experiência, narrativa e conhecimento: a perspectiva do psiquiatra e a do usuário

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1053 Experiência, narrativa e conhecimento: a perspectiva do psiquiatra e a do usuário | 1 Octavio Serpa Junior, 2 Rosana Onocko Campos, 3 Nuria Malajovich, 4 Ana Maria Pitta, 5 Alberto Giovanello Diaz, 6 Catarina Dahl, 7 Erotildes Leal | 1 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psiquiatria. Rio de Janeiro-RJ, Brasil. Endereço eletrônico: [email protected] 2 Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciencias Médicas, Saúde Coletiva. Campinas-SP, Brasil. Endereço eletrônico: rosanaoc@ mpc.com.br 3 Universidade Federal Fluminense, Psicologia. Rio das Ostras-RJ, Brasil. Endereço eletrônico: nuriamalajovich@ gmail.com 4 Universidade Católica de Salvador. Salvador-BA, Brasil. Endereço eletrônico: ana.maria. [email protected] 5 Universidade Nacional de Rosário. Rosário, Argentina. Endereço eletrônico: algiova@ gmail.com 6 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Psiquiatria. Rio de Janeiro-RJ, Brasil. Endereço eletrônico: catdahl@hotmail. com 7 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Medicina. Macaé-RJ, Brasil. Endereço eletrônico: [email protected] Recebido em: 28/07/2014 Aprovado em: 13/10/2014 Resumo: O presente estudo, realizado em parceria entre UFRJ, UNICAMP e UFBA, pretendeu conhecer a experiência das pessoas com o diagnóstico de transtorno do espectro esquizofrênico, em tratamento nos CAPS, e a experiência dos psiquiatras inseridos na rede pública de atenção à saúde mental. Narrativas relacionadas ao processo saúde-doença, no caso de pessoas com diagnóstico de esquizofrenia, e narrativas sobre o processo de formulação do diagnóstico de esquizofrenia, prognóstico e tratamento, no caso dos psiquiatras, foram estudadas. Este é um estudo qualitativo, multicêntrico, informado pelas abordagens teóricas da Análise Interpretativa Fenomenológica e da Antropologia médica, realizado nas cidades de Campinas, Rio de Janeiro e Salvador. A principal ferramenta metodológica empregada para produção das narrativas foram os grupos focais. Técnicas da entrevista de explicitação foram incorporadas. As categorias identificadas no estudo – Experiência de Adoecimento, Diagnóstico de Esquizofrenia, Estigma Social, Experiência de Restabelecimento e Tratamento e o Contexto Dinâmico dos CAPS – e as narrativas que as compuseram foram apresentadas e discutidas com o propósito de dar visibilidade aos elementos que caracterizam as narrativas-experiências dos parcipantes e indicar o modo como se configura sua complexidade. Palavras-chave: experiência de adoecimento; narrativa; esquizofrenia. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312014000400005

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Autores: Octavio Serpa Junior, 2 Rosana Onocko Campos, 3 Nuria Malajovich,4 Ana Maria Pitta, 5 Alberto Giovanello Diaz, 6 Catarina Dahl, 7 Erotildes Leal |

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  • 1053Experincia, narrativa e conhecimento:a perspectiva do psiquiatra e a do usurio

    | 1 Octavio Serpa Junior, 2 Rosana Onocko Campos, 3 Nuria Malajovich,

    4 Ana Maria Pitta, 5 Alberto Giovanello Diaz, 6 Catarina Dahl, 7 Erotildes Leal |

    1 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psiquiatria. Rio de Janeiro-RJ, Brasil. Endereo eletrnico: [email protected]

    2 Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciencias Mdicas, Sade Coletiva. Campinas-SP, Brasil. Endereo eletrnico: [email protected]

    3 Universidade Federal Fluminense, Psicologia. Rio das Ostras-RJ, Brasil. Endereo eletrnico: [email protected]

    4 Universidade Catlica de Salvador. Salvador-BA, Brasil. Endereo eletrnico: [email protected]

    5 Universidade Nacional de Rosrio. Rosrio, Argentina. Endereo eletrnico: [email protected]

    6 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Psiquiatria. Rio de Janeiro-RJ, Brasil. Endereo eletrnico: [email protected]

    7 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Medicina. Maca-RJ, Brasil. Endereo eletrnico: [email protected]

    Recebido em: 28/07/2014Aprovado em: 13/10/2014

    Resumo: O presente estudo, realizado em parceria entre UFRJ, UNICAMP e UFBA, pretendeu conhecer a experincia das pessoas com o diagnstico de transtorno do espectro esquizofrnico, em tratamento nos CAPS, e a experincia dos psiquiatras inseridos na rede pblica de ateno sade mental. Narrativas relacionadas ao processo sade-doena, no caso de pessoas com diagnstico de esquizofrenia, e narrativas sobre o processo de formulao do diagnstico de esquizofrenia, prognstico e tratamento, no caso dos psiquiatras, foram estudadas. Este um estudo qualitativo, multicntrico, informado pelas abordagens tericas da Anlise Interpretativa Fenomenolgica e da Antropologia mdica, realizado nas cidades de Campinas, Rio de Janeiro e Salvador. A principal ferramenta metodolgica empregada para produo das narrativas foram os grupos focais. Tcnicas da entrevista de explicitao foram incorporadas. As categorias identificadas no estudo Experincia de Adoecimento, Diagnstico de Esquizofrenia, Estigma Social, Experincia de Restabelecimento e Tratamento e o Contexto Dinmico dos CAPS e as narrativas que as compuseram foram apresentadas e discutidas com o propsito de dar visibilidade aos elementos que caracterizam as narrativas-experincias dos parcipantes e indicar o modo como se configura sua complexidade.

    Palavras-chave: experincia de adoecimento; narrativa; esquizofrenia.

    DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312014000400005

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    IntroduoEm meados do sculo passado, o processo de transformao da assistncia psiquitrica

    engendrou, no mundo ocidental, a reorientao do modelo de assistncia em sade

    mental. Foram eixos desse processo a desinstitucionalizao dos pacientes de longa

    permanncia nas instituies psiquitricas, a progressiva (re)insero dessas pessoas

    na vida social e a criao de uma rede de servios comunitrios de sade mental

    (THORNICROFT; TANSELLA, 2008). O modelo de ateno comunitria

    sade mental preocupava-se com o diagnstico e tratamento dos transtornos

    mentais, mas no s. Por considerar o adoecimento mental um processo complexo,

    buscava, atravs da reabilitao psicossocial, tratar igualmente dos seus impactos

    sobre a vida do adoecido. Ou seja, as desabilidades (disabilities) experimentadas por pessoas diagnosticadas com transtornos mentais graves, como por exemplo a

    esquizofrenia, constitua questo para o tratamento. A satisfao das necessidades

    individuais dos usurios, a incorporao da experincia subjetiva dos mesmos, assim

    como das questes que envolvem as diferentes esferas da vida cotidiana (trabalho,

    famlia, lazer...), tornaram-se eixos a serem considerados no desenho do cuidado

    em sade, ampliando a prpria ideia de tratamento.

    No Brasil, em consonncia com a tendncia mundial de transformao da

    assistncia psiquitrica acima referida, iniciou-se, em fins dos anos 1970, um

    processo de reformulao da assistncia psiquitrica pblica que, nas dcadas

    seguintes, pautou a poltica pblica de assistncia em Sade Mental. A partir

    do ano de 2002, basicamente dois eixos reduo dos leitos hospitalares e

    criao de uma rede de ateno sade mental, de base comunitria e territorial,

    para o atendimento a pessoas com transtornos mentais graves e persistentes

    sustentaram a direcionalidade da poltica pblica de Sade Mental. Foi neste

    cenrio que surgiram os Centros de Ateno Psicossocial (CAPS), equipamentos

    estratgicos (LEAL; DELGADO, 2007, p. 137) que visam tanto a promoo

    da sade/sade mental quanto o desenvolvimento de prticas clnicas promotoras

    de ateno integral e a reabilitao psicossocial das pessoas diagnosticadas com

    transtornos mentais graves.

    Transcorridos 12 anos da publicao da portaria que instituiu os CAPS

    como dispositivo estratgico desta poltica (BRASIL, 2002), o desafio que

    ora se coloca o da radicalizao da centralidade do usurio no desenho e nas

    aes de cuidado (ONOCKO CAMPOS, 2001) neste e nos demais servios

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    1055que compem hoje a rede territorial de servios comunitrios. Esforos tm

    sido feitos nesta direo. Dentre eles, citamos a tentativa de mudar o modo de

    tratar as narrativas e experincias das pessoas adoecidas. Consideradas tambm

    como ndice da condio existencial (GOLDBERG, 1996; TENRIO, 2001),

    as narrativas podem, e devem, deixar de ser consideradas apenas no registro da

    patologia, o que configuraria mais um impulso na direo da promoo de uma

    relao e um lugar social diferentes para a experincia da loucura. A necessidade

    de dilogo com a experincia vivida do usurio intensifica-se nesse cenrio.

    Deixar-se iluminar por esta experincia apresenta-se como condio para auxiliar

    a pessoa adoecida na lida com seu processo de adoecimento, a compreender sua

    prpria experincia, a reduzir estigma e a criar condies de possibilidades mais

    auspiciosas para sua vida presente e futura.

    Esse tipo de inciativa, que tambm do mbito da prtica clnica, no se d,

    todavia, de forma simples e automtica no cotidiano dos servios. Recentemente,

    alguns autores tm indicado que os servios comunitrios de sade mental ainda

    encontram importantes obstculos e desafios para superar o cuidado centrado no

    modelo biomdico e no hospital psiquitrico (ALVERGA; DIMENSTEIN, 2006;

    BEZERRA, 2007; MENEZES; YASUI, 2009). A fora da ideia de que a evoluo

    dos transtornos mentais depende nica e exclusivamente das variveis relacionadas

    ao modelo biomdico (etiologia, diagnstico, prognstico, agudeza e cronicidade,

    entre outras) e que prescinde da atmosfera histrico-cultural e scio-ambiental

    que envolve o sujeito adoecido, seu modo de ser-no-mundo, de se relacionar com

    os outros e de viver e compreender a prpria experincia de adoecimento (LEAL;

    SERPA JR.; MUOZ, 2007), constituem alguns destes importantes obstculos.

    A estes empecilhos, ligam-se outros de igual relevncia. Citamos, por exemplo,

    os limites impostos pela tradio diagnstica e clnica pautada na Psicopatologia

    Descritiva, perspectiva hegemnica no campo, que, pela viso das alteraes

    psicopatolgicas que oferece, pouco contribui para a promoo de prticas

    inclusivas e cidads em sade mental. Benedetto Saraceno (1997, 1999) foi um

    dos autores que, h mais de uma dcada, indicou os limites desta tradio para

    operar um cuidado transformador, centrado no usurio e situado no territrio.

    A valorao negativa da experincia existencial decorrente dos transtornos

    mentais, e sua consequente qualificao como ndice de uma condio

    humana inferior, por parte tambm de quem a vivencia, outro elemento que

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    contribui para que o desenho do cuidado no privilegie o usurio como seu

    eixo, preserve a ideia de que os trantornos mentais graves evoluem quase que

    impreterivelmente para a deteriorao e que o estigma ligado a elas se mantenha.

    Estudos, principalmente da ltima dcada, tm indicado, por exemplo, que

    a recuperao dos transtornos mentais no est nica e diretamente ligada

    presena ou ausncia de sintomas e que guarda ntima relao com o modo

    como o sujeito lida com esses fenmenos e os significa em suas vidas (CORIN;

    LAUZON, 1992; HONIG et al., 1998; ROMME; ESCHER, 1997; CORIN,

    2003; DAVIDSON, 2003; DEL BARRIO et al., 2004).

    Este panorama permite antever as dificuldades em jogo quando se trata de

    pr em dilogo a perspectiva dos profissionais referidos ao modelo biomdico

    de conhecimento, em especial a do psiquiatra, aparelhado com o instrumental

    dos sistemas classificatrios que s acessam a esquizofrenia do exterior, e a da

    pessoa com diagnstico de esquizofrenia, que vivencia uma transformao

    nos aspectos mais bsicos de suas modalidades experienciais. Consegue o

    psiquiatra, e os demais profissionais que utilizam modelos que compartilham

    caractersticas semelhantes ao modelo de conhecimento biomdico, acessar esta

    experincia e compreender as narrativas produzidas pelos usurios a partir dela?

    E o usurio com diagnstico de esquizofrenia consegue compreender melhor

    sua experincia de adoecimento e dar sentido ao seu processo de tratamento, a

    partir da imagem de seu transtorno oferecida pela psicopatologia descritiva e seus

    sistemas classificatrios? No seria chegada a hora de investir na radicalizao do

    dilogo entre as perspectivas do usurio e do psiquiatra, trazendo para o centro

    da cena aquilo que deve ser o objeto da Psicopatologia: a experincia subjetiva

    corporificada e as elaboraes narrativas engendradas a partir dela?

    O presente estudo, realizado em parceria entre a Universidade Federal do

    Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

    e a Universidade Federal da Bahia (UFBA), pretendeu conhecer a experincia

    das pessoas com o diagnstico de transtorno do espectro esquizofrnico, em

    tratamento nos Centros de Ateno Psicossocial (CAPS), e a experincia dos

    psiquiatras inseridos na rede pblica de ateno sade mental. Narrativas

    relacionadas ao processo sade-doena, no caso de pessoas com diagnstico

    de esquizofrenia, e narrativas sobre o processo de formulao do diagnstico

    de esquizofrenia, prognstico e tratamento, no caso dos psiquiatras, foram

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    1057estudadas. Investigar se as narrativas sobre a experincia de adoecimento dos

    usurios iluminam o conhecimento tcnico do psiquiatra e se o conhecimento

    tcnico dos psiquiatras capaz de iluminar a experincia dos usurios sobre o

    fenmeno sade-doena-cuidado foram os principais objetivos deste estudo.1

    MtodoEste um estudo qualitativo, multicntrico, informado pelas abordagens tericas

    da Anlise Interpretativa Fenomenolgica (SMITH; FLOWERS; LARKIN,

    2009) e da Antropologia mdica (KLEINMAN; EISENBERG; GOOD, 1978;

    KLEINMAN, 1988; GOOD, 1994), realizado nas cidades de Campinas,

    Rio de Janeiro e Salvador. Nele foram analisadas narrativas de experincia de

    adoecimentos de usurios de CAPS diagnosticados com esquizofrenia e narrativas

    acerca do processo de formulao do diagnstico e tratamento de pessoas com o

    diagnstico de esquizofrenia de psiquiatras inseridos na rede pblica de ateno

    sade mental.

    A Anlise Interpretativa Fenomenolgica um tipo de abordagem aplicada

    pesquisa qualitativa que, orientada pelo referencial terico da Fenomenologia

    e Hermenutica, visa compreender de modo interpretativo os processos de

    construo de sentido, o universo de significaes, aes sociais e relaes entre

    os sujeitos, situados em determinado contexto e momento histrico e o modo

    como estes compartilham a prpria experincia e seus significados (SMITH;

    FLOWERS; LARKIN, 2009).

    A experincia de adoecimento relaciona-se ao modo como a pessoa que adoece,

    seus familiares e sua rede social vivem, interpretam, explicam, lidam e respondem

    ao sofrimento causado por uma doena. Nesta perspectiva, as narrativas sobre o

    adoecimento ocupam posio de suma relevncia nos estudos sobre a experincia do

    adoecimento (KLEINMAN, 1988), supondo o entrelaamento entre subjetividade,

    corpo, linguagem e cultura (SCHUTZ, 1945; GOOD, 1994; DAVIDSON,

    2003). As narrativas exercem a funo de mediao entre a experincia vivida

    dos sujeitos imersos em uma comunidade lingustica e os acontecimentos e a

    unidade temporal da histria relatada (RICOEUR, 1997). Sua anlise vem sendo

    crescentemente utilizada nos estudos qualitativos em sade como estratgia para

    acessar a experincia subjetiva e as biografias dos participantes (ONOCKO

    CAMPOS; FURTADO, 2008; RABELO; ALVES; SOUSA, 1999).

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    A principal ferramenta metodolgica empregada para produo das narrativas

    foram os grupos focais (KRUGER; CASEY, 2009). Tcnicas da entrevista de

    explicitao (VERMERSCH, 2006), que orientam a formulao de questes

    que evitam narrativas generalizantes, distantes da sua vivncia pessoal, foram

    incorporadas. Escolheu-se o grupo focal tambm porque, no caso dos usurios,

    se tratava de uma populao com menor poder contratual, que dispe de

    um conhecimento sobre a prpria experincia que no a priori legitimado

    socialmente. O setting grupal tem a capacidade de criar ambiente de suporte

    mtuo e de reasseguramento entre os participantes, proporcionando maior

    fluidez no processo de construo das narrativas e minimizando a verticalidade

    que geralmente existe entre pesquisador e participante em situao de entrevista

    individual (MOEKE-MAXWELL; WELLS; MELLSOP, 2008).

    O processo de recrutamento dos participantes aconteceu de agosto a novembro

    de 2009. Os sujeitos da pesquisa foram usurios de um CAPS em cada uma

    das localidades e psiquiatras de Campinas e do Rio de Janeiro. Dentre os que

    aceitaram participar da pesquisa, foram recrutados os que contemplaram os

    critrios abaixo indentificados:

    Usurios: 1) autoatribuio de experincias comuns condio esquizofrnica (alterao da conscincia de si, audio de vozes, sensao de estar sendo perseguido

    ou vigiado, entre outras). Para favorecer a autoatribuio de experincias, foi exibido

    um vdeo, seguido de uma roda de conversa com os usurios dos servios. Nesse

    momento, os usurios se identificavam ou no com as modalidades experienciais

    relacionadas esquizofrenia, apresentadas no vdeo. O vdeo, produzido pela

    equipe de pesquisa com o patrocnio da FAPERJ, em parceria com alunos da Escola

    de Comunicao da UFRJ, reuniu autorrelatos de pessoas com o diagnstico de

    esquizofrenia selecionados a partir de levantamento bibliogrfico na seco de

    First-Person Accounts do Schizophrenia Bulletin, no perodo de 1980 a 2009. Os

    autorrelatos foram adaptados, roteirizados e atuados por atores amadores. Para a

    elaborao do roteiro, levou-se em conta tanto o espectro de experincias peculiares

    ao adoecimento esquizofrnico quanto o perfil scio-demogrfico da clientela

    dos CAPS do Rio de Janeiro; 2) ter o diagnstico de esquizofrenia ou transtorno

    psictico, segundo o instrumento diagnstico MINIPLUS e o diagnstico da

    equipe, ambos orientados pelos critrios da CID10; e 3) estar em tratamento no

    CAPS e no haver contra indicao, por parte da equipe, sua participao.

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    1059Psiquiatras: trabalhar na rede pblica de sade mental, em servio diferente do servio em que foram recrutados os usurios, a fim de se preservar o vnculo

    e a privacidade envolvidos na relao mdico-paciente.

    No decorrer do processo de recrutamento, alguns usurios, apesar de terem

    preenchido os critrios e concordado em participar do estudo, no compareceram

    aos grupos. No caso dos psiquiatras, as principais barreiras a impossibilitar ou

    dificutar o recrutamento e sua participao foram: sobrecarga de trabalho, alta

    rotatividade destes profissionais nos servios, escassez desta categoria profissional

    na rede de sade mental, dificultando seu afastamento para realizar atividades

    alm das previstas, dentre outros. Em Salvador, por estes motivos, no foi possvel

    realizar o grupo com psiquiatras.

    Os grupos focais, audiogravados e transcritos, foram conduzidos por dois

    a trs pesquisadores (moderador, observador e anotador). No caso dos grupos

    focais com usurios, um tcnico do servio participou exercendo a funo de

    moderao clnica. Os grupos aconteceram de novembro de 2009 a setembro

    de 2010, nos prprios servios, em trs tempos. No tempo 1 (T1), os usurios

    recrutados em cada uma das cidades se reuniram com o propsito de produzir

    narrativas sobre o processo de adoecimento e os psiquiatras se agruparam para

    narrar a experincia de construo do diagnstico e do projeto teraputico.

    Os temas propostos nos grupos com os usurios foram: antecedentes, crise,

    restabelecimento (recovery)/no-restabelecimento. Para a discusso destes

    temas, 22 encontros aconteceram nas trs cidades. Nos grupos com psiquiatras,

    foram discutidos: formulao do diagnstico de esquizofrenia, prognstico e

    tratamento. Foram realizados dois encontros, pelas limitaes acima descritas.

    No tempo 2 (T2), os usurios de cada um dos servios se reuniram para discutir

    as narrativas dos psiquiatras, apresentada em texto transcrito, e vice-versa. Nesta

    fase, foram realizados sete encontros com usurios, nas trs cidades, e dois com

    psiquiatras. No tempo 3 (T3), realizado apenas no Rio e em Campinas, usurios

    e psiquiatras se encontraram presencialmente no mesmo grupo com o propsito

    de discutir o material produzido em todo o processo. Nesta ltima fase, dois

    encontros foram realizados. O nmero de participantes nos grupos focais foi

    de sete usurios no Rio de Janeiro, quatro em Campinas e sete em Salvador. O

    participantes psiquiatras foram quatro do Rio de Janeiro e cinco em Campinas.

    Tcnicas da observao participante (no processo de entrada no campo e

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    recrutamento e nos grupos), registros de campo e entrevistas (diagnsticas) individuais tambm fora utilizados.

    O processo de anlise das informaes aconteceu em trs momentos distintos. Primeiramente, dois pesquisadores codificaram e categorizaram, de forma independente, os textos das transcries, luz de rvores de anlise estruturadas a partir dos eixos temticos propostos nos grupos. O contato com o material permitiu a identificao de diferentes modalidades narrativas: modelo explicativo, descrio da experincia e impacto da experincia/experincia encarnada. Da emergiram tambm categorias e subcategorias temticas: experincia de adoecimento; diagnstico de esquizofrenia; estigma social; experincia de restabelecimento; tratamento e contexto dinmico dos CAPS. Aps este primeiro momento, os mesmos pesquisadores validaram conjuntamente as categorizaes prvias e geraram a primeira verso categorizada e consolidada do material, a partir da insero das narrativas em uma mscara de anlise. Finalmente, um terceiro pesquisador trabalhou na validao final do material, gerando uma verso mais sinttica das narrativas, de acordo com as categorias e subcategorias temticas.

    A pesquisa foi realizada segundo as normas e princpios ticos de pesquisas envolvendo seres humanos, com parecer aprovado pelos Comits de tica e Pesquisa do Instituto de Psiquiatria da UFRJ (n 87 Liv. 02-09), do Comit de tica da UNICAMP (n 870/2009) e da Secretaria Municipal de Sade do Rio de Janeiro (n 210A/2009). Todos os participantes foram esclarecidos acerca dos objetivos e procedimentos do estudo e forneceram consentimento informado para participar, mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os nomes que identificam os participantes so fictcios, a fim de preservar seu anonimato.

    Resultados: o que mostram as narrativasAs narrativas analisadas e apresentadas neste artigo foram produzidas com a participao de 18 usurios e nove psiquiatras, que tm suas principais caractersticas sociodemogrficas indicadas nas tabelas 1 e 2.

    A mdia de idade dos usurios 44 anos, sendo a maioria do sexo masculino, solteira, em idade produtiva, com ensino mdio completo, no inserida no mundo do trabalho, identifica-se como miscigenada e refere ter religio. A mdia de idade dos psiquiatras foi 32 anos. Todos so formados em universidades pblicas e descrevem-se como brancos. A maioria do sexo feminino e tem dois ou mais empregos. Dois referem ter ps-graduao senso estrito.

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    1061Tabela 1. Informaes sociodemogrficas dos usurios participantes. Campinas, Rio de Janeiro e Salvador, 2009-2010

    Variveis N (18)

    Sexo Feminino Masculino

    612

    Faixa etria

    30-39 anos40-49 anos50-59 anos60-69 anos

    Sem informao

    58131

    Estado civil Solteiro (a)

    Casado(a)/amigada(o)Divorciado(a)/separado(a)

    1062

    Escolaridade

    Ensino fundamental incompletoEnsino fundamental completo

    Ensino mdio incompletoEnsino mdio completo

    Ensino superior completoSem informao

    421911

    Raa/Etnia NegraParda

    Branca

    567

    Profisso/ocupao DesempregadoAposentado/Auxlio doena/Pensionista

    Sem informao

    6111

    Religio CatlicaEvanglica

    Esprita No temOutras

    Sem informao

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    Diagnstico (segundo o MINIPLUS)

    Transtorno PsicticoEsquizofrenia

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    Tabela 2. Informaes sociodemogrficas dos psiquiatras participantes. Campinas e Rio de Janeiro. 2009-2010

    Variveis N (9)

    Sexo Feminino Masculino

    63

    Faixa etria 20-29 anos30-39 anos

    27

    Escolaridade Ensino superior completo em universidade pblica

    Ps-graduao

    7

    2

    Raa/Etnia Branca 9

    Vnculo de trabalho na rede pblica de sade mental

    123

    342

    *Valor de referncia R$ 622,00

    Anlise das narrativasAs categorias identificadas neste estudo e as narrativas que as compuseram

    sero apresentadas a seguir. A discusso tem o propsito de dar visibilidade aos

    elementos que caracterizam as narrativas-experincias dos parcipantes e indicar o

    modo como se configura sua complexidade.

    A Experincia de AdoecimentoEu vivi a minha vida toda sendo diferente, no porque eu me achava diferente, era o

    externo que me achava diferente. (Snia).

    A vivncia do transtorno mental expressa no fragmento acima atravs da fala

    sobre ser diferente, uma alterao do sentimento de si nem sempre identificada

    como adoecimento, podendo se apresentar como uma experincia de vida, uma

    marca de existncia.

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    1063Quando a gente no t bem a gente no tem percepo que as coisas esto indo mal pra gente. Quem percebe sempre um membro da famlia [...]. (Carlos).

    Nas circunstncias em que alteraes psicopatolgicas so vivenciadas como

    marca existencial e de vida, e no de adoecimento, como mostram os fragmentos

    acima, a vivncia de adoecimento pode advir mesmo assim, precipitada pelo olhar

    e/ou pela palavra do outro, de fora para dentro. A experincia de adoecimento

    pode ainda surgir em decorrncia de consequncias negativas ocasionadas na

    vida da pessoa, como observado na narrativa seguinte: Eu fui suspensa e com a suspenso eu fiquei muitssimo abalada, fiquei com depres-so, muito magrinha... (Regina).

    Este fragmento evidencia que o sofrimento, o sentimento de estar adoecido, foi

    experimentado a partir da suspenso do trabalho, foi efeito desta suspenso e no

    das dificuldades que a antecederam; estas sim, provavelmente ligadas diretamente

    doena e expresso de seus sintomas. A experincia de adoecimento, neste e no

    exemplo anterior, no consequncia direta das alteraes propriamente ditas do

    transtorno mental. sim um resultado indireto delas, j que estas alteraes no

    so vivenciadas nem reconhecidas como problemas por quem as experiencia. No

    exemplo da Regina, todavia, a experincia de adoecimento no surge de fora para

    dentro, do jogo relacional, como efeito de um olhar ou palavra do outro. Aqui, a

    vivncia de adoecimento decorre da repercusso, sobre a vida da pessoa, daquilo que

    externamente se reconhece como um sintoma ou como alterao psicopatolgica.

    O corpo est sempre presente nas experincias de adoecimento relatadas.

    Varia a forma de apresentao. Em relatos de experincia da crise, por exemplo,

    o corpo se presentifica a partir da vivncia de uma ruptura radical que provoca

    uma alterao na familiaridade bsica que envolve a relao com o corpo: Me sentia normal [...] [com a crise]... voc perde os cinco sentidos, os cinco sentidos vo pra falncia. (Csar).

    Sensaes desagradveis no corpo so referidas muitas vezes:A gente sente uma dor sem ter nada, sem ter machucadura nenhuma. (Sonia).

    As manifestaes corporais tambm podem aparecer na construo da

    experincia de adoecimento, fundamentando uma teoria explicativa: Eu acho que por fora de uma desnutrio. Algum tipo de vitamina, protena que me deixava com essa variao na ideia. (Saulo).

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    A inrcia relatada como importante ou mesmo principal sinal de adoecimento.

    Fala-se muito da necessidade de movimento, de empreender alguma atividade

    que faa o corpo se mexer:Tem que brigar consigo mesmo, brigar com a doena, pra no ficar assim jogada, n. (Selma).

    O Diagnstico de Esquizofrenia

    Eu perguntei: Doutor, eu tenho o qu?!. Ele disse: Voc esquizofrnico. (Silvio).

    Nem sempre a forma de tomar contato com o diagnstico assim, pela via da

    comunicao direta entre mdico e paciente, como observado no dilogo a seguir: - Cleusa: Esquizofrenia .... Eu queria saber o significado disso.

    - Moderador: .... J disseram isso para a senhora? De esquizofrenia, j falaram isso para a senhora?

    - Cleusa: No falam!... Eu tenho uma carta plastificada, que eu tenho que andar com ela.

    - Moderador: E est escrito esse nome l?

    - Cleusa: T...

    Que sentido pode ter esta palavra, este diagnstico, para um usurio de

    servios de sade mental? Em que isto o ajuda a compreender as inusitadas

    vivncias subjetivas que o acompanham, em alguns casos h muito tempo?

    Qual a relao deste nome com suas experincias de vida e com o percurso de

    tratamento que muitas vezes ele inaugura? Seja atravs da comunicao direta

    do diagnstico, seja pela sua presena escrita em algum laudo ou documento, a

    etiqueta diagnstica parece pouco servir para responder s inquietaes que estas

    perguntas carregam.At hoje o mdico no definiu. A primeira coisa que o mdico falou para mim, falou que eu estava com esquizofrenia. E o outro mdico falou que eu estava com distrbio mental. E o outro falou que eu estava doente mental. Eu tomo vrios ti-pos de medicamentos! E depois o mdico falou que depois de dois anos, eu poderia parar de tomar os remdios, que eu ia ficar bom. Por que eu estou assim at hoje? Tem alguma coisa [...] invisvel. (Rui)

    As vrias formas utilizadas pelos profissionais de sade para nomear os

    problemas mentais, reflexo de modelos classificatrios diversos, ou mesmo de

    diferentes estratos de um mesmo sistema classificatrio, so frequentemente

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    1065experimentadas pelos usurios como indefinio do seu problema, dificultando

    o manejo com o prprio problema, com os tratamentos e vivido como ndice de

    um prognstico nebuloso, no palpavl e pouco compreensvel.

    Da perspectiva dos psiquiatras, o diagnstico, no contexto da prtica clnica

    nos CAPS, tem importncia pragmtica relativa e tende a ter deflacionada a

    sua relevncia para esta prtica clnica. O diagnstico parece ajudar pouco

    o psiquiatra a dar a direo do tratamento, e experimentado como recurso

    insuficiente para definir as estratgias teraputicas a serem utilizados no contexto

    do CAPS. A funo do diagnstico foi delimitar um certo campo de problemas:Eu s no acho que os dispositivos que eu vou usar sejam to diferentes se fosse um outro diagnstico. A forma de pensar, a forma de voc cuidar vai ser a mesma, inde-pende do diagnstico [...]. Eu acho que o diagnstico no pra eu saber como eu vou tratar, pra eu saber em que rea que eu estou caminhando, entendeu? (Roseana).

    As narrativas dos psiquiatras sobre o processo de feitura do diagnstico

    revelam uma mescla de aspectos objetivos e subjetivos ou empticos. Os objetivos

    se aproximam dos critrios operacionais dos sistemas classificatrios vigentes: [...] Quando d crise bem fcil. Voc tem os sintomas, so floridos, n, as alucina-es, delrios de influncia... (Cleber).

    Os elementos oriundos de uma apreenso subjetiva, emptica, por sua vez,

    encontram pouca ou nenhuma ressonncia nos critrios operacionais destes

    sistemas classificatrios e na psicopatologia descritiva. Os psiquiatras indicam

    encontrar no senso comum o sentido para os aspectos subjetivos e empticos que

    se presentificam no processo de feitura do diagnstico. Observa-se, entretanto,

    como prprio aos sentidos que emergem do senso comum, que so sentidos

    pouco refletidos e, por isso, frequentemente naturalizados: Eu tendo a achar que uma coisa muito sutil assim sabe? uma coisa que foge [...] uma coisa realmente mais subjetiva, que s vezes est num certo estar do indivduo, no seu contexto de vida. (Roseana).

    Outro trao comum encontrado nas narrativas dos psiquiatras diz respeito a

    associao entre o diagnstico de esquizofrenia e a expectativa de um prognstico

    necessariamente desfavorvel, o que os leva muitas vezes a evitar e/ou adiar a

    formulao do diagnstico e a sua posterior comunicao aos pacientes e aos seus

    familiares: , tem que ter um cuidado n, pra dar o diagnstico! (Carmen)

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    Estou pensando em alguns pacientes em que a dvida persistiu...Acho que a tem uma torcida para que no seja isso... Esquizofrenia no!! Eu acho que a gente torce para que no seja isso! (Carol).

    Nas narrativas dos usurios, a contrapartida destas preocupaes se revela

    atravs do peso estigmatizante que experimentam quando o diagnstico de

    esquizofrenia lhes atribuido, direta ou indiretamente. Os usurios desconhecem

    os critrios em jogo na atribuio deste diagnstico, por parte do psiquiatra, e

    desconhecem tambm os sentidos que o mdico lhe atribui. Tais sentidos so

    praticamente incompreendidos para quem os recebe, alm de pouco evidentes.

    A fora estigmatizante do diagnstico o que se manifesta com pujana para os

    usurios, conforme observado nos relatos a seguir:Esquizofrnico... De onde ele tirou essa palavra?! [...] Um rtulo muito forte, machu-ca muito uma pessoa, entende?! (Rogrio).

    Dependendo do paciente, o diagnstico, eu acho que pode no ser escondido, mas pode ser omitido, para o bem do prprio paciente. At ele adquirir uma maturidade maior para ele entender exatamente o que ele tem, ou que ele possa entender s o que convm para ele entender, devido sua problemtica. (Ralson).

    Nas narrativas estudadas, a fora estigmatizante promove a recusa ou a

    evitao do diagnstico. Alguns usurios sugerem que ele s seja revelado numa

    perspectiva dialgica, de modo que quem o receba possa elaborar seu sentido.

    Estigma SocialA temtica do estigma ligado aos transtornos mentais, em particular

    esquizofrenia, se apresenta tanto na narrativa dos psiquiatras, quanto na dos

    usurios. Para os psiquiatras, em geral, o estigma se revela ligado ao tema do

    diagnstico de esquizofrenia, expresso na cautelosa formulao do diagnstico e

    de sua comunicao, como j indicado acima:Eu sinto que muitas vezes eu resisto [a atribuir o diagnstico de esquizofrenia]! (Carol).

    No relato dos usurios, o tema do estigma se relaciona diretamente experincia

    de adoecimento e liga-se tambm aos efeitos do adoecimento sobre sua vida,

    quilo que ele ou os outros supem que possa ou no fazer. O modo como a

    sociedade os v e valora, elemento determinante da experincia do estigma, pode

    ser experimentado, por exemplo, como um das consequncias da crise: Quando eu voltei da crise, hoje em dia todo mundo me trata diferente, ningum con-fia em voc como confiava antes [...]. , minha me bem difcil ela me deixar andar

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    1067sozinho [...]. A confiana deles, da minha tia, eu no recuperei at hoje. difcil eles confiarem em mim (Ricardo).

    Na experincia de alguns usurios, o estigma comea dentro da prpria

    famlia, estendendo-se vizinhana/comunidade e ao mundo do trabalho: O preconceito grande, o mercado de trabalho no aceita pessoas com esquizofrenia, tm medo de a pessoa ter uma crise mais violenta. (Snia).

    O estigma internalizado, uma outra forma de experimentar o estigma, est

    fortemente presente e igualmente fonte de sofrimento, como relata Roberta: Eu queria ser diferente, mas eu fiquei diferente de outra forma [...]. muito difcil voc aceitar que voc doente. Voc ver que um dia voc foi boa e agora doente.

    Para alguns usurios, a superao do estigma possvel, a despeito de sua

    fora, e pode ser uma das vias do restabelecimento.

    A Experincia de Restabelecimento A complexidade do processo de restabelecimento, entendido aqui como dimenso

    da experincia de adoecimento, tem relao com o estigma social:Na minha rua eu fiquei tachada como louca, que eu moro num bairro onde meus vizinhos pararam de falar comigo quando eu fui internada no hospital psiquitrico [...]. Ento quando voc sai, voc escuta: Cuidado maluca, maluca!A gente fica taxada para o resto da sua vida... (Regina).

    Para os usurios, o restabelecimento constitui um processo que se d no

    fluxo da experincia. Vivido como um mosaico de possibilidades, pode envolver

    a melhora ou piora dos sintomas, o restabelecimento parcial ou superao

    da doena, e ainda o enfrentamento do estigma social. O restabelecimento

    foi experimentado tambm a partir do manejo dos efeitos e dificuldades que

    decorrem do adoecimento, principalmente queles relacionados s atividades da

    vida diria e insero no mundo do trabalho. Vale ressaltar que nem sempre os

    usurios reconhecem essas dificuldades como adoecimento.Depois da crise?! Ah, fiquei impossibilitado para muita coisa... Eu sempre sonhei, as-sim, eu estava estudando na poca, trabalhando, sempre sonhei em fazer uma carreira [...]. Ento a mdica falou que eu no podia mais trabalhar [...], ento aquilo ali me impossibilitou [...], a eu fiquei nessa dvida: o qu mais eu posso fazer?! ( Ricardo).

    A aceitao da doena e do tratamento e a superao da etiqueta diagnstica

    tambm foram aspectos relevantes para o restabelecimento, nas narrativas

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    dos usurios. Observa-se, entretanto, que estes trs aspectos no descrevem

    as mesmas experincias: aceitao da doena no o mesmo que aceitao da

    etiqueta diagnstica, ou do tratamento, e superao no necessariamente passa

    pela aceitao da etiqueta diagnstica. A etiqueta diagnstica, por exemplo, pode

    ser recusada e, ao mesmo tempo, o tratamento ser aceito. Rogrio mostra isso de

    forma clara quando diz que no vai carregar [...] esse rtulo e vai passar uma

    borracha nisso tudo, ao referir-se ao diagnstico de esquizofrenia. Ele, todavia, assduo ao CAPS e utiliza os tratamentos ali ofertados. Os relatos indicam

    ainda que a aceitao da doena no necessariamente signfica aceitar a descrio

    desse fenmeno em termos biomdicos ou psicolgicos ou fazendo uso desses

    vocabulrios. A aceitao da doena, de modo a promover o restabelecimento,

    pode ocorrer mediado por outros sentidos.

    Usurios que experimentam como problemas de sade mental o que os

    psiquiatras descrevem como sintomas vozes, depresso, momentos de

    delrio podem encontrar melhora e controle dessas vivncias, mediante

    tratamento, e assim experimentar, em alguma medida, o restabelecimento. A

    busca de explicao sobre os motivos que os levaram a entrar em crise ou a

    piorarem novamente um esforo de atribuio de sentido experincia de estar

    adoecido. Esse exerccio constitui outra via para o restabelecimento, podendo

    ser utilizada por aqueles que vivenciam ou no melhora ou controle dos seus

    problemas, conforme faz Cleusa no prximo fragmento: Eu queria saber assim, tambm, porque tem hora que eu fico boa, ai daqui um pouco que j vou comear tudo de novo?

    A criao de estratgias pessoais em busca do restabelecimento frequentemente

    vo alm do mbito do tratamento no CAPS, como referiu um dos usurios que

    se valeu da estratgia religiosa de tomar passe magntico. As narrativas dos

    usurios mostram tambm que os recursos teraputicos ofertados pelo servio

    e pelo sistema de sade podem ser ressignificados. Encontrar um sentido para

    o CAPS e para as prticas que a se realizam, por parte dos usurios, pode

    acontecer mesmo quando estes sentidos so estranhos e distantes daqueles que

    os profissionais de sade lhe atribuem. Csar exemplifica bem isso quando

    diz que vai ao CAPS porque l se desmancha trabalho. Repousar no quarto

    sozinho, ir para a rua; ficar sentada no escuro; catar latinhas; entrar para

    a poltica; no dar confiana para as vozes ou reconhecer quando as vozes

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    1069esto chegando, foram algumas estratgias peculiares utilizadas pelos usurios para lidar com o mal estar que experimentam.

    O CAPS foi referido como parte do conjunto maior de recursos que contribui para o enfrentamento da experincia de adoecimento e para a criao de oportunidades de restabelecimento. As estratgias vinculadas ao contexto de tratamento no CAPS foram: correr para o CAPS em caso de sentir-se mal; passar o dia no CAPS; tomar medicao; conversar; ocupar a mente e observar outros usurios no convvio com o CAPS, como diz Snia:

    Eu fico observando esses pacientes, no porque quero cuidar da vida deles, mas pra saber de fato como que eu fico quando estou em crise.

    O restabelecimento pode ainda ser favorecido pela experincia de recuperao da capacidade de circular, de retomar um percurso no territrio e de retraar um cotidiano no espao habitado.

    Eu me sinto muito bem, porque hoje eu pego nibus e venho sozinha. Eu no pegava um nibus. [...] eu no andava sozinha mais, voc entende? Eu no descia o morro para ir na padaria. Hoje eu vou na padaria, hoje eu vou no mercado. (Roberta).

    Tratamento e o contexto dinmico dos CAPSOs usurios referem que servios comunitrios de sade mental tipo CAPS, e os hospitais psiquitricos, propiciam experincias diferentes. A experincia de melhora aps o incio do tratamento no CAPS se d mesmo com o relato de recidivas da crise e de outras manifestaes da doena.

    A medicao descrita pelos usurios como um mal necessrio, principalmente por seus efeitos no corpo. A tomada diria vivida como dolorosa e produtora de sofrimento:

    Eu tomo injeo e remdio sabe... muito remdio, remediada que eu tomo a... [...] to-mar um monte de agulhada, no fcil no, agulhada no, di...sofri, sofri... (Caio).

    O uso dos medicamentos considerada uma necessidade da qual no podem prescindir se querem encontrar algum tipo de estabilizao:

    Agora eu diminui de ficar ouvindo vozes, depois que a mdica passou um medica-mento de alto custo da srie ouro, a eu diminui de ouvir vozes [...] Agora eu estou ouvindo uma vozinha de vez em quando. Estou bem melhor. (Slvio)

    Nas narrativas dos psiquiatras, a medicao um dos principais determinantes da estabilizao. Nos quadros esquizofrnicos, consideram no s indispensvel como torna-se critrio diagnstico.

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    Um marcador informal pra gente isso... a questo da necessidade da medicao. [...] Isso no est no CID mas a gente pensa, se a gente consegue tirar a medicao e ele consegue viver bem, ai a gente vai pensar no esquizofrnico!, a gente refaz o diagnstico, a nossa cabea funciona assim. (Carol)

    A expectativa de que os usurios no acatem o esquema medicamentoso como prescrito, apareceu num dos relatos:

    Mais de 50%, eu acho que no toma exatamente o que eu passo, toma o que ele, o que ele l determina, o equilbrio que ele encontra, n e da eu avalio...(Raimundo).

    Revela-se a um reconhecimento de que o usurio pode no seguir o que lhe indicado, ou faz-lo a seu modo, e que ao mdico cabe avaliar o equilbrio que advm dessa escolha. H relato da dificuldade frente recusa da medicao prescrita no momento da crise. Essa dificuldade, produtora de angstia para o psiquiatra, tem relao com perceber-se sem recursos para manejar situaes desta natureza e no ter ferramentas para, a partir da recusa, estabelecer relao emptica com o paciente:

    [] a sensao que me d, que com cinco minutos de conversa meu arsenal de argu-mentos acabou, eu falei: o que que eu vou fazer?, tipo assim, no consigo acessar nada, no tenho criatividade nenhuma na hora, tamanha a angstia que pra mim esse tipo de situao. (Roseana)

    De um modo geral, o estmulo aceitao da prescrio relatado como algo que exige esforo grande do mdico e expe a necessidade da construo compartilhada dessa proposta de tratamento, tarefa mais facilmente desenvolvida no contexto do CAPS: criar um vinculo melhor (Clovis), para tornar aquela interveno mais delicada possvel (Roseana), exigindo uma fineza que sempre com o paciente, no sem ele, n, medicar no sem ele, n, sem o paciente (Rita), sendo por vezes necessrio adiar uma interveno: esse manejo d pra fazer em CAPS (Carla).

    Nas narrativas dos usurios se destacam as diferenas entre as experincias de prescrio e do uso dos medicamentos nos contextos do hospital e do CAPS. Na internao psiquitrica, a medicao experimentada como imposta e no negociada. No CAPS, o fato de a medicao ser parte de uma gama mais ampla de ofertas e ser adminstrada num contexto em que o controle sobre a ingesta menor, sua indicao e uso no so experimentadas como imposio arbitrria:

    No sanatrio voc obrigado a tomar medicao, voc no tem querer. No CAPS, voc pega o medicamento leva pra casa, tem o domnio, o controle. (Saulo).

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    1071A medicao referida pelos usurios como mais um dos elementos que

    concorre para a recuperao:O remdio, as oficinas, a companhia da senhora, dos amigos, batendo papo, os pas-seios. (Silvio).

    Muitos usurios falaram sobre o CAPS como um servio que oferece diversas

    possibilidades teraputicas, onde se pode conversar, fazer amigos, fazer

    oficina, almoar, pegar remdio, dentre outras atividades. Eu acho que o tratamento no CAPS foi fundamental pra minha reabilitao, minha tentativa de me reabilitar, estabelecer meu sistema nervoso na tranquilidade. Eu ve-nho, participo das oficinas, das atividades. Escutando as palestras e orientaes que servem pra minha vida, pro meu dia a dia.[...] Eu no t sentindo mais nada. T me sentindo mais tranquilo. (Saulo).

    ConclusoDistintas dimenses do mundo da vida se interconectam e tecem uma rede de

    experincias, aes, relaes, lugares e significados. Tudo isso compe, num sentido

    mais amplo, um campo que a antropologia mdica nomeia como experincia

    de adoecimento (KLEINMAN; EISENBERG; GOOD, 1978; KLEINMAN,

    1988; GOOD, 1994). Muitos elementos podem se articular nesta malha: o vivido

    subjetivo corporificado, o reconhecimento individual de que algo no vai bem,

    a convivncia com a famlia e vizinhos, o trabalho, o cuidado em sade mental,

    as dificuldades encontradas para integrao na vida comunitria, estratgias

    utilizadas para superao, dentre outros elementos. Os resultados revelaram,

    todavia, que a experincia de adoecimento tout court se produz mesmo quando o usurio no experimenta como patolgico aquilo que o psiquiatra identifica como

    sintoma. Para os usurios, a experincia de que algo vai mal e de que patolgico

    pode decorrer dos efeitos, sobre o cotidiano, daquilo que o psiquiatra chama de

    patolgico. Algumas vezes de fora para dentro, por ao ou olhar de um outro, por

    uma interveno mdica, ou mesmo pelo estigma que a vivncia de adoecimento

    surge para o usurio. As estratgias e caminhos trilhados em direo ao processo

    de restabelecimento e superao tambm so multiplos e diversos (DAVIDSON,

    2003). O processo de restabelecimento no depende exclusivamente dos recursos

    teraputicos e ocorre, por exemplo, atravs da ressignificao da experincia do

    tratamento a partir de universos de sentido fora do campo da sade. Isso tem

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    grande importncia no contexto brasileiro porque aqui o peso social negativo da esquizofrenia est na comunidade, no usurio e at mesmo na perspectiva do psiquiatra. O estigma, que pode mesmo estar internalizado, nem sempre obstculo ao processo de restabelecimento e este ltimo no necessariamente requer o desaparecimento dos sintomas para ser vivenciado.

    Quanto experincia do processo de formulao do diagnstico, do prognstico e do projeto teraputico, vivida pelos psiquiatras, as narrativas explicitam que o exerccio clnico marcado de forma especial e particular pela relao prtica que se estabelece entre o conhecimento empirco aquele que emerge do exerccio da formulao do diagnstico, da indicao do tratamento e do encontro com a pessoa adoecida e o conhecimento terico, prvio a esse exerccio prtico. Dentre os vrios aspectos que caracterizam o exerccio clnico, dois se destacam. um exerccio solitrio, no s porque o psiquiatra pode realiz-lo ou, em geral, o realiza sozinho, mas especialmente porque a experincia que vivencia neste exerccio tem uma dimenso no compartilhvel que no ecoa seus conhecimentos tericos. O senso comum, principal saber a configurar a lente utilizada para conhecer a complexidade existencial da pessoa com transtorno mental, no encontra quaisquer elementos, no mbito do conhecimento terico adquirido previamente, que favoream seu questionamento, porque este quase que exclusivamente marcado por uma viso naturalizada do sujeito.

    Assim fica patente como a objetificao do transtorno mental, efeito do modo de construo diagnstica proposto pelos sistemas de classificao empregados, que se limitam a uma Psicopatologia Descritiva, no fornece aos psiquiatras os recursos necessrios para lidar com a diversidade de experincias existenciais subsumidas pela categoria esquizofrenia. Reciprocamente, da perspectiva dos usurios, esta mesma objetificao do transtorno no os favorece em nada porque no lhes permite, a partir do vocabulrio do mdico e da equipe em geral, criar verses para sua experincia que sejam mais auspiciosas. Quando conseguem criar estas verses seja atravs da adaptao do vocabulrio do campo da sade, ou lanando mo de algum outro tais verses so pouco valorizadas pelos psiquiatras que no as considera significativas nem com sentidos relevantes, permanecendo como um desafio para o cuidado oferecido nos servios tipo CAPS (BEZERRA, 2007; MENEZES; YASUI, 2009). Vale ressaltar, entretanto, que os CAPS apresentam-se como espaos potentes para a criao de pontes de dilogo entre as narrativas de usurios e psiquiatras e novos sentidos para o adoecer.

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    1073O dispositivo metodolgico proposto pela pesquisa, descrito acima na seo

    Metodologia, visava criar condies favorveis para a produo de narrativas por

    usurios de servios de sade mental e por psiquiatras. A apresentao recproca

    das narrativas de cada um dos dois grupos foi feita no T2 dos grupos focais e no

    T3, quando ambos os grupos de participantes foram reunidos em um mesmo

    encontro de grupo focal. Tivemos como resultado uma rica produo narrativa,

    que tomada como objeto de anlise na seo Resultados. Contudo, a conversa

    entre a experincia do psiquiatra e a experincia do usurio, que poderia ter

    sido suscitada no T2 e T3 dos grupos focais, efetivamente no acontece. No

    produzido nem um novo saber que seja til para o psiquiatra, nem uma descrio

    que permita ao usurio lidar com a experincia do adoecimento. Nenhum novo

    saber sobre o vivido, que seja compartilhvel, til para os dois e para o campo da

    sade mental, se produz a partir deste dilogo entre a experincia do psiquiatra e

    do usurio. As construes narrativas dos usurios parecem no produzir efeitos

    sobre as construes narrativas dos psiquiatras e vice-versa. No foi possvel

    identificar nenhuma narrativa hbrida, que incorpore elementos das narrativas

    dos usurios ou psiquiatras como algo que amplia o campo de conhecimento ou

    de ao. Permanece em aberto a questo acerca dos meios e recursos necessrios

    para a produo de um conhecimento e de prticas que possam integrar as

    diferentes perspectivas em jogo.2

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    Notas1 A pesquisa foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (Edital MCT/CNPq/CTSade/ MS/SCTIE/DECIT n 33/2008) e os autores declaram no haver conflito de interesses.2 O.D. Serpa Jr: coordenador geral da pesquisa e do campo Rio de Janeiro. Elaborao do projeto de pesquisa. Participao em reunies multicntricas de pesquisa para construo, organizao do campo emprico e ajustes metodolgicos para os procedimentos de recrutamento e coleta de dados. Conduo de grupos focais no Rio de Janeiro e Salvador. Participao em reunies multicntricas para anlise e interpretao dos dados. Participao na redao e reviso da verso final do artigo. R. Onocko-Campos: coordenadora do campo Campinas. Elaborao do projeto de pesquisa. Par-ticipao em reunies multicntricas de pesquisa para construo, organizao do campo emprico e ajustes metodolgicos para os procedimentos de recrutamento e coleta de dados. Participao em reunies multicntricas para anlise e interpretao dos dados. Participao na redao e reviso da verso final do artigo. N. Malajovich: elaborao do projeto de pesquisa. Participao em reunies multicntricas de pesquisa para construo, organizao do campo emprico e ajustes metodolgicos para os procedimentos de recrutamento e coleta de dados. Conduo de grupos focais no Rio de Janeiro. Participao em reunies multicntricas para anlise e interpretao dos dados. Participao na redao e reviso da verso final do artigo. A.M. Pitta: coordenadora do campo Salvador. Ela-borao do projeto de pesquisa. Participao em reunies multicntricas de pesquisa para construo,

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    organizao do campo emprico e ajustes metodolgicos para os procedimentos de recrutamento e coleta de dados. Conduo de grupos focais em Salvador. Participao em reunies multicntricas para anlise e interpretao dos dados. Participao na redao e reviso da verso final do artigo. A.G. Diaz: implementao prtica do campo Campinas. Elaborao do projeto de pesquisa. Par-ticipao em reunies multicntricas de pesquisa para construo, organizao do campo emprico e ajustes metodolgicos para os procedimentos de recrutamento e coleta de dados. Conduo de grupos focais em Campinas. Participao em reunies multicntricas para anlise e interpretao dos dados. Reviso da verso final do artigo. C. Dahl: elaborao do projeto de pesquisa. Participao em reunies multicntricas de pesquisa para construo, organizao do campo emprico e ajustes metodolgicos para os procedimentos de recrutamento e coleta de dados. Conduo de grupos focais no Rio de Janeiro e Campinas. Participao em reunies multicntricas para anlise e interpretao dos dados. Participao na redao e reviso da verso final do artigo. E. Leal: elaborao do projeto de pesquisa. Participao em reunies multicntricas de pesquisa para construo, organizao do campo emprico e ajustes metodolgicos para os procedimentos de recrutamento e coleta de dados. Conduo de grupos focais em Campinas e Salvador. Participao em reunies multicntricas para anlise e interpretao dos dados. Participao na redao e reviso da verso final do artigo.

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    Experience, narrative and knowledge: the perspective of the psychiatrist and the userThis study, conducted in a partnership composed by UFRJ, UNICAMP and UFBa, wanted to investigate the experience of people with a diagnosis of schizophrenia spectrum disorder, in treatment in CAPS, and the experience of psychiatrists inserted in the public mental health care services. Narratives related to health and illness, in the case of people with schizophrenia, and narratives about the process of formulation of the schizophrenia diagnosis, prognosis and treatment in the case of psychiatrists, were studied. This is a qualitative, multicenter study, informed by the theoretical approaches of Interpretative Phenomenological Analysis and Medical Anthropology held in Campinas, Rio de Janeiro and Salvador. The main methodological tool used for the production of narratives were focus groups. Procedures of the Explicitation Interview were incorporated. The categories identified in this study were Illness Experience, Diagnosis of Schizophrenia, Social Stigma, Recovery Experience, and Treatment and dynamic context of CAPS. The narratives that composed each category were presented and discussed in order to give visibility to the elements characterizing the narratives-experiences, indicating how it configures its complexity.

    Key words: illness experience; narrative; schizophrenia.

    Abstract