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Exposições Exposições O componente lúdico é essencial na rea- lização de exposições. Na ausência do lúdico, o jogo de emoções que as exposições em museus podem evocar não entra em mo- vimento, nãose realiza. Este jogo de emo- ções é acionado a partir da composição de elencos de objetos, imagens, testemunhos e documentos, de lembranças e de sensações. A identificação, seleção, e a apresentação de tais elencos mobiliza a imaginação e a criatividade na elaboração de exposições em museus e demais espaços de cultura. Requer o conhecimento de acervos, de coleções e de objetos que poderão compor um enre- do discursivo. O enredo dará sustentação às narrativas das exposições, sejam elas de caráter histórico, artístico, biográfico, téc- nico-científico, ficcional, entre outras pos- sibilidades. A intenção e o gesto, a ideia e a ação, alertam e preparam a mente, o corpo e o espírito, constituem o fazer da exposição e propõem espaços físicos e visuais para a visitação pública. A narrativa nas exposições é também com- plexa em sua estrutura pois estará sempre amparada em pesquisas, ideias, valores, in- terpretações e análises. E em muitas infor- mações. Informações de origem textual, oral e imagética, sensoriais, materiais e abstra- tas. O material expositivo disponível, aces- sível e selecionado é parte fundamental na concepção e na montagem de exposições. A Exposições, o fazer e o dizer TEXTO DE PROFESSOR DA UNESP DE ASSIS © Depositphotos tipologia dos acervos e das coleções ofere- ce, de antemão, o leque de oportunidades para a criação de enredos e de narrativas. A combinação, articulação, comparação e contrapontos conferem identidade e acabam por distinguir as exposições, as equipes ges- toras, técnicas e pedagógicas dos museus e as próprias instituições culturais. A comu- nicação simbólica e a experiência sensorial cutucam a mente, o corpo e o espírito, cons- tituem o dizer da exposição museológica e propõem espaços mentais e sensoriais para avisitação pública. Mário Chagas, além da política dos museus, costuma fazer menção à poética dos museus. A obra do poeta João Cabral de Melo Neto (1920-1999) nos possibilita refletir sobrea proposição daquele museólogo e professor. Partimos do livro Museu de tudo publicado em 1975. Os poemas ali reunidos definem-se por duas variáveis: de um lado, parecem es- capar à funcionalidade do rigor e do esforço da poética cabralina e, de outro, oferecem temática e variação lúdicas. Daí o título, museu, de tudo. Um livro sobre a liberdade poética e sobre a liberdade da linguagem poética do próprio autor. Um livro no qual pontuam a variedade e a casualidade, “sem risca ou risco”, no trabalho realizado. Um livro não sobre a realidade social objetiva mas sobre a linguagem poética. Ao tomar a própria linguagem como realidade, o poeta nos leva a pensar no trabalho que se realiza na linguagem dos museus e nas exposições. A obra de João Cabral de Melo Neto po- de nos auxiliar na orientação de tarefas e na concepção de exposições museológicas. A sua poesia distingue-se tanto pela dimen- são artística, propriamente dita, do seu fa- zer poético, quanto pela dimensão social, de abertura para a percepção do mundo, de rigor e de conhecimento, presentes no dizer do poeta. O fazer e o dizer de sua po- esia combinam-se, e de tal maneira, que o seu trabalho poético nos inspira em outro “aprendizado com a linguagem”, aquela dos museus, e estimula a experimentação e a criatividade em exposições museológicas. São os sentidos de educação e de aprendi- zado, de ensinamentos e de lições, técnico e existencial. Sentidos apreendidos pelo em- penho no exercício e no esforço, contínuos e sistemátcos, distintivos da obra do poeta pernambucano, que a tornam oportuna e de interesse para o trabalho em museus. Em essência, sugere o professor João Ale- xandre Barbosa, nosso guia no universo ca- bralino, o trabalho poético de João Cabral de Melo Neto consiste em árduo e persistente aprendizado de compreensão e de expressão por parte do poeta, daquele que faz e diz, que compõe e escreve versos e poemas. O domínio da linguagem poética requer, então, o desenvolvimento de habilidades técnicas no fazer e no dizer. Esta é a trilha que se abre na aquisição de habilidades para a concepção de exposições museológicas, a busca desta articulação no conhecimento, na comunica- ção e na experimentação direta com objetos, o simbólico e as sensações. A arte do ofício que, a partir do trabalho poético, se ilumi- na e realiza o trabalho das exposições, em particular, e o museológico, em geral. Uma educação pela pedra transmutada em uma educação pelos objetos. Uma museologia e uma expografia, cabra- linas, ambas, poderiam ser enunciadas aqui? E seriam elas atraentes, e viáveis? Entendo que práticas museológicas e a concepção de exposições inspiradas na obra poética de João Cabral são possíveis e passíveis de experimentação, de serem postas em práti- ca. Possibilidades e desafios que se fazem acompanhar, umas dos outros, em interação, seja complementar, seja em contraponto. Compõe-se aqui uma fecunda atividade de ENTENDO QUE PRÁTICAS MUSEOLÓGICAS E A CONCEPÇÃO DE EXPOSIÇÕES INSPIRADAS NA OBRA POÉTICA DE JOÃO CABRAL SÃO PASSÍVEIS DE EXPERIMENTAÇÃO, DE SEREM POSTAS EM PRÁTICA 24 25 PAULO HENRIQUE MARTINEZ UNESPCIÊNCIA | JULHO 2018 JULHO 2018 | UNESPCIÊNCIA

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ExposiçõesExposições

O componente lúdico é essencial na rea-lização de exposições. Na ausência do

lúdico, o jogo de emoções que as exposições em museus podem evocar não entra em mo-vimento, nãose realiza. Este jogo de emo-ções é acionado a partir da composição de elencos de objetos, imagens, testemunhos e documentos, de lembranças e de sensações. A identificação, seleção, e a apresentação de tais elencos mobiliza a imaginação e a criatividade na elaboração de exposições em museus e demais espaços de cultura. Requer o conhecimento de acervos, de coleções e de objetos que poderão compor um enre-do discursivo. O enredo dará sustentação às narrativas das exposições, sejam elas de

caráter histórico, artístico, biográfico, téc-nico-científico, ficcional, entre outras pos-sibilidades. A intenção e o gesto, a ideia e a ação, alertam e preparam a mente, o corpo e o espírito, constituem o fazer da exposição e propõem espaços físicos e visuais para a visitação pública.

A narrativa nas exposições é também com-plexa em sua estrutura pois estará sempre amparada em pesquisas, ideias, valores, in-terpretações e análises. E em muitas infor-mações. Informações de origem textual, oral e imagética, sensoriais, materiais e abstra-tas. O material expositivo disponível, aces-sível e selecionado é parte fundamental na concepção e na montagem de exposições. A

Exposições, o fazer e o dizerTEXTO DE PROFESSOR DA UNESP DE ASSIS

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tipologia dos acervos e das coleções ofere-ce, de antemão, o leque de oportunidades para a criação de enredos e de narrativas. A combinação, articulação, comparação e contrapontos conferem identidade e acabam por distinguir as exposições, as equipes ges-toras, técnicas e pedagógicas dos museus e as próprias instituições culturais. A comu-nicação simbólica e a experiência sensorial cutucam a mente, o corpo e o espírito, cons-tituem o dizer da exposição museológica e propõem espaços mentais e sensoriais para avisitação pública.

Mário Chagas, além da política dos museus, costuma fazer menção à poética dos museus. A obra do poeta João Cabral de Melo Neto (1920-1999) nos possibilita refletir sobrea proposição daquele museólogo e professor. Partimos do livro Museu de tudo publicado em 1975. Os poemas ali reunidos definem-se por duas variáveis: de um lado, parecem es-capar à funcionalidade do rigor e do esforço da poética cabralina e, de outro, oferecem temática e variação lúdicas. Daí o título, museu, de tudo. Um livro sobre a liberdade poética e sobre a liberdade da linguagem poética do próprio autor. Um livro no qual pontuam a variedade e a casualidade, “sem risca ou risco”, no trabalho realizado. Um livro não sobre a realidade social objetiva mas sobre a linguagem poética. Ao tomar a própria linguagem como realidade, o poeta nos leva a pensar no trabalho que se realiza na linguagem dos museus e nas exposições.

A obra de João Cabral de Melo Neto po-de nos auxiliar na orientação de tarefas e na concepção de exposições museológicas. A sua poesia distingue-se tanto pela dimen-são artística, propriamente dita, do seu fa-zer poético, quanto pela dimensão social, de abertura para a percepção do mundo, de rigor e de conhecimento, presentes no dizer do poeta. O fazer e o dizer de sua po-esia combinam-se, e de tal maneira, que o seu trabalho poético nos inspira em outro “aprendizado com a linguagem”, aquela dos museus, e estimula a experimentação e a

criatividade em exposições museológicas. São os sentidos de educação e de aprendi-zado, de ensinamentos e de lições, técnico e existencial. Sentidos apreendidos pelo em-penho no exercício e no esforço, contínuos e sistemátcos, distintivos da obra do poeta pernambucano, que a tornam oportuna e de interesse para o trabalho em museus.

Em essência, sugere o professor João Ale-xandre Barbosa, nosso guia no universo ca-bralino, o trabalho poético de João Cabral de Melo Neto consiste em árduo e persistente aprendizado de compreensão e de expressão por parte do poeta, daquele que faz e diz, que compõe e escreve versos e poemas. O domínio da linguagem poética requer, então, o desenvolvimento de habilidades técnicas no fazer e no dizer. Esta é a trilha que se abre na aquisição de habilidades para a concepção

de exposições museológicas, a busca desta articulação no conhecimento, na comunica-ção e na experimentação direta com objetos, o simbólico e as sensações. A arte do ofício que, a partir do trabalho poético, se ilumi-na e realiza o trabalho das exposições, em particular, e o museológico, em geral. Uma educação pela pedra transmutada em uma educação pelos objetos.

Uma museologia e uma expografia, cabra-linas, ambas, poderiam ser enunciadas aqui? E seriam elas atraentes, e viáveis? Entendo que práticas museológicas e a concepção de exposições inspiradas na obra poética de João Cabral são possíveis e passíveis de experimentação, de serem postas em práti-ca. Possibilidades e desafios que se fazem acompanhar, umas dos outros, em interação, seja complementar, seja em contraponto.Compõe-se aqui uma fecunda atividade de

ENTENDO QUE PRÁTICAS MUSEOLÓGICAS E A CONCEPÇÃO DE EXPOSIÇÕES INSPIRADAS NA OBRA POÉTICA DE JOÃO CABRAL SÃO PASSÍVEIS DE EXPERIMENTAÇÃO, DE SEREM POSTAS EM PRÁTICA

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PAULO HENRIQUE MARTINEZ

UNESPCIÊNCIA | JULHO 2018 JULHO 2018 | UNESPCIÊNCIA

Livro

DIEGO MOURA

geração, de aquisição e de comunicação de conhecimentos na realização de exposições em museus, de fora para dentro dos objetos. Opera-se uma interação dinâmica na per-cepção intelectual, na experiência sensorial eexistencial na visitação às exposições em museus, de dentro para fora dos objetos. E transita-se da realidade material e simbólica dos objetos para a realidade da linguagem museológica e, logo, desta para a realidade existencial dos profisionais e dos visitantes de museus.

Esta “operação cabralina” promove uma redução do real, concreto ou imaginário, tangível ou intangível, à linguagem, seja ela poética ou museológica. A extração desta re-alidade essencial e a sua expressão, no seio da própria linguagem, devolve ao leitor-vi-sitante o significado essencial – lembrança, informação, emoção, conhecimento, senti-do, indagação, inspiração, diversão – guar-dado nos objetos, uma vez que lhe permite extrai-lo, de dentro para fora, do objeto para o indivíduo, do museu para as instituições e grupos sociais – a escola e os estudantes, a excursão e os turistas, a cidade e os mo-radores etc. – da cultura para a sociedade, do espaço visual, interativo e circunscrito para o tempo histórico e da experiência do mundo. Ao poeta coube extrair a essência da palavra: da faca, da lâmina, o corte. Ao profissional e ao visitante de museu compete

extrair a essência do objeto, conhecendo-o, e dado a conhecer, na exposição.

O ensaísta Mikhail Bakhtin observou que a poesia não se reduz à elaboração da palavra e que sobre qualquer material pode haver poesia. Ao aceitar essa proposição do crítico russo, pensamos por analogia o trabalho com a linguagem museológica. A palavra poéti-ca compõe o verso tanto quanto o objeto no museu compõe a exposição. Em sociedades como a brasileira em que há escassez de fontes históricas escritas sobre a população pobre e oprimida, sobre povos indígenas e outros grupos sociais, como profissões que desapareceram e a infância, por exemplo, distintos testemunhos e registros da vida social podem ser mobilizados em exposições. A tradição oral, a memória coletiva, artefatos variados, temáticas, simbolismos, represen-tações, técnicas de criação nas artes e no trabalho, formas de pensamento, compõem conjuntos de oportunidades para a interação e a aprendizagem entre diferentes gerações que se realizam em museus e exposições.

O patrimônio e a herança cultural são sucessivamente reinventados e recriados pelas novas gerações em busca da expressão de sentidos, de sentimentos e de comporta-mentos individuais e coletivos. Significados metafóricos e simbólicos são confecciona-dos juntamente com os artefatos e a estéti-ca que lhes dão origem e conferem lugar na vida social. A construção de sentidos sociais que transitam entre o ambiente habitado, a tecnologia e a imaginação inventiva pode ser observada com nitidez em sociedades e culturas milenares e são inspiradoras para a melhor compreensão de traços da cultura ocidental. A exposição possibilita a passagem da compreensão dos fatos sociais, testemu-nhos e objetos exibidos em museus, para a compreensão de seus significados culturais, históricos e políticos. Exposições são expe-riências práticas, individuais e coletivas, de construção de conhecimentos, de reflexão crítica e de momentos lúdicos, de lazer, di-versão e entretenimento.

Exposições

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A o trazer a imagem de um Rio de Janei-ro conflagrado, em que as autoridades

perderam o controle sobre a segurança e têm de recorrer às Forças Armadas para inter-vir nas comunidades cariocas, seria bastante provável que o leitor pensasse no atual caos urbano que afeta a Cidade Maravilhosa. Não se trata disso, mas da viagem até 1904 con-duzida pelo historiador Nicolau Sevcenko e sua prosa inebriante, para demonstrar em A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes, lançamento da Editora Unesp, que alguns problemas de hoje têm raízes profundas.

“A Revolta da Vacina, ocorrida num momento decisivo de transformação da sociedade brasi-leira, nos fornece uma visão particularmente esclarecedora de alguns elementos estruturais que preponderaram em nosso passado recen-te – repercutindo até mesmo nos dias atuais”, escreve. “A constituição de uma sociedade predominantemente urbanizada e de forte teor burguês no início da fase republicana, resultado do enquadramento do Brasil nos termos da nova ordem econômica mundial, foi acompanhada de (...) um sacrifício cruciante dos grupos populares.”

Ao longo dos quatro capítulos do livro, o leitor é levado a entender essa passagem da história brasileira, em que o discurso oficial convergia para a saúde pública, mas o que se tramava nas entrelinhas era a ditadura urba-nística do então prefeito Pereira Passos e da

ditadura sanitária de Osvaldo Cruz, ambos empurrando os pobres para as franjas da cida-de, fenômeno de alto custo social e humano. “Optei por iniciar esta reflexão diretamente com uma descrição pormenorizada do cotidia-no da revolta, a agitação dos participantes e o fragor dos confrontos entre as partes envol-vidas” para “expor em seguida as causas mais profundas da insurreição e o seu significado particular no contexto de mudanças que en-volviam e metamorfoseavam a sociedade bra-sileira”. E, por último, “apreciar no episódio dramático dessa revolta algumas características fundamentais da estrutura social da Primeira República (1889-1930)”.

“Espero que não se estranhe o tom emo-tivo que eventualmente reponta em alguns momentos deste trabalho: ele é autêntico e intencional”, adverte o autor. “Nem eu sabe-ria tratar de outro modo a dor de seres hu-manos palpitantes, cheios de vida, angústias e esperanças.”

Este volume conta com posfácio do autor à edição de 2010 e fotos do alagoano Augusto Malta – fotógrafo oficial responsável por regis-trar a evolução da gigantesca reforma urbana do Rio de Janeiro proposta pelo prefeito Perei-ra Passos –, de Marc Ferrez e de periódicos. Sobre o autor – Nicolau Sevcenko (1952-2014) foi professor titular da Universidade de São Paulo e é autor de diversas obras nas áreas de História Moderna e Contemporânea.

A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes; Nicolau Sevcenko; 134 páginas; R$ 28,00

HISTORIADOR ELUCIDA OS PRINCIPAIS FATORES DO “ÚLTIMO MOTIM URBANO CLÁSSICO DO RIO DEJANEIRO” E TRATA DOS CUSTOS SOCIAIS DA “DITADURA SANITÁRIA” DE OSWALDO CRUZ

Nicolau Sevcenko volta ao Rio de Janeiro de 1904 durante a Revolta da Vacina

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“Praça da Universidade de Viena” por Bernardo Bellotto

Paulo Henrique Martinez, professor no Departamento de História, Unesp/Assis