exploração normal, resistência normal

Upload: rafael-rocha

Post on 02-Apr-2018

262 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    1/28

    Revista Brasileira de Cincia Poltica, n 5. Braslia, janeiro-julho de 2011, pp. 217-243.

    James C. Scott

    Explorao normal, resistncia normal

    Quase invariavelmente destinadas derrota e a um possvel massacre, as grandes

    insurreies foram em geral demasiado desorganizadas para alcanar qualquer resul-

    tado duradouro. As pacientes e silenciosas lutas resolutamente levadas a cabo pelas

    comunidades rurais ao longo dos anos produziriam mais do que esses fogos de palha.

    Marc Bloch, French rural history

    Como escreveu certa vez o editor de Field and garden, para as pessoas comuns os gran-

    des homens so sempre impopulares. As massas no os entendem, pensam que todas

    aquelas coisas so desnecessrias, at mesmo o herosmo. O homem pequeno no d

    a mnima para uma grande era. Tudo o que ele quer vez por outra frequentar um

    bar e comergoulash no jantar. Naturalmente, um estadista se irrita com vagabundos

    como esses, quando sua tarefa levar seu povo a fazer parte dos livros de histria,

    pobre coitado. Para um grande homem as pessoas comuns so um fardo pesado.

    como oferecer a Baloun, com seu grande apetite, uma pequena salsicha hngara parao jantar, que bem isso pode fazer! Eu nem quero escutar quando os mandachuvas se

    reunirem e comearem a se queixar de ns.

    Schweyk, in Bertold Brecht, Schweyk in the second world war, cena 1

    A histria no escrita de resistncia

    A ideia para este estudo, bem como suas preocupaes e mtodos,originou-se de uma crescente insatisfao com grande parte dos trabalhos

    recentes tanto os meus como os de outros sobre o tema das rebelies

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    2/28

    218 JamesC.Scott

    e revolues camponesas.1 notrio que a desordenada ateno em largaescala que foi dada insurreio camponesa, pelo menos na Amrica doNorte, foi estimulada pela guerra do Vietn e por algo como um envolvimen-

    to amoroso acadmico de esquerda com as guerras de liberao nacional.Neste caso, o interesse e a fonte material se reforavam mutuamente, poisos registros histricos e arquivsticos eram mais ricos precisamente naque-les momentos em que o campesinato representou uma ameaa ao Estadoe ordem internacional existente. Em outros momentos, o que signica amaior parte do tempo, os camponeses apareceram nos registros histricosno tanto como atores histricos, mas como contribuintes mais ou menosannimos s estatsticas sobre recrutamento militar, impostos, migrao de

    mo-de-obra, propriedade da terra, e produo agrcola.O fato que, apesar de toda a sua importncia quando efetivamente ocor-

    rem, as rebelies camponesas, para no falar de revolues camponesas, sopoucas e temporalmente muito espaadas. No apenas so comparativamenteraras as circunstncias que favorecem levantes camponeses de larga escala,como, quando estes efetivamente ocorrem, as revoltas que eles desenvolvemso quase sempre esmagadas sem a menor cerimnia. Na verdade, mesmouma revolta fracassada pode conquistar alguma coisa: algumas concessespor parte do Estado ou dos latifundirios, uma breve suspenso de novas epenosas relaes de produo2 e, no menos importante, uma lembrana deresistncia e coragem que pode car guardada para o futuro. Tais ganhos,entretanto, so incertos, ao passo que o massacre, a represso e a desmora-lizao da derrota so bastante certos e reais. Merece ser lembrado tambmque, mesmo naqueles momentos histricos extraordinrios em que umarevoluo apoiada por camponeses de fato alcana a tomada do poder, os

    resultados so algo que, na melhor das hipteses, envolve um misto de as-pectos favorveis e desfavorveis para o campesinato. Seja o que mais for quea revoluo possa conseguir, ela quase sempre cria um aparelho estatal maiscoercitivo e hegemnico que muitas vezes se benecia da explorao dapopulao rural como nenhum outro anteriormente. Muito frequentemente,

    1 DooriginalNormalexploitation,normalresistance,publicadocomoosegundocaptulodolivroWeapons of the weak:everydayormsopeasantresistance(NewHaven:YaleUniversityPress,1985).DireitosautoraisconcedidospelaYaleRepresentationLtd.TraduzidoporAndrVillalobos.

    Ver,porexemplo,MooreJr.(1966),Paige(1975),Wol(1969,1976),Popkin(1979).2 Paraum exemplodetaisganhos temporrios,veroexcelenteestudo deHobsbawme Rud(1968,p.281-299).

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    3/28

    219Exploraonormal,resistncianormal

    o campesinato se encontra na irnica posio de haver ajudado a fortalecerum grupo dirigente cujos planos relacionados industrializao, polticatributria e coletivizao esto em conito com os objetivos pelos quais

    os camponeses imaginavam estar lutando.3Por todas essas razes, ocorreu-me que a nfase sobre rebelio camponesa

    estava mal posta. Ao invs disso, pareceu-me muito mais importante aquiloque poderamos chamar de formas cotidianas de resistncia camponesa aprosaica, mas constante, luta entre o campesinato e aqueles que procuramextrair-lhe trabalho, alimentos, impostos, rendas e juros. A maioria dasformas assumidas por essa luta no chegam a ser exatamente a de umaconfrontao coletiva. Tenho em mente, neste caso, as armas ordinrias dos

    grupos relativamente desprovidos de poder: relutncia, dissimulao, falsasubmisso, pequenos furtos, simulao de ignorncia, difamao, provocaode incndios, sabotagem, e assim por diante. Essas formas Brechtianas deluta de classe tm certas caractersticas em comum. Elas exigem pouca ounenhuma coordenao; representam uma forma de autoajuda individual; etipicamente evitam qualquer confrontao simblica com a autoridade ou asnormas da elite. Entender essas formas corriqueiras de resistncia entendero que grande parte do campesinato faz entre revoltas para defender seusinteresses da melhor forma que conseguem faz-lo.

    Seria um grave equvoco, como o no caso das rebelies camponesas,romantizar abertamente as armas dos fracos. improvvel que elas faammais do que afetar marginalmente as vrias formas de explorao com queos camponeses se defrontam. Alm disso, o campesinato no possui o mono-plio sobre essas armas, como pode facilmente atestar qualquer pessoa quetenha observado autoridades e proprietrios de terras resistindo e impedindo

    a continuidade de polticas estatais que lhes sejam desvantajosas.Por outro lado, esses modos brechtianos de resistncia no so triviais.A desero e a fuga conscrio e corveia indubitavelmente limitaramas aspiraes imperiais de muitos monarcas no Sudeste da sia4 ou, a esserespeito, na Europa. Esse processo e seu potencial impacto no so mais bemcaptados em qualquer outro texto do que no relato de R. C. Cobb sobre aresistncia e a desero ao recrutamento militar na Frana ps-revolucionriae durante o comeo do Imprio:

    3 AlgumasdessasquestessoexaminadasemScott(1979).4 VerosexcelentesrelatoseanlisesdeAdas(1981).

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    4/28

    220 JamesC.Scott

    Do ano V ao ano VII, h cada vez mais relatos provenientes de uma variedade de

    Departamentos (...) de todos os conscritos de um dado canto terem voltado para

    casa, estando a vivendo sem serem molestados. Melhor ainda, muitos deles no

    voltaram para casa, pois nem chegaram a deix-la (...). Tambm no ano VII, os de-dos decepados das mos direitas a forma mais comum de mutilao comeam a

    testemunhar estatisticamente a fora do que pode ser descrito como um vasto mo-

    vimento de cumplicidade coletiva, envolvendo a famlia, a parquia, as autoridades

    locais, cantes inteiros.

    Nem mesmo o Imprio, com uma polcia rural vastamente mais numerosa e con-

    vel, conseguiu, a no ser temporariamente, diminuir a velocidade da hemorragia

    que (...), a partir de 1812, novamente atingiu propores catastrcas. No poderia

    ter havido um referendum mais eloquente sobre a universal impopularidade de um

    regime opressivo; e no h um espetculo mais encorajador para um historiador do

    que um povo que decidiu no mais lutar e que volta a casa sem espalhafato. (...) As

    pessoas comuns, pelo menos neste aspecto, tiveram clara participao na derrubada

    do mais pavoroso regime da Frana. (COBB, 1970, p. 96-97)5

    O colapso do exrcito e da economia dos Confederados no curso daGuerra Civil nos Estados Unidos outro exemplo do papel decisivo das de-

    feces silenciosas e no declaradas. Estima-se que, ao todo, quase 250.000brancos em condies de servir ao exrcito desertaram ou escaparam conscrio.6 Como era de esperar, as razes parecem ter sido tanto moraiscomo materiais. Os brancos pobres, especialmente os das terras de pastoreiono possuidores de escravos, ressentiam-se de lutar por uma instituio cujosprincipais benecirios eram muitas vezes legalmente excludos do serviomilitar.7 Revezes militares e aquela que foi chamada a crise de subsistn-cia de 1862 induziram muitos a desertar e retornar para suas famlias emdiculdades. Nas prprias fazendas, a insucincia de feitores brancos e a

    5 Paraumpenetranterelatodaautomutilaoparaevitaraconscrio,verZola(1980).6 VeroexcelenteestudodeArmsteadL.Robinson,Bitter fuits of bondage(asair,caps.5e6).[Scottindicao

    livrocomotendopublicaoprximaporYaleUniversityPress.Noentanto,omanuscritosoreucontnuasrevisesesveioaserpublicado,postumamente,em2005,porUniversityoVirginiaPress.N.E.]

    7 Essaquestocentrava-senamuitoressentidalei,conhecidacomoaLeidosVinteNegros[Twenty-Nigger Law],queestipulavaqueumbrancoemidadedeserviroexrcitopodiaserliberadodoserviomilitarcasoossenecessrioparasupervisionarvinteoumaisescravos.Essalei,conjugadacomacontrataodesubstitutospelasamliasricas,estimulouadiundidaconvicodequeessa

    eraumaguerradehomensricos,masumalutadehomenspobres(ROBINSON,cap.5).

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    5/28

    221Exploraonormal,resistncianormal

    natural anidade dos escravos com os objetivos do Norte deram ensejo falta de empenho no trabalho e a fugas em escala massiva. Como na Frana,aqui tambm seria possvel dizer que a Confederao foi liquidada por uma

    avalanche social de pequenos atos de insubordinao levados a efeito poruma improvvel coalizo de escravos e pequenos proprietrios rurais umacoalizo sem nome, sem organizao, sem liderana e, certamente, sem umaconspirao leninista por trs.

    De modo similar, a sonegao e a evaso scal classicamente limitarama ambio e o alcance dos Estados do Terceiro Mundo seja o pr-colonial,o colonial, ou o independente. Como veremos, a coleta ocial do dzimoislmico em arroz, em Sedaka, por exemplo, apenas uma pequena frao do

    que legalmente devido, graas a uma rede de cumplicidade e de embustesque mutila seu impacto. No de admirar que uma grande parte das receitasde impostos dos Estados do Terceiro Mundo seja coletada sob a forma detributos sobre importaes e exportaes; esse padro se deve em grandemedida capacidade de resistncia de seus sditos ou cidados. At mesmouma leitura casual da literatura sobre desenvolvimento rural propicia umarica colheita de esquemas e programas governamentais impopulares levados extino pela resistncia passiva do campesinato. O autor de um raro relatodetalhando como os camponeses neste caso, na frica oriental conse-guiram, ao longo de dcadas, desfazer ou evadir polticas governamentaisque os ameaavam, conclui no seguinte tom:

    Nesta situao, entende-se que a equao do desenvolvimento seja frequentemente

    reduzida a um jogo de soma zero. Como mostrou este estudo, os vencedores desses

    jogos no so sempre, de modo algum, os dirigentes. O campons africano di-

    cilmente um heri, na perspectiva do pensamento corrente sobre desenvolvimento,

    mas ele frequentemente derrotou as autoridades por meio do uso de suas habilidades

    para enganar. (HYDEN, 1980, p. 231)

    Em algumas ocasies, essa resistncia tornou-se ativa, mesmo violenta.Mais frequentemente, contudo, ela assume a forma do descumprimento pas-sivo, da sutil sabotagem, da evaso e do engano. Os persistentes esforos dogoverno colonial em Malaia [Malsia Ocidental], no sentido de desencorajaro campesinato de produzir e vender borracha para no competir com as

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    6/28

    222 JamesC.Scott

    grandes plantaes em termos de terras e mercados, constituem um exemplodisso.8 Vrios esquemas restritivos e leis sobre o uso da terra foram tentadosde 1922 a 1928, e novamente nos anos 1930, com resultados apenas modes-

    tos em virtude da resistncia camponesa. Os esforos dos camponeses, emautointitulados Estados socialistas, no sentido de impedir e, depois, mitigarou mesmo eliminar formas impopulares de agricultura coletiva representamum notvel exemplo das tcnicas defensivas disponveis para um campesinatoassediado. De novo, a luta marcada menos por confrontaes massivas edesaadoras do que por uma evaso silenciosa que igualmente massiva efrequentemente muito mais efetiva.9

    O estilo de resistncia em questo talvez seja mais bem descrito por

    meio de pares de formas contrastantes de resistncia, cada qual dirigido aaproximadamente o mesmo objetivo. O primeiro elemento de cada par aresistncia cotidiana, em nossa acepo do termo; o segundo representa odesao aberto dominante no estudo da poltica do campesinato e da classetrabalhadora. Em uma esfera encontra-se, por exemplo, o processo silenciosoe gradativo atravs do qual intrusos camponeses muitas vezes penetraram ese estabeleceram em terras de grandes propriedades rurais e terras de orestade propriedade estatal. Em outra, uma notria invaso de terras contestan-do abertamente as relaes de propriedade. Em termos de ocupao e usoefetivos, esse tipo de penetrao pode realizar mais do que uma invasoabertamente desaadora, embora a distribuio de jure da propriedade daterra no seja nunca publicamente contestada. Passando a outro exemplo,em uma esfera encontram-se as deseres militares que incapacitam umexrcito e, em outra, um motim aberto destinado a eliminar ou substituirociais. Como assinalamos, onde os motins podem fracassar, as deseres

    podem alcanar alguma coisa precisamente porque visam antes a autoajudae o afastamento do que a confrontao institucional. E, ademais, furtar-se aquiescncia em certo sentido mais radical, em suas implicaes parao exrcito como instituio, do que a substituio dos ociais. Um ltimo

    8 OmelhoremaiscompletobalanosobreoassuntopodeserencontradoemGhee(1977).VertambmumaargumentaopersuasivaemNonini,DienereRobkin(1979).

    9 Paraumcuidadosoeascinanterelatosobreasmaneiraspelasquais,naChina,asequipesebrigadasdeproduopuderam,at1978,teralgumainuncianadefniodoexcedentedecereaisque

    tinhade servendidoao Estado,verOi (1983).Praticamentetodaessaresistnciaerachamadadeoposiobrandapelosqueapraticavam,osquaisdeixavamclaroqueelaserabemsucedidasesemantivesseumamaniestaoaparentedeaquiescncia(OI,1983,p.238).

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    7/28

    223Exploraonormal,resistncianormal

    exemplo: em uma esfera est o furto em depsitos pblicos ou privados decereais; na outra, o ataque ostensivo a mercados e armazns objetivandouma aberta redistribuio do estoque de alimentos.

    O que as formas cotidianas de resistncia compartilham com as confron-taes pblicas mais dramticas , naturalmente, o fato de serem voltadas amitigar ou rejeitar demandas feitas pelas classes superiores ou a levar adiantereivindicaes com relao a tais classes. Essas demandas e reivindicaes tmnormalmente a ver com o nexo material da luta de classes a apropriaoda terra, do trabalho, dos impostos, das rendas, e assim por diante. Onde aresistncia cotidiana se distingue mais evidentemente de outras formas deresistncia em sua implcita negao de objetivos pblicos e simblicos.

    Enquanto a poltica institucionalizada formal, ostensiva, preocupada com amudana sistemtica e de jure, a resistncia cotidiana informal, muitas vezesdissimulada, e em grande medida preocupada com ganhos de facto imediatos.10

    razoavelmente claro que, frequentemente, o sucesso da resistncia defacto diretamente proporcional conformidade simblica com que dis-simulada. A insubordinao ostensiva provocar, em praticamente qualquercontexto, uma resposta mais rpida e feroz do que uma insubordinao quepode ser to penetrante, mas nunca se aventure a contestar as deniesformais de hierarquia e poder. Para a maioria das classes subalternas que,de fato, tiveram historicamente escassas possibilidades de melhorar seustatus, essa forma de resistncia foi a nica opo. O que pode ser realizadono interiordessa camisa de fora simblica , no obstante, at certo ponto,um testemunho da persistncia e inventividade humana, como ilustra esterelato sobre a resistncia das castas inferiores na ndia:

    Empregados presos a um vnculo vitalcio de trabalho [lifelong indentured servants]

    caracteristicamente expressavam descontentamento quanto a sua relao com seus pa-

    tres atravs do desempenho descuidado e ineciente de seu trabalho. Intencional ou

    10 Haquiuminteressanteparalelocomparteda literaturaeministasobreasociedadecamponesa.Emmuitas,emboranotodas,sociedadescamponesas,oshomensprovavelmentedominamtodoexerccioormaleostensivodopoder.Ocasionalmenteseafrmaqueasmulherespodemexercerconsidervelpodernamedidaemquenodesafemabertamenteomitoormaldadominnciamasculina.Emoutraspalavras,ganhosreaissopossveiscontantoqueaordemsimblicamaisamplanosejapostaemquesto.Demodobastantesemelhante,pode-sesustentarqueocampesinato

    muitasvezesachataticamenteconveniente,bemcomonecessrio,deixarintactaaordemormalenquantodirigesuaatenoaobjetivospolticosquepodemnoternuncaumreconhecimentoormal.Paraumaargumentaoeministadeteorsemelhante,verRogers(1975).

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    8/28

    224 JamesC.Scott

    inconscientemente, eles podiam ngir doena, ignorncia ou incompetncia, criando

    transtornos para os patres. Muito embora o patro pudesse retaliar, recusando-se a

    conceder benefcios adicionais ao empregado, ele continuava obrigado a mant-lo em

    um nvel de subsistncia para no perder inteiramente seu investimento. Desde queno se expressasse como uma contestao ostensiva, esse mtodo de resistncia passiva

    era quase imbatvel; ele reforava o esteretipo dos Havics a respeitodo carter das

    pessoas de casta inferior, mas lhes dava pouco recurso para agir. (HARPER, 1968,

    p. 48-49; nfases minhas)

    Tais formas de resistncia pertinaz esto especialmente bem documen-tadas na vasta literatura sobre a escravido nos Estados Unidos, onde a

    contestao ostensiva era normalmente temerria. A histria da resistncia escravido no Sul de antes da Guerra Civil , em grande medida, uma histriade corpo mole, falsa aquiescncia, fuga, ngimento de ignorncia, sabota-gem, roubo e, no menos importante, resistncia cultural. Essas prticasraramente ou nunca puseram em questo o sistema escravocrata enquantotal, no obstante conseguiram muito mais com seu modo no declarado,limitado e sem truculncias, do que os poucos heroicos e breves levantesarmados sobre os quais muito se escreveu. Os prprios escravos parecem ter

    compreendido que, na maioria das circunstncias, sua resistncia s poderiaser bem-sucedida na medida em que se ocultasse atrs da mscara da sub-misso. possvel imaginar os pais dando aos lhos conselhos no muitodiferentes daqueles que, aparentemente, ouvem de seus pais os trabalhadoresassalariados contemporneos das fazendas da Indonsia:

    Eu digo a eles [aos jovens]: lembrem-se, vocs esto vendendo seu trabalho e quem

    o compra quer verque ele lhe renda alguma coisa; portanto, trabalhem quando ele

    estiver por perto, vocs podem relaxar depois, quando ele for embora; mas certi-quem-se de sempreparecerestar trabalhando quando os inspetores l estiverem.

    (STOLER, 1985, p. 184)

    Duas observaes especcas surgem desta perspectiva. A primeira ade que a natureza da resistncia grandemente inuenciada pelas formasexistentes de controle do trabalho e pelas crenas a respeito da probabilida-de e severidade da retaliao. Onde as consequncias de uma greve aberta

    forem provavelmente catastrcas em termos de demisso ou priso, afora de trabalho pode recorrer a uma operao tartaruga [slowdown] ou a

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    9/28

    225Exploraonormal,resistncianormal

    um desempenho de baixa qualidade no emprego. A natureza dessas aes,muitas vezes no declaradas e annimas, torna particularmente difcil aoantagonista avaliar a culpa e aplicar sanes. Na indstria, a operao tarta-

    ruga veio a ser chamada de greve italiana e que utilizada particularmentequando se teme represso, como na Polnia sob lei marcial, em 1983.11Naturalmente, o pagamento por pea produzida foi muitas vezes usadocomo um meio de frustrar formas de resistncia acessveis aos trabalhadorespagos por hora ou dia de trabalho. Onde prevalece o pagamento por pea,como ocorreu com as tecelagens de seda ou algodo na Alemanha do sculoXIX, provvel que a resistncia encontre expresso no nas operaestartaruga, o que seria contra os prprios interesses dos trabalhadores, mas

    em formas tais como diminuio do peso do tecido acabado, acabamentoimperfeito, e furto de materiais (LINEBAUGH, 1976, p. 10)12 Cada formade controle ou pagamento do trabalho provavelmente gera, mantidas asdemais circunstncias, suas prprias formas caractersticas de resistnciasilenciosa e contra-apropriao.

    A segunda observao a de que a resistncia no dirigida necessaria-mente fonte imediata de apropriao. Na medida em que o objetivo dosresistentes tipicamente satisfazer necessidades prementes como seguranafsica, alimento, terra, ou renda, e faz-lo em relativa segurana, eles po-dem simplesmente seguir a linha de menor resistncia. Os camponeses eproletrios prussianos na dcada de 1830, pressionados por suas acanhadaspropriedades e salrios abaixo do nvel de subsistncia, responderam pelaemigrao e pela invaso furtiva de propriedade alheia [poaching] em buscade madeira, forragem e caa em larga escala. O ritmo do crime orestalaumentava medida que os salrios declinavam, as provises encareciam, e

    onde a emigrao era mais difcil; em 1836, houve a instaurao de 207.000protestos na Prssia, 150.000 dos quais por crimes orestais (LINEBAU-GH, 1976, p. 13).13 Os invasores eram apoiados por um nimo popular de

    11 Ver,porexemplo,oNew York Timesde18deagostode1983,p.A6,Polishundergroundbackscallorslowdown,noqualobservadoqueatticadeumaoperaotartaruga,conhecidanaPolniacomoumagreveitaliana,oiusadanopassadopelostrabalhadoresporqueelareduzoriscoderepreslia.

    12 Vertambma brilhanteanlisedotrabalhador-poetahngaro,Haraszti (1978),sobreo trabalhopagoporpea.

    13 EmBaden,em1842,houveumacondenaoporcrimesdessetipoparacadaquatrohabitantes.

    Durantetrssculos,asinvasesurtivasdepropriedadealheia[poaching]oramocrimemaiscomumnaInglaterra,econstituramamatriadegrandepartedalegislaorepressiva.Ver,porexemplo,asseleeseitasporHayeThompson(1975).

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    10/28

    226 JamesC.Scott

    cumplicidade originado por uma tradio anterior de livre acesso oresta,mas eles agora pouco se importavam se os coelhos ou a madeira de que seapropriavam provinham da terra de seu empregador ou senhorio. Assim, a

    reao a uma apropriao em uma esfera pode conduzir suas vtimas a ex-plorar pequenas aberturas, disponveis alhures, que se sejam mais acessveise menos perigosas.14

    Tais tcnicas de resistncia so bem adaptadas s caractersticas particula-res do campesinato. Sendo uma classe diversicada e de baixo teor classistapropriamente dito [low classness], espalhada pelo campo, frequentementecarente da disciplina e liderana que poderia estimular uma oposio detipo mais organizado, o campesinato se ana melhor com extensas campa-

    nhas de desgaste no estilo de guerrilha, que requerem pouca ou nenhumacoordenao. Suas aes individuais de reduo do ritmo de atividade oude evaso so muitas vezes reforadas por uma venervel cultura popular deresistncia. Vistas luz de uma subcultura que as apoia e do conhecimen-to de que o risco para qualquer resistente singular geralmente reduzidona medida em que toda a comunidade esteja envolvida, plausvel que asconsideremos um movimento social. Curiosamente, no entanto, trata-sede um movimento social sem organizao formal, sem lderes formais, semmanifestos, sem obrigaes, sem nome e sem bandeira. Em virtude de suainvisibilidade institucional, as atividades que no cheguem a se caracterizarpor uma escala massiva, caso sejam notadas, raramente so consideradassocialmente signicativas.

    Multiplicados por muitos milhares de vezes, tais pequenos atos de resistn-cia dos camponeses podem, no nal das contas, desorganizar completamenteas polticas sonhadas por seus supostos superiores na capital. O Estado pode

    responder de diversas maneiras. As polticas podem ser remodeladas segundoexpectativas mais realistas. Podem ser mantidas, mas reforadas por incentivospositivos voltados a estimular a aquiescncia e conformidade voluntrias. E,naturalmente, o Estado pode simplesmente optar por empregar mais coero.Qualquer que seja a resposta, precisamos no perder de vista o fato de quea ao do campesinato transformou ou estreitou, desse modo, as opes de

    14 Aparentemente,o roubode madeira naAlemanhanesseperodoraramenteatingiuas orestascomunais.Nemprecisodizerque,quandoumpobresobreviveapropriando-sedepertencesde

    outrosnamesmasituao,nosepodealarderesistncia.Umaquestocentralarespeitodequalquerclassesubordinadaamedidaemqueelapode,pormeiodesanesinternas,evitaracompetioantropogicaentreseusmembros,aqualspodeserviraosinteressesdasclassesapropriadoras.

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    11/28

    227Exploraonormal,resistncianormal

    poltica disponveis para o Estado. dessa maneira, e no atravs de revoltas,para no falar de presso poltica legal, que o campesinato classicamente fezsentir a sua presena poltica. Assim, qualquer histria ou teoria da poltica

    camponesa que procure fazer justia ao campesinato como ator histrico pre-cisa necessariamente lidar com o que chameiformas cotidianas de resistncia.Por essa razo importante tanto documentar como trazer alguma ordemconceitual a essa aparente confuso de atividade humana.

    Formas cotidianas de resistncia no proporcionam manchetes jornals-ticas.15 Da mesma forma que milhes de polipoides antozorios criam, semplanejamento e organizao [willy-nilly], um recife de coral, assim tambmmilhares e milhares de atos individuais de insubordinao e evaso criam sua

    prpria barreira de recife econmica ou poltica. Raramente h uma confron-tao dramtica, qualquer momento particularmente digno de virar notcia. Esempre que, para prosseguir com a analogia, o navio do Estado encalha nessabarreira de recife, a ateno dirigida tipicamente para o acidente em si e nopara o vasto agregado de pequenos atos que o tornaram possvel. S raramen-te os perpetradores desses pequenos atos buscam chamar a ateno sobre simesmos. Sua segurana repousa no anonimato. Tambm extremamente raroque as autoridades estatais queiram dar publicidade insubordinao. Faz-loseria admitir que sua poltica impopular e, sobretudo, expor a debilidade desua autoridade no campo e nenhuma das duas coisas do interesse do Estadosoberano.16 A natureza dos atos em si e o mutismo dos antagonistas conspira,desse modo, para criar uma espcie de silncio de cumplicidade que faz comque as formas cotidianas de resistncia no apaream nos registros histricos.

    A histria e a cincia social, por serem escritas por uma intelectualidadeque se utiliza de registros escritos, tambmcriados em grande medida por

    autoridades letradas, simplesmente no esto bem equipadas para revelar as15 ComoassinalamHobsbawmeRud(1968),nooramapenasaselitesconservadorasquenegligen-

    ciaramessaormaderesistncia,mastambmaesquerdaurbana:Oshistoriadoresdosmovimentossociaisparecemterreagidodeormamuitosemelhantedorestodaesquerdaurbanaqualamaioriadelestradicionalmentepertenceu,isto,tenderamanotomarconscinciadelaamenosqueaparecesseemumaormasufcientementedramticaouemescalasufcientementegrandeparasernotadapelosjornaiscitadinos.

    16 Masno inteiramente.provvelqueregistrosdistritaissemostremgratifcantesaesserespeito,quandoasautoridadesdistritaistentamexplicaraseussuperioresnacapitaloatodenoteremsidoatingidososobjetivos,digamos,nacoletadeimpostosounosnmerosreerentesaorecrutamento

    militar.Imagina-setambmquesejamabundantesosregistrosinormaiseorais,como,porexemplo,nasreuniesinormaisdosgabinetesouministriosconvocadasparalidarcominsucessosdepolticascausadosporinsubordinaorural.

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    12/28

    228 JamesC.Scott

    formas silenciosas e annimas de luta de classe que tipicam o campesinato.17Seus praticantes aderem implicitamente conspirao dos participantes queatuam, eles prprios, como se houvessem jurado manter segredo. Coletiva-

    mente, esse improvvel conluio contribui para um esteretipo, conservadotanto na literatura como na histria, do campesinato como uma classe quese alterna entre longos perodos de abjeta passividade e breves, violentos efteis exploses de fria.

    Ele tinha atrs de si sculos de medo e submisso, seus ombros haviam se tornado

    insensveis aos golpes, sua alma to oprimida que ele no reconhecia sua prpria

    degradao. Voc poderia espanc-lo, deix-lo mingua, despoj-lo de tudo, ano

    aps ano, antes que ele viesse a abandonar sua cautela e estupidez, com sua mentecheia toda sorte de ideias confusas que ele no conseguia entender direito; e isso

    continuou at que um pice de injustia e sofrimento arremessou-o garganta de

    seu senhor como um animal domstico enfurecido que houvesse sido submetido a

    muitos atos de crueldade. (ZOLA, 1980, p. 91)

    H um gro de verdade na viso de Zola, mas apenas um gro. verdadeque o comportamento em cena dos camponeses durante tempos de tran-

    quilidade oferece uma imagem de submisso, medo e cautela. Por contraste,as insurreies camponesas parecem reaes viscerais de uma fria cega. Oque falta na descrio dessa passividade normal a lenta, desgastante esilenciosa luta sobre rendas, colheitas, trabalho e impostos, na qual submissoe estupidez muitas vezes no so mais que uma pose uma ttica necessria.O que falta nesse quadro das exploses peridicas a viso subjacente de

    justia que os informa e seus objetivos e alvos especcos, que frequentementeso de fato bastante racionais.18 As prprias exploses so muitas vezes um

    sinal de que as formas normais e em grande medida encobertas de luta declasses esto malogrando ou atingiram um momento de crise. Tais declara-es de guerra aberta, com seus riscos mortais, normalmente s ocorremdepois de uma luta prolongada em um terreno diferente.

    17 Asexceesparciaisquevmmentesoaantropologia,porsuainsistncianaobservaodiretanocampo,eahistriadaescravidoedacoletivizaosovitica.

    18 Noquero,demodoalgum,sugerirqueaviolnciadecorrentedevingana,dioerianotenha

    papelalgumapenasquenoexaurecompletamenteoassunto,comosugeremZolaeoutros.certamenteverdadeiro,comoafrmaCobb(1970,p.89-90),queRud(1964)oilongedemaisaotransormarrevoltososematorespolticossbrios,domesticados,burgueses.

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    13/28

    229Exploraonormal,resistncianormal

    Resistncia como pensamento e smbolo

    At aqui, tratei as formas cotidianas de resistncia camponesa como se elasno fossem muito mais do que uma coleo de aes ou comportamentos

    individuais. Connar a anlise ao comportamento apenas , contudo, deixarescapar grande parte do assunto. Isso reduz a explicao da ao humana aonvel que poderia ser usado para explicar como o bfalo domesticado dasregies pantanosas resiste ao seu condutor para estabelecer um ritmo de tra-balho tolervel ou porque o cachorro rouba restos de comida da mesa. Mas,como estou procurando entender a resistncia de seres sociais pensantes,dicilmente posso ignorar sua conscincia o signicado que eles atribuema seus atos. Os smbolos, as normas, as formas ideolgicas que eles criam

    constituem o pano de fundo indispensvel para o seu comportamento. Porparcial ou imperfeito que seja seu entendimento da situao, eles so dotadosde intenes, valores e intencionalidades que condicionam suas aes. Isso to evidente que dicilmente mereceria ser rearmado no fosse pela lamen-tvel tendncia, nas cincias comportamentais, de inferir o comportamento demassa diretamente dos sumrios estatsticos sobre renda, ingesto de calorias,circulao de jornais ou propriedade de estaes de rdio. Por conseguinte,busco no somente expor e descrever os padres de resistncia cotidiana comoum comportamento distinto com implicaes de longo alcance, mas tambmfundamentar essa descrio em uma anlise dos conitos de signicado e valorem que surgem esses padres e para os quais eles contribuem.

    A relao entre pensamento e ao , para diz-lo de forma bastante singela,uma questo complicada. Aqui, sem maiores rodeios, desejo enfatizar apenasdois pontos. Em primeiro lugar, nem intenes nem atos so causas primeiras.Atos nascidos de intenes retroagem, como que em crculo, inuenciando

    a conscincia e, consequentemente, as intenes e atos subsequentes. Assim,atos de resistncia e pensamentos sobre a resistncia (ou sobre seu signicado)esto em constante comunicao em constante dilogo. Em segundo lugar, asintenes e a conscincia no esto ligadas ao mundo material da mesma formaque o comportamento. possvel e usual que os atores humanos concebam umalinha de ao que, no momento, seja impraticvel ou impossvel. Assim, umapessoa pode sonhar com uma vingana ou com um milenar reino de justiaque pode nunca vir a ocorrer. Por outro lado, conforme mudem as circuns-

    tncias, pode ser que venha a tornar-se possvel agir a partir desses sonhos. Odomnio da conscincia nos d uma espcie de acesso privilegiado a linhas de

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    14/28

    230 JamesC.Scott

    ao que podem somente podem tornar-se plausveis em algum momentofuturo. Como, por exemplo, dar uma explanao adequada de qualquer rebe-lio camponesa sem algum conhecimento sobre os valores compartilhados,

    as conversas de bastidores, a conscincia do campesinato prvia rebelio?19.Como, nalmente, entender as formas cotidianas de resistncia sem referncias intenes, ideias e linguagem dos seres humanos que a praticam?

    O estudo da conscincia social das classes subordinadas importanteainda por outra razo. Ele nos permite elucidar um debate importante tantona literatura marxista como na no marxista um debate centrado na pro-poro em que as elites so capazes de impor sua prpria imagem de umaordem social justa, no simplesmente sobre o comportamento das no-elites,

    mas tambm sobre sua prpria conscincia.O problema pode ser expresso de maneira simples. Suponhamos que

    se possa estabelecerque um dado grupo explorado e, alm disso, que essaexplorao ocorre em um contexto no qual a fora coercitiva disposiodas elites e/ou do Estado torna virtualmente impossvel qualquer mani-festao ostensiva de descontentamento. Supondo tambm, para ns deargumentao, que o nico comportamento observvel aparentemente deaquiescncia, so possveis pelo menos duas interpretaes divergentes desseestado de coisas. Uma delas pode sustentar que, em virtude de uma ideolo-gia religiosa ou social hegemnica, o grupo explorado efetivamente aceitasua situao como uma normal e mesmo justicvel parte da ordem social.Essa explicao da passividade supe pelo menos uma aceitao fatalista daordem social e talvez at mesmo uma cumplicidade ativa as quais seriamchamadas pelos marxistas de misticao ou falsa conscincia.20 Ela seapoia tipicamente na suposio de que as elites dominam no apenas os meios

    fsicos de produo, mas tambm os meios simblicos de produo21

    e de

    19 Paraqueissonoparea,implcitaeunilateralmente,trataraconscinciacomoanterioreemalgumsentidocausadoradocomportamento,pode-sevoltarumpassoatrsequestionarsobreaconstruodessaconscincia.Umainvestigaodessetipocomearianecessariamentecomosdadossociaisdaposiodoatornasociedade.Osersocialcondicionaaconscinciasocial.

    20 VeraargumentaonessesentidodeHoggart(1954,p.77-78).21 Natradiomarxista,pode-semencionarespecialmenteAntonioGramsci(1971,p.123-209);eLukacs

    (1971).Aoqueeuconhea,Marx nuncausouaexpressoalsaconscincia,conquantooetichismodamercadoriapossaserassiminterpretado.Contudo,oetichismodamercadoriamistifcaespecial-

    menteaburguesia,nomeramenteasclassessubordinadas.Paraumavisocrticadahegemoniatalcomopossaaplicar-seaocampesinato,verScott(1977,p.267-296),bemcomoocaptulo7deWeapons of the weak[noqualopresenteartigocorrespondeaocaptulo2,N.E.].

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    15/28

    231Exploraonormal,resistncianormal

    que essa hegemonia simblica lhes possibilita controlar os prprios padrespelos quais sua dominao avaliada.22 Como disse Gramsci, as elites con-trolam os setores ideolgicos da sociedade cultura, religio, educao, e

    meios de comunicao e podem, por isso, engendrar a aquiescncia a suadominao. Criando e disseminando um universo de discurso e os conceitosque o acompanham, denindo os padres do que considerado verdadeiro,belo, moral, justo, e legtimo, elas impedem que as classes subordinadaspensem livremente a seu modo. De fato, para Gramsci, o proletariado estmais escravizado no mbito das ideias do que no do comportamento. A tarefahistrica do partido , portanto, menos a de conduzir revoluo do que ade quebrar o miasma simblico que bloqueia o pensamento revolucionrio.

    Tais interpretaes tm sido evocadas para dar conta da aquiescncia dasclasses subordinadas, particularmente nas sociedades rurais como a ndia,onde um venervel sistema de rgida estraticao de castas reforado porsanes religiosas. Diz-se que as castas inferiores aceitam seu destino nahierarquia hindu na esperana de serem recompensadas na prxima vida.23

    Uma interpretao alternativa dessa quietude poderia ser a de que elase explica pelas relaes de fora no campo, e no pelos valores e crenasdos camponeses.24 Nessa perspectiva, a paz agrria pode mais propriamenteser a paz da represso (recordada e/ou prevista) do que a do consentimentoou cumplicidade.

    As questes colocadas por essas interpretaes divergentes so cen-trais para a anlise da poltica camponesa e para o estudo das relaes declasses em geral. Grande parte desse debate ocorreu como se a escolha dainterpretao fosse mais um assunto de preferncia ideolgica do analistado que de uma matria de pesquisa efetiva. Sem subestimar os problemas

    envolvidos, creio haver diversas maneiras pelas quais se pode tratar empi-ricamente a questo. Em outras palavras, possvel dizer algo signicativosobre o peso relativo da conscincia, por um lado, e da represso (na ver-dade, lembrada ou potencial), por outro, no que diz respeito contenodos atos de resistncia.

    22 Paraoutrasexplanaessobreo mesmoenmeno,ver,porexemplo,Parkin(1971,p.79-102)eDumont(1970).

    23 Observem-se,entretanto,osesorosdascastasinerioresparaelevarseustatusrituale,maisrecente-

    mente,atendnciadosharijans[intocveis]deabandonarcompletamenteohindusmoeconverter-seaoislamismo,oqualnoaznenhumadistinodecastaentreoscrentes.24 Ver,porexemplo,Huizer(1972).

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    16/28

    232 JamesC.Scott

    O argumento favorvel falsa conscincia depende, anal de contas, doalinhamento simblico dos valores da elite e das classes subordinadas isto ,no suposto de que o campesinato (proletariado) efetivamente aceita a maior

    parte da viso da elite sobre a ordem social. O que signica misticao, seno o assentimento de um grupo com relao ideologia que justica suaexplorao? Na medida em que a perspectiva de um grupo explorado estem substancial alinhamento simblico com os valores da elite, o argumentoa favor da misticao se fortalece; na medida em que tal perspectiva contm

    valores desviantes e contraditrios, o argumento se enfraquece. Um estudorigoroso da subcultura de um grupo subordinado e sua relao com os va-lores da elite dominante deveria nos dar parte da resposta que procuramos.

    Raramente as evidncias sero inequvocas, pois a perspectiva de qualquergrupo conter certa quantidade de correntes diversas e mesmo contraditrias.O que notvel no a mera existncia de temas subculturais desviantes,pois estes so praticamente universais, mas antes as formas que eles podemassumir, os valores que incorporam, e a atrao emocional que inspiram.Assim, mesmo na ausncia de resistncia, no nos faltam recursos para tratarda questo da falsa conscincia.

    Para abrandar a natureza um tanto abstrata da argumentao desen-volvida at agora, pode ser til ilustrar o tipo de evidncia que pode estarrelacionada diretamente com essa questo. Suponha, por exemplo, que otermo lingustico ostensivo para meao ou arrendamento seja um termoque enfatize sua equidade e justia. Suponha, ademais, que o termo usadopelos arrendatrios, pelas costas dos proprietrios, para descrever essa re-lao seja muito diferente cnico e jocoso.25 No seria isso uma evidnciaplausvel de que a viso do arrendatrio a respeito dessa relao em grande

    medida desmisticada que ele no aceita pelo valor de face a denio dearrendamento posta pela elite? Quando Haji Ayub e Haji Kadir so chamados,pelas costas, de Haji Vassoura, Haji Kedikut, ou Pak Ceti, no seria isso umaevidncia plausvel de que seu direito terra, juros, rendimentos e respeito pelo menos contestado no plano da conscincia, quando no no terrenode aes ostensivas? O que pensar das seitas religiosas de classe baixa (osQuakers na Inglaterra do sculo XVII, os Saministas em Java no sculo XX,para citar apenas duas entre muitas) que abandonam o uso formas honorcas

    25 OarrendamentonaregiocentraldeLuzon,nasFilipinas,umcasonotvelaesserespeito.Comu-nicaodeBenedickKerkvliet,UniversidadedoHava.

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    17/28

    233Exploraonormal,resistncianormal

    no tratamento aos socialmente superiores, insistindo, ao invs, em formasde tratamento mais prosaicas ou em usar palavras como amigo ou irmopara descrever todo mundo. No seria isso uma evidncia reveladora de que

    o libreto da elite para a hierarquia de nobreza e respeito no mnimo no cantado ao p da letra por seus sditos?

    Por referncia cultura que os camponeses moldam a partir de suaexperincia seus comentrios e conversao nos bastidores, seus pro-

    vrbios, canes folclricas, sua histria, lendas, chistes, linguagem, ritual,e religio deve ser possvel determinar em que medida e de que maneirasos camponeses de fato aceitam a ordem social propagada pelas elites. Algunselementos da cultura das classes subalternas so, naturalmente, mais rele-

    vantes que outros no que toca a esta questo. Para qualquer sistema agrrio,pode-se identicar um conjunto de valores-chave que justicam o direito adeferncia, terra, impostos e renda, reivindicado por uma elite. , em grandemedida, matria emprica saber-se se esses valores-chave encontram apoio ouoposio no interior da subcultura das classes subordinadas. Se bandidos ouaqueles que caam em terras alheias so considerados heris, podemos inferirque as transgresses aos cdigos da elite evocam uma admirao vicria.Se as formas exteriorizadas de deferncia so objeto de zombaria no planoprivado, isso sugere que dicilmente se podem considerar os camponesescomo aferrados a uma ordem social naturalmente ordenada. Se aqueles queprocuram buscar o favor pessoal das elites so evitados e repelidos por outrosde sua classe, temos uma evidncia de que existe uma subcultura de classesubalterna com poder de sano. A rejeio dos valores da elite, no entanto, raramente uma proposio que se aplique de forma igual totalidade des-ses valores, e apenas um estudo mais detido dos valores camponeses pode

    denir os pontos principais de frico e de correspondncia. Nesse sentido,pontos de frico s se tornam sintomas relevantes quando se centram emvalores-chave da ordem social, e quando se ampliam e se tornam mais duros.

    A experincia e a conscincia dos agentes humanos

    Foi com essas questes em mente que passei mais de um ano e meiona aldeia de Sedaka, ouvindo, fazendo perguntas, e tentando entender asquestes que animavam os aldeos durante minha estada entre eles. O

    resultado, espero, uma descrio bem fundamentada e detalhada dasrelaes de classe em uma localidade muito pequena (setenta famlias, 360

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    18/28

    234 JamesC.Scott

    pessoas) que experimenta grandes mudanas (a revoluo verde: nestecaso, a dupla safra de arroz). Grande parte dessa descrio, conquanto notoda, um relato do que parece ser uma luta de classes perdedora contra o

    desenvolvimento agrcola capitalista e seus agentes humanos. Nem precisodizer que considerei importante ouvir cuidadosamente os agentes humanosque estava estudando, sua experincia, suas categorias, seus valores, seuentendimento da situao. H vrias razes para introduzir essa abordagemfenomenolgica neste estudo.

    A primeira razo tem a ver com a maneira pela qual pode e deve serconduzida a cincia social. Em algumas variantes mais estruturalistas doneomarxismo, est na moda supor que, em qualquer pas no socialista de

    Terceiro Mundo, a natureza das relaes de classe pode ser inferida direta-mente de umas poucas caractersticas diagnsticas o modo de produodominante, o modo e o ritmo de insero na economia mundial, ou o modode apropriao do excedente. Esse procedimento acarreta um salto direto,reducionista, de um ou poucos dados econmicos para a situao de classepresumida como decorrente desses dados. No h quaisquer atores humanos,nesse caso, apenas mecanismos e marionetes. Por certo que os dados econ-micos so cruciais; eles denem muito, mas no tudo, na situao com quese defrontam os atores humanos; limitam as respostas possveis, imaginveis.Mas esses limites so muito amplos e, dentro deles, os atores humanos ela-boram sua prpria resposta, sua experincia de classe, sua prpria histria.Como observa E. P. ompson em sua polmica contra Althusser:

    (...) nem perdovel em um marxista [a recusa epistemolgica da experincia],

    posto que a experincia um termo intermedirio necessrio entre o ser social e a

    conscincia social: a experincia (muitas vezes a experincia de classe) que d uma

    colorao cultura, aos valores, e ao pensamento; por meio da experincia que o

    modo de produo exerce uma presso determinante sobre outras atividades. (...) As

    classes surgem porque homens e mulheres, em determinadas relaes de produo,

    identicam seus interesses antagnicos e vm a lutar, pensar e valorar de maneira

    classista; assim, o processo de formao de classe um processo de autoconstruo,

    embora sob condies que so dadas. (THOMPSON, 1978, p. 98; 106-107)

    De que outra forma pode um modo de produo afetar a natureza das re-

    laes de classe, a no ser mediado pela experincia e interpretao humanas?Somente captando essa experincia em algo que se aproxime de sua plenitude

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    19/28

    235Exploraonormal,resistncianormal

    seremos capazes de dizer qualquer coisa signicativa sobre como um dadosistema econmico inuencia os que o constituem, mantm ou superam.E, naturalmente, se isso verdadeiro para o campesinato ou o proletariado,

    certamente verdadeiro para a burguesia, a pequena burguesia e mesmo olumpemproletariado.26 Excluir a experincia dos agentes humanos da anlisedas relaes de classe fazer a teoria engolir seu prprio rabo.

    Uma segunda razo para colocar a experincia dos agentes humanosno centro da anlise diz respeito ao prprio conceito de classe. Tudo bemidenticar uma coleo de indivduos que ocupam uma posio compa-rvel em relao aos meios de produo uma classe em si. Mas, e se taisdeterminaes objetivas, estruturais, encontram pouco eco na conscincia

    e na atividade signicativa dos assim identicados?27. Ao invs de simples-mente supor uma correspondncia unvoca entre a estrutura objetiva ea conscincia da classe, no seria muito prefervel entender como essasestruturas so apreendidas por atores humanos de carne e osso? A classe,anal de contas, no exaure o espao explicativo total das aes sociais. Emnenhum outro lugar isso mais verdadeiro do que na aldeia camponesa,onde classe pode competir com laos de parentesco, vizinhana, faco,e ritual, como focos de identidade e solidariedade humana. Para alm doplano da aldeia, pode competir tambm com etnicidade, grupo lingustico,religio, e regio, como focos de lealdade. Classe pode tambm ser aplicvela algumas situaes, mas no a outras; pode ser reforada ou cruzada poroutros laos; pode ser muito mais importante para a experincia de uns doque de outros. Os que esto tentados a descartar como falsa conscinciatodos os princpios de ao humana que competem com a identidade declasse, e a esperar pela determinao em ltima instncia, de Althusser,

    provavelmente esperaro em vo. Nesse nterim, a desordenada realidadede mltiplas identidades continuar a ser a experincia a partir da qual seorientam as relaes sociais. Nem camponeses nem proletrios deduzemsuas identidades direta e somente do modo de produo, e quanto maiscedo tratarmos da experincia concreta da classe tal como ela vivida,mais cedo apreciaremos tanto os obstculos quanto as possibilidades paraa formao de classe.

    26

    tambmverdadeiroparaopadroregulardeatividadeshumanasquechamamosdeinstituies.Porexemplonotembem,estruturalistasoEstado.27 VerapersuasivaargumentaonessesentidodesenvolvidaporBrow(1981).

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    20/28

    236 JamesC.Scott

    Outra justicao para uma anlise minuciosa das relaes de classe a deque na aldeia, e no apenas nela, as classes se movem sob aparncias estranhase enganosas. No so apreendidas como conceitos abstratos, fantasmagri-

    cos, mas na forma bastante humana de indivduos e grupos especcos, deconitos e lutas especcos. Piven e Cloward captam a especicidade dessaexperincia no tocante classe trabalhadora:

    Em primeiro lugar, as pessoas sofrem privao e opresso em um contexto concreto,

    no como o produto nal de processos amplos e abstratos, e a experincia concreta

    que molda seu descontentamento em queixas especcas voltadas para alvos espec-

    cos. Os trabalhadores vivenciam a fbrica, o ritmo veloz da linha de montagem, o

    capataz, os espias, os guardas, o proprietrio, e o cheque do pagamento. Eles no viven-ciam o capitalismo monopolista. (PIVEN e CLOWARD, 1977, p. 20; nfases minhas)

    Da mesma forma, o campons malaio vivencia preos crescentes noarrendamento da terra, proprietrios mesquinhos, taxas de juros ruinosascobradas pelos emprestadores de dinheiro, colheitadeiras mecnicas que ossubstituem, e pequenos burocratas que os tratam de maneira indigna. Eleno vivencia o nexo monetrio ou a pirmide capitalista das nanas que

    faz daqueles donos de terras, proprietrios de colheitadeiras, emprestadoresde dinheiro e burocratas apenas a penltima articulao em um complexoprocesso. No de admirar, portanto, que a linguagem de classe na aldeiaostente as marcas de nascena de sua origem distinta. Os aldees no cha-mam Pak Haji Kadir de agente do capital nanceiro; eles o chamam KadirCeti porque foi atravs da casta Chettiar de emprestadores de dinheiro quedominou o crdito rural de aproximadamente 1910 at a 2 Guerra Mun-dial que o campons malaio viveu a experincia do capital nanceiro. O

    fato de a palavra Chettiarter tambm conotaes similares para milhes decamponeses no Vietn e em Miamar constitui um tributo homogeneizaoda experincia que a penetrao capitalista no sudeste da sia trouxe emsua esteira. Nem se trata simplesmente de uma questo de reconhecer ummascaramento e de revelar a relao realsubjacente, pois o mascaramento, ametfora, parte da relao real. Historicamente, a experincia dos malaioscom respeito ao emprestador de dinheiro foi a de v-lo como emprestadorde dinheiro e chettiar isto , como estrangeiro e no-muulmano. Simi-larmente, o malaio v o lojista e o comprador de arroz no apenas como um

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    21/28

    237Exploraonormal,resistncianormal

    credor e um negociante atacadista, mas como pessoas de outra raa e outrareligio. Desse modo, tal como vivido, o conceito de classe quase semprealgo como uma liga composta por metais bsicos; suas propriedades concre-

    tas, seus usos, so os da mistura e no os dos metais puros que ela contm.Ou as assumimos como as encontramos ou abandonamos inteiramente oestudo emprico das classes.

    No se deve deplorar o fato de o conceito vivenciado de classe encontrar-seincrustrado em uma histria especca de relaes sociais. essa radicaoda experincia que lhe d seu poder e signicado. Quando a experincia amplamente compartilhada, os smbolos que corporicam as relaes de classepodem vir a ter um poder evocativo extraordinrio. Pode-se imaginar, nesse

    contexto, como as queixas individuais tornam-se queixas coletivas e comoas queixas coletivas podem assumir o carter de um mito de base classistaligado, como sempre, experincia local. Assim, um determinado campo-ns pode ser arrendatrio de um proprietrio rural que visto por ele comoparticularmente opressor. Ele pode resmungar; pode mesmo ter fantasiassobre dizer ao proprietrio o que pensa dele, ou ainda ter pensamentos maissombrios de provocar um incndio ou de praticar um homicdio. Se se tratade uma queixa isolada, pessoal, o caso provavelmente se esgota a, na fantasia.Se, entretanto, muitos arrendatrios se encontram no mesmo barco, seja porcompartilharem o mesmo proprietrio arrendador, seja porque seus arren-dadores os tratam de maneira semelhante, surge a a base para uma queixacoletiva, uma fantasia coletiva e mesmo aes coletivas. ento provvelque os camponeses intercambiem suas histrias sobre maus arrendadores e,como alguns provavelmente so mais notrios que outros, tornam-se o focode histrias elaboradas, o repositrio de queixas coletivas de grande parte da

    comunidade contra a condio de arrendador em geral. Em consequncia,temos a lenda de Haji Broom, que se tornou uma espcie de abreviatura me-tafrica para o arrendamento em larga escala na regio. Do mesmo modo,temos poemas sobre Haji Kedibut, os quais no so tanto histrias sobreindivduos, mas smbolos de toda uma classe de proprietrios arrendadores.

    Se alguma vez tivesse havido (e no houve) um movimento de rebelioem larga escala contra os proprietrios arrendadores em Kedah, podemosestar certos de que algo do esprito daquelas lendas teria se reetido na ao.

    O caminho j estava simbolicamente preparado. Mas o ponto central a serenfatizado simplesmente que o conceito de classe, se para ser encontrado

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    22/28

    238 JamesC.Scott

    de alguma forma, deve s-lo codicado na experincia concreta comparti-lhada, que reete tanto o material cultural como os dados histricos de seusportadores. No Ocidente, o conceito de alimento mais frequentemente

    expresso pelopo. Na maior parte da sia, pelo arroz.28 Nos Estados Unidos,o nome Rockefeller, com todas as suas conotaes histricas, pode ser umarepresentao sucinta para capitalista; o equivalente para o mau arrendadorem Sedaka Haji Broom, com todas as conotaes histricas desse nome.

    Por todas essas razes, o estudo das relaes de classe em Sedaka, comoalhures, precisa necessariamente ser tanto um estudo de signicado e expe-rincia como de comportamento estritamente considerado. Nenhum outroprocedimento possvel, na medida em que o comportamento nunca auto-

    explicativo. Para ilustrar o problema, no preciso mencionar mais do que ofamoso exemplo de um rpido movimento de fechar e abrir as plpebras deum s olho, utilizado por Gilbert Ryle e mais elaborado por Cliord Geertz(1973, p. 6-9).29 Trata-se de um tique nervoso ou de uma piscadela? A meraobservao do ato fsico no d nenhuma pista. Se for uma piscadela, deque tipo de piscadela se trata: conspiratria, ridicularizante, de seduo? Sum conhecimento da cultura, das interpretaes compartilhadas pelo atore seus observadores e parceiros, pode comear a nos dizer alguma coisa; e,mesmo ento, precisamos levar em conta possveis equvocos. Uma coisa saber que os proprietrios de terras elevaram o montante de dinheiro exigidopelo arrendamento da terra para o plantio de arroz; outra coisa saber o queesse comportamento signica para os que foram por ele afetados. Talvez,apenas talvez, os arrendatrios vejam o aumento do valor do arrendamentocomo razovel e h muito justicado. Talvez o vejam com opressivo e como intento de expuls-los da terra. Talvez a opinio esteja dividida. S uma

    investigao sobre a experincia dos arrendatrios, sobre o signicado queeles atribuem ao evento, pode oferecer-nos a possibilidade de uma resposta.Digo a possibilidade de uma resposta porque pode interessar aos arrenda-

    28 Ohomemnovivesdopo.Maspopodevirasignifcarmaisdoqueapenasalimento;podesignifcaromeiodevidaouodinheiro,comoemVocpodemeemprestarumpoucodepo?.Nasociedademalaia,oprovrbiojangan pecah periok nasi orang(Noquebreavasilhadearrozdealgum)signifcanoponhaemriscoaontedesustentodealgum.

    29 UmexcelentesumriodessaposiointelectualpodeserencontradaemBernstein(1978,p.173-236).

    ComoobservaBernstein,Essasdescries,signifcadoseinterpretaesintencionaisnosoestadosdeespritomeramentesubjetivosquepodemsercorrelacionadoscomocomportamentoexterior;soconstitutivosdasatividadeseprticasdenossavidasocialepoltica(BERNSTEIN,1978,p.229-230).

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    23/28

    239Exploraonormal,resistncianormal

    trios dar uma impresso falsa de sua opinio e, assim, a interpretao podeser enganosa. Mas, sem essa informao, estamos completamente confusos.Um roubo de gros, um aparente desprezo, uma ddiva perceptvel sua

    signicao inacessvel a menos que possamos constru-la a partir dossignicados que s os atores humanos podem proporcionar. Nesse sentido,nos concentramos no mnimo tanto sobre a experincia do comportamentoquanto sobre o prprio comportamento, tanto sobre a histria que as pessoascarregam em suas mentes quanto sobre o uxo dos eventos (GEERTZ,1980, p. 175), tanto sobre como a classe percebida e entendida como nasrelaes objetivas de classe.

    Por certo, o enfoque aqui adotado se apoia fortemente no que se conhece

    como fenomenologia ou etnometodologia.30 Contudo no est connado aesse enfoque, pois apenas ligeiramente mais verdadeiro as pessoas falarempor si prprias do que o comportamento falar por si mesmo. A pura fenome-nologia tem suas prprias armadilhas. Parte considervel do comportamento,incluindo o discurso, automtica e irreetida, baseada em entendimentosque raramente ascendem ao nvel da conscincia, se que o fazem. Umobservador cuidadoso precisa oferecer uma interpretao desse compor-tamento que seja mais do que uma simples repetio do conhecimento desenso comum dos participantes. Como interpretao, ela precisa ser julgadapelos padres de sua lgica, sua economia e sua consistncia com outrosfatos sociais conhecidos. Os agentes humanos podem tambm fornecerrelatos contraditrios sobre seu prprio comportamento, ou podem quereresconder do observador, ou uns dos outros, sua compreenso a respeito. Porconseguinte, os mesmos padres de interpretao so aplicveis, conquanto oterreno seja reconhecidamente traioeiro. Alm disso, em qualquer situao

    simplesmente existem fatores que iluminam a ao dos agentes humanos,mas dos quais dicilmente se pode esperar que estes tenham conscincia.Uma crise creditcia internacional, mudanas na demanda mundial porgros, uma luta faccional silenciosa no ministrio afetando a poltica agr-ria, pequenas alteraes na constituio gentica das sementes, cada umadessas coisas pode ter um decidido impacto sobre as relaes sociais locais,tenham ou no os atores envolvidos conhecimento delas. Tal conhecimento o que um observador externo pode muitas vezes acrescentar como um

    30 Ver,porexemplo,Turner(1974).

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    24/28

    240 JamesC.Scott

    suplemento, no como substituto, descrio da situao fornecida pelosprprios agentes humanos, pois, por mais parcial e mesmo equivocada arealidade vivenciada pelos agentes humanos, essa realidade vivenciada

    que proporciona a base para sua compreenso e sua ao. Finalmente, noexiste tal coisa como uma descrio completa da realidade vivenciada. Noh uma transcrio verbal completa da experincia consciente (DUNN,1979, p. 160). A completude da transcrio limitada tanto pelo interesseemprico e analtico do transcritor neste caso, as relaes de classe inter-pretadas de maneira ampla como pelos limites prticos de tempo e espao.

    O que se busca fazer aqui , portanto, uma descrio plausvel das relaesde classe em Sedaka, baseada o quanto possvel nas evidncias, experincias

    e descries de ao oferecidas pelos prprios participantes. Em numerosospontos, suplementei essa descrio com minhas prprias interpretaes, poisestou muito consciente de como a ideologia, a racionalizao do interessepessoal, as tticas sociais cotidianas, ou mesmo a polidez, podem afetar orelato de um participante. Mas espero no ter substitudo a descrio delespela minha. Pelo contrrio, procurei validar minha interpretao mostrandocomo ela remove anomalias, ou acrescenta informaes, na melhor descrioque o participante capaz de oferecer. Pois, como arma Dunn,

    O que particularmente no podemos fazer armar que sabemos que o entendemos,

    ou que compreendemos sua ao, melhor do que ele prprio, sem ter acesso melhor

    descrio que ele seja capaz de dar (...). O critrio probatrio para a validade de uma

    descrio ou interpretao de uma ao a economia e a preciso com que ela lida

    com o texto completo da descrio feita pelo agente. (DUNN, 1979)

    Reerncias bibliogrfcas

    ADAS, Michael. 1981. From avoidance to confrontation: peasant protest inprecolonial and colonial Southeast Asia. Comparative Studies in Societyand History, v. 23, n. 2 p. 217-247.

    BERNSTEIN, Richard J. 1978. Te restructuring of social and political theory.Filadela: University of Pennsylvania Press.

    BROW, James. 1981. Some problems in the analysis of agrarian classes inSouth Asia. Peasant Studies, v. 9, n. 1, p. 15-33.

    COBB, Richard C. 1970. Te police and the people: French popular protest,1789-1820. Oxford: Clarendon.

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    25/28

    241Exploraonormal,resistncianormal

    DUMONT, Louis. 1970. Homo hierarchicus. London: Weidenfeld& Nicholson.

    DUNN, John. 1979. Practising history and social science on realist assump-

    tions. In: HOOKWAY, C. & PETTIT, P. (orgs.).Action and interpretation:studies in the philosophy of the social sciences. Cambridge: CambridgeUniversity Press.

    GEERTZ, Cliord. 1973. Te interpretation of cultures. New York: Basic._______.1980. Blurred genres: the reguration of social thought.American

    Scholar, v. 49, n. 2, p. 165-179.GHEE, Lim Teck. 1977. Peasants and their agricultural economy in colonial

    Malaya, 1874-1941. Kuala Lumpur: Oxford University Press.

    GRAMSCI, Antonio. 1971. Selections from the prison notebooks. Trad. e org.Quinten Hoare e Georey Nowell Smith. London: Lawrence & Wishart.

    HARASZTI, Mikls. 1978.A worker in a workers state. Trad. Michael Wright.New York: Universe.

    HARPER, Edward B. 1968. Social consequences of an unsuccessful low castemovement. In: SILVERBERG, James (org.). Social mobility in the castesystem in India: an interdisciplinary symposium. e Hague: Mouton.

    HAY, Douglas & THOMPSON, E. P. 1975. In: HAY, Douglas; LINEBAUGH,Peter; RULE, John G.; THOMPSON, Edward P. & WINSLOW, Cal (eds.).Albions fatal tree: crime and society in eighteenth-century England. NewYork: Pantheon.

    HOBSBAWM, Eric J. & RUD, George. 1968. Captain swing. New York:Pantheon.

    HOGGART, Richard. 1954. Te uses of literacy. London: Chatto & Windus.HUIZER, Gerrit. 1972. Peasant mobilization and land reform in Indonesia.

    e Hague: Institute of Social Studies.HYDEN, Goran. 1980. Beyond Ujamaa in anzania. London: Heinemann.LINEBAUGH, Peter. 1976. Karl Marx, the the of wood, and working-class

    composition: a contribution to the current debate. Crime and SocialJustice, n. 6, p. 5-16.

    LUKACS, Georg. 1971. History and class consciousness:studies in marxistdialectics. Trad. Rodney Livingston. Cambridge, Mass.: MIT Press.

    MOORE JR., Barrington. 1966. Social origins of dictatorship and democracy.

    Boston: Beacon.NONINI, Donald M.; DIENER, Paul & ROBKIN, Eugene E. 1979. Ecolo-

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    26/28

    242 JamesC.Scott

    gy and evolution: population, primitive accumulation, and the malaypeasantry (Mimeografado).

    OI, Jean C. 1983. State and peasant in contemporary China: the politics of

    grain procurement. Tese de doutorado. Michigan: University of Michigan.PAIGE, Jerey M. 1975.Agrarian revolution: social movements and export

    agriculture in the underdeveloped world. New York: Free Press.PARKIN, Frank. 1971. Class inequality and meaning systems. Class

    inequality and political order. New York: Praeger.PIVEN, Frances Fox & CLOWARD, Richard A. 1977. Poor peoples

    movements: why they succeed, how they fail.New York: Vintage.POPKIN, Samuel L. 1979. he rational peasant. Berkeley: University

    of California Press.ROGERS, Susan Carol. 1975. Female forms of power and the myth of male

    dominance.American Ethnologis, v. 2, n. 4, p. 727-756.RUD, George. 1964. Te crowd in history, 1730-1848. New York: Wiley.SCOTT, James C. 1976. Te moral economy of the peasant. New Haven: Yale

    University Press._______. 1977. Hegemony and the peasantry. Politics and Society, v. 7,

    n. 3, p. 267-296._______. 1979. Revolution in the revolution: peasants and commissars.

    Teory and Society, v. 7, n. 1-2, p. 97-134.STOLER, Ann Laura. 1985. Capitalism and confrontation in Sumatras

    plantation belt, 1870-1979. New Haven: Yale University Press.THOMPSON, Edward P. 1978. Te poverty of theory and other essays. New

    York: Monthly Review Press.TURNER, Roy (org.). 1974. Ethnomethodology: selected readings.

    Harmondsworth: Penguin.WOLF, Eric R. 1969. Peasant wars of the twentieth century. New York:Harper & Row.

    ZOLA, Emile. 1980. Te earth. Trad. Douglas Parmee. Harmondsworth:Penguin.

    ResumoA partir de sua pesquisa entre camponeses da Malsia, James C. Scott desenvolve o con-

    ceito de resistncia cotidiana, expresso da luta prosaica e constante entre os integrantesdas classes dominadas e aqueles que deles buscam extrair trabalho, comida, impostos,

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    27/28

    243Exploraonormal,resistncianormal

    rendas e juros. Ela se expressa na orma de corpo mole, dissimulao, alsa aquiescncia,

    urto, ignorncia fngida, calnia, incndio ou sabotagem. Assim, a ausncia de ormas

    mais visveis de oposio poltica, como rebelies ou greves, no reete uma hegemonia

    ideolgica e a aceitao passiva da ordem estabelecida pelos dominados, e sim circuns-tncias que so mais a regra do que a exceo em que uma ao aberta e organizada

    seria demasiado perigosa.

    Palavras-chave: resistncia cotidiana; dominao; hegemonia.

    Abstract

    From his research among Malaysian peasants, James C. Scott develops the concept o

    everyday orms o resistance which express the prosaic and constant struggle between

    members o the subordinate classes and those who seek to extract labor, ood, taxes, rents,

    and interest rom them. Such orms o resistance express themselves in oot dragging,

    dissimulation, alse compliance, pilering, eigned ignorance, slander, arson, sabotage, and

    so orth. Hence, the absence o more visible orms o political opposition, as rebellions

    or strikes, does not reect an ideological hegemony and a passive acceptation o the

    established order by those subjected to domination. Instead, it reects circumstances

    that are rather the rule in which an open and organized action would be too dangerous.

    Key words: everyday resistance; domination; hegemony.

  • 7/27/2019 Explorao normal, resistncia normal

    28/28