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EXPRESSO, SÁBADO 25 DE FEVEREIRO 1989 A blasfémia de Rushdie e a luta de Khomeini A INTERPRETAÇÃO de que o "caso Rushdie" é um reflexo da luta interna pelo Poder entre fun- damentalista.s e moderados em Teerão, e não apenas uma mani- fe stação de fervor religioso (ver págs. 3-R a 11-R), foi pratica- mente confirmada quarta-feira pelo próprio ayatollah Khomeini, na mesma altura em que, pela te rceira vez, incitou ao assassínio do autor de Satanic Verses. "A República islâmica en- frenta uma noite escura", de- cl arou Khomeini, que acrescen- tou: "Enquanto eu aqui estiver, o deixarei que o Governo caia nas mãos dos liberais". O der iraniano seria ainda mais cl aro quanto à oportunidade do caso: "Esta controvérsia foi u ma dádiva de Deus." Na sequência da condenação geral pelo Ocidente do incita- mento ao assassínio do escritor britânico de origem indiana, como punição para a "blasfé- mia", o ayatollah Khomeini viria a afirmar que todo o caso só pro- vava que a política pragmática de aproximação entre o Irão e o resto do mundo era "ingénua" e que "estava condenada" - mais uma machadada na linha política dos moderados, ou "pragmáti- cos", defensores da abertura. Claramente, o líder religioso do Irão parece considerar que a si tuação presente não representa o isolamento do Irão, mas sim o do resto do mundo. Era o que de resto ilustrava um "cartoon" publicado esta semana num jor- nal britânico: Khomeini receben- do de um deferente emissário a confirmação de que "o resto do Mundo está isolado". Numa manifestação invulgar de acordo e solidariedade mútua, os 12 membros da CEE decidi- ram na passada segunda-feira, depois de ouvirem o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, sir Geoffrey Howe, "convocar para consultas" os respectivos diplomatas no Irão - e, assim, suspender efectivamente o pro- cesso de reaproximação com este país, que no caso da Grã-Bretan- ha começara em Novembro do ano passado. Na sequência dessa decisão, a Grã-Bretanha ordenaria a retira- da do encarregado de negócios iraniano em Londres, Akhunda- zeh Basti. A resposta iraniana abriu uma verdadeira "guerra diplomática": Teerão ordenou o regresso dos chefes das suas mis- sões diplomáticas em todas as capitais da CEE. Noruega, Suécia e Canadá seguiram também o exemplo da CEE; o Governo canadiano, con- tudo, suspendeu a importação do livro até ser determinado se ele incita ao ódio. Nos EUA, o Presi- dente George Bu sh condenaria o Irão e acrescentaria que se "os interesses americanos fossem postos em perigo" na sequência do caso o regime de Teerão seria "responsabilizado". Curiosamente, a União Sovié- tica não juntou a sua voz a este coro de reprovação. Para além disso, o ministro soviético dos Negócios Estrangeiros, Eduard Shevardnadze, inicia amanhã uma visita de dois dias ao Irão, durante a qual terá um encontro com Khomeini. Seta a caminho do alvo Salman Rushdie continua ain- da escondido e sob protecção da polícia britânica, rejeitada que foi pelo Irão uma cuidadosa nota de desculpas publicada através da sua editora. A ameaça parece efectiva- mehte não ter esmorecido. Na quarta-feira, o Presidente irania- no, Ali Khamenei, em visita ofi- cial à Jugoslávia, afirmou que "a seta da retribuição vai a cami- nho do seu alvo". Caso houvesse lugar para dúvidas, um membro da comitiva de Khameini esclareceu: "Vai direita ao cora- ção do bastardo blasfemo Rushdie-ele tem de ser morto! E o chefe espiritual do temido grupo libanês pró-iraniano Hez- bollah, o xeque Mohammed Fa- dlallah, defendeu na terça-feira a necessidade de "retaliação ur- gente" contra Rushdie e os edito- re s do livro. "0 Islão tem uma teoria própria sobre os Direitos Human,os que difere da do Oci- dente. E nosso direito afirmar- mos o nosso ponto de vista", declarou Fadlallah. Todavia, a "teoria" islâmica parece longe de reunir unanimi- dade entre xiitas e sunitas. Com efeito, o xeque Abdelaziz bin Abdallah bin Baz, a principal figura religiosa da Arábia Saudi- ta, terá decidido, após dias de deliberação em Meca com res- ponsáveis ,sunitas do Egipto, Paquistão, lndia, Marrocos e Jor- dânia, que Salman Rushdie devia ser julgado "in absentia" por um tribunal islâmico, por comporta- mento herético. Em Paris, diplomatas árabes mostraram-se convictos de que um tal julgamento não determi- naria uma punição concreta, mesmo que considerasse o livro blasfemo. Já a semana passada, as autori- dades religiosas da mesquita egípcia de AI Azhar, considerada a mais antiga e respeitada institui- ção sunita em termos de jurispru- dência, haviam afirmado não existir tradição no Islão de matar pessoas sem primeiro as julgar. Todavia, parece existir um precedente para este caso, que também envolve Khomeini. Na década de 40, o ayatollah conde- nou o historiador Ahmad Kasra- vi, que apelidara rituais xiitas de "superstições", acusando-o de ser um "elemento sujo" e defen- dendo a sua "erradicação da face da terra". Kasravi foi morto a tiro por radicais muçulmanos!t 1 _____________ ..._ ________ =•~~~=~---' L..-=1~' ..... ----Z::.--l em 1946. <,_ Maria Teresa Ribeiro Khomeiny confirmou a condenação à morte de Salman Rushdie, enquanto as manifestações em Londres contra o escritor "blasfemo" se multiplicam no Irão

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Page 1: EXPRESSO, SÁBADO 25 DE FEVEREIRO 1989 A blasfémia de ...hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/LivrosQueForamNoticia/Versiculos/I… · Rushdie-ele tem de ser morto! E o chefe espiritual

EXPRESSO, SÁBADO 25 DE FEVEREIRO 1989

A blasfémia de Rushdie e a luta de Khomeini A INTERPRETAÇÃO de que o "caso Rushdie" é um reflexo da luta interna pelo Poder entre fun­damentalista.s e moderados em Teerão, e não apenas uma mani­festação de fervor religioso (ver págs. 3-R a 11-R), foi pratica­mente confirmada quarta-feira pelo próprio ayatollah Khomeini, na mesma altura em que, pela terceira vez, incitou ao assassínio do autor de Satanic Verses.

"A República islâmica en­frenta uma noite escura", de­clarou Khomeini, que acrescen­tou: "Enquanto eu aqui estiver, não deixarei que o Governo caia nas mãos dos liberais". O líder iraniano seria ainda mais claro quanto à oportunidade do caso: "Esta controvérsia foi uma dádiva de Deus."

Na sequência da condenação geral pelo Ocidente do incita­mento ao assassínio do escritor britânico de origem indiana, como punição para a "blasfé­mia", o ayatollah Khomeini viria a afirmar que todo o caso só pro­vava que a política pragmática de aproximação entre o Irão e o resto do mundo era "ingénua" e que "estava condenada" - mais uma machadada na linha política dos moderados, ou "pragmáti­cos", defensores da abertura.

Claramente, o líder religioso do Irão parece considerar que a situação presente não representa o isolamento do Irão, mas sim o do resto do mundo. Era o que de resto ilustrava um "cartoon"

publicado esta semana num jor­nal britânico: Khomeini receben­do de um deferente emissário a confirmação de que "o resto do Mundo já está isolado".

Numa manifestação invulgar de acordo e solidariedade mútua, os 12 membros da CEE decidi­ram na passada segunda-feira, depois de ouvirem o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, sir Geoffrey Howe, "convocar para consultas" os respectivos diplomatas no Irão - e, assim, suspender efectivamente o pro­cesso de reaproximação com este país, que no caso da Grã-Bretan­ha começara em Novembro do ano passado.

Na sequência dessa decisão, a Grã-Bretanha ordenaria a retira­da do encarregado de negócios iraniano em Londres, Akhunda­zeh Basti. A resposta iraniana abriu uma verdadeira "guerra diplomática": Teerão ordenou o regresso dos chefes das suas mis­sões diplomáticas em todas as capitais da CEE.

Noruega, Suécia e Canadá seguiram também o exemplo da CEE; o Governo canadiano, con­tudo, suspendeu a importação do livro até ser determinado se ele incita ao ódio. Nos EUA, o Presi­dente George Bush condenaria o Irão e acrescentaria que se "os interesses americanos fossem postos em perigo" na sequência do caso o regime de Teerão seria "responsabilizado".

Curiosamente, a União Sovié-

tica não juntou a sua voz a este coro de reprovação. Para além disso, o ministro soviético dos Negócios Estrangeiros, Eduard Shevardnadze, inicia amanhã uma visita de dois dias ao Irão, durante a qual terá um encontro com Khomeini.

Seta a caminho do alvo

Salman Rushdie continua ain­da escondido e sob protecção da polícia britânica, rejeitada que foi pelo Irão uma cuidadosa nota de desculpas publicada através da sua editora.

A ameaça parece efectiva­mehte não ter esmorecido. Na quarta-feira, o Presidente irania­no, Ali Khamenei, em visita ofi­cial à Jugoslávia, afirmou que "a seta da retribuição vai a cami­nho do seu alvo". Caso houvesse lugar para dúvidas, um membro da comitiva de Khameini esclareceu: "Vai direita ao cora­ção do bastardo blasfemo Rushdie-ele tem de ser morto!

E o chefe espiritual do temido grupo libanês pró-iraniano Hez­bollah, o xeque Mohammed Fa­dlallah, defendeu na terça-feira a necessidade de "retaliação ur­gente" contra Rushdie e os edito­res do livro. "0 Islão tem uma teoria própria sobre os Direitos Human,os que difere da do Oci­dente. E nosso direito afirmar­mos o nosso ponto de vista", declarou Fadlallah.

Todavia, a "teoria" islâmica parece longe de reunir unanimi­dade entre xiitas e sunitas.

Com efeito, o xeque Abdelaziz bin Abdallah bin Baz, a principal figura religiosa da Arábia Saudi­ta, terá decidido, após dias de deliberação em Meca com res­ponsáveis ,sunitas do Egipto, Paquistão, lndia, Marrocos e Jor­dânia, que Salman Rushdie devia ser julgado "in absentia" por um tribunal islâmico, por comporta­mento herético.

Em Paris, diplomatas árabes mostraram-se convictos de que um tal julgamento não determi­naria uma punição concreta, mesmo que considerasse o livro blasfemo.

Já a semana passada, as autori­dades religiosas da mesquita egípcia de AI Azhar, considerada a mais antiga e respeitada institui­ção sunita em termos de jurispru­dência, haviam afirmado não existir tradição no Islão de matar pessoas sem primeiro as julgar.

Todavia, parece existir um precedente para este caso, que também envolve Khomeini . Na década de 40, o ayatollah conde­nou o historiador Ahmad Kasra­vi, que apelidara rituais xiitas de "superstições", acusando-o de ser um "elemento sujo" e defen­dendo a sua "erradicação da face da terra". Kasravi foi morto

a tiro por radicais muçulmanos!t 1 _____________ ..._ ________ =•~~~=~---'L..-=1~'.....----Z::.--l em 1946. <,_

Maria Teresa Ribeiro Khomeiny confirmou a condenação à morte de Salman Rushdie, enquanto as manifestações em Londres contra o escritor "blasfemo" se multiplicam no Irão