experiÊncias de leitura dos estudantes do curso de...
TRANSCRIPT
EXPERIÊNCIAS DE LEITURA DOS ESTUDANTES DO CURSO DE
PEDAGOGIA DA URCA: O QUE CANTAM OS VERSOS DE CORDEL ?
RODRIGUES, Cicera Sineide Dantas1 – UECE/URCA
LIMA, Maria Socorro Lucena2 - UECE
MARTINS, Elcimar Simão3 - UFC
GRANGEIRO, Manuela Fonseca4 - UECE
RODRIGUES, Hugo de Melo5 - URCA
Grupo de Trabalho: Formação de Professores e Profissionalização Docente
Agência Financiadora: CNPQ Resumo O presente artigo analisa o processo de formação leitora de estudantes do Curso de Pedagogia da Universidade Regional do Cariri-URCA. O trabalho discute a importância do debate sobre leitura nos cursos de formação docente, apresentando o cordel como elemento de interculturalidade e importante potencialidade pedagógica na formação do professor. O estudo traz à tona as experiências de leitura de professorandos, da escola à Universidade. Estas aparecem em versos de cordel, produzidos pelos estudantes a partir de uma oficina pedagógica de cordel. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa. Utiliza-se o Grupo Focal como principal técnica de coleta de dados. Freire (1994); Benevides (2002) e Tura (2005) são as principais referências utilizadas. Os resultados indicam que trazer o cordel para
1 Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual do Ceará. Bolsista do Programa Observatório da Educação/CAPES - Projeto em rede UECE, UFOP e UNIFESP (Edital 2012). Professora de Didática da Universidade Regional do Cariri. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará. E-mail: [email protected] 2 Pós-doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora da Universidade Estadual do Ceará de Didática, prática de ensino e Estágio do Curso de Pedagogia e do Programa de Pós-graduação stricto sensu de Educação da Universidade Estadual do Ceará. Pesquisadora do CNPQ. Palestrante nacional sobre Estágio e Prática de Ensino. E-mail: [email protected] 3 Doutorando em Educação pela Universidade Federal. Bolsista FUNCAP. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará. Professor da Rede Estadual de Ensino do Ceará e da Rede Municipal de Ensino de Aracoiaba-CE. Cursando Pedagogia. E-mail: [email protected] 4 Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual do Ceará. Bolsista CAPES. Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Ceará. Professora colaboradora de programas especiais e do Curso de Pedagogia da Universidade Aberta do Brasil/Universidade Estadual do Ceará. E-mail: [email protected] 5 Especialista em Psicologia aplicada a Educação pela Universidade Regional do Cariri- URCA. Graduado em História e licenciando em Teatro pela URCA. Atua na Secretaria de Cultura do município de Barbalha-CE. E-mail: [email protected]
9887
a formação de professores é pensar a Universidade como um espaço de interculturalidade. Evidenciam ainda que na escola, a leitura está assentada na obrigatoriedade e na memorização. Tal prática conduz a um rechaçamento da leitura pelos estudantes. Os dados revelam também que no Ensino Médio há uma prevalência da leitura dos conteúdos dos livros didáticos. As obras literárias, normalmente, são lidas de forma obrigatória para a realização das provas do vestibular. Pressupõe-se então que nas instituições de ensino ainda é incipiente o incentivo a uma prática leitora mais diversificada e prazerosa. Ao ingressarem na Universidade os alunos continuam com a mesma lógica da leitura por memorização. Conclui-se que ainda subsiste nas escolas e universidades uma lógica de que existe uma leitura legítima, normalmente, aquela que é representada por uma cultura erudita e letrada. O estudo reconhece que a própria reflexão sobre a leitura nos cursos de formação docente pode provocar mudanças na rotina dos professorandos, enquanto futuros mediadores da leitura, inserindo-se nesse universo de forma mais crítica e reflexiva. Palavras-Chave: Formação leitora. Cordel. Formação Docente.
Introdução
O caminho para o conhecimento em toda área de estudo passa pelo acesso e prática
contínua da leitura. É importante, pois, observar que o ato de ler contém em si o princípio da
totalidade e da dinamicidade que envolve o próprio movimento da realidade humana e social.
Nesse sentido, homens e mulheres como seres sociais, ao longo da história produzem saberes
e cultura, interpretando-os e reinterpretando-os à luz de um conhecimento mais sistematizado
ou fundamentado em saberes de experiência, construídos no cotidiano.
Consideramos que os saberes do cotidiano e os conhecimentos sistematizados mantém
entre si um diálogo permanente, formando um todo dialético. Isoladamente, o saber de
experiência perde força e sentido. Do mesmo modo, o conhecimento escolar torna-se vazio se
não toma o cotidiano, o saber de experiência, como base primordial. Faz-se aqui a exaustiva e
necessária defesa de que “a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura
desta implica a continuidade da leitura daquele” (FREIRE, 1994, p. 11). É especialmente na
escola que esse campo dialético da leitura deve tornar-se evidenciado. Para tal, é importante
que os docentes e os estudantes assumam a compreensão de que “Linguagem e realidade se
prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica
implica a percepção das relações entre o texto e o contexto” (idem, ibidem, p.11).
É o professor - mas não somente ele - que tem o papel fundamental de contribuir para
a formação das novas gerações. É principalmente ele que carrega a responsabilidade social de
apresentar aos estudantes os vastos horizontes do conhecimento, estimulando-os à prática de
uma leitura disciplinada, diversificada e constante; prática esta que deve perdurar por toda a
9888
vida, para além do chão da escola. No entanto, a formação de leitores vem se mostrando como
um dos principais desafios do campo educacional.
Entendemos que há limitações sociais, políticas, culturais e econômicas que
contribuem significativamente para fortalecer essa perspectiva de rechaçamento à leitura por
parte dos docentes e discentes, sobretudo quando se observa que
No Brasil, a formação aligeirada - ou de meia tigela - dos professores, o aviltamento das suas condições de trabalho, o minguado salário e as políticas educacionais caolhas fazem com que os sujeitos do ensino exerçam a profissão sem serem leitores. Ou então, sejam tão somente leitores pela metade, pseudo-leitores, leitores nas horas vagas, leitores mancos. Leitores de cabresto e outras coisas assim (SILVA, 2009, p. 01).
O mais importante aqui é perceber que o fracasso na construção da cultura leitora dos
estudantes se agrava à medida que, geralmente, os próprios docentes se afastam da prática da
leitura ou concebem texto e contexto como dois momentos separados, assumindo uma visão
acrítica do conhecimento e da leitura.
Diante do exposto, os cursos de formação docente não podem prescindir de
desenvolver debates e estudos acerca da formação leitora dos futuros professores, entendendo
que “o fortalecimento da docência como profissão envolve, irrefutavelmente, a vivência e a
incorporação de porções contínuas de leitura” (SILVA, 2009, p. 01-02).
Foi pensando nessa questão da formação leitora do professor que desenvolvemos na
Universidade Regional do Cariri-URCA, o Projeto de Pesquisa “Formação de professores: A
leitura na Aprendizagem da Profissão”. O mesmo constituiu um trabalho integrado de
pesquisa entre a Universidade Estadual do Ceará-UECE e a Universidade Regional do Cariri-
URCA, sendo financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico-CNPQ.
O presente artigo constitui um recorte dessa pesquisa mais ampla, desenvolvida
durante o primeiro semestre de 2011. Nesse tempo, realizamos encontros com 15 estudantes
do Curso de Pedagogia da URCA. Vale ressaltar que durante esses encontros, dentre outras
questões, os estudantes contaram as suas histórias de leitura, trazendo à tona suas concepções
e memórias de formação leitora. Vamos nos reportar nesse estudo à oficina pedagógica de
Cordel realizada com os participantes da pesquisa supracitada. Após a oficina, através do
cordel, os estudantes relataram sobre fatos que marcaram as suas trajetórias leitoras, da escola
à Universidade. Nesse caso, o principal objetivo desse artigo é refletir sobre o processo de
9889
formação leitora desses sujeitos, apresentado por eles em versos de Cordel, tomado aqui como
importante potencialidade pedagógica.
Para o desenvolvimento da pesquisa utilizamos a abordagem qualitativa, já que esta
permite a análise e interpretação de “dados que não são facilmente quantificados e são difíceis
de serem percebidos” (MINAYO, 2004, p. 21-22). Ademais, essa abordagem caracteriza-se
por trabalhar “com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e
atitudes, que correspondem a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos
fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis” (Idem, Ibidem, p.
21-22).
Para a coleta dos dados fizemos uso dos grupos focais. Podemos afirmar que o grupo
focal é formado, geralmente, por “um conjunto de pessoas selecionadas e reunidas por
pesquisadores para discutir e comentar um tema, que é objeto de pesquisa, a partir de sua
experiência pessoal” (POWELL e SINGLE apud GATTI, 2007, p. 07). A utilização do grupo
focal como meio de pesquisa permite fazer emergir uma “multiplicidade de pontos de vista e
processos emocionais, pelo próprio contexto de interação criado, permitindo a captação de
significados que, com outros meios poderia ser difícil de se manifestar” (GATTI, 2007 p. 09).
O cordel como potenciacialidade pedagógica e a interculturalidade na formação docente
O cordel pode ser compreendido como uma narrativa popular impressa. A expressão
“literatura de cordel foi por séculos mais portuguesa do que brasileira. O nome refere-se à
maneira pela qual os livrinhos muitas vezes ficavam pendurados em linhas esticadas entre
dois suportes” (SLATER, 1984, p. 16). Esse tipo de literatura popular “desempenha um papel
importante na cultura nordestina. Por muitos anos ele foi o jornal do sertanejo, sendo em
algumas décadas o único meio de comunicação existente” (OLIVEIRA, 2011, p. 388).
O presente estudo vem se juntar às investigações que compreendem o cordel como
uma possibilidade pedagógica, como um artefato cultural que tem a potencialidade de
expressar os mais variados tipos de conhecimentos através de uma linguagem poética, rimada
e singelamente popular. Enfim, “o cordel é um jornal, é divertimento, literatura, meio de
difusão do conhecimento, de perpetuação da história e da cultura. É meio de expressão de
sentimentos, meio de refletir e pensar a realidade” (CEARÁ, 1978, p. 17).
Trazer o cordel para a formação de professores é pensar a Universidade como um
espaço que deve se abrir para a interculturalidade, como um universo que deve criar canais de
9890
diálogo entre as diferentes formas de linguagem. E assim, as diferentes lógicas culturais
podem dialogar e serem utilizadas como arsenais pedagógicos que favorecem a formação
reflexiva dos alunos. Desse modo, o campo pedagógico não se fecha em uma concepção
curricular que privilegia somente um tipo de manifestação cultural, normalmente aquela que
responde aos anseios de uma cultura erudita, “entendida como de produção mais requintada
porque mais elaborada por adequados mecanismos de sistematização e racionalização”
(TURA, 2005, p. 151).
Historicamente, “há uma dificuldade especial de estudar a cultura popular que se
instituiu basicamente pela tradição oral e por seus poucos produtos literários” (TURA, 2005
p. 152). Sob uma lógica curricular mais crítica entendemos que o contexto escolar e
acadêmico não pode escapar da construção de uma concepção curricular que vislumbre a “o
diálogo entre as diferentes culturas, expressando “o relacionamento circular feito de
influências recíprocas entre as culturas dominantes e dominadas” (Idem, Ibidem, p. 155).
Privilegiar os elementos das diferentes culturas e colocá-los em contato é o caminho
central para a incorporação e reelaboração de novos conhecimentos, entendendo-os como
saberes que se entrelaçam, em “redes de significados que têm seus sentidos, lógicas, técnicas
sendo construídas em lugares, por vezes, diferentes daquelas da cultura escolar” (TURA,
2005, p. 163). As subjetividades produzidas pelo currículo tomam como referencial as teorias
pós-críticas que
Distinguem o currículo como uma linguagem dotada de significados, imagens, falas, posições discursivas e, nesse contexto, destaca que nas margens do discurso curricular se comunicam códigos distintos, histórias esquecidas, vozes silenciadas que, por vezes se imiscuem com o estabelecido, regulamentado e autorizado (Idem, Ibidem, p. 163).
Nessa direção, o cordel como expressão da cultura popular pode ser tomado como
potencialidade pedagógica na formação docente, contribuindo para a reflexão de temas
relevantes para o campo educativo. No caso desse estudo, privilegiamos a reflexão acerca da
leitura, evidenciando os olhares e experiências formativas de professorandos do Curso de
Pedagogia da URCA nesse campo.
É fato que, no Brasil, “a literatura de cordel chegou com colonizadores lusos, em
‘folhas soltas’ ou mesmo em manuscritos” (DIÁRIO DO NORDESTE, 2010, p. 02). No
Nordeste, em fins do século passado, “a literatura de cordel surgiu e se fixou como uma das
peculiaridades da cultura regional” (Idem, ibidem, p. 02). Por sua vez, no Ceará,
9891
Os primeiros cordéis impressos datariam provavelmente, das primeiras décadas deste século. As informações que temos, revelam a edição de cordéis no Cariri, nas oficinas do Jornal ‘O Rebate’, fundado pelo Pe. Cicero, em Juazeiro, já nos anos vinte (CEARÁ, 1978, p. 17).
Fundada em 1991, a Academia de Cordelistas do Crato, é atualmente uma das
principais entidades que agrega os cordelistas da região do Cariri Cearense. Esses poetas
populares produzem cordeis sobre as mais diversas temáticas que “estão servindo para
pesquisa e para leitura nas escolas” (DIÁRIO DO NORDESTE, 2010, p. 02).
Consideramos enfim, que o cordel é um tipo de literatura que tem presença marcante
no contexto cultural caririense, logo deve servir como fonte e base profícua para as reflexões
sobre a leitura na formação docente.
A leitura, da escola à universidade, em versos de cordel
No dia 27 de junho de 2011 aconteceu um encontro com os participantes da já citada
pesquisa, onde realizamos a oficina de cordel com a Professora Maria do Rosário Lustosa da
Cruz, reconhecida autora que tem várias publicações em cordeis abordando diferentes
temáticas,
Maria do Rosário tem uma endocrinologia vazada em emoções da natureza sertaneja, mais uma inteligência de capacidade cultural que a distingue como Vice-Presidente do Instituto Cultural do Vale Caririense – ICVC; Sócia da Academia dos Cordelistas do Crato; Segunda Secretária da Associação dos Poetas de Barbalha e Griô (Contadora de Histórias) pelo ponto de Cultura Lira Nordestino, em Projeto da Universidade Regional do Cariri-URCA (BARBOSA, 2011, p. 07).
Rosário Lustosa iniciou a oficina explanando sobre a história do cordel. Logo a seguir
explicou sobre os aspectos formais dessa literatura popular. Demonstrou através da leitura de
folhetos de cordel que nesse tipo de literatura “o corpo todo fala para enunciar as verdades
que estão guardadas pelas sextilhas, embaladas pelas rimas, acolhidas pela métrica e
traduzidas pela melodia” (CARVALHO, 2011, p. 05).
A cordelista instigou os participantes da pesquisa a produzirem algumas estrofes de
cordel, refletindo sobre as suas principais experiências de leitura, da escola à universidade.
Essa atividade foi parte de um trabalho mais amplo, pois já vinham acontecendo alguns
encontros com o grupo de alunos para atender aos objetivos do projeto de pesquisa: “A leitura
na Aprendizagem da Profissão”, mencionado anteriormente. Apresentamos a seguir alguns
versos das estrofes de cordel produzidas pelos colaboradores dessa pesquisa.
9892
Memórias de formação leitora traduzidas nos versos do cordel
O ensino de base teórica tradicional considera a leitura pela leitura, sendo algo que
tem um fim em si mesmo. Nestas teorias, o que se sabe é que o aluno tem que aprender a ler
sob a lógica da obrigatoriedade. Por isso vemos com frequência os alunos nos mais diversos
níveis dizendo que a leitura é algo enfadonho, repetitivo, memorizador e sem sentido. De
acordo com os estudantes:
Na educação tradicional O professor era o dono do saber Não importava o aluno Ele só queria ensinar a ler E se o aluno não aprendesse Não tinha nada a fazer (FR) No geral era assim Professor sem formação Dava aula todo dia E passava a lição Se o aluno não entregava Era vítima de agressão (DE)
Reiteramos que a escola não é a única instância de formação de leitores, porém tem
uma importância fundamental nesse processo. É principalmente sobre ela que recai a
responsabilidade de reverter o índice de não-leitores no Brasil. No tocante a essa questão,
dados da Pesquisa: “Retratos da Leitura no Brasil” revelam que
A não ser entre os entrevistados que fizeram ou fazem estudos universitários, a leitura decresce muito entre os adultos, podemos supor que a escola não tem formado leitores para a vida inteira, talvez por práticas pouco sedutoras e obrigatórias, das quais o não-estudante procura se livrar assim que ultrapasse os limites da escola (CUNHA, 2007, p.15).
Diante da prática leitora autoritária e opressora, os estudantes, geralmente, caminham
desinteressados pelos horizontes da leitura. Para entrar na universidade encontram-se diante
de uma vasta literatura, composta, geralmente, por obras literárias que são obrigados a ler para
passar no vestibular. Das obras recomendadas e obrigatórias no Ensino Médio como
paradidáticos da Literatura brasileira, os licenciandos investigados destacaram as seguintes:
Iracema, O tronco do Ipê, Esaú e Jacó, O ano da morte de Ricardo Reis, A carta de Pero Vaz
9893
de Caminha, Fogo Morto, Coleção Melhores Poemas – Patativa do Assaré, Terra Sonâmbula,
O Quinze, Dom Casmurro, O Cortiço, Lucíola, A Moreninha, dentre outras.
Há que se perceber que estas leituras, normalmente são representadas por uma
literatura rica, importantes fontes de conhecimentos. Porém, a prática da memorização a que
os estudantes são submetidos faz com que eles não percebam a grandeza destas obras, que
logo são esquecidas pelos mesmos:
No ensino médio os livros Mostraram-se esquecidos Depois de tanto tempo de estudo Quase que um tempo perdido Pois da lembrança o conteúdo Mostrou que tinha fugido (FR)
Os dados coletados indicam ainda que no Ensino Médio existe uma prevalência da
leitura dos conteúdos dos livros didáticos. As obras literárias, normalmente são lidas de forma
obrigatória para a realização das provas do vestibular. Pressupõe-se então que é incipiente e
irrisório o incentivo a uma prática leitora mais plural e diversificada.
No ensino médio Quase nada se ensinava Só o livro didático Era nos apresentado, Cheguei à faculdade Com muita dificuldade. (DA)
O ato de ler baseado na simples memorização, geralmente conduz os estudantes a
tomarem iniciativas que não contribuem para uma assimilação ativa dos conhecimentos. O
principal objetivo do ensino passa a ser a obtenção de notas mínimas para escaparem de uma
possível reprovação. É o que afirmam:
Eram leituras que não tinham um fim Mas os alunos tinham muita esperteza Da internet salvavam os resumos Diziam que era seu com firmeza O professor duvidava Mas não tinha muita certeza (FR)
Desse modo, perde-se de vista a função social da escola, que é assegurar aos
estudantes a incorporação e a reelaboração de conhecimentos construídos historicamente pela
humanidade, “de modo a favorecer o desenvolvimento e a apreensão de saberes científicos,
9894
artísticos, tecnológicos, sociais e históricos, compreendendo as necessidades do trabalho, os
elementos materiais e a subjetividade humana” (BRASIL, 2010, p. 25).
Ao ingressarem na universidade as dificuldades com o campo da leitura tendem a
aumentar. Os estudantes se vêem diante de uma literatura de cunho técnico e científico,
envolta por certo grau de complexidade que exige dos mesmos uma prática de leitura contínua
que, normalmente, não foi adquirida nos graus de ensino anterior. Logo, eles tendem a
continuar com a mesma lógica da leitura por memorização, com o intuito de conseguirem a
nota que precisam para obterem aprovação semestre a semestre:
E se a leitura já é algo difícil Imagine na universidade Diante de palavras complicadas Você encontra dificuldade Só com o dicionário do lado Tem alguma facilidade (FR)
O ato de ler na universidade assume assim um caráter mais informativo, sendo
focalizado “apenas como ‘recurso de aprendizagem’, em detrimento do conhecimento sobre o
processo de aprendizagem da leitura e sobre os efeitos sociais que ela provoca no mundo
letrado” (BENEVIDES, 2002, p. 02). É grande a preocupação com a quantidade de textos e
livros que os alunos precisam ler. Os estudantes da pesquisa revelam essa inquietação nos
trechos a seguir:
Já perdi a conta De quantos livros tive de ler Quase que enlouqueço Por não os entender Sem exagerar te digo Para continuar na faculdade Muita vontade tem que ter (FR) Os textos que antes tinham Uma folha por vez Hoje cada texto tem Quase sempre dezesseis E se não ler que preste De dezesseis vira cem (EV)
A postura leitora descrita deixa claro que “devido à quantidade de informações sobre
práticas e teorias, a leitura pode ser compreendida apenas como meio de se estar informado. O
conhecimento mesmo, como parte de um saber mais elaborado, fica posto de lado”
(BENEVIDES, 2002, p. 02). Ademais, “a insistência na quantidade de leituras sem o devido
9895
adentramento nos textos a serem compreendidos, e não mecanicamente memorizados, revela
uma visão mágica da palavra escrita. Visão que urge ser superada” (FREIRE, 1994, p. 18).
Porém, a “critica à magicização da palavra” não anula a responsabilidade dos educadores e
educandos de lerem, “sempre e seriamente, os clássicos nestes ou naquele campo do saber”
(Idem, Ibidem, p.18), adentrando nos textos e criando uma “disciplina intelectual, sem a qual
inviabilizamos a nossa prática enquanto professores e estudantes” (Idem, Ibidem, p. 18). É
interessante observar que há uma mudança considerável nos tipos de leitura que marcam o
tempo de preparação para o vestibular e o período de vivência na universidade:
Antes se lia romance Hoje o romance morreu E deu espaço a Vigotsky Que a mente endoideceu Piaget e Paulo Freire Deram espaço a confusão em Uma mente onde morava Dom Casmurro e Lampião (EV)
Faz-se necessário reiterar que a leitura encontra-se nos mais diferentes cantos e
recantos da vida, não se restringindo aos domínios da escola ou da universidade. Logo, os
modos de ler mudam, assim como mudam as leituras e os leitores em seus mais diferentes
tempos e espaços. Nessa perspectiva, os leitores apresentam experiências com o mundo
escrito “bastante diferente daquela que o mundo letrado (o cânone escolar) define como uma
leitura legítima, como o modelo ideal de leitura que deve fazer parte da formação de
professores” (BENEVIDES, 2002, p. 14). E é esse mundo de experiências leitoras e sócio-
culturais que deve ser articulado às práticas de leitura a serem vivenciadas nos espaços
formais de ensino, tendo em vista a formação de um sujeito-leitor mais crítico, consciente e
reflexivo.
Considerações finais
O que se leu nos escritos antecedentes não são mais do que resultados provisórios de
uma realidade investigada. Têm como sustentáculo experiências que se misturam, que se
encontram, que se interpenetram numa passarela de ideias movimentada por versos de cordel,
que revelam experiências de leitura de futuros professores. Trazemos aqui nada mais do que
processos analíticos que representam fragmentos de uma realidade, jamais vistos como
desconectados de uma totalidade maior. São palavras, falas, ideias e pensamentos que
9896
mostram uma existência articulada a um contexto social, político, cultural e linguístico. Logo,
não podem se desprender dessa conjuntura. São enunciações de sujeitos que, por meio de
singelos versos de cordel, materializaram aqui suas ideias e experiências leitoras.
Sabemos que a formação leitora do indivíduo é um todo complexo e contínuo,
devendo abranger as mais diferenciadas experiências escolares e não escolares. Na retomada
das narrativas de formação leitora percebemos também que ainda subsiste nas escolas e
universidades uma lógica de que existe uma leitura legítima, ideal, normalmente aquela que é
representada por uma cultura erudita e letrada, a leitura da palavra. No entanto, o ensino
fragmentado dessa cultura, distante de uma leitura pautada em saberes do cotidiano, em uma
leitura de mundo, vem se constituindo em um dos principais entraves na formação do sujeito-
leitor.
Como consequência desse estudo, reconhecemos que a própria reflexão sobre a leitura
nos cursos de formação docente pode provocar mudanças na rotina dos professorandos,
enquanto futuros mediadores da leitura. Ao pensar as suas próprias experiências de formação
leitora na escola e na universidade, estes passam a se preocupar mais com suas práticas e
modos de lidar com a leitura, buscando se inserir nesse universo de forma mais crítica e
reflexiva.
Por isso, acreditamos que ler sempre, ler o mundo, ler a palavra, ler o universo que nos
cerca, ler a própria leitura, ainda é o caminho para a constituição de sujeitos-leitores críticos e
reflexivos, construtores e não apenas reprodutores de ideias. Ideias que ao mundo retornam,
tendo em vista a sua transformação em algo sempre melhor. Isso não é permitido às “pedras”,
nem às “plantas”, mas somente aos seres humanos que fazendo versos e reversos nomeiam as
coisas do mundo, pois são antes de tudo, seres da práxis.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Geraldo Meneses. Uma Apresentação. In: LUSTOSA, Rosário. 100 anos de Juazeiro registrados no cordel 1911-2011. Juazeiro do Norte: HB Gráfica, 2011.
BENEVIDES, Araceli Sobreira. O que revela o discurso de Professores sobre a sua leitura durante um curso de formação de professores. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte: Expressão, Mossoró, jan-dez, 2002.
BRASIL. Conferência Nacional de Educação - CONAE 2010 - Construindo o Sistema Nacional Articulado de Educação: O Plano Nacional de Educação, Diretrizes e Estratégias de Ação. Documento Referência, 2010.
9897
CARVALHO, Gilmar de. O Cordel e Juazeiro. In: LUSTOSA, Rosário. 100 anos de Juazero registrados no cordel 1911-2011. Juazeiro do Norte: HB Gráfica, 2011.
CEARÁ. Secretaria de Cultura, Desporto e Promoção Social. Antologia da Literatura de cordel. Fortaleza, 1978.
CUNHA, Maria Antonieta da. Acesso à leitura no Brasil: Considerações a partir da pequisa. In: Retratos da Leitura no Brasil. Instituto Pró-Livro, 2007, p.15.
DIÁRIO DO NORDESTE. Academia dos Cordelistas resgata tradição. Fortaleza, Ceará – Domingo, 14 de novembro de 2010, p.02.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 29. ed. São Paulo: Cortez, 1994.
GATTI, Bernadete Angelina. Grupo Focal na pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. BrasÍlia: Liber Livro, 2007.
MINAYO, Cecília de Sousa (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 23 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.
OLIVEIRA, Joan Edson de. De uma casa cheia de gente, só resta um gato e uma canção: afeto e história em uma correspondência poética. In: CAVALCANTE, Maria Juraci Maia; QUEIROZ, Zuleide Fernandes de. ARAÚJO, José Edvar Costa de. HOLANDA, Patricia Helena Carvalho. História da Educação Comparada: Discursos, ritos e símbolos da educação popular, cívica e religiosa. Fortaleza: Edições UFC, 2011.
POWELL, R. A.; SINGLE, H.M. Focus groups. International Journal of Quality in Heath Care. In: GATTI, Bernadete Angelina. Grupo Focal na pesquisa em Ciências Sociais e Humanas. Brasília: Liber Livro, 2007.
SILVA, Ezequiel Theodoro da. O professor leitor. 2009. Disponível em: http://leituraensino.blogspot.com/2009/10/o-professor-leitor.html. Acesso em: maio de 2011.
SLATER, Candace. A vida no barbante: a literatura de cordel no Brasil. Otávio Alves Velho, tradução de. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.
TURA, Maria de Louders Rangel. Conhecimentos escolares e a circularidade entre culturas. In: LOPES, Alice Casimiro; MACEDO, Elizabeth. Currículo: debates contemporâneos. 2. Ed. São Paulo: Cortez, 2005.