa João XIII – Mater et Magistra (1961) e a Pacem in terris (1963) e também pelos dramáticos questionamentos da realidade social do mundo moderno.

Quando o novo esquema “A Igreja no mundo de hoje” fez parte da agenda do Concílio, recolhia as novidades das Igrejas já presentes no mundo, em diálogo com o mundo, a serviço do mundo. Essa caminhada já vinha de longe num caminhar lento, mas promissor, tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento.

No Brasil, nos anos 50, vivíamos o grande impulso desenvolvi-mentista, surgido no país após a II Guerra Mundial; o crescimento de-sordenado das cidades; as exigências crescentes de uma transformação estrutural na agricultura. Tudo isso não podia deixar de estimular uma participação mais efetiva da Igreja que, por sua vez, continuou a marcar presença nas questões educacionais e a preocupar-se com os meios de comunicação social. As relações da Igreja com a sociedade civil pro-moviam um encontro feliz – no desenvolvimento rural e na reforma agrária; no desenvolvimento nacional e regional; nas questões relativas à educação e opinião pública8.

No desenvolvimento rural, muitas iniciativas estão em curso no momento.

A título de exemplo: as semanas ruralistas, lembrando-nos de modo especial da semana ruralista de Campanha – MG, onde o bispo Dom Inocêncio Engelke em sua carta pastoral pronunciou uma frase célebre: “Conosco, sem nós, ou contra nós, se fará a reforma agrária”; o trabalho das cooperativas; o Serviço de Assistência Rural (SAR), em Natal – RN; a educação rural através das escolas radiofônicas (o Movi-mento de Educação de Base – MEB) e outros.

O desenvolvimento nacional e regional aconteceu num diálogo promissor entre Igreja e Estado, exatamente no momento em que o Presidente Juscelino dava início a seu plano de metas e a seu projeto de criação da nova capital em Brasília9 (em 1956 foi enviado ao Congresso

8 Cf. CARAMURU, obra citada, pp. 105-111.9 Em manuscrito, está depositada nos arquivos do Centro de Documentação Helder

Câmara, CeDocHC, uma carta de Dom Helder convidando o Papa João XXIII para estar presente na inauguração da nova capital – Brasília, no dia 21 de abril de 1960.

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o projeto de lei sobre a transferência da capital para o centro do país). O presidente Juscelino defendia um desenvolvimento de “50 anos em 5”.

O episcopado concentrou suas atenções em dois aspectos fun-damentais do desenvolvimento brasileiro: a) como processo integral, envolvendo o homem todo e todos os homens; b) o desenvolvimento não pode ser alcançado com base nas gritantes disparidades sociais e regionais.

Nesse período já se fazia sentir, no Brasil, a influência do padre dominicano Lebret, que vinha exatamente trabalhando na perspectiva de um desenvolvimento que não fosse um simples crescimento econômico mas que atendesse “ao homem todo e a todos os homens”, de acordo com a feliz expressão por ele criada. Tinha ele grande preocupação com o crescimento acelerado nas cidades brasileiras10.

Essa mesma discussão chegou com força ao Concílio durante a elaboração da Gaudium et Spes, levada pela América Latina e outros bispos, com o questionamento fundamental: não basta atender ao mundo moderno. E o então chamado “terceiro mundo” – o mundo dos pobres – como entra no Concílio?

João XXIII já tinha a intuição da problemática, verdadeiro desafio do Evangelho. Por isso, na abertura do Concílio, afirmou que a Igreja é de todos, sim, mas sobretudo dos pobres. Em comunhão evangélica, prelados conciliares dos países ricos com colegas dos países pobres, co-meçam a levantar a questão dos pobres como exigência de fidelidade ao

10 Nos anos 50, quando Dom Helder já era o Secretário Geral da CNBB, o padre Lebret fundava em São Paulo o grupo “Economia e Humanismo”, cuja influência se fez sentir em várias situações. Passemos um momento para o Vaticano II da Gaudium et Spes e do seu complemento com a Carta encíclica de Paulo VI – a Populorum Progressio, em 1967, sobre o Desenvolvimento dos povos. Esta carta encíclica teve Dom Helder e Padre Lebret como assessores. Aí o Papa diz: ”O desenvolvimento não se reduz a um simples crescimento. Para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo...” n.14. Sobre a atuação do padre Lebret nas ci-dades brasileiras, leia-se a análise do professor Alfredo Bosi, no seu livro: Ideologia e contraideologia – temas e variações, Companhia de Letras, 2010, pp. 262-275. Ele fala do papel renovador que “Economia e Humanismo” exerceu na formação dos urbanistas de São Paulo, Recife e Belo Horizonte, chamando a atenção para o crescimento desordenado das metrópoles e a situação deprimente das periferias, induzindo a uma política de descentralização administrativa. Foi encaminhada uma grande pesquisa, em 1957, sobre as condições de vida da cidade de São Paulo, tendo como objetivo primeiro reordenar os espaços de pobreza no sentido de humanizá-los. Lebret percebeu rápida e pioneiramente que o inchaço urbano nos grandes centros de São Paulo, Recife e Belo Horizonte estava estruturalmente vinculado à imigração, logo à pobreza do mundo rural nordestino.

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Evangelho. É verdade que o tema não representou mais um esquema no Concílio, mas se tornou um ”ausente-presente” porque estava implícito em várias das intervenções dos padres conciliares, com consequências para a relação Igreja-Política, para o agir dos cristãos na política11.

A América Latina já vinha caminhando fortemente nesse veio – opção pelos pobres, produzindo uma espiritualidade original, uma teologia típica, uma evangelização libertadora que propunha uma libertação-salvação da pessoa humana total e todas as pessoas humanas, vítimas das injustiças.

Dom Oscar Romero, em discurso pronunciado na Universidade de Lovaina, ao receber o título de doutor honoris causa, um mês antes de ser assassinado (em 1980), revela a problemática dos pobres como novidade da recepção do Vaticano II na América Latina:

“Devemos ter claro desde o princípio que a fé cristã e a ação da Igreja sempre tiveram repercussões sócio-políticas. Por ação ou omissão, por conivência com um ou outro grupo social, os cristãos sempre influíram na configuração sociopolítica do mundo em que vivem. O problema então reside em ver como deve ser esse seu influxo no mundo sociopolítico, para que ele se faça verdadeiramente de acordo com a fé. Como primeira ideia, ainda que bem geral, coloco a intuição do Concílio Vaticano II, que está na base de todo o movimento eclesial da atualidade; a essência da Igreja está em sua missão de serviço ao mundo, para salvá-lo em sua totalidade e para salvá-lo na história, aqui e agora. A Igreja está no mundo para solidarizar-se com as esperanças e alegrias, com as angús-tias e tristezas dos homens. Como Jesus, a Igreja veio para ‘evangelizar os pobres e redimir os oprimidos, para procurar e salvar o que estava perdido’” (Lumen Gentium,8).

As Relações Igreja-Estado na década de 50 e início da década de 60, no Brasil, já dão sinais da afirmação de Dom Oscar Romero quando afirmava que “por ação ou omissão, por conivência com um ou outro grupo social, os cristãos sempre influíram na configuração sociopolítica do mundo em que vivem”.

A questão fulcral entre nós, no momento, era a consciência da estrutura de injustiça reinante na sociedade e a urgência de uma atitude

11 Esta nova posição foi melhor explicitada pelo Papa Paulo VI, na Populorum Progressio, 1967, cumprindo uma promessa feita ao grupo de padres conciliares que trabalhavam a questão da Igreja dos Pobres durante as sessões do Concílio Vaticano II.

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de compromisso evangélico com mudanças sociais radicais12. Tornou-se mais do que um imperativo ético. Tornou-se um imperativo teológico espiritual. Também uma convicção, oferecida pela metodologia da Ação Católica especializada ao “ver a realidade”, de que é necessário entendê-la para transformá-la como parte constitutiva da evangelização.

A vivência de muitos agentes de pastoral no meio dos pobres, vítimas de estruturas injustas, criava exigências novas em nome do Evangelho; uma nova metodologia, baseada em Paulo Freire e no MEB, insistia em que os pobres não só são dignos de compaixão, mas devem ser sujeitos de seu destino, o que levava a passarmos do assistencialismo para a promoção humana. A Igreja tornou-se mais ativa naqueles setores da sociedade onde eram maiores as ameaças.

Dom Helder Câmara, no livro “Revolução dentro da Paz”, afirma: “... confere à Igreja uma responsabilidade indiscutível, em face dos novos desafios e lhe apresenta exigências inadiáveis. A Igreja não pode permitir que os autênticos valores de nossa civilização, que ela ajudou a criar, sejam levados de roldão nas mudanças estruturais a serem rapidamente efetuadas. Mas é chamada a denunciar o pecado coletivo, as estruturas injustas e estagnadas, não apenas como alguém que julga de fora, mas como alguém que reconhece sua parcela de responsabilidade e culpa. Deve ela ter a coragem de solidarizar-se com este passado e sentir-se assim mais responsável pelo presente e pelo futuro” 13.

Os problemas supracitados, em ebulição na realidade brasileira, com a atuação crescente da Igreja Católica, expressando uma posição nova, exigiu novo estilo de diálogo e de cooperação no relacionamento entre a Igreja e o Estado nesses anos. A Igreja coloca-se ao lado dos injustiçados, exigindo mudanças sociais profundas através dos seus pronunciamentos e das metodologias de formação, sobretudo do laicato que foi mobilizado e formado para agir nessa perspectiva.

12 Para melhor conhecermos a atuação da Igreja nos tempos que precederam a ditadura militar, veja-se o livro “O Catolicismo brasileiro em época de transição”, Edições Loyola, 1974. Seu autor é o brasilianista canadense Thomas Bruneau, cujo âmbito de estudo, no entanto, é mais amplo que os anos da ditadura.

13 Citação no livro de Thomas de Bruneau, p.146.

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Do processo de Planejamento de Pastoral ao Plano de Emergência (1962)

Naturalmente, todo o caminhar das ideias (expressão muito querida a Dom Helder Câmara) preparou a elaboração de um primeiro Plano de Pastoral para a Igreja do Brasil, que se chamou “Plano de Emergência”, mas também preparava a recepção do Concílio Vaticano II. Esse Plano de Emergência foi um passo adiante em relação ao Planejamento de Pastoral: era a “pastoral de conjunto” em andamento.

Tudo partiu de um apelo do Papa João XXIII, logo após a sua elei-ção, ao dirigir-se aos bispos da América Latina por ocasião do Encontro dos Delegados do CELAM, realizado em Roma. Fazia o Papa um apelo para uma tomada de consciência da situação grave do Continente, dos desafios e exigências enfrentados pela Igreja.

Após uma rápida análise da situação continental, especialmente da situação da Igreja, assim se expressa o Santo Padre:

“... Estamos seguros de que o espírito e a vida católica nas regiões da América Latina têm em si forças suficientes para abrigar as mais alegres esperanças de futuro. Mas para que se possam realizar de maneira feliz e indispensável – além da Graça Celeste – que os sagrados Pastores saibam empregar os meios particulares requeridos pela situação es-pecial(...)”. Além dos dados da realidade, pede o papa um “Plano de ação” que “correspondendo à realidade, seja perspicaz nos propósitos e racional na seleção dos meios que se hão de empregar”.14

Em 8 de novembro de 1961, o Papa João volta à questão em carta dirigida a todos os bispos latino-americanos, diante do aceleramento das transformações históricas e da insuficiente renovação processada nas estruturas pastorais.

Três pontos da carta merecem maior relevo:

– João XXIII pedia que cada país, o mais brevemente possível, chegasse a um planejamento pastoral (e a um plano) com os objetivos de iluminar as inteligências, revigorar a vida sacra-mental, fortalecer os católicos na fé;

14 Para maiores detalhes do apelo do Papa João XXIII aos Bispos da América Latina, cf. outro livro de Raimundo Caramuru, já publicado em 1967, sob o título: ”Brasil: uma Igreja em renovação”, pela Editora Vozes. Desse livro colho informações sobre o Plano de Emergência.

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– que os bispos mostrassem aos governantes e a todos os res-ponsáveis a urgência das reformas estruturais e um esforço de promoção das massas subdesenvolvidas;

– que a Hierarquia e toda a Igreja local, numa função subsidiá-ria, cooperassem com os governos nesse esforço de promoção humana e dele participassem ativamente.

A V Assembleia da CNBB, em abril de 1962, dedicou-se plena-mente a atender ao apelo do Santo Padre. Logo nas páginas introdutórias dizem os Bispos: “Todo este trabalho a que a Igreja do Brasil se propõe: numa linha de reflexão sobre as necessidades da hora atual, numa pre-ocupação de melhorar o que existe, inspirar novos empreendimentos, coordenar esforços dentro de uma visão pastoral de conjunto; tudo isto se insere providencialmente numa fase de história da Igreja Universal, que vive já o clima do Concílio Vaticano II”.

Os Bispos do Brasil receberam contribuição do Movimento do Mundo Melhor (MMM) para o esquema do Plano de Emergência atra-vés do Movimento de Natal, que tinha uma experiência solidificada em planejamento de pastoral. Também é bom lembrar que o padre Ricardo Lombardi tinha pregado pouco tempo antes um retiro para o episcopado, propondo a espiritualidade do Movimento do Mundo Melhor.

Falando sobre o Plano de Emergência, assim se expressa o texto dos Bispos:

“De acordo com o que nos foi sugerido pela Santa Sé, voltaremos as vistas para uma Parte pastoral e para uma Parte Econômico-social. Na primeira merecerão cuidado especial: a pastoral de Conjunto, a Renovação paroquial, a renovação de Ministério Sacerdotal, a Reno-vação dos Educandários. Na segunda: o Movimento de Educação de Base; as Frentes Agrárias, levando à Sindicalização Rural; a eventual colaboração com a Aliança para o progresso; a coordenação das obras apostólicas; o treinamento de líderes”.

Dom Helder Câmara, como secretário geral da CNBB, termina a apresentação do Plano de Emergência com as seguintes palavras:

“Agradecemos a Deus que tudo isso aconteça na Vigília do Concílio Ecumênico: o Plano de Emergência nos prepara para as reformas que hão de vir como consequência do Vaticano II. E os Bispos do Brasil têm inteira confiança de partir para Roma, deixando o Plano em marcha, entregue aos nossos padres, religiosos e leigos”.

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Conclusão

Nos primeiros anos da década de 60, o Brasil viveu um período de grande ebulição social e política. Uma sede de renovação perpassava todas as áreas da sociedade, com fortes tensões ideológicas. Vivíamos entre o temor e a esperança, dependendo de que lado se encaravam as perspectivas para o País.

A Igreja Católica, através de suas forças vivas, vinha tomando consciência das injustiças e, portanto, estava vivendo o furacão dos embates travados na sociedade.

Já em pleno Concílio Vaticano II, em 1964, o Brasil enfrentou um golpe militar que desbaratou passos e níveis desta caminhada, com fortes repercussões para alguns campos do trabalho eclesial, sobretudo levando em consideração tudo o que foi até então descrito como sinais promissores de esperança.

Enquanto a Igreja vivia a nova primavera do Vaticano II, sofríamos o clima quente de um verão causticante na realidade do país, inclusive atingindo muitos dos seus filhos e filhas: prisões, torturas, exílios e mesmo morte-martírio. Um calvário!

O Brasil dos anos 50 ficou de molho. As conquistas no plano social e político – o sonho de uma democracia participativa foi para as calendas de uma noite escura. Foram mais de duas décadas de espantos e perplexidade (1964-1985) – o que vai acontecer?

No entanto, como disse Dom Helder Câmara no dia em que vol-tou a poder falar através dos meios de comunicação, após sete anos de exílio na própria terra: “Quanto mais negra a noite, mais carrega em si a madrugada”.

Nessa fase de escuridão, com a motivação da renovação conciliar e com “a esperança que não decepciona” muitas sementes voltaram a germinar em meio a obstáculos, mas com a pertinência de quem acredita que o sol poderá de novo brilhar.

Nem tudo estava perdido. No período da ditadura se solidificou o trabalho de pastoral de conjunto e de articulação dos trabalhos mis-sionários, porque precisávamos mais uns dos outros e nos sentíamos continuamente interpelados a respostas rápidas diante dos novos desa-fios. Nos anos de chumbo da ditadura militar, a CNBB teve um papel fundamental ao concretizar sua missão também no caminho da defesa

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dos direitos humanos, ao expressar a voz profética através de pastores valentes e corajosos.

A opção preferencial pelos pobres teve seu desenvolvimento con-siderando os pobres como sujeitos da evangelização. As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), com seus Intereclesiais periódicos (a partir de 1975), deram sinais de Esperança como novo jeito de ser Igreja ou como novo jeito de a Igreja ser.

Dom Helder Câmara definiu as CEBs para o Papa Paulo VI, can-tando uma música do Movimento de Evangelização Popular (as CEBs do Recife): “eu acredito que o mundo será melhor, quando o menor que padece acreditar no menor”.

Em sintonia com seus Pastores, novas iniciativas desabrocham: o nascimento do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a Pastoral da Terra (CPT) e muitas outras.

50 anos da abertura do Concílio Vaticano II!

Como recuperar o clima eclesial dos anos 50 do século passado? Como recuperar o clima primaveril do Vaticano II? Como de novo visi-tar os documentos do Concílio Vaticano II, como palavras vivas de um momento de Igreja, num contexto de mudanças culturais aceleradas em que vivemos? Podemos pensar num Concílio Vaticano III ou sonhar como Dom Helder – com um “Concílio Jerusalém II”, no reencontro com as comunidades dos Atos dos Apóstolos com nova inculturação?

Endereço do Autor:SE/Sul – Quadra 801 – Conj. B

CEP 70200-014 Brasília, DF

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Encontros Teológicos nº 62Ano 27 / número 2 / 2012, p. 29-50.

Resumo: O evento e os documentos do Concílio Vaticano II (1962-1965) tiveram enorme impacto sobre a vida da Igreja católica e para além dela. A 50 anos de distância do início, as interpretações continuam enriquecendo-lhe a memória. Este artigo escolheu o viés do conflito de interpretações para captar-lhe o de-senrolar, a gestação dos textos e sua recepção. Em cada momento, procurou-se perceber as tensões hermenêuticas presentes. Por meio dessa leitura busca-se entender como até hoje a Igreja católica vive conflitos que buscam fundamentar-se no próprio Concílio sob a perspectiva da continuidade e da ruptura.

Abstract: The realization and immense significance of the Second Vatican Council (1962-1965) had undoubtedly a profound impact on the life of the Catholic Church and beyond. After a period of fifty years, the interpretations of the documents continue to enrich a great variety of topics and the diversity of interests in them. This article takes into account the conflict of interpretations in order to seize the long-range-goals, including the preparation and their reception. The endeavor in each moment was to capture the underlying hermeneutical ten-sions. The objective of this approach is to understand how the Catholic Church until now strives to grow in spite of conflicts and applying its basis established on the perspectives of Vatican Council in order to enhance the continuity and rupture for the future.

A Igreja a 50 anos do Concílio Vaticano IIJ. B. Libanio*

* Professor de teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.

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A Igreja a 50 anos do Concílio Vaticano II

A Igreja de hoje reflete, embora com traços próprios do momento atual, os principais conflitos de interpretação que se viveram antes, du-rante e na recepção imediata do Concílio1. Ilumina-nos percorrer aqueles momentos sob a perspectiva de tais tensões interpretativas. Cada uma delas repercute ainda hoje a seu modo.

Os conflitos hermenêuticos não se referem aqui somente à com-preensão de textos, mas incluem também a diferença das mentalidades presentes nos três momentos estudados: antes do Concílio, na gestação dos textos, na sua leitura pós-conciliar e nas recepções. Portanto, refle-tiremos sobre quatro momentos do conflito hermenêutico.

1 O conflito hermenêutico dos padres conciliares

João XXIII ousou muito ao convocar o Concílio. Ao morrer Pio XII (1958), a Igreja encontrava-se na encruzilhada do caminho da Tradi-ção garantida pela autoridade e da inovação surgida na cultura moderna que já alcançava o interior da Igreja. Pio XII soube equilibrar as duas tendências conflituosas. Abriu espaço para os movimentos litúrgicos e bíblicos que anunciavam o sujeito moderno em busca de autonomia, de valorização da experiência pessoal, de acolhida dos avanços das ciên-cias, da entrada da consciência histórica e da pujança hermenêutica a invadirem os diferentes campos do saber.

Temeu, porém, que tal avalanche penetrasse dois rincões que ele considerava intangíveis: a dogmática e a estrutura hierárquica da Igreja. Mostrou-se firme em evitar as incursões da Nova Teologia francesa, do ousado pensamento de Teilhard de Chardin, das arriscadas experiências sociais dos padres operários, especialmente na França. A Encíclica Hu-mani generis reflete o clima de desconfiança em relação a alguns aspectos da modernidade em avanço.

As lides teológicas e pastorais refletiam o duro embate entre dois grandes sujeitos sociais no interior da Igreja, que entrarão em 1962 na Aula

1 A expressão aparece no título de uma das obras de Paul RICOEUR: O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978. Aqui entende-mos a expressão na seguinte perspectiva. Em face de tensão fundamental, como p. ex., objetivo e subjetivo, o conflito consiste na acentuação de um dos polos em tensão com o outro. Não significa necessariamente exclusão. O grau de conflito depende de circunstâncias históricas e da polarização que se cria em torno de um dos polos. Vai desde sadia tensão até o extremo da rejeição do lado oposto. Sob essa perspectiva, analisaremos o Concílio Vaticano II nos diversos momentos até a recepção atual.

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conciliar. Já vinham marcados por dois horizontes. Eles se localizavam bem geograficamente. França, Holanda, Alemanha, Bélgica representavam o clima novo na teologia e na pastoral. O mundo latino, tanto europeu como o das Américas, permanecia firme na tradição neoescolástica em que pre-dominava a força da tradição teológica clássica garantida pela autoridade, reforçada pelas encíclicas e alocuções abundantes de Pio XII.

O grupo minoritário na entrada do Concílio respirava os ares de renovação. Sonhava com um Concílio de diálogo com a modernidade que se fortalecia na Europa depois da Segunda Guerra Mundial. Ele temia, porém, que o Concílio não passasse, no máximo, de suave acomodação. E o temor fundava-se em diversos sinais nítidos.

Em Roma, antes do Concílio, se realizara o Sínodo do Clero ro-mano. Os resultados mostraram rosto bem conservador. A Constituição Apostólica Veterum sapientia de João XXIII (22 de fevereiro de 1962) reforçava o valor e uso do Latim no mundo eclesiástico, ao visar sobretu-do o ensino nas Instituições acadêmicas. A sua recepção em vários países sofreu arrepios, já que se iniciara neles o ensino da filosofia e teologia eclesiásticas na língua vulgar.

Presidiam a muitas das comissões constituídas para preparar os docu-mentos conciliares cardeais da Cúria romana de forte viés tradicional, embora tenham sido convocados assessores representantes da vertente renovadora da Igreja. O peso, porém, ainda pendia para o lado conservador.

Significativa parte do episcopado mundial não tinha tido acesso ao movimento renovador teológico e pastoral dos países centro-europeus. Permanecia ligado à tradição neoescolástica de visão dogmatista, na expressão de Cl. Geffré. O ponto de partida de tal perspectiva teológica vinha do magistério e da tradição ulterior. A Escritura e a Tradição ser-viam de provas para o tipo de ensinamento do magistério oficial, verda-deiro reflexo da Igreja institucional.2 Acentuava-se o aspecto objetivo ao extremo. Ressoava nela a famosa afirmação de S. Vicente de Lérins: “In ipsa item catholica ecclesia magnopere curandum est ut id teneamus, quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est”. “Na Igreja assim católica grandemente deve-se cuidar que retenhamos o que em toda a parte, o que sempre, o que por todos foi crido”3.

2 GEFFRÉ, Cl.: Crer e interpretar: a virada hermenêutica da teologia. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 35s

3 S. VINCENTIUS LIRINENSIS, Commonitorium, n. 2, in Rouet de Journel: Enchiridion Patristicum, Friburgo: Herder, 1951, ed. 17., n. 2168, p. 686. Nessa mesma linha, vale

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A perspectiva dogmatista se interessava por responder à pergunta da escolástica: Quid est? Que é? Criou-se a palavra latina quidditas, de pouca elegância, para significar a essência, a “coisa” (res) nela mesma, fora de qualquer contexto interpretativo. O dicionário Houaiss define a “quididade” como essência ou natureza real de algo, segundo o pensa-mento escolástico. A preocupação dogmatista predominava na maioria dos que vieram ao Concílio. Buscava-se a ”coesão das verdades da fé entre si e no projeto total da Revelação”, sem questionar o contexto de interpretação4. Pretendia-se assim propor a verdade de forma definitiva, fixa, imutável. A fonte principal encontrava-se no ensinamento magis-terial da hierarquia e da academia eclesiástica.

No fundo, a maioria conciliar dos inícios interessava-se por estabe-lecer a inteligência essencial do conteúdo do “depósito da fé”. Pretendia no final do Concílio ter a doutrina dogmática da Igreja confirmada e reafirmada em resposta aos questionamentos da modernidade.

Imaginava tal maioria que os fieis da Igreja católica esperavam do Concílio clareza doutrinal, condenação das heresias e erros do momento presente, que para ela pululavam por obra da soberania absoluta da razão e da afirmação do valor da práxis. Contra elas, afirmava-se a força da fé e das obras de caridade.

O conflito se estabelecia com a minoria que viera tocada pelas gran-des perguntas da modernidade: a revolução científica, a razão iluminista, a autonomia e liberdade do sujeito, a história e a práxis. Questões ame-açadoras para a formulação doutrinal tradicional. Eis o primeiro magno conflito entre os padres conciliares já ao chegarem ao Concílio, vindos do mundo inteiro. Deixamos de lado a pluralidade teológica, litúrgica, cultural que os orientais e a jovem geração de bispos africanos traziam. A América Latina ainda apenas mostrava alguma originalidade, com a exceção de homens de extraordinário carisma como Dom Helder e Mons.

recordar F. Marín-Sola, outro clássico dessa visão fixista: “Portanto, todos os dogmas já definidos pela Igreja e quantos no futuro se definam estavam na mente dos apóstolos, não de uma maneira mediata ou virtual ou implícita, mas de uma maneira imediata, formal, explícita. (...) Se se toma, pois, como termo de comparação o sentido do depó-sito revelado, tal como estava na mente dos apóstolos, para compará-lo com o sentido que nós conhecemos, então deve-se dizer algo semelhante ao que dizemos ao falar da mente divina, isto é, que não houve progresso, mas sim diminuição ou retrocesso”. F. MARíN-SOLA, La evolución homogénea del dogma católico, Madri-Valencia, 1963, 157s., cit. por A. Torres Queiruga, El pluralismo como riesgo y oportunidad para la fe, in L. González-Caravajal, F. Elizondo et alii, Madri, PPC, [2000], p. 99.

4 Catecismo da Igreja Católica. Petrópolis: Vozes, 1993, n. 114.

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Larrain5. A surpreendente novidade desse Continente explodirá depois do Concílio em Medellín, quando da recepção. Veremos mais na frente.

2 Conflito hermenêutico na produção dos textos

O embate se introduziu para dentro da aula. A maioria vinha pre-parada para elaborar, segundo a longa tradição conciliar, os documentos na perspectiva dogmática de afirmações de verdades definitivas contra os erros e heresias. Surge fator inesperado que embaralha as cartas já marcadas. João XXII profere discurso inaugural em tom surpreendente e oferece os critérios para a produção dos textos conciliares que deci-dem sobre a natureza do Concílio. Desloca o conflito entre dogmatistas majoritários e hermeneutas minoritários para o lado da interpretação atualizada da tradição eclesial. A minoria cresce então de força.

A Segunda Guerra Mundial terminara, ao deixar atrás de si a escuri-dão de regimes e ações extremamente criminosas. A consciência mundial abalara-se diante da perversidade humana que se alastrara por vários países. Na guerra se esquecem as atitudes éticas mais comezinhas. As reações pós-guerra afetaram a religião e em particular a Igreja católica na esteira de forte secularização. O mundo se torna temível para a Igreja.

Em face de tal situação ameaçadora, João XXIII, no discurso inaugural, pede atitude de confiança, de otimismo, de esperança, ao contrapor-se aos “profetas de desventura que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo”6.

Ao Concílio “se dirigem não só os olhares de todos os povos, mas também as esperanças do mundo inteiro”. Queira o céu que ele correspon-da “plenamente às aspirações universais”7. Esse desejo do Papa atingiu tão forte os padres conciliares que lhes inspirou as primeiras palavras da Constituição Pastoral Gaudium et spes. “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as

5 Ver a exaustiva e rigorosa pesquisa de BEOZZO, J. O.: A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II: 1959-1965. São Paulo: Paulinas, 2005.

6 O Programático Discurso de Abertura [do Papa João XXIII], in KLOPPENBURG, B.: Concílio Vaticano II. Vol.: II. Primeira Sessão (set.-dez. 1962), Petrópolis: Vozes, 1963, p. 308.

7 O Programático Discurso de Abertura..., p. 312.

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tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração”8.

Tal toque de otimismo anuncia virada hermenêutica. A preocupação distancia-se das condenações, das objurgações típicas de Concílios anteriores, para atitude tranquila, embora firme, diante da verdade a ser proposta a fim de responder às demandas do momento atual. João XXIII pede ao Concílio, em vez de usar de severidade na condenação dos erros, que recorra ao “remédio da misericórdia”. Assim julga “satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina que condenando erros”9.

Avança então nova hermenêutica. Não se trata de repisar as ver-dades do arsenal dogmático da Igreja, acumulado ao longo dos séculos. Para isso não se necessitaria de Concílio. Mas de esforçar-se por encontrar formulações, interpretações dessas mesmas verdades em consonância com o pensar de hoje.10.

João XXIII continua a assinalar os aspectos da realidade presente que merecem destaque. Ele já mostrara, com a criação do Secretariado para a União dos Cristãos, confiado ao Cardeal Bea, singular sensibi-lidade ecumênica. Agora, de maneira solene, estabelece a perspectiva ecumênica como critério hermenêutico para produzir os textos. Mais outro deslocamento no conflito de interpretações. Em vez de lapidar os textos segundo o rigor semântico católico romano, João XXIII propõe o esforço de encontrar expressões que consigam consenso ou, ao menos, não firam a sensibilidade das outras confissões cristãs.

O horizonte ecumênico abre-se ainda mais para os fieis de outras religiões e para todo o gênero humano. Aí estão aqueles que não assu-miram a fé cristã, por não a terem conhecido ou por não a aceitarem no horizonte de sua consciência religiosa e humana. O Concílio, no entanto, pensa em todos eles no momento de redigir os textos, em contraste com os que queriam restringir-se unicamente ao destinatário católico romano.

8 Concílio Vaticano II: Constituição pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo actual, n. 1. A tradução portuguesa é tirada de: Concílio Vaticano II. Documentos do Vaticano II. Constituições, Decretos e Declarações. Petrópolis: Vozes, 1966.

9 O Programático Discurso de Abertura..., p. 310.10 Ibid.

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Nesse ponto, o Concílio toca as raízes mesmas da fé cristã dos inícios. O tertium genus11 que o Cristianismo gerou não se prendeu nem ao judeu nem se confundiu com o pagão, mas se dirigiu a ambos com a novidade da fé em Cristo. Até hoje conserva a vocação de anúncio a toda pessoa de boa vontade e não se prende a nenhum horizonte fechado. O Concílio abre mais uma vez a janela hermenêutica da fé para todas as culturas e civilizações. João XXIII vê o Concílio propor-se “que, ao mesmo tempo que une as melhores energias da Igreja e se empenha por fazer acolher pelos homens mais favoravelmente a boa nova da salvação, como que prepara e consolida o caminho para aquela unidade do gênero humano, que se requer como fundamento necessário para que a cidade terrestre se conforme à Cidade celeste ‘na qual reina a verdade, é lei a caridade, é a extensão a eternidade’ (cf. S. Augustin., Epist. 138,3)”12.

Ao pontualizar ainda mais a tarefa dos padres conciliares, o Papa oferece-lhes o critério hermenêutico, aparentemente inocente, do caráter eminentemente pastoral do Concílio. Termo de semântica plural. Em estudo da década de 60, logo após o Concílio, distingui três sentidos de pastoral. Embora eles se referissem primordialmente à reforma dos estudos eclesiásticos, refletiam a concepção geral daquele momento em que aconteceu o Concílio. Nesse sentido, a compreensão plural do con-ceito pastoral serviu de critério hermenêutico na confecção dos textos em conflito com aqueles que pretendiam elaborá-los na linha dogmatista, intelectual, precipuamente conceitual.

À medida que se caminhava na redação dos documentos concilia-res, mesmo os de índole dogmática, crescia a preocupação de dar-lhes dimensão pastoral. Tal aparece de maneira expressa no Decreto Optatam totius, onde se diz claramente que “todos os aspectos da formação [sacer-dotal], o espiritual, o intelectual e o disciplinar, em ação conjunta devem ordenar-se a este fim pastoral”13. Ao tratar dessa passagem, observa J. Schröffer que se trata de um sentido aprofundado. Define o significado pastoral a partir do envio e da atitude de Cristo. Esta visa à salvação das pessoas. A dimensão pastoral subjaz ao agir de Jesus, a seu anúncio, a seu ministério sacerdotal de oferecer e ser oferecido, de conduzir as pes-

11 Ver a nota de: ROUSTANG, F.: Le troisième homme, in Christus t.13, 1966, n, 49, p. 561. Aí ele explica que essa expressão era utilizada pelos primeiros cristãos para definir sua situação em relação aos judeus e pagãos. Tratava-se para eles de explicar sua situação histórica à luz do Evangelho.

12 O Programático Discurso de Abertura..., p. 311s. 13 Concílio Vaticano II: Decreto sobre a Formação Sacerdotal Optatam totius, n. 4.

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soas no caminho de Deus. No fundo, está uma atitude espiritual, de que o seminarista precisa apropriar-se. Ela necessita penetrar-lhe o tríplice ministério. A vontade salvífica de Cristo constitui a postura fundamental com a qual a Igreja se encontra com o mundo14.

Essa concepção de pastoral não influenciou unicamente o Decreto sobre a Formação sacerdotal, mas serviu de orientação para os demais textos. Há outros dois sentidos típicos da formação dos seminaristas, que não vêm ao caso: o curso de teologia pastoral como matéria do currículo acadêmico e as práticas pastorais que os estudantes exercem nas paróquias e em outros campos. Ambos fazem parte da formação.

Interessa-nos a dimensão pastoral que se tornou realmente crité-rio hermenêutico na elaboração dos documentos conciliares em toda a amplitude. Ela acentua dois aspectos fundamentais a serem levados em conta: interpretar os ensinamentos sob a ótica do mistério de Jesus Cristo e da História da salvação e responder às necessidades e formas de pensar do momento atual, observava já naquela época J. M. Setién15.

O Papa não via contradição entre a natureza do magistério e o caráter pastoral proposto como critério hermenêutico, porque aquele se entende prevalentemente na função pastoral16.

Em resumo, o conflito de interpretação na gestação dos textos conciliares se deu entre uma maioria progressista que se ia constituindo e uma maioria conservadora que ia diminuindo pelo impacto do discurso de abertura de João XXII. Os quatro pontos centrais se resumem em produzir textos na perspectiva ecumênica, pastoral, em diálogo com o mundo moderno e portanto em processo de aggiornamento, na expressão preferida de João XXIII17.

14 SCHR�FFER, J.: Erl�uterung zu dem III. Kapitel “De seminariorum maiorum ordina-SCHR�FFER, J.: Erl�uterung zu dem III. Kapitel “De seminariorum maiorum ordina-Kapitel “De seminariorum maiorum ordina-tione”, in Seminarium 6 (1966), p. 343s. in LIBANIO, J. B., Estudos teológicos. Análise crítica, renovação, perspectivas. São Paulo: Loyola, 1969, p. 292ss.

15 SETIÉN, J. M.: Concilio Vaticano II: Formación de los candidatos al sacerdocio, in Surge 24 (1966), p. 168.

16 O Programático Discurso de Abertura..., p. 310.17 BARREIRO, A.: A figura carismática de João XXIII e seu programa conciliar de ag-

giornamento, in Síntese Nova Fase 1 (1974) n. 2, p. 21-40: cita-se bibliografia.

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3 Conflito hermenêutico na leitura dos documentos

Eis-nos diante do conjunto dos textos do Concílio. A primeira tarefa na leitura implica encontrar chaves de interpretação. Nos limites desse artigo, escolhi três documentos que me parecem fundamentais e centrais para entender os outros: Dei Verbum, Lumen gentium e Gaudium et spes. E em cada um deles, existe conflito interpretativo.

Toda escolha supõe critérios que revelam já atitude prévia. A objetividade não consiste em não escolher, mas em indicar as razões da escolha para que o leitor se inteire delas e as julgue.

Ao considerar o conjunto do Concílio, duas opções mostram-se primordiais: o primado da Palavra de Deus e a centralidade eclesial com o duplo olhar para dentro e para fora da Igreja. A Constituição dogmá-tica Dei Verbum consubstancializa a primeira decisão fundamental do Concilio. A Constituição dogmática Lumen gentium concentra o olhar para dentro da Igreja e a Constituição Pastoral Gaudium et spes mira o mundo moderno na complexidade atual. Esses três documentos cobrem o objetivo principal do Concílio e à sua luz se entendem os outros. Ao perseguir a metodologia assumida, indicar-se-ão neles alguns dos con-flitos hermenêuticos importantes, cujos efeitos permanecem até hoje.

Constituição dogmática Dei Verbum

Ela enfrentou o espinhoso problema do conflito entre a posição católica tridentina e a ecumênica. Na teologia tradicional afirmava-se, no meio católico, a existência de duas fontes independentes da Revelação: a Escritura e a Tradição. A nova tendência ecumênica, sem negar o valor da Tradição para a Igreja católica romana, buscava assinalar a última origem de uma única Fonte da Revelação, a própria automanifestação de Deus transmitida pela Escritura.

Esse conflito apareceu já na primeira sessão. O esquema prepara-tório sobre a Revelação trazia o título: “As duas fontes da Revelação”. Afirmava logo de início a posição tradicional. Ao ser proposto na aula conciliar para exame prévio e decisão sobre a viabilidade da discussão sobre ele, ficou celebre a intervenção do bispo de Bruges, Mons. De Smet, membro do Secretariado para a União dos Cristãos. Em nome do Secretariado, pediu a rejeição sem mais do Esquema. “Segundo nosso parecer, o esquema falha notavelmente em seu caráter ecumênico. Ele

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não representa progresso para o encontro com os não-católicos, mas um empecilho; muito mais, é prejudicial18.” Tal afirmação contundente indicava o conflito hermenêutico de um texto em que a Palavra de Deus não recebia o claro primado. O argumento vinha do lado ecumênico que exprimia a sensibilidade em face da posição protestante, que se inscreve na longa tradição luterana do dito sola Scriptura. O bispo belga não se acanha em dizer que “o nosso ensinamento é omisso ou pouco esclare-cido, como, por exemplo, a doutrina da palavra de Deus”19.

O desenrolar dos fatos marcou vitória parcial da tendência herme-nêutica ecumênica. Embora a votação majoritária sobre o Documento preparatório não tenha alcançado os 2/3 necessários para a rejeição, João XXIII achou por bem retirá-lo e entregá-lo a nova comissão constituída por ele com a presença de membros da perspectiva ecumênica, que não havia na anterior. A Dei Verbum despertou muitas discussões, de tal ma-neira que só recebeu a votação final na última sessão conciliar. Mostrou a hegemonia da perspectiva ecumênica do Primado da Palavra de Deus, em texto bem trabalhado e sutil.

Vários pontos assinalaram a mudança da concepção da Revelação em relação à posição tradicional. Em vez de entendê-la como comunica-ção de verdades a serem cridas, a Dei Verbum a compreende como ação de Deus na história por meio de atos e palavras (gestis verbisque). Ele revela a si mesmo e “o mistério de sua vontade pelo qual os homens, por intermédio do Cristo, Verbo feito carne, e no Espírito Santo, têm acesso ao Pai e se tornam participantes da natureza divina”20.

Acentua-se-lhe o papel trinitário, dialogal, histórico, sacramental e da iniciativa primeira de Deus, que oferece ao ser humano participar da sua vida íntima, trinitária. E tal diálogo chega ao auge pela Encarnação do Verbo21.

Rompe com a ideia da concepção rude das duas fontes da Revela-ção para interpretação cuidadosa, ao afirmar a unidade da fonte divina. “A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura estão portanto estreitamente unidas e comunicantes. Pois, promanando ambas da mesma fonte divina,

18 KLOPPENBURG, B.: Concílio Vaticano II. Vol. 2: Primeira sessão (set.-Dez. 1962), Petrópolis, Vozes, 1963, p. 181.

19 KLOPPENBURG, B.: Concílio Vaticano II. Vol. 2: Primeira sessão (set.-Dez. 1962), Petrópolis, Vozes, 1963, p. 179ss.

20 Concílio Vaticano II: Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a Revelação Divina, n. 2.21 Ver também: LIBANIO, J. B.: Teologia da revelação a partir da modernidade. São

Paulo: Loyola, 2012, 6ª ed.

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formam de certo modo um só todo e tendem para o mesmo fim”22. Mais adiante acrescenta: “A sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só sagrado depósito da palavra de Deus”23.

A unidade radical não anula a diferença e importância de suas funções diferentes, incluindo entre elas também o magistério. “Fica, portanto, claro que segundo o sapientíssimo plano divino a Sagrada Tra-dição, a Sagrada Escritura e o Magistério da Igreja, estão de tal maneira entrelaçados e unidos, que um não tem consistência sem os outros, e que juntos, cada qual a seu modo, sob a ação do mesmo Espírito Santo, contribuem eficazmente para a salvação das almas”24.

Na perspectiva do conflito, o texto mostra, sem dúvida, preferência pela leitura ecumênica da unidade da fonte última da Revelação.25 No entanto, afirma a importância das duas, quase como duas fontes de reve-lação: “A Sagrada Escritura é a Palavra de Deus enquanto é redigida sob a moção do Espírito Santo; a Sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos a palavra de Deus confiada pelo Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos para que, sob a luz do Espírito de verdade, eles por sua pregação fielmente a conservem, exponham e a difundam; resulta, assim, que não é através da Sagrada Escritura apenas que a Igreja deriva sua certeza a respeito de tudo que foi revelado. Por isso, ambas [Escritura e Tradição] devem ser aceitas e veneradas com igual sentimento de piedade e reverência”26.

A Dei Verbum mostra claramente a tensão hermenêutica que atra-vessa os textos conciliares. De um lado, a posição ecumênica e moderna de encontrar a unidade na fonte da Revelação e de outro o ensinamento pós-tridentino da autonomia da Tradição. O texto revela esforço de evitar posições extremistas de “única fonte da Escritura”, segundo certa doutrina luterana da “sola Scriptura”, e de duas fontes delimitáveis” na interpretação tridentina corrente.

A respeito do Magistério, a Dei Verbum restringe a prática comum em meios eclesiásticos de contentar-se com os seus ensinamentos, espe-

22 Dei Verbum, n. 9.23 Dei Verbum, n. 10.24 Dei Verbum, n. 10.25 Dei Verbum, n. 9.26 Dei Verbum, n. 9.

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cialmente pontifícios, em detrimento do recurso à fonte da Escritura27. Pelo contrário, afirma que “tal magistério evidentemente não está acima da palavra de Deus, mas a seu serviço, não ensinando senão o que foi transmitido, no sentido de que, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, piamente ausculta aquela palavra, santamente a guarda e fielmente a expõe. E deste depósito único da fé tira [o Magistério] o que propõe para ser crido como divinamente revelado”28.

Constituição dogmática Lumen gentium

Nessa constituição, travam-se os conflitos hermenêuticos mais importantes que repercutem até hoje na prática da Igreja. Por razões de brevidade, apontamos três: entre Povo de Deus e estrutura hierárquica, entre colegialidade e monocentrismo eclesiástico e entre diaconia do magistério e uso do poder eclesiástico. Embora, às vezes, na linguagem apareça harmonia, os conflitos se dão no campo da práxis.

O esquema preparatório previa, depois da introdução, a sucessão de dois capítulos. Um primeiro versava sobre a hierarquia e o outro sobre os leigos. O esquema revelava a eclesiologia tradicional de que tocava à hierarquia ir construindo a Igreja ao longo do tempo e do espaço. Usava-se até mesmo a expressão: Plantatio ecclesiae29, com que se pensava cumprir o mandato do Senhor: “Ide, pois, fazer discípulos entre todas as nações, e batizai-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-lhes a observar tudo o que vos tenho ordenado. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28,19-20).

27 Conta-se que certo eminente eclesiástico, ao ser perguntado porque ele citava mais as palavras do Papa que da Escritura, teria respondido: “Na dúvida, posso recorrer à fonte viva do Papa e saber o sentido da afirmação. A respeito da Escritura, perco-me no labirinto dos exegetas”. Por segurança, certo tipo de fieis preferem os ensinamentos do magistério, unívocos e explícitos no contexto eclesial presente e conhecidos com jogo mínimo de interpretação, ao esforço interpretativo maior da Escritura.

28 Dei Verbum, n. 10. 29 Trata-se de um conceito curial canônico que significa a missão de implantar a Igreja

visível naquelas regiões onde ainda não se estabelecera, especialmente por meio da formação do clero. Ela remonta de uma expressão do Ofício litúrgico dos Apóstolos: plantaverunt Ecclesiam sanguine suo – os apóstolos plantaram a Igreja com o seu san-gue. Primeiramente a usaram no séc. XV missionários carmelitas e depois a assumiram jesuítas que a tornaram ideia importante da teologia da missão e foi confirmada depois por vários documentos eclesiásticos até o Concílio Vaticano II. Ver: SUBANAR , G. B.: The local Church in the light of Magisterium teaching on mission. A case in Point: The Archdiocese of Semarang – Indonesia (1940-1981). Roma, Editrice Pontificia Università Gregoriana, 2001, Thesi Gregoriana. Serie Missiologia, n. 2, p. 48. 54.

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Essa posição eclesiológica sentia-se respaldada por afirmações de Gregório XVI (1831-1846) de que “ninguém pode desconhecer que a Igreja é uma sociedade desigual, na qual Deus destinou a uns como governantes, a outros como servidores. Estes são os leigos, aqueles são os clérigos”. Pesava o ensinamento de Pio X na mesma direção: “Somente o colégio dos pastores tem o direito e a autoridade de dirigir e governar. A massa não tem direito algum a não ser o de deixar-se governar qual rebanho obediente que segue seu Pastor”30.

O conflito hermenêutico se deu com outra visão eclesiológica pre-sente na Lumen gentium. Em vez de pensar a constituição da Igreja a partir da hierarquia, o Concílio introduziu o capítulo “O Povo de Deus”. Nele se explicitou que anterior a qualquer distinção entre hierarquia e clero, existe a unidade e igualdade fundamental por força do batismo. Mais: o Concílio afirmou que o ministério hierárquico existe para servir os fieis, o Povo de Deus. Está aí o conflito hermenêutico, não tanto nos conceitos, quanto na prática pastoral. Uma leitura insiste na precedência e no poder clerical, outra no protagonismo dos leigos em nome da condição de Povo de Deus.

Em contexto eclesiástico bastante difícil e conflituoso, o Docu-mento de Santo Domingo reforça o protagonismo do leigo. “Que todos os leigos sejam protagonistas da nova evangelização, da promoção humana e da cultura cristã. É necessário a constante promoção do laicato, livre de todo clericalismo e sem redução ao intra-eclesial”31. Parece que a linha hegemônica do Vaticano II da precedência do Povo de Deus em relação à hierarquia se tenha imposto. No entanto, no concreto da vida pastoral

30 Cf. M. SCHMAUS, Der Glaube der Kirche, II, Munique, 1970: 102, cit. por: BOFF, L., Igreja: carisma e poder. Ensaios de Eclesiologia Militante, Petrópolis, Vozes, 1981, p. 218. Ainda mais explicitamente, Pio X invoca a originalidade da Igreja, fundada por Jesus Cristo, para tratar da relação entre leigos e clero. Ela é o corpo místico de Cristo, regido pelos Pastores e Doutores, – sociedade de homens, consequentemen-te, no seio da qual alguns presidem aos outros com pleno e perfeito poder de reger, ensinar e julgar. É esta sociedade, portanto, por sua força e natureza (vi et natura), desigual; compreende duas categorias (ordinem) de pessoas, os pastores e a grei, isto é, aqueles que estão postos nos diversos graus da hierarquia e a multidão dos fiéis. Estas categorias são de tal maneira entre si distintas que unicamente na hie-rarquia residem o direito e a autoridade de mover e dirigir os seus membros para a finalidade proposta da sociedade; é dever da multidão, deixar-se (parte) ser governada e seguir obedientemente a condução dos dirigentes” (ACTES DE S. S. PIE X, Paris, Ed. des Questions actuelles, s/d, II, pp. 27.132-134 em tradução livre do latim feita por mim).

31 Conferência Episcopal Latino-Americana. Santo Domingo: conclusões. São Paulo: Loyola, 1993, 4. ed. n. 97, p. 105.

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tem-se experimentado o contrário: crescente neoconservadorismo mar-cado pelo clericalismo32.

Tal jogo interpretativo teve ressonância no Decreto Ad gentes. Retoma a expressão da implantação da Igreja. “A tarefa de fundação [plantationis] da Igreja numa sociedade atinge o alvo certo, quando a comunidade dos fiéis, já enraizada na vida social e até certo ponto con-formada com a cultura local, goza de alguma estabilidade e segurança. Dotada de um contingente próprio, ainda que insuficiente, de sacerdotes locais, de religiosos e de leigos, possui os meios e instituições necessá-rias para viver e expandir a vida do povo de Deus, sob a guia do próprio Bispo”33. Esse texto pareceria reforçar a posição tradicional de a Igreja ser criada pela hierarquia. No entanto, em outra passagem insiste em que “como Cristo, por Sua encarnação se ligou às condições sociais e culturais dos homens com quem conviveu, assim deve a Igreja inserir-se em todas essas sociedades, para que a todas possa oferecer o mistério da salvação e a vida trazida por Deus”34.

Constituição pastoral Gaudium et spes

O fato de escrever uma constituição pastoral significa tomada de posição em torno do conflito entre a visão dogmática e a perspectiva pastoral. Na posição tradicional, reinava nítido corte entre dogmática e pastoral. A dogmática alimentava a inteligência da fé. A pastoral exercia a prática da caridade. A função do magistério ordinário e extraordinário se orientava precipuamente para alimentar a fé. Depois os pregadores, orientadores espirituais e outros “aplicariam” tais ensinamentos no agir da Igreja que constitui o cerne da pastoral. A fé ocupava a instância superior de iluminação enquanto a pastoral concretizava o que lá se visualizava, ensinava.

32 GONZÁLEZ FAUS, J. I.: El meollo de la involución eclesial, in Razón y Fe 220 (1989), n. 1089/90, p. 67-84; O neoconservadorismo. Um fenômeno social e religioso, in Con-cilium n. 161 - 1981/1; CARTAXO ROLIM, F.: Neoconservadorismo eclesiástico e uma estratégia política, in REB 49 (1989), p. 259-281; COMBLIN, J.: O ressurgimento do tradicionalismo na teologia latino-americana, in REB 50 (1990), p. 44-73; P. BLAN-QUART, P.: Le pape en voyage: la géopolitique de Jean-Paul II, in P. LADRIÈRE, P. - R. LUNEAU, R., dir.: Le retour des certitudes. Événéments et orthodoxie depuis Vatican II, Paris, Le Centurion, 1987, p. 161-178.

33 Concílio Vaticano II: Decreto Ad gentes sobre a Atividade Missionária da Igreja, n. 19.34 Ad gentes, n. 10.

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O Concílio Vaticano II, ao elaborar várias Constituições dogmá-ticas e uma pastoral, aproximou-as no mesmo exercício do magistério. Mais: nas próprias constituições dogmáticas se valorizou a perspectiva pastoral, como vimos acima entre os critérios da gestação dos textos con-ciliares. O conflito entre as duas perspectivas se travou entre a posição da distância entre elas até a oposição com desdenho do aspecto pastoral e a articulação e o enriquecimento mútuo entre ambas. O Concílio inclinou-se desde o início para a segunda perspectiva.

Haja vista a reação de Mgr. Lefebvre e seu grupo, que rejeitaram os documentos do Vaticano II por ser um Concílio pastoral. Argu-mentaram que preferiam ficar com o Concílio de Trento e Vaticano I, dogmáticos, a abraçar o Vaticano II pastoral. Segundo eles, o dogma goza de superioridade em relação à pastoral, já que esta não passa de aplicação do dogma.

A visão eclesiológica do Vaticano II afasta-se de tal posição, ao fazer pender o braço da balança para maior articulação e enriquecimento mútuo entre pastoral e dogma.

A Gaudium et spes ousou ser o primeiro documento na história da Igreja em que um Concílio toma posição em face das realidades ter-restres, de maneira positiva, sob a perspectiva da fé. Vê nelas a presença criadora e salvadora de Deus e não erros e heresias.

O conflito interpretativo dava-se entre a visão conservadora, que dividia a realidade humana em natural e sobrenatural, e a leitura integra-dora e integrada da Transcendência e imanência. Na primeira perspectiva, entram os movimentos espiritualistas, enquanto a teologia da libertação se insere nas esteiras da segunda. Tão fortemente o dualismo impregnara a mente tradicional que até hoje persiste tal tensão.

Já as primeiras frases da Gaudium et spes revelam a opção central da identidade entre as alegrias, esperanças, tristezas e angústias das pessoas, so-bretudo dos pobres, com as dos discípulos de Cristo. A compreensão dualista não conseguiria encontrar tal identidade. O “sobrenatural” faria a diferença. As pessoas comuns não viveriam a dimensão sobrenatural, portanto não participariam do lado luminoso da graça. O cristão, pela fé, sim.

Por sua vez, o outro polo faz passar a linha divisória não pela fé explícita, mas pelo amor, justiça, valores humanos. Opõe-se ao mundo da graça, não o fato de viver sem a cobertura visível da Igreja ou da profissão declarada de fé, mas de rejeitar a dimensão profundamente humana do

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amor e da justiça, tocada naturalmente pelo ato criativo e santificador de Deus. Ele não exclui ninguém do chamado existencial ao amor. Só pela rejeição explícita, pelo ódio, pela injustiça, pelo mal conscientemente praticado, a pessoa afasta-se de Deus. Verdadeira revolução no tratado da criação e da graça. Ela subjaz à linha principal da Gaudium et spes.

4 Conflito hermenêutico na recepção dos textos

Outros conflitos mereceriam atenção como os da linguagem, do jogo de conceitos. Os limites de um artigo impedem de adentrar-nos nessas questões.

No momento atual, vivemos o conflito de recepções. Esse termo teológico traduz o complexo de atividades acadêmicas e pastorais que revelam o quanto e em que se assimilou, se interpretou, se vivenciou deter-minado texto. A recepção do Concílio Vaticano II aparece na Igreja católica por meio das transformações na vida interna e na relação com as outras denominações cristãs, religiosas, com os não crentes e com as realidades terrestres. Os dois eixos decisivos para perceber a recepção se cruzam na parte conceitual e na prática pastoral em mútua e crítica relação.

A teologia do Concílio ilumina a prática eclesial e esta torna viva e concreta a dimensão teórico-teológica. Para ter-se ideia da recepção do Concílio, basta recorrer à influência exercida, à quantidade de livros, artigos, conferências, cursos que giram em torno dele. As Igrejas particu-lares, em decisões importantes, apelam para a legitimação do Concílio. Tudo isso traduz a sua recepção.

A amplitude do conspecto da recepção obriga-nos a reduzi-lo a pontos fulcrais sob dois aspectos básicos: geográfico e conceitual. No primeiro, distinguiremos dois blocos interpretativos que nos afetam. Os aspectos conceituais mostram-nos por onde andam as intuições do Concílio na atual vida eclesial.

Recepção geográfica

Impossível cobrir os continentes e países e lá analisar a recepção. De maneira bem simplificada, na perspectiva do conflito, selecionamos dois tipos de centros geográficos: a Europa pela via da teologia pós-conciliar e a América Latina por meio de Medellín. Portanto, os dois pontos geográficos escolhidos têm algo de simbólico. Um simboliza a

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teologia moderna do Vaticano II, gestada por renomados teólogos, como K. Rahner, Y. Congar, E. Schillebeeckx, H. Küng, por igrejas particu-lares e bispos que se ligaram a tal perspectiva. O outro grupo reflete a tradição crítica e libertadora da América Latina, para a qual Medellín avulta como símbolo maior.

A tensão hermenêutica entre esses dois centros se traduz no tipo de pergunta a que pretendem principalmente responder35. A recepção do Vaticano II, nos países centrais da Europa, orientou-se na linha de enfrentar as questões levantadas pela modernidade rica e central: secula-rização, autonomia e liberdade do sujeito, impacto das ciências modernas, consciência histórica, práxis transformadora da realidade. No fundo, portanto, as grandes perguntas brotam da ciência, da subjetividade, da história e da práxis, típicas do sujeito moderno.

A recepção de Medellín partiu de outra pergunta básica que livros de G. Gutiérrez bem simbolizam: “Teologia da libertação36” e “Força histórica dos pobres37”, “Onde dormirão os pobres38”? Por conseguinte, duas palavras: pobres e libertação.

Sob outra formulação, as questões soam: que serviço a Igreja da América Latina pode prestar ao povo pobre em continente de opressão e libertação? Que significa comprometer-se, no contexto de América Latina? Sob tal ótica, lê-se, interpreta-se, vivencia-se o Concílio Vati-cano II.

Na Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Me-dellin (1968), tal opção fundamental se exprimiu numa série de textos que trabalharam os temas: justiça, paz, família e demografia, educação, juventude, pastoral popular e de elites, catequese e liturgia. A respeito da Igreja visível e de suas estruturas, a Conferência debruçou-se sobre os movimentos de leigos, sacerdotes, formação do clero, pobreza da Igreja, pastoral de conjunto e meios de comunicação39.

35 J. Sobrino resumiu claramente os dois universos de perguntas: SOBRINO, J. El conocimiento teológico en la Teología europea y latinoamericana in Encuentro lati-noamericano: Liberación y Cautiverio: debates en torno al método de la teología en América Latina México, [s.n.], 1976, p. 177-207.

36 GUTIÉRREZ, G.: Teologia da libertação: perspectivas. São Paulo: Loyola, 2000.37 GUTIÉRREZ, G.: A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981.38 GUTIÉRREZ, G.: Onde dormirão os pobres? São Paulo: Paulus, 1998.39 CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. A Igreja na atual transformação da

América Latina à luz do Concílio: conclusões de Medellin. Petrópolis: Vozes, 1977. 6. ed.

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Ao olharem-se simplesmente os títulos dos temas abordados, não se tem ideia clara das reais opções e da diferenciada interpretação do Concílio feita por Medellín. Em resumo, as decisões centrais de Medellín, na perspectiva da recepção do Concílio, soam as seguintes: opção pelos pobres, por sua libertação histórica com centralidade na justiça social, pelas Cebs com valorização da religiosidade popular, pela vida consa-grada inserida, pela educação conscientizadora e libertadora nas pegadas de Paulo Freire, por Igreja pobre e comprometida com os pobres.

Em breves palavras: a vertente centro-europeia enfrentou as perguntas da razão moderna no contexto da secularização iluminista e a Igreja da América Latina a pergunta da práxis cristã em situação de opressão e libertação.

Recepção conceitual e pastoral no momento atual

O fato de assumir-se como inevitável a necessidade de interpretar o Concílio diminuiu ou até mesmo desqualificou teoricamente a posi-ção dogmatista. Ela se restringe hoje a pequenos grupos com tendência fanática e rigorista.

O conflito principal se dá entre a hermenêutica da continuidade e a hermenêutica da ruptura. Elas exprimem compreensões diferentes na necessidade inexorável de ter de interpretar.

A hermenêutica da continuidade lê o texto conciliar em busca dos elementos em que ele significou a menor ruptura possível e até mesmo a continuidade com as tradições anteriores. E assim, em nome do pró-prio Concílio, se reafirmam posições até então parecidas superadas e postergadas. A liturgia apresenta caso sintomático. Julgava-se que com o Concílio a liturgia tridentina tivesse cedido lugar para as reformas litúrgicas pós-conciliares.

No momento, assistimos, em grau maior de continuidade, à volta à celebração em latim da missa tridentina na versão reformulada por João XXIII. Paulo VI, nas esteiras do Concílio Vaticano II, ab-rogara-a, ao promulgar a nova versão litúrgica. Quis dar-lhe o poder de lei.

Na “hermenêutica da continuidade” inserem-se vários aspectos dis-ciplinares que nos anos pós-conciliares tinham praticamente desaparecido e que retornam: hábitos, trajes clericais, ritos de genuflexões, formas de devoção, rubricismo acentuado, reforço da exterioridade e visibilidade dis-

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tintiva de clero e leigo, comportamentos autoritativos, crescimento do cle-ricalismo, movimentos de leigos com posições teológicas tradicionais.

A “hermenêutica da ruptura” continua o processo de interpretação dogmática, pastoral e disciplinar na linha de responder às demandas do mo-mento atual40. Evidentemente, nem todos os esforços têm a mesma capacida-de de assumir o núcleo fundamental da Tradição (com T maiúsculo), ao lado do distanciar-se de tradições consideradas caducas (com t minúsculo).

A modo de verbete, segue-se série de conflitos hermenêuticos que vigem em face da recepção do Concílio. Cada um mereceria maior reflexão. Fica para o leitor avançá-la.

O Concílio significa ponto de chegada da caminhada da Igreja em confronto com a modernidade. Cabe tempo de pausa para assimilá-lo. Em tensão com tal posição, entende-se que ele indica começo do começo. Serviu qual farol que ilumina por onde o barco pode caminhar, mas não lhe traça a rota exata e rigorosa. Inicia tempo de abertura, de criatividade, de contínuos avanços. O primeiro braço do conflito não só se firma, mas tam-bém se liga à hermenêutica da continuidade e assim retém o avanço e sugere até recuos em vista do julgado excesso de liberdade pós-conciliar.

Em outra tensão, reafirmam-se a coerência, a estabilidade, a per-petuidade, a garantia de continuidade da Igreja por obra da hierarquia assistida pelo Espírito Santo. O polo oposto acentua a Ecclesia semper reformanda por ser santa e pecadora. O primeiro braço da balança esquece a dimensão de pecado e frisa a santidade. Estoutro chama a atenção para o lado frágil, pecador, limitado da Igreja. E vê o Concílio nesse balancear para um lado ou para outro.

Duas expressões soam antitéticas: volta à origem e pensar o futu-ro. O conflito dá-se no sentido de antes acentuar a tradição a imaginar a novidade. A origem indica-nos de onde se veio e que se fez nos inícios. Para a fé cristã, ela tem caráter revelador do projeto de Deus. Daí a sua importância. Em face dela, o pensamento se atém a mantê-la através do tempo com o máximo de fidelidade. Se possível fosse, até literal. Assim,

40 À guisa de exemplo, recebeu ampla circulação o questionador livro de: LENAERS, R.: Outro cristianismo é possível: a fé em linguagem moderna. São Paulo: Paulus, 2010. 2. ed. Tem trabalhado sistematicamente nessa linha de traduzir a fé cristã para a cultura moderna e pós-moderna o teólogo galego André Torres Queiruga. Ver: Fim do cristianismo pré-moderno: desafios para um novo horizonte. São Paulo: Paulus, 2003. O mesmo vale para Hans Küng. Para o Brasil, estão as vigorosas e amplas publicações de L. Boff.

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a interpretação do Concílio se faria à luz dessa origem no sentido de confirmá-la nos tempos de hoje,

A outra vertente não despreza a origem, nem pode fazê-lo. Mas submete-a à interpretação que os tempos atuais provocam com a liberdade dos filhos e filhas de Deus, confiando no Espírito. Interessa seguir para frente em direção ao futuro a ser construído.

Semelhante conflito se formula com os termos filosóficos de onto-logia e história. Afirmar a exclusividade ou preponderância da ontologia sobre a história levaria a entender o Concílio como algo definitivo e fechado. Por outro lado, ao atribuir importância à história, ele é pensado em contínuo processo interpretativo.

O embate entre os extremos desse conflito mereceu reflexão sere-na de H. Vaz41. Ele não se atém a nenhuma ontologia que desconheça a história, nem mergulha no historicismo dissolvente de todo Absoluto. A ontologia não garante nenhuma imutabilidade, nem definitividade, nem universalidade que negue as mudanças. A cultura atual corre o risco de desconhecer a ontologia, ao proclamar a morte da metafísica. Também sofre da doença do fim da própria história42.

A pós-modernidade, com a morte da metafísica e da história, anula qualquer hermenêutica, ao fixar-se em presentismo de natureza pouco racional. Por isso, esse embate entre ontologia e história carece de agudeza intelectual para encontrar o equilíbrio.

Na relação com o mundo, o choque hermenêutico se trava na ati-tude de fuga mundi de concepção negativa em relação às coisas terrestres e a oposta posição de diálogo e abertura em face do mundo, visto na bondade radical de criatura de Deus e de destinado à transformação pela glorificação. O texto da Gaudium et spes manifesta posição de esperança otimista em relação à criação de Deus e à nossa atividade humana de propagarmos na terra, no Espírito do Senhor e por Sua ordem, valores da dignidade humana, da comunidade fraterna e da liberdade. Ele acres-centa: “Todos estes bons frutos da natureza e do nosso trabalho nós os encontraremos novamente, quando Cristo entregar ao Pai ‘o reino eterno

41 VAZ, H. CL. de LIMA: Escritos de filosofia VI: ontologia e história. São Paulo, Loyola, 2001.42 FUKUYAMA, F.: O fim da história e o último Homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

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e universal, reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz’”43.

Caberia ainda apontar vários outros conflitos importantes, mas que escapam do propósito deste artigo. Segue-se simples enumeração para deixar ao leitor o desejo de explicitá-los.

No Concílio se lê a afirmação da Igreja universal de que a Igreja de Roma se faz principal responsável e concreta encarnação, de um lado, e a valorização da Igreja particular na autêntica autonomia ou em comunhão com as de sua região.

Persiste a tensão entre a valorização do clero, máxime do episco-pado, e a afirmação da presença e relevância do leigo a partir da com-preensão da Igreja como Povo de Deus.

Sofre-se ainda o conflito entre a afirmação da romanidade e o es-pírito ecumênico, o diálogo interreligioso e a abertura aos não crentes.

Atravessa a leitura do Concílio a afirmação do eclesiocentrismo, mas também a perspectiva cristocêntrica com acenos para o teocentrismo, hoje afirmado com insistência por obra do diálogo interreligioso.

Acentua-se por obra da influência da Conferência de Aparecida a clareza na cidadania católica, em tensão com a valorização do cristão anônimo em mundo secularizado e humanista.

A defesa da firmeza, da universalidade e do caráter absoluto da ver-dade até as raias do fundamentalismo esbarra com a afirmação destemida da liberdade religiosa, do pluralismo religioso no projeto salvador de Deus.

Ao lado da defesa de Igreja minoritária, fiel à totalidade do seu ensi-namento dogmático, moral e disciplinar levanta-se a hermenêutica da pres-cindência de tais injunções em nome da liberdade de consciência do cristão, que vem sendo chamada de “cisma branco”44, “cisma silencioso”45.

43 CONCíLIO VATICANO II: Constituição Pastoral Gaudium et spes sobre a Igreja no Mundo de Hoje, n. 39.

44 JAMES, C.: Análise de conjuntura religioso-eclesial. Por onde andam as forças, in Perspectiva teológica 28 (1996), p. 157-182.

45 CAPPELLI, P.: O Cisma silencioso da casta clerical à profecia da fé. São Paulo; Paulus, 2010.

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Conclusão

Os conflitos hermenêuticos do Concílio Vaticano II acompanham-lhe o desenrolar desde a entrada na aula conciliar dos Padres conciliares passando pela confecção dos documentos, de sua interpretação até a recepção com as leituras diversificadas de hoje. Texto tão rico e tecido no meio a duros embates não consegue escapar dos jogos interpretativos, também eles contrastantes.

Em face dos polos opostos, toca-nos perguntar que interpreta-ção corresponde melhor à fidelidade ao Concílio e às interpelações do momento atual. Nem toda acentuação de um polo se iguala. Cabe-nos encontrar aquele polo que suporta melhor validação respeito ao evento e aos documentos do Concílio. Aí a hermenêutica cumpre “sua mais alta tarefa, que seria uma verdadeira arbitragem entre as pretensões totalitárias de cada uma das interpretações”, justificando “cada uma nos limites de sua própria circunscrição teórica”46.

Sempre é possível argumentar a favor ou contra uma interpretação, confrontá-las e buscar um acordo “mesmo se tal acordo ficar para além de nosso alcance imediato”47.

Paulo ensinou-nos a liberdade do Espírito. Nenhuma letra conse-gue freiá-la. Em face dela, a letra mostra-se morta. É para a liberdade que Cristo nos libertou (Gl 5, 1).

Endereço do Autor:Av. Cristiano Guimarães, 2127

31720-300 Belo Horizonte, MG

46 RICOEUR, P. : O conflito das interpretações : ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro: Imago, 1978, cit. por: 121, com pequena correção da citação de Ricoeur segundo a edição citada. Tanto essa citação como a de baixo encontram-se em: BETTI, M.: A Janela De Vidro: Esporte, Televisão e Educação Física. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. Campinas1997, p. 121, disponível in <http://pt.scribd.com/doc/44704099/16/o-conflito-das-interpretacoes>.

47 RICOEUR, P.: Teoria da interpretação; o discurso e o excesso de significação. Lisboa, Edições 70, 1987, p. 91

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Encontros Teológicos nº 62Ano 27 / número 2 / 2012, p. 51-79.

* O autor, Antonio Luiz Catelan Ferreira, é presbítero da Diocese de Umuarama – PR, doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, Professor na Pontifícia Universidade Católica do Paraná e Assessor da Comissão Episcopal Pastoral para a Doutrina da Fé na CNBB.

Resumo: O presente estudo pretende contribuir para a reflexão sobre a eclesio-logia do Concílio Ecumênico Vaticano II em perspectiva de história das ideias. Situa-a com relação ao movimento de renovação da eclesiologia, que se desen-volveu ao longo de cerca de cento e cinquenta anos, para compreender as raízes das noções que utiliza e as propostas de renovação da vida eclesial de que é portadora. Privilegia as noções de sociedade, corpo místico de Cristo, povo de Deus e comunhão, por serem as que aglutinam maior número de contribuições em termos de compreensão da realidade eclesial e em termos de inspiração para elementos estruturais concretos e para as relações entre eles.

Termos chave: Igreja, eclesiologia, concílio Vaticano II, noções eclesiológicas.

Abstract: The present paper aims to contribute for the reflection on the eccle-siology of Ecumenical Council Vatican II from the point of view of the history of the ideas. Setting it in relation with the ecclesiological renewal movement, developed along one and half century, to understand the roots of the notions used and of the propositions for renewing ecclesial life. Emphasizes the notions of society, mystical body of Christ, people of God and communion, because those best articulate elements for the understanding of the ecclesial reality, inspiring structural elements and relating them into one another.

Key words: Church, ecclesiology, Council Vatican II, ecclesiological notions.

Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: antecedentes históricosAntonio Luiz Catelan Ferreira*

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Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: antecedentes históricos

Introdução

A eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II se compreende dentro de um movimento de renovação, de cujas conquistas se benefi-cia, do qual extrai consequências concretas para a vida da Igreja e cujo curso procura orientar. A interpretação do Concílio, ou, como está mais em voga dizer, a hermenêutica do Concílio, precisa levar em conta o movimento histórico em que ele se insere. Sua historicização é decisiva para sua compreensão e aplicação. Por historicização se entenda seu enraizamento histórico concreto.

Nosso objetivo é estudar alguns elementos desse processo, especialmente as noções eclesiológicas mais destacadas, em vista de compreender a história, os fundamentos e algumas das principais conse-quências da eclesiologia do Concílio Vaticano II. Trata-se de um ensaio de situar o Concílio no movimento mais amplo da história das ideias e doutrinas teológicas. Para isto, o presente estudo se divide em cinco partes. A primeira trata da noção de sociedade, que, na formulação mais radical se caracteriza com os adjetivos “perfeita” e “desigual”. Isto se justifica por ser esse o contraponto dialético de referência para a reno-vação eclesiológica, dentro da qual se situa a eclesiologia do Vaticano II. A segunda parte, trata dos dois momentos de especial impulso da renovação eclesiológica: o Romantismo e o período entre Guerras. A terceira parte procura identificar os resultados principais da renovação, sobretudo a contribuição dos estudos bíblicos e patrísticos. A quarta parte, versa sobre as principais noções de Igreja que estão em questão e a renovada compreensão da Igreja que está relacionada com elas. A última parte recorda mais diretamente alguns dos principais elementos da eclesiologia do Vaticano II, destacando algumas das consequências mais concretas para a compreensão da Igreja e para sua renovação, como propostas pelo Concílio1.

1 As obras de caráter geral mais utilizadas neste estudo são: F.M. BRAUN, Aspects nouveaux du problème de l’Église, Fribourg – Lyon 1942; E.D.C. LIALINE, «Une éta-ppe en ecclésiologie», Irénikon 19 (1946) p. 129-152; 283-317; 20 (1947) p. 34-54; R. AUBERT, La théologie catholique au milieu du XXe siècle, Tournai – Paris 1954; T. ZAPELENA, «De actuali statu ecclesiologiae», in CONGRESSO INTERNAZIONALE PER IL IV CENTENARIO DELLA PONTIFICIA UNIVERSITÀ GREGORIANA, Problemi scelti di teologia contemporanea, Roma 1954, p. 143-164; S. JÁKI, Les tendences nouvelles de l’ecclésiologie, Roma 1957; G. THILS, Orientations de la théologie, Louvain 1958; E. MENARD, L’Ecclésiologie hier et aujourd’hui, Bruges – Paris 1966; Y. CONGAR, «L’Ecclésiologie de la révolution française au concile du Vatican, sous le signe de l’affirmation de l’autorité», in M. NÉDONCELLE, L’Ecclésiolgie au XIXe siècle,

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Antonio Luiz Catelan Ferreira

1 A eclesiologia da sociedade perfeita

No dizer de S. Jáki, estudioso da eclesiologia da primeira metade do século XX, “o que é mais característico nessas tendências novas, é a intenção de exceder os limites da eclesiologia pós-tridentina”2. Por isso, aqui, o ponto de partida é a caracterização geral da eclesiologia, a que se contrapõe o movimento de renovação eclesiológica. Dessa eclesiologia, especialmente da que se encontra nos manuais de entre os Concílios Vaticanos, Y. Congar faz um juízo severo.

Os tratados apologéticos prevalecem sobre os tratados dogmáticos e, mesmo nesses, não se trata de outra coisa que dos poderes da au-toridade – em particular do magistério – e dos direitos da Igreja. Os aspectos interiores e verdadeiramente teológicos são passados sob silêncio ou reduzidos a uma breve menção. A Igreja não é apresentada como a expansão do mistério de Cristo, mas como fundada por Ele. É uma sociedade hierarquizada, piramidal […]. São ausentes algumas dimensões: assim em uma época missionária fortemente ativa, falta o dinamismo da missão. Em geral, a dimensão escatológica e também a histórica é fraca […]. Aí não se ocupa dos fiéis senão para afirmar sua situação subordinada e seu dever de obediência3.

Muito severo é também o julgamento de S. Jáki, que, tendo estu-dado os manuais de teologia em uso na primeira metade do século XX, conclui que “pode ser dito, sem exagero, que os manuais De Ecclesia, quase sem exceção, […] desenvolvem os aspectos exterior, hierárquico e sociológico da Igreja, com algumas anotações sobre seu mistério. Em outras palavras: ao lado de desenvolvimentos detalhados sobre a estrutura da Igreja, a vida, à qual tal estrutura deve servir, é quase inteiramente negligenciada”.4

Paris 1960, p. 77-114; Id., L’Église de saint Augustin à l’époque moderne, Paris 1970; P.C. BORI, Koinonia. L’idea della comunione nell’ecclesiologia recente e nel Nuovo Testamento, Brescia 1972; FACOLTÀ TEOLOGICA INTERREGIONALE MILANO, L’ecclesiologia dal Vaticano I al Vaticano II, Brescia 1973; A. ANTóN, El Misterio de la Iglesia, evolución historica de las ideas eclesiologicas, vol. 2, Madrid – Toledo 1987; J. RATZINGER, Compreender a Igreja hoje, vocação para viver a comunhão, Petrópolis 1992.

2 S. JÁKI, Les tendences nouvelles de l’ecclésiologie, p. 6. Também B. SESBOüÉ, L’Avvenire della fede, la teologia del XX secolo, Milano 2009, 138.

3 Y. CONGAR, L’Église de saint Augustin à l’époque moderne, Paris 1970, p. 456-457.

4 S. JÁKI, Les tendences nouvelles, p. 12.

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Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: antecedentes históricos

Essa eclesiologia se configurou lentamente, a partir de fatores históricos situados em um passado de muitos séculos, marcada pela auto-afirmação conflitiva. O ponto mais remoto é situado por Y. Congar no século XII, quando se defende a realidade institucional e social da Igreja contra os movimentos espiritualistas anti-hierárquicos, e contra o movimento das comunas5. A teologia experimentou concomitantemente, na passagem do século XII ao XIII, a mudança da linguagem simbóli-ca à dialética, de uma concepção sintética a uma concepção analítica, que marcará também a eclesiologia medieval. Esta teologia científica contribuiu muito para a formação de um ensino doutoral, universitário, diverso do que predominou até o século XII, que era um ensino pastoral e monástico, ligado à vida litúrgica e contemplativa. Em seguida, no século XIV, vêm os conflitos entre os Papas e os Imperadores, quando se conhece uma afirmação sem precedentes das prerrogativas indepen-dentes e superiores da Igreja com relação ao poder político6. Começa também nesse século o longo período da afirmação dos direitos do papa em oposição às pretensões dos Bispos e do Concílio Ecumênico7. Embora permaneça algo da eclesiologia patrística, como a compreensão da Igreja como congregatio fidelium, a celebração regular dos Concílios provinciais ou regionais, novos elementos vão se afirmando, como a utilização prio-ritária das categorias populus christianus, societas christiana, civitas8, a identificação entre Igreja e hierarquia, sobretudo com o Papa9, e é feita

5 Y. CONGAR, Jalons pour une théologie du Laïcat, Paris 19542, p. 59-60, 407-408; E. BENZ, Ecclesia spiritualis. Kirchenidee und Gesichtstheologie der franziscanischen Reformation, Stuttgart 1934.

6 Cf. Y. CONGAR, L’Église de saint Augustin, p. 271-295.7 Cf. G. ALBERIGO, Chiesa conciliare. Identità e significato del conciliarismo, Brescia

1981; Y. CONGAR, L’Église de saint Augustin, p. 340-368.8 Cf. B.D. DE LA SOUJEOLE, «“Societé” et “communion” chez saint Thomas d’Aquin»,

Revue Thomiste 90 (1990) p. 587-622.9 Egídio Romano (Arcebispo de Brouges entre 1295 e 1316), afirma que «o sumo

pontífice [...] pode ser considerado a Igreja»: «Ecclesia [...] est timenda et mandata eius sunt observanda, sive summus pontifex, qui tenet apicem ecclesiae et qui potest dici ecclesia, est timendus et sua mandata sunt observanda, quia potestas eius est spiritualis, celestis et divina, et est sine pondere, numero et mensura» (AEGIDIUS ROMANUS, De Ecclesiastica potestate, R. Scholz, ed., Weimar 1929, p. 209).

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uma distinção radical entre clérigos e leigos10. Assim a Igreja passa a ser enquadrada sociologicamente na categoria de potestas11.

Depois, já na Modernidade, no contexto da Reforma protestante, que negou a validade da existência de uma hierarquia no cristianismo e também a consistência teológica da visibilidade da Igreja, opõem-se uma eclesiologia invisibilista e uma eclesiologia visibilista, que exprimem e, ao mesmo tempo, alimentam a Reforma Protestante, e a Reforma Católi-ca12. Tornou-se comum, a partir de então, descrever-se a Igreja como uma sociedade. Esta compreensão, durante a modernidade, contra o jansenis-mo, as tendências galicanas e várias formas de episcopalismo, laicismo e

10 «Dois são os gêneros de cristãos. O primeiro é consagrado ao ofício divino e dedi-cado à contemplação e à oração e lhe convém abster-se de todo envolvimento com as coisas materiais: são os clérigos e as pessoas devotadas a Deus, ou seja, os conversos. Kleros, em grego, em latim sors: por isso, alguns homens são chamados clérigos, o que significa eleitos por sorte, pois a eles Deus elegeu como seus. Estes são reis, isto é, regem a si e a outros pelas virtudes, e assim têm o Reino em Deus. E é justamente isso que a coroa na cabeça indica. [...] O outro é o gênero de cristãos que são leigos. Laós é, com efeito, o povo. Estes podem ter bens temporais, mas apenas para uso. Nada é mais miserável do que desprezar a Deus por uma moeda. É-lhes permitido casar-se, cultivar a terra, promover a justiça, representar, levar as ofertas ao altar, devolver os dízimos, e poderão salvar-se fazendo o bem e evitando os vícios» (Decr. Grat. II, C. XII, q.1, c.7, in Corpus iuris canonici, E. FRIEDBERG, ed., Graz 1959, col. 678).

11 O tratado De regimine christiano, de Giacomo Capocci da Viterbo, considerado o primeiro tratado de eclesiologia, publicado em 1301-1302, em suas duas partes, se estrutura respectivamente a partir de duas categorias: reino (regnum) e poder (po-testas) (H.X. ARQUILLIÈRE, Le plus ancien traité de l’Église: Jacques de Viterbe, De regimine christiano, Paris 1926). É verdade que também nos tratados que propõem a concepção do papado limitada pelos poderes do Concílio, a categoria de poder é igualmente central. A. Antón refere onze deles (cf. A. ANTóN, El misterio de la Iglesia, vol. 1, Madrid – Toledo 1986, p. 200-260).

12 A compreensão da Igreja de M. Lutero se exprime assim: «a primeira [realidade] que é essencial, fundamental e verdadeiramente Igreja, vamos chamá-la de cristandade espiritual. A outra, que é uma criação humana e um fato exterior, vamos chamá-la de cristandade corporal e exterior» (M. LUTERO, Traité de la papauté, maio de 1520, apud H. DE LUBAC, Méditation sur l’Église, Paris 1953, p. 71, nota 2]). A compreensão católica do período se encontra em São R. Bellarmino: «a Igreja é uma sociedade composta por homens unidos entre si pela profissão de uma única e idêntica fé cristã e pela comu-nhão nos mesmos sacramentos sob a jurisdição de pastores legítimos, sobretudo do romano pontífice. Para que alguém possa em alguma medida fazer parte da verdadeira Igreja […] não se exige nenhuma virtude interior, mas somente a profissão exterior da fé e a participação nos sacramentos, que são coisas que se podem perceber com os sentidos. De fato, a Igreja é um grupo de pessoas tão visível e palpável quanto o grupo de pessoas que formam o povo romano, o reino da França ou a república de Veneza» (R. BELLARMINO, «De definitione Ecclesiae», in Id., De controversiis christianae fidei adversos nostri temporibus haereticos, vol. 2, Ingolstadt 1601, col. 137-138, apud J. HAMER, L’Église est une communion, Paris, 1962, p. 88).

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absolutismo13, se acentuou muito mais. Sobretudo diante do Iluminismo, a Igreja será afirmada como sociedade perfeita14 e desigual15.

A convergência dos posicionamentos assumidos ao longo desse percurso de auto-afirmação da Igreja frente ao contraditório, aqui apenas genericamente indicado, resultou na afirmação da Igreja como uma socie-dade perfeita, e mais especificamente em uma concentração da definição da Igreja a partir dos poderes da hierarquia, sobretudo dos poderes papais. Uma sociedade “perfeita e desigual”, como já dito acima. Essa história de oposição polêmica deixou suas marcas na eclesiologia16. Tais marcas se fazem ver na eclesiologia do Concílio Vaticano I, que é apresentada por A. Antón como centrada nas estruturas da Igreja em cujo vértice está o papa, cujo primado de jurisdição e infalibilidade são definidos17. O mesmo autor apresenta a eclesiologia dos documentos pontifícios e dos manuais de eclesiologia do período que vai do Vaticano I a 1920 como influenciada ainda por essa história, baseada sobre o tema da autoridade, horizontal-visibilista; papista; hierárquico-clerical; apologética18.

13 Cf. Y. CONGAR, «L’ecclésiologie de la Révolution Française au Concile du Vatican», p. 77-114.

14 No sentido de sociedade verdadeira, autônoma e que em si mesma tem todos os meios e poderes necessários para a obtenção de seu fim sobrenatural, por direito divino. Um exemplo se encontra no «Silabo», de Pio IX, anexo à encíclica «Quanta cura» [08.12.1864], onde é condenada a proposição segundo a qual «a Igreja não é uma sociedade verdadeira e perfeita, completamente livre, nem dispõe de seus pró-prios e permanentes direitos, a ela conferidos por seu fundador divino, mas compete ao poder civil definir quais são os direitos da Igreja e os limites dentro dos quais ela possa exercer esses direitos» (DzH 2919).

15 «A Escritura afirma, e a doutrina transmitida pelos Pais confirma que a Igreja é o corpo místico de Cristo, administrado pela autoridade dos pastores e doutores, isto é, a sociedade de homens na qual alguns presidem aos demais com plena e perfeita potestade de reger, ensinar e julgar. Portanto, esta sociedade é, por sua força e natureza, desigual [...] e estas ordens são de tal modo entre si distintas, que só na hierarquia residem o direito e a autoridade de mover e dirigir os consócios ao fim proposto à sociedade; o papel da multidão, porém, é o de deixar-se governar e seguir obedientemente a condução de seus dirigentes» (S. PIO X, «Vehementer nos» [11.02.1906]: ASS, 39 [1906] p. 8-9).

16 A uma tal eclesiologia, Y. Congar denominou «hierarcologia» (cf. Y. CONGAR, Jalons pour une théologie du laïcat, 74. Cf. sua própria avaliação a respeito em «Bulletin d’ecclésiologie [1939-1946]», Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques 31 [1947] p. 78).

17 Cf. A. ANTóN, «Lo sviluppo della dottrina sulla Chiesa nella teologia dal Vaticano I al Vaticano II», in FACOLTÀ TEOLOGICA INTERREGIONALE MILANO, L’ecclesiologia dal Vaticano I al Vaticano II, p. 49.

18 Cf. A. ANTóN, «La imagen de la Iglesia en los manuales De Ecclesia en el periodo 1870-1920», in Id., El Misterio de la Iglesia, vol. 2, 406-427.

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Nota-se, porém, de Bonifácio VIII a São Pio X (1903-1914), também uma continuidade da compreensão da Igreja sob a noção de corpo de Cristo19, embora o significado da noção não seja totalmente coincidente. Essas duas tendências, societária e do corpo místico, estão presentes nas discussões do Vaticano I. A partir de C. Passaglia, Cl. Schrader e J.B. Franzelin, a teologia do corpo místico reproposta por J.A. Möhler se faz sentir na primeira redação do Schema constitutionis dogmaticae de Ecclesia Christi do Vaticano I, especialmente no primeiro capítulo20. Mas discutida e recusada21, cederá espaço para a eclesiologia da sociedade perfeita na redação de J. Kleutgen22. Em torno da noção de corpo místico de Cristo, porém, se articularão as primeiras reações do movimento eclesiológico, reivindicando um aprofundamento espiritual e uma impostação propriamente teológica da eclesiologia.

2 A renovação da eclesiologia

2.1 O impulso renovador no período do Romantismo

Nesse mesmo período, a partir do final do século XVIII e durante o século XIX, a afirmação da eclesiologia da sociedade perfeita, em contraste com a difusão da cultura romântica, desperta movimentos de recuperação de outras perspectivas, testemunhadas na Tradição. O Romantismo foi decisivo na virada eclesiológica23. Com sua insistência sobre o elemento vital e sobre a historicidade, ele deslocará o acento da temática eclesiológica para a questão da experiência vivida da Igreja. Sua recepção em âmbito teológico valoriza a vivência unitária do dado revelado24.

19 E essa continuidade se prolongará em outros documentos, uma vez que Pio XII virá a citar, na Mystici Corporis, as encíclicas de Leão XIII «Satis cognitum» (29.06.1896) (cf. ASS 28 [1895-1896] p. 210, 218, 223) e «Divinum illud» (09.05.1897) (cf. ASS 29 [1896-1897] p. 220, 232).

20 Cf. MANSI 51, col. 539. As anotações que acompanham o esquema explicam o motivo da escolha (MANSI 51, col. 553) e justificam o plano do primeiro capítulo.

21 As principais motivações da recusa podem ser vistas em MANSI 51, col. 744, 753, 755, 757, 760, 762 (apud A. ANTóN, «Lo sviluppo della dottrina sulla Chiesa», p. 47).

22 Cf. J. HAMER, L’Église est une communion, 11-16; A. ANTóN, El misterio de la Iglesia, vol. 2, p. 344-355.

23 Y. CONGAR, L’Église de saint Augustin, p. 417, especialmente a bibliografia da nota 1.24 S. JÁKI, Les tendances nouvelles, p. 21-35.

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A importância do Romantismo para a renovação da eclesiologia pode ser mais bem compreendida a partir do conhecimento da reflexão feita pelos grandes teólogos desse período. Sensíveis às características de seu tempo, a partir delas encontraram nas mais legítimas fontes da Escritura e da Tradição os elementos para a proposição de uma renovada reflexão sobre a Igreja, que respondesse efetivamente às necessidades. Os teólogos da escola de Tubinga são os primeiros a acolher a influên-cia do pensamento romântico na teologia. Eles procuram o espírito do cristianismo na vivência do mistério da Igreja.

J.A. Möhler (1796-1838) é o maior representante da escola de Tubinga e o inspirador das principais correntes eclesiológicas do século XX25. Sua primeira grande obra é A Unidade. Segundo ele, o funda-mento da unidade da Igreja reside em seu próprio mistério, realidade sobrenatural vivida, que se deseja comunicar homogeneamente a todos. É uma unidade orgânica e viva. Sua comunicação vital é obra do Espí-rito. A unidade no espaço – sincrônica – se dá pela profissão de fé; no tempo – diacrônica – pela Tradição e também pelo ministério dos Bispos como sucessores dos Apóstolos. Estas duas formas de união compõem a unidade orgânica da Igreja. Há nelas uma preocupação especial em demonstrar a continuidade orgânica entre a Igreja primitiva e a Igreja atual. O conhecimento das verdades sobrenaturais também encontra na vivência concreta seu melhor modo de ser captado e compreendido. Esta mesma experiência vivida está no fundo da essência da Igreja e justifica sua estrutura exterior, encarnando-se nela26. Desta sua primeira grande obra, os temas da unidade e do aspecto místico da Igreja são os dois que mais atenção receberam da eclesiologia posterior e que mais contribuí-ram para sua renovação. Mas também se devem mencionar outros, como o enfoque da estrutura visível da Igreja a partir de sua interioridade, a

25 Suas obras eclesiológicas principais são: J.A. M�HLER, Die Einheit in der Kirche oder das Prinzip des Katholizismus dargestellt im Geist der Kirchenväter der drei ersten Jahrhunderte, Tübingen 1825 (designada como A Unidade); Id., Symbolik oder Darstellung der dogmatische Gegensätze der Katholischen und Protestanten nach ihren öffentlichen Bekenntnisschriften, Mainz 1832 (designada como Simbólica).

26 Sua obra, especialmente A Unidade, recebeu críticas, na discussão de cujo mérito não podemos aqui entrar. A principal delas se refere ao papel que reconhece ao magistério. «O magistério e as funções eclesiásticas se submetem à predominância absoluta do princípio do Amor, do qual elas não são senão as manifestações necessárias» (S. JÁKI, Les tendences nouvelles, p. 28). Sobre isto, se pode consultar Ch. JOURNET, «La hiérarchie dans le livre de Moehler sur L’unité dans l’Église», in Id., L’Église du Verbe Incarné, vol. 1, Paris 1941, p. 630-641.

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importância do diálogo ecumênico, o retorno aos Pais27. Como juízo de conjunto sobre sua obra e de sua intuição fundamental apresentada em “A unidade”, podemos citar Ch. Journet: «é autêntica, profunda, antiga como o cristianismo, eternamente fecunda»28.

Na Simbólica, ao lado do primado do amor que afirmara na pri-meira obra, J.A. Möhler acentua o papel da encarnação de Cristo como fundamento da necessária expressão do mistério em estruturas visíveis, como o Episcopado. Entre a verdade interior e a realidade exterior, a mediação é feita pela estrutura eclesial29. A expressão concreta da união interior dos cristãos e da sua ligação com Cristo é a Igreja visível. Nis-to há uma continuidade da economia da encarnação e se verifica uma orientação para a objetividade da revelação.

O desafio da eclesiologia de encontrar uma síntese equilibrada e justa entre o subjetivo e o objetivo na Igreja é percebido por ele. A elaboração dessa síntese entre o aspecto vital e concreto da Igreja, que caracteriza “A unidade”, e a valorização do aspecto visível da Igreja, expresso na “Simbólica”30 é perceptível nas modificações que ele intro-duziu na segunda edição desta última obra.

Também na teologia de J.H. Newman (1801-1890) a Igreja ocupa um lugar central, embora não o tenha abordado de modo sistemático31. Por seu modo de ver a Igreja a partir de sua vitalidade, concreção e mís-

27 Cf. As contribuições feitas por ocasião da comemoração do centenário de seu nasci-mento em P. CHAILLET, ed., L’Église est une. Hommage à Moehler, Paris 1939.

28 Ch. JOURNET, L’Eglise du Verbe Incarné, vol. 1, p. 640.29 Verifica-se nesta obra uma postura crítica de J.A. Möhler a respeito do Romantismo.

Ele abrira horizontes para a eclesiologia, mas comportava também riscos, como o de limitar a objetividade do dado revelado e definido à psicologia religiosa. O princípio da experiência vital não é suficiente em vista da distinção das «corporificações» essen-ciais das que são contextuais. Por isso, nessa nova obra, aborda o aspecto visível da Igreja sob novo prisma.

30 O capítulo que ele inclui na segunda edição da “Simbólica” («§ 37. Exposição mais detalhada do modo como os católicos vêem a Igreja») é interpretado como um esforço nesse sentido (cf. S. JÁKI, Les tendences nouvelles, p. 35, nota 75). A eclesiologia posterior tratará desses dois aspectos, o vivencial e o institucional, como dois princí-pios: comunitário e apostólico. «Em ‘A unidade’, o teólogo alemão nos dá uma primeira elaboração do aspecto vital da Igreja. Na ‘Simbólica’, ele detecta as deficiências de um vitalismo unilateral. Uma morte prematura o impediu de realizar a síntese que pretendia» (Id., «Bulletin d’ecclésiologie», Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques, p. 43 [1959] p. 331).

31 Cf. L. BOUYER, Newman. Sa vie. Sa spiritualité, Paris 1952; E.J. MILTON, John Henry Newman on the Idea of Church, Milton 1987. «[Suas conferências sobre a Justificação] preparam, se não produzem elas mesmas antecipadamente, o que os

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Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: antecedentes históricos

tica, e pela influência que teve na renovação da eclesiologia, é também considerado um iniciador da nova compreensão da Igreja32. Para ele, a estrutura sacramental da Igreja e o senso religioso pessoal não estão separados. Este último se baseia na união pessoal do crente com Deus33, sem se concluir no intimismo, porque a Igreja é a ligação entre a cons-ciência e a Trindade. Sua compreensão da Igreja se baseia na noção de santidade34. Sua preocupação com a questão histórica da Igreja não tem cunho apologético, mas de continuidade vital35. Por isso ele reconhece a preponderância do caráter sacramental da Igreja: ela é a continuadora da vida da graça. E também em consonância com isso valoriza a liturgia. O mesmo motivo o faz ter em alta conta a doutrina da sucessão apostó-lica, pois pelos Bispos Cristo cumpre a promessa de permanecer para sempre em sua Igreja36. A organicicidade viva da Igreja se manifesta em seu desenvolvimento doutrinal no qual têm papel ativo os leigos37. A correspondência entre a voz da consciência e a do magistério eclesial testemunha essa organicidade38. Avaliando globalmente sua eclesiologia,

desenvolvimentos da teologia do Corpo Místico no século XX deveriam revelar de mais fecundo» (L. BOUYER, Newman, p. 222).

32 Cf. S. JÁKI, Les tendences nouvelles, p. 36. A importante questão do enquadramento de J.H. Newman com relação às correntes teológicas de seu tempo é discutido bastante detalhadamente em J.-H. WALGRAVE, «La croissance spirituelle de Newman et l’idée du développement», in Id., Newman, le développement du dogme, Tournai – Paris 1957, p. 36-52.

33 Cf. J.H. NEWMAN, Apologia pro vita sua, London 1864, 23.34 «A noção de santidade é central para Newman, e sobre ela constrói sua eclesiolo-

gia» (J. HAMER, «Bulletin d’ecclésiologie», Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques, 63 [1959] p. 334).

35 Cf. L. BOUYER, Newman, p. 210.36 Cf. J.H. NEWMAN, Parochial and Plain Sermons, London 1869, vol. 2, p. 310; Ibid.,

vol. 3, p. 248. «A apostolicidade é a razão da conversão de Newman» (Ch. JOURNET, L’Église du Verbe incarné, vol. 1, p. 682).

37 «Newman percebeu em sua época a importância de problemas que estão hoje no centro das atenções: a Igreja no mundo, o lugar dos leigos na conservação e no desenvolvi-mento da fé» (J. HAMER, «Bulletin d’ecclésiologie», RSPhTh 63 [1959] p. 334).

38 «Por um lado, o instinto do povo fiel é infalível em matéria de fé e, por outro, a auto-ridade eclesiástica é o princípio fundamental que preside a todo crescimento da vida de fé. O Espírito que conduz a Igreja, age ao mesmo tempo na fé da comunidade crente, na teologia autêntica e na infalível autoridade doutrinal» (J. HAMER, «Bulletin d’ecclésiologie», Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques, 63 [1959] p. 334). Não se trata de dois ou três sujeitos da infalibilidade. «A infalibilidade pertence a mesmo tempo à comunidade e à hierarquia, como a um só corpo, mas ela não é exercida senão pela suprema autoridade doutrinal» (J.-H. WALGRAVE, Newman, le développement du dogme, p. 211).

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Y. Congar considera que, assim como J.A. Möhler, J.H. Newman abordou o mistério da Igreja pelo lado do “sujeito religioso”39.

Nesse período, a teologia se enriquece consideravelmente com relação à sua situação anterior. A partir do caráter vital e orgânico que o contexto cultural do Romantismo lhe proporcionou, ela se beneficiou do rejuvenescimento que o contato com as fontes patrísticas e com os grandes escolásticos proporciona. A noção de corpo místico de Cristo, na qual se destaca a ideia de unidade, lhe oferece a categoria e o fundamento tradicional para reinterpretar a noção eclesiológica de sociedade a partir da ideia de unidade viva e orgânica. As categorias de mistério e sacra-mento conferem à eclesiologia desse período o elemento transcendente. A aproximação à categoria sociológica de Gemeinschaft40, interpretada a partir da ideia de comunhão, permite à eclesiologia a recuperação da dimensão comunitária, que é entendida como a forma especificamente humana da unidade.

A partir da categoria de corpo místico de Cristo, a eclesiologia desse período deu sua contribuição mais fecunda à renovação da ecle-siologia. O legado dessa etapa está associado à importância do que virá a ser chamado ressourcement. A categoria do poder se enriquece e se corrige com a categoria de vida. O mesmo ocorre com a noção de uni-dade jurídica, pela de unidade orgânica; e com a de sociedade desigual, pela de comunidade. Praticamente todos os grandes temas da renovação eclesiológica estão postos nessa importante fase.

2.2 O impulso renovador entre as duas Guerras Mundiais

É geralmente reconhecida uma influência sobre a eclesiologia também da parte da experiência peculiar do período que vai da primeira

39 Y. CONGAR, Vraie et fausse réforme dans l’Église, p. 9. E avaliando sua produção, escreve: «Ele realizou a síntese, não perfeitamente, certo, mas excepcionalmente, pela qual se empenha nosso tempo, entre os valores santos e necessários: fé e razão, vida espiritual e intelectualismo, história e pensamento, psicologia e dogma, profetismo e instituição, sujeito e objeto, progresso e tradição, reflexão e poesia [...]» (Id., «Bulletin d’ecclésiologie», Revue des Sciences Philosophiques et Théologiques, 31 [1947] p. 96). Alguns aspectos pelos quais sua eclesiologia se aproxima da eclesiologia de comunhão foram destacados em J. TOLHURST, The Church – A Communion in the Preaching and Thought of John Henry Newman, Sauthhampton 1988.

40 F. PILGRAM, Physiologie der Kirche. Forschungen über die geistigen Gesetze, in denen die Kirche nach ihrer natürlichen Seite besteht, Mainz 1860; trad. francesa: Physiologie de l’Église, Paris – Bruxelles 1864, p. 13-15, 114, 186.

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Eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II: antecedentes históricos

à segunda Grande Guerra do século XX41. Essa experiência pode ser caracterizada como sentimento de solidão e de necessidade de atuação comunitária42. Nesse período, diversos temas são retomados com novo vigor, tanto na teologia católica quanto na teologia ortodoxa e evangélica. Entre eles destacamos: a Palavra como criadora da Igreja, o culto como espaço vital interior da Escritura e da Igreja, uma renovada compreen-são da relação entre Jesus e a Igreja, a Eucaristia como origem e norma permanente da Igreja, a influência da escatologia sobre a compreensão da Igreja43.

Nessa fase, o aprofundamento da eclesiologia foi realizado não apenas com a contribuição de grandes teólogos, mas também, e sobre-tudo, dos movimentos de renovação, que conheciam então o apogeu de sua atuação entre as duas Guerras Mundiais44. O sentido comunitário e o despertar do laicato são duas grandes características desse período, que darão contribuição decisiva para a renovação da eclesiologia45.

O documento magisterial que trata da questão eclesiológica com maior amplitude, antes do Concílio Vaticano II, é a encíclica Mystici corporis (29/06/1943), de Pio XII. Nela a noção de corpo de Cristo exprime a ideia fundamental segundo a qual se compreende a natureza da Igreja46. Nas discussões do Vaticano I sobre a noção de Igreja a ser considerada estruturante, essa noção foi considerada inadequada para exprimir em conjunto o ensino sobre a Igreja: por ser obscura, imprecisa, metafórica, perigosa por reforçar o aspecto invisível, marcada por sabor jansenista. A evolução que se processou no interstício evidenciou dados

41 «Toda a experiência da guerra foi, no fundo, esta: despertamos e tivemos aquela experiência do mundo que Agostinho nos descreve: este mundo em realidade não “é”. Toda a nossa vida, cada palavra que dizemos, cada respiro em realidade não “é”. Na realidade tudo é só um “foi” e um “será”» (E. PRZYWARA, Katholische Krise, Düsseldorf 1967, 47, apud P.C. BORI, Koinonia, 15).

42 «A Primeira Guerra Mundial trouxe consigo o desmoronamento do mundo liberal e com ele, também, o distanciamento em relação a seu individualismo e moralismo. As grandes instituições políticas que se apoiavam inteiramente na ciência e na técnica como sustentáculos do progresso da humanidade fracassaram em sua qualidade de forças da ordem moral. Daí o redespertar do anseio de integrar uma comunidade de vivência sacral» (J. RATZINGER, Compreender a Igreja hoje, p. 10).

43 Cf. J. RATZINGER, Compreender a Igreja hoje, p. 9-13; P.C. BORI, Koinonia, p. 15-46.44 Eles são bem conhecidos (Movimento Litúrgico, Movimento Ecumênico, Movimento

Bíblico, Ação Católica, entre outros), por isso não nos ocupamos pormenorizadamente deles aqui.

45 Cf. A. ANTóN, «Lo sviluppo della dottrina sulla Chiesa», p. 64-67.46 Acta Apostolicae Sedis, 35 (1943), p. 199.

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que permitiram a superação daquelas reservas. Esses dados tanto se re-ferem aos fundamentos bíblicos e tradicionais da noção, como também a sua articulação com a noção de sociedade, já bastante depurada dos acentos com que foi marcada até a Idade Moderna. Nesse período, a Mystici corporis é um marco de superação. A unidade entre os elementos societários e místicos da Igreja, nenhum devendo excluir o outro como não-essencial, se fundava na analogia com o mistério do Verbo encarna-do. A dimensão pneumática se apresenta unida à dimensão institucional, o que a encíclica articula a partir da ideia da missão de Cristo e de sua capitalidade, que se prolonga na missão jurídica e pneumática dos após-tolos. Superando os limites da eclesiologia da sociedade perfeita, coloca ainda em primeiro plano o aspecto institucional e hierárquico por meio da estreita identificação entre o corpo místico e a sociedade eclesiástica, que coincide com a Igreja Católica Romana.

O decurso desse grande período, especialmente impulsionado nas duas fases mais intensas, resulta na renovação da compreensão da Igreja a partir da harmonia de seus dois aspectos mais característicos: o aspecto humano, comunitário, empírico; e o de mistério, espiritual, transcendente. De modo geral, ela afeta não somente a teologia católica. Um papel decisivo é desempenhado pela exegese, que acolhe essas novas tendências e influencia também decisivamente sobre seu curso47. Nela se desenvolve uma importante reflexão sobre a relação entre Jesus e a Igreja, no âmbito da interpretação escatológica da mensagem de Jesus48. É também digna de nota a atenção concedida à centralidade da Eucaris-tia, que encontra um referencial imprescindível na Última Ceia como geradora da comunidade49. Sob a marca dessa influência fundamental, no

47 Duas obras decisivas do ponto de vista das mudanças da exegese no campo da eclesiologia: O. LINTON, Das Problem der Urkirche in der neueren Forschung, Upp-sala 1932; F.M. BRAUN, Aspects nouveaux du problème de l’Église (J. Ratzinger testemunha a importância desta última obra: «No final desse movimento, F.M. Braun apresentou sumariamente o seu desenvolvimento, no livro que ainda hoje merece ser lido» [Compreender a Igreja hoje, p. 25]).

48 Uma particular atenção é conferida, nesse âmbito, à relação entre Igreja e Reino. Cf. G. GLOEGE, Reich Gottes und Kirche im N.T., Gütersloh 1929 (em que insiste na distinção entre ambos e na instrumentalidade da Igreja com relação ao Reino). R. Bultmann insiste sobre o aspecto escatológico da Igreja a partir de seus estudos sobre a relação entre Ekklesia e Qahal (cf. R. BULTMANN, «Kirche und Lehre im N.T.», Zwischen den Zeiten 7 [1929] p. 9-43), como também E. PETERSON, Die Kirche, München.

49 J. Ratzinger indica o início dessa ideia em F. KATTENBUSCH, Der Quellort der Kir-chenidee. Festgabe für A. Harnack, Tübingen 1921, p. 143-172 (cf. J. RATZINGER, Compreender a Igreja hoje, p. 10-11). É também decisivo, para esta discussão, H.

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campo da eclesiologia católica assiste-se a sistematizações que mostram o vínculo indissociável entre a Igreja enquanto sociedade e enquanto mistério (trata-se da afirmação do caráter mistérico e comunitário)50.

Como o século XX é o que conhece o apogeu desse movimento, é conhecido como “século da Igreja”51, ou “século da eclesiologia”52. Em termos de experiência vivida, trata-se do que R. Guardini chamou de o “despertar da Igreja nas almas”53.

3 Resultados da renovação eclesiológica

J. Hamer identifica três “momentos característicos” resultantes da renovação eclesiológica: (1) O tratado De Ecclesia se entende como parte importante da apologética e da teologia fundamental, e nele se destaca uma de suas funções: proclamar a verdade e conservar o depósito revelado; (2) A eclesiologia reconquista um lugar na teologia especial, tendo como indicação cronológica o período que abrange as décadas de 30 e de 40 do século XX, sendo seu ápice a publicação da Mystici Corporis; como temática principal, ele aponta a reflexão sobre a natureza profunda da Igreja; (3) Depois do início do pontificado de João XXIII e sobretudo a partir do Concílio Vaticano II, a eclesiologia se desenvolve em extensão e em organização54.

Entre as principais consequências da renovação da eclesiologia, pode-se indicar uma nova abordagem das fontes da teologia, uma modifi-cação nas imagens predominantes da Igreja e a ampliação da compreensão da Igreja, nas suas dimensões mistérica, comunitária e escatológica, em sua unidade e em seu caráter sacramental.

LIETZMANN, Messe und Herrenmahl. Eine Studie zur Geschichte der Liturgie, Bonn 1926.

50 As obras mais típicas nesse sentido são as de H. de LUBAC, Catholicisme, les aspects sociaux du dogme, Paris 1937; e Id., Corpus Mysticum, l’Eucharistie et l’Église au moyen âge, Paris 1949.

51 Cf. O. DIBELIUS, Das Jahrhundert der Kirche, p. 1926.52 Cf. P.C. BORI, Koinonia, p. 19.53 «Um processo de incalculável alcance se iniciou: o despertar da Igreja nas almas»

(R. GUARDINI, Il senso della Chiesa, Brescia 20072, p. 15). Esta afirmação, que viria a se tornar como uma divisa do movimento eclesiológico, foi pronunciada durante as Lições sobre a Igreja, na Universidade de Bonn, em 1921.

54 Cf. J. HAMER, «L’ecclesiologia oggi», Sapienza 17 (1964) p. 12-13.

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Efeito dos fatores de renovação da eclesiologia acima menciona-dos, o modo de se abordar as fontes da teologia da Igreja – a Escritura, os Pais e os grandes autores da escolástica – passou também por uma grande transformação.

Os elementos exegéticos que mais influíram sobre esta renovação foram: a compreensão do significado dos termos Ekklesía55 e koinonía56; os estudos sobre a eclesiologia paulina, especialmente sobre sua noção de corpo de Cristo57 e sobre o fundamento da noção de povo de Deus58; também o estudo do papel dos elementos estruturais e do ministério de Pedro na Igreja59, assim como a centralidade da Eucaristia para a compreensão da Igreja a partir de sua relação com Jesus Cristo e de seus fundamentos bíblicos60, e da forma de vida dos cristãos61. Também a temática do Reino de Deus se enriquece e sua relação com a Igreja se explicita em termos mais bem articulados, especialmente em estudos

55 Cf. K.L. SCHMIDT, «Die Kirche des Urchristentums», in Festgabe A. Deissmann, Tübingen 1927, 258-319; Id., «Ekklesia», GLNT, vol. 4, Brescia 1968, col. 1490-1580. Destaca-se a emergência da convicção a respeito da preexistência da Igreja univer-sal com respeito às Igreja particulares (cf. F. KATTENBUSCH, «Der Quellort der Kirchenidee», in Festgabe A. Harnack, Tübingen 1921, p. 143-172).

56 Cf. J.A. CAMPBELL, «The Communion of the Body», The Expositor 8/series 18 (1919) 121-130; Id., «Koinonia and its Cognates in the NT», Journal of Biblical Literature 51 (1932) p. 353-380; H. SEESEMANN, Der Begriff Koinonia im Neuen Testament, Giessen 1933.

57 Cf. E. MERSCH, Le Corps mystique du Christ. Etudes de théologie historique, 2 vol., Paris 1933-1936; S. TROMP, Corpus Christi quod est Ecclesia. Introductio generalis, Romae 1946.

58 É necessário recordar aqui a proposta de M.-D. Koster de substituir a noção de corpo místico pela de povo de Deus. Segundo ele, corpo místico tem ascendência excessi-vamente espiritualizante, não se prestando a uma definição da Igreja, que deve incluir aquilo que na Igreja é humanamente cognoscível. A noção de corpo se prestaria a isto se fosse entendida no sentido de sociedade eclesial (cf. M.-D. KOSTER, Ekklesiologie im Werden, Paderborn 1940, p. 15, 20, 110, 125).

59 Deve ser citado o influente estudo de L. HERTLING, «Communio und Primat. Kirche und Papsttum in der christlichen Antike», Miscellanea Historiae Pontificiae 7 (1943) p. 1-48; trad. italiana: Communio. Chiesa e Papato nell‘antichità cristiana, Roma 1961.

60 A literatura neste campo é imensa. Indicamos a respeito o estudo de B. FORTE, La Chiesa nell’eucaristia: per un’ecclesiologia eucaristica alla luce del Vaticano II. D’Auria, Napoli, 1975, com ampla bibliografia.

61 Sobre a forma de vida do cristianismo primitivo, cf.: H. CHIRAT, L’assemblée chrétienne à l’âge apostolique, Paris 1949; S.M. IGLESIAS, «Concepto biblico de koinonia», in XII Semana biblica Española, El movimiento ecumenista, Madrid 1953, p. 195-224. Estes dois temas continuarão a receber muita atenção nos anos sessenta do século XX (cf. J. RATZINGER, Die christliche Brüderlichkeit, München 1960; J. DUPONT, «La koinonia des premiers chrétiens dans les Actes des Apôtres», Nouvelle Revue Théologique 91 [1969] p. 897-915).

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sobre os Sinóticos. O papel do Espírito Santo se destaca a partir dos estudos sobre são João. A concordância profunda que há entre as noções de Reino, mistério, vida, é destacada62.

O retorno aos Pais mostrou a riqueza de conteúdo que tem a dou-trina da Igreja, que se exprime em várias imagens, sobretudo a de corpo místico, que é a prevalecente no período em questão63. Ela contribui para a solução de questões de modo mais satisfatório que a pura crítica textual da Escritura64. As pesquisas do início do século XX sobre os Pais revelaram a predominância entre eles do aspecto interior da Igreja65 e da relação entre a Igreja e a Eucaristia66, e destacaram também a importância da noção colegial dos ministérios eclesiais67.

A continuidade da temática patrística, com acentos particulares, em uma abordagem rica em espiritualidade, caracteriza os grandes autores da escolástica68, que são relidos à luz da Tradição69. Neles, a imagem da Igreja é concreta, viva e multifacetada70. Não se encontra entre suas obras um De Ecclesia. A razão é que, antes de ser objeto de estudo, a Igreja é a própria atmosfera geral em que respiram; não é uma pedra no

62 Cf. o detalhado documentário de S. JÁKI, Les tendences nouvelles, p. 156-170.63 Já o início da renovação eclesiológica se inspirou nos Pais. De sua teologia se obtém

o ambiente vital e o clima espiritual adequados e necessários para o conhecimento da realidade profunda da Igreja. O estudo de E. Mersch (Le Corps mystique du Christ) é um exemplo de síntese da tradição patrística em torno de um tema eclesiológico fundamental. Merecem especial menção os estudos de H. DE LUBAC, Corpus Mys-ticum. L’Eucharistie et l’Église au Moye-Âge, Paris 19492.

64 Cf. J. COLSON, L’évêque dans les communautés primitives. Tradition paulinienne et Tradition Johannique de l’Episcopat, des origines à saint Irénée, Paris 1951.

65 Cf. H. RAHNER, Symbole der Kirche, Salzburg 1964; J. RATZINGER, Popolo e casa di Dio in sant’Agostino.

66 Cf. H. de LUBAC, Corpus Mysticum, obra cuja totalidade se ocupa desta temática.67 Y. CONGAR – B.-D. DUPUY, ed., L’épiscopat et l’Église universelle, Paris 1962; J.

LECUYER, Études sur la collegialité épiscopale, Le Puy – Lyon 1964; G. D’ERCOLE, Communio – collegialità – primato e sollicitudo omnium ecclesiarum dai Vangeli a Costantino, Roma 1964; J. COLSON, L’épiscopat catholique. Collegialité et primauté dans les trois premiers siècles de L’Église, Paris 1963.

68 Cf. S. JÁKI, Les tendences nouvelles, p. 191-201.69 R. Aubert conclui que eles «não foram somente leitores de Aristóteles, mas foram

também religiosos que pensaram sua fé em uma atmosfera espiritual, à luz de uma tradição religiosa» («Les grandes tendences théologiques», 19). Y. Congar põe em guarda contra o preconceito a respeito dos autores medievais, pois, quando se co-nhece sua obra, se a descobre «proba, humilde, rigorosa, religiosa» (Id., Esquisses du mystère de l’Église, Paris 1942, p. 60).

70 Cf. H. DE LUBAC, «L’Église, corps mystique», in Id., Corpus Mysticum, p. 116-135.

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edifício teológico, é o plano arquitetônico71. A graça de Cristo, como vida sobrenatural, é o tema predominante na reflexão escolástica sobre a Igreja, cuja unidade é entendida a partir da Trindade e da encarnação72. “Para os escolásticos, a noção de corpo místico é situada antes de tudo no plano da vida e não no da instituição”73. O aspecto cristológico da Igreja é, para eles, ligado ao mistério da Eucaristia74. As espécies eucarísticas, sacramentum tantum, e o corpo eucarístico de Cristo, res sacramenti, são ordenados à unidade da Igreja, res tantum. Fala-se mesmo de estrutura sacramental da Igreja no pensamento escolástico75. O predomínio da razão dialética no período sucessivo faz emergir um caráter mais especulativo da teologia. Os estudos eclesiológicos começam a ser elaborados pela incipiente ciência canônica e vão identificando cada vez mais a noção de corpo místico de Cristo ao corpo social da Igreja, o que vai resultando em uma eclesiologia muito diferente daquela dos Pais76. A obra de H. de Lubac mostrou que o abandono da via simbólica, e a adoção da via puramente especulativa, gerou um empobrecimento da noção de Igreja, sendo de grande interesse integrar novamente esse modo de abordagem eclesiológica77.

4 As noções de Igreja predominantes

Propomos aqui uma releitura desse período da eclesiologia a partir das principais noções eclesiológicas: sociedade, corpo místico de Cristo, e povo de Deus, e as relacionamos com a eclesiologia conciliar.

A primeira delas é a de sociedade. Há dois modos de compreender esta noção: como sociedade perfeita, de que já se tratou na primeira parte deste estudo, e como corpo organizado, visível e histórico. O primeiro modo é aquele a que se opõe o movimento de renovação da eclesiologia.

71 Cf. J. RANFT, «La Tradition vivante: unité et développement», in P. CHAILLET, ed., L’Église est une, 102-126.

72 Cf. O. DOMINGUEZ, «La fe, fundamento del cuerpo mistico en la doctrina del Angé-lico», Ciencia Tomistica 76 (1949) p. 550-586.

73 S. JÁKI, Les tendences nouvelles, 194.74 Em geral, nos grandes escolásticos, a Igreja é entendida a partir da função de distri-

buição da graça, por uma primazia espiritual. É também característica sua estrutura sacramental (cf. A. PIOLANTI, Il corpo mistico e le sue relazioni con l’Eucaristia in S. Alberto Magno, Roma 1939).

75 Cf. A. PIOLANTI, Il corpo mistico, p. 98-99.76 Cf. H. DE LUBAC, Corpus Mysticum, p. 112.77 Cf. H. DE LUBAC, Corpus mysticum, p. 293.

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Sua ideia básica é a do primado da instituição visível e de sua estru-turação, considerando-se a Igreja essencialmente uma sociedade. O longuíssimo arco de tempo de sua vigência vai do final do século XI até a metade do século XX78, quando B.C. Butler sustentou que de acordo com os católicos romanos a Igreja é essencialmente só uma sociedade histórica, com leis próprias, com um corpo de dirigentes e membros que aceitam essa constituição e essas regras79. A instituição juridica-mente organizada é predominante nessa noção. Em geral se considera que esse enfoque atingiu seu apogeu na constituição dogmática sobre a Igreja preparada pelo Concílio Vaticano I. Nos esquemas preparados para o Vaticano II havia diversos sinais dessa eclesiologia. Tornaram-se clássicos os termos com que Mons. Emilio de Smedt a caracterizou: clericalismo, juridicismo e triunfalismo80. Segundo ele, é clerical, porque considera membros ativos da Igreja somente os ministros ordenados, e de modo piramidal pelo critério do poder hierárquico que desce do papa. Juridicista, porque tende a compreender a missão da Igreja a partir da jurisdição e a ela tudo reduzir quanto à sua compreensão. Triunfalista, porque age como um exército em ordem de batalha, sempre vitorioso. A. Dulles apresenta, como debilidades fundamentais dessa tendência, a falta de bases bíblicas, a acentuação unilateral de algumas virtudes (por exemplo, maximiza o papel da obediência), sua tendência a exagerar as tarefas da autoridade humana na Igreja81.

O segundo modo de compreensão da noção de sociedade é o que considera a Igreja do ponto de vista de sua organização, necessária à existência histórica concreta e ao cumprimento de sua missão82. Neste sentido, essa compreensão tem valores irrenunciáveis. No sentido que readquiriu na renovação eclesiológica, essa noção indica a forma da comunhão derivada da relação fundamental com Deus.

78 Cf. Y. CONGAR, «Peut’on définir l’Église?», p. 31.79 Cf. B.C. BUTLER, The Idea of the Church, Baltimore 1962 (cf. especialmente p.

39).80 Cf. Acta Synodalia, vol. 1/4, Città del Vaticano 1971, 142-144.81 Cf. A. DULLES, Models of the Church, New York 19912, 42.82 «Bem sabemos que a Igreja, como comunidade de vida divina, é realizada aqui em

baixo em condições homogêneas à natureza humana, ou seja: é uma sociedade una, de uma unidade de cidade […] porque sua realidade espiritual é encarnada, não há nela [a Igreja], aqui em baixo, “comunidade” que não seja “sociedade”» (Y. CONGAR, Chrétiens désunis, p. 93).

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A noção de sociedade e a categoria sociedade perfeita não estão ausentes dos documentos do Vaticano II. A noção de sociedade em sentido eclesiológico ocorre diversas vezes (cf. LG, 8, 14, 15, 20). Seu significado é a Igreja enquanto «estrutura visível e social» (cf. LG, 14), «grupo visível», «dotada de organismos hierárquicos» (cf. LG, 14, 20, 23). Ela se refere à «Igreja terrena», «estabelecida e estruturada neste mundo como uma sociedade» (cf. LG, 8). Neste sentido, ela se torna uma referência importante para a elaboração do direito eclesial83. Quanto à categoria “sociedade perfeita”, seu uso em textos do Concílio ocorre somente no sentido técnico de afirmar a autonomia relativamente a outras organizações, como a sociedade civil ou o Estado, no que ser refere aos meios necessários à consecução de sua finalidade (cf. GS, 42; DH, 13). Deve ser notado, portanto, que a noção eclesiológica de sociedade não é tomada como base fundamental da eclesiologia. Nem, muito menos, o é a categoria “sociedade perfeita”, mesmo considerando as importantes modificações de sentido com que o Concílio a emprega. Indicam, porém, dimensões importantes da vida eclesial.

A segunda noção é a de corpo de Cristo, cuja retomada contribuiu para a reposição da reflexão eclesiológica em bases claramente bíblicas e tradicionais. Contribuiu também para a superação de um enfoque em que o elemento jurídico e societário predominavam de modo quase ex-clusivo, englobando-os em uma compreensão mais completa. A união a Cristo como constitutiva do ser da Igreja, e a afirmação de seu caráter místico, embora esse adjetivo não seja de origem bíblica ou patrística84, são eficazes para a reação contra a dissociação entre a teologia da Igre-ja e seu enraizamento eucarístico85. O tema terá um desenvolvimento vertiginoso na reflexão teológica, especialmente a partir de 192086. Mas nem sempre a clareza cresce proporcionalmente. As interpretações vão

83 E. CORECCO, «Teologia del Diritto Canonico», Nuovo Dizionario di Teologia, Milano 1977, p. 1711-1753.

84 Sua origem é medieval e está ligada à disputa sobre a Eucaristia. «Em nenhum escritor da antiguidade cristã ou da alta Idade Média foi encontrada até hoje essa expressão para designar a Igreja» (H. DE LUBAC, Corpus Mysticum, p. 26).

85 Cf. J. HAMER, L’Église est une communion, p. 74.86 «Em 1920 começa um período de extraordinário crescimento. De 1920 a 1925, a

quantidade de literatura sobre a questão iguala a dos vinte anos precedentes. De 1925 a 1930, a produção é dobrada. Durante os cinco anos seguintes, temos que é quintuplicada com relação aos dez anos precedentes. O ápice da aceleração parece ter sido atingido em 1937, a partir de quando continua, mas em ritmo mais moderado» (F. MALMBERG, Een lichaam en een geest. Nieuwe gezichtspunkten in de ecclesiologie, Utrecht 1958, 19, apud J. HAMER, L’Église est une communion, p. 16). São desse

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desde uma defesa da teologia do corpo místico em termos de identidade real entre Cristo e o cristão, até à recusa do tema como pré-teológico87. Nesse contexto se insere a encíclica Mystici corporis, de Pio XII88, que procurou pôr termo às disputas e incertezas na discussão do tema. Ela própria, porém, gerou também novas discussões, as maiores sendo sua insistência na visibilidade e identificação com a Igreja de Roma e sua doutrina a respeito dos membros da Igreja89.

No esquema preparatório da Constituição dogmática sobre a Igreja, do Concílio Vaticano II, esta noção era predominante. Após as sucessivas modificações, foi mantida em um único longo número, LG 7, situado no primeiro capítulo, sobre o mistério da Igreja. Subdividido em duas partes, na primeira sobressaem as referências ao batismo e à eucaristia. Claramente se encontram aí as bases para a eclesiologia eucarística que é explicitada em LG 26. A segunda parte cita quatro vezes a Mystici corpo-ris, e trabalha a espinhosa questão dos membros da Igreja, que foi muito discutida do ponto de vista ecumênico depois da encíclica de Pio XII. Assim, prepara as bases para a discussão da relação entre os elementos visíveis e os elementos espirituais da Igreja e para o “subsistit in” que será apresentado em LG 8. Outra ocorrência da expressão se dá em OE 2. Em seu conjunto, o Concílio entende, com a noção de corpo de Cristo, trabalhar a dimensão cristológico-soteriológica da Igreja.90

Também a utilização da categoria povo de Deus para a compre-ensão da Igreja é redescoberta e revalorizada. Deve ser destacado o seu sentido histórico e escatológico91. Essa expressão bíblica manifesta o caráter histórico-salvífico da Igreja, sua relação com o povo da primeira Aliança, sua índole escatológica, sua natureza comunitária, a condição de igualdade fundamental quanto ao ser cristão de todos os batizados e sua comum responsabilidade. Reconhece-se seu papel central na concepção

período as duas importantes obras: E. MERSCH, Le corps mystique du Christ. Études de théologie historique, Paris – Bruxelles, 1933 e S. TROMP, Corpus Christi.

87 Destacam-se as confusões doutrinais geradas por enfoques inadequados dessa categoria e a proposta de que essa noção fosse substituída pela de povo de Deus (cf. J. HAMER, L’Église est une communion, p. 16-19).

88 Cf. Acta Apostolicae Sedis, 35 (1943) p. 193-248.89 Cf. S. PIÉ-NINOT, Eclesiología, p. 158.90 Cf. S. PIÉ-NINOT, Eclesiología, p. 160.91 Cf. J. RATZINGER, «L’ecclesiologia del Vaticano II», in Id., Iglesia, ecumenismo y

política, p. 20-21.

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paulina da Igreja, como foi já indicado. Foi utilizado pelos Pais92, entre os quais até se chegou a definir a Igreja por ele93. É também presente em documentos do magistério, como por exemplo, o catecismo do Concílio de Trento94 e na Liturgia, que com ele exprime o aspecto segundo o qual a Igreja, feita por homens, necessita da contínua ajuda divina95. A exe-gese, após atribuí-lo exclusivamente ao Israel do AT, reconhece a esta noção seu conteúdo eclesiológico96 e conhece a partir dela um grande desenvolvimento97. No início da sistematização eclesiológica a partir dessa categoria, a dimensão sacramental se tornou importante para ligar a realidade visível de povo à sua condição religiosa expressa pela espe-cificação «de Deus»98. Não se reconheceu a esta noção a capacidade de exprimir sozinha e por si mesma a natureza da Igreja99. Ligado à grande capacidade de explicitar a dimensão histórica da Igreja, esta noção en-contra seu maior risco na possibilidade de se limitar a ela e ao que a ela

92 Cf. Um importante estudo do tema é a tese doutoral de J. Ratzinger, de 1954 (Volk und Haus Gottes in Augustins Lehre von der Kirche). A conclusão é não ser ele um conceito objetivo da Igreja, mas «se torna conceito de Igreja só através de um processo de transposição espiritual […] em um procedimento tipológico. […]» (J. RATZINGER, «Presentazione all’edizione italiana», in Id., Popolo e casa di Dio in sant’Agostino, Milano 20052, XII).

93 «Que é a Igreja católica senão o povo consagrado a Deus e espalhado por toda a terra?» (FAUSTO DE RIEZ, Tract. de Symbolo, apud Y. CONGAR, «Peut’on définir l’Église?», p. 23.

94 «[A Igreja] é o povo fiel disperso pelo orbe terrestre» (Catecismo do Concílio de Trento, I, X, 2), que atribui a fórmula a Sto. Agostinho.

95 Cf. A. VONIER, Le Peuple de Dieu.96 A referência fundamental nesse campo é N.A. DAHL, Das Volks Gottes.97 «[Povo de Deus] tornou-se, em alguns anos, uma categoria de pensamento funda-

mental do catolicismo de língua francesa. “Povo de Deus” significa evidentemente uma multidão de pesssoas sobre a qual Deus reina. Assim os que fazem desta ideia o ponto de partida de seu De Ecclesia, e que até fazem dela sua definição da Igreja, a veem sob o signo de reino de Deus a ser realizado. […] como categoria eclesiológica, “Povo de Deus” presta os mesmos serviços que “sociedade”, tendo uma aura menos jurídica» (cf. Y. CONGAR, «Peut’on définir l’Église?», p. 24-25).

98 Um exemplo desse procedimento se encontra em M.-D. KOSTER, Ekklesiologie im Werden. Em sua proposta de elaborar uma eclesiologia científica a partir da categoria povo de Deus, utiliza a categoria sacramento para indicar a referencia mútua existente entre o exterior e o interior da Igreja. Assim ela encontra nos caracteres sacramentais seus fulcros organizacionais.

99 A. OEPEKE, Das neue Gottesvolk, Gütersloh 1950, discutindo a relação entre povo de Deus e corpo de Cristo, afirma que a noção de povo de Deus por muitos motivos conduz à noção de corpo de Cristo, mas o inverso não se dá. (cf. 25-26). Nessa fase, a conclusão de Y. Congar é que «Não se pode definir a Igreja do Novo Testamento como Povo de Deus senão acrescentando imediatamente “e Corpo de Cristo”» (Y. CONGAR, Sainte Église, p. 26).

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se refere, como as características políticas e ideológicas100. O aspecto da comunhão se destaca na pertença do povo a Deus por um vínculo de Aliança, que é a forma típica de comunhão entre Deus e os homens que a Escritura reconhece, e em sua afirmação de igual dignidade e responsa-bilidade de todos os batizados101. Esta tornou-se uma noção fundamental para a compreensão da eclesiologia do Concílio Vaticano II e do debate em torno de sua recepção eclesiológica. Já presente na constituição sobre a liturgia, particularmente no número 41, o debate sobre a LG confere centralidade a esta noção, que se torna a mais importante nos diversos outros documentos, influindo estruturalmente sobre eles. No schema belgicum, de Mons. G. Philips, que se apresentava como alternativa ao Schema De Ecclesia, dos quatro capítulos, o terceiro se intitulava «Sobre o povo de Deus, especialmente os leigos». Por sugestão do card. J.L. Suenens, feita no transcurso da terceira sessão, este capítulo não só foi refeito, mas passou a versar sobre o «povo de Deus», em segundo lugar, logo depois do «Mistério da Igreja» (cap. I), antes da «Hierarquia da Igreja» (cap. III) e dos «Leigos» (cap. IV)102.

De modo geral, se pode dizer que a revalorização da noção eclesio-lógica de comunhão como categoria privilegiada para significar a Igreja amadureceu lentamente no pensamento teológico durante o processo da

100 Cf. J. RATZINGER, «L’Ecclesiologia della costituzione “Lumen Gentium”», in R. FI-SICHELLA, ed., Il Concilio Vaticano II. Recezione e attualità alla luce del Giubileo, Milano 2000, 68-69, onde, citando N. Lohfink, fala de «fogo de artifício» em torno da expressão povo de Deus (cf. Ibid., 68); Id, «La eclesiología del Vaticano II», p. 6, 20-21. No prólogo de 1978 à reedição de sua tese doutoral, J. Ratzinger fala de «banalização» desse conceito na teologia pós-conciliar (Cf. J. RATZINGER, Popolo e casa di Dio in sant’Agostino, p. xv). Cf. Ainda, COMISSIONE TEOLOGICA INTERNAZIONALE, «Temi scelti d’ecclesiologia in occasione del XX aniversario della chiusura del concilio Vaticano II», in Id., Documenti, 1969-2004, p. 290.

101 A Comissão Teológica Internacional destaca essa valência da expressão da seguinte forma: «relativamente a outras, a expressão “povo de Deus” tinha a vantagem de me-lhor significar a realidade sacramental comum, condividida por todos os batizados, seja como dignidade na Igreja, seja como responsabilidade no mundo; ou seja, com uma mesma fórmula, evidenciam-se ao mesmo tempo a natureza comunitária e a dimensão histórica da Igreja» (CTI, «Temi scelti d’ecclesiologia in occasione del XX aniversario della chiusura del concilio Vaticano II», 3.1, in Id., Documenti, 1969-2004, p. 289).

102 «Não se tratava apenas de expor o que é comum a todos os membros da Igreja no nível da dignidade da existência cristã, anteriormente a toda distinção de função ou de estado de vida, o que é bom método; tratava-se de dar prioridade e primazia ao ser cristão, com suas responsabilidades de culto, de serviço e de testemunho, face à organização, seja de origem apostólica ou divina» (Y. CONGAR, Le Concile de Vatican II. Son Église peuple de Dieu et Corps du Christ, Paris 1984, p. 109).

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renovação da eclesiologia. É precisamente um de seus frutos103. Presente na Escritura, a noção de comunhão é testemunhada de modo diversificado e com ênfase diferenciada na Tradição viva da Igreja e ao longo da história da eclesiologia. Ela se expressa no estilo de vida dos cristãos e se concretiza em algumas instituições que a expressam privilegiadamente. Na teologia dos Pais ela é o contexto vivo. Permanece na teologia medieval do corpo místico e da congregatio fidelium. É eclipsada progressivamente com a gradual ascensão do modo predominantemente jurídico de compreender a Igreja e suas instituições, que se firmou na Idade Média. A compreensão apologética, societária, visibilista e centrada na hierarquia, por que se ca-racterizava a eclesiologia moderna, como que consagra este afastamento. Nesse longo percurso, como resposta aos desafios mais característicos, a comunhão brota das raízes mais genuínas da fé. Aggiornamento e ressour-cement são correspondentes. A antiga compreensão da comunhão dos cris-tãos como resultante da comunhão com Deus pela mediação sacramental da Igreja e de suas estruturas históricas para servir a essa comunhão, se encontra com uma forma de compreender a missão da Igreja a partir da resposta aos desafios que lhe vêm do mundo e da cultura, o que confere à noção de comunhão uma configuração pastoral. A tradição mais antiga da comunhão universal das Igrejas locais se encontra com uma forma de compreender a Igreja a partir de graus de pertença, o que dá à comunhão uma configuração ecumênica.

Dentro desse movimento de renovação, alguns autores utilizaram a categoria da comunhão como apta para exprimir a natureza ou a essência da Igreja104. Próximos à metade do século XX, a encontramos presente na obra de teólogos entre os mais representativos na metade do século XX como H. de Lubac105 e Y. Congar106. Como tema ela está presente ainda

103 «A eclesiologia não nasce por acaso dentro do debate conciliar, nem é fruto de uma improvisação teológica, mas se afirma lentamente como resultado da progressiva, labo-riosa e significativa renovação teológica […]» (E. SCOGNAMIGLIO, «L’Ecclesiologia di comunione nella teologia post-conciliare», Miscellanea Francescana 98 [1998] p. 726).

104 Cf. Y. M.-J. CONGAR, «Concept de communion», in Sainte Église, p. 37-44.105 Quando se trata das principais obras de eclesiologia do século XX na perspectiva da

comunhão, é comum serem citadas H. DE LUBAC, Catholicisme (Paris 1938) e Id., Méditations sur l’Église (Paris 1953).

106 Cf. Y. CONGAR, «Notes sur les mots “confession”, “Eglise”, et “communion”», Irénikon 23 (1950), p. 3-36.

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na obra do ecumenista M.-J. le Guillou107 e na investigação histórica de L. Hertling108.

Nesse período que precede imediatamente o Concílio Vaticano II, destaca-se, nesta linha, J. Hamer, cuja obra fundamental é publicada em setembro de 1962, mês imediatamente precedente ao da abertura do Concílio109. Nessa obra, a comunhão é proposta como categoria eclesio-lógica, como noção capaz de exprimir a Igreja de modo abrangente: sua natureza e as relações que nela são características; como expressão apta a significar seja os elementos interiores, seja os elementos exteriores, apresentados em uma perspectiva unitária. Ele assume a comunhão como característica fundamental de sua concepção de Igreja.

A continuidade da discussão eclesiológica, após o Concílio, re-conhece a unidade profunda existente entre as diversas noções110. Não se pode deixar de observar, porém, a significativa conflitividade que se dá no encontro delas, especialmente nas diferentes propostas a respeito de qual delas devia ser considerada prioritária em vista da compreensão global predominante da Igreja111. No Vaticano I, o confronto se deu entre as noções de sociedade e de corpo místico. Com o avanço da reflexão, embora nos manuais permanecesse predominante a noção de sociedade, na produção teológica do início do século XX em geral predominava a de corpo místico. Na década de quarenta desse século, já a noção de povo de Deus como categoria eclesiológica básica ia se fortalecendo. Em geral, isto se dava de modo sereno, mas o conflito não foi ausente112. Nesse

107 Este autor aprofundou a noção de comunhão em M.-J. LE GUILLOU, Mission et unité, les exigences de la communion, 2 vol., Paris 1960.

108 L. HERTLING, Communio und Primat. L. Hertling não faz um estudo sistemático de eclesiologia, mas da concepção de comunhão na Igreja Antiga.

109 J. HAMER, L’Église est une communion. Paris, 1962.110 Cf. J. HAMER, L’Église est une communion, p. 50, 66, 70.111 Entre as obras que tratam da questão da hermenêutica do Concílio Vaticano II, para

citar algumas mais representativas dentre a extensa bibliografia: G. ALBERIGO – J.P. JOSSUA, ed., Il Vaticano II e la Chiesa, Brescia 1985; R. LATOURELLE, ed., Vaticano II. Bilancio e prospettive venticinque anni dopo, Assisi 1987; G. ROUTHIER, Le Défi de la communion, une relecture de Vatican II, Montréal 1994; R. FISICHELLA, ed., Il concilio Vaticano II. Recezione e attualità alla luce del Giubileo, Milano 2000; A. MAR-CHETTO, Il concilio ecumenico Vaticano II. Contrapunto per la sua storia, Vaticano 2005; Ch. THÉOBALD, La réception du concile Vatican II, vol. I: Accéder à la source, Paris, Vaticano 2005.

112 K. PELZ, Der Christ als Christus, (manuscrito) 1939, em que chegava a identificar os cristãos com Cristo, que foi incluído no Index librorum prohibitorum (30.10.1940) (cf. Acta Apostolicae Sedis, 32 [1940] p. 502, e 33 [1940] p. 24); M. KASSIEPE, Irrwege und Umwege im Frömmigkeitsleben der Gegenwart, Kevelaer 1939, que denuncia

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contexto, o magistério assumiu corpo místico como definição da Igreja, na encíclica Mystici Corporis. A partir daí, a noção de povo de Deus co-meça a se fortalecer, e nos debates em aula conciliar, durante o Vaticano II, as alternativas que se apresentam se situam entre Corpo místico de Cristo e Povo de Deus. Mas já a noção de comunhão surgia com força, porém ainda pouco aprofundada, vai gozar de uma grande preferência nas discussões hermenêuticas sobre a eclesiologia do Concílio.

5 As contribuições mais relevantes do movimento de renovação eclesiológica para a eclesiologia do Concílio Vaticano II

Tomando em consideração apenas os temas mais destacados do movimento de renovação da eclesiologia, podemos indicar alguns dos seus importantes avanços que serão decisivos para a compreensão da eclesiologia conciliar.

Os estudos bíblicos salientam as dimensões vital e escatológica da Igreja. Os estudos patrísticos e escolásticos ajudam a enfocar de modo renovado os elementos visíveis da Igreja a partir de seu mistério, e so-bretudo a predominância do ofício de santificar da hierarquia para além de sua autoridade jurídica. Assim se atinge o aprofundamento espiritual e a ampliação comunitária, apanágios do movimento de renovação da eclesiologia.

O centro dos estudos eclesiológicos é ocupado pelo tema da nature-za da Igreja ou de sua essência113. Com tal preocupação se aprofunda seu aspecto cristológico. Uma maior clareza a respeito da relação entre Igreja e Espírito Santo114, sua alma, permite uma compreensão mais profunda das

erros em torno da noção de corpo de Cristo; M.D. Koster, que em conflito com esta noção propõe a de povo de Deus; e Mons. C. Gröber, que denuncia a situação de confusão doutrinal e apela a Roma (cf. E.D.C. LIALINE, «Une étappe en ecclésiolo-gie», Irénikon 19 [1946] p. 127).

113 Cf. S. JÁKI, Les tendences nouvelles, 205. F. Pilgram, dez anos antes do Vaticano I, colocou claramente a questão da natureza da Igreja e a indicou como sendo a comunhão: «[…] o princípio, ou, para usar uma expressão da escolástica, a forma substancial da Igreja é a comunhão» (F. PILGRAM, Physiologie de l’Église, p. 16).

114 Uma grande influência em vista do desenvolvimento pneumatológico na eclesiologia foi a encíclica «Divinum Illud» (09.05.1897), de Leão XIII. Ela situa o mistério da Igreja com relação às missões divinas e afirma ser o Espírito Santo o princípio vivificante da Igreja.

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funções hierárquicas e do lugar dos leigos na vida e na missão eclesial115. Esta consciência renovada se manifesta em uma nova compreensão do laicato e de sua pertença constitucional à Igreja, a partir do Batismo e da Crisma e de sua atuação organizada por meio da Ação Católica e da participação ativa na liturgia116. Afirma-se, assim, uma compreensão da Igreja como realidade viva, dinâmica e caracterizada por suas relações múltiplas. Deste modo se reage para superar o estilo da eclesiologia da sociedade perfeita, dirigindo os esforços no sentido da afirmação do pri-mado do mistério da Igreja e de sua relação com os elementos visíveis, que se fundamentam nos elementos espirituais. A renovação está, portanto, associada a valores comunitários na vida da Igreja.

Outra característica marcante que se evidencia na renovação eclesiológica é a unidade da Igreja. Ela se encontra na convergência dos elementos mistérico e comunitário. Trata-se de um modo diferente da-quele sob o qual o tema era entendido a partir da acentuação jurídica que recebia na perspectiva da sociedade perfeita. O equilíbrio gerado pelos dois elementos antes mencionados possibilita uma compreensão mais articulada da unidade. Fundamentalmente, ela é um dom, gerado pela presença do Espírito Santo em cada um e em todos os fiéis. Essa unidade se projeta para fora das estruturas eclesiais, como diálogo ecumênico e relação com os não cristãos. As outras notas da Igreja recebem também uma orientação nova. A catolicidade numérica é englobada e subordinada à catolicidade da fé e da resposta aos anseios humanos, que se encontra em Cristo. A santidade não é atributo de alguns ou de uma elite, mas vocação universal, enfocada a partir da paternidade de Deus, de modo a implicar o dever de se reformar continuamente. A apostolicidade não é uma qualidade da hierarquia somente, mas o modo como toda a Igreja, pelos apóstolos, professa a fé e participa da missão de Cristo.

O aspecto sacramental da Igreja é redescoberto. Em sua pesquisa, S. Jáki117 mostra que o grande inspirador dessa idéia é K. Adam, ao indi-car com precisão que a Igreja, sendo uma unidade interpessoal, em seu aspecto comunitário, sociológico, é como um sinal ou sacramento, que perpetua e torna eficazmente presente o mistério de Cristo. Nesse enfoque

115 A afirmação clara do sacerdócio comum dos fiéis e o da corresponsabilidade pelo cumprimento da missão da Igreja são consequências dessa renovada consciência.

116 Cf. ABBAYE DU MONT-CÉSAR, La participation active des fidèles au culte (travaux de la XVIe semaine liturgique belge de langue française), Louvain 1933.

117 A primeira edição, em 1885 é publicada por Palamé; a segunda, atualizada, é publicada em 1907, pela Maison de la Bonne Presse, de Paris.

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a reflexão sobre a hierarquia vai encontrando o justo lugar. Não é uma estrutura de poder, meramente sociológica. É um elemento essencial da Igreja, ligado a seu mistério, fundado no seu caráter pneumatológico. A partir daí se redescobre a consistência teológica da Igreja local, que, ao longo do segundo milênio não fora contemplada suficientemente. A obra pioneira de Dom A. Géa, L’Église et sa divine constitution, é celebrada pioneira, ao tratar do tema depois de mais de mil anos de silêncio118.

O problema da salvação dos não cristãos é pensado a partir da compreensão dos graus de pertença à Igreja, cuja mediação é necessária na salvação de todos, em vista do que muito contribui a noção de povo de Deus e o enfoque sacramental da Igreja119. Este modo de enfocar a questão não encontra muito apoio na noção de corpo de Cristo, enquanto a outra noção, a de povo de Deus, vai oferecer clarificações mais significativas, permitindo articular mais satisfatoriamente os elementos em questão120.

O aspecto escatológico é recuperado junto com a dimensão misté-rica. Trata-se da composição do equilíbrio da Igreja em suas dimensões terrestre e celeste. A noção de corpo de Cristo é tendente a um certo triun-falismo e a uma identificação com o corpo do Ressuscitado. O equilíbrio lhe vem da consideração da historicidade da Igreja e do caráter ainda inconcluso da realização das promessas, possibilitado pela noção de povo de Deus. Ao interior desse aspecto, surge um tema que será muito fecundo para a teologia, a relação entre Maria e a Igreja121.

Conclusão

Este grande período aqui estudado tem fases bastante diferen-tes entre si. Mas tem também, do ponto de vista da eclesiologia, um claro fio condutor: o compromisso com a renovação da Igreja e de sua abordagem teológica. Na grande variedade de ideias, dois movimentos são concomitantes: a ampliação da compreensão da Igreja e a melhor articulação de seus elementos. De variados modos, isto se percebe ao longo de todo o período.

118 S. JÁKI, Les tendences nouvelles, 203-259.119 Cf. A panorâmica geral que apresenta S. JÁKI: «Recherches systématiques sur

l’Église», in Id., Les tendences nouvelles, p. 203-259.120 Um exemplo da articulação possibilitada pela noção de Povo de Deus se encontra

no segundo capítulo da Lumen Gentium, números 13-16.121 Cf. Ch. JOURNET, «La Vierge est au coeur de l’Eglise», Nova et Vetera 25 (1950) p.

39-95.

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Os anseios mais profundos de renovação a que responde o percurso da eclesiologia nesse período são a superação da insistência prioritária na visibilidade da Igreja, na desigualdade entre seus membros, na sua com-preensão jurídica e no seu afastamento do mundo. A isso o movimento responde com a integração do aspecto místico da Igreja, da igualdade fundamental dos cristãos, da dimensão vivencial e da natureza pastoral da missão da Igreja. É o que se designa como ressourcement que, em profundidade, corresponde ao aggiornamento.

O movimento de ampliação vem inicialmente pela gradual re-cuperação da noção de corpo de Cristo. Ela responde à sensibilidade pelo elemento vital e comunitário. Insiste sobre a dimensão espiritual da Igreja e da ligação entre os fiéis. Quando se trata da questão de qual noção deva ser tomada como ponto de partida da compreensão da Igre-ja, seu encontro, e às vezes confronto, é com a noção de sociedade. Do Vaticano I à Mystici corporis o esforço da teologia e do magistério gira em torno da correta articulação dessas duas noções e dos elementos que elas respectivamente destacam.

Redescoberta em um contexto cultural diverso, a partir de uma nova situação em que a eclesiologia gozava já dos benefícios de estudos mais numerosos e profundos, pouco antes dessa Encíclica, a noção de povo de Deus é proposta, tanto na teologia católica quanto na protes-tante, como a que melhor responderia a este desafio, e com vantagens adicionais. A eclesiologia goza de uma síntese mais amadurecida entre os elementos espirituais e históricos. A articulação entre as categorias bíblicas de corpo de Cristo e de povo de Deus mostra-se mais capaz de fazer frente aos elementos jurídicos ainda muito preponderantes na noção eclesiológica de sociedade. O contexto eclesial valoriza mais a participação e a responsabilidade de todos os fiéis na vida e na missão da Igreja, ao que essa noção responde bem. Mas os estudos históricos e exegéticos revelam que ela precisa ser integrada com a noção de corpo de Cristo para exprimir a natureza da Igreja.

O aprofundamento dos estudos bíblicos e patrísticos, e a reflexão da teologia dogmática sobre os dados por eles obtidos, destacam cada vez mais a nota da unidade da Igreja, já muito salientada desde o início desse período. As noções de koinonia e communio, que caracterizam a compreensão da Igreja no NT e na teologia dos Pais, mostram cada vez mais sua capacidade de exprimir a natureza da Igreja e de articular

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coerentemente seus vários elementos. E ainda se mostram capazes de integrar muitos dos aspectos destacados por outras noções.

Essas noções importam sobretudo pela enorme quantidade de questões específicas que elas iluminam e permitem sistematizar. A re-lação entre a Igreja universal e a Igreja local; entre o ministério petrino e o ministério episcopal; a colegialidade episcopal e os órgãos em que se visibiliza o afeto colegial, como o sínodo dos bispos, as conferências episcopais, os conselhos diocesanos e paroquiais; as relações da Igreja com as outras Igrejas e comunidades cristãs, com o judaísmo e com as outras religiões, com o mundo e a cultura. Estas, para citar algumas entre as mais importantes, são aprofundadas em seu significado e propostas de modo renovado à vida eclesial em sua concretude.

Nada disso foi feito apenas durante o Concílio. Há uma história longa e pormenorizada de estudos e aprofundamentos. Os debates da aula conciliar refletem o percurso dessas ideias no movimento de re-novação da eclesiologia. A eclesiologia do Concílio Vaticano II recebe contribuições decisivas desses desenvolvimentos. Mas, por um lado, contribuirá de modo também decisivo: tirar as consequências teológicas e estruturais que as fontes da reflexão fornecem e colaborar para fixá-las na consciência eclesial. Situar o Concílio no movimento vivo das ideias que o precederam é decisivo para interpretar sua eclesiologia e, sobretudo, para prosseguir sua recepção e aplicação.

Endereço do Autor:SE/Sul – Quadra 801 – Conj. B

CEP 70200-014 Brasília, DF

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Encontros Teológicos nº 62Ano 27 / número 2 / 2012, p. 81-94.

Resumo: O artigo aborda dois dos aspectos da reforma litúrgica protagonizada pelo Concílio: 1) A liturgia como momento histórico da salvação, em cinco dimen-sões: 1. O conceito de história. 2. A história da salvação. 3. Liturgia, celebração da história da salvação. 4. Liturgia, celebração do mistério pascal. 5. A liturgia como ação ritual. 2) Liturgia, exercício do sacerdócio de Cristo, Cabeça e mem-bros, sob três aspectos: 1. O verdadeiro culto no Corpo de Cristo. 2. Do Corpo de Cristo ao Corpo de Cristo-Igreja. 3. O sacerdócio comum dos fiéis.O autor deseja colaborar para o aprofundamento do tema na esperança de que possamos vivenciar, na ação litúrgica, um inesquecível encontro com Deus-Trindade, no qual o ser humano entra na intimidade com as Pessoas divinas, segundo a ação particular que cada uma delas realiza na história da salvação.

Abstract: The article focuses on two aspects of the liturgical reform as proposed by the II Vatican Council; A. the Liturgy is considered as an historical event in the history of salvation, which lays stress on Five dimensions: 1º the concept of history; 2º the history of salvation; 3º Liturgy and the privileged moment which makes present Christ the Savior as the protagonist of the history of salvation; 4º Liturgy as the outstanding means by which the faithful can express in their lives the paschal mystery; 5º Liturgy as a ritual action by which the faithful derive the true Christian spirit. B. Liturgy is most important in order to manifest the priesthood of Christ as head of the faith-community in three aspects: 1. the true nature of the adoration rendered to the Body of Christ; 2. from the Body of Christ towards the Church as his Body; 3. the common priesthood of the laity. The author intents to undertake a careful investigation into the elements which are pertinent to an active participation of the Christian people in the Triune God so as to nurture a warm and living love for the divine Persons who are directly involved in a particularly effective way in the history of salvation.

A Liturgia no Concílio Vaticano IIValter Maurício Goedert*

* Pe. Valter M. Goedert é presbítero da Arquidiocese de Florianópolis, Doutor em Liturgia e professor na Faculdade Católica de Santa Catarina – FACASC. Diretor da Escola Diaconal da Arquidiocese desde 1982.

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A Liturgia no Concílio Vaticano II

Introdução

Celebrando os cinquenta anos do início do Concílio Vaticano II, a Igreja retoma, com novo ardor e com renovado entusiasmo, uma reflexão sistemática sobre os textos e os ensinamentos conciliares. Creio ser momento oportuno para redescobrir as riquezas ali contidas, mas, acima de tudo, oca-sião para aprofundar temas essenciais à vida da Igreja, por vezes abordados e transmitidos de modo inadequado, a partir de visão superficial, sem a devida profundidade. Tem-se a impressão de que, em muitos segmentos da vida da Igreja, a renovação desejada pelo Concílio se ateve ao exterior, ao epidérmico, e não incorporou a compreensão do verdadeiro Mistério da Igreja.

Sente-se, em vários setores da vida eclesial, de um lado, uma decepção difusa por não termos conseguido, como era de se desejar, renovação mais consistente, mais duradoura, mais efetiva. Por outro lado, vivemos momento de impasse. Houve avanços significativos, mas também fortes resistências ao novo momento eclesial, inaugurado pelo Concílio. Essas reações não só persistem em nossos dias, como são res-ponsáveis pelo processo de volta ao passado, de retorno à tradição do Concílio de Trento, gerando perplexidade e incertezas.

Os temas principais, abordados pelo Vaticano II, já haviam sido cuidadosamente preparados e aprofundados pelo Movimento Litúrgico na primeira metade do século XX e, em boa parte, assumidos pelo Papa Pio XII na Encíclica Mediator Dei, promulgada aos 20 de novembro de 1947. A temática foi retomada e amplamente examinada pelo Concílio na Constituição Sacrosanctum Concilium.

Concretamente, abordarei dois dos aspectos da reforma litúrgica protagonizada pelo Concílio:

I – A liturgia como momento histórico da salvação

Neste contexto, atenho-me a cinco dimensões: 1. O conceito de história. 2. A história da salvação. 3. Liturgia, celebração da história da salvação. 4. Liturgia, celebração do mistério pascal. 5. A liturgia como ação ritual.

II – Liturgia, exercício do sacerdócio de Cristo, Cabeça e membros

Proponho os seguintes pontos: 1. O verdadeiro culto no Corpo de Cristo. 2. Do Corpo de Cristo ao Corpo de Cristo-Igreja. 3. O sacerdócio comum dos fiéis.

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Desejo colaborar para o aprofundamento do tema na esperança de que possamos vivenciar, na ação litúrgica, um inesquecível encontro com Deus-Trindade, no qual o ser humano entra na intimidade com as Pessoas divinas, segundo a ação particular que cada uma delas realiza na história da salvação.1

I – A liturgia, momento histórico da salvação

1 O conceito de história

A história humana é o lugar e o meio da salvação, uma vez que nela Deus se revela e age. A história humana está repleta das maravilhas do Senhor. “Louvemos, todos, o nome do Senhor, porque só o seu nome é excelso. Sua majestade transcende a terra e o céu” (Sl 146,13). O ser humano acolhe a salvação não fora da história, mas na história. A sal-vação, portanto, não significa evasão da história, mas um modo peculiar de assumi-la. Nela dá-se a revelação de Deus.

Uma história simultaneamente linear, porque parte de um único ponto: Deus Criador; uma história unitária em que uma fase conduz necessariamente a outra; uma história marcada por forte dimensão es-catológica: todas as fases tendem para uma consumação, um fim único, num contínuo processo ontológico absolutamente necessário, e que tem como protagonistas Deus, os anjos, e os homens. As etapas que consti-tuem essa história sagrada coincidem com a história bíblica: o tempo das promessas, o tempo do cumprimento e da plenitude e o tempo da instauração definitiva do Reino de Deus.

2 A história da salvação

Em oposição ao evento mítico, encontra-se o acontecimento histórico. Jesus Cristo está no começo, no centro e no fim da história; nele se realiza e se modifica definitivamente a condição humana. Ele é “o desígnio salvador de Deus, o mistério oculto desde a eternidade em Deus, que tudo criou” (Ef 3,9). O mistério guardado em segredo durante séculos (Rm 16,25), a sabedoria misteriosa e secreta que Deus predes-tinou antes de existir o tempo (1Cor 2,7), manifestado aos seus santos

1 Cf. CHUPUNGCO, A. J. Nozione di Liturgia, in CHUPUNGCO, A. J. Scientia Liturgica, Vol. I, Piemme, 1998, p. 21.

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e aos gentios, Cristo, a esperança da glória (Cl 1,26-27). Ele realiza plenamente a vontade de Deus (Ef 1,9).

A revelação do mistério escondido em Deus através de uma suces-são de eventos salvíficos que, de modos e em tempos diferentes indicam sua realização já existente na eternidade de Deus, preparado no seio das nações pelo Espírito do Senhor, particularmente em Israel, encontra em Cristo plena realização (SC 6). “Sua humanidade, na unidade da pessoa do Verbo, foi o instrumento da nossa salvação. Pelo que, em Cristo, ocorreu a perfeita satisfação de nossa reconciliação e nos foi comunicada a plenitude do culto divino” (SC 5). Dessa forma, Deus foi plenamente glorificado e a humanidade foi inteiramente restaurada. Morrendo, Jesus destruiu nossa morte e, ressuscitando, recuperou nossa vida.

Por força dessa centralidade, Cristo é Deus que revela e o Deus revelado; revela o mistério e é o próprio mistério; é o caminho da reve-lação e a própria revelação; é causa e autor da revelação; o Deus que fala e o Deus do qual se fala; Cristo é a plenitude da revelação e a resposta perfeita que a humanidade dá à revelação. Nele culmina a revelação como ação, como economia, como mensagem e como encontro.2

Encontramos a realidade do mistério na cultura greco-romana. O mysterion determinava o culto prestado aos deuses, cujo reconhecimento era reservado aos que o praticavam. Eram regidos pela lei do arcano, do segredo. Na religião cristã o mistério designa a pessoa, a ação e a mensagem de Jesus Cristo. Deus, desde toda a eternidade, o constituiu Cabeça de toda a criatura. A história sagrada se divide em antes e depois de Cristo. Antes dele foi uma etapa de preparação; depois dele, uma continuidade de sua pessoa e missão, através da aliança Cristo-Igreja (Ef 5,32). Paulo faz referência ainda ao mistério do Evangelho (Ef 6,19), ao mistério da fé (1Tm 3,9), e ao mistério da piedade (1Tm 2,16). No tempo que transcorre entre a ascensão e a segunda vinda de Cristo, ele comunica seu mistério salvífico aos homens mediante sua Igreja.

3 Liturgia, celebração da história da salvação

Tanto na religião natural como na revelada existem sinais que estão em relação com momentos ou intervenções divinas na história humana. Além da intervenção divina, constituem elementos de diálogo entre Deus

2 Cf. LATOURELLE, R. Teologia da Revelação, São Paulo, Paulinas, 1972, pp. 483-485.

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e os seres humanos. O sinal manifesta não só o poder, mas também o amor salvífico de Deus. “Esse diálogo acontece, todavia, numa linha histórica no sentido de que os sinais não são produto de invenção, mas são ambientados no tempo e no espaço e têm determinadas características (temporalidade e espacialidade dos sinais); O sinal serve, por isso, para historicizar a intervenção divina.3

“Compreender que toda a história sagrada é mistério de Cristo, que nessa história anterior a ele tudo tende a ele, mais precisamente à sua morte e ressurreição, e que depois dele tudo dele deriva; compreender que depois de sua morte e ressurreição não se deve esperar nada de radicalmente novo, mas que se vai apenas reproduzir nas criaturas, até o final dos tempos, o mistério do Filho de Deus encarnado, morto e ressuscitado, contanto que essas participem e se saciem na sua ple-nitude; compreender tudo isto é essencial para adentrar no mundo da liturgia”.4

Por conseguinte, a afirmação solene do Concílio: “Realmente, em tão grandiosa obra, pela qual Deus é perfeitamente glorificado e os homens santificados, Cristo sempre associa a si a Igreja, sua Esposa diletíssima, que invoca seu Senhor e por Ele presta culto ao eterno Pai. Com razão, pois, a liturgia é tida como o exercício do múnus sacerdo-tal de Jesus Cristo, no qual, mediante sinais sensíveis, é significada e, de modo peculiar a cada sinal, realizada a santificação do homem; e é exercido o culto público integral pelo Corpo Místico de Cristo, Cabeça e membros” (SC 7).

A presença de Cristo na liturgia abre a reflexão teológica do número 07 do documento conciliar: “Cristo está sempre presente na sua Igreja, sobretudo nas ações litúrgicas”. Em seguida, descreve: na pessoa do ministro; na celebração eucarística; nos demais sacramentos; na palavra; no irmão, na Igreja reunida (SC 7). Todas estas presenças são reais, ainda que se aplique à Eucaristia o termo real por excelência.5 Entre a presença real de Jesus na Eucaristia e as outras presenças reais não existe diferença quando à presença de Cristo e à realidade dessa presença; existe diferença no que se refere ao modo como essas diversas presenças são reais.

3 Cf. MARSILI, S. Sinais do Mistério de Cristo, São Paulo, Paulinas, 2010, pp. 73-74.4 Cf. VAGAGGINI, C. O Sentido Teológico da Liturgia, São Paulo, Loyola, 2009, p. 36.5 Cf. Paulo VI, Mysterium Fidei, 41.

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A liturgia é, pois, toda orientada para a história da salvação, que é o mistério de Cristo em seus tempos, ritos e sinais. Cristo é o sinal-realidade; o Antigo Testamento, sinal profético; o tempo da Igreja, sinal da continuação efetiva do tempo de Cristo. “É um evento real, acontecido na história, mas é único: todos os outros eventos da história acontecem uma vez e depois passam, engolidos pelo passado. O mistério pascal de Cristo, ao contrário, não pode ficar somente no passado, já que, por sua morte, destruiu a morte, e tudo o que Cristo é, fez e sofreu por nós homens participa da eternidade divina e, por isso, abraça todos os tempos e neles se mantém presente. O evento da cruz e ressurreição permanece e atrai tudo para a vida” (CIC 1085).

4 Liturgia, celebração do mistério pascal

A redenção dos homens tem início no momento da encarnação do Verbo e se completa no momento da morte-ressurreição-ascensão. Este único e grande evento salvífico encontra-se no centro da história da salvação e, portanto, no coração da liturgia cristã. A Páscoa de Israel é prefiguração, anúncio, preparação e antecipação da Páscoa definitiva de Cristo e dos cristãos, celebrada na liturgia da Igreja, até que ele venha e faça novas todas as coisas (Ap 21,5). Em Cristo, a humanidade entrou verdadeiramente naquela libertação e salvação que Deus, desde toda a eternidade, pensava e queria para todos os homens. Não mais uma Páscoa de promessa, mas sua plena realização.6

Em Israel, o evento pascal transfere-se para o rito no contexto da Ceia pascal e dos sacrifícios no Templo. A Sacrosanctum Concilium, ao falar da realização do mistério pascal de Cristo, através de sinais sensíveis rituais, refere-se à liturgia: Cristo enviou os apóstolos a anunciarem a salvação através do anúncio da palavra, da fração do pão, da comunhão fraterna e da fidelidade aos ensinamentos dos apóstolos. A vivência sacra-mental constitui elemento central da liturgia. Os sacramentos de Cristo, celebrados pela Igreja, não são, portanto, ritos vazios. Pelo contrário: são sinais eficazes (palavras, gestos) da realidade pascal da verdadeira salvação operada por Cristo. “A realização desta salvação torna-se eficaz para os homens no momento em que Cristo será glorificado, isto é, no

6 Cf. MARSILI, S. Liturgia, Momento histórico da salvação, São Paulo, Paulinas, 1987, p. 118.

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momento, que por ser aquele último e conclusivo da complexa salvação pascal, por antonomásia e por excelência se denomina Páscoa”.7

O rito, porém, por si só, não abrange a totalidade do mistério de Cristo. “O rito, um dos elementos centrais da liturgia, não é tudo. Dentro ou através de uma ação litúrgica se encontra o mistério e a vida, por detrás do que aparece se encontra o ser, no significante ou formas externas se manifestam o conteúdo e o sentido interno”.8 É obra de Deus e do ho-mem. O âmbito mais significativo do encontro e do diálogo entre Deus e o homem, na comunidade e através da comunidade. A ação ritual não constitui somente o exercício de um direito ou dever; é uma experiência de comunhão, não só uma experiência pública ou privada; um tempo festivo que nos foi doado, não apenas um tempo livre ou dedicado ao trabalho; fonte e cume e não só uma função e um meio.9

Por detrás dessa eficácia dos sinais litúrgicos de instituição divina está especialmente a doutrina do opus operatum. As ações litúrgicas são ações de Cristo em sua Igreja. Segundo Odo Casel, na ação cúltica sacramental torna-se objetivamente presente não somente o efeito das ações histórico-salvíficas de Cristo, especialmente da paixão, ou seja, torna-se objetivamente presente não só a graça, mas também a mesma ação redentora, naquilo que tem de essencial, na sua substância.10 Em relação aos sinais litúrgicos de instituição humana, temos, sobretudo, o ex opere operantis ecclesiae, que está relacionado à dignidade moral, ao mérito e à santidade de vida de quem recebe esses ritos e de quem os preside.

5 A liturgia como ação ritual

A liturgia não se resume, pois, a um conjunto de ritos. É igualmente falso afirmar que a liturgia cristã, para ser autenticamente tal, deve ex-cluir qualquer forma de rito. O ritualismo, que dá valor exagerado ao rito ou que o torna vazio, este sim, deve ser excluído. O rito, em si, traduz aquela exigência natural do homem de servir-se de sinais, palavras e gestos para exprimir os próprios sentimentos e atitudes interiores, sob

7 Cf. Ibidem, p. 121.8 Cf. BOROBIO, D. Celebrar para viver, São Paulo, Loyola, 2009, p. 17.9 Cf. GRILLO, A. Liturgia, momento histórico da salvação na SC e nos demais docu-

mentos do Concílio, Exposição no Seminário Nacional de Liturgia, Itaici, SP, 2012.10 Cf. VAGAGGINI, C. Ibidem, p. 112.

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o plano da relação, tanto humana, quanto divina. Os sinais litúrgicos expressam, portanto, o relacionamento que o ser humano procura esta-belecer com Deus.

A relação existente entre Sagrada Escritura e liturgia faz entender que o rito assume outra conotação, própria da religião revelada e, em particular, do cristianismo, e que consiste no ser sinal daquela realidade especial e divina que é Cristo. Cristo, de fato, é o sinal dado por Deus (Jo 6,28). Em dependência desse sinal sacramental que é Cristo, é preciso entender, igualmente, os sinais rituais do Novo Testamento. São sinais objetivamente reais, no sentido de que atuam a mesma realidade do acontecimento que refletem.

Por esse motivo, a liturgia se distingue de qualquer outra forma de culto existente nas outras religiões naturais. Há uma presença da ação divina sob a forma ritual. A liturgia não é um culto qualquer, mas único, porque nela o culto realiza a sua verdadeira natureza. A liturgia cristã constitui um regime de sinais que, inserindo no mistério de Cristo cada um dos seres humanos, faz deles adoradores em espírito e verdade. A liturgia não é, antes de tudo, ação pela qual os homens se unem a Deus, mas é, em primeiro lugar, ação pela qual Deus, em Cristo, vem ao encontro dos homens.

II – Liturgia, exercício do sacerdócio de Cristo, Cabeça e membros

1 O verdadeiro culto no Corpo de Cristo

Ao expulsar os vendilhões do Templo, Jesus se apresenta como o verdadeiro Templo de Deus: em seu Corpo, morto e ressuscitado, se oferecerá o único e autêntico culto agradável ao Pai. A comunidade cristã primitiva, refletindo sobre o sinal do templo anunciado por Cristo (Jo 2,21), para a qual o Corpo de Jesus é o templo de Deus, adquirirá logo plena consciência de que Deus não pode habitar num templo feito por mãos humanas (At 7,48).

Os cristãos, pela sua união com Cristo, vivificado pelo Espírito (1Cor 15,45), tornaram-se, também eles, espírito no seu Corpo (1Cor 16-17); transformam-se, assim, em templo espiritual como o corpo hu-mano de Cristo. Edificados sobre Cristo, pedra angular rejeitada pelos

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construtores (Lc 20,17), os cristãos oferecem seus corpos como vítima viva, santa e agradável a Deus, como seu culto espiritual (1Pd 2,5).

“Cristo Senhor, Pontífice tomado dentre os homens (Hb 5,1-5), fez do novo povo um reino de sacerdotes para o Pai (Ap 1,6). Pois os batizados, pela regeneração e unção do Espírito Santo são consagrados como casa espiritual e sacerdócio santo, para que, por todas as obras do homem cristão, ofereçam sacrifícios espirituais e anunciem os poderes daquele que das trevas os chamou à sua admirável luz” (LG 10). Os fiéis são, pois, delegados ao culto da religião cristã. Participando do sa-crifício eucarístico, fonte e ápice de toda a vida cristã, oferecem a Deus a Vítima Divina e com ela a si mesmos (LG 11). Por isso, o Concílio insiste em que os fiéis participem das ações litúrgicas consciente, piedosa e ativamente, e aprendam a oferecer a si próprios oferecendo a hóstia imaculada (SC 48).

Liturgia é o culto da Igreja. A Encíclica Mediator Dei, de Pio XII, já definia a liturgia como ação sacerdotal de Cristo continuada pela Igreja, culto do Corpo Místico (MD 17). A Sacrosanctum Concilium afirma que “as ações litúrgicas não são ações privadas, mas celebrações da Igreja, que é o sacramento da unidade, isto é, o povo santo, unido e ordenado sob a orientação dos bispos” (SC 26). Essas ações pertencem a todo o Corpo da Igreja, manifestam-no e o afetam. Cabe à hierarquia coordenar, animar, promover e orientar a ação litúrgica como agente par-ticular dessa mesma ação. A liturgia, pela qual “se exerce a obra da nossa redenção, constitui o modo mais excelente para que os fiéis exprimam em suas vidas e aos outros manifestem o mistério de Cristo e a genuína natureza da verdadeira Igreja” (SC 2). Os fiéis, no entanto, ainda não são considerados sujeitos da liturgia. Não está ainda suficientemente clara a noção de Sacerdócio dos Fiéis e o próprio conceito é ainda prevalente-mente exterior. Ou seja: a liturgia manifesta sua realidade, seu valor, pelo fato de ser ação do sacerdócio hierárquico externo e visível e não pelo fato de ser ação dos fiéis, membros de Cristo Sacerdote. Por conseguinte, a liturgia é ainda dominada excessivamente pelo aspecto ritual exterior e é vista quase que exclusivamente como ação da hierarquia.

2 Do Corpo de Cristo ao Corpo de Cristo-Igreja

Cristo institui a sua Igreja (Mt 16,18). Edificada com pedras vivas, é estabelecida como um sacerdócio santo para oferecer vítimas espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo, e sobre ele se constrói

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(1Pd 2,5). A Igreja é uma comunidade não só em nível sociológico, mas, sobretudo, cultual. Em Cristo, o povo de Deus do Novo Testamento é constituído uma raça escolhida, um sacerdócio régio, uma nação santa, um povo adquirido para Deus (1Pd 2, 9).

“A Igreja, pois, ainda que no seu conteúdo real se identifique com o povo de Deus, contudo vem a indicar, de maneira direta, o momento cultual dele, ou seja, a Igreja existe no tempo e no lugar em que o povo de Deus responde à chamada, que o reúne de fato e em concreto em torno de Deus (culto). Enfim, a Igreja é a projeção teológico-cultual do povo de Deus, considerado como reino de sacerdotes (Ex 19,6), como sacerdotes de Deus (Is 61,6), isto é, como povo destinado ao culto de Deus até ser essencialmente por isso qualificado”.11

A Encíclica Mediator Dei define a liturgia como adoração pública que o nosso Redentor, como Cabeça da Igreja, oferece ao Pai; como a adoração que a comunidade dos fiéis rende ao seu Fundador e, através dele, ao Pai Celeste. Portanto, uma adoração prestada pelo Corpo Místico de Cristo, Cabeça e membros (n.17). A Constituição Conciliar insere elementos mais precisos; inclui o conceito fundamental da pre-sença de Cristo no Sacrifício da Missa, nos sacramentos, na palavra e no ofício divino: “Presente está pela sua força nos sacramentos, de tal forma que, quando alguém batiza, é Cristo mesmo que batiza. Presente está pela sua palavra, pois é ele mesmo que fala, quando se leem as Sagradas Escrituras na igreja. Está presente finalmente, quando a Igreja ora e salmodia”. A finalidade última da liturgia é a perfeita glorificação de Deus e a santificação daqueles que a celebram (SC 7).

Por outro lado, tornar-se Corpo de Cristo não deve ser entendido unicamente em nível moral. O ser humano foi criado à imagem de Cristo (Cl 1,15) e, por isso, somente pode realizar-se em Cristo (Ef 1,25; 4,15). Isso acontece exatamente através do processo sacramental, particularmen-te pela participação na Eucaristia. Pelo sacramento do pão eucarístico, ao mesmo tempo é representada e se realiza a unidade dos fiéis que constituem um só corpo em Cristo (1Cor 10,17). A Igreja faz-se Corpo de Cristo, porque se une à oferta sacramental do Senhor. O Batismo nos insere no Corpo de Cristo e a Eucaristia nos identifica com esse mesmo Corpo. Afirma o Papa João Paulo II: “A incorporação em Cristo, reali-zada pelo Batismo, renova-se e consolida-se continuamente através da

11 Cf. MARSILI, S. Ibidem, pp. 134-135.

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participação no sacrifício eucarístico, sobretudo na sua forma plena que é a comunhão sacramental. Podemos dizer não só que cada um de nós recebe Cristo, mas também que Cristo recebe cada um de nós”.12

A liturgia é ação do Cristo todo (Christus totus). A Igreja celeste não cessa de clamar dia e noite: “Santo, Santo, Santo, é o Senhor, Deus Todo-poderoso, Aquele-que-era, Aquele-que-é e Aquele-que-vem” (Ap 4,8). A multidão dos salvos o adoram ao redor do trono (Ap 7,11). Os eleitos cantam um cântico novo (Ap 14,3). Na liturgia terrena, antego-zando, participamos da liturgia celeste, que se celebra na cidade santa de Jerusalém, para a qual peregrinamos (SC 8).

A Igreja é, de fato, o momento em que acontece a assembleia cristã, e isso ocorre precisamente na assembleia da Igreja local. A Igreja se define, portanto, como comunidade litúrgica, antes de tudo ao nível local (IGMR 59; 74). A Igreja local realiza o evento da Igreja universal. A celebração eucarística tem como caráter essencial o fato de ser deter-minada localmente, não podendo ser realizada senão em uma comunidade reunida em um lugar determinado. A Igreja é destinada, por sua própria natureza, a concretizar-se e a atuar-se em um lugar determinado. Sendo a Eucaristia uma celebração local, ela não só acontece na Igreja, mas a própria Igreja se torna um corpo visível, no sentido mais pleno do termo, somente na celebração local do sacrifício.

3 O sacerdócio comum dos fiéis

Em relação ao sacerdócio comum dos fiéis, a Encíclica Mediator Dei deu um passo importante, embora ainda inicial: “É necessário, pois, veneráveis irmãos, que todos os fiéis tenham por seu principal dever e suma dignidade participar do santo sacrifício eucarístico, não com assistência passiva, negligente e distraída, mas com tal empenho e fervor que os ponha em contato íntimo com o sumo sacerdote, como diz o Apóstolo: ‘Tende em vós os mesmos sentimentos que Jesus Cristo experimentou’ (Fl 2,5), oferecendo com ele e por ele, santificando-se com ele” (MD 73). Tudo isso consta da fé verdadeira; mas deve-se, além disso, afirmar que também os fiéis oferecem a vítima divina, sob um aspecto diverso (MD 77).

Ao estabelecer a relação entre o sacerdócio comum e o ministerial, a Encíclica enfatiza: “Dessa oblação propriamente dita os fiéis participam

12 Cf. JOÃO PAULO II, Ecclesia De Eucharistia, 22.

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do modo que lhes é possível e por um duplo motivo: porque oferecem o sacrifício não somente pelas mãos do sacerdote, mas, de certo modo ainda, junto com ele; e ainda porque, com essa participação, também a oferta feita pelo povo pertence ao culto litúrgico. Que os fiéis oferecem o sacrifício, por meio do sacerdote, é claro, pois o ministro do altar age na pessoa de Cristo enquanto Cabeça, que oferece em nome de todos os membros; pelo que, em bom direito, se diz que toda a Igreja, por meio de Cristo, realiza a oblação da vítima” (MD 83).

O Concílio Vaticano II aborda o tema com maior abrangência. O povo cristão, enquanto sacerdócio régio, indica o direito e o dever de participar da liturgia em virtude do Batismo (SC 14). Toda a Igreja cons-titui uma comunidade sacerdotal, porque todos os discípulos de Cristo, estabelecidos como o povo de Deus, foram constituídos sacerdotes (LG 3). Os cristãos formam um sacerdócio régio, enquanto participam da missão à qual Jesus foi consagrado (ungido) pelo Espírito Santo na sua humanidade (PO 2).

O sacerdócio está, pois, presente em cada um dos fiéis cristãos em virtude de sua inserção em Cristo pelo Batismo. Contudo, se lhes aplica o título de povo sacerdotal e de comunidade sacerdotal somente quando estão formados e realizados como povo sacerdotal, em virtude do dinamismo litúrgico, por aquele que, como cabeça sacerdotal (ministro ordenado), preside essa comunidade sacerdotal.

Trata-se de um sacerdócio comum, universal, de todos os cristãos (os cristãos leigos, os religiosos e o clero). Todos formam o único povo de Deus. O sacerdócio comum e o ministerial ordenam-se um ao outro, embora se diferenciem não apenas por grau, mas por natureza (LG 10). Essa diferença essencial provém do sacramento da Ordem e de seu cará-ter. Por isso, afirma-se que o ministro ordenado age in persona Christi e não in persona fidelium. O ministério ordenado não substitui o sacerdócio dos fiéis, mas o preside ministerialmente na celebração eucarística.

O sacrifício dos cristãos consiste em se tornarem um só corpo em Cristo. Este é o ato de culto que cada cristão, consagrado pelo Batismo, oferece continuamente a Deus com a santidade de vida. Este ato de culto plenifica-se na liturgia sacramental, particularmente na Eucaris-tia. “Os fiéis, na missa, em virtude do seu caráter batismal, oferecem um sacrifício em regime cristão, e assim exercitam um sacerdócio em regime cristão que, com respeito aos conceitos acima definidos, é tal não equivocamente, nem só metaforicamente, mas realmente. Isso consiste

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Valter Maurício Goedert

propriamente no fato de que oferecem como seu próprio sacrifício, in-cluindo, portanto, aí a oferta de si mesmos até a destruição da própria vida, se assim aprouver a Deus, o sacrifício que Cristo oferece por meio do sacerdócio hierárquico”.13

Visando a essa melhor participação, a Introdução Geral sobre o Missal Romano indica vários meios: o sacerdócio régio dos fiéis, cujo sa-crifício espiritual atinge plena realização pelo ministério dos presbíteros, em união com o sacrifício de Cristo, único Mediador (n. 5); a comunhão sob duas espécies como oportunidade para se compreender melhor o mistério de que os fiéis participam (n. 14); a aproximação dos fiéis da sagrada liturgia (n. 15). Visando a essa participação plena, é necessário investir na formação e na educação dos fiéis.

Conclusão

Como se pode constatar, a reforma litúrgica desejada e promovida pelo Concílio não se ateve a uma mudança de ritos, de cerimônias, ainda que essas devessem concorrer para uma participação consciente, piedosa (SC 48). Além de verdadeira inculturação, a Constituição teve como objetivo aproximar os fiéis da celebração, fazendo com que a liturgia fosse, de fato, fonte e cume de toda a vida cristã (SC 10).

Educar, pois, para a participação plena da celebração da comuni-dade eclesial é tarefa permanente da pastoral litúrgica. Também não é suficiente propor uma série de conteúdos teológico-litúrgicos, embora isso seja necessário. É preciso cultivar autêntica espiritualidade litúrgica. A celebração viva e genuína da ação litúrgica conduz à plena realização da vida espiritual. Aí reside o ápice, a fonte, o contato mais profundo com o Senhor Jesus. Quanto mais transformador for esse encontro, mais a presença de Jesus será percebida nos demais atos de piedade, no em-penho pela evangelização libertadora, no compromisso transformante da sociedade, no discipulado e na ação missionária da Igreja, e nas diversas atividades da vida diária. Na medida em que o cristão se saciar dessa fonte (Jo 7,37-38), ele mesmo irá se identificando com Cristo, porque estará bebendo de seu Espírito (Jo 7,39).

Celebrando o Mistério de Cristo, a liturgia torna presente a ação de Deus em todos os povos, lugares e tempos (Ef 1,3-14). O fundamento

13 Cf. VAGAGGINI, C., Ibidem, p. 152.

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A Liturgia no Concílio Vaticano II

objetivo de toda a vida espiritual está na celebração, no memorial real, na atualização, na representação do Mistério de Jesus Cristo em sua morte e ressurreição, em vista da edificação da Igreja, para a santificação dos fiéis e de todo o povo de Deus.

A espiritualidade litúrgica se alimenta da celebração, mas não termina com ela. Não se pode falar em espiritualidade se não se faz a água viva chegar às diversas circunstâncias da vida diária, às diferentes atividades, aos mais variados ambientes, lugares e situações, e a todas as pessoas. Não se trata de atitude intimista, de espiritualismo indefinido, inócuo. A espiritualidade que não impulsiona para a vida, para a ação, para o compromisso libertador e integral do ser humano, da sociedade e do mundo secular, não é coerente e se esvazia em si mesma.

A celebração viva e genuína da ação litúrgica conduz à plena realização da vida espiritual. É preciso encontrar o Senhor, conviver com Ele, e tornar-se seu discípulo. Na estrada de Emaús, os discípulos sentiram a força arrebatadora do Senhor ressuscitado. Somente Aquele que tem palavras de vida eterna (Jo 6,68) é capaz de retomar a vida dos discípulos desiludidos e de impulsioná-los para uma missão tão gigan-tesca quanto a fé que os animava. Ele mesmo irá à sua frente abrindo os caminhos da evangelização na força do Seu Espírito (Jo 7,39).

Endereço do Autor:Faculdade Católica de Santa Catarina – Facasc – Itesc

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Encontros Teológicos nº 62Ano 27 / número 2 / 2012, p. 95-106.

Resumo: Depois de lembrar que a Dei Verbum foi recentemente comentada pela Exortação Apostólica póssinodal Verbum Domini, de Bento XVI, o autor de-senvolve seu tema em cinco pontos: 1. A qualificação dogmática da Constituição Dei Verbum; 2. A relação entre Bíblia e Teologia; 3. A verdade da Escritura, ou seja, sua “inerrância”; 4. A interpretação da Bíblia “no Espírito”; 5. A possibili-dade de alargamento da Dei Verbum no Nostra Aetate e sua conseqüência no diálogo interreligioso.

Abstract: After remembering that Dei Verbum was recently commentated by the post-synodal Apostolic Exhortation Verbum Domini, the author unfolds his subject in five points: 1. The dogmatic qualification of Dei Verbum; 2. The mutual relation between Bible and Theology; 3. The truth of the Sacred Scripture, or the question of its “inerrancy”; 4. The interpretation ob the Bible “in the Spirit”; 5. The possibility of enlargement of Dei Verbum in Nostra Aetate and its consequences for the interreligious dialogue.

A Palavra de Deus no Vaticano IINey Brasil Pereira*

* O autor, presbítero da arquidiocese de Florianópolis, é Mestre em Ciências Bíblicas e professor no ITESC desde 1973. Também, desde 2001, é membro da Pontifícia Comissão Bíblica.

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A Palavra de Deus no Vaticano II

Introdução

Começo, citando a perspicaz observação de Johan Konings, em artigo recente1: “A Exortação pós-sinodal Verbum Domini, do papa Bento XVI, parece uma “releitura” da Dei Verbum do Vaticano II, pois é fruto de um sínodo pós-conciliar, convocado para ver a “recepção” e efeito do Concílio e para aprofundar a sua interpretação no novo contexto que se criou. Como o Concílio quis dialogar com a Modernidade, o pós-Concílio tem de dialogar com a Pós-Modernidade. Continua Konings: “Um dos acentos do sínodo de 2008 e da Verbum Domini é a dimensão hermenêutica da leitura bíblica (VD 57-97). A Dei Verbum do concílio Vaticano II, embora mencionando essa dimensão (DV 12-13), considerou sobretudo o estudo histórico-crítico da Bíblia (na linha, aliás, da Divino Afflante Spiritu, de Pio XII, que lhe abrira o caminho vinte anos antes). Já o sínodo de 2008 e a Verbum Domini, no contexto da proliferação do ceticismo por um lado e do fundamentalismo por outro, insistem mais no sentido aberto do texto bíblico, que chamaremos de ‘sentido hermenêutico’: ‘Que é que a Bíblia me/nos diz? Qual a mensagem que apresenta hoje?’”2.

Focalizando agora o título deste artigo, “A Palavra de Deus no Vaticano II”, advirto que não é minha atenção entendê-lo de forma abran-gente, p. ex., abordando o uso dos textos bíblicos nas quatro Constituições Dogmáticas, nos nove Decretos e nas três Declarações, que totalizam os 16 documentos do Concílio. Nada, portanto, de estatística dos textos ou de avaliação da argumentação bíblica dos Padres Conciliares. Vou, de fato, cingir-me a algumas reflexões sobre a própria “Dei Verbum”, aproveitando um estudo do meu venerado professor de Escritos Joaninos no Pontífício Instituto Bíblico, o Pe. Ignace De la Potterie SJ, na obra coletiva “Exegese Cristã Hoje”, publicada na Itália em 19913, portanto, 20 anos atrás, mas relativamente atual. Digo “relativamente”, porque, em nossa época frenética, 20 anos é bastante tempo. Título do estudo: “O Concílio Vaticano II e a Bíblia”4. O autor adverte que sua intenção é

1 KONINGS, J., “A Verbum Domini e a hermenêutica bíblica”, in “Encontros Teológicos”, ITESC, Florianópolis, n. 59 (2-11/2), pp. 27-42.

2 Id. Ibid., p. 28.3 VV.AA. “L’Esegesi Cristiana oggi”, Ed. Piemme, Casale Monferrato, 1991, traduzida

em português com o título “Exegese Cristã Hoje”, ed. Vozes, Petrópolis, 1996, 326 p. Nessa obra, DE LA POTTERIE contribui com dois estudos: “O Concílio Vaticano e a Bíblia” (pp. 23-52), e “A Exegese Bíblica – ciência da fé” (pp. 141-187).

4 Edição brasileira cit., pp. 23-52.

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sobretudo “precisar quanto a DV contém de verdadeiramente novo em relação aos documentos precedentes do Magistério sobre a Escritura5”, especialmente em relação à libertadora encíclica de Pio XII, a Divino Afflante Spiritu, de 1943. A propósito, citando o teólogo italiano Dianich, De La Potterie se afirma “convicto de que, definitivamente, o coração do Concílio está nisto: abordou diretamente o problema da interpreta-ção da fé... isto é, recolocou em movimento o processo da exigência hermenêutica.”6 Quer dizer, a questão não é mais saber se é legítimo para os católicos fazer uso da exegese científica (foi a luta dos anos 40), e sim, como fazer para que a exegese científica, na teologia, não deixe de ser também teológica, isto é, uma ciência da fé. O problema de fundo é o da interpretação, da hermenêutica, do significado da Escritura para o homem e a mulher de hoje, para os crentes, para a Igreja. Essa insistência na ligação entre Escritura e Igreja é, segundo De La Potterie, o “valor principal” da Dei Verbum.

1 Uma constituição dogmática

Vejamos, pois, a Dei Verbum. Nesse documento conciliar, a Bíblia não é tratada por si mesma, mas está inserida num contexto diretamente teológico e doutrinal: o da revelação divina. O próprio título, extraído do início da primeira frase do documento, não indica diretamente a Pa-lavra de Deus escrita, mas a divina Revelação, manifestada e plenificada em Cristo. Assim, após um primeiro capítulo sobre a Revelação, e um segundo sobre a sua transmissão, por meio da Tradição e da Escritura, a Constituição começa a falar da Bíblia nos quatro capítulos seguintes, mas agora numa perspectiva mais ampla, a da história da salvação7. Pelo contrário, nas três grandes encíclicas bíblicas precedentes, desde a Providentíssimus, de Leão XIII (1893), até a Divino Afflante, de Pio XII (1943), a Bíblia era considerada em si mesma, ou ainda na sua relação dialética com os erros da época.

Assim, na Providentissimus, Leão XIII dedicava apenas poucas frases, na introdução, ao tema da revelação (EB 81), mas indicava des-de o início seu objetivo preciso, o de recomendar o estudo da Sagrada Escritura sobretudo diante do perigo maior na época, o racionalismo

5 DE LA POTTERIE, ibid., p. 24.6 Id., ibid., p. 25.7 Id., ibid., p. 27.

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A Palavra de Deus no Vaticano II

(EB 100); a tonalidade do conjunto era de tom apologético. A Spiritus Paráclitus, de Bento XV, 1920, no 15º centenário da morte de São Je-rônimo, foi uma encíclica de caráter mais pastoral, porém mantinha a orientação apologética e polêmica com respeito à posição daqueles que desejavam, de qualquer modo, limitar a inerrância bíblica (EB 453-455). Esse problema retornou no Vaticano II, sobretudo no início, levantando ásperas discussões. A Divino Afflante, de Pio XII, 1943, é uma encíclica “audaciosa”, pelo fato de que não apenas permite, mas oficialmente prescreve aos exegetas católicos utilizarem os métodos críticos no es-tudo da Bíblia, especialmente distinguindo os gêneros literários, além de os advertir contra “a interpretação que alguns denominam espiritual e mística” (EB 552), advertência que retornou na Humani Generis, de 1950 (DS 3888). Essa advertência, aliás, parece estranha hoje, quando se pensa na revalorização da exegese dos Pais da Igreja pelos estudos, p.ex. de De Lubac e Daniélou, mas na época suscitou controvérsias em relação aos “sentidos” da Escritura. Ainda quanto à Divino Afflante, De la Potterie observa que, “salvo o título, a Encíclica praticamente não fala do Espírito Santo e do que implica a inspiração para a interpretação da Bíblia”8. Não se encontra ainda aquele amplo horizonte teológico que deveria abrir-se com o Vaticano II, um Concílio que não quis mais enfrentar os erros do tempo, mas que procurou apresentar positivamente a fé católica, na ótica da história da salvação.

Outra diferença entre a Dei Verbum e os documentos precedentes está na maneira nova de considerar as relações entre Magistério e Es-critura. Anteriormente, o Magistério apresentava-se como guia e juiz, de certo modo absoluto, em matéria de interpretação da Bíblia, como o demonstram, p. ex., as intervenções da Pontifícia Comissão Bíblica, criada por Leão XIII quase no final do seu pontificado, em 1902. A Dei Verbum mantém esse ensinamento, evidentemente, mas com outro espírito. Reconhece, p.ex., no final do n. 12, o “dever dos exegetas de esforçar-se para expor com maior aprofundamento o sentido da Sagrada Escritura, a fim de que, por seu trabalho como que preparatório – note-se essa expressão – amadureça o julgamento da Igreja. Pois todas estas coisas que concernem à maneira de interpretar a Escritura, estão sujeitas em última instância ao juízo da Igreja, que exerce o divino mandato e ministério de guardar e interpretar a palavra de Deus.” Notar, ainda, sobre o Magistério, o que se diz no n. 10: “Tal Magistério evidentemente não

8 Id., ibid. p. 29.

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está acima da Palavra de Deus mas a seu serviço, não ensinando senão o que foi transmitido, oralmente ou por escrito.” No final desse mesmo n. 10, fala-se do “tripé” sobre o qual se apóia a fé da Igreja: “Segundo o sapientíssimo plano divino, a Sagrada Tradição, a Sagrada Escritura e o Magistério da Igreja estão de tal maneira entrelaçados e unidos, que um não tem consistência sem os outros e que, juntos, cada qual a seu modo, sob a ação do mesmo Espírito Santo, contribuem eficazmente para a salvação”.

2 Bíblia e Teologia

Do último capítulo da Dei Verbum, o cap. VI, escreveu Lohfink que “é o capítulo mais importante e transcendental para o futuro”9. Nes-se capitulo, o n. 24 utiliza três imagens para expressar a relação entre a Palavra de Deus, escrita e oral, e a Teologia: a Palavra deve ser o “fun-damento”, a “força perene de renovação” e, enfim, como que “a alma” da Teologia. A imagem do “fundamento” vem, naturalmente, de São Paulo, que, na primeira carta aos Coríntios, identifica esse “fundamento” com o próprio Cristo (1Cor 3,10-11), chave e síntese de toda a Escritura. Esse princípio, comenta De la Potterie, “opõe-se a certo tipo de dogmatismo pós-tridentino, que se havia afastado muito do texto bíblico”10. Quanto à “força de renovação” que é a Escritura em relação à Teologia, a imagem bíblica que ocorre é a da “água viva”, água corrente, segundo Jo 4,10-14. A propósito, Clemente Alexandrino, falando da vida dos filhos de Deus, diz que ela permanece sempre jovem exatamente por causa da água viva da Verdade11, cuja fonte se encontra na Escritura e, concretamente, no próprio Cristo, de cujo seio vão jorrar rios de água viva (cf Jo 7,38).

Quanto à expressão, de certo modo revolucionária, do estudo da Escritura como a “alma da Teologia”, nós já a encontramos na Provi-dentíssimus Deus, de Leão XIII (EB 114), que provavelmente a retoma do prefácio da Introdução do jesuíta alemão, Pe. R. Cornely, ao seu monumental “Cursus Scripturae Sacrae”, de 188512. Por sua vez, Pe. Cornely informa que a expressão vem da “Ratio Studiorum” dos Jesuítas, publicada em 1687, na época da crítica bíblica de Spinoza (†1677) e do

9 LOHFINK, N., in “Exégesis Bíblica y Teologia”, p. 18.10 DE LA POTTERIE, op.cit., p. 33.11 Cf. CLEMENTE ALEXANDRINO, Pedagog. I, 5, 20 (SC 70,147).12 Cf. DE LA POTTERIE, op.cit., p. 35.

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A Palavra de Deus no Vaticano II

católico Richard Simon (†1712), expressão retomada pela Companhia de Jesus em 1883, isto é, dois anos antes da “Introdução” do Pe. Corne-ly. Da Providentissimus, a expressão passou para a Spiritus Paraclitus e, finalmente para dois documentos do Vaticano II: a Constituição Dei Verbum (n. 24) e o Decreto Optatam Totius (n. 16).

Ainda quanto à expressão “alma da Teologia”, não se trata apenas de reconhecer a preeminência da Escritura, p. ex., fazendo rigorosamente a exegese científica. Como o observa De La Potterie13, o convite a “pers-crutar, à luz da fé, toda a verdade encerrada no mistério de Cristo”, vale não só para os teólogos como também para os exegetas. Somente nessa condição, a interpretação exegética da Bíblia poderá tornar-se a “alma da Teologia”, porque exegeta e teólogo possuem, em última análise, o mesmo objeto formal: investigar a verdade de Cristo. Em suma, “porque exegese bíblica é a interpretação da Escritura, o exegeta verdadeiro não é somente um filólogo ou historiador, mas deverá também ser um crente e um teólogo”14. De fato, o verdadeiro objeto da interpretação da Escritura pertence ao nível do mistério da fé; não é, portanto, apenas o âmbito da pesquisa histórico-crítica. Esse, aliás, foi o sentido da intervenção escrita de Bento XVI no Sínodo de 2008, alertando para o seguinte: “Somente quando se observam os dois níveis metodológicos, o histórico-crítico e o teológico, é que se pode falar de uma exegese teológica, isto é, uma exegese adequada à Escritura”15.

3 A Verdade da Escritura

Afinal, qual é a “verdade” da Escritura? Após discussões acirradas, que convergiram no consenso apenas na última sessão do Concílio, os Padres conciliares chegaram a esta formulação: “... os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro, a verdade que Deus, em vista de nossa salvação, quis fosse consignada nas Sagradas Escrituras” (DV n. 11). São conhecidas as cinco etapas da elaboração do texto, desde o esquema I, pré-conciliar, até o esquema V, que foi promulgado em 18 de novembro de 1965. Todo o acento do esquema I se concentrava na inerrância absoluta da Bíblia, em qualquer matéria, religiosa ou profana, o que foi rejeitado na primeira Sessão, em 1962. O esquema

13 Id., ibid., p. 38.14 Id., ibid.15 BENTO XVI, Exortação Pós-sinodal “Verbum Domini” (2010), n. 34.

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III expressou-se de forma positiva sobre o conteúdo da Escritura: “Os livros bíblicos... contêm a verdade sem nenhum erro”. Mas o esquema IV deu a virada decisiva quando acrescentou o adjetivo “salutar”: “Os livros bíblicos... contêm sem erro a verdade salutar.” Essa expressão fora usada pelo concílio de Trento (DS 1501) e já constava no n. 7 da própria Dei Verbum, na passagem que fala do Evangelho como “fonte de toda verdade salutar e de toda regra moral”. Apesar disso, a fórmula provocou fortes reações, como observa De La Potterie: “Não se corria o risco talvez de introduzir novamente a teoria perigosa que restringia a inspiração e a inerrância somente aos assuntos religiosos e morais, aqueles ‘relativos à salvação’?16” Para eliminar qualquer ambiguidade, o esquema V substituiu o adjetivo “salutar” por uma proposição relativa que menciona a intenção salvífica de Deus: trata-se, pois, da “verdade que Deus, em vista de nossa salvação, quis fosse consignada nas Sagradas Escrituras” (DV n. 11).

Superava-se assim a “tradição concordista do século XIX”, quase exclusivamente dominada pelo postulado da inerrância absoluta da Bíblia, que atribuía a ausência de erro a todas as afirmações dos autores bíblicos. Esse postulado era devedor da noção grega e escolástica de “verdade” como conformidade entre a palavra e a realidade: adaequatio intellectus et rei. Também por esse motivo falava-se das “verdades” da fé no plural, no sentido mais conceitual de enunciações dogmáticas ou equivalentes. A propósito, na Dei Verbum, a palavra “verdade”, utilizada 13 vezes, é encontrada sempre no singular. Redescobriu-se a noção bíblica de “verdade” que, segundo Paulo e João, significa fundamentalmente a re-velação que Deus faz do seu plano salvífico, revelação aliás concretizada em Jesus Cristo. Ainda De la Potterie: “Nesses textos da Dei Verbum sobre a verdade da Escritura, o Concílio libertou-se de uma concepção estritamente apologética, para elevar-se ao nível teológico do conjunto do documento, o da divina Revelação. A Escritura, portanto, contém a “verdade”, não no sentido científico de que todas as suas afirmações sejam exatas, mas porque ela nos transmite tudo quanto interessa à fé: o desenvolvimento, na história humana, do plano divino da salvação, ou seja, ela nos transmite a revelação. E essa revelação na história, esse significado dos acontecimentos, é o que conta para a fé do povo de Deus. Descobrir esse significado é, deveria ser, o objetivo da investigação dos exegetas, como aliás se explica no n. 12 a seguir (DV n.12).

16 DE LA POTTERIE, op. cit., p. 40.

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A Palavra de Deus no Vaticano II

4 A interpretação da Escritura “no Espírito”

Que quer dizer a Dei Verbum quando afirma que “a Sagrada Escri-tura deve ser lida e interpretada no mesmo Espírito em que foi escrita” (DV 12,3; cf. 2Pd 1,20-21)? De que interpretação se trata? A Dei Verbum o expõe em dois grandes parágrafos, no n. 12, após uma introdução que adverte sobre o “modo humano” como Deus nos fala: o primeiro, reto-ma, resumindo a Divino Afflante, as regras do método histórico-crítico; o segundo, indica em que condições a exegese será teológica e eclesial: deve ser “canônica”17, isto é, que leve em conta a totalidade do cânon, a saber, o conteúdo e a unidade de toda a Escritura, além da Tradição viva de toda a Igreja e a “analogia da fé” (cf Rm 12,6b). No esquema IV ainda não constava esse inciso da “interpretação no mesmo Espírito”, incluído só na última sessão do Concílio, no esquema V, como princípio geral de interpretação teológica. A fonte desse inciso encontra-se na Spiritus Pa-raclitus (EB 469), que alude a um texto de São Jerônimo, o qual por sua vez o havia recebido de Orígenes. A propósito, como afirma o Pe. Congar, “na Igreja nunca se deixou de afirmar que ninguém poderá compreender a Palavra de Deus sem aquele mesmo Espírito que a inspirou”18. De fato, o exegeta deverá em certo sentido colocar-se em comunhão com a fé e com a experiência espiritual do hagiógrafo. E isso porque, segundo Gregório Magno, “as palavras de Deus não podem ser compreendidas sem a sua sabedoria; porque, se alguém não recebeu o espírito de Deus, não poderá de modo algum entender as palavras de Deus”19. Aliás, esse princípio é um corolário imediato da inspiração da Escritura, na qual, na expressão de De Lubac, “o Espírito habita”20. Como escreve Orígenes no De Principiis, “as Escrituras foram compostas sob a ação do Espírito de Deus; além do seu sentido óbvio, possuem um outro sentido que foge

17 “Canônica”, referente à exegese, é um adjetivo que aparece no documento da Pontifícia Comissão Bíblica de 1993, sobre a interpretação da Bíblia na Igreja. Era o centenário da encíclica Providentíssimus, de Leão XIII. Nesse documento da Comissão Bíblica, o capítulo I trata dos “métodos e abordagens para a interpretação”. Entre as “abor-dagens”, a letra C dedica-se às “abordagens baseadas na Tradição”, a primeira das quais é justamente a “abordagem canônica”, isto é, a que leva em conta a totalidade do cânon.

18 Cf. a citação de CONGAR, com sua fonte, em DE LA POTTERIE, op. cit., p. 47.19 Cf a citação de GREGóRIO MAGNO, com sua fonte, também em DE LA POTTERIE,

ibid.20 DE LUBAC, H., Histoire et Esprit. Intelligence de l’Ecriture d’après Origène, Paris,

1950, p. 296.

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Ney Brasil Pereira

aos demais, pois o que está escrito é, simultaneamente, a figura de certos mistérios e a imagem das realidades divinas”21.

Retornemos à Dei Verbum. Não padece dúvida o fato de que a “interpretação no Espírito” está ligada ao dogma da inspiração, pois se fala do “Espírito no qual foi escrita a Escritura”. Com as três normas teológicas da abordagem canônica, da tradição viva da Igreja e da ana-logia da fé (DV 12,3), é essa “interpretação no Espírito” que nos permite entender “o que Deus mesmo quis comunicar-nos” (DV 12,1); é ela que nos faz descobrir “a verdade que Deus, para nossa salvação, quis fosse consignada na Sagrada Escritura (DV 11,1); é ela, enfim, que nos faz perceber com clareza, como os Pais da Igreja o perceberam, que Cristo é o centro da Bíblia, como aliás o lemos no evangelho segundo João: “Examinais as Escrituras, pensando ter nelas a vida eterna. Ora, são elas que dão testemunho de mim” (Jo 10,39). A propósito, sirva de exemplo o célebre texto de Hugo de São Vítor, do séc. XII: “Toda a Escritura divina fala de Cristo, e toda a Escritura se cumpre em Cristo: afinal, é toda ela um único livro, o livro da vida”22. Pois bem, como constatou De Lubac, “um dos principais méritos da Dei Verbum é ter reconduzido tudo à unidade. Unidade do Revelador e do Revelado, Jesus Cristo, ‘autor e consumador da nossa fé’ (Hb 12,2); unidade nele dos dois Testamen-tos; unidade da Escritura e da Tradição, que jamais se podem separar; unidade do Verbo, a Palavra de Deus, sob as duas formas com as quais se faz presente entre nós, na Escritura e na Eucaristia”23.

Cito ainda DE LA POTTERIE, na conclusão do seu estudo de 20 anos atrás: “A Dei Verbum é um documento de imensa importância teo-lógica. A ‘história da salvação’, da qual fala, não está no mesmo plano da história profana. A Revelação, descrita no seu cap. I, situa-se na história, mas não se identifica apenas com os eventos da história. A ‘verdade’ da Escritura, portanto, não é a sua verdade historiográfica, mais ou menos comprovada, mas é a verdade da salvação, encerrada no mistério do Cristo (DV 24), aquela que poderíamos chamar de ‘verdade interior do mistério’: é o valor de revelação que a história bíblica possui para a fé cristã. Ora, esta ‘verdade’ da Escritura não pode ser conseguida apenas com o método histórico-crítico; ela não pode ser compreendida a não ser

21 Cf. citação de ORíGENES em DE LA POTTERIE, op. cit., p. 48.22 Cf a citação de HUGO DE SÃO VíTOR em DE LA POTTERIE, ibid., p. 50.23 DE LUBAC, H., La Révélation Divine, Paris, 1983, p. 174, cit. em DE LA POTTERIE,

ibid., p. 50.

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A Palavra de Deus no Vaticano II

quando a Palavra de Deus é lida ‘no mesmo Espírito em que foi escrita’ (DV 12,3)”24. Ora, é justamente para essa percepção que a Dei Verbum e, agora, a Verbum Domini, nos convidam.

5 Alargamento da Dei Verbum na Nostra Aetate?

Um dos muitos sinais de abertura ao mundo, no Vaticano II, foi sem dúvida o Decreto conciliar “Nostra Aetate”, sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs. Estas, segundo o Concílio, nesse documento, “esforçam-se de diversos modos por irem ao encontro da inquietação do espírito humano, propondo caminhos, isto é, doutrinas e regras de vida, como também ritos sagrados. A Igreja Católica nada rejeita do que há de verdadeiro e santo nessas religiões (...) que, não raro, refletem lampejos daquela Verdade que ilumina a todos os homens” (NA 2). Afirmação semelhante se encontra na Lumen Gentium: “Tudo o que de bom e verdadeiro se encontra entre eles – os não cristãos – a Igreja considera-o como uma “preparação evangélica”25, dada por Aquele que ilumina todo homem, para que enfim tenha a vida” (LG 16).

Não seria lógico, então, que essa abertura se explicitasse mais claramente em relação aos livros sagrados dessas religiões, reconhecendo neles também a ação do Espírito Santo e, nesse sentido, o seu caráter também ou, de certo modo, “inspirado”? Isto seria, parece-me, o “alarga-mento” da Dei Verbum, ao qual me referi na pergunta acima. Entretanto, esse passo não foi dado na Nova Aetate, e justamente essa hipótese é comentada e rejeitada na Declaração Dominus Jesus, da Congregação para a Doutrina da Fé, de 6-8-2000, 35 anos depois da Dei Verbum26. Cito: “Existe também quem avance a hipótese do valor inspirado dos textos sagrados de outras religiões. Certamente deve admitir-se que alguns elementos presentes neles são de fato instrumentos, através dos quais, multidões de pessoas puderam, através dos séculos, e podem ainda hoje, alimentar e manter a sua relação religiosa com Deus. (...) A tradição da Igreja, porém, reserva o qualificativo de textos inspirados aos livros canônicos do Antigo e do Novo testamento, enquanto inspirados pelo Espírito Santo. Fiel a esta tradição, a Constituição Dogmática sobre a divina Revelação do Concílio Vaticano II ensina: “Com efeito, a Santa

24 DE LA POTTERIE, ibid., p. 51.25 EUSÉBIO de Cesareia, Praeparatio Evangelica 1,1.26 Declaração assinada pelo então Cardeal Ratzinger e aprovada por João Paulo II.

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Ney Brasil Pereira

Mãe Igreja, por fé apostólica, tem como sagrados e canônicos os livros inteiros do Antigo e do Novo Testamento com todas as suas partes, porque escritos por inspiração do Espírito Santo, têm Deus por autor e, como tais, foram confiados à própria Igreja.” (DV 11). Tais livros “ensinam com firmeza, com fidelidade e sem erro, a verdade que Deus, por causa da nossa salvação, quis consignar nas Sagradas Letras” (DV 11)27.

Agora, um questionamento. Mesmo sabendo, e crendo, que a inspiração escriturística é um carisma reservado aos livros canônicos, isto é, reconhecidos como “inspirados”, quem somos nós, como lembrou Pedro à comunidade de Jerusalém, ao comentar o acontecido na casa do pagão Cornélio (At 10,34-48), quem somos nós para impor limites à ação do Espírito? (cf. At 11,17) Nesse sentido, o “alargamento” a que me refiro não mina, absolutamente, o dogma da Inspiração, mas reconhece, humilde e alegremente, a sua abrangência maior, universal: O Espírito do Senhor enche toda a terra e, abrangendo tudo, tem conhecimento de cada som (Sb 1,7). Não é isso o que faz o inspirado Paulo, ao citar e assumir, no Areópago de Atenas, textos de poetas gregos (At 17,28)? E não enriqueceria essa perspectiva o diálogo interreligioso? Quanto ao perigo de confusão terminológica, que a Declaração Dominus Jesus quer com razão evitar, creio que não é difícil solucionar o problema, entendendo bem o conceito de “canônico”. Só assim reconheceremos, como Pedro, lembrado acima, que não podemos impor limites à ação do Espírito. Este, de fato, sopra onde quer (Jo 3,8).

Conclusão

Concluindo, cito o epílogo da Dei Verbum (DV 26): “Assim, pois, por meio da leitura e o estudo dos Livros Sagrados seja difundida e glorificada a Palavra de Deus (2Ts 3,1), e que o tesouro da Revela-ção confiado à Igreja cada vez mais encha os corações dos homens [e mulheres] do nosso tempo. Assim como a vida da Igreja se desenvolve pela assídua participação no mistério eucarístico, assim é lícito esperar um novo impulso de vida espiritual de uma acrescida veneração pela Palavra de Deus, que permanece para sempre (Is 40,8; 1Pd 1,23-25).” Esses, os votos do Concílio Vaticano II, expressos quase 50 anos atrás. Realizaram-se? Aqui também, como para as realidades escatológicas, respondemos: Já, e ainda não. “Já”, porque é inegável o crescimento no

27 Dominus Jesus, 8.

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estudo e no amor da Palavra de Deus em nossa Igreja e em nossa pátria. E “ainda não”, pois ainda falta muito para que o Reino de Deus, isto é, a fraternidade humana vivida em seu nome, o maior fruto dessa Palavra, se torne concreta realidade entre nós e no mundo. Entretanto, por todos os esforços, por toda a pesquisa, por toda leitura orante, por tudo, seja Deus louvado. E Ele, que inspirou os autores sagrados a escreverem a Sua Palavra, e que inspira os exegetas bíblicos a aprofundar o seu sentido e a comentá-la, e inspira nossos Bispos a liderarem a “animação bíbli-ca de toda a Pastoral”28, Ele nos conceda a todos nós a graça maior de vivê-la. Porque é na prática, na vivência da Palavra, que encontraremos a Vida, como nos assegura o Senhor Jesus: Faze isso, e terás a vida! (Lc 10,28).

Endereço do Autor:E-mail: [email protected]

28 Título da Mensagem da CNBB em julho de 2010, por ocasião do XVI Congresso Eucarístico Nacional em Brasília.

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Resumo: Sob o enfoque da “virada popular”, que integra as dimensões da inculturação na microestrutura dos contextos vivenciais e do aggiornamento ma-croestrutural à modernidade, o Autor procura tecer o fio condutor que perpassa os 16 documentos do Vaticano II. Para essa “virada popular”, o Concílio é ponto de partida e apelo à nossa memória, fidelidade e audácia (cf. DAp 11).

Abstract: Taking into consideration the “popular turning point” which integrates the dimensions of the inculturation in the microstructure of the life contexts and of the macrostructural up-to-dating to modernity, the paper looks to show the conducting thread which bypass the 16 Documents of Vatican II. To this “popular turning point” the Council is both point of departure and appeal to our memory, fidelity, and boldness (cf. Ap 11).

A “virada popular”Discipulado missionário do Brasil para o mundo secularizado e pluricultural à luz do Vaticano II e da caminhada latino-americana1

Paulo Suess*

* Por dez anos, trabalhou na Amazônia e a partir de 1979 exerceu o cargo de Secretário Geral do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Em 1987 fundou o Departamento de Pós-Graduação em Missiologia, em São Paulo. Entre 2000 e 2004, era presidente da Associação Internacional de Missiologia (IAMS). Atualmente é assessor teológico do CIMI e professor do Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP), no cíclo de pós-graduação de Missiologia.

Entre suas publicações: “Introdução à Teologia da Missão”, (Vozes/Abya Yala, 2007); “Dicionário de Aparecida” (Paulus, São Paulo/Bogotá, 3. ed. 2010); “Impulsos e inter-venções” (Paulus, 2012).

1 Palestra proferida dia 3 de julho 2012, em Palmas/TO, durante o 3º Congresso Missionário Nacional. Para esta apresentação em Encontros Teológicos, o texto foi ligeiramente revisado.

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A “virada popular”

O Vaticano II iniciou uma “virada popular”, que não se completou. Passaram-se 50 anos e essa virada parece inibida, travada, interrompida. Seu objetivo era “continuar a obra do próprio Cristo que veio ao mun-do para dar testemunho da Verdade, para salvar e não para condenar, para servir e não para ser servido” (GS 3,2). Quais são os impulsos do Concílio que configuram essa “virada popular” e quais os passos para desinibi-la, hoje?

1 Aggiornamento como orientação programática

Ainda antes de iniciar o Concílio, o papa João XXIII mostrou, simbolicamente, que a Igreja Católica precisava abrir-se ao mundo, o que ele chamou de aggiornamento. Para um interlocutor, que o perguntou sobre o significado desse aggiornamento, ele abriu as janelas de uma sala e deu para entender: a Igreja precisa deixar sol e vento entrar para ver longe e respirar fundo. O sucessor de João XXIII, Paulo VI, em sua Carta Encíclica Ecclesiam suam (1964), menciona o “aggiornamento” como “orientação programática” do Concílio (ES 27).

A “orientação programática” do Vaticano II, portanto, era aber-tura, deixar a realidade do mundo entrar na Igreja e fazer essa Igreja entrar na realidade do mundo. E essa realidade tem várias dimensões: a dimensão macrocultural do mundo moderno, da modernidade seculari-zada, e a dimensão da vida cotidiana, a microestrutura das culturas, da convivência concreta no mundo pluricultural. Aggiornamento expressa a vontade de construir duas pontes de mão dupla: uma entre Igreja e a dimensão universal das conquistas da modernidade e do mundo secular, e outra, entre Igreja e o mundo local e cultural, a vida cotidiana onde o povo vive, se encontra e comunica.

O Concílio nomeou essas tentativas de aproximação aos povos e ao mundo com algumas palavras balbuciantes, como “aggiornamento” e “adaptação” (SC 37s; GS 514), “autonomia da realidade terrestre” (GS 36; 56) e da cultura, “sinais do tempo” (GS 4; 11), e “diálogo” (CD 13; UR 4), “encarnação” e “solidariedade” (GS 32). Em nossa caminhada teológico-pastoral latino-americana, traduzimos essas palavras como “opção pelos pobres” e “libertação”, em Medellín (1968), “participação”, “assunção” e “comunidades de base”, em Puebla (1979), como “inserção” e “inculturação”, em Santo Domingo (1992) e como “missão”, “teste-munho” e “serviço” de uma Igreja samaritana e advogada da justiça e dos pobres, em Aparecida (2007). Nenhuma dessas palavras descreve

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a totalidade do projeto pastoral do Vaticano II, mas seu conjunto repre-senta uma síntese daquilo que o Vaticano II queria ser: um farol da luz de Cristo no meio do povo e do mundo.

2 Ser farol da luz de Cristo

As primeiras palavras das duas Constituições sobre a Igreja, a Lumen gentium (“luz dos povos”) e a Gaudium et spes (“alegria e espe-rança”), já apontam para o programa da “virada popular”. Ser farol da luz de Cristo para os povos e acompanhá-los, sobretudo os pobres, em suas alegrias e tristezas, e ser, como povo de Deus, instrumento de salvação de Jesus encarnado – eis a origem, identidade e meta dos discípulos. No ser transparente para o mundo e no estar próximo aos crucificados na história temos o núcleo da “virada popular” do discipulado missionário.

Quando Paulo, em Damasco, ouviu a voz do Mestre, por ele per-seguido, Jesus lhe deu razões para uma vida nova: foste chamado para voltar das trevas à luz e constituído “servo e testemunha” (At 26,16). No início da vida do discípulo missionário há sempre uma iluminação e uma conversão. “Voltar das trevas à luz” significa conversão, dar foco à vida, sair da alienação, fazer discernimentos, estabelecer prioridades para que Deus possa resplandecer na face das testemunhas e nas mãos dos servos enviados. O Filho amado, que se submeteu às águas do Jordão, é o Filho iluminado, despojado e enviado.

Na Igreja antiga, sobretudo entre os cristãos ortodoxos, a Festa da Epifania foi celebrada como “Festa das luzes”, memória do batismo de Jesus, festa da iluminação e dos iluminados pelo batismo, manifestação da Santíssima Trindade. Para ser luz do mundo e dos povos (Lumen gentium), Jesus submeteu-se às águas do Jordão; despojado de tudo, re-cebeu o batismo de João. Nesse despojamento, como nos despojamentos do presépio e da cruz, se revela o amor trinitário de Deus e a missão de Jesus. A Epifania é Teofania, revelação de Deus no amor que ilumina e envia. O Filho amado é o Filho iluminado, despojado e enviado.

No batismo, a iluminação torna-se recriação do mundo, como mostra o episódio da cura do cego de nascença. Com a colocação do barro nos olhos do cego, Jesus reproduz, simbolicamente, a criação do mundo novo, o fim das trevas e da cegueira naquele que renasce da água e do Espírito Santo. O ungido com o barro é enviado para lavar-se na piscina de Siloé e Siloé significa: “enviado”. “Vai lavar-te na piscina de

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Siloé” (Jo 9,7), abre os olhos, és enviado para ser luz do mundo! Ser enviado significa ter consciência, ser iluminado e libertado para encon-trar o Caminho. Dar vista aos cegos é um sinal messiânico da salvação definitiva (Is 29,18ss; cf. 35,5.10). Os profetas anunciaram o Messias como luz das nações que abre os olhos dos cegos, liberta dos cárceres os presos, e da prisão os que habitam nas trevas (Is 49,6.9). O cego de nascença, que era mendigo, representa os discípulos missionários. Na Conclusão do Decreto Ad gentes, os padres conciliares fazem votos que “a claridade de Deus, que resplandece na face de Cristo Jesus, pelo Es-pírito Santo a todos ilumine” (AG 42,2). Quem recupera a vista ganha mobilidade e autonomia para “iluminar todas as pessoas com a claridade de Cristo” (LG 1), pelo anúncio e testemunho do “Evangelho do Reino da vida” (DAp 143).

3 “Virada popular” com audácia e fidelidade

A “virada popular” do Vaticano II, essa tentativa de definir o povo, adulto e autônomo, como sujeito da Igreja, sacudiu a instituição e a pastoral da Igreja Católica. Uma Igreja que olhou na celebração eucarística para a parede e falava em latim, que a sua teologia entendeu como explicação de dogmas e que em sua pastoral estava amarrada a padrões culturais da Europa, essa Igreja deu no Concílio uma meia volta versus populum, que podemos chamar de “virada popular”. Ela exigiu a passagem de um mundo pré-moderno e fundamentalista à assunção crítica da modernidade e a passagem do monólogo salvífico ao diálogo com outras religiões, credos e visões do mundo.

A “virada popular” despertou para a necessidade de uma nova presença da Igreja no mundo secularizado e pluricultural. Ela precisava estender seus braços em direção da macroestrutura da modernidade e das microestruturas dos contextos vivenciais dos povos. Nos contextos vivenciais, onde acontecem as lutas dos pobres pela redistribuição dos bens, e dos outros, em busca do reconhecimento de sua alteridade, essa “virada popular” tem o nome de “inculturação”. Na macroestrutura, que clama por transformações sistêmicas, a “virada popular” tem o nome de “libertação”, “participação” e “articulação”..

Como inserir a herança da fé nas culturas tradicionais e articular, muitas vezes, na contramão do mundo secularizado? Ao definir-se como concílio pastoral, o Vaticano II procurou responder a essa pergunta. Procurou – através de uma metodologia indutiva – partir da realidade

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concreta das pessoas. À luz da fé, buscou com essa realidade estabe-lecer uma comunicação em linguagens contemporâneas, “porque uma coisa é o próprio depósito da Fé ou as verdades, e outra é o modo de enunciá-las” (GS 62,2).

A proximidade do mundo, e dos reais problemas da humanidade, e o reconhecimento da autonomia da realidade terrestre e da pessoa são aprendizados históricos; são buscas permanentes para escapar da con-formação alienante à prosperidade material e da adaptação superficial a modas nesse mundo, e do distanciamento desse mundo em nichos de bem-estar espiritual.

Aparecida reconheceu a necessidade de a Igreja “repensar pro-fundamente e relançar com fidelidade e audácia sua missão nas novas circunstâncias latino-americanas e mundiais” (DAp 11). Repensar a mis-são no contexto do cinquentenário do Concílio Vaticano II (1962-1965) significa aprofundar a origem e alcance da “natureza missionária” (cf. AG 2) de todos os batizados. “Fidelidade”, nessa reconstrução, só faz sentido se houver “audácia” na recepção, nos aggiornamentos contínuos e na projeção do Vaticano II.

“Fidelidade” remete-nos não só às origens do cristianismo, à re-velação e tradição apostólica, à relatividade e necessidade de acréscimos históricos e culturais, que se podem configurar pontes e prisões, mas remete-nos também ao discernimento entre tradição e tradicionalismo. A fidelidade está ameaçada por cristalizações de um tradicionalismo fundamentalista sem consciência histórica e pela resistência do patriar-calismo contra uma humanidade adulta e sociedade leiga, que não aceita qualquer tipo de tutela eclesiástica.

“Audácia” é a outra componente do aggiornamento. Sem audácia não haverá tradução, encarnação e comunicabilidade do cristianismo em novos contextos micro e macroculturais. A urbanização, que impul-sionou as transformações culturais da América Latina nestes anos pós-conciliares, afetou a presença pastoral das Igrejas em todos os contextos socioculturais. Exige-se, hoje, um discernimento audaz tanto na assunção dos múltiplos projetos de vida, que culturas regionais representam, como na avaliação de conquistas da modernidade que, com sua dupla face de progresso e violência, beneficiam e ameaçam a sobrevivência da huma-nidade. A audácia pode ser confundida com adaptações apressadas, com modernizações meramente técnicas, com a corrida atrás de modas e do

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A “virada popular”

sempre novo, igualmente sem consciência histórica. Missas e ministros midiáticos, copiando padrões de marketing, podem destruir o sagrado.

4 Igreja povo de Deus

O texto missiológico mais denso do Vaticano II se encontra na Constituição Dogmática sobre a Igreja, que é mistério (LG, cap. I) e povo de Deus (LG, cap. II), “comunidade espiritual” e “assembleia visível”. Ambas as dimensões, a invisível e a visível, “formam uma só realidade complexa em que se funde o elemento divino e humano” (LG 8,1). A abordagem dessa realidade, na Lumen gentium, precede considerações sobre a “constituição hierárquica da Igreja” (LG, cap. III). Para explicar essa complexa relação entre mistério e povo de Deus, a Lumen gentium estabelece uma “não medíocre analogia” com o mistério do Verbo encarnado. Como a natureza assumida pelo Jesus histórico, o Verbo encarnado, serve ao Verbo Divino, assim “o organismo social da Igreja serve ao Espírito de Cristo” (LG 8,1).

Antes de estruturar-se em diferentes ministérios e serviços e antes de debruçar-se sobre a Igreja instituição, o Concílio invocou na palavra “mistério” sua realidade divina, sem mistificação, e no conceito “povo de Deus” sua composição histórica e sociológica. Nos conceitos “mistério” e “povo de Deus” se configura a “virada popular” eclesiológica.

A compreensão da Igreja como povo de Deus abre o caminho para uma Igreja de adultos e iguais. Ainda que nessa “Igreja povo de Deus” haja diferentes serviços, “reina, contudo, entre todos verdadeira igual-dade quanto à dignidade e ação comum a todos os fiéis na edificação do Corpo de Cristo” (LG 32,3). No interior da Igreja povo de Deus ”todos participam do sacerdócio comum dos fiéis (LG 10,2), do “múnus profético de Cristo” (LG 12,1; cf. AA 2,2) e do apostolado, que “é participação na própria missão salvífica da Igreja” (LG 33,2). A dupla missão da Igreja de levar aos homens a mensagem de Cristo e sua graça, às vezes denomi-nada “evangelização explícita”, e de “penetrar do espírito evangélico as realidades temporais e aperfeiçoá-las” através das obras, que devem levar em conta “satisfazer em primeiro lugar as exigências da justiça, para que não se dê como caridade o que já é devido a título de justiça” (AA 8,5) e que alguns consideram “evangelização implícita”, por princípio, cabe a todo o povo de Deus (cf. AA 5). Muitas vezes as palavras “apostolado”, “missão” e “evangelização” se tornaram sinônimos.

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Tudo o que é dito sobre a “Igreja povo de Deus”, devido à igual-dade fundamental que determina esse povo, vale também para os leigos, religiosos e clérigos (LG 30). Em virtude de seu batismo e crisma, todos os que “foram incorporados a Cristo” (LG 31,1), constituem o povo de Deus e são chamados ao apostolado: “O apostolado dos leigos é partici-pação na própria missão salvífica da Igreja” (LG 33,2). “Eles exercem seu apostolado múltiplo tanto na Igreja quanto no mundo (AA 9). Todo leigo “é ao mesmo tempo testemunha e instrumento vivo da própria missão da Igreja” (LG 33,2). A diversidade de serviços na Igreja povo de Deus, não significa inferioridade de uns e superioridade de outros. A universalidade (catolicidade) desse povo, que “deve estender-se a todo o mundo e por todos os tempos” (ibid.), é a razão de sua missionariedade permanente.

A Igreja povo de Deus é a Igreja constituída por sujeitos, não por rebanhos. E desse ser sujeito coletivo – Igreja povo de Deus – emerge uma responsabilidade de todos os fiéis no que se refere à fé, à verdade interna e à divulgação desta verdade a partir do “sacerdócio comum dos fiéis” (LG 10), que tem seu fundamento no batismo. “O conjunto dos fiéis, ungidos que são pela unção do Santo (cf. 1Jo 2,20 e 27), não pode enganar-se no ato de fé” (LG 12).

A infalibilidade do povo de Deus no ato de fé (in credendo) faz parte da doutrina católica. Por isso a validade de qualquer dogma depende da participação do povo de Deus na sua formulação, como também de sua recepção pela comunidade dos fiéis. Se isso vale para a parte mais íntima da Igreja, para a formulação doutrinal, vale ainda mais para a administração da Igreja como instituição. Isso teria consequências sérias, por exemplo, para a nomeação dos bispos, para a prática da subsidia-riedade na administração da Igreja e para a participação da Igreja local nas decisões da Igreja Romana, cuja universalidade está estreitamente ligada à articulação com as Igrejas locais. Nem a Igreja universal nem as Igrejas locais podem, separadamente, cumprir a sua missão de, a serviço do Reino, construir a paz universal: “Em qualquer casa onde entrardes, dizei primeiro: Paz seja nesta casa! E quando entrardes numa cidade, anunciai-lhes: Está próximo o Reino de Deus” (cf. Lc 10,5.9).

Essa paz é construída em mutirão com toda a humanidade. À construção dessa paz “são ordenados de modos diversos quer os fiéis católicos, quer os outros crentes em Cristo, quer enfim todos os homens em geral, chamados à salvação pela graça de Deus” (LG 13,4). Suas “legítimas variedades” (LG 13,3) são protegidas como dons a serviço

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da paz. A partir do horizonte universal da paz, sinônimo de salvação, que antecipa a unidade, embora ainda esteja num processo de construção histórica, o povo de Deus da Nova Aliança perdeu sua exclusividade. A humanidade inteira, fiéis batizados e autênticos seguidores de outras religiões e visões do mundo, “podem conseguir a salvação eterna”. Para todos, a salvação não é direito nem privilégio; será sempre graça de Deus. Toda a humanidade está numa caminhada de “preparação evangélica” (LG 16) a serviço da unidade a ser historicamente construída. O que distingue os batizados dos não batizados não é a “posse da salvação”, mas o imperativo da missão: “Ai... de mim se eu não evangelizar!” (1 Cor 9,16; LG 17).

5 Partilhar, dialogar, encarnar (GS, DH, NA)

A teologia da missão da Lumen gentium encontra seu desdobra-mento prático na Constituição Pastoral Gaudium et spes. A Igreja povo de Deus se constitui na relevância e responsabilidade de sua missão pastoral: relevância para o mundo em transformação e responsabilidade social pela humanidade, sobretudo pelos pobres e por aqueles que sofrem. Pastoral e missão da Igreja não são os braços seculares de uma Igreja em si espiritual. O que é verdadeiramente religioso é sempre profunda-mente humano e concreto. O Povo de Deus e a humanidade, na qual ele se insere, prestam-se serviços mútuos. A revelação de Deus no mundo continua: “a própria Igreja não ignora o quanto tenha recebido da história e da evolução da humanidade” (GS 44,1).

A “virada popular”, na Gaudium et spes, se configura como pro-ximidade dos povos, responsabilidade pela humanidade e interpelação pelos desafios concretos: “Os povos oprimidos pela fome interpelam os povos mais ricos. As mulheres reivindicam [...] sua paridade de direitos [...]. Os operários e lavradores não querem somente ganhar o necessário para a alimentação, mas também pelo trabalho cultivar sua personalidade [...]. Agora, pela primeira vez na história humana, todos os povos já estão convencidos de que os benefícios da cultura, realmente, podem e devem ser estendidos a todos” (GS 9,2): “deve-se portanto reconhecer cada vez mais a igualdade fundamental entre todos” (GS 29,1).

Povos e indivíduos, até então tutelados por outros, descobrem que só podem progredir, material e espiritualmente, conquistando a sua au-tonomia: “No mundo inteiro cresce cada vez mais o senso de autonomia e, ao mesmo tempo, de responsabilidade, que é de máxima importância

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para o amadurecimento espiritual e moral do gênero humano” (GS 55). “Reconhecer legítima a autonomia” (GS 56,6) da ciência e cultura é um pressuposto da existência e da criatividade humanas. A “autonomia das realidades terrestres” (GS 36,2), entendida como leis e valores próprios das diferentes sociedades, é uma exigência das diferentes culturas e um pressuposto da missão como diálogo.

O diálogo em todas as suas dimensões – intercultural, interreli-gioso, ecumênico, com o ateísmo – depende “não só de uma adequada exposição doutrinária, mas também da pureza de vida da Igreja” (GS 21,5), do “testemunho de uma fé viva e adulta” (ibid.). Para o bem da humanidade, a Constituição Pastoral solicita uma ampla colaboração interreligiosa: “todos os homens, crentes e não crentes, devem prestar seu auxílio à construção adequada deste mundo” (GS 21,6), o que exige “sincero e prudente diálogo” (ibd.). A Gaudium et spes já inclui as inten-ções essenciais da Declaração “Dignitatis humanae” sobre a ‘liberdade religiosa’ (DH) e da ‘Declaração Nostra aetate sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs’ (NA).

A liberdade religiosa, na elaboração do Vaticano II, é um direito humano e não um ato de tolerância do Estado moderno ou da própria comunidade religiosa: “Na difusão, porém, da fé religiosa e na introdu-ção de costumes, sempre se há de abster de qualquer tipo de ação que possa ter sabor de coibição ou de persuasão desonesta [...]. Tal modo de agir deve considerar-se como abuso do direito próprio e lesão do direito alheio” (DH 4,4). A liberdade religiosa é um pressuposto do pluralismo religioso. O pluralismo como norma reconhecida na sociedade civil e política é um bem normatizado que pode garantir a paz social. Exige-se do Estado moderno que cumpra sua função em equidistância aos credos religiosos. A Declaração sobre a liberdade religiosa marca uma dimensão da transição da cristandade para uma situação de pluralismo religioso. A liberdade religiosa não enfraquece a religião nem suspende a missão, mas como tal, é condição do anúncio e testemunho missionário.

Como a Lumen gentium, também a Gaudium et spes aponta para o seguimento e a encarnação como método missionário imprescindível: “Por Sua encarnação, o Filho de Deus uniu-Se de algum modo a todo homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana [...], tornou-Se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado” (GS 22,2). Por amor a nós padeceu e “nos deu o exemplo para que sigamos os Seus passos, mas ainda abriu novo cami-

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nho” (LG 22,3). Neste caminho anunciaremos o mistério pascal, que é a mensagem central do querigma missionário: A vida tem sentido, a morte foi vencida. Cristo morreu e ressuscitou por todos e, por conseguinte, “o Espírito Santo oferece a todos a possibilidade de se associarem, de modo conhecido por Deus, a este mistério pascal” (GS 22,5).

A proximidade da encarnação como seguimento de Jesus nos faz “adaptar o Evangelho, enquanto possível, à capacidade de todos” (GS 44,2). Em suas culturas, os povos já realizam o plano de Deus e comple-tam a criação (cf. GS 57,2) antes de entrar em contato com o Evangelho. As diferentes culturas podem ser interpretadas como “pedagogia para o Deus verdadeiro ou como preparação evangélica” (AG 3,1; cf. LG 16; Evangelii nuntiandi 53). O trabalho missionário protege as culturas mais frágeis contra a cultura hegemônica, para que os intercâmbios culturais “não destruam a sabedoria dos antepassados e nem coloquem em perigo a índole própria de cada povo” (GS 56,2).

As questões abertas, que o Vaticano II retomou num aggiorna-mento com a modernidade e na fidelidade à tradição da Igreja, podem ser pensadas numa dimensão trinitária: o Pai envia em missão; o Filho, que é a Palavra encarnada, é diálogo salvífico com toda a humanidade, e o Espírito Santo, que é Deus no gesto do dom, é aquela graça que transcende as modalidades salvíficas das quais a Igreja dispõe.

6 Enviado para o mundo pluricultural e secularizado

O mundo secular, secularizado e pluricultural, nos ensinou a se-parar a religião do poder político, relativizar a monocultura ocidental e considerar salvíficas também outras religiões. Aprendemos também que, nesse mundo secular, algo falta e que a missão precisa tomar outro rumo. Antes do século XVI, via de regra, não era possível não crer em Deus ou não ter religião. Por conseguinte, os destinatários da missão eram seguidores de outras religiões, judeus e budistas, fetichistas e pagãos. A estes, a doutrina católica, negava a possibilidade da salvação. Francisco Xavier, o padroeiro da missão, e Antônio Vieira, lamentavam a conde-nação eterna daqueles que morreram sem ter recebido o sacramento do batismo. Sua situação era de exclusão definitiva.

Hoje, não crer em Deus é possível. No censo de 2010, segundo dados do IBGE, 15 milhões de brasileiros se dizem sem religião. A fé

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em Deus não é mais algo comum, público e partilhado por todos. Fé e religião migraram para o campo do privado, extra estatal e, muitas ve-zes, extra institucional. O fim da religião do Estado é algo irreversível e, no caso do cristianismo, contribuiu para sua maior coerência com o Evangelho.

No mundo secular, o grande divisor das águas salvíficas passa entre crentes em Deus e não crentes, entre a comunidade macro ecu-mênica, à qual a Igreja Católica “concede” certo potencial salvífico, e o grupo crescente que se declara ateu ou se diz sem religião. Se o grupo macro ecumênico também se pode salvar, embora só indiretamente através de Jesus Cristo, então não é mais destinatário de ação missio-nária como antes. O grupo prioritário são os sem religião, os ateus, os que deixaram o cristianismo a meio caminho, aos quais se dirige hoje a Nova Evangelização.

Na periferia do cenário religioso surgiu, ao lado dos “sem religião” ou “pós-metafísicos” o grupo dos “pós-seculares”. O mundo pós-secular é o mundo daqueles que estão de volta da montanha da secularização. Os pós-seculares procuram, no mercado religioso, uma cesta básica, um jogo de unidades curativas e lucrativas. O mundo pós-secular é o mundo dos aborrecidos com o mundo adulto, racional e autônomo. Esse grupo rein-tegra elementos compensatórios e alienantes das religiões em sua vida, inflados com elementos soltos da pré e pós-modernidade. Na religião dos pós-seculares encontra-se a religião do cangaceiro com a religiosidade do traficante de drogas, que antes do assalto a um Banco invoca a proteção de Nossa Senhora e depois, na cadeia, se torna crente.

Hoje, a missão ad gentes tem dois interlocutores: num extremo estão os sem religião e os sem Deus, e no outro lado estão os sem Deus com uma religiosidade funcional e descompromissada. Um pós-secular de múltipla escolha não é propriamente um seguidor de Jesus Cristo, mas um interlocutor da missão. Neste caso, missão significa transformar a perspectiva da prosperidade em perspectiva de gratuidade, o narcisismo em altruísmo, solidariedade em doação da vida.

Como cristãos, acreditamos que é possível ser cientista secular e religioso, desde que não confundamos os diferentes níveis entre fé revelada por Deus e ciência secular. O cientista pode ser crente sem ser incoerente com a ciência. O bom cientista e o bom cristão conhecem os limites de sua “disciplina”. A herança cultural tem pouca influência sobre ciência e religião. A fé se torna cada vez mais uma opção individual que

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não contradiz a ciência. A interlocução missionária se situa no lugar do facilitador e catalisador dessa fé possível e, muitas vezes, aprendida fora da cultura de origem dos destinatários.

Um agnóstico, como Habermas, nos lembrou de três dons, que são ao mesmo tempo tarefas próprias do cristianismo para o mundo secular. O mundo civil e o estado secular (neutro em sua relação com as religi-ões) não podem oferecer algo fora de uma legalidade positiva. O Estado secular não pode oferecer solidariedade nem ritualidade ou comunidade. A solidariedade pode ir mais longe que a justiça. Os ritos secularizados não oferecem perdão ou, em ritos de despedida, um imaginário além do esquecimento. As mudanças rápidas impulsionadas pela ciência e a economia corroeram também as relações humanas e a capacidade co-munitária prolongada de grupos sociais. A religião, que tem como eixos o perdão, a memória e a justiça, que resiste à morte decretada pelo mais forte e que considera a vida não uma soma de casos, mas uma causa universal em prol dos desfavorecidos, pode contribuir com aquilo que falta na sociedade secular.

Talvez seja, hoje, uma das tarefas missionárias mais importantes, articular comunidades e movimentos sociais para “desafinar o coro dos contentes” (Torquato Neto) e desgovernar a nau dos adaptados. Muitos se contentam com o pouco que o gozo regressivo à fase oral e anal (Freud) via consumo e acumulação de maneira destrutiva oferece. A destruti-vidade do projeto em curso se evidencia pela violência globalizada e estrutural. Também o mundo religioso, na forma do fundamentalismo globalizado, que invoca como bases de sua legitimação instâncias mais sagradas que lei e razão, não é isento dessa violência. No mundo secular, cabe aos discípulos missionários articular frentes dispostas a puxar o freio de emergência do projeto acelerado e desgovernado em curso e, politica-mente, propor outro projeto civilizatório que contemple a todos.

7 Algo falta: recepção e desafios do Vaticano II hoje

Numa primeira fase, a recepção do Vaticano II na América Latina foi marcada por um consenso esperançoso, por entusiasmo e criatividade. Depois de Medellín, surgiu uma divisão mais visível dos caminhos pasto-rais. Hoje, setores que procuram inibir a “virada popular” na liturgia e na pastoral, na teologia e na organização institucional, ganham força. Mas a

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história nunca é linear. Muitas conquistas do Vaticano II estão presentes em nossa realidade pastoral e nos documentos produzidos nesse tempo pós-conciliar. Apesar de certo descompasso entre documentos e prática missionária, somos uma Igreja de apóstolos, profetas e mártires, uma Igreja de santos e pecadores.

Vejamos as Conclusões de Medellín, de 1968. Tiveram como programa, expresso no subtítulo: “A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio”. O Documento de Aparecida, de 2007, ainda invoca as mesmas transformações. O que fizemos nesses 40 anos? Quase tudo está em transformação e deve ser transformado, diz Apareci-da: a realidade (DAp 210), o mundo (DAp 290), a sociedade (DAp 283, 330, 336) e estruturas eclesiais e pastorais (DAp 365). O mundo está em estado permanente de transformação, e a Igreja não quer nem saber de transformar estruturas pastorais!

Vejamos a “Carta dos bispos ao Povo de Deus na Amazônia”, escrita no dia 6 de julho p.p., em comemoração aos 40 anos do Primeiro Encontro de Santarém, em 1972. O Encontro de Santarém, em 1972, escolheu, no dizer de D. Moacyr Grecchi, dois faróis, a encarnação na realidade e a evangelização libertadora, para iluminar quatro linhas prioritárias: a formação de agentes pastorais, a formação das comunida-des de base, a pastoral indigenista e as frentes pioneiras (presença nas estradas e nos grupos deslocados pela corrida atrás de trabalho).

40 anos mais tarde, na página web da CNBB, no dia 7.7, li a seguinte manchete: “Compromisso e opção pelos pobres. Esse é um dos principais resultados do 10º Encontro da Amazônia em Santarém, anunciado durante entrevista coletiva, no seminário São Pio X (Santa-rém)”. A manchete poderia expressar certa pobreza e estagnação desse encontro. Mas dois dias mais tarde recebi as “Conclusões do encontro de Santarém 2012. Memória e Compromisso”. O texto faz um grande esforço para resgatar a caminhada missionária da Amazônia e nos procura novamente envolver num “compromisso profético de transformação e profunda conversão pastoral”. Propõe palavras-programas, que já se tornaram chavões, como protagonismo, sustentabilidade, novo Pente-costes. Fala-nos até, simpaticamente, de como a sabedoria tradicional e a religiosidade popular da Igreja amazônica estão sendo fortalecidas e ungidas pela Palavra de Deus e pela Eucaristia. Pela Eucaristia?

Esperava-se, depois de 40 anos de jejum eucarístico, na maioria das comunidades amazônicas, uma proposta nova na direção certa, um

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grito preocupado. Não basta elogiar as CEBs. Queremos CEBs com Eucaristia. Não basta invocar a bondade do povo e privá-lo da partici-pação nas decisões pastorais. Esperava-se que alguém dissesse em voz alta, o que em off, em conversas de Nicodemos, todo mundo admite: Precisamos repensar a nossa estrutura sacramental. Pisamos na bola? Empurramos com a barriga a opção pelos pobres sem os pobres, as CEBs sem Eucaristia?

O projeto das Igrejas Irmãs, que empresta por dois ou três anos um padre para trabalhar na Amazônia, precisa ser repensado econômica e pastoralmente. Economicamente: “Vocês não tem ideia de como é caro manter os barcos para o transporte nos rios amazônicos, levando os missionários”, lamentou D. Moacir. Pastoralmente: Quem vai se inculturar ou encarnar em três anos nas comunidades dos rios Xingu, Tapajós, Purus, Madeira, Negro ou Solimões? Estamos caminhando de emergência para emergência. Os missionários, com a maior boa vontade, estão correndo como pilotos da Fórmula 1, com pit stop nas capelinhas, aldeias e comunidade. Precisamos avançar na construção de uma Igreja autóctone, que aposta em presença e não só em visitas.

O Vaticano II produziu muitos frutos. Todavia, falta algo para desinibir a “virada popular”. Deus escuta os dois gritos de seu povo: o grito por justiça dos pobres e o grito por misericórdia dos pecadores. “A conversão a Deus consiste sempre na descoberta da sua misericórdia” (DM 13,6). Essa conversão passa por três retomadas da “virada popular”, por três ajustes:

– a opção pelos pobres há de ser com os pobres/outros como sujeitos;

– a opção pelos e com os leigos e leigas como povo de Deus;– e a opção por inculturação, encarnação e aggiornamento, que

são pressupostos de uma Igreja universalmente autóctone em diálogo com o mundo.

7.1 Os pobres e os outros: sujeitos e mediadores

A “opção pelos pobres” e “pelos outros”, que se tornou linha mestra da reflexão teológica da América Latina, precisa hoje transfigurar-se em “opção com os pobres/outros” e “opção dos próprios pobres/outros” de uma Igreja povo pobre de Deus. Aparecida reconhece que os pobres “se fazem sujeitos da evangelização e da promoção humana integral [...], e

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dão vida ao peregrinar da Igreja” (DAp 398). “Quantas vezes os pobres e os que sofrem [...] evangelizam realmente” (DAp 257) a Igreja! Todas essas frases de efeito e benevolência para com os pobres, nos documentos da Igreja, ainda refletem certo paternalismo e um divórcio sociológico entre pobres e Igreja. A Igreja parece fazer algo para alguém que ainda não é Igreja. Quando Aparecida afirma que “a Igreja é [...] casa dos pobres” (DAp 8) ainda parece que os pobres e os outros, nessa casa, habitam um quartinho de empregada ou são inquilinos, e não proprietários. Também a “Igreja samaritana” (DAp 26) ainda é uma benfeitora dos pobres e não expressa sua subjetividade na Igreja pobre.

Aos pobres, sujeitos da evangelização integral, corresponde seu estatuto mediador da graça: “O encontro com Jesus Cristo através dos pobres é uma dimensão constitutiva de nossa fé” (DAp 257). Um compro-metimento mais próximo com os pobres (cf. DAp 396), com a intenção de fazê-los realmente sujeitos na Igreja, o que desde seu batismo já são, aponta não só para uma conversão eclesial, mas para uma reestruturação pastoral que ainda não aconteceu (cf. DAp 396).

7.2 Os leigos: sacerdotes, profetas, apóstolos

Até a véspera do Vaticano II, o papel do leigo e da leiga na Igreja era o de um auxiliar e subordinado do clero. O Concílio rompeu com essa visão. A Igreja é, antes de qualquer diferenciação em funções, carismas e ministérios, povo de Deus, comunidade fraterna com uma igualdade constitucional (cf. LG 37). Leigos e leigas participam do sacerdócio comum dos fiéis (LG 34), do “múnus profético de Cristo” (LG 12; 35,1) e do apostolado. Essa visão do Vaticano II espera ainda por sua tradu-ção pastoral: “O apostolado dos leigos é participação na própria missão salvífica da Igreja. A este apostolado todos são destinados pelo próprio Senhor através do batismo e da confirmação. [...] Assim todo leigo, em virtude dos próprios dons que lhe foram conferidos, é ao mesmo tempo testemunha e instrumento vivo da própria missão da Igreja `na medida do dom de Cristo´” (LG 33,2). Geralmente, o estatuto laical participativo não avançou além de uma função consultativa. A escassez ministerial, que põe em risco a pastoral ordinária, ainda não conta, como deve, com a participação do povo de Deus, também na elaboração de alternativas.

A questão dos leigos é uma causa dos leigos, uma causa do povo de Deus, uma causa evangélica da igualdade dos filhos e filhas de Deus. O conjunto do povo de Deus, certamente, teria mais soluções para os

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problemas pastorais atuais do que um pequeno grupo clerical. O Espírito sopra onde quer. Ao definir a Igreja como “mistério” e como “povo de Deus”, o Vaticano II nos deixou muitas tarefas. Não conseguiu. A tarefa da “virada popular” como “virada laical” permanece.

7.3 Igreja autóctone: da supervisão à inculturação

O Vaticano II procurou, com espírito crítico, acolher a realidade de seus interlocutores que vivem inseridos numa cultura específica (micro-estrutura) e pertencem, ao mesmo tempo, à modernidade, com desafios e conquistas. Na lógica do Reino, “os pequenos”, os que vivem do lado sombrio do mundo, as vítimas na estrada de Jerusalém para Jericó são caminhos da verdade e porta da vida; são lugar da epifania de Deus, por excelência. A questão social está estreitamente vinculada à questão da ortodoxia. Pecado significa também indiferença diante da exploração dos pobres e do desprezo aos que sofrem.

Com os pobres e os outros trabalhamos e convivemos com o cul-turalmente disponível. Não somos os supervisores do projeto de Deus nem das “obras sociais” que inspiramos. Meios sofisticados e lugares de comando são um contratestemunho para a missão. A “supervisão” nos afasta do chão e dos rostos concretos dos pobres. A eficácia missionária não está nos instrumentos utilizados nem na liderança em “nossas obras”, mas na coerência entre a mensagem do Reino e sua contextualização, também através do nosso estilo de vida.

A passagem da supervisão para a inculturação atinge, obviamen-te, o campo, onde o povo celebra sua vida, ou seja, o campo litúrgico. Algumas reformas litúrgicas pós-conciliares, feitas por “supervisores” sem conhecimento e participação do povo, estão caminhando para o distanciamento pré-conciliar. A Missa Tridentina, em latim, não vai re-verter a fuga em massa de católicos de sua Igreja nem vai ajudar o povo no conhecimento autêntico da fé em Jesus Cristo.

A “virada popular” do Vaticano II clama por uma Igreja autóctone que rompe com qualquer tipo de tutela colonial. Para que na prática pas-toral possa responder à diversidade sociocultural, dispersão geográfica e necessidade espiritual do povo de Deus, ela precisa de certa autonomia para a ampliação, descentralização e reestruturação dos ministérios. Depois da Carta da Congregação para o Culto Divino (26.10.2005), que qualificou “o projeto de uma Igreja Autóctone” como um projeto

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ideológico que deve ser imediatamente interrompido, já não se pode mais afirmar com o Decreto Ad gentes que “por todo o mundo surgem as Igrejas particulares autóctones” (AG 6,3).2 Chiapas era só um exemplo de como uma Igreja indígena local respondeu à escassez de ministros ordenados através da ordenação de diáconos mais próximos de seu povo, como a Teologia Índia mostra a necessária contextualidade da reflexão teológica.

A Igreja autóctone será uma Igreja evangelicamente pobre. Por não ter cultura própria, ela não importa cultura, mas a empresta dos respecti-vos povos. Ela será serva, peregrina, hóspede, instrumento, sinal. Ela tem rumo. Nasce e renasce ao pé da cruz, na perseguição e na fuga, no êxodo e na peregrinação. Para que servem os discursos do aggiornamento e da inculturação, se não para a construção de uma Igreja autóctone, coerente com o Evangelho e relevante para o mundo?

Realizemos o que prometemos, e aprofundemos essas caminhadas marcadas pela graça e pelo pecado, com fidelidade, sem continuísmo, com audácia, sem atrevimento autoritário. Imaginemos que, neste momento pós-conciliar, a Igreja latino-americana esteja esperando numa estação de ônibus. Já se passaram horas e nenhum veículo coletivo chegou. Do outro lado da rua, na direção oposta, chega um ônibus atrás do outro. Ao anoitecer, muitos estão tomando um ônibus de volta, do outro lado da rua, ao menos até o abrigo “Vaticano II”. Outros querem ir mais para trás, até os castelos da Cristandade. Os que não baixam a voz quando falam da Teologia da Libertação propõem caminhar na direção de sua esperança, em vez de esperar um ônibus que talvez não chegue. Sua esperança está no caminhar de uma Igreja povo de Deus, universalmente articulada em rede, e localmente autóctone. Seus passos, nem samba nem tango. Andam lentamente como uma caravana que atravessa o deserto...

Endereço do Autor:E-mail: [email protected]

Blog: http://paulosuess.blogspot.com.br

2 Cf. P. SUESS, Samuel Ruiz e a Igreja autóctone, in: Idem, Impulsos e intervenções. Atualidade da Missão. São Paulo, Paulus, 2012, p. 81-89, aqui 88.

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Resumo: A recepção do Concílio Ecumênico Vaticano II na América Latina foi privilegiada devido a quatro eventos de importante atualização e aprofun-damento durante as décadas subseqüentes, por ocasião das Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, realizadas em Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007). Cada uma dessas Conferências foi devidamente preparada por comissões de teólogos e agentes de pastoral, cujos estudos e contribuições foram redigidos em textos e publicados em todos os países do continente para reflexão e aprofundamento temático entre os fiéis. Os Documentos de Síntese recolheram as contribui-ções das conferências episcopais que são válidas para todas as Igrejas locais e servem de incentivo para a consolidação das atividades eclesiais que dão credibilidade à Igreja Católica.

Abstract: The assembly of bishops of Latin America at the General Conferen-ces at Medellin (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992), and Aparecida (2007) had the purpose, to a large extent, to express the reception and prac-tical application of the teaching of the II Vatican Council in the course of fifty years. Each of these Episcopal Assemblies had been thoroughly prepared by theological commissions and pastoral experts in various fields of the apostolic commitment, whose findings were gathered in official reports and distributed among interested readers for additional viewpoints. The paradigm-syntheses of these conferences are highly regarded as precious documents of permanent value describing the evangelizing role of the Catholic Church, and contributing to its credibility in the world.

Concílio Vaticano II: 50 anos depoisLuis Stadelmann, SJ*

* O autor, Doutor em Línguas e Literatura Semíticas, Cincinnati, e Mestre em Ciências Bíblicas, é Professor no ITESC.

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Concílio Vaticano II: 50 anos depois

Introdução

A recepção do Concílio Ecumênico Vaticano II a 50 anos do seu encerramento, (em setembro de 1965), teve entre nós uma periodização de quatro décadas, cujos pontos altos foram as Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano. Com efeito, a segunda Conferência acon-teceu em Medellin (1968), a terceira em Puebla (1979), a quarta em Santo Domingo (1992) e a quinta em Aparecida (2007)1. Fato notável desses acontecimentos eclesiais é a divulgação dos documentos preparatórios, elaborados pelas comissões de teólogos, e dos textos conclusivos editados pelos Conselhos Episcopais. O teor desses relatórios representa um con-junto de orientações pastorais e doutrinais acerca da vivência da fé cristã na Igreja Católica, e constitui um incentivo à autêntica evangelização de todas as nações através de um intercâmbio entre as culturas. Ao mesmo tempo, são exemplos de recepção seletiva e criativa do Vaticano II, por aplicarem as determinações conciliares à realidade cultural e histórica no contexto do continente latino-americano.

A característica marcante desses documentos oficiais é de apre-sentarem doutrinas e reflexões aos fiéis não meramente como ouvintes, mas como protagonistas atuando nas comunidades eclesiais. Compete-lhes aplicar as metas do Vaticano II em sentido criativo, a fim de supe-rar uma pastoral de conservação, baseada na sacramentalização, com pouca atenção à evangelização, e buscar valores mais autenticamente evangélicos, bem como novas e renovadoras estruturas que façam jus às orientações conciliares. As metas visam superar a mentalidade de uma Igreja que esteja confinada aos parâmetros da cultura europeia e engajar as lideranças católicas na promoção da América Latina.

Durante as últimas quatro décadas se realizaram quatro Confe-rências Gerais que contribuíram eficazmente para a abertura de novos rumos em meio ao subdesenvolvimento que afasta os nossos irmãos de sua própria realização humana. Cada uma das Conferências se esforçou por assimilar alguns aspectos essenciais da tarefa da Igreja na Promoção Humana do continente Latino-Americano para transmitir as respostas aos desafios e os critérios de atualização do Vaticano II para os tempos

1 A Primeira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano foi realizada no Rio de Janeiro, em 1955, tendo como objeto central de seu trabalho o problema fundamental que aflige as nações de todo o continente, a saber: a escassez de presbíteros, ao lado de outro: o da instrução religiosa. Cf. REB, vol., 15, fasc. 4, Dezembro de 1955, 1035-1039.

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atuais. Visava-se, em especial, salientar os parâmetros dos documentos conciliares para fins da evangelização de amplas faixas da população latino-americana, tornando-a uma Igreja autóctone e fiel à sua missão de serviço aos povos do continente.

A. Conferência Geral de Medellín (1968)2

O tema da Promoção Humana foi apresentado como assunto de responsabilidade providencial e no aperfeiçoamento das tarefas eclesiais, em seus métodos de ação e na formação das consciências, retomando o documento conciliar “Gaudium et Spes” (sobre a Igreja no mundo de hoje). O imperativo para uma ação concentrada nessa área levou em consideração o papel da Igreja face à problemática social da América Latina. Por uma parte impôs-se a tarefa de superar os efeitos da primitiva evangelização, precisando ser complementada e até ser transformada no sentido de fazê-la sair da sacristia e torná-la engajada nas áreas de âmbito público do mundo do trabalho, da política, da economia, das empresas e da cultura3. Entretanto, o critério de transformação de um estágio para outro supõe uma fundamentação precisa e clara do que seja a instituição da Igreja, cujas estruturas possam servir de coordenadas sólidas e firmes para a ação promocional na sociedade. Veio a propósito a organização das comunidades de base, bem como as cooperativas e os sindicatos fornecendo os organismos de promoção humana e comunitária para implementar os projetos eclesiais entre seus associados. Visava-se, sobretudo, propulsionar com seu dinamismo outros grupos sociais, fazendo-os perceber e quiçá partilhar as inovações no plano comunitário. Nesses projetos eclesiais é que se fez sentir a força propulsora da Igreja tanto institucional como carismática. A inspiração de grande fomento para uma atuação revitalizada de suas instituições surgiu, mormente, dos documentos conciliares, citados amplamente nos Vicariatos forâneos, Sínodos, Conferências Episcopais, Cúrias Diocesanas e nos ministérios implementados pela Pastoral de Conjunto4.

Na abordagem dos temas atuais sobre a Igreja visível e suas es-truturas, bem como nas Orientações Doutrinais e Pastorais, têm prepon-

2 Odilon ORTH, A Igreja na Atual Transformação da América Latina à luz do Concílio: Conclusões de Medellín, Ed. Vozes, Petrópolis, 1969.

3 Cf. Eugênio de Araújo SALES, “A Igreja na América Latina e a Promoção Humana”, REB, vol. 28, fasc. 3, Setembro de 1968, 537-554.

4 Cf. Odilon ORTH, Conclusões de Medellín, cap 15, “Pastoral de Conjunto − Colegialidade”.

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Concílio Vaticano II: 50 anos depois

derância os documentos conciliares Gaudium et Spes (sobre a Igreja no mundo de hoje) e Lumen Gentium (sobre a Igreja). Entrou em foco um visor marcadamente inovador na perspectiva sobre a situação do homem latino-americano, levando em conta não apenas as carências da existência humana de muitos habitantes, mas principalmente a sua marginalidade privando-os da dignidade, da auto-estima e da fé cristã.

Entre os problemas de demografia do nosso continente impõe-se como tarefa prioritária uma pastoral familiar segundo as diretrizes con-ciliares sobre “o Apostolado dos Leigos” (AA). Além disso, com grande empenho de todas as comunidades eclesiais deu-se um incentivo à orga-nização de grupos da juventude (cap. V “A juventude”), inspirando-se nessas diretrizes sobre a formação dos jovens (§ 12) que representam hoje uma grande força nova de pressão, com ideias e valores próprios, com dinamismo interno de se tornarem futuros líderes na renovação do mundo à luz do Plano de Deus. É que os jovens são mais sensíveis aos problemas sociais e aos valores positivos do processo de secularização, desejando um mundo mais comunitário e pluralista, rejeitando uma imagem desfigurada de Deus para buscar valores mais autenticamente evangélicos.

Em vista da grande repercussão dos Meios de Comunicação Social (MCS), impôs-se nas “Recomendações Pastorais” como um dos projetos prioritários para a Igreja a tarefa de apresentar a este Continente uma imagem mais exata e fiel de si mesma, transmitindo ao grande público não apenas notícias relativas aos acontecimentos da vida eclesial e de suas atividades, mas, sobretudo, interpretando os fatos à luz do pensa-mento cristão (§ 16).

Concluindo com um retrospecto sobre a Conferência Geral de Medellín, citamos as palavras da homilia do Papa João Paulo II, recor-dando com grande estima e apreço, após dez anos, “a intencionalidade evangelizadora que se manifesta nos 16 temas abordados e reunidos em torno de três grandes áreas, mutuamente complementares: promoção hu-mana, evangelização e crescimento na fé, Igreja visível e suas estruturas. Com sua opção pelo homem latino-americano, visto em sua integridade, com seu amor preferencial, mas não exclusivo pelos pobres, com seu estímulo a uma libertação integral dos homens e dos povos, Medellín,

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a Igreja ali presente, foi um apelo de esperança para metas mais cristãs e mais humanas”5.

B. Conferência Geral de Puebla (1979)6

Decorrida uma década após a de Medellín, foi convocada a Confe-rência Geral do Episcopado Latino-Americano para retomar em Puebla os textos que nos últimos anos tinham sido produzidos a nível de epis-copados nacionais, sobre a situação dos pobres, dos marginalizados e de uma multidão de «anônimos sociais» pois concluíra-se, com o Papa Paulo VI, que «quando um homem é ferido em sua dignidade, toda a Igreja sofre». Mas a Igreja tem de haver-se ainda com as diferentes análises da conjuntura atual do continente. Daí que, antes de iniciar a consulta pre-paratória de Puebla, foram retomados os principais elementos da análise da obra de evangelização em vigor. Constatou-se que os diagnósticos não são neutros nem fluem automaticamente da realidade. Tampouco são fruto da simples utilização dos métodos científicos das ciências sociais. Sempre se observa o mundo de um ponto de vista determinado, seja a partir dos setores dominantes, isto é, de cima, ou vendo as coisas de baixo, a partir dos pobres e das classes emergentes. O lugar social do observador condiciona seu lugar epistemológico7.

Tentou-se a criação de um consenso a partir das práticas pastorais. Mas mesmo assim não foi possível conseguir um consenso de dois terços necessários para ser aprovada, no plenário, a visão pastoral do contexto sócio-cultural. Foi mais fácil pôr-se de acordo e aprovar os capítulos doutrinais e as opções pastorais do que elaborar o diagnóstico. O Docu-mento de Puebla introduziu os textos numa perspectiva da colegialidade de todos os bispos com o capítulo sobre a visão histórica da realidade latino-americana. A seguir, especificou a visão sócio-cultural da mesma realidade. Logo em seguida, concentrou sua atenção na realidade eclesial hoje no Continente, finalizando essa parte introdutória com a exposição

5 O Papa JOÃO PAULO II, “Medellín, foi um apelo de esperança”: da homilia pronunciada na Basílica de Guadalupe, 27-1-1979, REB, vol. 39, fasc. 153, Março de 1979, 124.

6 Cf. João B. LIBÂNIO, III. Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano − Puebla: Conclusões: A Evangelização no presente e no futuro da América Latina, São Paulo, Ed. Loyola 1979.

7 Cf. Luiz A. Gómez de SOUZA, “Documento de Puebla: Diagnóstico a partir dos Po-bres”, REB, vol. 39, fasc. 153, Março de 1979, 64-87; Clodovis Boff, Teologia e prática. Teologia do político e de suas mediações, Ed. Vozes, Petrópolis, 1978; J.B. Libânio, O problema da salvação no catolicismo do povo, Ed. Vozes, Petrópolis, 1977.

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sobre as tendências atuais e a evangelização no futuro. Encontram-se aí alguns temas de intuição profunda e reflexões teológicas originais, como p.ex. a “evangelização”, remetendo continuamente aos documentos conciliares do Vat. II, especialmente ao decreto “Ad Gentes” (sobre a atividade missionária da Igreja), e à exortação apostólica “Evangelii nun-tiandi” (sobre a evangelização no mundo contemporâneo) do Papa Paulo VI (1975). Essa temática foi desenvolvida em referência à ação social da Igreja, família, cultura, educação, comunicação social, catequese, liturgia, juventude, ecumenismo e descrença num mundo secularizado. Como remate, abordou-se a pastoral orgânica, empenhando-se na evangelização e não meramente na promoção de um humanismo dispensando a contri-buição fundamental da religião católica, que explicita a profissão de fé e reafirma que somos discípulos de Cristo, o enviado do Pai celeste8.

O colegiado dos Bispos se deu conta de que, ao formular o mé-todo de análise da realidade, não se podia adotar uma posição neutra, mas tinha que se optar por um compromisso de engajamento pela ação pastoral com e a favor dos pobres. É que eles são a maioria da popu-lação do Continente, e são eles que são bem-vindos quando trazem a mensagem de salvação. Aliás, o próprio método de análise da realidade, desde que foi difundido a aplicado no século XX pela “Ação Católica”, foi recomendado pelo Concílio Vaticano II (AA nº 29), e utilizado nos Documentos de Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida. Na prática pastoral entre os grupos de jovens se constatou que o método ver-julgar-agir é um método prático de formação no engajamento que nos tira da acomodação, despertando a consciência crítica e levando-nos a assumir compromissos na transformação da sociedade. Entretanto, para ser implementado é preciso acrescentar ao método a dimensão comunitária: rever e celebrar9.

Intimamente ligadas à atividade pastoral entre os pobres estão as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) como lugar de encontro do povo. São elas que tomam consciência de suas necessidades e de sua poten-cialidade transformadora. Mas é na Igreja que se organizam e dizem sua palavra de Fé e de Justiça. Enquanto na Conferência de Medellín eram

8 Cf. Aloísio Card. LORSCHEIDER, Síntese do Documento de Puebla, Ed. Paulinas, São Paulo 1979; ver também C. Floristan e J. Tamayo, El Vaticano II, veinte años después, Madrid, Cristiandad, 1985.

9 Cf. Mary DONZELINI (Coord.). “O método: ver-julgar-agir-rever-celebrar”. Em. Metodo-logia fé e vida caminham juntas em comunidade: subsídio de reflexão para a formação dos catequistas. Ed. Paulus, São Paulo, 2. ed. 1998; (Caderno Catequético, v.9).

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apenas uma experiência incipiente, após dez anos elas se multiplicaram e amadureceram, sobretudo em alguns países, de tal forma que agora constituem um dos motivos de alegria e esperança para a Igreja. É que se tornaram focos de evangelização e incentivos atuantes de libertação e de desenvolvimento. Nelas participaram as próprias paróquias dos centros urbanos, vinculadas com as paróquias da periferia, como se fossem filiais sufragâneas de suas matrizes. Foi aí que se deram conta de que os dons mais preciosos que possuíam eram os de partilha, precisamente com os irmãos na fé. Superou-se de longe o proselitismo das seitas, devido à difusão de dons divinos entre os irmãos na fé e não meramente entre meros prosélitos.

Entre os 21 temas abordados, cobrindo mais de 200 páginas no livro de conclusões, se destacam as cinco partes de amplos debates em assembleia e assimilação aprofundada em comissões de teólogos. Publicou-se em Puebla um documento de grande riqueza teológica com significativos ganhos e avanços, servindo grandemente para a evange-lização do Continente latino-americano. É notável o nível pastoral no Documento final de Puebla, em especial na dimensão da soteriologia, cristologia, eclesiologia, antropologia teológica10. Foi deveras de grande proveito na recepção e atualização das doutrinas transmitidas pelo Con-cílio Vaticano II, principalmente porque a reflexão doutrinal e pastoral foi levada a todos os níveis da Igreja, desde as comunidades eclesiais de base até os mais altos escalões, dando origem a um aprofundamento considerável, espelhado em inúmeros documentos e iniciativas pastorais. Com efeito, a Conferência Geral de Puebla (1979) representa um marco de grande prestígio para a Igreja Católica da América Latina.

C. Conferência Geral de Santo Domingo (1992)11

Em preparação da IV Conferência geral foi encaminhado um documento de trabalho, visando à recepção dos temas fundamentais do Concílio Vat. II. É que se tinha por objetivo transcender o confinamento de questões restritas à região deste Continente, do âmbito latino-americano, para atingir o cerne da doutrina cristã transmitida pelo cristianismo desde

10 Cf. Leonardo BOFF, “Puebla: Ganhos, Avanços, Questões emergentes”, REB, vol. 30, fasc. 153, Março de 1979, 43-63.

11 Cf. J.B. LIBÂNIO, Santo Domingo, Conclusões: Nova Evangelização, Promoção Humana, Cultura Cristã, Jesus Cristo Ontem, Hoje e Sempre, CELAM, Ed. Loyola, São Paulo 1992.

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seus primórdios e ao longo dos concílios da Igreja, realizados nos vários séculos. Mas, em vista da realidade do nosso Continente, era preciso aprofundar os temas da “nova evangelização, promoção humana e cul-tura cristã”12. O objetivo não era, porém, criar um impacto nos tempos de hoje, para ganhar um lugar ao sol entre as culturas, mas se queria enfrentar o desafio de atualizar os ensinamentos do Vaticano II através da inculturação desse ensino nos povos da América Latina mediante a catequese. Visava-se, sobretudo, relacionar a catequese com a nova evangelização, com a promoção humana e com a cultura cristã13. Ao colocar a catequese como eixo da educação cristã, um dos ministérios da pastoral diocesana foi elevado a um nível mais proeminente, pois os catequistas são chamados a ensinar os jovens a aprenderem a vivência da fé e não só a praticarem atos de piedade, que são típicos já das tradições culturais herdadas desde a casa paterna. A aprendizagem consiste na interiorização da doutrina cristã do Catecismo, cujos temas abrangem o Credo, os mandamentos, os sacramentos e a oração. Na própria seleção dos catequistas para o exercício deste ministério eclesial tem prioridade, mais do que a mera competência pedagógica, o carisma típico de um modelo de mediação da vivência da fé que saiba não apenas doutrinar da boca para fora, mas sobretudo tornar o ensino uma aprendizagem empolgante. O requisito básico é sem dúvida inculcar a fé na menta-lidade dos jovens através da “inculturação” dos temas, através de sua assimilação e expressão em ambiente de convivência e alteridade nas diversas faixas etárias desde a infância até a adolescência, para tornar-se uma fé de conteúdo autóctone, na idade adulta, sem resquícios espúrios do folclore antigo e antiquado.

A metodologia da “inculturação” levou em consideração a diferen-ça do termo na língua inglesa, na qual tem sentido negativo: “ausência de cultura” (inculturation). Entrou em voga ali o uso da palavra “acul-turação” que significa mera justaposição de duas ou mais temáticas sem inserir uma na outra nem sobrepor uma sobre outra. Resulta então um paralelo entre cultura antiga e moderna, cultura ameríndia e europeia, cultura afro-descendente e mestiça, cultura dos pobres e dos ricos, cultura

12 “Contribuições do DECAT Cone Sul-Brasil à IV CELAM em São Domingos: “nova evange-lização, promoção humana e cultura cristã”, Buenos Aires, San Martin (La Crujia), 10 de abril de 1992, Participantes do Encontro dos Países do Cone Sul-Brasil do Departamento de Catequese do CELAM; REB vol. 52, fasc. 207, Setembro de 1992, 699-791.

13 Cf. F. TABORDA, “Nova Evangelização – Promoção humana – Cultura cristã”, em Santo Domingo: uma leitura pastoral, Ed. Paulinas, São Paulo, 1993, 103-125.

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dos jovens e dos velhos, cultura audiovisual e bibliográfica, cultura da morte e da vitalidade, cultura cristã e secularizante14.

O tema da “cultura” foi amplamente tratado na “Gaudium et Spes” (sobre a Igreja no mundo de hoje) do Vat. II, e precisava ser retomado devido à fisionomia cultural que a Igreja católica imprime nos povos latino-americanos através da evangelização. Daí que a liturgia fornece um traço inerente na vivência pública da fé cristã bem como na ética do comportamento dos grupos sociais. Além disso, a Pastoral de Conjunto das dioceses contribuiu enormemente para o convívio social e econômi-co das populações: haja vista as instituições educacionais em todos os níveis de educação da juventude (escolas e creches), nas organizações assistenciais dos enfermos, dependentes químicos, marginalizados, opri-midos das áreas de risco migrando para as periferias urbanas, trazendo na bagagem a problemática não resolvida das áreas de sua proveniência. Muitas das obras assistenciais foram assumidas pelo Estado e constam nos regimentos da legislação da própria Constituição de cada país. Com efeito, sem o engajamento nos vários setores da pastoral da Igreja não teria sido possível a vida social desses grupos nem sua inserção na população estável dos diversos países do Continente15. Trata-se de uma cultura assistencial promovida pela ação pastoral da Igreja, visando não apenas garantir a subsistência, mas sobretudo a dignidade humana. Houve um esforço comunitário para despertar um crescente senso de auto-estima mesmo em condições precárias e nos estágios de transição para a melhoria, sem desmerecer os resultados parciais porque frutos da labuta individual e comunitária. O “agir” e as opções pastorais da Igreja eram motivados não apenas em vista de um mundo melhor, mas também para colaborar na implantação do Reino de Deus no mundo. É que a evangelização da cultura cristã na América Latina constitui uma contribuição sui generis de grandíssimo proveito para a humanidade inteira. Pois o traço marcante do sadio otimismo da vivência do povo é oriundo do cristianismo e constitui o único antídoto contra o pessimismo profundo motivado pelas religiões dos povos asiáticos.

Entre os compromissos pastorais encontramos o importante tema sobre “os adolescentes e os jovens” (nº 111-120) ocupando lugar de

14 Cf. Paulo SUESS, “O processo da inculturação”, em Santo Domingo: uma leitura pastoral, op. cit., 53-71.

15 Cf. A. ANTONIAZZI, “Novos Temas para Santo Domingo: Observações sobre o «Do-cumento de Trabalho»”, REB, vol. 52, fasc. 207, Setembro de 1992, 538-551.

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destaque, como não podia deixar de ser, visto que o Vat. II dedicou-lhes o documento conciliar “Gravissimum Educationis” (sobre a Educação Cristã). Na verdade, só teremos uma juventude engajada na vivência da fé cristã, quando as convicções religiosas forem amoldadas às diretrizes da Educação Cristã, superando os ditames do humanismo secularizante do Ensino Público. Um fator marcante da pedagogia eclesial é a dimen-são vocacional, a fim de que os formandos aprendam a desenvolver a capacidade cognitiva e volitiva, moral e criativa, emocional e afetiva dentro das próprias potencialidades, em preparação da sua missão na vida, quando adultos. É que Igreja é mestra da formação humana pela dimensão comunitária da civilização do Ocidente, desde séculos de comprovada competência pedagógica para todas as gerações humanas. Pois a força dinâmica da pedagogia é atribuída à ação do Espírito Santo impulsionan-do as instituições de ensino a proclamar a verdade num confronto aberto e honesto com a sociedade toda com que está envolvida.

D. Conferência Geral de Aparecida (2007)16

No conjunto dos vários temas abordados em Aparecida, o funda-mental é a identidade católica. De dentro dela, o processo educativo se abre ao social, ao pobre, à formação integral do educando. À luz do papel da Igreja na obra da evangelização aparece nitidamente a “missão” que aos fiéis, como “discípulos” de Cristo, compete assumir na América La-tina. Nesta perspectiva é preciso engajar todas as camadas da comunidade cristã e principalmente a grande maioria dos que por circunstâncias con-junturais são os “pobres”. Desde já se especifica a perspectiva sociológica da situação econômico-social focalizando a disponibilidade dos fiéis que valorizam a fé como dom de Deus e são agradecidos pelo chamamento de pertencer à Igreja Católica. Não estão imbuídos de um senso elitista ou exclusividade frente aos grupos de crentes pentecostais protestantes, precisamente porque estão impulsionados pela motivação decorrente da “missão” de serem portadores de dons salvíficos para todo o mundo. É que estão cônscios do chamamento de Deus que conta com eles para difundir o “poder salvador e libertador de seu Reino” (nº 30). Chamamos a atenção para a ênfase sobre a religião cristã visando à “salvação” − de cunho espiritual, religioso e sobrenatural −, em contraste com as religiões

16 Cf. Documento de Aparecida: Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, Ed. Paulus, São Paulo, 2007.

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de servidão da Antiguidade17. É para não esquecer, porém, que a religião de salvação abarca a “teologia da libertação”18 e, graças ao Documento de Aparecida, é possível acrescentar uma complementação muito eluci-dativa ao incorporar a dimensão da “teologia do abraço”19 interpretando o compromisso de vida como desdobramento da evangelização20. Ora, os pastores crentes apregoam uma fé muito exuberante, interpretando esse movimento como fruto de uma “teologia da prosperidade”, mas sem exigirem dos seus ouvintes que professem sua adesão a Deus numa comunidade de fiéis. Não é de admirar que esses se sintam isentos de qualquer missão religiosa e por isso estariam livres desse compromisso social, porque substituem o testemunho de fé por uma mundanização de tudo o que se refere à dimensão espiritual e por mera antropologização, promovendo ao invés o senso da auto-estima como corolário da cida-dania. Entretanto, a essência da religião não é uma promoção cultural nem mero movimento de religiosidade e, sim, é a mensagem de salvação divina para toda a humanidade e abarca a vida terrena até desembocar na vida eterna. Dai que crenças avulsas, exotéricas ou superstições, têm efeito deletério com graves consequências, já aqui na convivência social e também nas expectativas preternaturais da vida no além.

O itinerário formativo dos fiéis no seguimento de Cristo como “discípulos” visa a uma perspectiva muito mais ampla da vida cristã, porque envolve a disponibilidade a serviço do Reino de Deus e não meramente da instituição Igreja, da cultura cristã ou da civilização do

17 Cf. W. O. PIAZZA, Religiões da Humanidade, Ed. Loyola, S.Paulo, 2. ed., 1991. Entre as religiões de servidão constam: antigo Egito, Mesopotâmia, indo-europeus: celtas, eslavos, germanos, gregos, romanos, semitas; cananeus, antiga China, Ja-pão, astecas, mayas, incas; entre as religiões de libertação estão: a religião de Mani, gnosticismo, antiga índia, hinduísmo, budismo, jainismo, budismo chinês, budismo japonês, budismo tibetano, confucionismo; religiões de salvação: masdeísmo, religião de Israel, cristianismo, islamismo. Cf. W.O. Piazza, Religiões da Humanidade, Ed. Loyola, S. Paulo, 2. ed., 1991.

18 Na articulação entre a teologia e a sociologia é preciso focalizar exclusivamente a fé cristã e o compromisso social sem enveredar para a problemática do MST ou da demografia, ou ecologia ambiental, sem mencionar as terapias cosméticas da farma-cologia, usando esta expressão por “misnomer”.

19 Na implementação da “teologia do abraço” impõe-se aos educadores a norma de proceder com o cuidado preventivo contra abusos sexuais nas instituições de ensino e de assistência social.

20 Cf. Clodovis BOFF, “Teologia da Libertação e Volta ao Fundamento”, em REB, vol.67, fasc. 268, Outubro de 2007, 1001-1022.

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Ocidente21. O fator decisivo é a abertura para a dimensão sobrenatural que unicamente compete a Deus desvendar por meio de Jesus Cristo, e não Buda, Confúcio, Maomé ou qualquer guru asiático. Pois o que é decisivo na revelação de verdades sobrenaturais não é o pensamento humano sobre Deus e, sim, o que Deus exige de nós para relacionar-nos com Ele e com a ecologia humana e com a espiritual.

A motivação primordial da Conferência Geral de Aparecida é eclesial, na esteira do Vat. II, visando à atualização do ensinamento conciliar da Igreja no mundo e não precipuamente a relevância teológica e pastoral da Igreja Católica na América Latina. É que a presença da Igreja neste Continente é um comprovante decisivo da sua existência, de cunho empolgante, no mundo, mas ela cai ou se mantém de pé não pela promulgação de dogmas ou documentos episcopais e, sim, pela vivência da fé nas comunidades cristãs e não propriamente pelos programas tele-visivos de shows de propaganda religiosa com motivação carismática, seja eclesial ou sectária. O fator decisivo é sem dúvida, quem é discípulo de Cristo, hoje, neste tempo, diante do atual cenário conjuntural22.

Uma das características marcantes dos discursos pronunciados pelos participantes da Conferência é a linguagem dos missionários em estilo persuasivo e eloquente, de comunicação direta com os ouvin-tes. Lembram também o importante documento “Ad Gentes” (sobre a atividade missionária da Igreja) do Vat. II, que traça as coordenadas para a obra evangelizadora da Igreja. Desde o início do cristianismo, os “missionários” estão a serviço do Espírito Santo e são identificados como “discípulos”, no seguimento de Cristo, estabelecendo comuni-dades cristãs para a formação dos fiéis na doutrina e na celebração dos sacramentos, partilhando os dons divinos. A escolha do termo se inspira na peculiaridade do NT quando a religião era designada como “cami-nho” significando o modo de vida dos fiéis vindos de outras regiões e países estabelecendo comunidades cristãs, que por sua vez cultivavam a vivência religiosa e irradiavam-na para as populações mais diversas do Império Romano e nos países de outras culturas. Adotou-se a praxe, no cristianismo, de consolidar a fé ao engajar os próprios fiéis na obra de implantá-la no coração do grupo de catecúmenos, principalmente entre

21 Cf. P. SUESS, “Quinta Conferência − Quinta-essência: A missão como paradigma-síntese de Aparecida”, REB, vol.67, fasc. 268, Outubro de 2007, 908-928, esp. 919.

22 Cf. E. CESCON, “Ser discípulos num tempo de mudança”, REB, vol. 67, fasc. 268, Outubro de 2007, 949-961.

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os jovens, e também nos neófitos de número cada vez mais crescente. É importante notar que a ação missionária não descuidou de pregar “missões populares” a fim de recuperar a relevância da fé cristã entre as camadas da sociedade que perderam sua vivência na comunidade eclesial e pro-curaram viver sem fé alguma. Aliás, é do conhecimento de todos que aqueles que se bandearam para movimentos pentecostais protestantes, não retornam à comunidade católica porque renunciaram ao Credo, à recepção dos sacramentos e à frequência às celebrações da liturgia. Uns partiram para outras crenças, outros se identificaram com correntes cul-turais marcadas pelo indiferentismo religioso. Trata-se de uma partida sem novo começo, porque muitas vezes já fazia tempo que esses andavam a esmo, nem rumo ou meta alguma. Acontece, porém, que o caminho do retorno vem sendo trilhado por alguns afastados da Igreja, quando acompanhados pelos missionários incumbidos da Pastoral de Conjunto da diocese, inspirada no documento conciliar “sobre o Apostolado dos Leigos” (AA). E precisamente são os leigos das paróquias e das Comu-nidades Eclesiais de Base comprometidos com sua fé que se engajam no acolhimento de todos os que procuram sua inserção na Igreja23. Devido às várias instâncias pastorais é que as paróquias promovem a formação da fé cristã que tem seu ponto inicial num encontro em profundidade com Jesus Cristo, marcando o início da pertença ao cristianismo.

Conclusão

Escrever sobre a recepção do Concílio do Vaticano II, 50 anos após sua realização, é tocar em um tema de muita atualidade na América Latina. Com efeito, a periodização de quatro Conferências Gerais do Episcopado deste Continente lança uma luz que se projeta sobre a vita-lidade da Igreja a partir do encerramento do Vaticano II até hoje. Graças a esses eventos eclesiais houve um novo surto de revivescimento daquela atmosfera de comunhão eclesial e de aprofundamento do ensinamento conciliar em ordem à sua aplicação na vida da Igreja. Surgiram também lacunas no quadro dos organismos diocesanos e paroquiais devido à diminuição do número de padres, religiosos e agentes de pastoral, cuja demanda está aumentando cada vez mais, enquanto as famílias cristãs não têm condições de atender à procura. Daí é que resultam buscas de solução alternativa para preencher as ausências, mas não houve respostas

23 Cf. Maria Clara L. BINGEMER, “Eclesialidade e Cidadania: O lugar do laicato no Documento de Aparecida”, REB, vol. 67, fasc. 268, Outubro de 2007, 977-1000.

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positivas em âmbito do Continente latino-americano para a renovação dos discípulos missionários das comunidades de fé a serviço de Deus e da Igreja, nem surgiram novas iniciativas para a promoção das voca-ções. Entretanto, pela maneira como foi preparado e pelo espírito como foi realizado, este encontro dos bispos em Aparecida servirá agora de inspiração fecunda para a busca de saídas dos problemas e descoberta de novas iniciativas para atender aos compromissos da Igreja nos próximos anos. Pois o grande fruto desses encontros entre bispos é certamente um maior intercâmbio não só entre teólogos, mas também entre representan-tes das dioceses e organismos eclesiais em comunhão e colaboração com os dicastérios do Vaticano e os ministérios do CELAM e CNBB.

Endereço do Autor:Colégio Catarinense

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Encontros Teológicos nº 62Ano 27 / número 2 / 2012, p. 139-163.

Resumo: O presente artigo, refazendo o percurso da eclesialidade católica em confronto com a secular modernidade, rebusca, ao modo de notas de pesquisa, em largas linhas, alguns antecedentes históricos que permitem retomar, em melhor medida, a devida importância e o grande alcance do Concílio Vaticano II. Coloca em destaque o intento conciliar de restabelecer um diálogo compatível com o mundo moderno-contemporâneo. Se as muitas recepções do Concilio nem sempre possibilitaram uma resposta eclesial à altura das transformações de nossa história recente, nem por isso, podemos deixar cair na descrença do anacronismo suas interrogantes fundamentais e grandes intuições. Nesse particular, resgatar os vínculos que nos unem ao passado parece-nos um modo interessante de seguir em frente. Talvez esta seja a tarefa que, neste ainda início de milênio, nos coloca a caminho como discípulos-missionários de Jesus Cristo.

Palavras Chave: Modernidade – Eclesialidade Católica – Vaticano II – Moder-nity – Catholic Ecclesiology II Vatican Council

Abstract: The aim of this article is to enhance the theme of Catholic ecclesiology in confrontation with secular modernity so as to draw on previous tendencies which prevailed before the II Vatican Council. The purpose is to re-establish a type of dialogue which is compatible with the contemporary modern world. Although the approach to the outlook of the Council did not always promote an ecclesial response at the level of the transformation of recent history, it certainly does not permit us to let it fall into oblivion or cast off on account of a lack of interest in all the fundamental and grand intuitions. In this particular point of theological analysis it seems that the links connecting us with the past are quite suggestive to be pursued in view of the future that lays ahead. This would seem to be the task to be envisaged at the beginning of the new millennium which the disciples will have to embrace and follow as missionaries of Jesus Christ.

Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudançasVitor Hugo Mendes*

* Presbítero da Diocese de Lages, Santa Catarina, Brasil. Mestre em Educação, His-tória e Politica (UFSC/1998). Mestre em Teologia Sistemática (PUCRS/2004). Doutor em Educação (UFRGS/2006). Secretário Executivo do Departamento de Cultura e Educação – CELAM (2011). Professor no Instituto Teológico-pastoral para a América Latina – ITEPAL, Bogotá, Colômbia.

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Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudanças

“La historia de la humanidad, a la que Dios nunca abandona, trascurre bajo su mirada compassiva”(DA 30)A celebração dos 50 anos do Concilio Vaticano II já inclui grande

movimentação e uma agenda de incontáveis atividades no decorrer dos próximos anos. A convocação (1959) e realização (1962-1965) deste grande acontecimento tornou-se, sem dúvida, um marco referencial indispensável no percurso do Cristianismo Católico e demarcou o inicio de uma autêntica reforma na vida da Igreja.

Vale lembrar que, com a crise da Cristandade medieval e a emer-gência do mundo moderno, tempos difíceis sobrevieram para a institui-ção Católica. As tentativas de reforma, paradoxalmente, enfrentaram a relutância e a resistência interna a mudanças profundas, particularmente, no que dizia respeito à auto-compreensão de uma Igreja que não mais coincidia com a “extensão do mundo” e os rumos do esclarecimento iluminista (Aufklärung).

Neste sentido, a conturbada relação que se estabeleceu entre Igreja Católica e o modus operandi moderno, – aquela buscando restauração e este querendo salvaguardar a maioridade conquistada –, permite entre-ver, nessa disputa, alguns motivos da progressiva perda da hegemonia eclesiástica. Em clima de contenda, torna-se inevitável a reclusão da instituição eclesial à esfera do espiritual desentranhado da historicidade do mundo. Sob o influxo de uma disputa política intensa, não sem razão, mas, de modo geral e recíproco, se estabeleceu um ambiente de ataques constantes, obliterações, autodefesa e ferrenha oposição, no mais das vezes, em prejuízo de todos.

Este prolongado e polêmico debate histórico retém o complexo substrato que engendrou a decidida reforma da Igreja. Muito embora o anseio e a urgência de mudanças substanciais no seio do Cristianismo Ca-tólico tenham-se tornado uma legitima reclamação, somente a realização do Concílio Vaticano II levou a termo e de modo radical, transformações que pudessem alterar, significativamente, a arquitetônica eclesial e suas relações com a sensibilidade (pós)moderna.

Em sua carta-testamento Novo Millennio Ineunte (2001), João Paulo II lembra “quantas riquezas” estão presentes nas diretrizes do Concílio Vaticano II e pergunta sobre a recepção do Concílio. Aconteceu? Trata-se de uma indagação importante, oportuna e atual na dinâmica

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do tempo que se chama hoje e, não menos, para orientar um propósito adequado no contexto das comemorações cinquentenárias. No dizer do agora Beato João Paulo II,

À medida que os anos passam, aqueles textos não perdem seu valor nem sua beleza. É preciso que sejam lidos adequadamente, que possam ser conhecidos e assimilados, como textos qualificados e normativos do Magistério da Igreja. [...] sinto ainda mais intensamente o dever de indicar o Concilio como a grande graça de que se beneficiou a Igreja no século XX: nele se encontra uma bússula segura para nos orientar no caminho que se inicia (NMI 57).

O presente artigo, refazendo o percurso da eclesialidade católica em confronto com a secular modernidade, rebusca, ao modo de notas de pesquisa, em largas linhas, alguns antecedentes históricos que permitem retomar, em melhor medida, a devida importância e o grande alcance do Concílio Vaticano II. Coloca em destaque o intento conciliar de restabe-lecer um diálogo compatível com o mundo moderno-contemporâneo.

Se as muitas recepções do Concilio nem sempre possibilitaram uma resposta eclesial à altura das transformações de nossa história re-cente, nem por isso, podemos deixar cair na descrença do anacronismo suas interrogantes fundamentais e grandes intuições. Nesse particular, resgatar os vínculos que nos unem ao passado parece-nos um modo in-teressante de seguir em frente. Talvez esta seja a tarefa que, neste ainda início de milênio, nos coloca a caminho como discípulos-missionários de Jesus Cristo.

1 Antecedentes de uma grande reviravolta na eclesialidade Católica

A era moderna caracteriza-se, entre outros, sobretudo, pelo rom-pimento com a Cristandade medieval. A tomada de Constantinopla pelos turcos Otomanos (1453) não deixa de ser um marco, pois indica o fim do Império Romano do Oriente. No entanto, tal como propõe Brighenti (1995), a ruptura mesmo se processa em dois marcos distintos da história: a Reforma Protestante (1521) e a Revolução Francesa (1789).

Embora estes acontecimentos estejam, historicamente, distancia-dos no tempo, em uma visão de conjunto eles demarcam, neste proces-so, momentos decisivos na constituição da modernidade, e na mesma

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medida, desafios concretos em que a Igreja Católica, chamada em causa pública, buscou dar uma reposta precisa a situações e problemas especí-ficos. É na perspectiva mais ampla dessa complexidade histórica que se delineia, não obstante a peculiaridade de cada momento, entre outros, uma espécie de vínculo e continuidade entre a realização do Concílio de Trento (1545-1563) e o Concílio Vaticano I (1870). Embora os motivos históricos sejam distintos, as exigências que se apresentavam para o Catolicismo eram as mesmas: reivindicar e garantir os direitos da Igreja diante das novas condições do mundo moderno. Neste sentido, as bases doutrinais, teológicas e pastorais do Concílio de Trento são retomadas, confirmadas e aprofundadas no Vaticano I. No avançado da época moder-na, uma explicita reação e renovada oposição ao desenvolvido processo emancipatório da sociedade, atitude que se vê reforçada até as vésperas da realização do Vaticano II.

Na conturbada clarividência deste alargado movimento históri-co, em condições difíceis, constituiu-se a reação oficial, sistemática e institucional da Igreja Católica em defesa de sua Tradição eclesial, da autoridade papal e, não menos, do seu patrimônio espiritual, frente a um mundo cada vez mais distanciado da matriz religiosa católica.

Refazendo este percurso, pode-se afirmar que a Reforma Protestan-te1 sinaliza o rompimento interno da cristandade medieval. Ocupando a primeira metade do século XVI, este acontecimento provocou um grande

1 A Reforma Protestante no século XVI foi, sem dúvida, o acontecimento mais dramático da Igreja Católica Romana ao longo de sua história. Embora se trate de um movimento amplo, quer em suas causas quer em sua repercussão (cf. VILLOSLADA, 1979), a reforma que se fez protesto – e resultou, na ruptura do Catolicismo, no surgimento de novas Igrejas –, tem como figura emblemática Martinho Lutero (1483-1546). Tratava-se de um período de grandes transformações da sociedade daquele tempo, situação que não deixava de exigir mudanças na organização da Igreja e da Religião. Dessa maneira, os conflitos que ocorreram a partir de outubro de 1517, quando Lutero afixa, na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, as suas Noventa e Cinco Teses, alcançam uma dimensão muito mais ampla do que a simples oposição à Doutrina das Indulgências. “Duas semanas depois, copiado e difundido por estudantes entusiastas, o documento já era conhecido em toda a Alemanha: muitos pressentiram que, para além da doutrina das indulgências, era o conjunto de uma reforma religiosa e de uma renovação espiritual que o monge saxão se aprestava a abordar” (PIERRARD, 1986, p. 171). Chamado a Roma sob a acusação de heresia, pela intervenção do Príncipe da Saxônia, Frederico, Lutero foi ouvido na cidade de Augsburgo (1518). Recusando-se a mudar de opinião, permanecia o impasse e aumentava os problemas para a Igreja. A resposta do Papa, em junho de1520 foi a declaração de herege e de excomunhão, concedendo-lhe um prazo de 60 dias para retratação. Em protesto, no Natal do mesmo ano, Lutero queima publicamente a bula papal (Exsurge Domine), sendo definitivamente excomungado em 1521.

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desgaste na vida interna da Igreja e o desfecho final, com a ruptura de-finitiva, significou o marco histórico da quebra na unidade católica. Por sua vez, este fato já é, por si mesmo, a confluência de múltiplos fatores sociais que em situação anterior, dados os movimentos que se faziam presentes na vida cultural, pressionavam a Igreja na urgência de realizar mudanças e reformas. Na visão desenvolvida por Brighenti,

A Reforma se caracteriza por uma série de perturbações sociopolíti-cas, socioculturais e religiosas que abalaram, não somente a Igreja do Ocidente, mas também os Estados, que seriam profundamente afetados. Coube a Lutero personificar todas essas aspirações generalizadas num movimento religioso que desembocou na Reforma Protestante, responsável, mas não única, pelo rompimento interno da cristandade. (BRIGHENTI, 1995, p. 200).

No contexto da Reforma há, sem dúvida, um processo emancipa-tório muito mais amplo que reivindica, seja no campo cultural, seja no campo religioso, uma crescente participação dos homens e mulheres na ordem do mundo. Assim, pode-se reconhecer que “a causa fundamental do desfecho da ruptura foi a admissão do princípio do livre exame, do critério individual na interpretação das Escrituras, que em grande parte resume as principais aspirações, tanto do humanismo quanto da Renas-cença” (BRIGHENTI, 1995, p. 205).

Esta dessacralização, em medida sempre maior, favoreceu o esfa-celamento da “ordem social cristã”, rebeldia que veio de encontro com a rígida e inamovível posição das autoridades católicas. No entanto, tal enrijecimento não fez mais que acirrar os ânimos de protestos e apro-fundar a mobilização mais ampla das forças contrárias aos arcaísmos da Cristandade.

Frente a tudo isto, deve-se ressaltar,

Não faltaram vozes que se levantaram do seio da Igreja, prevenindo o desastre de uma ruptura iminente. Mas a corrupção e os abusos [...] teriam um efeito asfixiante em relação a todas as tentativas de reno-vação autêntica. [...] O desfecho foi inevitável. As respostas da Igreja não somente vieram muito tarde como, em seu conjunto, se mostravam totalmente inadequadas (BRIGHENTI, 1995, p. 206).

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No espírito de Contra-Reforma ou Reforma Católica, o Concílio de Trento2 (1545-1563), apresentava-se como um lento despertar em meio aos assombros de um terremoto. Em sua forma reativa, o que parecia de início a busca de proteção, logo se transformou em defesa e intento explícito de “frear” a sublevação que se havia constituído, em visível pretensão de reforma-restauração.

Restrito aos clérigos católicos e dirigido a responder aos confli-tos oriundos da posição luterana, Trento atribuiu particular atenção aos problemas dogmáticos, orientando-os a esclarecer, elaborar e definir a fé católica, como também, estabelecer alguns encaminhamentos práticos da Reforma da Igreja3. De qualquer maneira, não obstante os esforços, a tentativa conciliar não deixou de causar desilusões. Não bastasse o seu caráter jurídico-dogmático ter sancionado a divisão da Igreja, “os

2 Convocado em 1536, pelo papa Paulo III (1534-1549), mas prejudicado em sua realização, o esperado Concílio foi novamente convocado em 1542, sendo que a falta de êxito desta segunda tentativa somente vigorou na terceira convocação, em 15 de março de 1545, de modo que sua abertura oficial deu-se aos 13 de dezembro daquele ano. “Dos poucos participantes da solene abertura do Concílio (eram, além dos três Cardeais Legados, ainda o Cardeal de Trento, quatro arcebispos, vinte e um bispos, cinco Superiores Gerais de Ordens, os delegados do rei Fernando, e cinqüenta cientistas, na maior parte teólogos), nenhum deles podia suspeitar que o Concílio Ecumênico, após duas interrupções, só iria terminar dezoito anos mais tarde, e que, convocado com tanta dificuldade, teria por muitos séculos eminente importância para a vida da Igreja” (TÜCHLE; BOUMAN, 1971, p. 142).

3 O Concílio de Trento, que se realizou em três sessões (1545-1549; 1551-1552; 1562-1563), produziu numerosos documentos. Tais decretos “dizem respeito antes de tudo a temas levantados por Lutero: a doutrina da justificação, as fontes da fé (a relação entre a Escritura e a Tradição), o pecado original, os sacramentos”. Entre outros, “os casamentos clandestinos são declarados inválidos e não apenas ilícitos. Os deveres do ministério episcopal são regulamentados: convocação anual de sínodos diocesanos, reunião de sínodos provinciais a cada três anos; obrigação de residência; proibição de ocupar ao mesmo tempo diversas sedes episcopais (acumulação de benefícios)” (FR�NLICH, 1987, p. 126). Das reformas levadas a termo pelo Concílio, em termos de suas implicações na vida pastoral da Igreja, ressalta-se a Instituição dos Seminá-rios. Considerando as experiências que já se vinham fazendo desde o II Concílio de Toledo (527), em suas indicações para formação sacerdotal, mais de mil anos depois, Trento resgata, institucionaliza e torna católica, universal, a modalidade de Seminário. É oportuno indicar que se trata de um momento histórico datado. Segundo H�ring, “seria uma grande injustiça, e temos de ter consciência disso, se pretendêssemos julgar os seminários tridentinos e o clero aí formado, em relação às exigências e as possibilidades de hoje. A Igreja fez, sem dúvida o que pôde. E o Concílio de Trento não é responsável pelo facto de as suas reformas terem sido enterradas ‘embalsa-madas’ ou metidas num congelador”. Mesmo assim, o autor acentua dois problemas de fundo na formação deste período: separação e alienação do ‘mundo’ como forma de conservar a vocação; e o anacronismo da filosofia e teologia, “absolutamente intemporais, ideais, as mesmas para todos os tempos, para todas as classes, para todas as regiões do mundo” (HÄRING, 1995, p. 85-93).

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decretos reformatórios do Concílio pareciam muitas vezes desconexos entre si. Sua execução só se processou aos poucos, depois de superadas muitas dificuldades” (TÜCHLE; BOUMAN, 1971, p. 157). Em todo caso, muitas iniciativas de reforma que já vinham sendo implementadas de forma localizada, foram oficialmente absorvidas e promulgadas como normas legislativas para a Igreja Universal. De modo geral, o Concílio propôs uma renovada orientação para a vida religiosa e moral do clero e do povo, um programa que pretendia restabelecer, em novas condições, a vida cristã, como também, eliminar o excesso de abusos que, aliás, não podiam ser negados ao interno da vida eclesial.

Sem de fato ter conseguido restabelecer a unidade da Igreja, e incapaz de conter o avanço de sua perda de prestígio junto à sociedade, a debilidade crescente da presença pública da Igreja no mundo foi nova-mente abalada no contexto do século XVIII. O desenvolvimento do movi-mento iluminista que culminou na Revolução Francesa (1789), tornou-se a referência fundamental do rompimento externo da Cristandade.

Na medida em que se processa a ruptura entre trono e altar, paula-tinamente, a identidade de “cidadão” sobrepõe-se a do “cristão”, sendo que a centralidade da vida social desloca-se do “fiel” para a dignidade do “homem” em seus direitos e deveres. Configura-se, assim, no conluio de um movimento político-social, a aspiração libertária que corrobora as bases da sociedade moderna, caracteristicamente, os ideais da moderni-dade ilustrada do século XVIII.

Segundo Pierrard, comparativamente, assim como

os papas da Idade Média haviam conseguido fazer a unidade da Europa na Cristandade, a França revolucionária agruparia os espíritos em torno de algumas ideias generosas – liberdade, igualdade, fraternidade – que, embora se liguem ao Evangelho através da “religião natural”, não se inscrevem verdadeiramente num contexto cristão: o triunfo da burgue-sia que marcaria o século XIX se faria acompanhar de uma profunda laicização (PIERRARD, 1986, p. 211).

De fato, esse movimento revolucionário que sacudiu a Europa e se impôs de forma radical, mediante uma controvertida aliança entre a burguesia liberal insurgente e o imenso contingente do campesinato, for-mado de massas miseráveis, desembocou na derrocada do regime feudal e na separação definitiva entre trono e altar. A Declaração dos Direitos do Homem (1789) definia e, a seu modo referendava, os novos princípios

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da ordem a ser estabelecida, sempre destacando a soberania do povo em detrimento de uma ordem divina, capitaneada pela Igreja Católica.

Sob o influxo de um humanismo racional, o acento positivo da razão crítica, purificada no “tribunal da razão”, no período subsequente, favoreceu uma atitude de reverberação contra a Igreja e a progressiva limitação de suas prerrogativas. Fragilizada e com dificuldades de se impor, a Igreja se mantinha na afirmação das formulações de Trento que, a seu favor, até esse momento revolucionário, havia conseguido manter uma relativa unidade do Catolicismo.

Diante das perturbações que se somavam social e politicamente em atitude de oposição, somente 80 anos depois da Revolução Francesa, sob forte pressão, a Igreja decidiu enfrentar, institucionalmente a situação, mediante a convocação de um novo concílio4, o Vaticano I (1870). Embo-ra inconcluso, pois foi interrompido pela Questão Romana, sua brevidade foi suficiente para que o posicionamento oficial da Igreja, ao retomar o Concílio de Trento, tivesse como meta fortalecer a Instituição5, como também, manifestar sua aversão a tudo o que pudesse estar associado ao mundo moderno. Diante de tantos problemas, voltando-se para si, a Igreja

4 O Papa Pio IX, ainda no início de seu pontificado, já havia indicado a sua intenção de reformar a sociedade cristã. Contra o laicismo e a corrupção causada pelo pecado, o papa insistia na necessidade do auxílio espiritual. O Dogma da Imaculada Conceição (1854), o Syllabus (1864), a Quanta Cura (1864), dão mostras de sua preocupação com a situação da Igreja no mundo. Em meio a tudo isso, o papa foi amadurecendo a idéia de promover um novo Concílio. Haviam passado 300 anos do encerramento de Trento e os desafios que se apresentavam urgiam em novos encaminhamentos. Anunciado secretamente aos cardeais em dezembro de 1864, em pouco mais de dois anos, por ocasião da celebração do Martírio de São Pedro, em 1867, Pio IX tornou público, aos bispos presentes, a sua intenção de convocar o Concílio. Finalmente, em 29 de junho de 1868, pela bula Aeterni Patris Unigenitus, realizava-se a convocação para o Vigésimo Concílio Ecumênico da Igreja Católica, tendo o seu início previsto para 08 de dezembro de 1869. Segundo Bilmeyer; Tuechle, “como finalidade principal do concílio declarava-se reunir todo o mundo católico numa poderosa manifestação da verdade, em contraposição aos erros do tempo, e adequar em numerosos pontos a disciplina às transformadas condições dos tempos. O anúncio do concílio, porém, encontrou na opinião pública, uma difundida inquietação e irritação, intensificadas ainda mais quando um artigo da Civiltà Cattolica, de fevereiro de 1869, deixou entender que do concílio se esperava a definição da infalibilidade papal, a ser acolhida por simples aclamação” (1965, p. 520).

5 Não sem razão, em nova tentativa, busca-se restabelecer a autoridade do Pontífice na afirmação de sua infalibilidade ex cathedra. Mesmo sob polêmica, na quarta sessão de 18 de julho de 1870, Pio IX ratificou e proclamou a Constituição Dogmática sobre a Igreja de Cristo (Pastor Aeternus) que, em quatro breves capítulos, apresenta “o fundamento, a duração perpétua, o valor e a essência do primado romano e o magistério infalível do papa” (BIHLMEYER; TUECHLE, 1965, p. 522; cf. PA, no. 1821 a 1840).

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reforçava o caminho de distanciamento daquela situação de mundo6, enquanto a vida social européia rapidamente se descristianizava.

Emancipada em suas intenções e autônoma em conduzir o seu caminho, mesmo já pressentindo os sintomas de suas ambigüidades, a modernidade, levando a termo seus feitos, prosseguia o seu caminho na indiferença para com as admoestações eclesiais. A Igreja, por sua vez, fiel à sua doutrina, seguia no esforço de reprimir, ao menos em sua jurisdição, o fermento moderno7.

6 Isso se torna visível, na Constituição Dogmática sobre a fé católica (Dei Filius), aprovada na Quarta sessão solene de 24 de abril de 1870. Depois de enunciar os temas fundamentais da fé: Deus, criador de todas as coisas (Capítulo I); A Revelação (Capítulo II); A fé (Capítulo III); A fé e a razão (Capítulo IV); na mesma seqüência temática a Constituição discrimina e formula a condenação dos erros contrários à fé, naquele contexto, entendidos como terríveis ameaças à religião. Depois de uma longa listagem conclui: “Cumprindo o supremo ofício pastoral que nos cabe exercer, pedimos insistentemente pelas entranhas de Jesus Cristo a todos os fiéis cristãos, especialmente aos chefes e aos que exercem o ofício de ensinar, e mandamos, com a autoridade do mesmo Deus e Salvador nosso, que se esforcem por eliminar e afastar da Santa Igreja tais erros, e por difundir a luz da fé pura e verdadeira. Porém, já que não é possível evitar a heresia, a não ser fugindo também diligentemente daqueles erros que se aproximam mais ou menos dela, lembramos a todos o dever de observar também as Constituições e os Decretos pelos quais esta Santa Sé proscreve e proíbe tais opiniões perversas, que não vêm aqui enumeradas” (DF, no. 1819 e 1820).

7 Tal como vem proposto na Constituição Dogmática sobre a fé católica, sem demonstrar qualquer interesse positivo pelas mudanças que estavam em curso na sociedade, o Concílio ensina: “porquanto somente à Igreja Católica pertencem todos os caracteres, tão numerosos e tão admiravelmente estabelecidos por Deus para tornar evidente a credibilidade da fé cristã. Além disso, a Igreja em si mesma, pela sua admirável propagação, exímia santidade e inesgotável fecundidade em todos os bens, pela sua unidade católica e invicta estabilidade, é um grave e perpétuo motivo de credibilidade, e um testemunho irrefragável da sua missão divina. Donde resulta que a mesma Igreja, como um estandarte que se ergue no meio das nações (Is 11,12), não só convida os incrédulos a entrarem no seu grêmio, mas também garante a seus filhos que a fé que professam se baseia em fundamento firmíssimo” (DF, no. 1794). Sobrepondo a primazia da fé aos possíveis equívocos de uma razão desorientada, a mesma Constituição busca esclarecer, com o devido cuidado, naquelas circunstâncias, a problemática da fé e da razão: “ainda que a fé esteja acima da razão, jamais pode haver verdadeira desarmonia entre uma e outra, porquanto o mesmo Deus que revela os mistérios e infunde a fé, dotou o espírito humano da luz da razão; e Deus não pode negar-se a si mesmo, nem a verdade jamais contradizer à verdade. A vã aparência de tal con-tradição nasce principalmente ou de os dogmas da fé não terem sido entendidos e expostos segundo a mente da Igreja, ou de se terem as simples opiniões em conta de axiomas certos da razão. Por conseguinte, “definimos como inteiramente falsa qualquer asserção contrária a uma verdade de fé [V Concílio de Latrão]” (DF, no. 1797). Finalmente, tendo em vista precaver a todos do risco daquilo que considera a “ciência falsa”, sem sombras de dúvida o grande inimigo da época, assevera e proíbe: “a Igreja, que juntamente com o múnus apostólico de ensinar recebeu o mandato de guardar o depósito da fé, tem também de Deus o direito e o dever de proscrever a ciência falsa, [1 Tim 6,20], a fim de que ninguém se deixe embair pela filosofia e por

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De modo geral, a teologia desse período se fundamentava nas sólidas formulações doutrinais e pastorais que, elaboradas por ocasião do Concílio de Trento, e retomadas pelo Vaticano I, não sofreram, substancialmente, nenhuma alteração. Seguindo os passos da teologia medieval, nada menos que a construção majestosa ao modo de Suma Teológica, produzida, entre outros, por Tomás de Aquino, o Concílio de Trento recriou sua visão teológica na perspectiva do que se tornou conhecido como “tomismo de escola”8.

Embora esse modo teológico tenha acompanhado Tomás de Aqui-no na concepção de fazer teologia como ciência, o seu débito para com a Escolástica não conseguiu desfazer-se do formalismo com que esta se configurava. Tendo em vista a sua complexa tessitura, prevenida de vulnerabilidades, pois se tratava de referir ao conjunto de todas as coisas (teologia, Igreja, mundo), a teologia de escola “conseguiu transformar a revelação cristã num sistema de verdades perfeitamente articulado e coerente, que apresentava uma visão unitária de toda a realidade” (PALÁCIO, 2001, p. 16). Sob esta modulação, em todos os sentidos, Trento foi o elemento estruturante da identidade eclesial católica e a força aglutinadora da Igreja por quatro séculos.

Esta arquitetônica teológica encorajou, por exemplo, os pressu-postos que serviram de sustentação teórica na elaboração da encíclica Aeterni Patris (1879), de Leão XIII e que, como efeito, prolongou-se

sofismas pagãos [Col. 2,8]. Eis porque não só é vedado a todos os cristãos defender como legítimas conclusões da ciência tais opiniões reconhecidamente contrárias à fé, máxime se tiverem sido reprovadas pela Igreja, mas ainda estão inteiramente obrigados a tê-las por conta de erros, revestidas de uma falsa aparência de verdade” (DF, no. 1798).

8 Segundo o Dicionário de Teologia “entende-se por Tomismo o sistema teológico e filosó-fico do maior pensador da Idade Média, Tomás de Aquino, que viveu de 1224 a 1274. É assim chamada a Escola ou corrente de pensamento que se esforça o mais possível em seguir Tomás de Aquino em todos os pontos de sua doutrina. Os elementos essenciais de sua doutrina foram recolhidos, sob Pio X, nas chamadas vinte e quatro teses, que embora tendo recebido daquele pontífice uma certa confirmação, nem por isso devem ser acolhidas obrigatoriamente por todos os pensadores católicos. Declaram-no explici-tamente os papas posteriores (FRIES, 1971, p. 330). Para Palácio, de quem tomamos a expressão, “tomismo de escola ou teologia de escola é uma expressão cômoda para designar a teologia ensinada de fato nos seminários e mesmo nas faculdades de teologia até os anos 50. Essa teologia, destinada antes de tudo à formação dos padres, era, em certo sentido, a ‘teologia oficial’. Teologia ‘de escola’ também porque privilegiava de modo quase exclusivo a doutrina tomista que, mesmo quando batizada com o nome de neotomismo, pouco tinha a ver com o pensamento de Santo Tomás. É o que justifica a distinção que hoje se impõe cada mais entre ‘pensamento tomásico’ e ‘tomismo’ ou ‘neotomismo’ ” (PALÁCIO, 2001, p. 16).

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até a Humani Generis (1950), de Pio XII, em declarada contraposição às inventivas modernas9.

Em atitude de confronto, explicitava-se aí um curto, porém re-novado, ciclo de “catolicismo intransigente”, em cujo modo retroativo de projeção, o motivo teológico mantinha-se dentro de um “horizonte filosófico da razão antiga e de um universo ordenado teocentricamente”. Anacrônico, este modo de pensar teológico mostrava-se incapaz ou ao menos impossibilitado de dialogar com um modernismo que, “radicalmente antropocêntrico”, deixava-se guiar pelo alcance da práxis histórica. Resu-midamente, “a cristandade continuou a ser subliminarmente o modelo da sociedade cristã até a época moderna” (cf. PALÁCIO, 2001, p. 16-18).

Importa observar que, apesar da intransigência em termos de doutrina e das severas orientações reeditadas no conjunto dessas duas en-cíclicas, particularmente na Humani Generis, – em grande parte dirigida a conter o “modernismo” e o movimento da nouvelle théologie10, – em instâncias da mesma Igreja, havia pessoas interessadas em considerar os princípios da modernidade e dialogar com as ciências. O processo de revitalização teológica11, ainda que periférico, assumiu proporções

9 O confronto com o modernismo, nesse período, provocou a intervenção de Pio X mediante três importantes documentos: o Decreto Lamentabili (1907), a Encíclica Pascendi (1908) e o Motu Próprio Sacrorum Antistitum (1910), pelo qual o papa exigia, dos padres, a obrigação do juramento antimodernista.

10 O movimento da Nouvelle théologie, – expressão que, segundo parece, deve ser atribuída a Garrigou-Lagrange (1877-1964), a partir de um artigo (La nouvelle théo-logie, où va-t-elle?), publicado em 1946, na revista Angelicum, dos dominicanos de Roma –, se desenvolveu na França, no período imediato à Segunda Guerra Mundial, vinculado a duas escolas teológicas: a dos jesuítas, em Lyon, com Henri De Lubac e Jean Daniélou, e a dos dominicanos, em Le Saulchoir, com Marie Dominique Chenu e Yves Congar. Segundo Palácio, “a nouvelle théologie nunca existiu como movimento articulado, a não ser na cabeça dos seus opositores. Menos ainda como escola de teologia” (2001, p. 27). Em todo caso, o intento desses teólogos em articular a fé com a história, fazendo uso dos novos métodos crítico-históricos, deu início a uma renovação da pesquisa teológica, fato que não tardou em confrontá-los com a censura romana. Não só os jesuítas e os dominicanos de Roma, em defesa do “tomismo”, reagiram negativamente às novas ideias teológicas que eram fomentadas, mas, diante da ten-são que se criou entre as duas tendências, Pio XII interveio com a Encíclica Humani Generis (1950), em declarada restauração da teologia tomista (PIERRARD, 1986, p. 267-270; COLLANTES, 1995, p. 69-70; LIBANIO, 2000, p. 37-43, Cf. LIBANIO, 1983, 1989).

11 Palácio indica “dois traços peculiares que caracterizavam a intenção do que poderia ser considerado o grupo inicial da nouvelle théologie: a convicção da força inspiradora que tinha para a teologia o contato com os Santos Padres e a importância da história das doutrinas para um tratamento renovado dos temas teológicos. Traços significati-vos que estavam relacionados a dois aspectos problemáticos do tomismo de escola:

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Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudanças

irreversíveis, embora em medida crescente tenha acirrado os conflitos com a Igreja oficial e, neste chamar atenção sobre si, provocou correções punitivas para muitos dos seus representantes12.

Palácio, na análise das questões colocadas em causa nessa calorosa discussão, considera que,

as abordagens da Nouvelle Théologie resultavam ameaçadoras para a teologia de escola porque não podiam ser assimiladas por ela. Assumir a perspectiva aberta pela pesquisa histórica das fontes equivaleria a pôr em questão a totalidade do método e do sistema da ‘teologia das conclusões’. No fundo se tratava de duas lógicas incompatíveis. Para a ratio theológica da escolástica, tudo o que não provinha da razão dedutiva era pré-teológico. A chamada teologia positiva – ou seja, os dados obtidos na investigação histórica e exegética – só poderia adquirir valor teológico se assumida dentro da lógica dedutiva que caracterizava a argumentação de escola nas teses e nos tratados. Por isso, a pers-pectiva aberta pela ‘nova teologia’ nunca poderia afetar por dentro a ratio theológica tradicional. Nem, por conseguinte, transformar o seu modelo de conceber e de fazer a teologia. Eram, na verdade, teologias alternativas, dois caminhos, não só paralelos, mas opostos, e mesmo irreconciliáveis (PALÁCIO, 2001, p. 29).

É em meio a este panorama que o Concílio Vaticano II foi convo-cado pelo Papa João XXIII. As tensões e a polarização entre estas duas perspectivas teológicas, inevitavelmente, ressoaram com intensidade na realização do Concílio13.

Embora as diversas comissões indicadas para preparar os esque-mas prévios de trabalho e os presidentes nomeados para as comissões individuais no Concílio, em sua maioria, estivessem afinadas com a Cúria

a questão da tradição e a incapacidade de abrir-se ao que havia de ‘moderno’ no método histórico” (PALÁCIO, 2001, p. 28).

12 Segundo Libânio, depois das restrições que são apresentadas à nouvelle théologie, na Humani generis, “segue-se, por parte dos superiores gerais das ordens dos jesuítas e dos dominicanos, uma série de medidas de punição aos teólogos envolvidos nesse movimento. Muitos são proibidos de ensinar ou de exercer alguma função importante no mundo da teologia: Y. Congar, H. de Lubac, J. Danièlou. P. Chenu, etc. Várias de suas obras são retiradas das bibliotecas dos estudantes de filosofia e teologia. Paira sobre eles a suspeita de heresia” (LIBANIO, 2000, p. 41).

13 Os tempos eram outros e a inserção da Igreja no mundo exigia uma renovada postura teológica. No entanto, como lembra Palácio, “considerando a década que separa a Humani Generis da convocação do Concílio Vaticano II, a longa agonia da teologia de escola terá durado mais de 60 anos, o que dá a medida não só das resistências, mas do que estava em jogo” (PALÁCIO, 2001, p. 23).

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Romana e a posição “anti-moderna” retroalimentada no paradigma da teologia de Trento, o espírito reinante no Vaticano II, a começar pelo Papa, mas também, por um significativo número de Padres conciliares, mostrava-se aberto ao influxo das discussões que perpassaram a nouvelle théologie14.

Não obstante o confronto, as concessões, a negociação entre as tendências, a discrição proposital do Papa e a prudência da assembleia conciliar, em alcançar um termo médio nas discussões, no resultado das votações, prevaleceu e se fez confirmar o sopro renovador do Espírito frente aos “sinais dos tempos”.

Palácio reconhece que “é difícil explicar por que caminhos se deu a lenta transformação da ‘minoria’ em ‘maioria’ conciliar, que tornaria possível a aprovação dos textos”. No entanto, reitera o autor, “apesar de tudo, ninguém poderia negar que o Concílio foi uma virada teológica, um divisor de águas que permite falar de um ‘antes’ e um ‘depois’. Não só pela obra teológica que levou a cabo, mas também pela atividade teológica que desencadeou” (PALÁCIO, 2001, p. 36).

2 Vaticano II: reconciliação com o mundo moderno e re-significação teológica

O Concílio Vaticano II, na perspectiva de aggiornamento, sig-nificou a confluência, como vimos, de um prolongado e tumultuado processo de reforma da Igreja Católica. Grosso modo a difícil ruptura com a Cristandade medieval, sobrepujada no levante da Reforma Protes-tante (1521) e no caráter emancipatório da Revolução Francesa (1789), provocou uma espécie de retraimento da Igreja, obrigada a condividir com outras esferas da sociedade uma hegemonia que, havia pouco, no período medieval, fora apenas sua.

14 Palácio ressalta que “Tradição e atualidade foram os dois pilares da revolução teológica protagonizada pelo Concílio. Primeiro, como experiência do ‘teologizar’ em ato. A realização do Concílio foi o exercício concreto de uma nova maneira de fazer teologia. Depois, porque ao fazer as suas opções o Concílio reconduziu a teologia a seu devido lugar: a teologia pressupõe a revelação e a experiência de fé, mas não se confunde com elas. Finalmente, pelo dinamismo teológico desencadeado pelo Concílio. Todos os temas da teologia foram atingidos de certa forma pela reviravolta conciliar. Em poucos anos operou-se uma verdadeira metamorfose da teologia e do panorama teológico” (PALÁCIO, 2001, p. 38).

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Deveras, não obstante tentativas de uma autêntica Reforma, o dé-bito restaurador do Concílio de Trento e do Vaticano I, – na exasperação de épocas que se mostraram, em medida crescente, hostis em conceder qualquer benefício à instituição eclesial –, pouco contribuiu para apro-ximar e favorecer as relações entre a Igreja – Sociedade Perfeita –, e o mundo moderno – Sociedade de Indivíduos com direitos inalienáveis.

Neste sentido, o esforço de renovação eclesial indicado pelo Concílio Vaticano II rompeu, definitivamente, com uma mentalidade “conservadora” da tradição cristã, para instaurar uma nova hermenêutica teológica-pastoral, não sem considerar o auxílio de novos instrumentos de análise da realidade e que, por sua vez, implicaram na auto-compreensão de sua ação no mundo.

Embora se possa dizer que o intento de modernização do discurso religioso à altura dos acontecimentos provocados pela emergência da modernidade efetivava-se, no catolicismo, tardiamente, realizava-se, dessa maneira, a reviravolta “copernicana” no âmbito da eclesialidade católica.

Neste acontecimento, sem dúvida, não passa despercebido a pecu-liar participação do Cardeal Angelo Roncalli. Eleito “Papa de transição” aos 77 anos, em apenas quatro anos de pontificado, sua ação decidida modificou significativamente os rumos dos últimos 400 anos da Igreja. Em todo caso, pode-se dizer que o clima anterior à realização do Concílio, fecundado na agudeza de incomensuráveis problemas sociais e outras tantas iniciativas eclesiais, foi pródigo em apressar a sensibilidade do Papa buono na urgência de convocar o Concílio.

Não bastasse a teologia negativa do final do século XIX, “Deus está morto”, o século XX trazia as marcas trágicas de duas Grandes Guerras e, nos seus destroços, a busca desesperada de sentido para uma existência que, sobremaneira, via-se forçada a dar algum crédito aos argumentos explicativos, seja do marxismo seja do existencialismo. No âmbito eclesial, a inevitável convivência com o mundo operário, a fermentação da Nouvelle Théologie, o movimento bíblico-litúrgico, as iniciativas pastorais etc, não só explicitavam o caráter inadequado e insuficiente do permanecer anacrônico de certas instâncias eclesiais, mas, na mesma medida, antecipavam-se em indicar possibilidades e alternativas para o engajamento da Igreja no mundo.

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Sendo assim, o Vaticano II, como visibilidade de um processo que se fez anteceder, secularmente, por inúmeras iniciativas de reforma e que culminaram, no protagonismo de João XXIII, na convocação de um Concílio, no sentido estrito da palavra, visava conciliar a presença e atuação da Igreja com os novos tempos. Neste sentido, no dizer de Palácio,

A intenção de João XXIII poderia ser qualificada como voluntariamente moderna. Com a intuição e a simplicidade que o caracterizavam, João XXIII deixou bem claro que o objetivo do Concílio era pensar a fé de tal forma que ela pudesse se tornar significativa para o homem de hoje. A volta à autêntica tradição não podia ser confundida com a obsessão pelo passado, assim como a vontade de atualização em nada se opunha à seriedade doutrinal do Concílio. Esse era o sentido de caracterizá-lo como “pastoral”. Na preocupação de “fazer-se compreender” estava inscrito o desejo de aproximação e diálogo com o mundo. Ao distinguir o depósito da fé de suas expressões, o papa abria as portas para um trabalho teológico livre dos entraves e da rigidez da teologia oficial. A preocupação pastoral que levou o papa a falar em “pulo à frente”, a questão tão moderna da linguagem, o incentivo a utilizar os métodos modernos, são alguns indícios de que João XXIII não estava paralisado pelo fantasma do modernismo, abrindo a Igreja e a teologia para uma reconciliação com o mundo moderno (PALÁCIO, 2001, p. 35).

Se, por um lado, o Concílio exigia uma volta às fontes, à Tradi-ção em sua radical expressão, à Sagrada Escritura e, dessa maneira, re-significar os elementos constitutivos da vida cristã, a Bíblia, a Igreja e a Liturgia (Dei Verbum, Lumen Gentium e Sacrossanctum Concilium); por outro lado, não descurou em rumar, decididamente, para uma atitude de abertura às realidades terrestres (Gaudium et Spes), ao ecumenismo (Unitatis Redintegratio), às Igrejas Orientais Católicas (Orientalium Ecclesiarum), as relações da Igreja com as Religiões não-cristãs (Nostra Aetate) etc.

O que poderia parecer para os opositores uma nova estratégia ou mero oportunismo, – inserir-se no mundo e se engajar nos seus pro-blemas, desafios e possibilidades para angariar força e poder –, antes explicitava o horizonte de uma nova fisionomia identificando a missão evangelizadora da Igreja na sociedade: “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS, no. 1).

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Helder Câmara, em uma conferência pronunciada em Roma, em novembro de 1965, ao término do Vaticano II, referindo-se ao pensa-mento teológico, permite-nos entrever as trilhas que o Concílio abriu:

Bastem-nos os quatro séculos de anti que, no ocidente, tiveram o triste efeito de secar a Teologia, de quase esvaziá-la. Desejamos a Teologia que para sempre faz da Bíblia o seu pão de vida; que bebe da água pro-funda e pura da Patrística; lucidamente fiel às orientações do Magistério vivo; em relação estreita com a liturgia, em relação inteligente com as ciências, em clima ecumênico; pondo firmemente os olhos na terra dos homens e tendo os olhos abertos para as viagens espaciais (CÂMARA apud KLOPPENBURG, 1965, p. 529).

No espírito decidido de “volta às fontes”, o Concílio se propunha promover a tão esperada reforma da Igreja sob o signo do aggiorna-mento. À luz da Sagrada Escritura, “alma de toda a teologia”, deveriam ser revisados os fundamentos dogmáticos da interpretação doutrinal – a Teologia Dogmática –, não sem a devida consideração do patrimônio patrístico, quer como explicitação da “Verdade da Revelação” quer em suas conseqüências para a história dos dogmas e para a própria compre-ensão da história da Igreja.

Tudo isso, tal como vem apresentado em toda clareza na Optatam Totius, o decreto conciliar sobre a Formação Sacerdotal, havia de reper-cutir intensamente na vida de cada estudante, no aprendizado do saber teológico15 e, sobremaneira, na tarefa do ensino da teologia, a começar pela sua reformulação teórico-metodológica, sempre em vista de favo-recer a ação da Igreja no mundo dos homens e mulheres.

Nessa perspectiva, o decreto orienta que “as outras disciplinas teológicas sejam igualmente restauradas por um contato mais vivo com o mistério de Cristo e a história da Salvação”. Ainda assim, especifica: “Consagre-se cuidado especial ao aperfeiçoamento da Teologia Moral, cuja exposição científica, mais alimentada pela doutrina da Sagrada Escritura, evidencie a sublimidade da vocação dos fiéis em Cristo e

15 Segundo os termos do decreto, “para ilustrar quanto possível integralmente os mis-térios da salvação, aprendam os estudantes a penetrá-los com mais profundeza e a perceber-lhes o nexo mediante a especulação, tendo Santo Tomás como mestre. Aprendam a reconhecê-los sempre operantes nos atos litúrgicos e em toda a vida da Igreja; a procurar as soluções dos problemas humanos sob a luz da Revelação; a aplicar suas verdades eternas à mutável condição das realidades humanas; e a comunicá-las de modo adaptado aos homens de hoje” (OT, no. 16).

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sua obrigação de produzir frutos na caridade para a vida do mundo” (OT, no. 16).

Entre tantos aspectos dessa grande reviravolta, um dos elementos mais sobressalientes diz respeito ao modo como a Igreja buscou com-preender o seu ser e a sua missão no mundo, respectivamente, a Consti-tuição Dogmática Lumen Gentium e a Constituição Pastoral Gaudium et Spes. O marco determinante, segundo alguns autores, foi a restauração do conceito “Igreja povo de Deus”, a superação mais explícita do verti-calismo e do centralismo, até então vigente, na eclesiologia advinda do Concílio de Trento.

Embora o capítulo III da Lumen Gentium, “A constituição hie-rárquica da Igreja”, retorne a formulações devedoras de uma teologia pré-vaticana, o capítulo II da Constituição Dogmática resgata, em medida crescente, a dimensão humana da Igreja em sua legitima consistência histórica16. Isto permite, por exemplo, que a Gaudium et Spes, ao tratar da Igreja no mundo de hoje, de forma recorrente, possa reclamar o inter-câmbio indispensável entre a visão da fé e o agir humano na história:

Movido pela fé, conduzido pelo Espírito do Senhor que enche o orbe da terra, o Povo de Deus esforça-se por discernir nos acontecimentos, nas exigências e nas aspirações de nossos tempos, em que participa com os outros homens, quais sejam os sinais verdadeiros da presença ou dos desígnios de Deus. A fé, com efeito, esclarece todas as coisas com luz nova. Manifesta o plano divino sobre a vocação integral do homem. E por isso orienta a mente para soluções plenamente humanas (GS, nº 11).

Na medida em que o Concílio possibilitou à Igreja abrir-se à con-dição dos tempos modernos como lugar e história da salvação, a ruptura provocada com o esquema anterior exigia cada vez mais alterações no cotidiano da vida eclesial a partir da realidade do mundo. Em meio a

16 Segundo Comblin, no livro O povo de Deus, “Os padres conciliares queriam realizar mudanças profundas na eclesiologia. Queriam expressar essa vontade de mudança escolhendo o tema povo de Deus. Não foi inadvertência. Os padres conciliares que-riam explicitamente essas palavras, entendendo-lhes muito bem o sentido. Queriam inaugurar nova época e pôr ponto final a uma época ultrapassada. [...] A eclesiologia anterior estava fundada no conceito de societas perfecta e se inspirava nos concei-tos nominalistas segundo os quais o essencial da sociedade são os poderes que a regem. Com essa concepção, a eclesiologia era uma hierarquiologia. Os padres conciliares queriam explicitamente apagar esta figura e voltar às origens da Igreja, às fontes bíblicas e patrísticas, assim como aos grandes teólogos do século XIII” (COMBLIN, 2002, p. 20).

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esta desestabilização, sem tardar muito, o entusiasmo inicial de mudan-ças e reformas foi dando lugar à perplexidade. A recepção e aplicação do Concilio se efetiva em uma realidade cada vez mais fragmentária e distinta.

3 A recepção e a aplicação do Concilio: um caminho que continua

O Concílio e o pós-Concílio, como intento de aproximação e diálogo com o mundo moderno, deram-se, paradoxalmente, em um con-texto social controvertido e de grandes turbulências. O clima de “crise” generalizada naquele momento exigia do mundo e, portanto, não só da Igreja Católica, situar-se em meio a grandes rupturas e outras tantas desintegrações de valores e tradições que naufragaram na quebra dos princípios da razão moderna. Sem esta força unificadora, cada vez mais a vida tendia a uma flutuante flexibilização de suas tradicionais regras normativas. Em meio a tudo isto, o mercado em constante expansão, o alto custo do progresso, o incremento da técnica e do consumo etc, anunciavam um futuro desafortunado.

Com a dissipação do otimismo moderno e a derrocada do Projeto Iluminista, sob o efeito de uma multiplicidade de movimentos contracul-turais e antimodernistas17, rompia-se definitiva e paulatinamente a ideia de um sentido único, objetivo e universal, para a experiência cotidiana das pessoas, forçadas a lidar, em todas as dimensões, com um excessivo fluxo de novidades e outras tantas perspectivas sempre mais efêmeras e fragmentárias.

Embora carregado de ambigüidades, em sua conjuntura mais ampla, a culminância desse movimentado processo revolucionário, ao contrapor e colocar sob suspeita qualquer tipo de vinculação com o passado recente, em vias de dissolução, engendrava uma ambiência pós-moderna e, dessa maneira, criava as condições necessárias para a formulação de um discurso propriamente pós-moderno18.

17 Nesse contexto ubica-se, e alcança particular importância, o movimento de maio de 1968. Segundo Harvey, ainda que tenha fracassado em seus propósitos, na turbulência global desse período, o acontecimento de 1968 foi paradigmático e pode ser consi-derado “o arauto cultural e político da subseqüente virada para o pós-modernismo” (HARVEY, 1994, p. 44).

18 Segundo Moraes, “o discurso pós-moderno e as teorias que o compõem não expres-sam, por certo, um corpo conceitual coerente e unificado. Ao contrário, quando se

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Sob esta perspectiva, o Cristianismo católico, não obstante o seu intento de renovação, confrontava-se com uma série de dificuldades e de impedimentos quase intransponíveis. A pretensão de oferecer uma palavra efetiva, afetiva e não menos definitiva, em se tratando da verdade sobre Deus, o Homem e o Mundo, ainda que buscasse considerar o caráter autônomo e plural da sociedade, em outro extremo, pouco sintonizava com a explícita negação de uma formulação totalizante e explicativa da condição humana, o relativismo cultural emergente, sobretudo, no que se referia a questões ético-morais.

Nessa conjuntura, como esclarece Palácio, “a vertiginosa rapi-dez das transformações modificou não só a fisionomia do mundo, mas a situação da fé e da teologia nesse novo contexto. [...] Os primeiros tempos pós-conciliares viram um entusiasmo avassalador e uma euforia reformista tomarem conta da Igreja”. No entanto, prossegue o autor, “a partir desse momento começou também, em muitos setores da Igreja, um movimento de reação, surda mas crescente” (PALÁCIO, 2001, p. 39).

Quanto mais se distancia a realização do Concílio, tão mais pro-blemática se transforma a sua recepção19. Enquanto, para uns, o Vaticano

quer delimitar o seu sentido, nos deparamos com uma pluralidade de propostas e interpretações, muitas vezes conflitantes entre si. Entre os seus representantes mais notáveis existem diferenças marcantes, e só uma leitura superficial poderia incluí-los em uma mesma corrente de pensamento. Na verdade, o que se convencionou cha-mar de pós-moderno possui hoje tanta abrangência que se transformou em um tipo de ‘conceito guarda-chuva’, dizendo respeito a quase tudo: de questões estéticas e culturais, a questões filosóficas e político sociais” (MORAES, 1996, p. 46).

19 Em busca compreender esta problemática, Brighenti, utilizando-se de um parâmetro comparativo, afirma: “analogicamente à crise da modernidade, há uma crise da vatica-nidade” (BRIGHENTI, 1999, p. 400). Neste enquadramento, na mesma perspectiva, o autor indica que à pós-modernidade, corresponde uma espécie de pós-vaticanidade. Em decorrência, sua análise delineia, para a pós-vaticanidade, posturas distintas e que são caracterizadas como de “anti-vaticanidade” e “sobre-vaticanidade”. Segundo o autor, “a pós-vaticanidade como anti-vaticanidade se caracteriza por um desencanto com a vaticanidade. Para a anti-vaticanidade é quase uma ironia histórica que o con-cílio Vaticano II tenha começado a desenvolver sua teologia dos ‘sinais dos tempos’ na euforia do desenvolvimentismo e das possibilidades ilimitadas da técnica, num momento em que os intérpretes mais críticos da época, desde há muito, já haviam posto à luz do dia a dialética negativa da modernidade. Por isso, ainda que tarde, para a anti-vaticanidade é preciso denunciar o ‘mito’ Vaticano II’” (BRIGHENTI, 1999, p. 400). Por sua vez, em outra direção, a pós-vaticanidade como sobre-modernidade, distanciando-se desta visão que mais expressa uma “involução eclesial” e a tentativa quase anacrônica de neocristandade, assume uma postura menos dramática e mais dialogal. Para esta perspectiva, “nem tudo é caduco no Vaticano II, ao contrário, suas intuições fundamentais e seus princípios orientadores continuam pertinentes e relevantes para a época atual. [...] Na perspectiva aberta pelo Concílio, para a sobre-vaticanidade, é preciso continuar repensando a relação do ser humano com a verdade

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Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudanças

II representou a entrada da modernidade na Igreja e, na mesma medida, a sua destruição; para outros, o processo em curso mostrava-se não só oportuno como também, indispensável.

Diante da incomensurabilidade dos problemas que sobrevinham de uma realidade sócio-cultural em “crise”, – o sentido plural de todas as coisas, a emergência sempre mais forte do relativismo, enfim, a multipli-cidade reinante nas formas de vida, o perspectivismo epistemológico –, a situação deixava entrever que os desafios do mundo e da vida mostravam-se muito maiores que os propósitos renovadores do Concílio.

Se, de um lado, esta situação encontrada pela Igreja revitalizou a tendência de voltar à segurança do passado, restringindo as realizações do Concílio Vaticano II, de outro, o ambiente plural deflagrou o incremento de uma infinidade de novas teologias. Segundo Palácio,

Um dos resultados inesperados do pluralismo foi a emergência de outros pólos teológicos que abriram uma brecha na hegemonia inquestionável da teologia européia. A entrada na cena teológica, primeiro, da teolo-gia da libertação na América Latina e, depois, das teologias asiática e africana, foi uma afirmação do pluralismo de fato: a reflexão teológica deve ser feita a partir do contexto cultural e social no qual é vivida a fé. O mito de uma teologia única e universal nunca passou de uma teologia particular indevidamente universalizada” (PALÁCIO, 2001, p. 41).

Ademais, o pluralismo no campo teológico remetia, de forma progressiva, ao ocaso de uma teologia que, havia séculos, metodologi-camente, articulava-se em torno ao caráter totalizante do tomismo. Essa quebra, junto com a crise da razão ocidental, trazia à tona um problema de grande extensão no âmbito da reflexão teórica, qual seja, a questão epistemológica. A produção do conhecimento nas ciências em geral, e na teologia, em particular, é desafiada a enfrentar, no espaço teórico que lhe é próprio, a variante da crítica cultural. E isso leva ao desafio de encontrar sentido para a existência humana, sem poder contar com as bases explicativas da razão clássica.

Neste sentido, Palácio esclarece que,

a crise da teologia é a crise do próprio cristianismo, obrigado a tomar distância do mundo e da cultura ocidentais com os quais se tinha iden-

e a veracidade, para poder testemunhar uma verdade menos epistemológica e mais ontológica e existencial” (BRIGHENTI, 1999, p. 400).

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tificado historicamente. Por isso, a crise da razão ocidental é também a crise da razão teológica e da majestosa construção que ela se deu na teologia tradicional. [...] A situação de desamparo de que dá provas a teologia atual é inseparável da radical transformação de seu horizonte teórico (PALÁCIO, 2001, p. 43).

Assim sendo, às vésperas de comemorarmos os 50 anos do início do Concílio Vaticano II, multiplicam-se as análises do período pós-conciliar. Diante do complexo quadro de mudanças sociais, religiosas e eclesiais, ocorridas nas últimas décadas, no embate da discussão moderna e sua extensão pós-moderna, em se tratando de indicar perspectivas para este grande acontecimento da Igreja20, os pontos de vista navegam um rio caudaloso e de águas agitadas21.

Palácio, em sua análise, considera que, no período posterior ao concílio, diante das tensões que perpassaram a sua realização, recepção e aplicação, vários “pós-concílios” foram colocados em movimento. Assim, este motivo teria levado o Sínodo extraordinário de 1985, por ocasião dos 20 anos do Vaticano II, a apresentar uma interpretação “oficial” do Concílio, de modo que, as “últimas décadas estão marcadas por esse

20 Em a Igreja contemporânea, Libanio faz, em forma de síntese, um balanço da Igreja no encontro com a modernidade. Segundo o teólogo, “a Igreja, nas últimas déca-das, tem entrado num processo decidido de enfrentamento com o mundo moderno diferentemente das duas atitudes anteriores. Com efeito, num primeiro momento, até o pontificado de Pio XII, ela manteve-se encastelada em sua doutrina e sistema tradicional, lançando farpas contra a modernidade. Assumiu pouco dessa moderni-dade, já que a considerava um inimigo irreconciliável. Num segundo momento, com o Concílio Vaticano II, fez as pazes com a modernidade. Assimilou muitos elementos do seu projeto: liberdade, valorização das experiências pessoais e comunitárias, pluralismo de opiniões, diálogo aberto com as posições diferentes, maior participa-ção democrática nas estruturas eclesiásticas, etc. Neste terceiro momento presente, reagindo às conseqüências negativas da aceitação ampla de valores da moderni-dade, estabelece um diálogo de conquista, usando, sim, os recursos técnicos mais avançados da modernidade. Enfrenta-se com os seus contravalores, apresentando um programa coeso de ‘Nova Evangelização’ a partir dos valores tradicionais do cris-tianismo. Entretanto, delineiam-se no horizonte graves problemas para essa atitude de enfrentamento com a modernidade avançada”. [...] A Igreja, que com o Concílio Vaticano II entrou na modernidade depois de quatro séculos de hesitação, é chamada agora a fazer mudanças muito rápidas dentro de tempo recorde. Instituição de porte mundial e de tradição bimilenar, facilmente presa de seu gigantismo, está a viver a era das mudanças, do provisório, do descartável, da fragmentação, do pluralismo” (LIBANIO, 2000, p. 184).

21 Enquanto João Paulo II reafirma o Vaticano II como “a grande graça de que se beneficiou a Igreja no século XX”, insistindo: “nele se encontra uma bússola segura para nos orientar no caminho que se inicia” (NMI, nº. 57), há quem se antecipe em falar da necessidade de um Vaticano III (SOUZA, 2004), muito embora, como pondera Comblin, “não poderia haver Vaticano III sem, primeiro, voltar ao Vaticano II” (COMBLIN, 2002, p. 05).

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Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudanças

movimento de restauração”, acompanhado de uma forte tendência em “voltar ao passado das seguranças, das clarezas e da uniformidade que o modelo tradicional tornava possível” (PALÁCIO, 2001, p. 40).

Contudo, parece oportuno ressaltar que esse período de “restaura-ção”, que coincide em grande medida com o longo pontificado de João Paulo II, não deixa de referendar as diretrizes do Concilio Vaticano II. Trata-se de uma “bússola segura” (NMI, 57) e, portanto, indispensável para o desempenho da Igreja Católica nas atuais circunstancias. Muito embora não tenhamos alternativa conciliar onde possamos ancorar os anseios e necessidades de renovação da Igreja e da Evangelização, nesta primeira década do terceiro milênio, também é evidente que o Vaticano II não esgotou suas possibilidades “pastorais”. Estamos apenas a meio século de sua realização. Sua recepção e aplicação é um caminho que continua em aberto e que depende da audácia de, atentos aos sinais dos tempos, seguir em frente.

Da era Ratzinger ao pastoreio de Bento XVI – em um particular desafio de sucessão, continuidades-descontinuidades –, vemos o Papa reafirmando o Concilio como “uma grande força para a renovação sempre necessária da Igreja” (PF 5). Neste sentido, a celebração cinquentenária do Vaticano II supõe a relevância de um contexto sociocultural complexo, tanto quanto as iniciativas eclesiais de uma Nova Evangelização.

Sob a luz do Concilio, a recente promulgação da Exortação pós-sinodal Verbum Domini (2010), sobre A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja enseja, uma vez mais, decidida volta às fontes. A Palavra de Deus é o coração de toda a atividade eclesial (VD 1). Esta perspectiva bíblica, sem dúvida, realça a convocação do Ano da Fé (2012). Um tempo de especial reflexão e redescobrimento da fé (PF 4); a hermenêutica de uma esperança secular que se expressa na caridade.

Coincidindo com os 20 anos de publicação do Catecismo da Igreja Católica (2012) e, ainda, a realização do Sínodo sobre A nova evangeli-zação para a transmissão da fé cristã (2012), o motu proprio de Bento XVI, Porta Fidei, endereça a Evangelização no mundo contemporâneo: Crer e Evangelizar. Uma dinâmica que mobiliza e impulsa a Igreja nas trilhas da renovação conciliar, cada vez mais, chamada a ser um ambiente de acolhida e um espaço de interlocução, como sinaliza a iniciativa do Átrio dos Gentios.

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Vitor Hugo Mendes

A título de palavras finais

Recentemente, por ocasião das Jornadas Teológicas Andinas 2011, em Bogotá, (Colômbia), D. Demétrio Valentini, Bispo de Jales (Brasil), na conferencia inaugural, 50 Anos do Concílio Vaticano II: Esperanças, Interrogações, desafios, insistiu na necessidade de “revisitar” o Concilio e a importância de “retomar seus objetivos e sua dinâmica”.

De fato, trata-se de um acontecimento que, distanciado no tempo, sente o desaparecimento dos últimos Padres Conciliares de então, me-mórias vivas e protagonistas da grande reviravolta na Igreja Católica; no entanto, apresenta o belo saldo do empenho pastoral de renovação implementado em incontáveis comunidades, paróquias, dioceses. Os que pertencemos à geração pós-Concilio, somente com certo esforço podemos intuir as razões de um tempo que não foi o nosso e as mudanças que se tornaram necessárias para recriar a vida eclesial (cf. www.vivailconcilio.it). Revisitar o Concílio é, por assim dizer, seguir avançando no necessário propósito de permanente renovação e constante conversão pastoral.

Referências

BENTO XVI. A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja (Verbum Domini). Roma: LEV, 2010.

_____. Porta Fidei. Roma: LEV, 2011

BILMEYER, K.; TUECHLE, H. História da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1965, v. III.

BRIGHENTI, A. Contribuição do Catolicismo Social para a reconciliação da Igreja com o mundo moderno. Revista Medellín, Medellín: ITEPAL/CELAM, n. 82, v. XXI, jun. 1995. Suplemento.

_____. A Igreja Católica na América Latina na Aurora do Terceiro Milênio. Desafios e Perspectivas. Convergência – Revista Mensal da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), São Paulo: Publicações da CRB, ano XXIV, n. 325, set. 1999.

COLANTES, J. La fé de la Iglesia Católica. Madri: Biblioteca de Auc-Madri: Biblioteca de Auc-tores Cristianos, 1995.

CONCÍLIO ECUMÊNICO DE TRENTO. Contra as inovações doutri-nárias dos Protestantes. Petrópolis: Vozes, 1953.

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Vaticano II: a modernidade da Igreja em um contexto de mudanças

CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO I. Constituição Dogmática sobre a fé católica (Dei Filius). Petrópolis: Vozes, 1953.

_____. Constituição Dogmática sobre a Igreja de Cristo (Pastor Aeter-nus). Petrópolis: Vozes, 1953.

CONCÍLIO VATICANO II. Constituições, Decretos e Declarações. Petrópolis: Vozes, 1980.

COMBLIN, J. O Povo de Deus. São Paulo: Paulus, 2002.

FRIES, H. Dicionário de Teologia. Conceitos fundamentais da teologia atual. São Paulo: Loyola, 1971. v. V.

FRÖHLICH, R. Curso básico de História da Igreja. São Paulo: Pauli-nas, 1987.

HÄRING, B. Que Padres ... Para a Igreja? Aparecida: Santuário, 1995.

HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1994.

JOÃO PAULO II. Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte. São Paulo: Paulus/Loyola, 2001.

KLOPPENBURG, B. Concílio Vaticano II – Quarta Sessão (set.-dez. 1965). Petrópolis: Editora Vozes, 1966. p. 529-534

LEÃO XIII. Sobre a Filosofia Cristã (Aeterni Patris). Petrópolis: Vozes, 1947.

LIBANIO, J. B. Volta à grande disciplina. Reflexão teológico-pastoral sobre a atual conjuntura da Igreja. São Paulo: Loyola, 1983.

_____. Cenários da Igreja. São Paulo: Loyola, 1999.

_____. Igreja contemporânea – encontro com a modernidade. São Paulo: Loyola, 2000.

MENDES, V. H. Ser Igreja no Novo Milênio: A Formação Presbiteral. Revista Encontros Teológicos, Florianópolis, ano 16, v. 1, n. 30, 2001.

_____. O Seminário e a questão educativa. Revista Teocomunicação, Porto Alegre: PUC, v. 32, n. 137, set. 2002.

MORAES, M.C.M.M. Os “pós-ismos” e outras querelas ideológicas. Perspectiva. Revista do Centro de Ciências da Educação, Florianópolis: Ed. da UFSC, ano 14, n. 25, jan./jun. 1996.

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163Encontros Teológicos nº 62Ano 27 / número 2 / 2012

Vitor Hugo Mendes

PALÁCIO, C. Deslocamentos da teologia, mutações do cristianismo. São Paulo: Loyola, 2001.

PIERRARD, P. História da Igreja. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1986.

PIO IX. Sobre os erros do naturalismo e liberalismo (Quanta Cura – Syllabus). Petrópolis: Vozes, 1947.

SOUZA, L.A.G. Do Vaticano II a um novo concílio? O olhar de um cris-tão leigo sobre a Igreja. São Paulo: Loyola/CERIS/Rede da Paz, 2004.

TÜCHLE, G.; BOUMAN, C. A. Nova História da Igreja. Reforma e contra-Reforma. Petrópolis: Vozes, 1971. v. III.

VILLOSLADA, R.G. Radici storiche del luteranesimo. Brescia: Mor-Brescia: Mor-celliana, 1979.

Endereço do Autor:Consejo Episcopal Latinoamericano – CELAM

Carrera 5 N° 118 - 31Bogotá D.C. (Colombia)

E-mail: [email protected]

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Encontros Teológicos nº 62Ano 27 / número 2 / 2012, p. 165-168.

Carta das Religiões e o Cuidado da TerraCNBB – Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-religioso

No Espaço da Coalizão Ecumênica e Inter-religiosa “Religiões por Direitos”, no âmbito da Cúpula dos Povos na Rio+20 para a Justiça Social e Ambiental, contra a mercantilização da vida e em defesa dos bens comuns, os líderes religiosos do Brasil signatários, aderindo à ini-ciativa da Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e o Diálogo Interreligioso da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e de Religiões pela Paz, reuniram-se para debater a relação entre as religiões e as questões ambientais. Como resultado do diálogo, concordou-se que a agenda das religiões na atualidade não deve desconsiderar a agenda do cotidiano da vida das pessoas na sociedade e das exigências da justiça ambiental.

A agenda das religiões deve incluir os elementos que traçam os projetos do ser humano na busca de realização da sua existência e afirmar compromissos efetivos com a defesa da vida no planeta. Re-ligiões, sociedade, desenvolvimento sustentável e meio ambiente não são realidades distanciadas, mas estreitamente correlatas. As tradições religiosas contribuem para a afirmação dos valores fundamentais da vida pessoal, sócio-econômica e ambiental, orientando para a convivência pacífica e respeitosa entre os povos, culturas e credos, e destes com toda a criação.

Assim, é fundamental, na agenda das tradições religiosas hoje:

a) Apresentar ao mundo o sentido da existência humana. A humanidade vive momentos de pessimismo, com sensação de fracasso e desânimo, sobretudo nas situações e ambientes de crises econômicas, de injustiças, de violência e de guerras.

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Carta das Religiões e o Cuidado da Terra

Comprometemo-nos em fazer com que as nossas tradições religiosas afirmem de modo concreto o valor da vida de cada pessoa, independente da sua condição social, religiosa, cultural, étnica e de gênero, ajudando-as na superação dos problemas que as afligem no cotidiano, sejam eles de caráter sócio-econômico-político e cultural, sejam eles de caráter pisíquico-espiritual.

b) Promover a educação e a prática do respeito mútuo, do diálogo, da convivência pacífica e da cooperação entre os diferentes povos, culturas e religiões, fundamental no mundo plural em que vivemos.

Assumimos o compromisso de trabalhar para a convergência dos diferentes paradigmas culturais e religiosos dos povos, como uma possibilidade para melhor entendermos o mundo dentro de suas inter-relações e a convivência entre todos os seres humanos.

c) Explicitar mais e melhor o que já possuímos em comum. Nossas tradições já condividem valores religiosos, como a fé em um Ser Criador, o cultivo da relação com Ele, a compre-ensão da origem e do fim de cada pessoa.

Comprometemo-nos a partilhar as riquezas que possuímos para fortalecer as relações entre nossas tradições, o enriquecimento e o reconhecimento mútuos, bases para a cooperação inter-religiosa em projetos que promovem o bem comum.

d) Discernir juntos os valores que constroem a paz no mundo. Sabemos que a paz não é simples ausência da guerra, mas é fruto da justiça e da prática do amor.

Comprometemo-nos na promoção da convivência pacífica entre os povos e o desenvolvimento da fraternidade e da solidariedade universal, superando todo fundamentalismo e exclusivismo, bem como o consumismo irresponsável, que causam conflitos entre as pessoas e os povos.

e) Viver a compaixão para com os mais necessitados, empobre-cidos e excluídos da sociedade.

Assumimos o compromisso de realizar juntos projetos sociais que fortaleçam a solidariedade nas comunidades religiosas e na família humana.

f) Promover o valor e o cuidado da criação. Tomamos conhe-cimento das ameaças à vida do planeta, consequências dos

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167Encontros Teológicos nº 62Ano 27 / número 2 / 2012

CNBB – Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-religioso

interesses econômicos que constroem uma cultura utilitarista e consumista na sociedade em que vivemos.

Comprometemo-nos com o desenvolvimento de uma nova ética na relação com o meio ambiente, capaz de orientar novas atitudes defensoras de todas as formas de vida, sustentadas em políticas públicas de justiça ambiental e numa mística/espiritualidade que explicite a gratuidade e o dom da vida da criação.

g) Afirmar elementos de uma ética comum que, sustentada nas convicções religiosas que possuímos, seja capaz de orientar atitudes e comportamentos de paz e de justiça, tanto dos mem-bros das nossas tradições como de todos os povos.

Comprometemo-nos a desenvolver novos comportamentos, com prevalência da ética da tolerância e da liberdade cultural e religiosa, do respeito às diferenças, da dignidade de toda pessoa, da convivência entre credos e culturas, dos direitos humanos.

Finalmente, solicitamos à Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável Rio+20, acolher a contribuição das reli-giões para o cuidado da vida na terra, reconhecendo que os imperativos morais das nossas tradições, convicções e crenças, bem como os nossos esforços de diálogo e cooperação inter-religiosa, são imprescindíveis para alcançarmos o desenvolvimento sustentável de toda a humanidade.

Rio de Janeiro, 19 de junho de 2012

Revmo. Dom Francisco BiasinPresidente da Comissão Episcopal Pastoral para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-religioso daConferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)

Rev. Pe. Peter Hughes Secretário Executivo do Departamento de Justiça e Solidariedade do Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM)

Revmo. Dom Francisco de Assis da SilvaPrimeiro Vice-presidente do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC)

Rev. Dr. Walter AltmannModerador do Comitê Central do Conselho Mundial de Igrejas (CMI)

Rev. Nilton GieseSecretário Geral do Conselho Latino-americano de Igrejas ( CLAI)

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Carta das Religiões e o Cuidado da Terra

Rabino Sergio MarguliesRepresentante da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro (FIERJ)

Sami Armed IsbelleDiretor do Departamento Educacional e de Divulgação da Sociedade Beneficente Mulçumana do Rio de Janeiro (SBMRJ)

Ialorixá Laura TeixeiraCoordenadora Estadual do Instituto Nacional da Tradição e Cultura Afro-Brasileiras – Rio de Janeiro (INTECAB)

Irmã Jayam Kirpalani Direitora Européia da Universidade Espiritual Mundial Brahma Kumaris

Elias SzczytnickiSecretário Geral e Diretor Regional de Religiões pela Paz América Latina e o Caribe

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169Encontros Teológicos nº 62Ano 27 / número 2 / 2012

Recensões

ALMEIDA, Antonio José de, Lumen Gentium. A transição ne-cessária. Paulus, 2005, 274 páginas.

Lucas Fernandes Bombazar*

Este trabalho do padre Antônio José de Almeida é, como a con-tracapa da obra diz, “uma tentativa de lançar de novo a semente do Con-cílio no solo invernal da Igreja”. Essa afirmação é suficiente para uma breve apresentação da grande preocupação do autor. “Lumen Gentium. A transição necessária” vem ser uma voz profética no seio da Igreja contemporânea. Sinal de que, no tempo forte em que vivemos, neste ano quando vamos comemorar os 50 anos do grande aggionarmento conciliar, suas decisões devem ser constantemente retomadas. A obra, composta por muitos, mas breves capítulos, é portadora de uma didática particular que envolve a pessoa que a lê.

Na introdução, (p. 13-24) o autor apresenta um resumo dos dois milênios de história na Igreja. Vinte e um concílios fazem parte dessa história. Os concílios demonstram claramente que a essência da Igreja é ser, antes de mais nada, uma Igreja de comunhão. Pois “o concílio é, na verdade, a expressão máxima da comunhão eclesial em sua dimensão visível e institucional. “ (p. 14) Dentre todos os concílios, que abordaram os mais variados temas voltados à doutrina e aos dogmas em si mesmos, o Vaticano II resgatou a dimensão eclesiológica. Assim como o Verbo se fez carne, e isso foi tratado em outros concílios com muita proprie-dade, a Igreja se fez história. E disso sabiamente o Concílio Vaticano II se ocupou.

Dois memoráveis documentos fazem parte deste corpus conciliare: a constituição dogmática Lumen Gentium, tratando especificamente da essência da Igreja e a constituição pastoral Gaudium et Spes, sobre a missão da Igreja no mundo de hoje. Um concílio essencialmente pastoral,

* O recensor é Bacharel em Filosofia pela Faculdade Vicentina de Curitiba PR e aca-dêmico do sétimo semestre de Teologia do Instituto Teológico de Santa Catarina.

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Recensões

que fez a Igreja dar passos à frente de seu tempo. E agora mais do que nunca esses passos precisam ser renovados.

O segundo capítulo (p. 25-45) apresenta a inspiração de um Papa considerado por muitos como um papa de transição, João XXIII, que surpreendeu o mundo com a inauguração de um concílio que realmente mexeu com toda a Igreja. Passou-se assim de uma Igreja ad intra, es-tagnada, para uma Igreja ad extra, peregrina, que caminha com os seres humanos, em busca do Reino definitivo. De fato, o Concílio contribuiu para a Igreja ir ao encontro dos irmãos separados, para a abertura ao Homem contemporâneo, e para a volta às fontes patrísticas e bíblicas, com uma inevitável conversão ao Evangelho.

Uma palavra chave, que o autor emprega repetidamente, é: transição. Dentre tantas transições necessárias, no segundo capítulo (p. 47-56) o autor trabalha a questão da transição de uma linguagem con-ceitual e jurídica para uma linguagem imagética. No concílio anterior, o Vaticano I, vimos a presença forte de uma Igreja ainda encharcada de resquícios da cristandade, preferindo a noção de “sociedade” à de “corpo místico de Cristo”. No Vaticano II, reforça-se a ideia da Igreja “Corpo de Cristo”, presente na Lumen Gentium n. 7, insistindo-se em que com isso não se está lidando simplesmente com uma “metáfora”, mas com uma realidade de Igreja organismo vivo, que liga e religa seus membros num só corpo.

O brevíssimo capítulo terceiro (p. 57-60), trata da transição de uma Igreja voltada para si a uma Igreja voltada para Cristo. Fruto desse processo é a compreensão de que, na Igreja, Cristo é sempre o centro. Antes reconhecendo-se como sociedade perfeita, a Igreja agora se entende como servidora da humanidade. O Reino de Deus é maior que a Igreja.

No quarto capítulo (p. 61-66), Transição de uma eclesiologia “cristomonista” a uma eclesiologia “trinitária”, mostra-se a Trin-dade como fonte e modelo da Igreja, embora Cristo possua um papel central, seja na vida intratrinitária (Trindade imanente), seja na sua manifestação histórica (Trindade econômica). Assim, pela eclesiologia do Corpo Místico, o Vaticano II reencontrou a inspiração trinitária do Novo Testamento.

Capítulo quinto (p. 67-72), a transição de uma Igreja autofina-lizada a uma Igreja reinocêntrica. Na vida de Cristo, o Reino de Deus

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Recensões

foi o centro da sua pregação. E a Igreja, cujo início está ligado a essa proclamação, é na terra o germe e o início deste reino. A partir daí, pode-se responder à questão levantada pelo teólogo modernista Alfred Loisy: “Jesus anunciou o Reino e o que veio foi a Igreja.” Pode-se dizer, com o autor, que “Jesus anunciou, sim, o Reino de Deus, não a Igreja; que a Igreja é diferente, sim, do Reino; mas a Igreja nasce e vive do vigor e da interpelação do Reino, como seu sinal, germe, início.” (p. 70)

O capítulo sexto (p. 73-78), A transição de uma Igreja socíetas a uma Igreja mystérion, busca desenvolver a evolução que partiu da ecle-siologia cristomonista – totalmente visibilista, institucional, que valorizou a categoria de Igreja-sociedade perfeita, para a visão conciliar de Igreja mistérica. Mistério no sentido bíblico-paulino, presente também nos Pais da Igreja. A Lumen Gentium ocupou-se, em seu primeiro capitulo, deste tema. No entanto, a Igreja não pode esquecer-se de que é atuante na história, se faz história.

Capítulo sétimo (p. 79-85): A transição de uma Igreja socíetas inaequalis a uma Igreja Povo de Deus. A Igreja era vista somente a partir de sua hierarquia (sociedade desigual). Era uma visão puramente insti-tucional, jurídica, clerical, verticalista da Igreja. Assim a “eclesiologia consistia quase exclusivamente num tratado de direito canônico” (cf Y. CONGAR, O Concílio Vaticano II, p. 15). Com o Concílio, especialmente no capítulo segundo da Lumen Gentium, a noção de Povo de Deus vai ocupar o lugar que, na eclesiologia anterior, era indevidamente ocupa-do pela noção de “sociedade desigual”. E uma revolução copernicana acontece. Padre José Comblin faz uma equiparação muito feliz entre a renovação bíblica que antecedeu a reforma conciliar e o novo modelo eclesial, que, segundo ele, não devia ser novidade, uma vez que está claro na Escritura (Cf. J. COMBLIN, O Povo de Deus, p. 29).

O oitavo Capítulo (p. 87-91) trata da transição de uma Igreja Socíetas Perfecta a uma Igreja Sacramentum Unitatis. No contexto de Sociedade Perfeita, a Igreja assumiu matizes de conotações morais e ideológicas idealizadas, apresentando-se sem erros nem pecados, uma Igreja que pensava não necessitar de conversão ou de reforma. O con-cílio, porém, num documento especial, formulou o programa de uma Igreja no mundo atual, que não é mais o da Cristandade. Por isso, esse documento se intitula: Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo de hoje. Essa Igreja se faz, verdadeiramente, “irmã dos homens.” (Cf. Eclesiam Suam 90). Sabendo de sua missão no mundo, a Igreja não se

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Recensões

dissolve na história, mas tem uma responsabilidade histórica não apenas acidental, mas essencial.

Nono capítulo (p. 93-97): A transição de uma Igreja centralizadora para uma Igreja de co-responsabilidade. Como se percebe pela exposição do autor desde os capítulos anteriores, a Igreja anterior ao Vaticano II é uma Igreja centralizadora. Aos poucos, foi chegando à noção correta de que a Igreja universal não é uma diocese gigantesca espalhada pelos quatro cantos do mundo, mas é de fato constituída por um sem número de igrejas locais, verdadeiras “igrejas”.

Capítulo décimo (p. 99-104): De uma Igreja in statu gloriae a uma Igreja in itinere histórico. Seguindo as pegadas do Papa Bom, o bispo de Bruges, De Smedt, chamou a atenção de todos para compreenderem a Igreja como “especialista em humanidade”, especialmente incumbida de proclamar a liberdade de consciência de todo ser humano e comba-ter “a trilogia do clericalismo, do juridismo, do triunfalismo.” Todo o aparato institucional deve estar subordinado ao anúncio do evangelho e à comunhão de vida em Cristo. A santidade da Igreja é verdadeira, em-bora imperfeita, pois é “o povo de Deus a caminho”. Enquanto vive no tempo, ela traz em si a figura deste mundo que passa. Pois está imersa na história humana, com suas luzes e sombras.

Capítulo onze (p. 105- 114): transição de uma Igreja Dómina, Ma-ter et Magistra a uma Igreja Serva. É perceptível para os historiadores da eclesiologia a diferença entre a Igreja dos Pais (fim do século II ao século VIII) e a Igreja Moderna (final do século XVI, senão já desde o final do século XIV). Essa eclesiologia não era outra coisa senão um tratado de direito público eclesiástico em versão apologética. O autor explica como a Igreja foi mudando e se conformando ao poder vigente. Ela se tornou Mãe e Mestra, ou seja, um princípio indiscutível de autoridade. Assim foi-se infiltrando na Igreja a exterioridade ritual, a ostentação presente nas indumentárias, as insígnias e distintivos eclesiais. O próprio episcopado e presbiterado se tornam mais um status, confirmado por vestimentas exteriores que imitavam as dos imperadores e pessoas ligadas ao poder. Veja-se a opinião de São Bernardo (séc. XII) sobre tudo isso: “Aquilo que agora se chama cúria Romana, antes se chamava igreja Romana. Ninguém refere que Pedro andasse ornado de pedras preciosas, vestido de seda, coberto de ouro, montado num cavalo branco, rodeado de soldados ou acompanhado por um rumoroso séquito de criados... Em todas estas coisas, tu pareces ter sucedido não a Pedro, mas a Cons-

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Recensões

tantino. Lembra-te de que a tua Igreja Romana é mãe, não dona das outras igrejas. Daí resulta que não és senhor de todos os bispos, mas um deles, irmão dos que amam a Deus.” (São BERNARDO, Tractatus de Ecclesiasticis negotiis). Quanto a isso o papa bom lembrava: “Pre-cisamos com urgência sacudir a poeira imperial que foi caindo, desde Constantino, sobre o trono de São Pedro” (apud FESQUET, Fioretti do bom Papa João).

Para os homens e as mulheres de hoje, “não é de um maravilhoso hagiográfico nem do brilho de um cerimonial que virá o atrativo para a Igreja, mas muito mais do fato de se encontrar nela a verdade da relação espiritual de comunhão, na base de uma autêntica e exigente atitude evangélica de fé viva, de obediência interior, de oração verdadeira, de amor e de serviço” (apud Y. CONGAR, Igreja serva e pobre, p. 155). Essa é a Igreja do serviço, consagrada pelo Vaticano II. Para todos os seminaristas, a recordação da Optatam Totius, n. 9: “convençam-se os estudantes uma vez por todas que não é ao poder e às honras que eles se destinam, mas que se abandonem totalmente ao serviço de Deus e ao ministério Pastoral...”.

Capítulo doze: a transição de uma Igreja comprometida com o po-der a uma Igreja solidária com os pobres (p. 115-131). A história revela que existe um antes e depois Constantino, para esse comprometimento da Igreja com o poder. De uma religião apenas tolerada, passou a uma religião reconhecida e por fim privilegiada. Aos poucos, Constantino tornou-se um “décimo terceiro Apóstolo”, ao ponto de convocar con-cílios, e de tomar decisões até sobre questões doutrinárias. Essa relação do espiritual/temporal foi bem administrada por papas como Gregório Magno (590-604). Outras vezes, mal interpretada por papas como Gre-gório VII (1073-1085), ou Inocêncio III (1198-1216), ou ainda Bonifácio VIII, cerca de 1300, com a polêmica bula Unam Sanctam: “Declaramos, afirmamos, definimos e pronunciamos que é absolutamente necessário para a salvação de toda criatura humana que ela esteja sujeita ao pontífice romano.” Infelizmente, essa eclesiologia de cristandade prevaleceu até a época moderna.

Mas é maravilhoso lembrar que, mesmo em meio a tantas sombras, brilham fortes luzes. O exemplo de Gregório Magno, que, no início do século VII, respondeu ao Patriarca de Alexandria, que o saudara com o título de ‘bispo universal’: “Vossa Beatitude (...) peço-lhe que não utilize essas palavras falando de mim, pois sei o que sou e o que vós sois. Pela

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posição, vós sois meus irmãos; pelas tradições, sois meus pais” (Cf. GREGÓRIO I, Epist. VIII). Em nosso tempo, não podemos esquecer homens santos como Dom Hélder Câmara, entre outros que deram um contributo determinante no andamento do Concílio Vaticano II. Agora nasce a eclesiologia dos pobres, do Verbo encarnado na realidade do mundo contemporâneo, agora pode o mundo estar certo de que “a Igre-ja olha para ele com profunda compreensão, com sincera admiração e com o puro propósito não de conquistá-lo, mas de valorizá-lo; não de condená-lo, mas de confortá-lo e salvá-lo” (Paulo VI, discurso na abertura do segundo período do Concílio, em 1963).

O décimo terceiro capítulo aborda a transição de uma Igreja Arca de Salvação a uma Igreja Sacramento de Salvação (p. 133-160). Desde muito cedo, já com Cipriano de Cartago (séc. III), em clima de contro-vérsia, propagou-se o princípio: “extra Ecclesiam nulla salus”, muitas vezes interpretado rigidamente. Assim, enquanto a teologia mantém aberta a possibilidade de uma salvação universal, o magistério insiste em chamar a atenção para a unicidade da Igreja verdadeira, a Católica romana.ação à salvação escatológica. Mas, com o confronto entre as diversas culturas e religiões, sob o modelo da relação entre o uno e o múltiplo, constatou-se que é impossível encerrar Deus em formas histó-ricas. Nesse sentido, graças a humanistas como Pico Della Mirandola e Nicolau de Cusa (séc. XV), encontrou-se uma nova base para a unidade do gênero humano. Descobriu-se paulatinamente que a unidade não se encontra num movimento que conduz para dentro do cristianismo, mas numa recondução do múltiplo ao uno transcendente (Renascimento).

O autor comenta quatro tendências principais relacionadas entre si: a historização, a generalização, a racionalização e o antropocentrismo. A historização – servindo-se do modelo histórico-evolutivo leva, por um lado, a valorizar cada acontecimento em sua singularidade e irrepetibili-dade; por outro, a colocar a verdade última, definitiva, além da história. A historização do mundo leva à desistorização e à espiritualização do religioso. Com a Reforma Protestante, a Igreja veio supervalorizar a apo-logética e assim se autoafirmar como único caminho de salvação. Eram os três degraus da apologética católica: o ser humano é naturalmente religioso; em seguida, o cristianismo é a verdadeira religião; finalmente, é a Igreja Católica a verdadeira Igreja. Enfim, retomando a percepção de Justino Mártir (séc. II), da presença das sementes do Verbo em outras culturas e religiões, chegou-se, no Vaticano II, à Lumen Gentium, na qual é evidente a transição de um modelo eclesiológico para outro. O Concí-

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lio não nega a necessidade da Igreja para a salvação (LG 14), mas o faz com um enfoque inovador, não mais exclusivo mas inclusivo. Assim, do axioma: “fora da Igreja não há salvação”, passamos para outro: “fora de Cristo, no qual subsiste a Igreja, não há salvação.” Percebe-se uma dife-rença qualitativa na reflexão teológica, e a busca continua hoje, cinqüenta anos depois! Mais que no eclesiocentrismo, insiste-se no teocentrismo”, no sentido em que tudo se origina em Deus e a Deus tende, e a Igreja tem valor somente enquanto sinal e instrumento de Deus.

No capítulo quatorze (p. 161-177), apresenta-se o necessário nexo entre a Constituição Dogmática Lumen Gentium e a Constituição Pastoral Gaudium Et Spes. O autor dmonstra que entre ambas não há oposição, mas sim complementaridade. É a transição assim expressa pelo cardeal Suenens: “uma Igreja ad intra, que passa a ser a Igreja ad extra.” (p. 161). O elo que liga ambas as constituições é a concepção de “Igreja Sacramento de Salvação”. A Igreja é e “sacramento de unidade dos ho-mens com Deus e entre si”, pois é, neste mundo, a presença misteriosa de Deus, sem esgotá-la. Para a Gaudium et Spes, a expressão “Igreja no Mundo” está ligada à idéia de uma história assumida pelos seres humanos, e, ao mesmo tempo, movida por Deus. “Mundo” não é aqui concebido no sentido negativo, mas é o gênero humano e sua história. A missão de Cristo é a missão da Igreja, sem contraposição. Cristo abraçou a humani-dade em suas dores, esperanças e contradições, assim do mesmo modo a Igreja abraça “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens e das mulheres de hoje.” (Cf. GS 1) Trilhar a história humana é dar continuidade ao caminho de salvação iniciado por Cristo.

A grande razão teológica que motivou o Concílio Vaticano II a buscar uma Igreja aberta ao diálogo, não fechada em si mesma, é a concepção cristã de ser humano como “imagem e semelhança de Deus”. Essa certeza, própria da fé, rege toda a lógica da Gaudium et Spes quanto à atitude dos cristãos e cristãs em relação aos demais seres humanos. É a lógica do diálogo e do mútuo enriquecimento. A história humana é também portadora do mistério. Não existem duas histórias: uma profana e outra sagrada. Uma só é a história da salvação.

A transição de uma Igreja que se autoentendia como sociedade perfeita a uma Igreja chamada a compreender-se como “sacramento da união íntima com Deus”, é um processo não só necessário, mas também doloroso. Existem tentações e serem superadas. A tentação de antecipar o “ano sabático” numa ilha de tranqüilidade, enquanto a humanidade se

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agita em meio às ondas tempestuosas de seus projetos históricos. Essa transição, e todas as transições apresentadas ao longo dos capítulos deste livro, exige sem dúvida uma conversão profunda de cada um. Deus é o Deus da história. O Verbo se fez carne. A Igreja se fez história. Se alguém ainda pensa num cristianismo desencarnado e descomprometido com “as dores e angústias dos homens e mulheres de hoje”, esse alguém é herege, pois não crê que o Filho de Deus veio na carne (Cf. 1 Jo 4,2), e consequentemente não vive isso na sua vida e nas suas opções.

No último capítulo (p. 179-190), o autor conclui a obra com a temática mariana: a transição de uma mariologia apenas “cristotípica” (à luz de Cristo), a uma mariologia também “eclesiotípica” (à luz da Igreja). A humildade de Maria sempre nos ensina. E o capítulo VIII da Lumen Gentium, apresentando Maria como ícone, mas membro da Igreja – não dela separada – é um verdadeiro divisor de águas para a mariolo-gia, superando o temor de alguns Padres de que a inclusão de Maria no esquema eclesiológico significaria uma diminuição da glória da Mãe do Senhor. O texto do referido capítulo VIII contém o que havia de melhor na tradição mariológica católica. O gênero literário aplicado é bíblico e narrativo, uma opção feliz, sobretudo numa perspectiva ecumênica. Em sua metodologia, mostra os quatro pontos fundantes desta mariologia: o princípio da solidariedade (ou seja, do estreito envolvimento de Maria na história de Jesus); o princípio da singularidade (a relação única de Maria com Jesus); o princípio da eminência (Maria representa o máximo da eficácia da graça de Cristo num ser humano não assumido hiposta-ticamente); o princípio de exemplaridade (conseqüência dos princípios anteriores, Maria representa o modelo, o exemplar, o tipo daquilo que o cristão e a cristã são chamados a ser).

Concluamos, com o autor. A Igreja é não apenas sinal, mas rea-lidade da salvação. Se, de um lado, o aspecto espiritual se manifesta no institucional, que age como sinal e instrumento do primeiro, por outro, o aspecto social da Igreja é sustentado, vivificado e justificado pela realida-de espiritual, que o envolve e permeia. Este é o verdadeiro equilíbrio de uma Igreja simultaneamente visível e espiritual. Se os Bispos viajaram a Roma, para o Concílio, como “príncipes”, mesmo na melhor acepção do termo, de lá voltaram como “servos dos servos de Deus.” Esta é a característica dessa Ecclesia Semper Reformanda e Casta Meretrix, uma Igreja sempre em vias de conversão, com a consciência de que é santa e pecadora, não num dualismo inconciliável mas num sentido pleno do ser divina e humana. Uma Igreja peregrina, povo de Deus, Igreja mais

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carismática e por isso plural; feita de unidade na multiplicidade; uma Igreja toda ministerial, ecumênica e mariana. Eis a Igreja do Concílio mais eclesiológico e pastoral de todos os já realizados. Vale a pena revisitá-lo, para dele poder colher os frutos ainda não percebidos.

Endereço do Recensor:Rua Cônego Thomaz Fontes, 192

Bairro Santa MônicaCEP 88035-030 Florianopolis, SC

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Livros de nossos professores

BESEN, José Artulino, História da Igreja no Brasil – O Evangelho acolhido pelos pobres, São Paulo, Ed. Mundo e Missão, 2012, 22.5 x 15.5 cm., 280 p.

Pe. Ney Brasil Pereira*

Parte deste livro foi escrita no contexto histórico da celebração dos 500 anos do Brasil e do Projeto Rumo ao Novo Milênio. Reformulado totalmente e ampliado, 12 anos depois, continua dirigido a quem desejar ter um primeiro contato com a história da vida católica brasileira. São pontos da história da Igreja a partir do povo, dos pobres, os verdadeiros agentes da história eclesial, e sempre a maioria da população brasileira. Nesse povo, estão incluídos todos aqueles que trabalharam pela causa do Reino em nosso país. A história novamente se volta para pessoas cuja vida transforma uma época ou instituição. Está muito forte a aceitação de biografias. Convicto dessa importância na vida da Igreja – ninguém pode negar que Francisco de Assis mudou o século em que viveu – o autor procurou nesta edição traçar pequenas biografias, apresentar homens e mulheres que, de modo excepcional, se consagraram ao Evangelho do Senhor. Deveria ser aumentada a lista, mas o espaço de um livro impõe limitações e escolhas.

A atenção dedicada aos indígenas, aos negros, aos missionários populares, como Pe. Ibiapina, Pe. Cícero, às mulheres plantadoras e sus-tentáculo de comunidades, leva o leitor à alegria do Evangelho encarnado no mundo do povo, dos humildes que aceitam a Boa Nova de Jesus de Nazaré. As figuras ímpares de Dom Hélder, Dom Luciano, Dom Aloísio revelam a grandeza desses homens, verdadeiros Pais da Igreja.

Chama atenção a qualidade gráfica, a riqueza de imagens que, por si só, explicitam a História. Pe. José Artulino Besen, há 38 anos profes-sor de História da Igreja no ITESC, conseguiu transmitir, com clareza e sinceridade, a beleza e riqueza do Evangelho acolhido pelos pobres.

* O recensor é Mestre em Ciências Bíblicas e professor do ITESC e da Faculdade Católica de Santa Catarina, FACASC, em Florianópolis.

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Recensões

BESEN, José Artulino, História da Igreja – da idade apostólica aos nossos tempos, São Paulo, Ed. Mundo e Missão, 2012, 22.5 x 15,5 cm., 295 p. 2. ed.

Pe. Ney Brasil Pereira*

Uma “História da Igreja” diferente. Diferente pelo espírito “de humildade e realismo” com que foi elaborada e publicada. Uma História da Igreja que leva à penitência e à gratidão a Deus, pela superação dos pecados. Uma “História da Igreja” diferente, como vê-se nas palavras do autor: “Ao elaborar esta breve História da Igreja, tive de fazer escolhas no tratar alguns temas e deixar outros de igual ou até maior importân-cia, oferecendo uma visão complexiva do acontecer da Igreja situada na história dos homens, e assumindo atitude ecumênica no respeito às outras histórias de Igrejas e Comunidades cristãs.” A obra, publicada em comemoração do Grande Jubileu, no ano 2000, sai agora, revista, em 2ª edição.

É significativa a citação de Santo Agostinho, encabeçando todo o livro: “A arca de Noé tinha tanto o corvo como a pomba, os dois gêneros. Se a arca é prefiguração da Igreja, observai que, neste dilúvio do mundo, é inevitável que a Igreja contenha os dois gêneros, tanto o corvo como a pomba. Quem são os corvos? São aqueles que buscam as próprias coisas. Quem são as pombas? São aqueles que procuram as coisas que são de Cristo” (Agostinho, In Joan. Ev. 6,2). E ainda, do autor, o convite ao leitor: “O leitor é convidado a não deter-se nos pe-cados ou nas vitórias, mas a ter sempre presente que a confessio peccati é também confessio laudis: confessando nossos pecados, proclamamos o louvor de Deus” (p.10).

Quanto ao capítulo final (capítulo 75, pp. 288-292), o autor faz questão de fechar o seu livro com a memória do gesto profético de João Paulo II, sua grande confissão, na quaresma do Ano Santo do Grande Jubileu. Após esse gesto, conclui o autor, “todo triunfalismo na Igreja não passa de doença espiritual de almas reacionárias. Se o uso do poder provocou tantos pecados, o caminho que Jesus oferece aos seus discípulos é o do humilde serviço evangélico ao ser humano” (p. 292).

Creio que esta “História da Igreja” fará um grande bem. A franque-za, ou, como já dito acima, o “espírito de humildade e realismo” com que aborda os diversos temas, mesmo os mais espinhosos (século de ferro,

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Inquisição, Reforma, absolutismo, questão social etc), contribuirá com certeza para seu positivo esclarecimento. Do ponto de vista didático, os pequenos capítulos se prestam a seminários, palestras, debates, nos cursos de Teologia para leigos ou em cursos de cultura religiosa nas universidades. Parabéns ao autor.

E-mail do Recensor: [email protected]

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Tríduo bíblico sobre “Animação bíblica da pastoral”

Celebrando o 40º aniversário do ITESC e o 50º do Concílio Va-ticano II, nos dias 04 a 06 de junho último a comunidade acadêmica da Faculdade Católica de Santa Catarina (FACASC) e do Instituto Teológico de Santa Catarina (ITESC) esteve envolvida com o Tríduo Bíblico sobre “Animação bíblica da vida e da pastoral”. O objetivo do tríduo foi socia-lizar as conferências e debates havidos no 1º. Congresso de Animação Bíblica da Pastoral, promovido pela CNBB em outubro de 2011, em Goiânia. Nessa ocasião, os participantes, provindos das dioceses de nosso Regional Sul IV, comprometeram-se a repassar o conteúdo do Congresso e, a partir dele, motivar a reflexão sobre a importância da animação bí-blica da pastoral em todos os âmbitos de nossa Igreja catarinense. Neste sentido, a FACASC, através do Núcleo de Estudos Bíblicos, promoveu o Tríduo Bíblico sobre a Animação Bíblica da Pastoral, com o objetivo de proporcionar a oportunidade não só de conhecer o conteúdo refletido no Congresso, mas também de partilhar como a animação bíblica da vida e da pastoral – uma das cinco urgências da ação evangelizadora da Igreja no Brasil – pode dinamizar a vida, as estruturas e a ação da Igreja em sua totalidade.

A programação constou das seguintes conferências, todas elas seguidas de animados debates: A Animação Bíblica da Pastoral no Brasil (com Dom Jacinto Inácio Flach e Pe. Antônio Mendes, da Diocese de Criciúma); Da Pastoral Bíblica à Animação Bíblica de toda a Pastoral – Do Concílio aos nossos dias (com Pe. Osmar Debatin, da Diocese de Rio do Sul); A Igreja num mundo em mudança, e A Pastoral na vida da Igreja – Repensando a Missão Evangelizadora em tempos de mudança (com Pe. Márcio Martins Rosa, da Diocese de Caçador); A Palavra preparada, encarnada e anunciada (com os professores Sílvia Togneri e Celso Loraschi, da Arquidiocese de Florianópolis; A Palavra de Deus é viva e eficaz (com Ir. Marlene Bertoldi e a Comissão Regional de Ani-mação Bíblica da Pastoral). Assim, numa programação conjunta com o Regional Sul IV da CNBB, todas as dioceses catarinenses estiveram envolvidas na formação de nossos estudantes.

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Crônicas

Confirmou-se no Tríduo o anseio da Mensagem final do I Con-gresso Nacional de Animação Bíblica da Pastoral de que “a Animação Bíblica da Pastoral é uma dádiva de Deus capaz de reavivar na Igreja a consciência de sua missão e de sua identidade; capaz de renovar e dinamizar a vida, as estruturas e a ação da Igreja em sua totalidade”.

Todas as palestras do 1º. Congresso de Animação Bíblica da Pas-toral, de Goiânia, encontram-se à disposição dos interessados no site da FACASC: <www.facasc.edu.br>.

1º. Simpósio de Intelectuais e Profissionais Católicos

No contexto das celebrações do Jubileu de Rubi (40 anos) do ITESC, a FACASC promoveu o 1º. Simpósio de Intelectuais e Profissio-nais Católicos, no último dia 09 de agosto, à noite. O auditório de nossa faculdade ficou repleto de pessoas interessadas, membros de comunida-des, pastorais e movimentos, intelectuais e profissionais, que aderiram ao convite. Coordenado pelo Diretor Administrativo, Pe. Dr. Vilmar Adelino Vicente, o simpósio foi aberto por Dom Wilson Tadeu Jönck, arcebispo metropolitano, que exaltou a importância do evento e fez votos de que a FACASC assuma com coragem sua missão de fazer-se mais presente na sociedade catarinense. Em seguida, o Diretor da FACASC, Pe. Dr. Vitor Galdino Feller, proferiu conferência sobre “O perfil do intelectual e do profissional católicos diante dos apelos do Concílio Vaticano II”. Após as reações dos convidados Dr. Alberto Oscar Cupani, professor de Filosofia da Ciência e da Tecnologia no Curso de Filosofia da UFSC e Dra. Salma Ferraz, ensaísta, crítica literária, escritora e coordenadora do Núcleo de Estudos em Teologia e Literatura (NUTEL) da UFSC, abriu-se espaço para o debate, em que uma dezena de participantes manifestou seu apreço pelo evento e pela proposta do conferencista de um diálogo mais profícuo da Igreja e da Teologia com o mundo que nos cerca. Por fim, diante do projeto anunciado pelo Pe. Vilmar, a assembleia dos participantes manifestou-se positivamente quanto à continuidade de eventos desse porte.

Formação Continuada de Docentes

Bom número de professores reuniu-se no dia 14 de agosto, à tarde e à noite, para dar continuidade à formação dos docentes da FACASC e do ITESC. Inicialmente, foi apresentado a todos, pelo Pe. Dr. Edinei da

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Rosa Cândido, presidente da Comissão Própria de Avaliação, o resultado da primeira avaliação feita pelos alunos acerca da infraestrutura da FA-CASC e da metodologia de ensino dos professores do primeiro semestre. Anunciou que a avaliação a ser feita no segundo semestre terá maior abrangência, envolvendo também o corpo técnico-administrativo e o corpo docente. Insistiu na necessidade de estarmos atentos aos resultados dessas avaliações, que apontam lacunas e problemas, com o desafio de os resolvermos do melhor modo e o mais imediatamente possível.

Em seguida, sob a coordenação da Diretora Pedagógica, Profa. Ms. Ana Cristina Barreto Floriani, os professores estudaram dois textos significativos no campo da formação pedagógica: 1) Docência no Ensino Superior: professor aulista ou professor pesquisador?, de Jeiffieny da Silva Costa; e Metodologia do Ensino Superior ou Ética da Ação do Professor?, de T.M. Baibich-Faria e F. Meneghetti.

Ambos foram muito úteis para a percepção de que não se pode fixar a ação do ensino superior só como transmissão de conhecimentos, mas que é urgente contrapor-se à prática de “professor aulista” e servir-se de elementos que enriqueçam a prática pedagógica. Assim, convém ressaltar a relação de afetividade entre docente e discentes, através da cooperação, do trabalho em equipe e da solidariedade entre educador e educando. Pois a ação educativa é complexa, e se constitui do processo ensino-aprendizagem, na pesquisa, na atualização contínua, na gestão de contextos educativos e na perspectiva da gestão democrática; e, ainda, no estímulo da criação cultural e do desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo. Quanto ao perfil do docente universitário, insiste-se em quatro eixos: a preparação pedagógica; a visão do professor como conceptor e gestor do currículo; a relação professor-estudante e estudante-estudante; e o domínio da tecnologia educacional. Conclui-se que o ensino implica em compromisso ético pleno.

Estimulados por essas novas percepções, os professores da FA-CASC e do ITESC percebem que é urgente desenvolver um projeto sistemático e orgânico que favoreça e estimule sua própria formação, sobretudo no campo da didática e da pedagogia.

Cursos de Extensão

Os Cursos de Extensão da FACASC têm o objetivo de contribuir para a formação de lideranças leigas. Esses cursos vêm funcionando

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desde o tempo da fundação do ITESC, em 1973. Seguindo a progra-mação estabelecida para essa formação, que tem um ciclo de dois anos, a partir do primeiro semestre de 2012 estão acontecendo os cursos de: Teologia Sistemática com 45 alunos; Bíblia-Segundo Testamento com 47 alunos; Teologia Litúrgica-Fundamental com 32 alunos e Teologia Catequética-Pastoral com 18 alunos. E, também, para atender as neces-sidades das comunidades cristãs no campo do Canto e Música Litúrgica, neste segundo semestre de 2012, teve início o Curso de Canto e Música Litúrgica, o qual conta com 74 alunos.

Congresso Teológico sobre o Concílio Vaticano II

Para celebrar os 40 anos do ITESC, a FACASC está promovendo um Congresso Teológico com o tema Concílio Vaticano II – Memórias e Perspectivas, a realizar-se nos dias 3 a 6 de setembro deste ano.

A programação consta das seguintes conferências e respectivos conferencistas: Na segunda, dia 3, de manhã, “Da Apostolicam Actu-ositatem aos ministérios leigos”, com a teóloga carioca Maria Clara Bingemer, e à tarde, “Lumen Gentium: Pilar Eclesiológico do Concílio Vaticano II”, com nosso diretor, o Pe. Vitor Galdino Feller. Na terça, dia 4, de manhã, “50 anos do Concílio Vaticano II – Esperanças e Desafios”, com Dom Luiz Demétrio Valentini, Bispo de Jales, SP, e à noite, “Igreja, Sociedade e Juventude”, com o teólogo jesuíta mineiro, Pe. João Batista Libânio. Na quarta, dia 5, de manhã, “Formação Presbiteral na Igreja Atual”, também com o Pe. João Batista Libânio, e à noite, “40 Anos da Caminhada do ITESC”, com nosso professor de história da Igreja, Pe. José Artulino Besen. Concluindo o congresso, na quinta, dia 6, de manhã, teremos a conferência “Gaudium et Spes: Pilar Teológico Pastoral do Concílio Vaticano II”, com nosso ex-diretor, o teólogo uruguaio leigo, Dr. Daniel Ramada Piendibene, atual embaixador do Uruguai Junto à Santa Sé.

Na noite de quinta, dia 6, a FACASC patrocina a apresentação teatral “O Contestado”, no Teatro Pedro Ivo Campos, pelo Grupo TOCA de Teatro Universitário, da UNOESC, de Joaçaba, SC.

Encontro dos Ex-alunos do ITESC e Sessão Solene na ALESC

Anteriormente programado para o dia 7-9, logo após o Congresso Teológico, o Encontro dos ex-alunos será realizado no dia 15-10, segunda

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feira, com várias atividades previstas durante o dia, e concluindo com uma Sessão Solene na Assembleia Legislativa de Santa Catarina, em homenagem aos 40 anos do ITESC.

Blog sobre o Ano da fé

Com a Carta Apostólica Porta Fidei (A porta da fé), de 11 de outubro de 2011, o Papa Bento XVI proclamou o Ano da Fé, que se estenderá de 10 de outubro de 2012 a 24 de novembro de 2013. Oca-sião próxima do Ano da Fé é a celebração dos 50 anos do início do Concílio Ecumênico do Vaticano II, anunciado e iniciado pelo Papa João XXIII e, com a graça de Deus, concluído pelo Papa Paulo VI.

O ITESC e a FACASC decidiram oferecer ao povo de Deus a oportunidade de refletir sobre cada Documento do Vaticano II, com explicitação dos textos. Finalidade: ler e conhecer melhor a riqueza teológica, espiritual e pastoral que os Padres Conciliares ofereceram a toda a Igreja, riquezas ainda pouco conhecidas e exploradas.

Com essa finalidade, o ITESC e a FACASC, sob a coordenação do Pe. José Artulino Besen e a administração técnica do Pe. André Sperandio (da Igreja Ortodoxa), editam o blog <anodafe.wordpress.com> dividido em três partes: Documentos de João XXIII; Documentos do Concílio, e comentários elaborados por nossos professores. Os textos já estão sendo editados e são um ótimo instrumento de formação para padres, religiosos, agentes de pastoral e povo de Deus.

Interdiocesanos reúnem 12 mil

Quatro encontros interdiocesanos simultâneos de Grupos de Reflexão, Famílias e Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) reuniram cerca de 12 mil pessoas nas dioceses do Regional Sul IV da CNBB, no estado de Santa Catarina, dia 20-05. “Justiça e profecia no campo e na cidade” foi o tema da terceira edição do evento, que reuniu animadores, líderes e participantes desses Grupos.

As dioceses de Caçador, Joaçaba e Chapecó, reuniram-se em Xa-xim, com 3,5 mil pessoas. De início, caminharam por dois quilômetros com três Bíblias Sagradas, postas em peneiras confeccionadas por indí-genas. Uma memória à tradição da festa do “Dia do Divino”, celebrada por povos nativos da região.

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A celebração de abertura continuou na Igreja Matriz, presidida pelo bispo de Chapecó, Dom Manoel João Francisco.

“Foi um momento de romaria, de sair cedo de casa, de caminhar, re-zar, cantar, encontrar-se com os companheiros de caminhada e de missão. Momento de encontrar Deus, que caminha junto do seu povo” declarou o padre Paulo Cézar Klein de São Domingos, Diocese de Chapecó.

À tarde, no ginásio paroquial, as dioceses apresentaram três temas centrais: os cem anos do Contestado (Caçador), Abertura do Concílio Vaticano II (Joaçaba), e História e Animação bíblica dos Grupos de Reflexão (Chapecó).

No litoral, 4 mil pessoas das Dioceses de Criciúma, Tubarão e a Arquidiocese de Florianópolis realizaram o evento no CEAR, em Gover-nador Celso Ramos. Problemas sócio-econômicos, políticos, ecológicos e religiosos foram abordados.

De acordo com a assessora Sirlei Antônia Gasparetto, de Chapecó, o cristão deve ser profeta da justiça. “O próprio caminho do Evangelho nos mostra isso. A luz da inculturação do Evangelho e a iniciação cristã vem dos grupos de reflexão, que são célula viva da Igreja de Jesus Cris-to. A Palavra de Deus vai entrando em nós. E, como fermento, vamos transformando o mundo para melhor”, disse.

Padre Vilson Groh, da Arquidiocese, discutiu as urgências das Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, apresentadas pelas dioceses em forma de teatro. Ele disse que é preciso entrar nas estruturas da cidade a partir dos pobres. “Os Grupos de Famílias são os espaços onde se faz a experiência mística e completa da Palavra de Jesus Cristo. São espaços de serviço, de diálogo. Enviam-nos à missão de formar comunidade nos prédios, periferias e áreas rurais”, analisou.

As Dioceses de Blumenau e Joinville levaram a Jaraguá do Sul, também, aproximadamente, 4 mil pessoas. Além do tema oficial, elas comemoraram o 46º Dia Mundial das Comunicações. A apresentação de uma banda local animou o evento, que ainda teve orações, reflexão e partilha de experiências das dioceses.

Uma programação similar aconteceu em Taió com 600 pessoas das Dioceses de Lages e Rio do Sul. A missa de encerramento foi concele-brada por Dom Augustinho Petry e Dom Irineu Andreassa, de Rio do Sul e Lages, respectivamente. Com a metodologia ver-julgar-agir, o objetivo

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Crônicas

dos encontros, que são bianuais, é celebrar a caminhada e fortalecer a missão dos Grupos de Família/Reflexão e das CEBs.

Outra atividade regional destes grupos será o 11º Encontro Esta-dual das CEBs, programado para 07 a 09 de setembro. As delegações das dioceses do interior visitarão comunidades da periferia de Florianópolis, inspiradas pelo lema “CEBs: Justiça e profecia a serviço da vida”.

Curso especial de Teologia Hebraica

Entre os dias 13 a 15 de agosto de 2012, no período matutino e vespertino, na FACASC, tivemos um Curso de Teologia Hebraica, ministrado pelo Pe. Vitório Cipriani, especialista em teologia hebraica pela Universidade de Jerusalém e professor na Faculdade Assunção, em São Paulo. Estiveram presentes alguns professores, e principalmente os alunos do primeiro ano da FACASC e os do segundo ano do ITESC.

Durante o curso buscou-se fazer uma análise profunda de grandes temáticas bíblicas, analisando-as a partir de uma perspectiva histórico-crítica, buscando entender o Segundo Testamento a partir da herança recebida do Primeiro Testamento, quer dizer a herança do mundo judai-co. Pe Cipriani é um homem com conhecimento profundo da tradição rabínica, o que nos proporcionou analisar as Escrituras na perspectiva do judaísmo, o que é sem dúvida a maior riqueza do curso.

Suas colocações, lúcidas e coerentes, despertaram em muitos de nós novos questionamentos, como que novas “brasas acesas sobre nossas cabeças”, brasas que sustentam o fogo de nossa fé. Essas novas ques-tões nos auxiliam a entender cada vez mais nossas raízes, para sermos coerentes com a fé que professamos. Num tempo de tantas incertezas e extremismos, inclusive dentro da Igreja, um curso como este ajuda muito a encontrar um caminho de equilíbrio e de diálogo no debate teológico contemporâneo. (Murilo Guesser, aluno do 1º ano da FACASC)

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Hino para os 40 anos do ITESCLetra: Claudemir Serafim, diocese de Tubarão

A Ciência divina e criadora 1. De saber e inteligência nos dotou (Eclo 1,1).Quis que dela conhecêssemos a Glória (Jo 1,14)E o ITESC, dom da Fé, assim brotou.

Refrão: Glória a vós, Trindade Santa, ó Mistério sem igual!Pelo ITESC nós vos louvamos, com um canto sideral.O saber da Teologia nos ajude a compreenderQue a missão de cada dia é a Vida promover (cf. Jo 10,10).

Teologia com o chão da nossa história,2. Revelando os sinais da Salvação,Foi o sonho dos Pastores de outroraE nos guia nestes tempos, na Missão.

Padre Paulo*, com firmeza e ousadia,3. Lança as bases do Instituto a se formar:Foi semente que, ao morrer, trouxe alegria (cf Jo 12,24),Pois seus frutos viemos hoje celebrar.

Mergulhados nas Sagradas Escrituras,4. Quais discípulos, dispostos a escutar (cf Is 50, 4b),Entendamos que a toda criaturaO evangelho nós devemos anunciar (cf Mt 28,19)!

Jubilosos, entoemos este hino:5. Quatro décadas, os frutos a colher!Pelo ITESC,que celebra suas bodas,Gratidão, ó Senhor, viemos render!

* Padre Paulo Bratti, falecido prematuramente em 15-05-1982, foi o primeiro Diretor do ITESC.

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Encontros Teológicos – 25 anos

REVISTA “ENCONTROS TEOLÓGICOS”1986 – 26 ANOS – 2012

Títulos dos 62 números monográficos

1986, n. 1 (1986/1): O Leigo na Igrejan. 2 (1986/2): Planejamento Pastoral do Regional Sul IV –

Contribuições

1987, n. 3 (1987/1): A Mulher, ontem e hoje

1988, n. 4 (1988/1): No Ano Mariano, Marian. 5 (1988/2): Comunicação e Evangelização

1989, n. 6 (1989/1): Religiosidade Popular em Santa Catarinan. 7 (1989/2): Experiências Pastorais em Santa Catarina

1990, n. 8 (1990/1): A Mulher, na Igreja e na Sociedaden. 9 (1990/2): O Trabalho

1991, n. 10 (1991/1): A visita do Papa à Igreja que está em Santa Catarina

n. 11 (1991/2): Os Jovens e a Juventude

1992, n. 12 (1992/1): Evangelização da América Latina – 500 anos e †Pe. Paulo Bratti – 10 anos

n. 13 (1992/2): Fraternidade e Moradia – CF 1993

1993, n. 14 (1993/1): Santo Domingo – o Documento e ITESC – 20 anos

n. 15 (1993/2): Fraternidade e Família – CF 1994

1994, n. 16 (1994/1): Política e Igreja e Centenário de Dom Jaime de Barros Câmara

n. 17 (1994/2): Fraternidade e Excluídos – CF 1995

1995, n. 18 (1995/1): A Era do Espíriton. 19 (1995/2): Fraternidade e Política – CF 1996

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Encontros Teológicos – 25 anos

1996, n. 20 (1996/1): Espiritualidade e Espiritualidadesn. 21 (1996/2): Fraternidade e Encarcerados – CF 1997

1997, n. 22 (1997/1): Cristo, Fé e Batismon. 23 (1997/2): Fraternidade e Educação – CF 1998

1998, n. 24 (1998/1): Espírito Santo, Esperança e Crisman. 25 (1998/2): Fraternidade e Desempregados – CF 1999

1999, n. 26 (1999/1): Deus Pai, Caridade e Reconciliaçãon. 27 (1999/2): CF 2000 Ecumênica: Por um Milênio sem

exclusões2000, n. 28 (2000/1): Trindade, Eucaristia, Jubileu

n. 29 (2000/2): CF 2001: Vida, sim; drogas, não!2001, n. 30 (2001/1): Ser Igreja no novo Milênio

n. 31 (2001/2): CF 2002: Fraternidade e Povos indígenas2002, n. 32 (2002/1): CNBB: 50 anos de serviço à Evangelização no Brasil

n. 33 (2002/2): Concílio Vaticano II: 40 anos depois2003, n. 34 (2003/1): CF 2003: Fraternidade e Pessoas Idosas

n. 35 (2003/2): Ética e Teologian. 36 (2003/3): ITESC – 30 anos

2004, n. 37 (2004/1): CF 2004: Fraternidade e Águan. 38 (2004/2): O escândalo da Fomen. 39 (2004/3): Lumen Gentium – 40 anos Pessoa, Comunidade, Sociedade

2005, n. 40 (2005/1): CF 2005 Ecumênica: Solidariedade e Pazn. 41 (2005/2): A Eucaristia: Ele está no meio de nósn. 42 (2005/3): Gaudium et Spes – 40 anos

2006, n. 43 (2006/1): CF 2006: Fraternidade e Pessoas com deficiência

n. 44 (2006/2): XV Congresso Eucarístico Nacional – maio de 2006n. 45 (2006/3): Conferência Geral do Episcopado Latino Americano e Caribenho Aparecida – preparação

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191Encontros Teológicos nº 62Ano 27 / número 2 / 2012

Encontros Teológicos – 25 anos

2007, n. 46 (2007/1): CF 2007: Amazônia, Vida e Missão nesse chãon. 47 (2007/2): Espiritualidaden. 48 (2007/3): A Igreja em Santa Catarina

2008, n. 49 (2008/1): CF 2008: Fraternidade e Defesa da Vidan. 50 (2008/2): A Igreja em Santa Catarina – IIn. 51 (2008/3): A Igreja no Documento de Aparecida

2009, n. 52 (2009/1): CF 2009: Fraternidade e Segurança Públican. 53 (2009/2): Ano Sacerdotal: 2009-2010n. 54 (2009/3): Diaconato Permanente

2010, n. 55 (2010/1): CF 2010 Ecumênica: Economia e Vidan. 56 (2010/2): Igreja e Sociedaden. 57 (2010/3): O Projeto Pastoral de Aparecida

2011, n. 58 (2011/1): CF 2011: Fraternidade e a Vida no Planeta n. 59 (2011/2): VERBUM DOMINI: Exortação pós-sinodal

de Bento XVI n. 60 (2011/3): Presbítero: vida e missão2012, n. 61 (2012/1): CF 2012: Fraternidade e Saúde Pública n. 62 (2012/2): Vaticano II: 50 anos

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A Nossa Senhora do ITESCTexto e Música: Pe. Ney Brasil

Refrão: Ó Nossa Senhora do ITESC, ó nossa Mãe, ouvi o louvor e a oração, ó Mãe de Deus!1. Formastes Jesus Sacerdote, / a Ele ensinastes a andar, / a Ele que

é a Palavra fizestes falar, No lar-Nazaré o educastes, / no lar, Seminário de amor, / atenta a

seus primeiros passos que levam ao Tabor.

Maria, rogai por nós! Formai-nos, também a nós!

2. No início do seu ministério, / o vinho faltando em Caná, / a vossa palavra o levou a sua Glória mostrar,

Olhai para nossas carências, / nossa água em vinho mudai, / e tudo o que Ele disser nós faremos ao Pai!

Maria, rogai por nós! Formai-nos, também a nós!

3. Na Cruz estivestes com Ele, / com Ele quisestes sofrer, / e Mãe vos tornastes de quem vos quiser receber,

Pois nós, como João, decidimos / no ITESC, entre nós, acolher-vos, / Mostrai que vós sois Mãe fiel destes filhos e servos!

Maria, rogai por nós! Formai-nos, também a nós!

4. Ó Mãe da Unidade, Maria, / que lá no Cenáculo orastes / e os dons do Espírito Santo à Igreja alcançastes,

Fazei que a unidade busquemos / aquela que faz superar / as rixas e as divisões mais profundas que o mar...

Maria, rogai por nós! Formai-nos, também a nós!