experiências e desafios na formação de professores indígenas no

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  • Repblica Federativa do Brasil Luiz Incio Lula da Silva

    Ministrio da Educao (MEC) Cristovam Buarque

    Secretaria Executiva do MEC Rubem Fonseca Filho

    Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) Otaviano Augusto Marcondes Helene

    Diretoria de Tratamento e Disseminao de Informaes Educacionais Jos Marcelino de Rezende Pinto

    Coordenao-Geral de Linha Editorial e Publicaes Antonio Danilo Morais Barbosa

    Coordenao de Produo Editorial Rosa dos Anjos Oliveira

    Coordenao de Programao Visual Fernando Secchin

  • Experincias e Desafios na Formao de Professores

    Indgenas no Brasil

  • Organizao Lus Donisete Benzi Grupioni

    Editor Jair Santana Moraes

    Reviso Antonio Bezerra Filho Eveline de Assis Marluce Moreira Salgado Rosa dos Anjos Oliveira

    Normalizao Bibliogrfica Maria ngela Torres Costa e Silva Regina Helena Azevedo de Mello

    Projeto Grfico Fernando Secchin

    Diagramao e Arte-Final Raphael Caron Freitas

    Editoria Inep/MEC - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Esplanada dos Ministrios, Bloco L, Anexo I, 4o Andar, Sala 418 CEP 7004 7-900 - Braslia-DF - Brasil Fones: (61) 224-7092, 321-7376 Fax: (61) 224-4167 e-mail: [email protected]

    Distribuio Cibec/Inep - Centro de Informaes e Biblioteca em Educao Esplanada dos Ministrios, Bloco L, Trreo CEP 70047-900 - Braslia-DF - Brasil Fone: (61) 323-3500 http://www.inep.gov.bre-mail: [email protected]

    EM ABERTO: uma publicao monotemtica do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), destinada veiculao de questes atuais da educao brasileira. A exatido das informaes e os conceitos e as opinies emitidos neste peridico so de exclusiva responsabilidade dos autores. Publicado em fevereiro de 2003. Tiragem: 5.000 exemplares.

    Em Aberto / Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. v. 1, n. 1, (nov. 1981-). - Braslia : O Instituto, 1981-.

    Irregular. Irregular at 1985. Bimestral 1986-1990. Suspensa de jul. 1996 a dez. 1999.

    ndices de autores e assuntos: 1981-1987, 1981-2001.

    ISSN 0104-1037

    1. Educao - Brasil. I. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais.

    mailto:[email protected]://www.inep.gov.br/mailto:[email protected]

  • apresentao 7

    enfoque Qual a questo? Experincias e Desafios na Formao de Professores Indgenas no Brasil Lus Donisete Benzi Grupioni (USP)

    13

    pontos de vista O que pensam outros especialistas? Registros de Prticas de Formao Nietta

    Lindenberg Monte (CPI-AC)

    Propostas para a Formao de Professores Indgenas no Brasil Wilmar da Rocha D'Angelis (Unicamp)

    Educao e Diferena: a formao de professores indgenas em Mato Grosso Edmundo Antonio Peggion (USP)

    A Formao de Educadores Indgenas para as Escolas Xinguanas Maria Cristina Troncarelli (ISA) Esteia Wrker (ISA) Jackeline Rodrigues Mendes (ISA) Ktia Silene Zortha (Seduc-MT)

    19

    34

    44

    54

  • Krenak, Maxakali, Patax o Xakriab: a formao de professores indgenas em Minas Gerais

    Mara Vanessa Dutra Zlia Rezende (SEE-MG) Mrcia Maria Spyer Resende Kleber Gesteira Mattos (SEE-MG) Maria Ins de Almeida (SEE-MG) Myriam Martins lvares (PUC-MG) Lilavate Izapovitz Romanelli

    A Educao de Adultos e os Povos Indgenas no Brasil Aracy Lopes da Silva (t)

    Projeto Educao Ticuna: arte e formao de professores indgenas Jussara Gomes Gruber (OGPTB)

    74

    89

    130

    espao aberto Manifestaes rpidas, entrevistas, propostas, experincias, tradues, etc.

    Para Construir Novas Prticas de Formao de Professores Indgenas: documento final

    Referenciais para a Formao de Professores Indgenas: um livro do MEC como bssola para a escolaridade Betty Mindlin

    O Ponto de Vista dos Professores Indgenas: entrevistas com Joaquim Man Kaxinaw, Fausto Mandulo Macuxi e Francisca Novantino Pareci Lus Donisete Benzi Grupioni (USP)

    143

    148

    154

  • resenhas Experincias e Desafios na Formao de Professores Indgenas no Brasil 177

    bibliografia Experincias e Desafios na Formao de Professores Indgenas no Brasil

    A Educao Indgena na Academia: inventrio comentado de dissertaes e teses sobre educao escolar indgena no Brasil (1978-2002) Lus Donisete Benzi Grupioni (USP)

    197

    Instrues aos colaboradores 239

  • Lus Donisete Benzi Grupioni Doutorando em Antropologia Social pela Universidade de So Paulo e pesquisador

    do Mari - Grupo de Educao Indgena da Universidade de So Paulo (USP). Foi consultor de poltica de educao escolar indgena do Ministrio

    da Educao (MEC), [email protected]

    A proposta de formar ndios como professores para atuarem nas escolas de suas aldeias , sem dvida, a principal novidade que impulsiona os novos modelos de escola em comunidades indgenas. Os vrios projetos de formao de professores indgenas, em andamento em diferentes regies do Pas, vm demonstrando que isto no s possvel como desejvel e altamente rentvel em termos pedaggicos e polticos, afastando-se, com isso, do modelo em que professores no-ndios lecionavam em portugus para alunos monolnges em suas lnguas maternas, assessorados por monitores indgenas responsveis pela traduo daquilo que se pretendia ensinar. Assim, o que se assiste hoje em todo o Brasil a difuso de um novo modelo em que ndios pertencentes a suas respectivas comunidades so por elas escolhidos para serem formados e assumirem a docncia das escolas indgenas, enquanto protagonistas de uma nova proposta de educao.

    Nesta nova proposta educacional, que rompe com um padro de escolarizao guiado por intenes catequizadoras e/ou civilizatrias, a escola indgena deixa de ser o instrumento de negao da diferena. Orientada pelo respeito diversidade cultural e lingstica, que marca a existncia dos mais de 210 povos indgenas que vivem no Brasil contemporneo, essa nova escola se prope potencializar as expresses de identidades culturais que, informadas por sentimentos distintos e particulares de pertencimento tnico, se inserem no movimento de busca de novas formas de relacionamento com os demais segmentos da sociedade brasileira, a serem pautadas pelo respeito mtuo, pelo exerccio da compreenso e pela tolerncia.

    Esse um processo que vem ganhando fora e amplitude nos ltimos anos: sua origem est nas experincias pioneiras geradas no mbito do movimento da sociedade civil de apoio aos ndios, que, contra aes governamentais autoritrias, formularam e praticaram novos modelos de escolarizao e geraram idias, conceitos e prticas que influenciaram no s a poltica do Estado, mas tambm a legislao que lhe d sustentao. Nesse processo, deixaram de ser consideradas como experincias alternativas para serem estudadas e difundidas como experincias de vanguarda, capazes

    mailto:[email protected]

  • de formular paradigmas a serem testados em outros contextos, por novos agentes. Hoje, a novidade que esses processos passaram a ser geridos por tcnicos governamentais, enquanto poltica pblica. Passou-se do micro ao macro, ampliando-se o nmero de professores indgenas envolvidos, bem como o de especialistas, tcnicos e instncias governamentais, agncias de financiamento e universidades.

    Nesse cenrio ampliado, muitas e difceis indagaes surgiram: podem as experincias das organizaes no-governamen-tais servir de paradigma para polticas pblicas? Que conceitos, prticas e aes gerados em contextos etnogrficos particulares podem ser estendidos para arenas multitnicas e regionais geridas como parte do sistema educacional do Pas? E possvel formular paradigmas que possam balizar experincias governamentais de norte a sul do Pas? H consensos pedaggicos e curriculares e procedimentos operacionais que podem ser sistematizados e largamente empregados? Como se auto-avaliam as assim consideradas experincias pioneiras? Que vinculaes institucionais elas construram com as instncias pblicas que gerem a educao? Qual o lugar da reivindicao pela formao de professores indgenas na pauta do movimento indgena organizado? Que tipo de acolhimento o tema tem encontrado na reflexo acadmica?

    Essas so algumas perguntas das quais este Em Aberto procura se aproximar, ora buscando respostas, ora reformulando questes. Mais do que certezas sobre um campo em plena constituio, as contribuies que os textos deste volume trazem para o debate refletem o momento que agora vivenciamos, marcado pela expanso quantitativa e pela diversificao das experincias de formao de professores indgenas no Pas e pela apreenso quanto qualidade e adequao dessa expanso diante de demandas indgenas bem particulares.

    A seo Pontos de Vista inicia-se com "Registros de Prti-cas de Formao", em que Nietta Monte inventaria e analisa os nveis de reflexo possibilitados pela prtica da escrita de "dirios de trabalho" pelos professores indgenas do Acre, ao longo de cada ano, durante o exerccio do trabalho docente em suas aldeias, e que depois so lidos, discutidos e comentados, coletivamente, nos cursos de formao

    promovidos desde 1983, no mbito do projeto "Uma Experincia de Autoria", desenvolvido pela Comisso Pr-ndio do Acre. Esta prtica reflexiva, iniciada em 1991, permitiu que o dirio de classe deixasse de ser mero documento burocrtico para tornar-se um instrumento informativo e formador, tanto para os autores como para seus leitores.

    Em "Propostas para a Formao de Professores Indgenas no Brasil", Wilmar da Rocha D'Angelis, partindo da crtica de noes e prticas em uso no campo da educao escolar indgena, apresenta e justifica dez tpicos que deveriam compor a formao de um professor indgena para atuar na escola de sua comunidade. Apontando diferenas entre a figura do professor e a do educador, o autor situa a formao de professores indgenas num contexto de conflito entre as sociedades indgenas e a sociedade nacional, contexto este que deveria impelir, segundo sua proposta, professores e assessores a construir "uma relao pedaggica (e dialtica)" que possibilitasse uma reflexo "existencial, filosfica e poltica profunda".

    No artigo "Educao e Diferena: a formao de professores indgenas em Mato Grosso", Edmundo Antonio Peggion analisa a experincia da Secretaria de Estado da Educao de Mato Grosso na realizao do Projeto Tucum, de 1995 a 2000. Ele mostra como o Projeto partiu da discusso de modelos alternativos de formao para constituir-se na proposta oficial do Mato Grosso para a titulao em nvel mdio dos professores indgenas do Estado. Aps discorrer sobre os princpios e a estrutura do Projeto Tucum, o autor foca sua anlise no estudo de um caso especfico, o plo do projeto que atendeu o povo Xavante, demonstrando como os princpios da organizao social desse povo mostraram-se presentes em diferentes momentos e atividades do projeto, informando as reaes, performances, discusses e propostas desses professores indgenas.

    Em "A Formao de Educadores Indgenas para as Escolas Xinguanas", Maria Cristina Troncarelli, Esteia Wrker, Jackeline Mendes e Klia Zortha descrevem o programa de professores indgenas conduzido desde 1994 no Parque Indgena do Xingu. Tendo como princpio norteador a gesto territorial desta terra indgena, o projeto priorizou o intercmbio entre os vrios povos que l habitam

  • e a valorizao das lnguas indgenas. Descrevendo o contexto em que este trabalho se desenvolve, tanto dentro (envolvendo relaes com a comunidade e com lideranas) quanto fora (envolvendo articulaes com rgos oficiais) do Parque, enfatizam, ao longo de todo o artigo, as prticas pedaggicas desenvolvidas pela equipe de formadores e pelos professores indgenas que esto presentes por meio de vrias citaes de falas em reunies e de textos escritos.

    O texto seguinte, "Krenak, Maxacali, Patax e Xakriab: a formao de professores indgenas em Minas Gerais", foi escrito pela equipe que conduziu o programa de implantao das escolas indgenas de Minas Gerais dentro da Secretaria Estadual de Educao. O processo de discusso e implementao do programa de educao indgena naquele Estado incluiu no s a construo de escolas e a criao de um programa de formao para os professores indgenas, mas previu tambm a realizao de pesquisas, a preparao e edio de materiais didticos e a elaborao de propostas curriculares para cada uma das quatro etnias envolvidas. O artigo mostra a participao dos ndios, desde o incio das discusses at assumirem posies paritrias na coordenao do programa, e como os dilemas e inquietaes da equipe coordenadora foram se resolvendo ao longo do percurso.

    O artigo 'A educao de Adultos e os Povos Indgenas no Brasil" de autoria de Aracy Lopes da Silva, a traduo do relatrio brasileiro apresentado pesquisa internacional sobre a situao da educao de adultos e de povos indgenas no mundo, conduzida pelo Instituto de Educao da Organizao das Naes Unidas para a Educao, Cincia e Cultura (Unesco), em 15 pases diferentes, ao longo de 1999.1 Nesse artigo, a autora mostra que esses dois campos,

    1 A pesquisa International survey on adult education for indigenous people, conduzida pelo Instituto de Educao da Unesco, em Hamburgo, foi realizada, alm do Brasil, nos seguintes pases: Bolvia, Canad, Equador, Groenlndia, Guatemala, ndia, Mxico, Nova Zelndia, Noruega, Peru, Filipinas, Rssia, Tailndia e Estados Unidos. Relatrios finais de alguns desses pases podem ser consultados, em ingls ou espanhol, na pgina http://www.unesco.org/education/uie/publications. Gostaramos de agradecer coordenadora internacional da pesquisa, Linda King, pela permisso para verter o texto do ingls para o portugus e poder public-lo neste Em Aberto, divulgando-o no Brasil.

    educao para populao indgena e educao de adultos, apresentam-se de modos distintos no Brasil, e que at ento nenhuma convergncia fora tentada entre eles, seja em termos de reunio de dados, de definio de polticas educacionais ou de debates acadmicos. Historicamente, eles tm sido tratados e pensados como dois campos em separado, com problemticas prprias e independentes. Estabelecendo como ponto de convergncia entre essas duas temticas a problemtica da formao de professores e agentes indgenas de sade, o artigo procura fazer um balano da situao da educao bilnge e intercultural no Pas, nos ltimos anos. Para tanto, toma como matria de reflexo questionrios que foram enviados para rgos governamentais, universidades, organizaes indgenas e de apoio aos ndios, com o intuito de levantar suas experincias em programas de formao de jovens e adultos indgenas.

    A seo Pontos de Vista encerra-se com o artigo "Projeto Educao Ticuna: arte e formao de professores indgenas", de Jussara Gomes Gruber, que apresenta as linhas principais do nico programa de formao de professores indgenas, desenvolvido por uma organizao indgena, a concluir etapas e titular seus professores: trata-se do curso promovido, a partir de 1993, pela Organizao Geral dos Professores Ticuna Bilnges (OGPTB), que atingiu o feito de ter titulado 201 professores em nvel mdio. Hoje essa organizao indgena administra, na cidade de Benjamin Constant (AM), vrios cursos que incrementam o programa de formao dos professores Tikuna, incluindo oficinas de sade, meio ambiente, direitos, arte, materiais didticos e projeto poltico pedaggico, entre outros, para 378 alunos matriculados, dos quais 270 esto em sala de aula e os outros 108 preparam-se para o magistrio indgena. Esses nmeros, reveladores do tamanho da empreita conduzida pela OGPTB, so apresentados e discutidos neste artigo.

    Na seo Espao Aberto, reunimos trs textos de carter diverso: um documento elaborado pelos ndios, um comentrio analtico de documento produzido pelo Ministrio da Educao (MEC) e entrevistas com professores indgenas.

    O primeiro texto, "Para Construir Novas Prticas de For-mao de Professores Indgenas: documento final", corresponde ao

    http://www.unesco.org/education/uie/publications

  • resultado de uma reunio ocorrida entre os dias 23 e 25 de agosto de 2000, promovida pelo MEC no bojo dos seminrios realizados para elaborar e avaliar o documento Referenciais para a formao de professores indgenas (Brasil, 2002a), reunindo 15 professores indgenas de diferentes regies do Pas. Na forma de tpicos, so arroladas as proposies desse grupo de professores em relao ao perfil do professor indgena, ao currculo dos programas de forma-, o desses professores, ao currculo das escolas indgenas, ao material didtico, responsabilidade na formao dos professores indgenas e ao perfil dos formadores desses professores.

    No texto seguinte, "Referenciais para a Formao de Professores Indgenas: um livro do MEC como bssola para a esco-laridade", a antroploga Betty Mindlin analisa justamente a verso final desse documento elaborado pelo MEC e lanado no final de 2002. Problematizando o perfil e os papis que se esperam do professor indgena, ela mostra que muitas das idias defendidas no documento tm origem nas experincias de organizaes no-go-vernamentais em atividades h mais de duas dcadas e que passaram a balizar a poltica definida pelo Estado para essa rea. Trazendo tona e comentando as principais idias do documento, a autora enfatiza a necessidade de que elas sejam trabalhadas localmente, de modo a ganhar densidade nas experincias concretas e particulares de cada contexto tnico.

    Um ltimo texto integra essa seo: trata-se de um conjunto de entrevistas com trs integrantes da Comisso Nacional de Professores Indgenas do MEC. Em "O Ponto de Vista dos Professores Indgenas: entrevistas com Joaquim Man Kaxinawa, Fausto Mandulo Macuxi e Francisca Novantino Pareci", podemos acompanhar a histria de vida e as reflexes desses trs expoentes do movimento indgena por uma educao intercultural. De modos distintos, eles mostram a importncia de se ampliar as oportunidades e os investimentos em programas de formao de professores indgenas, no s em nvel mdio, mas, tambm, em nvel superior.

    Na seo Resenhas, quatro livros recentes so objeto de descrio, comentrios e crticas elaboradas por antroplogos

    que vm pesquisando e escrevendo sobre a educao escolar indgena no Brasil. Clia Collet analisa o livro Escolas da floresta: entre o passado oral e o presente letrado, que corresponde dissertao de mestrado em educao de Nietta Monte. Ricardo Cavalcanti resenha a coletnea organizada pelo casal Wilmar D'Angelis e Juracilda Veiga, Leitura e escrita em escolas indgenas, que rene os textos e as comunicaes apresentados por ocasio do I Encontro de Educao Indgena, realizado no mbito do 10 Congresso de Leitura do Brasil (Cole). Clarice Cohn debrua-se sobre a coletnea de artigos Urucum, jenipapo e giz: educao escolar indgena no Brasil, editada pelo Conselho de Educao Escolar Indgena de Mato Grosso por ocasio da Conferncia Amerndia de Educao, ocorrida em Mato Grosso em 1997. E, por fim, Antonella Tassinari dedica-se ao livro A histria da educao escolar entre os Kur-Bakairi, de Darlene Taukane, que resultado da dissertao de mestrado em Educao defendida por essa professora Bakairi.

    Na ltima seo, Bibliografia, encontra-se um levantamento bibliogrfico, que realizei especialmente para este nmero, das dissertaes e teses em educao escolar indgena no Brasil, defendidas no perodo de 1978 a 2002, sintetizando referncias e resumos dos trabalhos inventariados. Trata-se de um instrumento de pesquisa para aqueles que se dedicam ao tema, seja em termos de pesquisa, seja em termos de atuao, uma vez que o levantamento torna acessveis informaes sobre trabalhos acadmicos que, de modo geral, tendem a ter uma circulao muito restrita.

    Ao compormos este fascculo do Em Aberto com tal conjunto de textos, procuramos trazer para o debate algumas das mais importantes experincias de formao de professores indgenas desenvolvidas no Brasil nas ltimas dcadas, buscando propiciar a discusso dessas experincias e das idias que elas suscitam. Felizmente h outras experincias, tambm importantes e que por razes diversas no foram aqui trazidas para o debate, que dialogam com essas, complementam-nas e fazem contrapontos, compondo um amplo espectro de prticas inovadoras nesse campo da formao de professores indgenas.

  • Agradecendo a todos os autores que se dispuseram a colaborar conosco nessa reflexo, bem como equipe do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais pela proposio do

    tema e pela pacincia em aguardar a finalizao de todas as contri-buies, convidamos o leitor a interagir com as idias e anlises lanadas nas pginas que seguem.

  • Qual a questo?

    Experincias e Desafios na Formao de Professores

    Indgenas no Brasil

    Lus Donisete Benzi Grupioni Doutorando em Antropologia Social pela Universidade de So Paulo e pesquisador

    do Mari - Grupo de Educao Indgena da Universidade de So Paulo (USP). Foi consultor de poltica de educao escolar indgena do Ministrio

    da Educao (MEC), [email protected]

    Conversando com um professor Katxuyana, do Parque Indgena do Tumucumaque, no norte do Par, sobre a escola de sua aldeia, ele me disse: "Agora s tem professor ndio na nossa aldeia: o nosso desafio para ensinar as crianas aumentou. A responsabilidade ficou com a gente". Essa formulao, aparentemente simples, na verdade reveladora das muitas mudanas que ocorreram no Brasil nos ltimos anos, tanto em relao aos processos de educao escolar que chegaram s aldeias indgenas do Pas quanto em termos de novas prticas e concepes acerca de quem devem ser os professores nessas escolas e de como eles devem ser preparados para tal tarefa.

    No cenrio indigenista nacional, parece ser hoje um consenso a proposta de que escolas indgenas de qualidade s sero possveis se sua frente estiverem, como professores e como gestores, professores indgenas pertencentes s suas respectivas comunidades. Formar ndios para serem professores e gestores das mais de 1.400 escolas, localizadas em terras indgenas, hoje um dos principais desafios e prioridades para a consolidao de uma Educao Escolar Indgena pautada pelos princpios da diferena, da especificidade, do bilingismo e da interculturalidade.

    De sada, pode-se dizer que esta uma tarefa complexa, que tem encontrado solues muito diferentes em vrias localidades do Pas, e para a qual no h um nico modelo a ser adotado, haja vista a extrema heterogeneidade e diversidade de situaes sociolingsticas, culturais, histricas, de formao c escolarizao vividas pelos professores ndios e por suas comunidades. Acredita-se que estejam atuando nas escolas indgenas mais de 3.500 professores e professoras indgenas, com diferentes histrias de vida e com diferentes experincias de escolarizao e de formao.

    Esses novos "profissionais" indgenas tm demandado, juntamente com suas comunidades, uma formao especfica, que lhes permita concluir a escolarizao bsica e obter uma formao em ma-gistrio, de modo que possam exercer uma educao qualificada em benefcio das crianas indgenas. Essa formao especfica est prevista na legislao que trata do direito dos ndios a uma educao intercultural diferenciada dos demais segmentos da populao

    mailto:[email protected]

  • brasileira. Nessa legislao garante-se que os professores indgenas possam ter essa formao "em servio", ou seja, paralelamente sua atuao em sala de aula, e concomitante sua formao bsica.

    Essa determinao fruto de diversas experincias de for-mao de professores indgenas que surgiram a partir dos anos 80 em diferentes regies do Pas, por iniciativa de organizaes da sociedade civil que atuavam junto a determinados povos indgenas. Tais experi-ncias, surgidas fora do aparelho do Estado, foram gradativamente reconhecidas pelos rgos oficiais e forneceram elementos para se re-gulamentar o processo de qualificao profissional dos professores in-dgenas, inclusive influenciando positivamente a poltica pblica de educao escolar indgena desenvolvida nos ltimos anos.

    Formuladas e praticadas por entidades de apoio aos ndios, tais experincias, a maioria delas ainda em curso, tornaram-se referncias para se pensar em prticas inovadoras de formao de professores indgenas, a partir das quais se pode atender demanda de escolarizao proveniente de vrias comunidades indgenas. Algumas destas experincias serviram de paradigma para a elaborao de propostas oficiais de formao de professores indgenas desenvolvidas por secretariais estaduais de educao.

    De modo geral, esses processos de formao almejam possibilitar que os professores indgenas desenvolvam um conjunto de competncias profissionais que lhes permita atuar, de forma responsvel e crtica, nos contextos interculturais e sociolingsticos nos quais as escolas indgenas esto inseridas. Em muitas situaes, cabe ao professor indgena atuar como mediador e interlocutor de sua comunidade com os representantes do mundo de fora da aldeia e com a sistematizao e organizao de novos saberes e prticas. dele, tambm, a tarefa de refletir criticamente e de buscar estratgias para promover a interao dos diversos tipos de conhecimentos que se apresentam e se entrelaam no processo escolar: de um lado, os conhecimentos ditos universais, a que todo estudante, indgena ou no, deve ter acesso, e, de outro, os conhecimentos tnicos, prprios ao seu grupo tnico, que, se antes eram negados, hoje assumem importncia crescente nos contextos escolares indgenas.

    Tal como estabelecido em documento do Ministrio da Educao (MEC), os professores indgenas

    ... tm a difcil responsabilidade de incentivar as novas gera-es para a pesquisa dos conhecimentos tradicionais junto aos membros mais velhos de sua comunidade, assim como para a difuso desses conhecimentos, visando sua continui-dade e reproduo cultural; por outro lado, eles so respon-sveis tambm por estudar e compreender, luz de seus pr-prios conhecimentos e de seu povo, os conhecimentos tidos como universais reunidos no currculo escolar (Brasil, 2002a, p. 20-21).

    Portanto, o professor indgena deve ser formado como um pesquisador no s dos aspectos relevantes da histria e da cultura do seu povo, mas tambm dos assuntos considerados significativos nas vrias reas de conhecimento. Dessa atividade de pesquisa e estudo podem resultar materiais utilizveis tanto no processo de formao desse professor como na escola, para o uso didtico com seus alunos.

    A proposta de que, alm de ser professor e gestor de sua escola, ele deva ser tambm pesquisador, apresenta-se hoje como um grande desafio que envolve, de um lado, investimentos na formao individual desse professor e, do outro, a comunidade indgena, que deve participar ativamente das discusses e da prtica da escola indgena local, bem como dos programas de formao e qualificao de seus professores.

    Ainda que muito variados, os processos de formao de professores indgenas no Brasil tm se desenvolvido por meio de situaes em que se alternam o modo presencial e o modo no-presencial, possibilitando que o professor continue em atuao em sua escola e transforme o seu dia-a-dia na sala de aula em matria de constante reflexo. Nos perodos presenciais, cursos e atividades previamente planejados so executados por uma equipe de especialistas, responsveis pela formao. So os momentos de curso, normalmente modulares, de trabalho intensivo, reunindo professores de uma mesma etnia ou de diversos povos. Ocorrem, normalmente,

    -

  • uma ou duas vezes por ano. Durante esses perodos presenciais, vrias outras situaes de formao so incentivadas, como estgio supervisionado, visitas de intercmbio entre professores indgenas de diferentes escolas e, ainda, momentos de pesquisa, reflexo e registro de suas atividades em sala de aula, por meio, por exemplo, de memoriais e dirios de classe.

    So iniciativas com esse perfil que tm possibilitado que um nmero crescente de professores indgenas complete sua escolarizao bsica e tenha uma formao especfica para a atuao no magistrio. E j esto em curso as primeiras experincias de formao diferenciadas, em nvel de terceiro grau, para professores indgenas, por meio de licenciaturas especficas.

    Nos ltimos anos, a temtica da formao de professores indgenas ganhou fora dentro da pauta de atuao do movimento indgena no Pas, medida que se percebe sua importncia para a transformao das escolas indgenas, de modo que elas possam cumprir um papel em favor do futuro dessas comunidades.

    Nmeros de professores indgenas no Brasil

    Em 1999, foi realizado, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) e pela Secretaria de Educao Fundamenta] (SEF) do Ministrio da Educao, o primeiro, e at agora nico, Censo Escolar Indgena, com o objetivo de coletar informaes gerais sobre as escolas, os professores e os estudantes indgenas. Os dados coletados s vieram a pblico em dezembro de 2001, e, de acordo com esse censo escolar, existem hoje em terras indgenas 1.392 escolas, onde lecionam 3.998 professores, sendo 3.059 ndios e 939 no-ndios, para 93.037 estudantes. Sendo estes os nicos dados de que dispomos, iremos us-los como indicadores de tendncias de um universo ainda pouco explorado e estudado, de modo a compor uma imagem de quem so os professores indgenas em atuao nas escolas das aldeias.

    Distribudos em praticamente todos os Estados da Fede-rao, com exceo do Piau e do Rio Grande do Norte, onde no se registram escolas indgenas, h diferenas marcantes entre as vrias regies do Brasil no que se refere origem desses professores. Em termos porcentuais, os professores no-ndios correspondem a 23,5% do total dos docentes nas escolas indgenas, sendo que os demais (76,5%) so ndios. Os professores indgenas predominam em quatro regies do Pas, a saber: Norte, com 82,7%; Nordeste, com 78,1%; Centro-Oeste, com 73,6%; e Sudeste, com 80,6%. Somente na Regio Sul que o nmero de professores no-ndios superior ao dos professores ndios: so 53,8% de no-ndios e 46,2% de ndios.

    Comparando-se esses nmeros com os dados divulgados em outro documento do MEC, o Referencial curricular nacional para as escolas indgenas, de 1998, percebemos que o nmero de professores indgenas saltou de 2.859 para 3.059 em pouco mais de um ano. Isso confirma uma tendncia crescente de que os prprios ndios esto assu-mindo as funes docentes nas escolas localizadas em terras indgenas.

    Quanto ao gnero, h uma inverso da tendncia ma-nifestada na sociedade brasileira de que as mulheres predominam no magistrio. No caso das escolas indgenas, h mais professores ndios do que professoras: os homens respondem por 65% do total, enquanto as mulheres representam 35%. Aqui tambm notamos diferenas entre as regies: enquanto nas regies Norte, Centro-Oeste e Sul predominam os homens, nas regies Nordeste e Sudeste as mulheres so em nmero mais expressivo. O predomnio masculino nas escolas indgenas se explica pela posio de prestgio que a escola ocupa na comunidade e pela valorizao daqueles que dominam a escrita e a leitura: sendo uma das instituies de contato, para ela so conduzidos preferencialmente os homens, que normalmente so os que lidam com a esfera poltica e de relacionamento com as instituies governamentais. Em comunidades que contam com uma histria de contato mais antiga, o nmero de professoras maior. o que ocorre no Nordeste, onde as mulheres representam 58% dos docentes. Em termos absolutos, o nmero de professoras indgenas tambm expressivo: so 1.069 mulheres.

  • Ainda que haja variaes significativas de um Estado para outro, h, em termos gerais, uma grande variedade nos nveis de formao dos professores e professoras indgenas no Brasil (Tabela 1).

    Tabela 1 - Distribuio de Professores Indgenas por Nvel de Formao

    Ensino Fundamental Incompleto 28,20% Ensino Fundamental Completo 24,80% Ensino Mdio com Magistrio 23,40% Ensino Mdio com Magistrio Indgena 17,60% Ensino Mdio sem Magistrio 4,50% Ensino Superior com Magistrio 1,00% Ensino Superior sem Magistrio 0,50%

    Total 100,00%

    Esses dados, ainda que referentes a 1999, indicam que mais de 50% dos professores indgenas tm como nvel mximo de formao o ensino fundamental. Com ensino mdio concludo so cerca de 43%, e, destes, teriam feito magistrio indgena 17,6%. Com ensino superior so 1,5% ou 43 professores indgenas. Evidentemente, esses nmeros so um pouco melhores hoje, inclusive pelo fato de que alguns programas de formao de professores indgenas concluram etapas e titularam professores no perodo de 1999 a 2002, como demonstram alguns dos artigos publicados no presente nmero do Em Aberto. Mesmo assim, no seu conjunto, e tomando como referncia o fato de que a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional exigir em breve que a docncia em escolas seja feita por profissionais formados em nvel superior, h muito a ser feito para que os professores indgenas concluam sua escolarizao

    bsica, recebam formao especfica para o magistrio indgena e possam ingressar em cursos de nvel superior.

    A questo da formao de professores indgenas na legislao educacional

    Se se pode dizer que h, hoje, um consenso no campo educacional indgena de que cada comunidade encontre entre seus prprios membros aqueles que se tornaro professores da escola local, pode-se afirmar com segurana que esta questo encontrou acolhida na legislao que trata da educao escolar indgena no Brasil, inclusive apresentando um elevado grau de detalhamento sobre esse tema. Ainda que brevemente, recuperemos aqui o tratamento dado por essa legislao para a formao dos professores indgenas.

    H uma produo considervel sobre a mudana de paradigma, trazida pela Constituio de 1988, no tratamento dos direitos indgenas, e, a partir dos novos direitos consagrados, uma nova legislao foi elaborada de modo a garantir aos ndios o direito a uma educao respeitosa da diversidade lingstica e cultural, presente entre os mais de 200 povos indgenas que habitam o territrio nacional.

    A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, de 1996, ao estabelecer que cabe Unio apoiar tcnica e financeiramente os sistemas de ensino para o provimento da educao intercultural s comunidades, determina que sejam criados "programas de formao de pessoal especializado, destinado educao escolar nas comunidades indgenas". Essa a primeira referncia legal necessidade de formar pessoal qualificado para atuar na educao indgena. Ainda que no limitando ou priorizando esses programas aos representantes indgenas, como constava em projetos anteriores a esta lei, esse o sentido que ela aponta.

    Isto pode ser confirmado com o texto da Lei n 10.172, de 9 de janeiro de 2001, que institui o Plano Nacional de Educao (PNE). Com efeito, nas diretrizes da modalidade de ensino da

  • educao indgena, esta lei estabelece claramente essa prioridade afirmando que a formao inicial e continuada dos professores ndios deve ocorrer em servio e concomitantemente sua prpria escolarizao. Diz o texto:

    A educao bilnge, adequada s peculiaridades culturais dos diferentes grupos, melhor atendida atravs de profes-sores ndios. preciso reconhecer que a formao inicial e continuada dos prprios ndios, enquanto professores de suas comunidades, deve ocorrer em servio e concomitantemente sua prpria escolarizao. A formao que se contempla deve capacitar os professores para a elaborao de currcu-los e programas especficos para as escolas indgenas; o en-sino bilnge, no que se refere metodologia e ensino de segundas lnguas e ao estabelecimento e uso de um sistema ortogrfico das lnguas maternas; a conduo de pesquisas de carter antropolgico visando sistematizao e incorpo-rao dos conhecimentos e saberes tradicionais das socieda-des indgenas e elaborao de materiais didtico-pedag-gicos, bilnges ou no, para uso nas escolas instaladas em suas comunidades (Brasil, 2002b, p. 31).

    Tal preceito encontra detalhamento em cinco objetivos e metas estabelecidos para essa modalidade de ensino: o PNE estabelece a profissionalizao e o reconhecimento pblico do magistrio indgena, a necessidade de se criar a categoria de professores indgenas como uma carreira especfica do magistrio, bem como a criao e manuteno de programas contnuos de formao de professores indgenas, inclusive para o ensino superior. Alm da meta 16, o PNE trata da questo da formao de professores e profissionais indgenas nas metas de nmero 15, 17, 19 e 20. Vale aqui destacar a meta de nmero 16 do PNE:

    Estabelecer e assegurar a qualidade de programas contnuos de formao sistemtica do professorado indgena, especial-mente no que diz respeito aos conhecimentos relativos aos

    processos escolares de ensino-aprendizagem, alfabetiza-o, construo coletiva de conhecimentos na escola e valorizao do patrimnio cultural da populao atendida.

    A questo da formao do professor indgena recebeu tratamento tambm na Resoluo n 3/99, do Conselho Nacional de Educao, que "fixa Diretrizes Nacionais para o funcionamento das escolas indgenas e d outras providncias". Ali, nos artigos 6o e 8o, estabeleceu-se que a "atividade docente na escola indgena ser exercida prioritariamente por professores indgenas oriundos da respectiva etnia", e que a formao desses professores dever ser especfica, realizar-se- em servio e, quando for o caso, concomitantemente com a sua prpria escolarizao.

    A Resoluo estabelece ainda que os cursos de formao de professores indgenas devem dar "nfase constituio de competncias referenciadas em conhecimentos, valores, habilidades e atitudes" (artigo 7o), que possibilitem aos professores: a) construir currculos e programas escolares, b) produzir materiais didticos prprios e c) conhecer e empregar metodologias de ensino e pesquisa. Com esses objetivos, tais programas de formao de professores indgenas devero ser promovidos pelos sistemas de ensino estaduais, a quem caber "promover a formao inicial e continuada de professores indgenas", contando com apoio tcnico e financeiro da Unio, que tambm dever "orientar, acompanhar e avaliar o desenvolvimento de aes na rea da formao inicial e continuada". Pela Resoluo, caber aos Conselhos Estaduais de Educao estabelecer critrios especficos para a criao e regularizao dos cursos de formao de professores indgenas.

    Estas determinaes podem ser analisadas como des-dobramentos do Parecer n 14/99, tambm produzido no mbito da Cmara de Educao Bsica do Conselho Nacional de Educao, que fixa diretrizes curriculares nacionais para a educao escolar indgena. Ali justifica-se a prioridade na formao de ndios das respectivas etnias, na complementao da escolarizao, na promoo da titulao desses professores, bem como na elaborao de programas diferenciados de formao. Visa-se, com isso, tornar o

  • professor indgena um "agente ativo na transformao da escola num espao verdadeiro para o exerccio da interculturalidade".

    Com esses instrumentos jurdicos ficam lanadas as bases legais e normativas sobre a formao de professores indgenas no Brasil, encontrando-se em discusso no Congresso Nacional a reviso do Estatuto do ndio, Lei n 6.001/73, que tambm deve avanar na regulamentao dessa questo. Assim, de se esperar que produzam efeito nas prticas dos sistemas de ensino no que diz respeito qualificao de seus quadros para atuarem nas escolas indgenas. Passo importante neste sentido tem sido dado por vrias organizaes de professores indgenas, pressionando os sistemas de ensino para a elaborao de propostas e programas de formao no s em nvel mdio, mas, tambm, em nvel superior.

    Referncias bibliogrficas

    BRASIL. Ministrio da Educao e do Desporto. Diretrizes para a poltica nacional de educao escolar indgena. Braslia: MEC/ SEF/Comit Nacional de Educao Escolar Indgena, 1993. (Cadernos da educao bsica. Srie Institucional).

    ____ . Referenciais para formao de professores indgenas. Braslia, 2002a.

    ____ . Referencial curricular nacional para as escolas indgenas. Braslia, 1998.

    BRASIL. Ministrio da Educao. Secretaria de Educao Fundamental. As leis e a educao escolar indgena. Braslia, 2002b. Programa Parmetros em Ao; Educao Escolar Indgena. Disponvel em: .

    D'ANGELIS, Wilmar; VEIGA, Juracilda (Org.). Leitura e escrita em escolas indgenas. Campinas: ALB: Mercado de Letras, 1997.

    GRUPIONI, Lus Donisete Benzi; VIDAL, Lux; FISCIHMANN, Roseli (Org.). Povos indgenas e tolerncia: construindo prticas de respeito e solidariedade. So Paulo: Edusp: Unesco, 2001.

    MELI, Bartolomeu. Educao indgena e alfabetizao. So Paulo: Loyola, 1979.

    RICARDO, Carlos Alberto (Ed.). Povos indgenas no Brasil: 1996-2000. So Paulo: Instituto Socioambiental, 2000.

    SILVA, Aracy Lopes da (Org.). A questo da educao indgena. So Paulo: Brasiliense: Comisso Pr-ndio-SP, 1981.

    SILVA, Aracy Lopes da; FERREIRA, Mariana Kawall (Org.). Antro-pologia, Histria e Educao: a questo indgena e a escola. So Paulo: Fapesp/Global/Mari, 2001.

    http://www.mec.gov.br/sef/indigena/materiais/Legislacaomiolo.pdf

  • pontos de vista O que pensam outros especialistas?

    Registros de Prticas de Formao

    Nietta Lindenberg Monte Mestre em Educao pela Universidade Federal Fluminense (UFF)

    e membro da Comisso Pr-ndio do Acre (CPI-AC). [email protected]

    Algumas prticas educacionais e polticas plurais

    Parte integrante de uma rede de entidades no-governa-mentais, formada no perodo nebuloso da ditadura militar brasileira, a Comisso Pr-ndio do Acre (CPI-AC) protagonizou amplos processos de luta poltica para a reordenao dos espaos territoriais e das fronteiras culturais que separam e unem as sociedades indgenas e as sociedades nacionais. Para isto, ajudou a inscrever no Estado brasileiro, por meio de um novo conjunto de textos legais, o conceito jurdico de terras indgenas e de educao intercultural e bilnge.

    Assim, se na luta pelos direitos sociais e por novas prticas polticas plurais formulou-se o conceito de Terra Indgena como parte diferenciada do conjunto territorial nacional, a dimenso identitria destes processos resultou em terreno demarcado: a educao intercultural. Considerada um campo de luta entre identidades hegemnicas e identidades subalternizadas, territrio contestado dentro da educao nacional, a educao intercultural desencadeou uma poltica cultural e lingstica entre as sociedades indgenas na interao com instituies formadoras e de apoio e setores da sociedade brasileira e internacional.

    No caso do Acre, as novas formas de territorialidade locais e de identidades lingsticas e culturais se materializaram com a demarcao de 28 terras indgenas e com a implantao de uma centena de escolas da floresta. Estas praticam proposta pedaggica e curricular prpria, num terreno de luta e conflito com os currculos hegemnicos das escolas urbanas e rurais do Pas. Seus programas de formao de professores esto integrados s atuais polticas educacionais dirigidas populao indgena, o que resultou em transformaes pedaggicas e organizacionais nas prticas iniciais da escola intercultural e bilnge nessa regio e em todo o Pas: de seu carter comunitrio e civil, dos primeiros anos na dcada de 80, sua progressiva regulamentao, regulao e controle pelo Estado brasileiro, ainda que sob a bandeira poltica e o amparo legal da diversidade pedaggica, curricular e lingstico-cultural.

    mailto:[email protected]

  • E quem so, ento, os professores indgenas dessas escolas? No Acre, hoje, so quase 140 jovens e adultos, entre 18 e 50 anos, na sua maioria do sexo masculino, membros de 13 das diversas etnias locais, falantes e escritores, em geral, da lngua indgena, seja como primeira ou segunda lngua (a depender da situao sociolingstica de sua comunidade). Eles vm obtendo sua formao bsica e profissional, de nvel mdio, junto ao Programa de Magistrio Intercultural da CPI-AC, desde 1983, com a gradual participao de recursos federais e estaduais, e com perspectiva de continuidade em nvel superior.1 Nesses cursos, vm sendo capacitados para formulao e prtica de currculos interculturais e bilnges e para a produo cultural de novos materiais educativos, assegurados hoje por uma nova legislao educacional.2

    A autoria revisitada

    Se conceitos e prticas de educao intercultural e ambiental vm se tornando cada vez mais presentes ao longo do continente, em nvel local, agregou-se a "autoria indgena"3 ao princpio poltico da "autodeterminao".

    1 No ano de 2001, teve incio o primeiro curso universitrio, no Brasil, de Educao Intercultural, na Universidade Estadual de Mato Grosso, destinado a 180 professo res indgenas do prprio Estado e com vinte vagas para professores indgenas de outras regies do Pas. Trs professores indgenas do Acre foram selecionados.

    2 Diversos textos foram formulados, incluindo a questo da educao escolar indge na, desde a Constituio Federal (1988), a Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (1996), o Referencial Curricular Nacional para Escolas Indgenas (1998) e a Resoluo do Conselho Nacional de Educao (1999), para citar alguns dos docu mentos normativos mais significativos em nvel federal.

    3 O projeto de educao aqui descrito foi denominado, desde 1983, de "Uma Experi ncia de Autoria", expresso que quis significar uma concepo poltica e pedag gica. Refletia a idia de serem os jovens professores e seus alunos os novos sujeitos dos processos educacionais e culturais que se desencadeariam a partir da escola, alm de produtores e difusores de uma nova esttica e literatura indgena a ela relacionada, por meio da elaborao dos livros e outros materiais, que se incentiva ria desde o primeiro curso de formao de professores. Mais detalhamento sobre este conceito se encontra em Monte (1993, 1996c).

    A autoria tem sido realizada e difundida pelos professores e seus alunos em prticas de uso das linguagens verbais, plsticas, audiovisuais, de lnguas indgenas e o portugus, nos cursos de formao e no cotidiano da aldeia.

    Desta maneira, os atores educacionais tm sido autores de produtos culturais que ganham, principalmente, a forma de textos escritos, ilustrados pelo desenho figurativo ou geomtrico sobre o papel, considerado o valor que a chegada da escrita tem nessas sociedades indgenas do Acre de letramento recente (Monte, 1996c, 1998; Gavazzi, 1996).

    A produo desses textos tem grande importncia na proposta curricular da formao. Resulta, em grande parte, das atividades dos professores com seus alunos, de estudos sobre temticas interculturais de interesse, publicados como livros de pequena tiragem e outros materiais (folders, cartazes, calendrios, jornais, revistas, etc.) para as escolas da floresta. Tais produtos passam a compor novos significados para as reas de estudo de seu currculo escolar.

    Entre estes materiais, muita importncia tem sido conferida narrao histrica dos "tempos da maloca" ou "dos antepassados", obtidas atravs da atividade de investigao oral junto aos velhos, mestres da tradio, resultando na recompilao de mitologia e cantos. Forma-se, assim, uma gerao de intelectuais indgenas, socialmente legitimados para a recriao da histria e interpretao contnua de aspectos da tradio. Uma extensa bibliografia de narrativas histricas atuais e "dos antigos", cantos rituais e depoimentos orais sobre as prticas culturais foram colhidos da tradio oral, elaborados pelos professores como texto e editados pelo projeto da CPI-AC. Estas edies fazem parte de uma poltica cultural e de apoio ao currculo das escolas, o que exemplificado por alguns ttulos: Estrias de hoje e de antigamente dos ndios do Acre (Monte, 1984); Nuku mimawa: cantos Kaxinaw (Kaxinaw, Ib, 1995); Shenipabu miyui: histria dos antigos (Kaxinaw, Monte, 2000); Histria indgena (Piedrafita, Ochoa, 1997), etc.

    Tais produtos, frutos de estudos e levantamentos seleci-onados de sua cultura tradicional, com a utilizao da tecnologia de gravadores e tcnicas de transcrio da modalidade oral da lngua

  • para a escrita, tm tido o status de boa e importante "literatura" por parte dos prprios leitores e escritores, tendo composto no s seu currculo escolar, como o de outros leitores no-indgenas, difundidos dentro e fora da aldeia.4

    Os escritores indgenas produzem tambm a memria cotidiana de prticas sociais e culturais vividas atualmente, como parte de sua vida profissional: pescarias, caadas, festas de batismo e de preparao dos ciclos agrcolas, a produo para auto-susten-tao e comrcio, aes de sade e educao. Estas prticas vm sendo documentadas em cadernos especialmente destinados ao registro dirio, dando sentido social ao uso da escrita alfabtica e numrica e ao desenho figurativo sobre o papel. Monta-se, assim, o acervo de uma literatura escrita domstica e familiar, ao mesmo tempo de carter profissional (que estarei analisando mais adiante), denominada "dirios de trabalho", na linha j desenvolvida pelos "dirios de classe" de professores estudados em outros ensaios.5

    H, ainda, uma outra srie de documentos de carter prag-mtico, comunitrio e poltico, escritos de forma cada vez mais freqente, como cartas, projetos, abaixo-assinados e ofcios, que vm cumprindo funes comunicativas amplas, como solicitar apoio financeiro ou materiais de trabalho, comunicar e denunciar problemas, reclamar solues, etc. Estes documentos so considerados, junto aos dirios,

    4 No ano de 2000, a Universidade Federal de Minas Gerais editou para o vestibular de seus candidatos uma das obras, o Shenipabu miyui: histria dos antigos (Kaxinaw, Monte, 2000), que foi classificado como parte do acervo de literatura brasileira junto a outros livros consagrados da literatura nacional. O livro j se encontra em sua 3a edio.

    5 Em trabalho anterior, reuni e analisei os dirios de trs professores Kaxinaw, escritos em 1991, que resultaram em dissertao de mestrado -Escolas da floresta -, na qual esses dirios puderam ser lidos como representao do cotidiano das escolas indgenas e como composio discursiva de texto e imagens. Nos dias atuais, aps 18 anos de escola indgena, tais textos vm sofrendo algumas transformaes no tipo de narrativas elaboradas, apoiadas em modelos mais estruturados ou roteiros mais comuns de observao e registro, mas mantm-se bastante heterogneos entre si e ricos em informaes etnogrficas sobre o cotidiano da escola e da vida do professor na floresta.

    imprescindveis para as relaes de carter intercultural com as insti-tuies relacionadas com a vida social e com a profisso.

    Tal produo lingstica e cultural, de sentido tambm poltico, vem sendo complementada pelo uso de outras linguagens, eletrnicas e audiovisuais, usadas para registros histricos de temas selecionados, roteirizados, filmados e montados por seus autores. Narrativas etnogrficas so captadas do cotidiano das aldeias pela cmera de vdeo. So festas tradicionais, encontros e reunies, viagens, cursos, etc, que formam uma nova srie de produtos culturais em lnguas indgenas, com apoio na imagem, para finalidade de documentao, interpretao e difuso de sua cultura nos dias de hoje.

    Outras narrativas so formuladas por linguagem plstica, a partir de fragmentos das histrias dos antepassados e dos mitos de origem, e ganham a inovadora forma de esculturas de quase dois metros de altura ou de mesas e bancos esculpidos em madeira reutilizada, aproveitada dos roados. So expresses culturais de marca tnica, s quais se agrega valor econmico, cultural e espiritual.

    O marco comum das prticas de formao profissional

    Recupero, mais detalhadamente, o fio que relaciona esse conjunto de prticas lingsticas e culturais com a formao de professores indgenas, pensando especificidades e pontos de contato com outras prticas de formao profissional em diversas sociedades. Tomo um desses produtos culturais para anlise de processos de formao profissional: os dirios de trabalho indgenas. Est em jogo, por meio da escrita e leitura desses dirios, um novo conhecimento profissional, articulando pensamento e ao, teoria e prtica, denominado na literatura educacional do Norte de prticas reflexivas (Schn, 1992a, 1992b; Nvoa, 1992, 1993; Gomez, 1992; Garcia, 1992, etc). Conceito defendido amplamente em outros contextos da educao, sob o qual vm sendo abrigadas propostas e prticas muitas vezes dspares, transformou-se em

    referencial orientador para a formao de professores das redes pblicas nacionais.

  • Independentemente de sua difuso recente em meios acadmicos e em polticas pblicas do Ministrio da Educao (por exemplo, Brasil, 1998a e 1998b), tais prticas reflexivas tornaram-se um foco importante do currculo de formao dos profissionais indgenas nos 18 anos do programa educacional da CPI-AC, ocupando uma posio de destaque nas propostas do Magistrio Indgena Intercultural (Monte, 1999c e 2000b), pelo carter de "formao em servio" desses profissionais. Elas tambm integram a modalidade do currculo de formao denominada de "no-presencial", com carga horria constituda por mais da metade do conjunto das demais. Esta etapa de campo engloba, alm do registro das atividades de trabalho em dirios, as pesquisas realizadas, as visitas de intercmbio entre as aldeias e as assessorias recebidas durante o ano para acompanhamento tcnico e pedaggico.

    Ora, se a modalidade presencial se passa em um setting* formal de natureza essencialmente intercultural, onde os diversos professores interagem, se confrontam e se articulam em suas variadas lnguas, saberes oriundos de prticas em contextos socioculturais diversos, a modalidade no-presencial ocorre nas terras indgenas, no cotidiano da vida produtiva, social, no contexto da cultura familiar e comunitria. Ali, enquanto desenvolvem a profisso, pensam o seu fazer a partir de seu saber cultural e o de outros, geralmente sua comunidade, e, extraordinariamente, de assessores ou visitantes. Em seguida, os professores trazem para as situaes de formao esses registros do saber acumulado na experincia de seu cotidiano, de forma a articular prtica e teoria, conhecimento pessoal e conhecimento coletivo, saber cultural e saber intercultural, que so mais uma vez modificados e ampliados ao serem comunicados aos outros, iguais e diferentes, docentes e colegas de outras aldeias e etnias.

    E, como a escrita est representada como um bem e valor do contato bastante almejado, a produo permanente dos registros escritos dirios ganha um papel social e pedaggico para esses

    Os cursos ocorrem na Escola de Formao dos Povos da Floresta, na cidade de Rio Branco, capital do Acre, rea rural de 26 hectares de propriedade da entidade CP1-AC.

    sujeitos, que, diferentes de "analfabetos", pertencem a sociedades at recentemente de tradio exclusivamente oral.7 Tal prtica funciona como recurso memria oral dos eventos cotidianos e instrumento de comunicao com os outros, alm de seu potencial para a reflexo sobre prticas vividas ou projetadas. Esses textos trazem informaes sobre aspectos diversos e comuns do cotidiano, para leitura e discusso de outros atores envolvidos na formao profissional, fazendo que reflitam sobre os problemas e solues dadas, objetivando a compreenso e o aprimoramento da prpria prtica a partir das reflexes compartidas no dilogo intercultural.

    Os dirios indgenas assumem, assim, finalidades singu-lares, distintas daquelas que os padronizam na rede pblica de ensino ou em situaes de trabalho de uma realidade social letrada, como se pode constatar em outros estudos (Zabalza, 1991; Holly, 1992). Considerando o processo ainda recente de aquisio social da lngua escrita, significativo o esforo intelectual implicado na utilizao de dispositivos expressivos e cognitivos de outras culturas e lnguas: no caso, a lngua portuguesa, em sua modalidade escrita, alm de recursos como desenhos figurativos sobre o suporte caderno, de apoio semitico comunicao. Eles vm, portanto, servindo como um mecanismo para o aprendizado autnomo de uma segunda lngua, fora de situaes de ensino formalizadas, uma vez que o dirio escrito e lido geralmente em portugus, devido sua funo comunicativa em contextos interculturais.

    Ainda que os modos de sua estruturao como linguagem possam estar sofrendo mudanas significativas, os dirios so

    7 As categorias utilizadas neste trabalho - sociedade grafa ou de tradio oral -, aplicadas de forma genrica aos grupos indgenas do Acre, no significam que eu desconhea e/ou desvalorize outros sistemas de "escritura", mais prximos da representao pictogrfica e ideogrfica, como os encontrados at hoje na sua pintura geomtrica facial e sobre os artefatos de sua cultura material. Portanto, com o uso da expresso "sociedade grafa", refiro-me quelas sociedades caracterizadas por um determinado desconhecimento histrico, social e individual do sistema de representao fontica da lngua oral, ou seja, da "escrita alfabtica", do qual hoje vm se apropriando, sobretudo, por meio da escola.

  • ainda um momento de uma escrita inicial de grande interseo com modos orais de narrao, com base forte nas frmulas e listas e nas imagens, conforme j analisado detidamente em trabalho anterior (Monte, 1996b). Sua estruturao como discurso se caracteriza, em grande parte dos casos, pela nfase narrativa num evento ocorrido ou a ocorrer, selecionado por aspectos considerados relevantes. s ve-zes, um dirio pode ter um lado da pgina como exame retrospectivo da ao e, em seguida, na outra pgina, o exame prospectivo da ao a ser experimentada. A eles podem estar adicionadas informaes mais analticas, pontuando os eventos narrados por informaes sobre o que pensa, sente e sabe o autor acerca de suas prticas profissionais e o contexto onde elas se desenvolvem.

    Os dirios de trabalho de professores

    Detalho, a seguir, essas prticas profissionais refleti-das pelos dirios de professores, entendidos como um importante fio comum de proposta pedaggica que rene essa categoria social em sua natureza de intelectuais reflexivos e em seu potencial de atuao e transformao da realidade.

    Os dirios de professores indgenas so escritos ao longo de cada ano nas aldeias e trazidos nas ocasies dos cursos de formao, para leitura sistemtica e didaticamente organizada de outros professores das escolas da floresta, assim como de seus assessores e formadores. Dedicam-se aos dirios desde 1991, usando um largo tempo ao longo do ano, definido como parte do currculo de sua formao na etapa "no-presencial". As atividades de sua produo escrita, que podem representar algumas horas semanais, so complementadas na etapa presencial por atividades de leitura coletiva nos cursos da cidade, especialmente na unidade de estudo de seu currculo denominada Prtica Reflexiva, dentro da rea de Pedagogia.

    Os professores indgenas usam os dirios para registro escrito de seu cotidiano, no que ele tem de rotina e de surpresa, e para

    o exame a posterior da prtica vivida por eles mesmos e por outros. Podem conter informaes sobre a organizao e o uso do tempo, o perfil de alunos, seu agrupamento por nveis e faixas etrias: os dias em que o professor deu aula e os dias em que no deu, o nmero e os nomes dos alunos presentes e dos que faltaram e as razes para tal, a situao da escola, as aulas dadas, o uso das lnguas indgenas e portu-guesa para a transmisso dos contedos, as matrias e contedos sele-cionados, seja do currculo "oficial" ou do currculo intercultural, os saberes construdos em processos de pesquisa pelos prprios profes-sores e alunos, as estratgias de ensino e tipos de atividades desenvol-vidas, os dispositivos de avaliao dos processos de aprendizagem. Contm ainda informaes e comentrios sobre as pesquisas feitas, as dificuldades experimentadas por alunos e professor, as solues conseguidas, os problemas de aprendizagem de determinados conte-dos, assim como as visitas recebidas na aldeia, as assessorias de mem-bros das instituies de apoio, sua participao em festas tradicionais, caadas, pescarias, aberturas de estradas e caminhos, viagens a cida-des para receber salrios e fazer contatos polticos, participar de elei-es, cursos de formao, intercmbios com outros projetos, etc. As-sim, nos dirios, podem ser relatados tipos diversos de informaes e uma variedade de notcias sobre a prtica do professor, desde as mais administrativas e organizacionais s mais pedaggicas e polticas, as-sim como comentrios, crenas implcitas ou explcitas sobre a funo social da escola e do professor, o papel que desempenha na transfor-mao das condies da vida social, enfim, as idias e os dilemas que aparecem ou se escondem dentro do texto sobre a prtica.

    Os "dirios de classe" cumprem, pois, importante fun-o social junto a seus colegas professores de outras etnias e s instituies de apoio, subvertendo a sua tradicional natureza buro-crtica quando usados em contextos institucionais pblicos. De do-cumentos administrativos, destinados normalmente regulao e ao controle externo do Estado e suas instituies educacionais, esses documentos indgenas operam nestes casos como instrumentos no s informativos, numa perspectiva qualitativa, como formadores para seus autores e leitores.

  • Refletindo mais um pouco sobre a prtica dos dirios

    Recorrem os autores desses documentos a mecanismos discursivos que pem em relao linguagem e memria: eventos vividos so registrados, ganham novos significados em documentos escritos, compondo fragmentos selecionados das histrias cotidianas de trabalho, que so transmitidos aos demais atores educacionais e s geraes seguintes por meio de elementos narrativos.

    Os dirios esto, portanto, estruturados como unidades narrativas, com sua referncia direta aos fatos vividos num tempo delimitado, onde o autor o narrador, quase invariavelmente na primeira pessoa, assim como o principal protagonista dos fatos narrados. Pode-se, aqui, entender o conceito de narrativas como "prticas discursivas (...) que trazem implcitas uma histria, encadeiam os eventos no tempo, descrevem e posicionam personagens e atores, estabelecem um cenrio, organizam os fatos num enredo ou trama" (Silva, 1995). As narrativas do professor, contadas aps ou anteriormente sua ao, constituem, em sua grande maioria, tambm exemplos de vrios momentos de sua reflexo. Alm de histrias, essas narrativas contam dos significados atribudos ao mundo do trabalho como parte da vida social mais ampla, como o lugar que o narrador-ator ocupa e quer ocupar, junto aos outros, no mundo social.

    Assim, cruzam-se nos dirios momentos e nveis diversos de registro escrito do cotidiano, em forma de unidades narrativas e descritivas das aes escolares ou comunitrias relacionadas com a vida profissional, comunicadas para outros em sua dimenso social.

    Os textos que compem os dirios de trabalho so, portanto, entendidos como parte dos percursos pessoais e profissionais de membros de sociedades indgenas onde seus pensamentos operam e recuperam, durante sua elaborao escrita, pelo menos quatro nveis de reflexo j estudados na literatura educacional: o conhecimento-na-ao, a reflexo-na-ao, a reflexo-sobre-ao e a reflexo sobre a reflexo-na-ao (Schn, 1992a).

    O conhecimento-na-ao

    Um primeiro nvel se refere ao registro de aspectos do

    conhecimento-na-ao. Este foi definido como um saber espontneo internalizado, relacionado com crenas muitas vezes implcitas, orientadoras de boa parte das atividades dos atores e que lhes regulam o curso da ao narrada de forma inconsciente e mecnica - o conceito de habitus (Bourdieu, 1988) pode servir bem para o aprofundamento desse nvel reflexivo.

    O registro do conhecimento-na-ao bastante comum no conjunto dos dirios indgenas analisados, exemplificando uma unidade narrativa mais simples que as demais, colada narrao do acontecimento. "E um conhecimento no problemtico, instintivo, intuitivo, que flui na ao" (Moreira, 1999). Por este mecanismo, os membros das sociedades indgenas realizam a operao de memorizar e informar sobre eventos significativos do mundo do trabalho, com pequena reflexividade manifesta no discurso escrito.

    Ao mesmo tempo, tomados como objetos de leitura e anlise neste estudo e em outros, os registros desse tipo de conhecimento tcito e crenas implcitas s aes do pistas para que, numa operao reflexiva a posteriori, o prprio autor (ou outros), na posio do leitor crtico, possa trazer essas aes para seu exame e para o entendimento consciente. Podem revelar idias e crenas de atores que transitam em contextos interculturais e, portanto, entre universos sociais e culturais diversos. No sem conflito, representam a continuidade ou colocam em contraste a cultura indgena tradicional e os saberes adquiridos nas aes educacionais formais de cursos e/ou no cotidiano de sua socializao fami-liar e comunitria.

    A seguir, apresento alguns dos dirios recolhidos do conjunto, escritos nos anos de 1999 e 2000. para a descrio no texto desta operao discursiva. Aqui, a reflexo a posteriori ser feita no pelo autor indgena, que se expressa como narrador de eventos no tempo, mas, na leitura dos dirios, pela intrprete:

  • A aula deu incio s 7 horas e foi aula de Geografia. Primeiro eu comecei falando sobre que a Geografia e fui mostrando os desenhos que tem no Atlas Geogrfico Indgena do Acre. Depois eu levei os alunos para o meio do campo de futebol e mostrei a eles tudo o que tem em volta e depois voltamos para a escola.

    Quando chegamos, eu pedi para eles fazerem um desenho, primeiro do campo, e depois de tudo que tem em volta do campo: casa, cacimba e fruteira. Depois que tudo estava feito, recolhi todos eles e preguei na parede da escola. Foi essa a aula de hoje (professor Valdete Bebito Asheninka).

    No caso do professor, a aula de Geografia foi registrada em seqncia narrativa bem estruturada ("primeiro"... "depois"... "depois...") at seu fecho ("Foi esta a aula de hoje"). Tal unidade esconde e revela seus conhecimentos implcitos. A escolha de um contedo da geografia, a cartografia da aldeia, foi ensinada, usando-se metodologias da representao cartogrfica de base indutiva: uma seqncia de atividades foi desencadeada para garantir a aprendizagem. Primeiro a observao do espao vivido, articulado experincia cotidiana, mediada pelo professor, depois a representao grfica espontnea e autnoma dos alunos, seguida da exposio dos trabalhos para a intercomunicao entre os alunos, sem a mediao do professor.

    Um saber profissional foi assim mobilizado pelo professor recorrendo ao seu conhecimento e sua crena em estratgias de observao e registro da experincia individual e coletiva. Saber que foi depois comunicado observao da mesma coletividade (ao ser pendurado na parede), o que parece indicar estilos de uma pedagogia intercultural, em continuidade com a cultura indgena Asheninka e outras j analisadas (Bertely, 2000): privilegia-se a aprendizagem observacional e o uso de atividades simultneas e paralelas, mais ou menos autnomas em relao ao professor.

    A reflexo-na-ao

    Um segundo nvel de discurso registra fragmentos de reflexo-na-ao, em que professores do significados e tomam decises no curso das aes cotidianas, fazem escolhas conscientes relativas ao seu trabalho e as transformam em elementos enriquecidos da unidade narrativa. Funcionam como narrativa de um pensamento, contendo consideraes reflexivas extradas da prtica. So assim trazidos tona mais tarde pelo ator, tornado autor, na formulao do texto para explicar ou tecer consideraes sobre suas escolhas, para si mesmo e para outros.

    Estes sentidos dados na ao, "numa reflexo efmera, que emerge e desaparece rapidamente, dando lugar a outro novo evento" (Moreira, 1999), passam a estar presentes nos dirios, quando os autores descrevem e narram acontecimentos vividos. Mas, diferentemente do nvel anterior, formulam por escrito os pensamentos desenvolvidos no percurso da ao. Acredito que h a, nesse caso, uma operao verbal de traduo intercultural, portanto, duplamente reflexiva: exige pr em prtica conhecimentos de uma lngua para outra. Se o pensamento feito na ao foi provavelmente estruturado por conceitos em lngua materna, ao tornar-se dirio, foi transformado em discurso escrito em uma segunda lngua.

    Nos dirios selecionados, os professores descrevem, a posteriori, seu percurso reflexivo na ao, considerando suas escolhas, com o exame, antes ou durante o curso do acontecimento narrado, das condies de trabalho. E explicitam idias, sentimentos e crenas em que basearam suas decises: "Eu pensei assim", "ento foi que eu pensei", "eu achei melhor", e "eu achei importante" so marcas do discurso narrativo com elementos reflexivos explcitos.

    Hoje eu trabalhei com a aula de arte indgena, mas antes disso, eu tinha planejado uma aula de matemtica para os alunos. Mas, quando eu cheguei na escola tive de ficar com a minha turma e a turma do professor Chagas, ento foi que eu pensei que todas as crianas tinham que conhecer um pouco

  • da arte indgena, conhecendo o prprio desenho de pintura Kaxinaw. Depois, de acordo com o desenho, fiz uma peque-na atividade para todos trabalharem em casa (professor Fran-cisco Clio Maru Kaxinaw, 2000).

    Eu planejei o meu trabalho juntamente com os meus alunos. Eu pensei assim: cada semana eu trabalho com uma matria diferente, porque eu achei melhor trabalhar dessa maneira. Assim ajuda muito com as crianas, e no confunde muito elas e nem o professor se confunde. Quando eu trabalho s com uma matria por semana, fica mais fcil de trabalhar... (professor Komyari Asheninka).

    Os dois professores operam suas reflexes na ao, re-organizando estratgias da aula, uma vez examinadas as condies de seu trabalho, nas escolhas que podem fazer, quotidianamente, nas fronteiras de seu currculo intercultural: no primeiro caso, mudam os objetivos de ensino e, no segundo, a organizao do currculo em relao ao tempo dedicado a cada matria.

    Opta o professor Kaxinaw por trabalhar a pintura tra-dicional no currculo, refletindo que todas as crianas Unham que conhecer um pouco da arte indgena, conhecendo o prprio desenho de pintura Kaxinaw. Substitui a aula de Matemtica planejada, de forma a trazer conhecimentos necessrios para a formao bsica comum dos seus alunos, com base na cultura tradicional, independentemente da heterogeneidade de sua nova turma. Por outro, exercita estilos de socializao no centralizada no professor, mas por ele controlada, com atendimento aos nveis diversos, com seus alunos e com os do professor Chagas, provocando atividades heterogneas e coordenadas em torno a uma tarefa comum (Bertely, 2000).

    No segundo registro, o professor formula um pensamento no curso da narrao: eu pensei assim. Opta por reorientar, a partir de suas dificuldades e as de seus alunos, o currculo de sua escola, modificando a relao entre as matrias, os dias da semana e a carga horria, numa reao ativa s condies de trabalho

    anteriores. Estas condies, em sua explicao, foram caracterizadas por um conhecimento fragmentado, recortado pelas disciplinas, o que implicava relaes de ensino-aprendizagem insatisfatrias para ambos, professor e alunos.

    Podem os dirios indicar tambm uma reflexo, feita pelo narrador, de ordem tica ("da verdade"), explicitando, portanto, uma crena, formulada como objetivo de aprendizagem e como contedo de ensino no decurso da ao curricular. Repare-se o exemplo a seguir:

    Dia 19/10/00, quinta-feira - Eu dei aula de Estudos Sociais com o objetivo de ensinar a diferena do ndio com o no-ndio. Expliquei tudo o que era ser um ndio de verdade, e como somos ainda hoje. Eu disse ainda que os ndios de an-tigamente no eram diferentes de ns at hoje (professor Fran-cisco Celio Kaxinaw).

    No caso, a reflexo-na-ao do professor (socializada aos alunos) constituda pelas duas idias formuladas de forma relacionai - entre eles mesmos em relao aos outros, e entre o presente e o passado. Estas pem em ao, pela linguagem verbal, novas representaes das identidades sociais, carregadas de um novo sentimento de orgulho e valor, selecionadas como parte do currculo intercultural. A continuidade cultural em relao ao passado e a diferena positiva com relao aos no-ndios passam a ser contedos dessas novas narrativas curriculares formuladas pelos novos atores/autores da escola indgena no curso da ao.

    A pesquisa-na-ao

    H outros tipos de dirios que relatam momentos de reflexo de outra natureza, formulados como "pesquisas", relacionadas com a prtica de estudos dos professores, de maior ou menor flego, no desenvolvimento de seu trabalho.

  • A aula de hoje foi cincia, o assunto, meio ambiente e ecolo-gia. Num primeiro momento pedi que escrevessem um texto sobre o que entendessem da palavra meio ambiente. Em se-guida passamos a trabalhar na cartilha Caderno de Pesquisa feita pelos agentes agroflorestais. Trabalhamos no levanta-mento dos legumes, onde cada um dos alunos ficou de fazer novos levantamentos do que c ainda plantado cm sua comu-nidade (professor Joaquim Man Kaxinaw).

    O registro da aula de Cincias do professor ocorreu na interface entre escola e meio ambiente, e entre dois trabalhos profissionais relacionados - professores e agroflorestais. O professor prope um plano de continuidade do tpico da aula com a pesquisa a ser feita pelos alunos, dando continuidade, por sua vez, aos levantamentos feitos pelos agroflorestais dos alimentos cultivados em cada comunidade, j editados no livro didtico Caderno de pesquisa (Idiazabal, Gavazzi, 2000).

    A reflexo-sobre-a-ao

    H, ainda, um outro nvel de operao discursiva, a reflexo-sobre-a ao (Schn, 1992), que todo dirio implica, por sua natureza de texto escrito. Todos os enunciados, mesmo aqueles que no explicitam opinio, sentimento e pensamento, como o primeiro nvel de conhecimento-na-ao apresentado anteriormente, podem ser considerados operaes reflexivas a respeito das aes. Ao formularem, pela linguagem e em lngua escrita, eventos, aes vividas e projetadas, os sujeitos que as narram podem identificar, analisar, formular para si e para outros, enfim, comunicar questes no explicitadas no curso da prtica. Desta forma, podem tambm identificar elementos para sua transformao e ampliao, alimentando novamente a prtica pessoal e coletiva.

    Assim, alm de sua inerente dimenso reflexiva, podem ser encontradas nos dirios diversas operaes de reflexo-sobre-ao,

    escritas antes ou depois da prtica: seja como uma antecipao refletida da ao, seja como pensamento que se formula na recuperao da ao depois de ocorrida.

    E muito comum o texto do dirio servir para descries, em tempo futuro, dos eventos em forma de planejamentos. Estes so incentivados como parte das tarefas de estudo, antes de executarem o trabalho, como importante aspecto do seu desenvolvimento profissional. Enunciam tambm concepes polticas sobre a responsabilidade do professor e do agro, integrada sua atividade profissional vida social e a uma funo pblica mais ampla.

    Antes de comear as aulas, vou conversar com as crianas c explicar como vamos estudar este ano. A aula vai comear no dia 11 de setembro e os dias da semana que vou trabalhar sero: segunda-feira, tera-feira e quarta-feira. As matrias que vou trabalhar sero: Lngua Indgena (LI), Lngua Portu-guesa (LP), Matemtica, cantigas e brincadeiras. Tambm vou estar sempre junto com a liderana da comunidade para aju-dar na melhoria da aldeia (professor Komyari Asheninka, 2000).

    Pode-se ler uma outra srie de consideraes reflexivas sobre as precrias condies do trabalho, a partir do evento aula relatado: as dificuldades relacionadas com as estratgias didticas de classes multisseriadas, ou a desarticulao entre o tempo da escola e o tempo dos alunos, trabalhadores da agricultura, alm de apontarem como outro fator adverso ao tempo da escola o tempo das grandes chuvas. Estas constataes sobre as problemticas enfrentadas so narradas, ao mesmo tempo, a partir do esforo ativo do professor para solucionar ou superar, pela ao criativa, as condies difceis apresentadas como obstculo a seu trabalho:

    A aula da lngua portuguesa para os alunos que j sabem ler e escrever onde eu pedi para eles escreverem um texto, o

  • texto seria lido por outro aluno. Esse texto tinha trs finali-dades: ver se ainda tem problema de ortografia e escrever para outro entender; para os iniciantes da alfabetizao foi a leitura (rabisco) das letras a, e, i, o, u [como to difcil tra-balhar com 3 classes na mesma sala, pequena c num quadro pequeno) por isso tento criar algumas atividades para cada classe. (...)

    Hoje foi o ltimo dia de aula do ano, por deciso dos alunos. Motivo de muitos trabalhos para fazer: pastorear o arroz que est encacheando no roado, para as granas e os curis no comerem. Desde outubro houve muitas faltas dos alunos, que no puderam, participar das aulas em todos os dias marca-dos, por ser tempo de final de servio e incio de inverno, com as enchentes (professor Joaquim Man Kaxinaw).

    A reflexo sobre a reflexo-na-ao

    O ltimo nvel de conhecimento que os dirios podem favorecer foi denominado na literatura educacional voltada formao profissional de reflexo sobre a reflexo-na-ao. "Refletir sobre a reflexo-na-ao uma ao, uma observao e uma descrio, que exige [tambm] o uso de palavras" (Schn, 1992b, p. 83).

    Estendo aqui, neste trabalho, os conceitos formulados ao conjunto de atividades implicadas na leitura analtica dos dirios de trabalho (e, claro, de outros tipos de documentos reflexivos sobre as prticas profissionais). Refiro-me aqui s operaes de leitura e interpretao das aes e reflexes contidas nesses documentos, a partir de categorias formuladas para a anlise na interao educacional com outros saberes vindos da teoria e do saber de outros, o que possibilita uma perspectiva crtica dos aspectos observados, dos significados atribudos, abrindo possibilidades para os autores reverem seus pensamentos, sentimentos, valores tcitos ou explcitos e transformarem seu repertrio de alternativas e enriquecerem suas aes.

    Esta "meta-reflexo", em contexto intercultural como o aqui analisado, mais um dispositivo de formao profissional. Serve para o prprio autor refletir a posteriori sobre a reflexo-na-ao ou sobre a ao por ele experimentada, ou pode possibilitar a reflexo dos docentes e formadores que atuam em sua formao, abrindo interessantes caminhos ao dilogo e pesquisa-em-ao intercultural sobre os dirios.

    Toma-se assim, especialmente, a perspectiva dos atores no-indgenas envolvidos nas relaes pedaggicas interculturais, de forma a ilustrar o potencial dos dirios quando usados nas situaes de formao de "profissionais reflexivos". Amplia-se esta ltima categoria dos professores indgenas aos professores no-indgenas, em seus diferentes papis, de formadores e de pesquisadores. Toma-se como matria-prima a prtica documentada em narrativas dirias de profissionais indgenas em formao e, como objetivo, o aprimoramento e a transformao das prticas de uns e de outros.

    E certamente bvio, mas nunca demais lembrar, que a (trans)formao de atores em autores, leitores e profissionais reflexivos (e pesquisadores-em-ao) exige, especialmente dos formadores, capacidades de leitura intercultural. Para tal, devem poder relativizar suas prprias posies e concepes, normalmente arraigadas culturalmente, sobre o fazer e o saber do outro, o que implica a investigao disciplinada e reflexiva sobre as prticas desses "outros" profissionais e das reflexes que as fundamentam, para a identificao e anlise dos aspectos problemticos e contraditrios de suas prprias prticas de formadores a serem constantemente desafiados e superados nas relaes interculturais.

    Algumas estratgias e orientaes para a leitura e pesquisa-em-ao dos formadores, a partir dos dirios, tm sido desenvolvidas pelas equipes junto aos professores, obtendo-se alguns resultados provisrios. Sobre tais estratgias de leitura e pesquisa, e sobre alguns dos processos de sistematizao j desencadeados a respeito dos dirios, volto-me doravante, de forma a concluir este estudo.

  • Fragmentos de documentos institucionais da CPI-AC so apresentados para complementar a amostra dos nveis de reflexo desencadeados pela escrita e leitura dos dirios.

    Trata-se de um trecho de relatrio da unidade curricular de Pedagogia do XX Curso de Formao de Professores Indgenas do Acre (Monte, 1999). O objetivo geral do curso de Pedagogia foi (como tem sido) ajudar a transformar em conhecimento curricular e pedaggico organizado, significativo e aplicvel pratica, as idias j desenvolvidas pelos professores indgenas ao longo dos anos sobre sua atuao - o que fazem, como fazem, como acham que podem fazer melhor - , ampliando as experincias de ensino que vm vivenciando para uma ao mais qua-lificada e consciente. O ponto central de discusso pedaggica naquele ano foi a reflexo sobre as prticas de avaliao escolar e seus fundamentos, a partir do estudo de casos de situaes-pro-blema, contextualizados no cotidiano, usando-se como fontes os dirios de classe:

    Trechos dos dirios, que muitos dos presentes haviam escri-to, foram organizados aps sua entrega ao Setor de Educao da CPI-AC e digitados numa apostila. Eram contedos sele-cionados para estudo dos demais professores sobre vrios aspectos pedaggicos embutidos nos textos (...) Tambm es-tas discusses, pelo nvel de domnio ainda incipiente da lngua escrita, foram acompanhadas de informaes de or-dem metalingstica sobre as convenes da lngua portu-guesa escrita no que se refere pontuao, ortografia, concordncia verbal e nominal, etc. Tais informaes entre-meavam a discusso pedaggica e apoiavam, de forma de-monstrativa, a questo prioritria por ns analisada no curso da "avaliao escolar". Movia-nos a tarefa de pensar criti-camente a tendncia atual instalada nas escolas rurais do Acre, da "avaliao por provas que chegam de barco". Esta a rotina naturalizada como a verdadeira avaliao instalada no imaginrio de muitos professores da rede municipal, in-clusive indgenas, resultado da interveno pedaggica das

    inspetorias de ensino municipais, contra as quais queramos apresentar alternativas. Entre estas alternativas, as aes de correo dos trabalhos dos alunos, a avaliao contnua dos "erros" e avanos no processo de aprendizagem, que suger-amos como necessria e indispensvel ao exerccio docente. Nossa prpria atuao como formadores constitua uma ao demonstrativa do que entendamos como "avaliao cont-nua", tarefa imprescindvel para a melhoria das relaes de ensino-aprendizagem na escola indgena.

    A seguir, um fragmento do trecho da apostila onde os professores so chamados a ler e observar algumas das formas diversas de pensar a avaliao a partir de seus prprios textos e prticas (Monte, 1999):

    Repare e comente os diferentes tipos de avaliao feita nos dirios

    A aula de hoje foi avaliao da ortografia. Eu pedi para eles fazerem um texto com a palavra caada. Quando termina-ram o texto, eu pedi que trocassem os textos com outros co-legas e lessem. Depois das leituras, escrevi os textos na lousa e pedi para o dono do texto ler como ele escreveu. A fica-mos corrigindo os erros que cometeram. Muitos alunos dizi-am seu texto perfeito, mas com distrao acabavam perden-do algumas letras das palavras (professor Joaquim Man Kaxinaw).

    Como hoje j era o ltimo dia de aula, eu fiz um tipo de avaliao geral com meus alunos. Os alunos da 3a srie so 10 alunos. S um aluno chamado Rodrigo foi o mais atrasa-do de leitura, matemtica e escrita. Eu acho por motivo que ele mora fora da aldeia 6 hora de viagem. E quando ele vai em casa, o pai no deixa ir logo para voltar na escola. Os pais as vezes precisam dos filhos para ajudarem a limpar os roa-dos. Os alunos de 2a e 1a sries esto muito bem na leitura e escrita e matemtica (professor Jaime Manchineri).

  • Avaliao: na minha observao, durante o ano os alunos aprenderam mais na leitura escrita e matemtica. No incio da aula, os alunos no sabiam escrever nem ler a Lngua Por-tuguesa. Mas eles j lem e escrevem sozinhos. Igualmente com a matemtica eles sabiam s as 2 operaes - soma e subtrao. Mas agora j sabem as 4 operaes. So os alunos da 3a srie. Tambm durante a aula tivemos aulas de geogra-fia e histria indgena. Isso no foi lido nem escrito, s oral-mente, e cada aluno j tem decorado na cabea o que geo-grafia e histria indgena.(...) Assim a aula finalizou deixan-do eles continuarem lendo as cartilhas em casa, fazer contas e escrever qualquer tipo de texto. Para no esquecer quando comear novamente a aula em 99. Os alunos ficaram muito animados. As aulas foram muito boas durante o ano de 98 (professor Lullu Manchineri).

    Quando eu estava dando aula da histria chegaram as provas de barco. A os alunos foram fazer as provas. Mas foi tudo resolvido, a lio que eu estava dando para os alunos. Aps que os alunos fizeram as provas, terminou, porque eu baixei para cidade para uma reunio (professor Aldenor Kaxinaw).

    Uma brevssima reflexo final

    Os dirios de professores so escritos para serem lidos, comunicados anualmente a outros nos cursos e nas assessorias de campo, alm de virem a motivar pesquisas dentro de uma perspectiva de investigao-em-ao - da sua funo numa pedagogia intercultural. Podem ajudar a acionar dispositivos de dilogo intercultural para a reflexo sobre as prticas pedaggicas e sociais de profissionais indgenas, subvertendo vises hegemnicas sobre educao, cultura e currculo, mas tambm eliminando preconceitos e rotinas de trabalho de todos os envolvidos nos programas de formao. Fornecem a autores, formadores, assessores e estudiosos do cotidiano, quando lidos com finalidades especficas, elementos

    para outras operaes reflexivas que apoiem a todos no enriquecimento do inventrio de alternativas possveis de ao, na ampliao da capacidade de ao e de transformao das prticas.

    Assim, o novo sentido poltico deste processo educativo, no qual tomo como tema de trabalho a palavra de narradores indgenas, a partir de minha prpria palavra como narradora, visou fornecer armas e ampliar a visibilidade (ou audibilidade) das vozes, concepes e prticas de sujeitos quase sempre silenciosos e inaudveis nos currculos e na produo e investigao educacional. Se verdade que "a educao um local de luta e contestao contnuas (...) um espao narrativo para a compreenso e a anlise crtica de mltiplas histrias, experincias e culturas" (Giroux, 1995, p. 94), optei por trazer histrias de uma experincia educacional com outras culturas e lnguas, em que sou tambm protagonista. O foco est aqui colocado nos dirios indgenas para contar histrias de prticas pedaggicas e ambientais amaznicas inusuais, fertilizando com novos sentidos meu texto e os espaos que me foram abertos pelo campo da Educao em sua teoria e prtica. A idia foi possibilitar aos educadores presentes (e ausentes), tanto na escrita dos dirios indgenas quanto nos seus diversos nveis de leitura - narradores, personagens, intrpretes e investigadores - "um ato de descentramento, de trnsito e de cruzamento de fronteiras, uma forma de construir uma poltica (e uma educao) intercultural na qual ocorra um dilogo, uma troca e uma traduo entre diferentes comunidades, e entre fronteiras nacionais" (Giroux, 1995). A inteno foi tambm dialogar com o campo da investigao educacional, por meio de processos interculturais voltados criao e negociao de significados sempre incompletos, efmeros e mesclados, provenientes de nossas diferentes histrias culturais.

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