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EXPERIÊNCIAS DE LEITURA DOS ESTUDANTES DO CURSO DE PEDAGOGIA DA URCA: O QUE CANTAM OS VERSOS DE CORDEL? RODRIGUES, Cicera Sineide Dantas 1 – UECE/URCA LIMA, Maria Socorro Lucena 2 - UECE MARTINS, Elcimar Simão 3 - UFC GRANGEIRO, Manuela Fonseca 4 - UECE RODRIGUES, Hugo de Melo 5 - URCA Grupo de Trabalho: Formação de Professores e Profissionalização Docente Agência Financiadora: CNPQ Resumo O presente artigo analisa o processo de formação leitora de estudantes do Curso de Pedagogia da Universidade Regional do Cariri-URCA. O trabalho discute a importância do debate sobre leitura nos cursos de formação docente, apresentando o cordel como elemento de interculturalidade e importante potencialidade pedagógica na formação do professor. O estudo traz à tona as experiências de leitura de professorandos, da escola à Universidade. Estas aparecem em versos de cordel, produzidos pelos estudantes a partir de uma oficina pedagógica de cordel. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa. Utiliza-se o Grupo Focal como principal técnica de coleta de dados. Freire (1994); Benevides (2002) e Tura (2005) são as principais referências utilizadas. Os resultados indicam que trazer o cordel para 1 Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual do Ceará. Bolsista do Programa Observatório da Educação/CAPES - Projeto em rede UECE, UFOP e UNIFESP (Edital 2012). Professora de Didática da Universidade Regional do Cariri. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará. E-mail: [email protected] 2 Pós-doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora da Universidade Estadual do Ceará de Didática, prática de ensino e Estágio do Curso de Pedagogia e do Programa de Pós-graduação stricto sensu de Educação da Universidade Estadual do Ceará. Pesquisadora do CNPQ. Palestrante nacional sobre Estágio e Prática de Ensino. E-mail: [email protected] 3 Doutorando em Educação pela Universidade Federal. Bolsista FUNCAP. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará. Professor da Rede Estadual de Ensino do Ceará e da Rede Municipal de Ensino de Aracoiaba-CE. Cursando Pedagogia. E-mail: [email protected] 4 Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual do Ceará. Bolsista CAPES. Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Ceará. Professora colaboradora de programas especiais e do Curso de Pedagogia da Universidade Aberta do Brasil/Universidade Estadual do Ceará. E-mail: [email protected] 5 Especialista em Psicologia aplicada a Educação pela Universidade Regional do Cariri- URCA. Graduado em História e licenciando em Teatro pela URCA. Atua na Secretaria de Cultura do município de Barbalha-CE. E- mail: [email protected]

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EXPERIÊNCIAS DE LEITURA DOS ESTUDANTES DO CURSO DE

PEDAGOGIA DA URCA: O QUE CANTAM OS VERSOS DE CORDEL ?

RODRIGUES, Cicera Sineide Dantas1 – UECE/URCA

LIMA, Maria Socorro Lucena2 - UECE

MARTINS, Elcimar Simão3 - UFC

GRANGEIRO, Manuela Fonseca4 - UECE

RODRIGUES, Hugo de Melo5 - URCA

Grupo de Trabalho: Formação de Professores e Profissionalização Docente

Agência Financiadora: CNPQ Resumo O presente artigo analisa o processo de formação leitora de estudantes do Curso de Pedagogia da Universidade Regional do Cariri-URCA. O trabalho discute a importância do debate sobre leitura nos cursos de formação docente, apresentando o cordel como elemento de interculturalidade e importante potencialidade pedagógica na formação do professor. O estudo traz à tona as experiências de leitura de professorandos, da escola à Universidade. Estas aparecem em versos de cordel, produzidos pelos estudantes a partir de uma oficina pedagógica de cordel. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa. Utiliza-se o Grupo Focal como principal técnica de coleta de dados. Freire (1994); Benevides (2002) e Tura (2005) são as principais referências utilizadas. Os resultados indicam que trazer o cordel para

1 Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual do Ceará. Bolsista do Programa Observatório da Educação/CAPES - Projeto em rede UECE, UFOP e UNIFESP (Edital 2012). Professora de Didática da Universidade Regional do Cariri. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará. E-mail: [email protected] 2 Pós-doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora da Universidade Estadual do Ceará de Didática, prática de ensino e Estágio do Curso de Pedagogia e do Programa de Pós-graduação stricto sensu de Educação da Universidade Estadual do Ceará. Pesquisadora do CNPQ. Palestrante nacional sobre Estágio e Prática de Ensino. E-mail: [email protected] 3 Doutorando em Educação pela Universidade Federal. Bolsista FUNCAP. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará. Professor da Rede Estadual de Ensino do Ceará e da Rede Municipal de Ensino de Aracoiaba-CE. Cursando Pedagogia. E-mail: [email protected] 4 Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual do Ceará. Bolsista CAPES. Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Ceará. Professora colaboradora de programas especiais e do Curso de Pedagogia da Universidade Aberta do Brasil/Universidade Estadual do Ceará. E-mail: [email protected] 5 Especialista em Psicologia aplicada a Educação pela Universidade Regional do Cariri- URCA. Graduado em História e licenciando em Teatro pela URCA. Atua na Secretaria de Cultura do município de Barbalha-CE. E-mail: [email protected]

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a formação de professores é pensar a Universidade como um espaço de interculturalidade. Evidenciam ainda que na escola, a leitura está assentada na obrigatoriedade e na memorização. Tal prática conduz a um rechaçamento da leitura pelos estudantes. Os dados revelam também que no Ensino Médio há uma prevalência da leitura dos conteúdos dos livros didáticos. As obras literárias, normalmente, são lidas de forma obrigatória para a realização das provas do vestibular. Pressupõe-se então que nas instituições de ensino ainda é incipiente o incentivo a uma prática leitora mais diversificada e prazerosa. Ao ingressarem na Universidade os alunos continuam com a mesma lógica da leitura por memorização. Conclui-se que ainda subsiste nas escolas e universidades uma lógica de que existe uma leitura legítima, normalmente, aquela que é representada por uma cultura erudita e letrada. O estudo reconhece que a própria reflexão sobre a leitura nos cursos de formação docente pode provocar mudanças na rotina dos professorandos, enquanto futuros mediadores da leitura, inserindo-se nesse universo de forma mais crítica e reflexiva. Palavras-Chave: Formação leitora. Cordel. Formação Docente.

Introdução

O caminho para o conhecimento em toda área de estudo passa pelo acesso e prática

contínua da leitura. É importante, pois, observar que o ato de ler contém em si o princípio da

totalidade e da dinamicidade que envolve o próprio movimento da realidade humana e social.

Nesse sentido, homens e mulheres como seres sociais, ao longo da história produzem saberes

e cultura, interpretando-os e reinterpretando-os à luz de um conhecimento mais sistematizado

ou fundamentado em saberes de experiência, construídos no cotidiano.

Consideramos que os saberes do cotidiano e os conhecimentos sistematizados mantém

entre si um diálogo permanente, formando um todo dialético. Isoladamente, o saber de

experiência perde força e sentido. Do mesmo modo, o conhecimento escolar torna-se vazio se

não toma o cotidiano, o saber de experiência, como base primordial. Faz-se aqui a exaustiva e

necessária defesa de que “a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura

desta implica a continuidade da leitura daquele” (FREIRE, 1994, p. 11). É especialmente na

escola que esse campo dialético da leitura deve tornar-se evidenciado. Para tal, é importante

que os docentes e os estudantes assumam a compreensão de que “Linguagem e realidade se

prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica

implica a percepção das relações entre o texto e o contexto” (idem, ibidem, p.11).

É o professor - mas não somente ele - que tem o papel fundamental de contribuir para

a formação das novas gerações. É principalmente ele que carrega a responsabilidade social de

apresentar aos estudantes os vastos horizontes do conhecimento, estimulando-os à prática de

uma leitura disciplinada, diversificada e constante; prática esta que deve perdurar por toda a

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vida, para além do chão da escola. No entanto, a formação de leitores vem se mostrando como

um dos principais desafios do campo educacional.

Entendemos que há limitações sociais, políticas, culturais e econômicas que

contribuem significativamente para fortalecer essa perspectiva de rechaçamento à leitura por

parte dos docentes e discentes, sobretudo quando se observa que

No Brasil, a formação aligeirada - ou de meia tigela - dos professores, o aviltamento das suas condições de trabalho, o minguado salário e as políticas educacionais caolhas fazem com que os sujeitos do ensino exerçam a profissão sem serem leitores. Ou então, sejam tão somente leitores pela metade, pseudo-leitores, leitores nas horas vagas, leitores mancos. Leitores de cabresto e outras coisas assim (SILVA, 2009, p. 01).

O mais importante aqui é perceber que o fracasso na construção da cultura leitora dos

estudantes se agrava à medida que, geralmente, os próprios docentes se afastam da prática da

leitura ou concebem texto e contexto como dois momentos separados, assumindo uma visão

acrítica do conhecimento e da leitura.

Diante do exposto, os cursos de formação docente não podem prescindir de

desenvolver debates e estudos acerca da formação leitora dos futuros professores, entendendo

que “o fortalecimento da docência como profissão envolve, irrefutavelmente, a vivência e a

incorporação de porções contínuas de leitura” (SILVA, 2009, p. 01-02).

Foi pensando nessa questão da formação leitora do professor que desenvolvemos na

Universidade Regional do Cariri-URCA, o Projeto de Pesquisa “Formação de professores: A

leitura na Aprendizagem da Profissão”. O mesmo constituiu um trabalho integrado de

pesquisa entre a Universidade Estadual do Ceará-UECE e a Universidade Regional do Cariri-

URCA, sendo financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e

Tecnológico-CNPQ.

O presente artigo constitui um recorte dessa pesquisa mais ampla, desenvolvida

durante o primeiro semestre de 2011. Nesse tempo, realizamos encontros com 15 estudantes

do Curso de Pedagogia da URCA. Vale ressaltar que durante esses encontros, dentre outras

questões, os estudantes contaram as suas histórias de leitura, trazendo à tona suas concepções

e memórias de formação leitora. Vamos nos reportar nesse estudo à oficina pedagógica de

Cordel realizada com os participantes da pesquisa supracitada. Após a oficina, através do

cordel, os estudantes relataram sobre fatos que marcaram as suas trajetórias leitoras, da escola

à Universidade. Nesse caso, o principal objetivo desse artigo é refletir sobre o processo de

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formação leitora desses sujeitos, apresentado por eles em versos de Cordel, tomado aqui como

importante potencialidade pedagógica.

Para o desenvolvimento da pesquisa utilizamos a abordagem qualitativa, já que esta

permite a análise e interpretação de “dados que não são facilmente quantificados e são difíceis

de serem percebidos” (MINAYO, 2004, p. 21-22). Ademais, essa abordagem caracteriza-se

por trabalhar “com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e

atitudes, que correspondem a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos

fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis” (Idem, Ibidem, p.

21-22).

Para a coleta dos dados fizemos uso dos grupos focais. Podemos afirmar que o grupo

focal é formado, geralmente, por “um conjunto de pessoas selecionadas e reunidas por

pesquisadores para discutir e comentar um tema, que é objeto de pesquisa, a partir de sua

experiência pessoal” (POWELL e SINGLE apud GATTI, 2007, p. 07). A utilização do grupo

focal como meio de pesquisa permite fazer emergir uma “multiplicidade de pontos de vista e

processos emocionais, pelo próprio contexto de interação criado, permitindo a captação de

significados que, com outros meios poderia ser difícil de se manifestar” (GATTI, 2007 p. 09).

O cordel como potenciacialidade pedagógica e a interculturalidade na formação docente

O cordel pode ser compreendido como uma narrativa popular impressa. A expressão

“literatura de cordel foi por séculos mais portuguesa do que brasileira. O nome refere-se à

maneira pela qual os livrinhos muitas vezes ficavam pendurados em linhas esticadas entre

dois suportes” (SLATER, 1984, p. 16). Esse tipo de literatura popular “desempenha um papel

importante na cultura nordestina. Por muitos anos ele foi o jornal do sertanejo, sendo em

algumas décadas o único meio de comunicação existente” (OLIVEIRA, 2011, p. 388).

O presente estudo vem se juntar às investigações que compreendem o cordel como

uma possibilidade pedagógica, como um artefato cultural que tem a potencialidade de

expressar os mais variados tipos de conhecimentos através de uma linguagem poética, rimada

e singelamente popular. Enfim, “o cordel é um jornal, é divertimento, literatura, meio de

difusão do conhecimento, de perpetuação da história e da cultura. É meio de expressão de

sentimentos, meio de refletir e pensar a realidade” (CEARÁ, 1978, p. 17).

Trazer o cordel para a formação de professores é pensar a Universidade como um

espaço que deve se abrir para a interculturalidade, como um universo que deve criar canais de

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diálogo entre as diferentes formas de linguagem. E assim, as diferentes lógicas culturais

podem dialogar e serem utilizadas como arsenais pedagógicos que favorecem a formação

reflexiva dos alunos. Desse modo, o campo pedagógico não se fecha em uma concepção

curricular que privilegia somente um tipo de manifestação cultural, normalmente aquela que

responde aos anseios de uma cultura erudita, “entendida como de produção mais requintada

porque mais elaborada por adequados mecanismos de sistematização e racionalização”

(TURA, 2005, p. 151).

Historicamente, “há uma dificuldade especial de estudar a cultura popular que se

instituiu basicamente pela tradição oral e por seus poucos produtos literários” (TURA, 2005

p. 152). Sob uma lógica curricular mais crítica entendemos que o contexto escolar e

acadêmico não pode escapar da construção de uma concepção curricular que vislumbre a “o

diálogo entre as diferentes culturas, expressando “o relacionamento circular feito de

influências recíprocas entre as culturas dominantes e dominadas” (Idem, Ibidem, p. 155).

Privilegiar os elementos das diferentes culturas e colocá-los em contato é o caminho

central para a incorporação e reelaboração de novos conhecimentos, entendendo-os como

saberes que se entrelaçam, em “redes de significados que têm seus sentidos, lógicas, técnicas

sendo construídas em lugares, por vezes, diferentes daquelas da cultura escolar” (TURA,

2005, p. 163). As subjetividades produzidas pelo currículo tomam como referencial as teorias

pós-críticas que

Distinguem o currículo como uma linguagem dotada de significados, imagens, falas, posições discursivas e, nesse contexto, destaca que nas margens do discurso curricular se comunicam códigos distintos, histórias esquecidas, vozes silenciadas que, por vezes se imiscuem com o estabelecido, regulamentado e autorizado (Idem, Ibidem, p. 163).

Nessa direção, o cordel como expressão da cultura popular pode ser tomado como

potencialidade pedagógica na formação docente, contribuindo para a reflexão de temas

relevantes para o campo educativo. No caso desse estudo, privilegiamos a reflexão acerca da

leitura, evidenciando os olhares e experiências formativas de professorandos do Curso de

Pedagogia da URCA nesse campo.

É fato que, no Brasil, “a literatura de cordel chegou com colonizadores lusos, em

‘folhas soltas’ ou mesmo em manuscritos” (DIÁRIO DO NORDESTE, 2010, p. 02). No

Nordeste, em fins do século passado, “a literatura de cordel surgiu e se fixou como uma das

peculiaridades da cultura regional” (Idem, ibidem, p. 02). Por sua vez, no Ceará,

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Os primeiros cordéis impressos datariam provavelmente, das primeiras décadas deste século. As informações que temos, revelam a edição de cordéis no Cariri, nas oficinas do Jornal ‘O Rebate’, fundado pelo Pe. Cicero, em Juazeiro, já nos anos vinte (CEARÁ, 1978, p. 17).

Fundada em 1991, a Academia de Cordelistas do Crato, é atualmente uma das

principais entidades que agrega os cordelistas da região do Cariri Cearense. Esses poetas

populares produzem cordeis sobre as mais diversas temáticas que “estão servindo para

pesquisa e para leitura nas escolas” (DIÁRIO DO NORDESTE, 2010, p. 02).

Consideramos enfim, que o cordel é um tipo de literatura que tem presença marcante

no contexto cultural caririense, logo deve servir como fonte e base profícua para as reflexões

sobre a leitura na formação docente.

A leitura, da escola à universidade, em versos de cordel

No dia 27 de junho de 2011 aconteceu um encontro com os participantes da já citada

pesquisa, onde realizamos a oficina de cordel com a Professora Maria do Rosário Lustosa da

Cruz, reconhecida autora que tem várias publicações em cordeis abordando diferentes

temáticas,

Maria do Rosário tem uma endocrinologia vazada em emoções da natureza sertaneja, mais uma inteligência de capacidade cultural que a distingue como Vice-Presidente do Instituto Cultural do Vale Caririense – ICVC; Sócia da Academia dos Cordelistas do Crato; Segunda Secretária da Associação dos Poetas de Barbalha e Griô (Contadora de Histórias) pelo ponto de Cultura Lira Nordestino, em Projeto da Universidade Regional do Cariri-URCA (BARBOSA, 2011, p. 07).

Rosário Lustosa iniciou a oficina explanando sobre a história do cordel. Logo a seguir

explicou sobre os aspectos formais dessa literatura popular. Demonstrou através da leitura de

folhetos de cordel que nesse tipo de literatura “o corpo todo fala para enunciar as verdades

que estão guardadas pelas sextilhas, embaladas pelas rimas, acolhidas pela métrica e

traduzidas pela melodia” (CARVALHO, 2011, p. 05).

A cordelista instigou os participantes da pesquisa a produzirem algumas estrofes de

cordel, refletindo sobre as suas principais experiências de leitura, da escola à universidade.

Essa atividade foi parte de um trabalho mais amplo, pois já vinham acontecendo alguns

encontros com o grupo de alunos para atender aos objetivos do projeto de pesquisa: “A leitura

na Aprendizagem da Profissão”, mencionado anteriormente. Apresentamos a seguir alguns

versos das estrofes de cordel produzidas pelos colaboradores dessa pesquisa.

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Memórias de formação leitora traduzidas nos versos do cordel

O ensino de base teórica tradicional considera a leitura pela leitura, sendo algo que

tem um fim em si mesmo. Nestas teorias, o que se sabe é que o aluno tem que aprender a ler

sob a lógica da obrigatoriedade. Por isso vemos com frequência os alunos nos mais diversos

níveis dizendo que a leitura é algo enfadonho, repetitivo, memorizador e sem sentido. De

acordo com os estudantes:

Na educação tradicional O professor era o dono do saber Não importava o aluno Ele só queria ensinar a ler E se o aluno não aprendesse Não tinha nada a fazer (FR) No geral era assim Professor sem formação Dava aula todo dia E passava a lição Se o aluno não entregava Era vítima de agressão (DE)

Reiteramos que a escola não é a única instância de formação de leitores, porém tem

uma importância fundamental nesse processo. É principalmente sobre ela que recai a

responsabilidade de reverter o índice de não-leitores no Brasil. No tocante a essa questão,

dados da Pesquisa: “Retratos da Leitura no Brasil” revelam que

A não ser entre os entrevistados que fizeram ou fazem estudos universitários, a leitura decresce muito entre os adultos, podemos supor que a escola não tem formado leitores para a vida inteira, talvez por práticas pouco sedutoras e obrigatórias, das quais o não-estudante procura se livrar assim que ultrapasse os limites da escola (CUNHA, 2007, p.15).

Diante da prática leitora autoritária e opressora, os estudantes, geralmente, caminham

desinteressados pelos horizontes da leitura. Para entrar na universidade encontram-se diante

de uma vasta literatura, composta, geralmente, por obras literárias que são obrigados a ler para

passar no vestibular. Das obras recomendadas e obrigatórias no Ensino Médio como

paradidáticos da Literatura brasileira, os licenciandos investigados destacaram as seguintes:

Iracema, O tronco do Ipê, Esaú e Jacó, O ano da morte de Ricardo Reis, A carta de Pero Vaz

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de Caminha, Fogo Morto, Coleção Melhores Poemas – Patativa do Assaré, Terra Sonâmbula,

O Quinze, Dom Casmurro, O Cortiço, Lucíola, A Moreninha, dentre outras.

Há que se perceber que estas leituras, normalmente são representadas por uma

literatura rica, importantes fontes de conhecimentos. Porém, a prática da memorização a que

os estudantes são submetidos faz com que eles não percebam a grandeza destas obras, que

logo são esquecidas pelos mesmos:

No ensino médio os livros Mostraram-se esquecidos Depois de tanto tempo de estudo Quase que um tempo perdido Pois da lembrança o conteúdo Mostrou que tinha fugido (FR)

Os dados coletados indicam ainda que no Ensino Médio existe uma prevalência da

leitura dos conteúdos dos livros didáticos. As obras literárias, normalmente são lidas de forma

obrigatória para a realização das provas do vestibular. Pressupõe-se então que é incipiente e

irrisório o incentivo a uma prática leitora mais plural e diversificada.

No ensino médio Quase nada se ensinava Só o livro didático Era nos apresentado, Cheguei à faculdade Com muita dificuldade. (DA)

O ato de ler baseado na simples memorização, geralmente conduz os estudantes a

tomarem iniciativas que não contribuem para uma assimilação ativa dos conhecimentos. O

principal objetivo do ensino passa a ser a obtenção de notas mínimas para escaparem de uma

possível reprovação. É o que afirmam:

Eram leituras que não tinham um fim Mas os alunos tinham muita esperteza Da internet salvavam os resumos Diziam que era seu com firmeza O professor duvidava Mas não tinha muita certeza (FR)

Desse modo, perde-se de vista a função social da escola, que é assegurar aos

estudantes a incorporação e a reelaboração de conhecimentos construídos historicamente pela

humanidade, “de modo a favorecer o desenvolvimento e a apreensão de saberes científicos,

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artísticos, tecnológicos, sociais e históricos, compreendendo as necessidades do trabalho, os

elementos materiais e a subjetividade humana” (BRASIL, 2010, p. 25).

Ao ingressarem na universidade as dificuldades com o campo da leitura tendem a

aumentar. Os estudantes se vêem diante de uma literatura de cunho técnico e científico,

envolta por certo grau de complexidade que exige dos mesmos uma prática de leitura contínua

que, normalmente, não foi adquirida nos graus de ensino anterior. Logo, eles tendem a

continuar com a mesma lógica da leitura por memorização, com o intuito de conseguirem a

nota que precisam para obterem aprovação semestre a semestre:

E se a leitura já é algo difícil Imagine na universidade Diante de palavras complicadas Você encontra dificuldade Só com o dicionário do lado Tem alguma facilidade (FR)

O ato de ler na universidade assume assim um caráter mais informativo, sendo

focalizado “apenas como ‘recurso de aprendizagem’, em detrimento do conhecimento sobre o

processo de aprendizagem da leitura e sobre os efeitos sociais que ela provoca no mundo

letrado” (BENEVIDES, 2002, p. 02). É grande a preocupação com a quantidade de textos e

livros que os alunos precisam ler. Os estudantes da pesquisa revelam essa inquietação nos

trechos a seguir:

Já perdi a conta De quantos livros tive de ler Quase que enlouqueço Por não os entender Sem exagerar te digo Para continuar na faculdade Muita vontade tem que ter (FR) Os textos que antes tinham Uma folha por vez Hoje cada texto tem Quase sempre dezesseis E se não ler que preste De dezesseis vira cem (EV)

A postura leitora descrita deixa claro que “devido à quantidade de informações sobre

práticas e teorias, a leitura pode ser compreendida apenas como meio de se estar informado. O

conhecimento mesmo, como parte de um saber mais elaborado, fica posto de lado”

(BENEVIDES, 2002, p. 02). Ademais, “a insistência na quantidade de leituras sem o devido

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adentramento nos textos a serem compreendidos, e não mecanicamente memorizados, revela

uma visão mágica da palavra escrita. Visão que urge ser superada” (FREIRE, 1994, p. 18).

Porém, a “critica à magicização da palavra” não anula a responsabilidade dos educadores e

educandos de lerem, “sempre e seriamente, os clássicos nestes ou naquele campo do saber”

(Idem, Ibidem, p.18), adentrando nos textos e criando uma “disciplina intelectual, sem a qual

inviabilizamos a nossa prática enquanto professores e estudantes” (Idem, Ibidem, p. 18). É

interessante observar que há uma mudança considerável nos tipos de leitura que marcam o

tempo de preparação para o vestibular e o período de vivência na universidade:

Antes se lia romance Hoje o romance morreu E deu espaço a Vigotsky Que a mente endoideceu Piaget e Paulo Freire Deram espaço a confusão em Uma mente onde morava Dom Casmurro e Lampião (EV)

Faz-se necessário reiterar que a leitura encontra-se nos mais diferentes cantos e

recantos da vida, não se restringindo aos domínios da escola ou da universidade. Logo, os

modos de ler mudam, assim como mudam as leituras e os leitores em seus mais diferentes

tempos e espaços. Nessa perspectiva, os leitores apresentam experiências com o mundo

escrito “bastante diferente daquela que o mundo letrado (o cânone escolar) define como uma

leitura legítima, como o modelo ideal de leitura que deve fazer parte da formação de

professores” (BENEVIDES, 2002, p. 14). E é esse mundo de experiências leitoras e sócio-

culturais que deve ser articulado às práticas de leitura a serem vivenciadas nos espaços

formais de ensino, tendo em vista a formação de um sujeito-leitor mais crítico, consciente e

reflexivo.

Considerações finais

O que se leu nos escritos antecedentes não são mais do que resultados provisórios de

uma realidade investigada. Têm como sustentáculo experiências que se misturam, que se

encontram, que se interpenetram numa passarela de ideias movimentada por versos de cordel,

que revelam experiências de leitura de futuros professores. Trazemos aqui nada mais do que

processos analíticos que representam fragmentos de uma realidade, jamais vistos como

desconectados de uma totalidade maior. São palavras, falas, ideias e pensamentos que

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mostram uma existência articulada a um contexto social, político, cultural e linguístico. Logo,

não podem se desprender dessa conjuntura. São enunciações de sujeitos que, por meio de

singelos versos de cordel, materializaram aqui suas ideias e experiências leitoras.

Sabemos que a formação leitora do indivíduo é um todo complexo e contínuo,

devendo abranger as mais diferenciadas experiências escolares e não escolares. Na retomada

das narrativas de formação leitora percebemos também que ainda subsiste nas escolas e

universidades uma lógica de que existe uma leitura legítima, ideal, normalmente aquela que é

representada por uma cultura erudita e letrada, a leitura da palavra. No entanto, o ensino

fragmentado dessa cultura, distante de uma leitura pautada em saberes do cotidiano, em uma

leitura de mundo, vem se constituindo em um dos principais entraves na formação do sujeito-

leitor.

Como consequência desse estudo, reconhecemos que a própria reflexão sobre a leitura

nos cursos de formação docente pode provocar mudanças na rotina dos professorandos,

enquanto futuros mediadores da leitura. Ao pensar as suas próprias experiências de formação

leitora na escola e na universidade, estes passam a se preocupar mais com suas práticas e

modos de lidar com a leitura, buscando se inserir nesse universo de forma mais crítica e

reflexiva.

Por isso, acreditamos que ler sempre, ler o mundo, ler a palavra, ler o universo que nos

cerca, ler a própria leitura, ainda é o caminho para a constituição de sujeitos-leitores críticos e

reflexivos, construtores e não apenas reprodutores de ideias. Ideias que ao mundo retornam,

tendo em vista a sua transformação em algo sempre melhor. Isso não é permitido às “pedras”,

nem às “plantas”, mas somente aos seres humanos que fazendo versos e reversos nomeiam as

coisas do mundo, pois são antes de tudo, seres da práxis.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Geraldo Meneses. Uma Apresentação. In: LUSTOSA, Rosário. 100 anos de Juazeiro registrados no cordel 1911-2011. Juazeiro do Norte: HB Gráfica, 2011.

BENEVIDES, Araceli Sobreira. O que revela o discurso de Professores sobre a sua leitura durante um curso de formação de professores. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte: Expressão, Mossoró, jan-dez, 2002.

BRASIL. Conferência Nacional de Educação - CONAE 2010 - Construindo o Sistema Nacional Articulado de Educação: O Plano Nacional de Educação, Diretrizes e Estratégias de Ação. Documento Referência, 2010.

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