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Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015 1 FACES OCULTAS DA ALFABETIZAÇÃO OLIVEIRA, Marineiva Moro Campos de 1 . Escritas iniciais Este trabalho apresenta resultados parciais de uma pesquisa que tem por objetivo analisar as concepção de alfabetização e as metodologias que fundamentam os cadernos orientadores de estudos em um programa de formação continuada para alfabetizadores. A análise pauta-se pela perspectiva histórico-cultural que se fundamenta na filosofia marxista, e busca entender a alfabetização como um processo que deve ser construído a partir das e para as relações culturais e históricas, buscando a emancipação do sujeito. Apontamos que no decorrer da história da educação brasileira, a alfabetização foi se constituindo como um processo socialmente organizado e privilegiado que contribui, de maneira fundamental, para a inserção do sujeito na cultura letrada. Contudo, a simples inserção dos indivíduos nesse processo não possibilita sua aprendizagem de leitura e escrita socialmente construída, para isso pressupõe um ensino sistematizado que considere as condições objetivas e específicas da alfabetização como um processo socialmente e culturalmente construído. Com relação ao ensino, compreendemos que toda e qualquer organização do trabalho pedagógico do alfabetizador está intrinsecamente relacionada com uma opção política, ou seja, envolve tanto uma concepção de linguagem quanto de sua apropriação que influencia na formação dos alunos e, por conseguinte, em toda sociedade, pois todos os conteúdos, estratégias pedagógicas e a bibliografia utilizada estão carregados de ideologias em especial de concepções de linguagem e de sujeitos que a escola pretende formar (GERALDI, 2005). Inserida em uma sociedade capitalista, a escola, em especial na fase da alfabetização, deve contribuir para a emancipação humana e a superação dos processos 1 Pedagoga da Rede Municipal de Ensino, Mestranda em Educação do Programa de Mestrado em Educação da UNIOESTE – Campus de Francisco Beltrão. Grupo de Pesquisa Representações, espaços, tempos e linguagens em experiências educativas - RETLEE. [email protected]

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Universidade Estadual de Maringá 02 a 04 de Dezembro de 2015

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FACES OCULTAS DA ALFABETIZAÇÃO

OLIVEIRA, Marineiva Moro Campos de1. Escritas iniciais

Este trabalho apresenta resultados parciais de uma pesquisa que tem por objetivo

analisar as concepção de alfabetização e as metodologias que fundamentam os cadernos

orientadores de estudos em um programa de formação continuada para alfabetizadores.

A análise pauta-se pela perspectiva histórico-cultural que se fundamenta na

filosofia marxista, e busca entender a alfabetização como um processo que deve ser

construído a partir das e para as relações culturais e históricas, buscando a

emancipação do sujeito.

Apontamos que no decorrer da história da educação brasileira, a alfabetização

foi se constituindo como um processo socialmente organizado e privilegiado que

contribui, de maneira fundamental, para a inserção do sujeito na cultura letrada.

Contudo, a simples inserção dos indivíduos nesse processo não possibilita sua

aprendizagem de leitura e escrita socialmente construída, para isso pressupõe um ensino

sistematizado que considere as condições objetivas e específicas da alfabetização como

um processo socialmente e culturalmente construído.

Com relação ao ensino, compreendemos que toda e qualquer organização do

trabalho pedagógico do alfabetizador está intrinsecamente relacionada com uma opção

política, ou seja, envolve tanto uma concepção de linguagem quanto de sua apropriação

que influencia na formação dos alunos e, por conseguinte, em toda sociedade, pois todos

os conteúdos, estratégias pedagógicas e a bibliografia utilizada estão carregados de

ideologias em especial de concepções de linguagem e de sujeitos que a escola pretende

formar (GERALDI, 2005).

Inserida em uma sociedade capitalista, a escola, em especial na fase da

alfabetização, deve contribuir para a emancipação humana e a superação dos processos

1 Pedagoga da Rede Municipal de Ensino, Mestranda em Educação do Programa de Mestrado em Educação da UNIOESTE – Campus de Francisco Beltrão. Grupo de Pesquisa Representações, espaços, tempos e linguagens em experiências educativas - RETLEE. [email protected]

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de exploração que são impostos pela classe dominante e que tornam a educação um

instrumento de alienação.

Nesse sentido, entendemos que o processo de alfabetização tem um

compromisso social, principalmente com a classe trabalhadora, e, se fundamentada na

perspectiva de emancipação, pode possibilitar o acesso a conhecimentos antes limitados

para essa classe.

Com a necessidade de analisar as faces ocultas da alfabetização impregnadas nas

práticas alfabetizadoras ao longo da história da educação, organizamos o texto em

quatro seções. Na primeira, analisamos as concepções advindas dos valores sociais

atribuídos à alfabetização. Salientamos que as mudanças de concepções e de valores no

processo de alfabetização são decorrentes das necessidades sociais, evidenciando a

relação do processo de alfabetização com o projeto hegemônico de sociedade. Na

segunda seção, analisamos o ensino na alfabetização, indicamos um cenário educacional

marcado por disputas de métodos.

Na terceira seção, apontamos a desmetodização na alfabetização, uma etapa que

marca a inserção das correntes construtivistas e sociocultural. Na quarta seção,

analisamos a alfabetização em prática no século XXI, apontamos para a necessidade de

reestruturação das práticas de alfabetização, pois moldadas pelo sistema capitalista,

continuam sendo instrumentos de reprodução e alienação.

Alfabetização ao longo da história

A alfabetização tornou-se no início do século XX o termo para representar o

processo de ensino da leitura e da escrita, porém, a história da alfabetização não remete

somente às nomenclaturas, mas a uma análise das disputas políticas, econômicas e

sociais, que marcaram o cenário desse processo.

Consideramos a alfabetização como um processo determinado a partir das e

pelas emanadas relações inerente à conjuntura histórica, às correlações de força e ao

grau de organização da formação social, por isso, síntese das múltiplas determinações.

Determinações que transferem à alfabetização características econômicas para a

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ampliação do capital vinculada ao ensino controlado pelo Estado2, cujo objetivo é

legitimar os padrões das relações sociais e econômicas da classe dominadora (NEVES,

2011, p. 20).

Diante da aclamação ao projeto vigente de sociedade, a alfabetização tornou-se

um projeto da hegemonia. Mortatti (2000) explica que a alfabetização tornou-se um

projeto hegemônico quando passou a ser instrumento de imposição e manutenção de

ideias de um sistema público de ensino baseado nas concepções de modernização e

progresso, o que acarretou na organização de uma nova concepção de leitura e escrita.

Essa concepção tornou a alfabetização um campo de disputas ideológicas

articulada ao projeto dominante e, por consequência arraigada de valores da ideologia

capitalista com o objetivo de produzir bens em benefícios próprios.

Graff (1994), autor que se dedicou a estudar as concepções de valorização da

alfabetização, nomeadas por ele de domínios3, aponta a alfabetização como um projeto

social vinculada à solução de problemas sociais, econômicos e políticos determinados

pelo fator tempo histórico da necessidade de cada época.

Segundo o autor, o progresso desejado vinculado ao processo de alfabetização é

um mito, pois pensar que a alfabetização é a salvação dos problemas sociais é um mito

necessário para assegurar a hegemonia4 do capital.

O mito, segundo Graff (1994), é decorrente da valorização capitalista sobre a

alfabetização que cristaliza a concepção econômica e de ascensão social em detrimento

a aprendizagem da leitura, da escrita e dos conhecimentos produzidos pelo homem. E,

nesse sentido, a alfabetização ao longo da história é tomada como aparelho hegemônico

manipulado pela classe dirigente como uma vitalidade para garantia de seus interesses.

Interesses que na medida em que são ameaçados, são novamente estruturados e,

inerentes à mudança, reestruturam seus aparelhos de manipulação (COOK-GUMPERZ,

2008, p. 41).

2 No campo da educação conceituamos Estado como o elemento que “pressiona, incita, solicita e pune, já que, criadas as condições nas quais, determinado modelo de vida é possível”, a ação ou omissão contra a legitimidade do projeto social deve ser punida (GRAMSCI, 2002, p. 28). 3 Domínio ontológico; refere à busca da essência do ato de alfabetizar e do que constitui esse ato. Domínio axiológico; pautado nos valores e concepções da alfabetização (GRAFF, 1994). 4 Com base nas escritas e Gramsci (2002) conceituamos Hegemonia como a criação de um bloco ideológico que permite à classe dirigente manter o monopólio intelectual o que fortalece sua dominância.

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Métodos que estruturaram a Alfabetização

Muitos discursos no âmbito educacional indicam a necessidade de entender o

que faz da alfabetização um problema social e porque nossos alunos têm dificuldades

em aprender a leitura e a escrita "especialmente na escola pública” (MORTATTI, 2006,

p.1).

Para Mortatti (2006) essa problemática está vinculada ao processo de

subordinação da alfabetização ao capital, um processo que limita o ensino e

aprendizagem para a classe trabalhadora.

Assim como Mortatti (2006), Graf (1994, p.24) afirma que nesse limitar do

processo do ensino da leitura e da escrita a alfabetização se resume em ensinamento de

códigos o que torna a alfabetização um instrumento para:

Facilitar a transmissão e assimilação da classe trabalhadora e dos pobres aos hábitos industriais e sociais ‘modernos’, se administra em instituições cuidadosamente estruturadas. [...] (que busquem) juntamente com os próprios promotores da escolarização- trabalhadores mais morais, ordeiros, disciplinados, obedientes e conformados: o resultado esperado da hegemonia da economia moral da alfabetização.

Essa concepção marca o processo de alfabetização escolar como facilitador da

disseminação da hegemonia. Moratti (2000) destaca que o ensino na alfabetização tem

sua história marcada e estruturada no movimento de disputas pela hegemonia

determinada por métodos.

Como solução para resolver os problemas do ensino da leitura e da escrita,

acreditava-se que o encontro de um método seria o ideal, o que acarretou em uma

disputa por métodos, uma “disputa entre as novas e as velhas explicações para um

mesmo problema alfabetizar todas as crianças” (MORTATTI, 2006, p.1).

Para análise dos métodos, as pesquisas de Braslavsky (1988), Frade (2007),

Franco (1997), Gonçalves (2011) e Mortatti (2006) tornam-se importantes, em vista que

esses autores lançam na alfabetização um olhar de totalidade e apontam como os

métodos utilizados para alfabetizar se operacionalizam em diferentes períodos.

De acordo com os autores, os métodos utilizados desde a antiguidade até o final

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do século XVIII foram os de fundamentação sintética, os métodos Alfabético, Silábico e

Fonético. Franco (1997) conceitua-os como um processo que segue das partes para o

todo, da síntese para a análise. Braslavsky (1988, p.42) caracteriza-os de “métodos que

partem de unidades não significativas da palavra”. Em Frade (2007), podemos encontrar

seu objetivo no ensino:

Cada letra (grafema) é aprendida como um fonema (som) que, junto a outro fonema, pode formar sílabas e palavras. Para o ensino dos sons, há uma sequência que deve ser respeitada, segundo a escolha de sons mais fáceis para os mais complexos. Na organização do ensino, a ênfase na relação som/letra é o principal objetivo (FRADE, 2007, p. 23).

Essa relação, fonema-grafema, é necessária, mas com esses métodos de base

sintética, o processo de alfabetização graduava-se, implicando a memorização e

repetição. Com ele iniciava-se o ensino da letra para as sílabas e delas para a palavra,

depois para as frases. O foco não estava no “uso social da escrita” (GOLÇAVES, 2011,

p.52) ou na significação, mas aprendia-se por partes isoladas para, então, chegar a um

todo, muitas vezes, sem significados, apenas como um ato mecânico.

Os métodos de base sintética concretizavam-se por meio do uso das chamadas

Carta de ABC, constituídas por abecedários maiúsculo e minúsculo, pelos silabários

compostos por até três letras para posterior formação de palavras soltas. Esse material

utilizado para alfabetizar, por volta de 1875, foi produzido por professores fluminenses

e paulistas que tinham como base sua experiência didática (MORTATTI, 2006).

O ensino da alfabetização por base no método de fundamentação sintética

apresentou esse método como incapaz de desnudar as razões do analfabetismo latente.

Nesse momento, sobre influência da pedagogia norte-americana de caráter

biopsicofisiológico da criança, vem à tona a necessidade de um novo método

(MORTATTI, 2006).

Diante dos indicadores da ineficácia do método de base sintética e, na tentativa

de atender à nova necessidade, em contradição a esse método, apresentado nas Cartas de

ABC, surge no ano de 1876, em Portugal, o “Método João de Deus”, nomeado com o

nome de seu criador, um dos primeiros autores a debater a alfabetização com aportes

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filosóficos. Esse método se consolidou na cartilha “Maternal João de Deus”, também

conhecidas como “Cartilha Arte da Leitura” (MONARCHA, 1997).

O “novo” método consolidou-se, no Brasil, em 1880, utilizado nas províncias de

São Paulo e do Espírito Santo. O pioneiro brasileiro foi Antônio da Silva Jardim,

positivista militante e professor de português na Escola Normal de São Paulo

(MONARCHA, 1997).

Fundamentado na linguística moderna, esse método consistia em iniciar o ensino

da leitura pela palavra, para, posteriormente ensinar o fônico das letras isoladas da

palavra. Na época, foi considerada uma inovação científica para o progresso

socioeconômico do Brasil (MONARCHA, 1997).

O novo método passa ser conhecido como método analítico ou global, com base

no positivismo, foca o ensino da palavração, partindo da palavra mais fácil para a mais

difícil, constituiu uma nova característica das cartilhas de alfabetização, mas que ainda

se faz presente nos dias atuais (MORTATTI, 2000).

Muitas discussões entre adeptos do método sintético e adeptos do método

analítico marcaram o cenário da alfabetização no Brasil. Houve até uma tentativa de

unir os dois, junção denominada de métodos mistos (MORTATTI, 2006).

Com o método misto, ocorre a constituição de um ecletismo processual e

conceitual para a alfabetização. A união dos métodos de ensino considerava o nível de

maturidade das crianças e as classificava em classes homogêneas; a escrita continuou

concebida como uma questão de habilidade caligráfica e ortográfica simultânea à

habilidade de leitura, e ambas eram adquiridas com base em exercícios de coordenação

motora (MORTATTI, 2000).

Eis, portanto, nosso perigoso ponto de chegada: a constatação da existência de um sistema [...] valorizando cada vez mais a cultura do apelo visual, do aprender pela repetição de frases curtas, mensagens pobres, sem reflexões e de verdades digeríveis, criadas para não serem questionadas (GIOVANNI; ONOFRE, 2006, s/p.).

Devido a tantos debates, acreditava-se que o método era a peça chave para a

alfabetização, o caminho que decide as formas sistematizadas para se alfabetizar e que

conduziria ao pleno conhecimento. Braslavsky (1988) afirma que o método:

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Não é uma panaceia. Acreditamos que o método deve inserir-se em uma concepção pedagógica compreensiva, holística, com perspectivas sociais, culturais, políticas e filosóficas, pesquisando os fatos educacionais no seu próprio campo, com o apoio de outras ciências as quais respeita e interroga, sem por isso subordinar-se a elas (BRASLAVSKY, 1988, p.47).

Em consonância às escritas de Braslavsky (1988), os resultados apresentados

pelos métodos utilizados para alfabetizar, apontam o continuo fracasso escolar e a

incapacidade da escola em alfabetizar, evidenciam também que nenhum dos métodos

asseverou o ensino da leitura e da escrita para todos.

Mortatti (2000) afirma que os métodos, definidos para o ensino em diferentes

momentos históricos, não possibilitaram um ensino que superasse as explorações que

eram impostas pela classe dominante, ao contrário, articulavam cada vez mais a

alfabetização a um instrumento de alienação. Para a autora, em nenhum momento

histórico a alfabetização foi estruturada para gerar condição de emancipação, em

especial a classe dominada.

Dessa forma, entre disputas, denominadas por Mortatti (2011) como querela dos

métodos, Manuel Bergström Lourenço Filho, professor, intelectual, que se dedicou entre

1920 a 1970, sobretudo, aos estudos dos problemas do ensino primário, principalmento

no ensino da leitura e da escrita, marca o cenário da alfabetização por relativisar os

métodos desse processo e causar agitações no campo educacional brasileiro,

proporcionando uma ruptura com os modelos de educação europeus.

A obra didática de Lourenço Filho, um dos primeiros idealizadores de cartilhas

para alfabetização, sendo as mais conhecidas “Cartilha do povo” e “Upa, cavalinho!”,

que, juntamente com o livro “testes de ABC”, eram utilizados para verificar a

maturidade necessária à aprendizagem da leitura e da escrita, enfatizam a necessidade

de avaliar a maturidade biofisiológica para a aprendizagem inicial e não o método que

possibilitava somente saber como alfabetizar (BERTOLETTI, 2001).

Esse projeto, originado dos estudos teórico-experimentais sobre o ‘aprendizado’ da leitura e da escrita pela criança, colocava-se em posição de superação das disputas travadas até então entre os defensores dos métodos analíticos e dos métodos sintéticos. Para Lourenço Filho, o problema deslocou-se do ‘como’ ensinar, para os fatores internos da ‘criança real’ que influenciavam nesse

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aprendizado. Os métodos, por isso, eram indiferentes e representavam o pensamento ‘tradicional’ em relação ao ‘novo’ ponto de vista proposto por Lourenço Filho (BERTOLETTI, 2001, p. 103).

Essa nova concepção deu inicio ao processo de desmetodização da alfabetização,

fatores que impulsionaram como foco central a aprendizagem pautada no interesse da

criança em aprender e à maturidade biofisiológica, aspectos internos passam a ser

considerados pré-requisitos para o aprendizado da leitura e da escrita.

A reestruturação da alfabetização num processo de desmetodização

Com a nova concepção de alfabetização, no início da década de 1980 inicia-se

um “processo de desmetodização da alfabetização, uma vez que não cabem, nesse

processo, os tradicionais métodos de ensino da leitura e da escrita” (MORTATTI, 1999,

p.473).

Nessa década, chega ao Brasil o pensamento construtivista, fruto de pesquisas

sobre a psicogênese da língua escrita desenvolvidas pelas pesquisadoras Emília Ferreiro

e Ana Teberosky, ambas argentinas seguidoras de Jean Piaget.

A nova teoria que, de forma equivocada, no Brasil, foi chamado de método,

passou a ser considerada solução para o fracasso da alfabetização. Ignorando os

métodos, o construtivismo inverte os papeis, a base essencial passa ser a aprendizagem

e o foco o aluno deixando em segundo plano o ensino e o professor (MORTATTI,

2000).

A nova teoria é difundida e apontada como a solução dos problemas na

alfabetização. Assim, muitas Secretarias de Educação adotam a proposta do

construtivismo como base fundamental dos trabalhos educacionais, proposta que tem

como “base teórica a epistemologia genética de Jean Piaget, que concebe o sujeito como

o centro da aprendizagem e quem produz o conhecimento na interação com o objeto”

(GONÇALVES, 2011, p. 59).

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Os principais pressupostos do construtivismo pautam-se na análise do sujeito

como autônomo5, capaz de construir o seu próprio conhecimento, pois para Piaget

(1970) o conhecimento é uma reprodução da realidade, uma realidade construída pelo

sujeito a partir da sua relação com o objeto.

Seguidoras da concepção de Piaget, Ferreiro e Teberosky (1986) dedicaram-se

ao estudo da aprendizagem da escrita defendendo a ideia de que essa aprendizagem não

ocorre por representações de modelos, mas por uma construção da própria criança.

No construtivismo a aprendizagem parte do sujeito e por isso deve-se considerar

o fator biológico como determinante da aprendizagem. Mortatti (2007) explica que na

concepção construtivista a alfabetização é um processo que: [...] resulta da construção, por parte da criança, do conhecimento sobre a leitura e a escrita, na interação com esse objeto de conhecimento (a língua escrita). A construção desse conhecimento ocorre de acordo com certas etapas, seguindo um processo de desenvolvimento de estruturas cognitivas que a criança possui naturalmente, sem depender de intervenções de ensino e de condições socioculturais (MORTATTI, 2007, p. 162, grifos nossos).

A divulgação em larga escala das ideias construtivistas provocou novas disputas,

de um lado os que ainda defendiam os métodos e do outro os defensores da nova teoria,

a construtivista. A disputa não estava apenas entre esses dois grupos, mas há um terceiro

envolvido, os defensores da corrente denominada na década de 1980 como

interacionista em alfabetização. Esta nova corrente, influenciada em especial por

Vygotsky sofre tentativas de conciliação e incorporação com a teoria construtivista, o

que causou um novo ecletismo teórico (MORATTI, 2000).

Nessa tentativa de aproximar as teorias, os métodos retornam camuflados nas

cartilhas chamadas de construtivistas, sócio-construtivistas e construtivistas-

interacionistas, cartilhas que se relacionam harmoniosamente com os métodos, hoje

implícitos nos livros que orientam as práticas de alfabetização (MORTATTI, 2000).

Essa tentativa de vinculação de teorias degrada a essência da teoria histórico-

cultural defendido por Vigostki. Pois, para Vigotski (1998) as condições socioculturais,

5 Com raízes piagetianas, adeptos da teoria construtivista conceituam autonomia com base na conceituação de Piaget. Para esse estudioso a autonomia é um poder que só se conquista de dentro, pela via do egocentrismo (PIAGET, 1970).

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socioeconômicas e políticas, entre outros fatores determinantes do contexto social,

negados pela teoria de Piaget, sempre exerceram e exercem fortes influências na

aprendizagem e que por não serem considerados transformam o processo de

alfabetização em um problema educacional.

A alfabetização em prática no século XXI

Na tentativa de analisar o processo de alfabetização no século XXI, analisamos

um caderno de planejamento semestral de alfabetização elaborado coletivamente por

alfabetizadores que atuam no 1º, 2º e no 3º ano do Ensino Fundamental em uma escola

pública localizada no Oeste de Santa Catarina. Esse caderno tem o objetivo de orientar

as práticas alfabetizadoras e as atividades presentes no caderno foram retiradas dos

materiais didáticos de alfabetização arquivados na biblioteca da escola.

Nesse caderno foi possível identificar atividades que remetem a formação

técnica do aluno, a exemplo de um texto de orientação para avaliação na alfabetização,

o texto indicava que era preciso avaliar os conhecimentos do tipo conceitual, que

envolviam a compreensão de que a escrita relaciona-se com a pauta sonora da palavra, e

não com o seu significado.

Essa análise nos possibilitou identificarmos que o ensino da escrita encontra-se

em uma perspectiva técnica, pois em toda forma de ensinar a escrita deve haver relação

com seu significado, pois é necessário que a criança relacione a escrita a um sistema de

significação. Como alfabetizar na perspectiva emancipatória se o planejamento de

alfabetização está pautado em um ensino técnico?

Voltamos a análise do caderno, ao refletirmos sobre as práticas de leitura e

escrita apresentadas no material, percebemos que as atividades mais utilizadas eram

atividades que continham uma imagem e, do lado, várias palavras com a grafia

parecidas, mas apenas uma estava correta, e a criança deveria assinalá-la.

Recorremos aos estudos de Geraldi (2010) para apontar que nessa condição de

ensino e aprendizagem o aluno não é conduzido a pensar, apenas deve decodificar a

palavra e assinalar a correta, a construção cognitiva para solução da pergunta não é

considerada, assim como não é considerado o trabalho do professor como um mediador,

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pois este assume o papel de aplicador de atividades técnicas retiradas de materiais

didáticos.

Em contraposição a uma prática alienada por materiais didáticos que

transformam o professor em aplicador, Brito (2005) aponta que “[...] alfabetizar não é

formar no domínio de uma técnica, mas sim pôr a pessoa no mundo da escrita, de modo

que ela possa transitar pelos cursos da escrita, ter condição de operar criticamente com

os modos de pensar e produzir da cultura escrita” (BRITO, 2005, PREFÁCIO).

Geraldi (2005) faz um apontamento sobre atividades iguais as utilizadas pelas

alfabetizadoras, chamando-as de uma enunciação monológica, na qual os sujeitos não

são interlocutores. Esse tipo de atividade tem somente o objetivo de verificar se o aluno

se apropriou da capacidade de codificar e decodificar a partir da análise ilustrativa do

objeto.

Não desconsideremos a necessidade do ensino da relação grafofônica, que é um

princípio básico da alfabetização, mas salientamos a necessidade de observar que cada

aluno tem sua história de vida num contexto social e ideológico, em que, com a relação

com o outro, vai construindo sua consciência, “[...] com diferentes palavras que

internalizamos e que funcionam como contrapalavras na construção de sentidos do que

vivemos, vemos, ouvimos, lemos” (GERALDI, 2005, p. 22), e não com palavras soltas

e isoladas de contextos.

Para Mazzeu (2007) essas práticas, por mais camufladas que estejam, continuam

sendo práticas reprodutivistas e funcionalistas que subordinas às demandas do capital e

às determinações do mercado de trabalho buscam o “adestramento e treinamento do

trabalhador” (MAZZEU, 2007, p. 44).

Em sínteses, a escola afinada com a reestruturação produtiva capitalista cumpre

o papel de delimitar os conhecimentos a serem repassados à classe trabalhadora

transformando-se assim em um instrumento de reprodução do/e para o capital

(MAZZEU, 2007).

Nesse contexto, o aluno pertencente à classe trabalhadora não pode se formar

livre, emancipado e crítico, pois já no início de sua vida escolar será manipulado por um

processo de alfabetização castrador de iniciativas críticas e democráticas.

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A escola, como tal se estrutura na modernidade é uma instituição burguesa, no sentido de que é nascida no ventre da sociedade do capital, se vincula ao ideário democrático-burguês e toma parte na dinâmica produtiva e reprodutiva dessa sociedade (SOUSA JUNIOR, 2010, p.175).

Assim, as ações do alfabetizador se configuram em um viés reprodutivista do

capital, o alfabetizador é levado a conduzir um ensino técnico, pois para o mercado o

importante é a codificação e decodificação, a função social desse e de outros processos

de ensino não se tornam importantes para quem, seguindo a lógica do capital, será

operário.

Escritas finais

Com o objetivo de analisar criticamente as faces ocultas da alfabetização

impregnadas nas práticas alfabetizadoras ao longo da história da educação, apontamos

que são inúmeras as máscaras postas nesse processo, e essas sempre decorrentes da

manipulação do capital sob a educação.

Esse estudo, pautado na perspectiva histórico-cultural pressupõe que a escola,

em especial, no processo de alfabetização, deve proporcionar aos alunos a possibilidade

de emancipação, de liberdade, de expressão crítica e reflexiva, gerando com isso

possibilidades de superação das concepções técnicas de alfabetização por parte dos

alfabetizadores que reproduzem práticas que formam para o mercado de trabalho. Pois,

a alfabetização como reprodução do sistema capitalista não possibilita outra forma de

ensino senão a um ensino técnico que busca preparar o aluno para responder as

demandas de empresas.

Nessa perspectiva, identificamos que, com ideologia do capital impregnada na

estrutura da escola, a qual permeia as práticas dos alfabetizadores, contribui para que o

discurso, manipulado pelos capitalistas, seja sempre o dominante. Por fim, apontamos

que as faces ocultas da alfabetização se manifestam de forma a comprometer o processo

de alfabetização aos desejos do capital.

REFERÊNCIAS

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