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03 Dos volumes cantei os mais escuros Dossiê Luís Quintais

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03 Dos volumes cantei os mais escurosDossiê Luís Quintais

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volume 2 | número 3 | jan-jun/2017Belo Horizonte - MG - Brasil

Dos volumes cantei o mais escuroDossiê Luís Quintais

ISSN 2525-7900

Organizadores do volumeSilvana Pessôa de OliveiraPatrícia Resende PereiraPatrícia Chanely Silva RicarteRoberto Bezerra de Menezes

EdiçãoCentro de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais

Avenida Antônio Carlos, 6627 – Sala 3049, CEP: 31270-910 – Belo Horizonte, MG(31) [email protected]

Polo de Pesquisa em Poesia Portuguesa Moderna e Contemporâ[email protected]

Projeto Gráfico e DiagramaçãoRoberto Bezerra de Menezes

EXPEDIENTE

Este volume faz uso de reproduções de obras de Ralph Eugene Meatyard e de Rui Chafes.

RevisãoMoisés Paim Fonseca

Conselho EditorialSilvana Pessôa de OliveiraWagner MoreiraErick Gontijo CostaPatrícia Chanely Silva RicartePatrícia Resende PereiraRoberto Bezerra de Menezes

ISSN 2525-7900

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Apresentação

Marina Baltazar MattosMais espesso que a água: a fugacidade da poética de Luís Quintais

Maísa Medeiros Pacheco de AndradeO fluxo a jusante da “inútil” poesia de Luís Quintais

Moisés Paim FonsecaCenas de escuta na poesia de Luís Quintais

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SUMÁRIO

Patrícia Chanely Silva RicarteEsse canto escuro: o medo como condição poético- antropológica em Luís Quintais

Rafael Martins da CostaMapa inútil: a busca do lugar da poesia em Luís Quintais

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Tiago Cabral VieiraAs imagens de A imprecisa melancolia, de Luís Quintais

104 Antologia de poemas de Luís Quintais

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Todos os livros lidos se desfolham agorasobre a mesa do sangue.

Nada se retoma, e toda a memória é ficção inconquistada.

(Luís Quintais)

Rui ChafesA solidão de Giorgio de Chirico2011

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Este terceiro número de Tamanha Poesia, para além de publicar seis ensaios críticos sobre a poesia de Luís Quintais, traz um diferencial: a presença de uma mini-antologia do poeta, a quem apresentamos os mais sinceros agradecimentos, bem como à Porto Editora (detentora de parte dos direitos de autor), que gentilmente nos con-cederam a licença para a publicação dos poemas. Os textos que integram o Dossiê resultam das discussões sobre poesia levadas a cabo tan-to na disciplina “Tempo e sujeito na poesia de Luís Quintais”, ministrada no segundo semestre de 2015, na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, bem como nos debates e encontros realizados no âmbito das atividades propostas pelo Polo de Pesquisa em Poesia Por-tuguesa Moderna e Contemporânea. Abre o volume o texto de Maísa Medeiros Pacheco de Andrade, que, em um procedimento de close reading, reflete acerca das complexas re-lações entre memória e linguagem no poema “A inútil poesia”, integrante do livro Duelo, publi-

Apresentação

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cado em 2004. Por sua vez, Marina Matos em-preende uma sensível reflexão acerca dos lugares poéticos de Luís Quintais, a partir da análise de figuras como a água, o vidro, o espesso, o poema, em suma, a linguagem na sua porção de esplen-dor e de ruína. Na sequência, Moisés Paim abor-da o que denominou “cenas de escuta” na poesia de Luís Quintais, na tentativa feliz de estabelecer diálogos e vínculos poéticos com as “cenas de es-crita” estudadas por Rosa Maria Martelo. Por sua vez, Patrícia Chanely investiga a recorrência da temática do medo e suas implicações ao longo da obra do poeta em pauta, cujo percurso pode ser compreendido como o de herdeiro de uma “sensibilidade profundamente melancólica” que, no entanto, vai deixando de o ser, para tornar-se “sensibilidade elegíaca”. O ensaio de Rafael Mar-tins da Costa empenha-se em discutir as razões paradoxais que envolvem, na modernidade, a re-flexão sobre a possibilidade (ou não) da partilha da experiência e o modo como tais questões res-soam na obra do poeta de Depois da música. Tiago Cabral Vieira fecha o volume em texto que se propõe a elencar as principais e mais recorrentes

imagens do livro inaugural de Quintais, A impre-cisa melancolia, publicado em 1995. O volume conta ainda com reproduções de obras do artista português Rui Chafes, a quem, juntamente à Galeria Filomena Soares, agradece-mos a autorização e a oportunidade de diálogo. Com este Dossiê, esperamos contribuir para a divulgação da obra deste poeta de voz es-pessa, real representante da melhor poesia que se tem vindo a publicar, em língua portuguesa, neste começo de século XXI.

Silvana Maria Pessôa de Oliveira

Patrícia Chanely Silva RicartePatrícia Resende Pereira

Roberto Bezerra de Menezes

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Rui ChafesIncêndio II

2016

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A poesia de Luís Quintais possui como duas de suas principais linhas de força a memória e a lin-guagem. No entanto, esses dois elementos não são os únicos que povoam seus versos, também é flagrante a presença de reflexões acerca da história, entendendo Maffei (2011), nesse sentido, que “Dos novos poetas portugueses, o que mais se debruça sobre a história é Luís Quintais” (MAFFEI, 2011, p. 387) e que sua poesia “desloca-se não apenas geograficamente, mas também entre o poético e o histórico, entre o passa-do e o presente e entre a linguagem e seu lugar no mundo” (MAFFEI, 2009, p. 153). Em seus poemas, portanto, o poeta transita não só entre as questões acerca da memória e da linguagem, mas também pela relação que ambas instauram com a história.

Os versos de Quintais carregam consigo “uma memória pesadíssima”1 e boa parte desse peso, 1 Informação presente na entrevista “É a poesia linguagem, tão-só?”, Revista Metamorfoses, da Cátedra Jorge de Sena para Estudos Literári-os Luso-Afro-Brasileiros/UFRJ, Rio de Janeiro, n. 9, nov. 2008, conce-dida a Virgínia Boechat.

O fluxo a jusante da “inútil” poesia de Luís Quintais

Maísa Medeiros Pacheco de Andrade

Universidadede Coimbra

ainda no dizer de Maffei (2009, p. 147), “tem que ver, pre-cisamente, com uma muito forte herança histórica”. É sob a perspectiva da relação entre esta tríade: memória, histó-ria e linguagem, que passamos, portanto, a analisar o poe-ma “A inútil poesia”, do livro Duelo (2004):

Eu não vivo numa bolha de ar em Hartford. Como posso ser fiel aos fiéis poemas de Stevens sem trair esta cilada?

Milosz sabe que a história é tudo o que temos e que as traições maioressão cometidas contra a história, mas também em nome dela.

Como podemos nós recuperar o sopro que exaspera domínios no escuro, a inumana beleza de um pavão que abre a sua cauda na noite iluminada, e dizer depois na rasa voz de quem abandonou a inflexão retórica da sua voz, Varsóvia, Treblinka, Celan, aldeias cujos nomes esquecemos — e é sintomático que os tenhamos esquecido — onde lâminas aceradas esquartejaram a eternidade de um rosto, lugares — porque em cada nome há um lugar — onde outros nomes se perfilam num vórtice de tempos que se abrem sobre tempos e gritos que se abrem sobre gritos, e pétalas se expõem ao mortal apuro de se ter sobre ombros a herança da qual não há despedida, somente um cobarde desvio,

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um conluio de silêncio e sangue?

Como esquecer? Como não esquecer? Stevens, Milosz: uma corda de água dança entre duas margens. A corda é invisível e eu procuro-a sem método. Aquele que me lê deverá acreditar:

deverá acreditar que eu vivo perscrutando as águas mas dentro delas. (QUINTAIS, 2004, p. 83).

Eu não vivo numa bolha de ar em Hartford: é as-sim que é iniciado o poema em questão; o verso faz men-ção à cidade de Hartford, Estados Unidos, onde o poeta Wallace Stevens, referência maior na produção poética de Quintais, viveu boa parte de sua vida, compondo seus mais importantes poemas, mantendo-se distante das ro-das literárias e protegendo quase que obsessivamente a sua privacidade2. Apesar da influência do norte-americano na poesia quintaisiana, da fidelidade aos fiéis poemas de Ste-vens, o poeta nega a possibilidade de viver numa bolha de ar em Hartford, pois apesar da poesia do modernista ame-ricano ecoar em quase todo o universo composicional de

2 Informações sobre a vida de Wallace Stevens extraídas da Intro-dução de Paulo Henriques Britto ao livro: STEVENS, Wallace. Poe-mas. Org. e trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

Luís Quintais, não podemos considerar que as condições de criação poética de ambos foram/são as mesmas.

Mesmo diante do isolamento cultivado por Ste-vens e de sua poesia ter sido considerada por alguns, em princípio, conforme afirma Britto (1987), autocomplacen-te, alienada e carente de consciência social, o autor de The man with the blue guitar não vivia dentro de uma bolha de ar, isolado da realidade, mas seu programa estético pautava-se na ideia de que

a criação artística, enquanto visão da realidade, é ao mesmo tempo ela própria uma realidade e uma proje-ção do desejo humano; como tal, deve ser abstrata, para ser universal; ser mutável, para captar todas as nuanças da “ideia primeira”; e proporcionar prazer, para saciar o desejo de transcendência que a religião não é mais capaz de satisfazer; e é o produto final desta inspiração criadora que dá sentido à luta da existência humana

(BRITTO, 1987, p. 13).

A poesia de Quintais e a de Stevens convergem em muitos aspectos, não sendo despropositada a afirmação do primeiro de que “em Wallace Stevens encontro muita coi-sa em que me revejo e que não encontro na grande maio-ria da poesia que se faz hoje” (QUINTAIS, 2010, p. 166). Observamos nos versos de ambos uma relação densa e complexa com a linguagem, da mesma forma que adotam como um dos temas fundamentais de seus poemas o tran-sitar entre imaginação e realidade. Enxergar a poesia como

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“uma manifestação do irracional” ou “uma afirmação da crença ou da suspensão da descrença” (QUINTAIS, 2015, p. 231), de maneira a buscar um sentido para a existência humana frente a um mundo que vem gradativamente in-tensificando o seu grau de desencanto, também é caracte-rística de ambos os autores. Stevens produziu seus poemas no início do século XX, momento em que a secularização do mundo e a modernidade já causavam efeitos na socie-dade e no sentido das relações humanas, mas nada ainda comparado à realidade em que hoje produz seus poemas o poeta Luís Quintais.

Apesar do contexto social não poder ser conside-rado como o ponto de partida para a produção literária, não podemos negar que o poeta é um ser sensível ao mundo em que vive e às experiências vivenciadas por ele e pela humanidade, o que lhe permite trazer para aquilo que produz as suas impressões sobre os fatos ocorridos na sociedade e a realidade que o circunda, e é nesse sentido que Fonseca (2001, p. 202) afirma que “Embora não se recuse a importância do conhecimento da técnica e da constituição formal, para o poeta, o con-teúdo de sua obra resulta do contato com o mundo e a natureza, do conhecimento de si mesmo e dos outros”. A realidade sentida por Quintais carrega consigo, além dos desdobramentos da modernidade e dos avanços da técnica, também um outro fator de peso: a cilada histó-

rica da Segunda Grande Guerra Mundial e os horrores ali vivenciados. O Holocausto, particularmente, ocupa um papel importante na constituição dessa pesadíssi-ma memória que habita os poemas quintaisianos, sendo Auschwitz, inclusive, considerado pelo poeta como “a última estação de experiência ocidental” (QUINTAIS, 2012, p. 208).

Assim, mesmo Luís Quintais afirmando ser fiel aos poemas-modernos de Stevens, identificando-se com a concepção de arte proposta por aquele, não podemos considerar que o poeta português vive sob a mesma he-rança histórica do autor do livro Harmonium ou que possui a mesma memória deste; as condições de cria-ção poética de ambos são distintas, tendo Quintais que lidar não só com uma realidade desencantada com os rumos da existência humana, mas também com a des-crença na própria poesia e “com a dura experiência de que nós escrevemos depois de o mundo ter acontecido” (QUINTAIS, 2012, p. 209), em outras palavras, com a difícil tarefa de fazer poesia após a humanidade ter tes-temunhado todos os horrores do referido período bélico.

A segunda estrofe do poema em questão come-ça com a evocação do poeta e ensaísta Czeslaw Milosz, nascido em 1911, na atual Lituânia. De ascendência po-lonesa, Milosz passou a residir em Varsóvia durante a Segunda Guerra Mundial, onde publicou na imprensa

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clandestina alguns escritos de resistência à ocupação na-zista na Polônia3. As experiências vivenciadas pelo poeta polonês no decorrer de sua vida4 influenciaram a produção de ensaios e poemas que levam a reflexões de natureza humanista. O eu-lírico quintaisiano, ao mencionar que Milosz sabe que a história é tudo o que temos, propõe que o pensar a história não é o único elemento que se mostra presente em boa parte da obra do ganhador do Nobel de Literatura de 1980, mas também que ela, a história, tem um papel de relevância para a humanidade, tendo em vista que, nas palavras de Halbwachs (2006):

A história é a compilação dos fatos que ocuparam maior lugar na memória dos homens. [...] A necessi-dade de escrever a história de um período, de uma so-ciedade e até mesmo de uma pessoa só desperta quan-do elas já estão bastante distantes no passado para que ainda se tenha por muito tempo a chance de encontrar em volta diversas testemunhas que conservam alguma lembrança [...] então o único meio de preservar essas lembranças é fixá-los por escrito em uma narrativa, pois os escritos permanecem, enquanto as palavras e o pen-samento morrem. (2006, p. 100-101).

A história, por ser tudo o que temos, assume o papel de preservar a memória de acontecimentos importantes 3 Informações contidas na Introdução da antologia: MIłOSZ, Czesław. Não mais. Org. e trad. Henryk Siewierski e Marcelo Paiva de Souza. Brasília: Ed-itora Universidade de Brasília, 2003. 4 De acordo com Siewierski e Souza (2003), Milosz testemunhou ainda cri-ança a Primeira Guerra Mundial e a Revolução de Outubro, acompanhou durante a adolescência a escalada dos totalitarismos do século XX e, como adulto, conheceu de perto os horrores da Segunda Guerra.

que não podem mais ser recordados apenas pela evoca-ção da memória, seja pela distância espaço-temporal, seja pela ausência de indivíduos que possam preservá-los oral-mente através de suas lembranças. A necessidade de não entregar ao esquecimento fatos relevantes para a memória da humanidade, clama pela utilização de um instrumento que não se dissolva com o passar do tempo. É nesse mo-mento que a escrita surge como suporte para a elaboração de uma narrativa histórica.

No entanto, ao narrarmos a história com base em uma memória caracterizada como sendo a memória ofi-cial, na tentativa de evitar que alguns relevantes aconte-cimentos sejam lançados ao esquecimento, não podemos considerar a existência de uma história universal e que abarque harmoniosamente todas as memórias e todos os posicionamentos acerca dos fatos ocorridos. É nesse sen-tido que o poeta Luís Quintais afirma que Milosz sabe que, apesar de a história muitas vezes ser tudo o que nos resta, traições maiores são cometidas contra ela, mas também em nome dela. A narrativa histórica oficial é escrita pelos vencedores, ficando as demais memórias, as dos vencidos, desconsideradas. Assim, traições são cometidas contra a história, pois em muitos casos esta é narrada contando versões distorcidas ou que não são condizentes com as memórias coletivas existentes no momento de sua elabo-ração. Vejamos os comentários de Gagnebin (2014):

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temos a necessidade de uma desconstrução da versão narrativa vigente, isto é, de uma memória repetitiva, para permitir a emergência de outras lembranças e a construção de outra história. Em ambos trata-se de es-tar atento às imagens (mnêmicas) do sujeito que, até aí, não tiveram direito nem à palavra nem a consciência, que não podiam/deviam ser lembradas, mas que pode esclarecer os sofrimentos presentes e ser o início de ou-tra possibilidade de vida e de história. (2014, p. 244).

A existência de uma memória coletiva que alberga diversas memórias em seu tecido deve ser considerada ao pensarmos na construção de uma nova história. Traição contra a história vigente, portanto, é sinônimo de dar voz a essas outras memórias que até então nunca foram ouvidas e que muitas vezes foram propositadamente esquecidas. Traição em nome da história é instituir uma única memó-ria, em detrimento das demais, seja para manter o status quo, seja para transformá-lo.

Nas palavras de Siewierski e Souza (2003, p. 19), é no período de horrores pelo qual o Ocidente passou, prin-cipalmente na década de 1940, que na trajetória poética do poeta polonês “surgem poemas de caráter descritivo e reflexivo, como se à poesia coubesse ser um contrapon-to dos espasmos insanos da história, buscando consolo e equilíbrio”. Evocar o poeta polonês nos versos do poema em questão não é algo desprovido de propósito, tendo em vista que tanto a poesia de Quintais como a de Milosz

possuem essa característica pensante, estabelecendo o pri-meiro, portanto, um diálogo com o pensamento do último, no sentido de que ambas refletem acerca da existência hu-mana diante da dura realidade contemporânea, que possui como herança a memória do horror (2003, p. 28-29).

Na terceira e mais longa estrofe do poema, o ser poético reflete inicialmente acerca da possibilidade de ain-da podermos falar de beleza e encantamento depois dos horrores vivenciados pela humanidade no século XX. O poeta questiona se ainda é possível recuperarmos a capaci-dade de criação poética e nos inspirarmos com a inumana beleza de um pavão/ que abre a sua cauda/ na noite ilumina-da, propícia ao poetar. Continuaria tendo a poesia alguma utilidade após todo o ocorrido na humanidade ou tornar-se-ia a poesia inútil? Percebemos nesses versos também a aliteração da letra “s”, utilizada no sentido de trazer a ideia de um sopro que sussurra algo na escuridão da noite, algo de inumano, de irracional, assim como a poesia, pois como afirma Quintais (2015) “a poesia é uma manifestação do irracional”.

O eu-lírico continua nos versos seguintes questio-nando como será possível se doar a esses elementos ins-piradores da produção poética se depois teremos de di-zer em uma voz rasa, de quem abandonou o tom retórico da voz, as palavras Varsóvia, Treblinka, Celan. Mencionar Varsóvia e Treblinka é relembrar os horrores da Segunda

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Guerra, pois Varsóvia, capital da Polônia, foi um dos paí-ses mais atingidos pelos confrontos e pelo massacre, e Tre-blinka, nome de um campo de concentração nazista nesse mesmo país, o local de extermínio de milhares de judeus no Holocausto. Citar o poeta Paul Celan também é uma maneira encontrada pelo poeta de rememorar esse perío-do da história, uma vez ser aquele, como afirma Barrento (2006), “um filho de Auschwitz” e sua poesia ser conside-rada como a “poesia das vítimas”, por trazer em seus versos a dor e o trauma de ter testemunhado a realidade de um campo de concentração.

Acerca dos lugares onde ocorrem eventos violen-tos a tendência é que a nossa memória não recorde seus nomes em virtude do trauma e da impossibilidade de sua simbolização. Além disso, o nome dado ao lugar nunca será suficiente para descrever de maneira plena o massacre ali ocorrido. É nesse sentido que Roberto Vecchi (2010) afirma que

A citação, tal como o fantasma, representa uma aber-tura perturbante no presente porque induz a pensar sobre o passado (morto) como conjunto incompleto e não reparado (vivo). Sobretudo, diria, se a citação é uma citação de nomes. Não nomes quaisquer mas nomes de lugares traumáticos, lugares catastróficos: lugares de massacre. No caso do massacre, então, o nome, ou a toponomástica em si, a simples evocação nominal do lugar do massacre, nunca poderá dar conta da citação do massacre. (2010, p. 172).

A dimensão de um evento traumático como o massacre não permite que ele seja representado apenas por um simples nome. Apenas a citação do nome do lugar não é capaz de re-cuperar o referente inacessível daquele acontecimento. É diante disso, portanto, que Vecchi continua:

O topónimo nunca poderá resgatar, em si, o referente perdido [...]. Mas pela performatividade da representa-ção e da citação, que se relaciona com a sua ocupação como significante político onde os restos e os rastos fantasmáticos dos massacres se repercutem e “agem” em chave performativa, construindo o que enuncia. (2010, p. 175).

Os nomes só conseguem representar a dimensão de de-terminado massacre quando recebem um significante político. A partir daí os restos fantasmáticos de também outros massa-cres se unem para assim construírem o que realmente enun-ciam. Logo, é dessa maneira que encontramos os lugares — por-que em cada nome/ há um lugar — onde outros nomes se perfilam/ num vórtice de tempos que se abrem sobre tempos/ e gritos que se abrem sobre gritos. Como, portanto, lidar com a questão da inspiração poé-tica diante dessa realidade, em que as pétalas se expõem ao mortal apuro de se ter/ sobre ombros a herança da qual/ não há despedi-da, somente um cobarde desvio,/ um conluio de silêncio e sangue? Preocupa-se o poeta em refletir se a poesia e o fazer poético subsistem diante de uma herança histórica pesadíssima, mergu-

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lhada nos horrores e nos eventos traumáticos que se sucederam, principalmente, ao longo do século XX.

Ademais, nos versos finais do poema, o ser poético questiona Como esquecer? Como não esquecer?. Os acontecimen-tos observados no transcurso da história foram demasiado vio-lentos para serem esquecidos. Como ser possível esquecer tama-nhas atrocidades? As mesmas devem ser lembradas, de maneira a evitar que se repitam. Em contrapartida, há a necessidade de seguirmos em frente e para tanto o trabalho do esquecimento mostra-se imprescindível. É diante desse cenário, no qual con-vivem a necessidade de recordação e a impossibilidade de reali-zação plena da mesma, que o poeta menciona a busca incessante por uma corda de água invisível que lhe permite transitar pelo curso da história e pelo fazer poético. Uma busca que leva em conta a existência de um fluxo vital que transpõe o tempo e que está do lado da parcela irrepresentável da experiência humana, ou seja, daquilo que apresenta resistência à compreensibilidade e à materialidade da linguagem. A “inútil” poesia de Luís Quin-tais, portanto, se movimenta na busca por um sentido intem-poral da experiência em meio ao tempo e a história, ou melhor, pela possibilidade do eterno retorno de um fluxo temporal que termina por universalizar experiências pessoais e suspender a continuidade da história.

Referências Bibliográficas

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Rui ChafesInferno XI

2008

30 31

As palavras chegam-me tomadas de assalto

por um exército de bêbadosa caminho da derrota:

esta é a poética que deveríamos perfilhar. Deveríamos?

(“Uma viagem”, Luís Quintais)

É difícil falar do contemporâneo senão por meio do próprio contemporâneo, o que pode parecer óbvio: dizer aquilo que está a acontecer ao mesmo tempo em que o tempo passa – a escrita que acontece quase simultânea, ou em um curto período de tempo, à sua leitura. Não há uma tradição crítica ou interpretativa – se pensando aqui no conceito de intérprete de Silviano Santiago, em que a leitura é intermediada pela crítica antes de chegar aos olhos do leitor comum. Nas palavras mais precisas de Luís Quintais: “eu vivo / perscrutando as águas / mas dentro delas” (QUINTAIS, 2004, p. 83). Como falar,

Mais espesso que a água: a fugacidade da poética de Luís Quintais

Marina Baltazar Mattos

UniversidadeFederal de MinasGerais

então, do lugar em que se vive – e, no caso do escritor, se escreve –, e que se sonda, indaga e investiga (perscruta) ao mesmo tempo? Como falar do tempo em movimento, senão pelo próprio movimento desse tempo?

Uma poesia que só logra ser lida por meio de seus próprios sinais, vestígios, que está em constante busca por esses mesmos sinais e em constante construção – tanto que vocábulos como “vidro”, “mente”, “música”, “manhã etc, se repetem ao longo dos poemas e livros de Quintais – da sua própria linguagem, colocando em dúvida a possibilidade dessa mesma construção, dessa linguagem (ou gaguez, ou balbucio) e, por fim, dessa poesia. Poesia essa que foge, na medida em que se tenta arquitetar, assim como a linguagem, assim como a escrita, assim como a água, espessa, espessas. Espesso, segundo o dicionário Houaiss: 1 que tem espessura considerável; grosso (vidro); o contrário de fino 2 que tem consistência pastosa (creme); o contrário de ralo 3 de grande densidade; volumoso (cabeleira); o contrário de escasso. Água: inclassificável, assim como a escrita, que é assim como a linguagem, que se busca e se perde, num movimento contínuo, e também num movimento concomitante, assim como o contemporâneo, que também é inclassificável, que também está acontecendo agora, que é o agora em que a poesia se insere, que é “mais espesso que água”, que pode se quebrar se for vidro, se perder se for pastoso, e se afundar se for denso – assim como o fazer poético de Quintais.

32 33

Não se pode deixar de lembrar, contudo, que, por mais que o lugar dessa poesia seja o contemporâneo, alguns temas tratados por ela são antigos, alguns até mesmo primordiais, e sempre ressignificados: algumas vezes ao longo dos próprios livros, em que um mesmo termo passa a ter outro significado, vário ou amplo em relação ao primeiro, e assim sucessivamente; outras vezes retomados em livros distintos, como o poema “Manhã”, que existe tanto no livro Mais espesso que a água quanto no livro Depois da música, e que ainda será (ou serão) retomado(s), ou no termo “vidro”, que é usado repetidas vezes em Mais espesso que a água (2008), e depois serve como título a um livro, O vidro (2014). Posto isso, assim como a água em estado líquido, as palavras dentro da poética de Quintais são amorfas e dependem do recipiente em que se encontram, no caso, os respectivos poemas. E, assim como a água escapa das nossas mãos, os poemas de Quintais escapam de qualquer busca por respostas, representando, então, uma síntese do que esse sujeito lírico pensa sobre a linguagem e essa tentativa que é escrever poesia: “Fomos condenados à gaguez triunfal / pela qual procuramos ainda dizer / o que nos foi recusado.” (QUINTAIS, 2008, p. 16).

Os poemas traduzem aquilo pelo que a língua, a linguagem, a escrita e a água estão cercados: a imprecisão e a vagueza. Tudo está sempre a escapar, a potência imagética da água escapando aos nossos dedos representa bem a fuga

de qualquer significado e interpretação. A manhã, suposto momento/lugar da possibilidade, representa, na verdade, um combate eterno, sempre em vigilância, posto ao lado do metafísico mal:

ManhãComeças a manhã com o significado litúrgicoa conquistar o que jamais poderá ser dito.

Desloca o teu mundo para a vigília em que se desdobram os dias.

Tomado por um gritoque assalta a anónima cilada do porvir,

o rumor planetário eclipsa-senas movediças matérias deste vácuo.

É imperfeita a manhã, e o metafísico mal, grandiloquente e de trágicos assentos,

já não virá hoje, crês.(QUINTAIS, 2008, p. 17).

Assim como a linguagem reflete essa luta (duelo, se formos usar os termos do próprio Quintais) constante que é ela mesma, o poema reflete o aspecto obscuro sintetizado pelo grito, linguagem primitiva, que estabelece uma conexão entre o que a humanidade conseguiu desenvolver – a comunicação por meio da linguagem, das línguas – e a imprecisão que cerca essa linguagem, que, ao mesmo tempo em que aproxima pelo que comunica/compartilha, desaproxima pelo que deixa de partilhar. É possível perceber esse vazio que a escrita (forma

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da linguagem) deixa de comunicar, ao retomar um tema comum, inclusive com o mesmo título:

Manhã

Esta manhã olhei do vidrodespedaçado da cozinhapara o outro lado, o lado das ruínas e do pó, e uma palavra surgiuna página limpa do porvircomo uma nuvemou uma mentira, agreste severo pensamentosob o peso do acontecido. (QUINTAIS, 2013, p. 16).

O vidro (imagem ambígua, mas que sempre remeterá aos cacos: ou do vidro que se quebrou, ou dos fragmentos do passado) separa o presente do passado; “o lado das ruínas e do pó” pode muito bem ser do primeiro poema “Manhã” e seu fado negativo, como já havia sido anunciado por “já não virá hoje, crês”. O porvir se repete assim como essa manhã negativamente improdutiva, assim como a língua da poesia que se busca na “vigília / em que se desdobram os dias”, para trazer uma vez mais o trágico: “uma mentira”, que pode ser lida como a arte, lembrando-se que os domínios pós-pessoanos que tratamos aqui não remetem somente ao fingimento, mas a uma visão moral da mentira que a arte pode ser por si só, até mesmo para o poeta, que só consegue se deslocar entre “subjectivas mesas”, sendo este o local de construção mais próximo das “reais palavras”, dessa já tão gasta linguagem,

justamente porque é “[...] no lugar da própria linguagem, dita por idiomas sujos como as mãos do ser humano ao longo da história, e da inexistência da linguagem perfeita, babélica, que se dá a fala, inclusive a poética. [...] Quintais só logra uma fala porque gagueja” (MAFFEI, 2011, p. 386). Gagueja pela linguagem imprecisa: por meio dela e para ela. Por meio da escrita que busca mesmo tendo consciência – um tanto negativa – das suas falhas, e, para ela, ao tratar metalinguística e repetidamente a linguagem e a escrita, uma de suas formas de expressão. Para ela porque o “duelo”, que intitula um livro e sintetiza a luta que o sujeito trava “com seu tempo, com os tempos e com a tradição. [...] com a linguagem” (MAFFEI, 2011, p. 386), para salvá-la dela mesma, nunca em um sentido positivo ou de redenção, mas em uma busca do que ela é hoje, de como ela se insere no contemporâneo que todos estamos perscrutando. “Nada é o que aparenta ser? Ou tudo o que existe está à superfície e pode ser convocado, e depois descrito?” (QUINTAIS, 2008, p. 60). Ao invés de nos dar respostas, Quintais só nos deixa mais questões. Se a linguagem pode ser convocada não é possível responder, mas que ela é amplamente utilizada, jogada, trabalhada, repetida, ressignificada e transformada – mesmo com suas falhas e vazios, e vestígios (intencionais?) – ela é. Mas o desconhecido certamente pode ser convocado, até porque a busca se dá por meio de convites a possibilidades:

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Depois da escrita

Eu convoco o lugar onde ninguém está, onde o olhar é raro, e o ruídoé a plana e fugaz vontade do pensamento.

Será esta a vertigem o abandonado court de ténis após as chuvas de uma tarde de maio, a linguagem mais branda de uma poça de água na imperfeita sintética superfície.

Eu começo depois da escrita, toda a escrita começa depois da escrita. (QUINTAIS, 2008, p. 48).

Mais uma questão é posta em xeque: se toda escrita começa depois da escrita, onde começa a escrita? Nesse espaço-tempo contemporâneo inominável no qual se encontra a linguagem, no “mais espesso” que a água pode ser, na “gaguez triunfal” que traduz (ironicamente) a perda do nomear, possibilidades de respostas que se buscam por meio dessa mesma linguagem que coloca perguntas?

O que vive é espessocomo um cão, um homem, como aquele rio. Como todo o realé espesso.Aquele rioé espesso e real.

[...]

Aquele rio é espesso

como o real mais espesso.  Espessopor sua paisagem espessa,onde a fome estende seus batalhões de secretase íntimas formigas. E espessopor sua fábula espessa;pelo fluirde suas geleias de terra;ao parirsuas ilhas negras de terra. Porque é muito mais espessaa vida que se desdobra em mais vida, como uma frutaé mais espessa que sua flor; como a árvore é mais espessa que sua semente; como a flor é mais espessaque sua árvore, etc. etc.

Espesso,porque é mais espessaa vida que se lutacada dia,o dia que se adquirecada dia(como uma aveque vai cada segundoconquistando seu vôo).(MELO NETO, 1994, p. 115)

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Podemos pensar no espesso proposto pelo poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto como uma direção de leitura: espesso pelo fluir, por aquilo que é vivo – e se encontra, pois, em constante transformação e descoberta –, pelo escorregadio, pelo fugidio, pelo que vive simultaneamente a descobrir o que é viver (no âmbito que tratamos aqui: que escreve simultaneamente a descobrir o que é escrever, o que é essa escrita, de que é feita essa escrita, além daquilo que foge, além daquilo que é ilegível, até mesmo porque se escreve). Mas se João Cabral nos ensinou a lição da pedra – “Uma educação pela pedra: por lições; / para aprender da pedra, frequentá-la; / captar sua voz inenfática, impessoal / (pela de dicção ela começa as aulas).” –, Luís Quintais está nos ensinando (no gerúndio que indica a continuidade desse movimento que está a acontecer, acontecendo) a lição do gelo –

Do geloÀ psicologia profunda tudo devemos. Acima de todas as coisas, devemos-lheo que não comunica, o que a inocência e o esquecimento traem. É à ímpia hipótese que tudo devemos: a do negro icebergue evolutivo que no cérebro espelha abominações e que nos faz balbuciar o seu fogoe o seu reino.

As lições do gelo são a melhor explicação da arte das cesuras e dos caprichos:

o que não fará certamente a cidade, o que não compõe um segredoque não seja a plena paixão do ilegível. (QUINTAIS, 2008, p. 14).

– das várias formas que a poética pode ter, assim como a água e seus vários estados, ou mesmo da sua informidade, até porque o importante não é a forma – ou mesmo a falta dela – mas as transformações às quais o contemporâneo nos submete como num continuum. As ressignificações do gelo que pode (e provavelmente vai) derreter e se transformar na água líquida que, espessa que é, escapará aos nossos dedos, assim como o fazer poético de Quintais, “mais espesso que a água”.

Referências Bibliográficas

MAFFEI, L. “Agora a dizer de agora, um esboço contemporâneo”. In: ALVES, I.; MAFFEI, L. (Orgs.). Poetas que interessam mais: leituras da poesia portuguesa pós-Pessoa. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011.MELO NETO, J. C. Obra completa: volume único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. QUINTAIS, L Depois da música. Lisboa: Tinta-da-china, 2013.____. Duelo. Lisboa: Cotovia, 2004. ____. Mais espesso que a água. Lisboa: Cotovia, 2008.____. O vidro. Lisboa: Assírio & Alvim, 2014.

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Cenas de escuta na poesia de Luís Quintais

Moisés Paim Fonseca

UniversidadeFederal de MinasGerais

[...] Nada é imperceptível para alguém que se habituou a escutar [...]

(Gonçalo M. Tavares)1

Ouvir-se: ir-se. Para onde? (Octavio Paz)2

O título que nomeia esta modesta leitura da poesia de Luís Quintais alude a um dos estudos mais interessantes de Rosa Maria Martelo: “Cenas de Escrita (alguns exemplos)”3. Essa reflexão desen-volvida por Martelo destaca o aspecto cenográfico do momento de escrita, segundo ela potencialmente significativo pois:

[...] as cenas de escrita nunca são inocentes. Muito pelo contrário, elas indicam sempre uma poética e também uma ética da escrita. Com efeito, a questão de onde e como se escreve não é

1 Trecho que integra a estância 101, Canto IV, de Uma Viagem à Índia (2010).2 “Recaptulações” – em: O arco e a lira. São Paulo: Cosac Naify, 2012.3 Este texto compõe o livro A forma informe – leituras de poesia.Rui Chafes

Cinzas de Pasolini III2004

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inócua nem destituída de sentido, sobretudo quando o acto de escrita é tematizado num poema. Faz parte da dimensão meta-reflexiva da poesia de tradição moder-na a apropriação das cenas de escrita como um dos tó-picos através dos quais a poesia se dobra sobre si mesma e a si mesma se mostra, pensa e analisa.” (MARTELO, 2010. p. 322).

A proposta acima referida me é tanto um estí-mulo verbal quanto imaginativo: verbal a notar pelo títu-lo deste texto; e imaginativo porque Rosa Maria Martelo (esse oxímoro em redondilha maior!) parece atentar-nos à condição intencional do poema – nada é por acaso. Esse modo ler realça a etapa em que o artífice trará à superfície (da folha em branco, por exemplo) o talhe do poema; é o átimo de sua feitura.

Nesse sentido, tentarei estabelecer uma leitura de poesia a qual seja destacada não um fazer poético pelo meio da cena que envolve a escrita como seu maior fun-damento; ao contrário: um fazer poético que se dê por e através da escuta. O que se fará daqui adiante é ler, princi-palmente, dois poemas de Luís Quintais (não especifica-mente de um único livro e selecionados aqui pelo tema da voz ou da escuta – de um chega-se a outro, veremos); além de mostrar como o poeta em questão se comporta como ouvinte/observador.

Penso na escuta como um forte tema da poética de Quintais. A escuta e aquilo que pressupõe a escuta: o seu antes, durante e depois; ou seja, a voz, o vento e a ferrugem:

Voz, vento, ferrugem4

Eu sou aquele que longamente observa e escuta. Procuro uma imagem, um resíduo da experiência. Procuro um exemplo. Uma figuração da luz. Uma voz mistura-se com o rumor das acácias. Um sinal de trânsito esplende a rubra ruína. −Voz, vento, ferrugem. (QUINTAIS, 2004, p. 69).

A partir dos dois primeiros versos desse poema é possível traçar um esboço do sujeito poético: estamos a falar de alguém cuja arte da observação − atenção, análise, vigília5 − é de suma importância. De modo a dar contraste a essa consideração, apresento uma das figurações de um contemporâneo de Quintais, o poeta Herberto Helder: “Cantar? Longamente cantar.”6 (HELDER, 2014, p. 19). Quintais não é o cantor; é o ouvinte. E o que procura (pela e na percepção) é justamente os elementos mais marcan-tes que fundamentam a sua obra: «uma imagem», ou seja, um efeito da luz; «um resíduo de experiência», quer dizer, memória, vestígio, ruína, arquivo; e «um exemplo», isto é, algo que − entre duas fortíssimas abstrações que são «uma

4 Poema de Duelo (2004).5 A ideia da vigília é muito recorrente na poética do Quintais.6 Verso do poema “O Amor em Visita”.

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figuração da luz» e um lugar psicológico de memória − seja mais concreto e palpável, de maneira tal que essa terceira busca seja aquilo que daria à sua poesia o «Falar com coi-sas»7, que na concepção de João Cabral de Melo Neto é imprescindível ao fazer poético. Até aqui, esquadrinha-se o primeiro grande momento do poema: uma espécie de apresentação desse sujeito que escuta.

No segundo grande momento do poema, ou seja, a partir do sétimo verso, um evento que agora é de ordem externa ao poeta inicia-se. Esse sujeito é capaz de cap-tar no vento8 um algo a mais, uma espécie de significado oculto, uma mensagem cifrada que passaria despercebida aos ouvidos de quem não escuta longamente: «Uma voz mistura-se / com o rumor das acácias.» Ao contrário, Alberto Caeiro topa na estrada com alguém que desacredita nesse algo oculto – um rumor significante? – que se propaga no ar em movimento:

“Olá Guardador de rebanhos, Aí à beira da estrada, Que te diz o vento que passa?”“Que é vento, e que passa, E que já passou antes, E que passará depois, E a ti o que te diz?”“Muita cousa mais do que isso.

7 Referência direta ao poema «Falar com coisas», componente de Agrestes, do poeta João Cabral de Melo Neto. 8 Considerei que «o rumor das acácias» fosse o barulho do vento; como se estivessem as árvores a balançar os braços, dançando no ar, e produzindo um tipo de música “farfalhante”.

Fala-me de muitas outras cousas. De memórias e de saudades E de cousas que nunca foram.”“Nunca ouviste passar o vento. O vento só fala do vento. O que lhe ouviste foi mentira, E a mentira está em ti.”(CAEIRO, 2001, p. 213).

A conversa acima nos leva a crer que Quintais esteja mais próximo de Caeiro que daquele andarilho com quem o Guardador dialogou. São sujeitos que discernem no ar outras nuances que não o puro rumor do oco9.

E ainda nesse segundo movimento de «Voz, ven-to, ferrugem», tem-se um arrebatamento do sujeito peran-te uma imagem, ou seja, algo que não se apoia nos efeitos da escuta, e sim nos efeitos da luz: «Um sinal de trânsito esplende / a rubra ruína. −»; e logo a seguir o último verso articula-se num tom conclusivo, como que sintetizando todo o raciocínio do poema e retomando o título, fechan-do um ciclo.

Esse poema então pode ser lido como uma ten-são entre dois grandes modos de perceber, pela escuta ou pela visão. E o que subsiste dessa tensão é justamente uma ideia de ressonância, de propagação: a voz, o antes da es-cuta; o vento, o durante da escuta; e a ferrugem, o depois da escuta, o efeito oxidante do tempo, a herança, o desgaste,

9 Aqui vai mais um bom caminho para a leitura de Quintais: o oco tem presença marcante em sua obra. E não por acaso − afinal, do que se compõe mesmo o ar?

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a ruína. Sublinho: o Quintais que aí se apresenta não é aquele que canta, é o que escuta. Não é o construtor por excelência, o arquiteto, o ferreiro, o ourives; ao contrário, é quem se vê diante de ruínas e ferrugem. No entanto, pa-radoxalmente, arquiteta, constrói, forja e lapida: o poema está aí, em nossas mãos, muito bem planejado: o derradei-ro verso do poema está destacado do corpo íntegro que o compõe, e é escrito quase identicamente ao título, não fosse pelo ponto final. Eis aí, nessa forma bem construída, um fundo de eco, sussurro, continuidade vocal.

Seria então a escuta uma atitude meramente pas-siva, quando confrontada à visão? Não, pois perceber em si envolve avidez:

Perceber não é uma actividade para lentos, é urgente. Nascemos: e quase nos afogamos; e perceber é tentar nadar até à margem seca.(TAVARES, 2010, p. 351).

Quem é vivo percebe e procura perceber viva-mente. Mas nesse segmento, há que se fazer uma ponde-ração: quem percebe pela escuta deve dedicar-se mais, pois estar à escuta é estar inclinado a um sentido possível, não imediato (aos olhos). As palavras de Jean-Luc Nancy são de extrema importância, no que diz respeito a essa faceta sonora:

Depois de ter designado uma pessoa que escuta (que espia), a palavra «écoute» [«escuta»] designou um lugar

a partir de onde se escuta em segredo. «Estar à escuta» consistiu primeiramente em estar colocado num local escondido de onde pode surpreender-se uma conversa-ção ou uma confissão. «Estar à escuta» foi uma expres-são de espionagem militar antes de voltar, pela radio-fonia, ao espaço público, não sem permanecer também, no registo telefónico, um assunto de confidência ou de segredo roubado. Um dos aspectos da minha pergunta será então: de que segredo se trata quando se escuta propriamente, que dizer, quando nos esforçamos por captar ou por surpreender a sonoridade mais do que a mensagem? (NANCY, 2014, p. 15).

No caso de «Voz, vento, ferrugem» o segredo cap-tado pelo poeta pode ser a matéria do poema, alcançado pelo esforço de longamente escutar. Amarremos portanto o poema de Quintais, a constatação de Tavares e a inves-tigação de Nancy: perceber é alcançar uma margem e es-cutar é estar à beira do sentido, o que se tira disso pode ser um modo de fazer poema. Eis uma tradição? Escutar exige astúcia e dedicação, e portanto não é uma atividade menos criativa.

Quando parto à leitura de Quintais, espero sem-pre ir de encontro a um eco, a um vestígio, a um sinal de escuta rara. Um depois da música10:

O azul de Wallace StevensNão recordo esse azul, mas sei que ele se alia ao azul imaginado pela acústica impressão:desprende-se a sua voz, bate

10 Referência direta ao livro Depois da Música (2013). O poema que se segue é, inclusive, desse livro.

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no meu rosto, retoma a mais densa compreensão, o sonho da matériacom que haverei de lhe tocar a pele dizendo seu nome(QUINTAIS, 2013, p. 20).

O poema acima nos serve aqui como um modo de pensar a escuta em seu fluxo inverso. No poema anterior-mente lido, deparamo-nos com a situação do som chegan-do ao poeta; n’ «O azul de Wallace Stevens» temos antes o som produzido pelo artista. Qual artista? Há pelo menos duas possibilidades. O título do livro pode se referir a uma das obras de Stevens, mais especificamente à coleção de poemas The Man with the Blue Guitar and Other Poems, publicada com o título de um dos seus poemas mais famo-sos, em 1937. Nessa perspectiva é bem possível que o azul do qual se recorda o sujeito do poema (primeiro verso) e a voz que chega a bater-lhe o rosto (terceiro verso) sejam do próprio Stevens. Proponho que um segundo diálogo seja estabelecido com o Velho Guitarrista11 de Pablo Picasso:

11 1903; Óleo sobre madeira (121 x 92 cm). The Art Institute, Chicago, EUA.

O velho, com seus membros absurdos, mais do que apenas tocando, está agarrado ao seu instrumento, quase formando apenas um corpo. A guitarra é o único objeto não azul e ocupa a posição central na tela. A guitar-ra do velho, apesar de não ser azul, azula o entorno «pela

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acústica impressão», eis o efeito desconcertante e expansivo do som, fonte essencial da escuta:

O sonoro [...] arrebata a forma. Não a dissolve, alarga-a antes, dá-lhe uma amplidão, uma espessura e uma vi-bração ou uma ondulação que o desenho mais não faz do que aproximar. O visual persiste mesmo no seu des-vanecimento, o sonoro aparece e desvanece-se mesmo na sua permanência. (NANCY, 2014, p.12).

A vibração sonora é elevada ao extremo na pintu-ra de Picasso logo acima apresentada. É o som da guitarra o elemento transformador do ambiente. A guitarra não é azul; a guitarra azula. E esse som, não nos importa mais se é a voz do Stevens ou a música do Velho Guitarrista, causa também efeito profundo em Quintais, observa-se isso na segunda estrofe do poema. O som adquire um efeito táctil, atingindo sua pele e fazendo-a vibrar, bate-lhe o rosto, até que o poeta a partir desse ato de escutar consiga compreen-der. Em francês, é interessante destacar, o verbo “entendre” pode tanto significar “entender” quanto “ouvir”; eis o para-lelo entre essas duas atividades que marcam grande tensão no que diz respeito aos atos de “saber” e “sensibilizar-se”.

Não seria exagero afirmar que a nossa sociedade é submissa à luz e ao que ela possibilita, ou seja, a per-cepção de imagens. Vive-se em tempos tais que o mundo pode até parar de funcionar caso aconteça um longo apa-gão. Nesse sentido, é interessante pensar o porquê de um contemporâneo destacar o valor da escuta, como se este

pretendesse sublinhar um aspecto específico da percepção que vai contra o que é, geralmente, praticado agora, en-quanto sua poesia é lida. Não é de se espantar; o poema é o lugar da resistência. Sempre há algo que fica no poema, suspenso. Como que no ar; como que numa cena de escu-ta. Quintais segue nos questionando: em meio à tanta voz ou ferrugem, «Canto onde»?

Referências Bibliográficas

HELDER, H. Poemas Completos. Porto: Porto Editora, 2014.MARTELO, R. M. Cenas de escrita (alguns exemplos). In: ______. A forma informe – leituras de poesia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010. p. 323-343. PESSOA, F. Obra Poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 2001.QUINTAIS, L. Depois da Música. Lisboa: Tinta-da-Chi-na, 2013.QUINTAIS, L. Duelo. Lisboa: Cotovia, 2004.TAVARES, G. M. Uma Viagem à Índia. São Paulo: Leya, 2010.

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Esse canto escuro:o medo como condição poético-antropológicaem Luís Quintais

Patrícia Chanely Silva Ricarte

UniversidadeFederal de Santa Catarina

Vivemos no medo. Ele é a nossa casa. De nós exige um desvelo permanente.

(Luís Quintais)

1 “No cortejo das sombras, / incapaz de te encontrar”

A palavra “crise” pode ser evocada a partir de diversas perspectivas ao lermos a poesia de Luís Quintais. No caso de uma obra tão complexa e pro-fícua como a deste poeta, um dos poucos realmente capazes de nos oferecer uma imagem profunda de nossa época contemporânea, a crise, (1) além de en-gendrar-se pela consciência histórica em torno dos desdobramentos da poesia moderna em nossos dias, (2) é também fruto, em um plano poético-filosófico, de uma concepção metafísica acerca das limitações da linguagem ante a experiência da realidade, (3) bem como da assumência de uma postura pós-mo-derna, ao mesmo tempo elegíaca e desconstrutivista, assinalada pelo sentido do “fim da história”. Essas

Rui ChafesMar Nocturno2014

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três linhas de força, convergentes e complementares, re-sultam no cruzamento multidisciplinar de influências de que se serve Quintais em seu projeto poético. A primeira delas diz respeito ao diálogo do poeta com os fundadores da modernidade poética, tais como os franceses Arthur Rimbaud e Stéphane Mallarmé, além de autores de lín-gua inglesa, como Ezra Pound e o pré-romântico William Blake. A segunda é tributária da tradição metafísica da poesia ocidental, tal qual a encontramos, de certa forma, na lírica classicista de Camões e Petrarca, mas apurando-se, ao longo do percurso de Quintais, como algo cada vez mais afeito à proposta do poeta estadunidense Wallace Stevens, responsável por alçar a imaginação a um nível ontológico1. Por fim, a terceira linha, conforme declara o poeta, em entrevista publicada na revista acadêmica Abril, no ano de 2012, deve-se tanto ao questinamento de Theodor Ador-no, no ensaio “La crítica de la cultura y la sociedad”, acerca da (im)pertinência da poesia após a barbárie ocorrida no campo de concentração de Auschwitz, durante a Segunda Guerra Mundial2, quanto à contribuição de Bruno Latour 1 Cf. SANTOS, Alcides Cardoso. A imaginação como metafísica: uma leitu-ra do poema “O percurso de um particular”, de Wallace Stevens. Texto Poético. v. 15, 2º sem./2013, p. 25-46.2 “Luego de lo que pasó en el campo de Auschwitz es cosa barbárica escribir un poema, y este hecho corroe incluso el conocimiento que dice por qué se ha hecho hoy imposible escribir poesía”. [“Escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas”]. (ADORNO, 1962, p. 29) “Eu gostaria de me descrever como um poeta pós-moderno. Para mim, pós-modernismo significa pós-holocausto. Eu acho que a minha poesia, à medida que o tempo

no que se refere ao conceito de desconstrução3. Nesse sen-tido, pode-se, inclusive, admitir que a formação acadêmica de Quintais, que atua como professor de antropologia na Universidade de Coimbra, vem a favorecer a constituição de um arcabouço poético de influências multifacetadas que passam pela crítica cultural, pela filosofia, pelas ciên-cias sociais e pela teoria e história da poesia.

foi passando, tornou-se cada vez mais adulta. Ela parte de uma sensibilidade profundamente melancólica que se torna uma sensibilidade elegíaca. Uma sensibilidade que deriva de uma espécie de consciência trágica do que poderá ser, talvez, o fim da história. Eu levo o pós-modernismo muito a sério porque eu acho que ele significa pós-holocausto. Defenderia o ponto de vista de que Auschwitz é a última estação de experiência ocidental. Todo o projeto utópico moderno acaba com o extermínio. E nós continuamos a viver sob o império do extermínio de uma certa forma. Basta olhar para os animais. As condições do extermínio continuam presentes no nosso mundo. Qualquer escritor que escreva hoje, qualquer poeta, tem que se confrontar, de uma forma muito séria, com a dura experiência de que nós escrevemos depois de o mundo ter acontecido. O mundo já acabou, e agora o que fazer? Continuamos a escrever depois disso. Movimento insensato. O Adorno viu isso muito bem quando disse que escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro. Há alguma coisa de bárbaro e insensato, há uma falta de sensatez no escritor de poesia sem dúvida” (QUINTAIS, 2012, p. 208-209).3 “[…] aquilo que escrevo tem uma dimensão desconstrutiva, destrutiva, como se procurasse justamente mostrar esse avesso. Eu gosto de uma defini-ção do que é desconstrução que é dada por um filósofo e antropólogo francês chamado Bruno Latour, que diz que a desconstrução é uma forma de destrui-ção em câmera lenta. Aquilo que eu escrevo tem muito a ver com uma reflexão sobre o papel e a natureza da linguagem e sobre a opacidade da linguagem, sobre a impossibilidade de ela em dizer o mundo e, nesse sentido, justamente, a impossibilidade de preencher o vazio, a ausência. A ideia de que o sentido é contingente, instável, algo que nós tentamos agarrar, sabendo que não po-demos de todo agarrar, essa é sem dúvida uma das ideias que move o poema. A ideia de que o poema serve para preencher de alguma forma a ausência, o vazio, sendo porém um trabalho sobre a linguagem que nunca está fechado, que existe em processo. (QUINTAIS, 2012, p. 207)

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É interessante notar como a todas essas três ver-tentes relaciona-se um dos elementos mais recorrentes ao longo da obra do poeta: a questão do medo, através da qual é possível entrever, inclusive, o périplo evolutivo dessa poesia, que, segundo Quintais, “tornou-se cada vez mais adulta” ao partir de uma “sensibilidade profundamente melancólica” para uma “sensibilidade elegíaca” (QUIN-TAIS, 2012, p. 208-209). Quanto à postura melancólica, que vamos encontrar nos primeiros livros do poeta – A im-precisa melancolia (1995), Lamento (1999), Umbria (1999) e Verso Antigo (2001) – , ela parece recair de modo espe-cial sobre a questão da dificuldade da forma, que aparece reiteradamente nos poemas dessa fase inicial, já marcada por uma consistente noção filósofica da natureza da lin-guagem, sobretudo no que se refere ao caráter sombrio e, até certo ponto, incognoscível da experiência poética, con-forme se pode observar no seguinte poema d’ A imprecisa melancolia:

No cortejo das sombras,incapaz de te encontrar,tão irreal que és, como uma manhã de invernoou uma rua deserta,

no cortejo das sombrasdistingoo pavor de te desconhecer. (QUINTAIS, 2015, p. 779)

Nesse livro de estréia, a relação entre o “pavor” e as “sombras” é reforçada, ainda, pela homologia entre a poe-sia e a arte pictórica de vanguarda de Paul Klee:

Em 1940, Klee coleccionava obsessões, “grandes signos negros”. Arquétipos do medo?Em breve, os corpos iriam tremercom essa possibilidade:a do Tempo que se regozijacom a antropofagia dos actorese do seu luto.

Assusta-me a coerência primitiva, a ardósia da noite. Vultos que se dedicam a jogosde morte, simulacros de vida,convénios de perfeição e dor.

É de sonhos de que te quero falar,desses sonhos que se erguem sobre a fortuna da atrocidade, sugerindo sublimes recados, isso a que chamam arte.

Na tela do gosto, Kleepercorria a cegueira do indizível. Mais tarde diluir-se-iana não-resposta dos seus signos negrosque, entretanto,queimariam o mundo. (QUINTAIS, 1995, p. 90)

“Uma flor nocturna”, diz o poeta na mesma série de poemas em que se encontra o texto acima, “é tudo o que

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sobra / do esplendor dos versos” (QUINTAIS, 2015, p. 792). O caráter arquetípico das sombras, tanto na poesia quanto na pintura, indica uma concepção metafísica, na medida em que diz respeito ao pensamento poético e ar-tístico, ou seja, àquilo a que comumente chamamos ima-ginação. O que o poeta evoca, nessa série, são os mitos, os sonhos e as máscaras da arte e da poesia. Além disso, trata-se de uma experiência intrisecamente arraigada à própria condição humana do artista no mundo. O ano de 1940 é justamente o da morte de Klee. No poema de Quintais, ressalta-se a relação, de certa forma, enig-mática (“a coerência primitiva”) entre os últimos traba-lhos do pintor suíço-alemão e a sua morte, bem como a ideia de linguagem como algo sombrio e onírico, em uma interpretação singular de elementos da vida e da obra do artista. Os signos ou arquétipos da arte e da poesia não expressam outra coisa senão o medo que marca a experiência do homem no mundo, a sua evolução. Nesse sentido, a arte é concebida como uma sugestão de “subli-mes recados” de morte. Assim, o destino do artista é en-trelaçado pelo caráter sombrio de sua própria linguagem ou forma de expressão.

Por outro lado, a concepção metafísica da poesia de Quintais também vai tocar, de modo semelhante à perspectiva camoniana ou classicista, naquilo que con-cerne especificamente ao âmbito da imaginação poética,

a partir da visão personificada da poesia4, como no se-guinte poema de Verso antigo, livro de 2001:

Abria a porta, e a nítida imagem– o teu rosto, o seu definido presente, a sua iludida memória –vinha fazer naufragar o escurodo longo corredor pela frente.

Naquele tempoa aflita mancha de palavras azuispulverizava certezas, segredava-lhe o livro ardente, o enigma da sua possibilidade.

A aflita mancha de palavras azuisera distância não exercida, ludibriada pelo júbilo, houvesse crença na sua morada.

Abria a portae o volume do medo bloqueava-lhe agora o passodo que antes fora toda uma vida. (QUINTAIS, 2001, p. 33)

Neste poema, cujas imagens estão atreladas ao ato de escrever, manifesta-se certa nostalgia ou melanco-lia gerada por uma experiência poética que é, ao mesmo tempo, de clarificação e de obscurecimento, em que há, inicialmente, uma espécie de combate às sombras no qual a “nítida imagem […] vinha fazer naufragar o escuro do longo corredor pela frente”. A aproximação com a con-

4 Em última instância, seria este o sentido da imagem espiritualizada da ama-da e da relação entre beleza e sabedoria na lírica renascentista neoplatônica.

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cepção classicista da poesia imagética está no fato de que a imagem poética é aqui considerada como algo a que o poeta tem um acesso fugaz: “o teu rosto, o seu definido presente, a sua iludida memória”. Fala-se, portanto, de um momento em que havia crença poética na possibilidade da linguagem, na “aflita mancha de palavras azuis” que “pulve-rizava certezas”. Contudo, o neoplatonismo que caracteri-za a lírica do classicismo é responsável por trazer à poesia o sentido sombrio da perda: “O tempo o claro dia torna escuro”, diz o verso de Camões que Quintais utiliza como epígrafe de seu terceiro livro, Umbria. Na última estrofe desse poema de Verso antigo, contrapõe-se ao momento pretérito da visão poética o “agora” marcado pelo “medo” que bloqueia o passo do poeta. Nesse sentido, a poesia de Quintais estabelece um vínculo entre o medo ancestral e a dificuldade do poema. O medo, nesse poeta contemporâ-neo, diz respeito à inquietação do ser em relação ao frágil vínculo entre linguagem e experiência. A imagem da poe-sia como casa (“Abria a porta”, “houvesse confiança na sua morada”) remete à ideia da liguagem como habitação ou elemento constitutivo do ser, na acepção de Martin Hei-degger5. Assim, a categoria antropológica do medo marca também o processo de escritura poética na contempora-neidade.

5 Cf. HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. 2. ed. Trad. de Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2005.

2 Consagrar à poesia a inteligência do medo

A relação entre o medo e a dificuldade da forma, que tem a ver com a tradição metafísica da lírica ocidental, também remete ao processo histórico da poesia na moder-nidade. Na edição da poesia reunida de Quintais publica-da em 2015, Arrancar penas a um canto de cisne, o poema que citei no fim da seção anterior e que não tinha título na edição original de Verso antigo aparece sob o rótulo “Es-curo”. O mesmo acontece com os demais poemas da série em que esse texto se encontra, que passaram, na nova edi-ção, a serem intitulados, respectivamente, por: “Memória”, “Domínio”, “Página”, “Tempo” e “Desenho”, o que sugere o viés metapoético do tema aí explorado: o da procura pela poesia; esta que, na lírica classicista, tem o rosto de mulher, como se pode observar em “Domínio”, em que Quintais recupera tal expediente:

Ao pensar em alguns lugaresonde liricamente se exerce a desconcertantesolidão.

descubro a intromissão do rosto amadonesse território de ruína e silêncio,de água que movente me revelaa massa do tempo em fuga,

o mais fechado e íntimo dos domínios,o que me nomeia,o que me recebe,o que me demora

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sob o peso de um instante onde tudo se reconhece.

Como se a sua lembrançame viesse anunciar o que perdie vou repetindono arco que faço sobre a página. (QUINTAIS, 2001, p. 32)

A poesia, domínio a que pertence a existência do poeta – “o mais fechado e íntimo dos domínios” – é o lugar em que ele inscreve e circunscreve sua passagem pelo mun-do. Por isso, é tão importante em sua obra a carga antropo-lógica de estados e sentimentos fundamentais da condição humana, como a morte, a solidão e o horror, concebidos poeticamente, ou seja, a partir de sua particular experiên-cia como poeta. Nessa perspectiva, mesmo quando a ideia da perda, intrisecamente ligada a essa experiência metafí-sica da poesia, ganha um viés pós-moderno nos livros pos-teriores de Quintais, colocando em pauta os impasses que alguns pressupostos do modernismo acabaram deixando como herança para os poetas cujas obras surgiram após a exaustão das vanguardas históricas, tal revisão crítica não cai na mera metalinguagem, na medida em que, aí, o pro-blema histórico da poesia na contemporaneidade coadu-na-se com questões antropológicas do homem-poeta:

Todas as línguas do mundo se sujaram.fomos condenados à gaguez triunfalpela qual procuramos ainda dizer o que nos recusaram.

Na mínima dor há um pomar onde colhemos

os esplêndidos frutos que alimentam a nossa linfa, [o nosso sangue, a corrente que sem recurso nos prendeà furiosa morte.

A metáfora da alma será ainda a melhor dádivadeste corpo tão eficiente e tão pobre.

Assim nos saciamos. (QUINTAIS, 2013, p. 79)

Intitulado “Poesia moderna” e dedicado ao poeta português Gastão Cruz, um dos ícones da chamada Poesia 61, e presente na coletânea Depois da música, de 2013, o texto acima coloca em pauta a condenação do poeta con-temporâneo, que ainda procura dizer o que lhe foi recu-sado pelos extremismos das vanguardas, com seu teor an-tiprosaico, anticonfessional e anticomunicativo6. Alfonso 6 Em um poema em prosa de Duelo, intitulado com a célebre frase de Rim-baud, “Il faut être absolument moderne”, coloca-se em questão a dicotomia moderna entre poesia e confissão: “São mutuamente exclusivas as ordens da confissão e da poesia. Assim nos disseram os modernos. Sejamos modernos, pois. Mas quando vejo a minha mãe a subir (passo medido pelo cansaço e pela fraqueza) a Rua Castilho, a rua onde cresci e onde o mundo parece ter crescido desmesuradamente para a minha medida de homem acostumado às alturas (vivia num quinto andar que me parece agora um décimo), quando vejo a minha mãe de corpo pesado a subir a rua em direcção ao meu encontro, parando uma, duas vezes, passando as mãos pelo rosto suado (afinal estamos no pino do verão e a rua foi sempre soalheira, ou pelo menos soalheira deste lado em que a minha mãe sobe, o lado que habitámos após o nosso regresso das Áfricas, com o problema da habitação e tudo isso que parecia desesperar os enteados do Império), quando vejo a minha mãe subir a rua onde a minha lembrança dela estaca e precipita no vórtice da ilegislável brandura (a que terá feito Santa Teresa levitar ou algo entre a pura irrealidade e a pura realidade que todo o poema deveria sitiar), sei que os modernos nos pouparam ao in-fortúnio da confissão, mas que nos roubaram o idioma em que a luz de verão

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Berardinelli (2007), em seu breve ensaio “As fronteiras da poesia”, mostra como os radicalismos das vanguardas mo-dernistas, ao levarem às últimas consequências os pressu-postos da ideia moderna de “poesia pura”, dos conceitos de literariedade dos formalistas russos e de função poética de Roman Jakobson, acabaram contribuindo por gerar uma espécie de beco sem saída para a posteridade:

Esse típico percurso da modernidade poética é em geral dado por encerrado há tempos, a ponto de já não se falar mais dele. No entanto, por meio de uma série de prestigiosas teorizações (que vão até Roland Barthes e mais além), graças ao trabalho de inumeráveis epígonos e à ajuda de uma hegemonia estruturalista e neoformalista que preponderou nas universidades durante cerca de vinte anos, a linguagem poética continuou seu caminho de depuração anticomunicativa, progressivamente se enfraquecendo e esvaziando. Tornou-se cada vez mais inadequada à elaboração de experiências novas. Quase sem se dar conta, hipnotizados por uma autoridade teórica que definia a língua poética como algo que escapa à discursividade, à emotividade e à representação, a maior parte dos jovens autores que começaram a publicar a partir dos anos 1970 não ultrapassaram os limites e o âmbito restrito fixados pela estética formalista e pelas vanguardas informais, segundo as quais tudo era possível em poesia, tudo era permitido, exceto dizer alguma coisa. (BERARDINELLI, 2007, p. 15-16)

Quintais, longe de poder ser considerado um epí-gono ou um poeta que seguiria ingenuamente as conven-se faz de novo, como o princípio que quero descrever certeiramente sem que lhe saiba o tema ou a palavra que o torna claro”. (QUINTAIS, 2004, p. 46)

ções e os paradigmas da poesia ou de sua teoria, assimila de modo produtivo, e com extrema lucidez, esse impasse do poético em nossos dias, a partir de uma postura emi-nentemente crítica e reflexiva para a qual contribuem to-das aquelas três linhas de influência que perpassam seu projeto escritural: a consciência histórica, a concepção metafísica e a atitude desconstrutivista pós-moderna. Faz parte desta última o teor de inventividade que vamos en-contrar em toda a sua obra e, sobretudo, a partir de Angst (2002) e Duelo (2004):

Não serei o fabbro, o oficiante de uma linguagem que todos reconhecem. Abandonei o palácio do consenso, e quero o ar que ninguém respirou, o impossível cer-tamente. Peço a paisagem do que não há. Do que está morto e indesiste. Os frutos serão chamas que devoram, instante a instante, o fotograma do medo, o mapa dos erros, troncos, ramos, pequenos ramos, ínfimos ramos. (QUINTAIS, 2004, p. 17)

Veja-se que volta, nesse poema em prosa, intitula-do “Mundo”, o tema do medo, o qual, em um dos textos daquela série de Verso antigo, já aparece associado à condi-ção da busca, da procura pela poesia, entendida como uma voz perdida:

Livro

Algo terá de ser conquistado. O que principia na noite, os seus débitos, os seus cálculosde anos.

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O livro em suspenso aberto sobre a mesa, quase ilegível depois do esquecimento.A cor, a sua descoberta ou invenção,a funda cor do inverno. A voz de alguém que se perdeu, alguém de graciosa chamaa eclordir-lhe no rosto. O olhar que se precipita no teu,se esvai no teucomo sinal dos dias que colherás.A revoada das avesno paraíso, ali, ao dobrara esquina, no instantede um verso antigo.

Algo terá de continuar, apesar de tudodeverão continuaros seus medos, as suas efabulações,

o mapa de o procurar. (QUINTAIS, 2015, p. 592)

Quero crer, no entanto, que se trata de duas for-mas de busca: essa de que se fala neste texto de Verso an-tigo, direcionada para uma concepção imagética da poesia (“A cor, a sua descoberta ou invenção”) e aquela outra de “Mundo”, poema de Duelo, em que se reclama e se pro-clama a destruição da paisagem7. São momentos diferen-

7 A partir de Angst (2002), torna-se cada vez mais recorrente, em Quintais, o tema de destruição do símbolo poético, geralmente, representado pela tó-pica da árvore, em um verdadeiro programa ou projeto cuja “Síntese” o poeta apresenta nesse poema de Depois da música: “O tema é a destruição da árvore/ esquemática, gráfica./ A que se debruça cúmplice/ sobre o sentido unânime/ da sua biografia./ O vento percute-lhe a face gasta./ Anota a pequena can-ção,/ a armadilhada incerteza/ com que regressa/ ao sonho da linguagem:/

tes na trajetória do poeta. Em “Livro”, o medo aparece como uma espécie de força e possibilidade do poema, de sua procura, tendo em vista a ideia de poesia como “verso antigo”, algo que se perdeu. Em “Mundo”, “o fotograma do medo” está ameaçado pelos frutos insidiosos da po-tência inventiva. Em ambos os textos, há uma espécie de binômio entre o medo e a ideia de “mapa”, a qual aparece frequentemente como uma forma de designar a obra de linguagem que é o poema. Mais especificamente, o “mapa” está ligado, em Quintais, à ideia de métrica, e pode servir de chave para uma leitura em torno da questão do verso e das formas em prosa, tão recorrentes nos livros publica-dos a partir da primeira década deste século8. No texto de Duelo, a ideia de “fotograma do medo” pode indicar certa aspiração no sentido de dar uma conformação desse An-gst (termo alemão que designa “medo”, “temor”, “receio” ou “angústia”), o qual, como diz o poeta, “armadilha-lhe a vida, e eu respondo, devolvo o seu eco, transfiguro a po-derosa – e invencível – cilada” (QUINTAS, 2010, p. 51).

Uma revisitação póstuma,/ um trajecto de líquidas atmosferas/ entregues à vontade/ de um deus obscurecido,/ queimado,/ como um vidro queimado,/ vitrificado” (QUINTAIS, 2013, p. 21).8 Em minha tese de doutorado, dedicada aos poemas em prosa na obra de Luís Quintais e de outros três poetas de língua portuguesa (Luís Miguel Nava, Rodrigo Garcia Lopes e Marcos Siscar), analiso esse aspecto a partir da noção de crítica do ritmo, na perspectiva de Henri Meschonnic. Cf. RICAR-TE, Patrícia Chanely Silva. A mesma poesia jamais a mesma: o poema em prosa como saída crítica na produção contemporânea. Tese de Doutorado apresen-tada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, 2016.

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Nessa perspectiva, o trabalho de invenção não consiste em superar de modo definitivo o medo, mas em fazer dele um reforço, uma espécie de manancial produ-tivo para uma poesia que de outra forma poderia cair em mera autorreflexividade. O medo, além de conferir lastro humano e existencial à obra de Quintais, contrabalança a sua concepção metafísica, baseada na imaginação e, por-tanto, na força mental do poético, com uma ideia corpórea da linguagem:

O medo é um fotograma entre outros. Ele move-se sem que se saiba o que o move, quem o move, por que se move. Quando passas rente ao muro exterior de uma casa, preso aos teus pensamentos, a esse fluxo de cons-ciência que os teus passos tornam mais nítido, uma massa negra, de uma negra ferocidade, atira-se (ou é atirada) de encontro ao portão de grades num frene-si assassino. Tudo cessa, o mundo como um sopro de imagens sobrepostas que a palavra vai cerzindo, cessa. Sentes apenas o teu corpo, o teu corpo em sobressal-to, o sangue que corre, célere, nas têmporas, as fibras que estremecem, as vísceras que revelam a sua presença. Qualquer coisa que te diz: “Vais morrer. O avesso da respiração é a morte”. (QUINTAIS, 2004, p. 80)

Voltando àquele poema de Depois da música, “Poesia moderna”, é válido lembrar que, nele, há o mesmo cuidado em complementar ou em equilibrar o que há de reflexivo no poético com o fator humano ou antropológico, na medida em que a reflexão sobre a linguagem (“as línguas do mundo”) está associada à ideia

de dor e de morte. A poesia, portanto, se alimenta dessa simbiose: “A metáfora da alma será ainda a melhor dádiva / deste corpo eficiente e tão pobre”. Trata-se, portanto, de um aspecto capaz de garantir fecundidade dialética à obra desse poeta contemporâneo, permitindo, entre outros fatores, que Quintais, nos termos de Hans Magnus Enzensberger, possa “queimar produtivamente” o museu da poesia moderna9.

3 “Vivemos no medo. Ele é a nossa casa”

Recentemente, em novembro de 2016, Quintais publicou em seu blogue um poema que traz uma impor-tante chave de compreensão desse binômio entre medo e linguagem:

Esse canto escuro

O medo tem um significado evolutivo. Ele é uma sobrevivência da nossa errância

antiga de predadores perfeitos. Inadaptados, caminhamos hoje na cidade,

ecologia de cuidados e atributos sublimados, e o medo serve a sem métrica

dos gestos agramaticais. Cada perturbação da fala

9 ENZENSBERGER, Hans Magnus. Linguagem universal da poe-sia moderna. In:______. Com raiva e paciência: ensaios sobre litera-tura, política e colonialismo. Trad. de Lya Luft. Rio de Janeiro: Paz e Terra: Instituto Goethe, 1985.

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devolve-nos esse canto escuro, o molde incompleto que nos define.

Vivemos no medo. Ele é a nossa casa. De nós exige um desvelo permanente.

Num combate corpo a corpo lutamos com as paredes da casa.(QUINTAIS, 2017)

Neste texto, a condição antropológica do medo en-volve outras questões de fundamental importância na obra do poeta: a ideia da linguagem como “a régua e o esqua-dro da experiência que não pode ser metrificada, que não é mensurável” (QUINTAIS, 2010, p. 52); a do poema como eco ou vestígio dessa experiência (“esse canto escuro” de-volvido pelas perturbações da fala); a da poesia como luta corporal com o medo, essa morada do homem; além do sentido evolutivo do medo, essa nossa herança ancestral.

O sentido antropológico dessa simbiose ou binômio entre medo e linguagem pode também remeter a uma outra questão: a analogia entre a escrita, concebida em termos de imaginação metafísica, e o caminhar primitivo do homem predador na neve, como se pode constatar no seguinte poe-ma em prosa, presente em Canto onde:

Ver o norte

Represento o inverno que se abre à visão. Aceito a dupla cilada da luz. Ver o ver. Assim pensei a infinita progressão das imagens, aquilo a que alguns chamam

de “o filme no cérebro”. Escrevo, delimito a circunstân-cia e o seu perímetro através de um esforço na clari-dade, sabendo porém que é opaco o pensamento nas transparências invocadas. Estou sob o sortilégio da luz, da cegueira mais extrema. Represento o gelo, as admoestações do vento, a imaginada música do crepús-culo que se avizinha. Certos vestígios de animais – ani-mais de pequeno porte, irreconhecíveis no meu falso adestramento do mundo – progridem na neve, e vão ao encontro do escuro. Caminho na luz, faço suspender o ilegível que me vencerá. Persigo fragmentos. (QUIN-TAIS, 2006, p. 101)

Aqui, também a concepção metafísica do poeta, assim como sua consciência histórica sobre os impasses da poesia na contemporaneidade, é colocada em termos antropológicos que extrapolam a mera especulação da lin-guagem, sendo esta assumida como condição fundamental do poeta no mundo: “os vestígios dos animais na neve, / o meu desígnio na terra”, diz Quintais no poema em versos “Norte”, que consiste em uma versão mais condensada de “Ver o norte” e pode ser tomado como uma forma de es-pelhamento deste e vice-versa. Por fim, vamos encontrar novamente a ideia do poema como algo vestigial neste texto de Duelo:

Medo

Estratos assentam uns sobre os outros.São o vestígio submerso da tua vida.Em certos momentosum deslocamento, uma torção, uma forçaque reconhecerás pelos efeitos, denuncia

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a iminente ruína.

Consagra o que te resta do porvirao reforço desta casa. Consagra-lhe a tua vigília e a tua aflição.Consagra-lhe a inteligência do teu medo. (QUINTAIS, 2004, p. 79)

Neste texto, a ideia da poesia como casa ou morada, já encontrada no poema “Escuro”, de Verso antigo, é mais uma vez retomada. Novamente, explora-se a aproximação entre medo e linguagem, a partir de uma visada não somen-te antropológica, mas também arqueológica: “São o vestí-gio submerso da tua vida”. Por precário que seja seu caráter descritivo, esse poema reflexivo consegue oferecer a imagem dessa habitação em ruínas que é a poesia. Contudo, a se-gunda estrofe tem algo a nos dizer acerca daquela simbiose entre poesia e medo, ao sugerir, aí também, o medo como potência da linguagem, essa casa que deve ser reforçada.

Portanto, em Quintais, o binômio entre medo e lin-guagem responde tanto à reflexão sobre o desenvolvimento histórico da poesia em nosso tempo quanto às questões me-tafísicas relacionadas à imaginação poética. Em outra oca-sião, seria oportuno averiguar o modo como esse mesmo binômino funciona em outros textos do poeta que fazem menção a acontecimentos históricos relacionados ao terror, como as guerras e os atentados de nossa época. O medo, individual ou coletivo, uma experiência comum a todos nós, mas que não pode ser metrificada, que não é mensurável,

há de se revelar, também nesse caso, como uma força capaz de renovar a poesia e de incitar nossa capacidade de com-preender poeticamente o mundo. Referências Bibliográficas

ADORNO, T. W. Prismas. Trad. de Manuel Sacristán. Barcelona: Ediciones Ariel, 1962. BERARDINELLI, A. As fronteiras da poesia. In:______. Da poesia à prosa. Trad. de Maurício Santana Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 13-16.QUINTAIS, L. La imprecisa melancolía. Trad. de Jordi Virallonga. (Edição bilíngue português/espanhol). Barcelona: Editorial Lumen, 1995. ______. Verso antigo. Lisboa: Cotovia, 2001. ______. Angst. Lisboa: Cotovia, 2002.______. Duelo. Lisboa: Cotovia, 2004. ______. Canto onde. Lisboa: Cotovia, 2006. ______. Riscava a palavra dor no quadro negro. Lisboa: Cotovia, 2010. ______. O mundo já acabou, e agora o que fazer? (Entrevista concedida a Deyse dos Santos Moreira). Abril. Niterói, v. 4, n. 8, abr. 2012, p. 207-212.______. Depois da música. Lisboa: Tinta-da-China, 2013. ______. Arrancar penas a um canto de cisne. Porto: Assírio & Alvim, 2015. ______. Esse canto escuro. Luís Quintais. 04 nov. 2016. Disponível em: https://luisquintaisweb.wordpress.com/ 2016/11/04/esse-canto-escuro/ Acesso em: 20 jan. 2017.

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Mapa inútil:a busca do lugar da poesia em Luís Quintais

Rafael Martins da Costa

UniversidadeFederal de MinasGerais / Instituto Federal de Edu-cação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro

No texto “Il faut être absolument moderne”, que traz no título a citação de Rimbaud (RIMBAUD, A. 1979, p. 116.), Luís Quintais figura a modernidade a partir de uma dicotomia: “São mutuamente exclusivas as ordens da confissão e da poesia. Assim nos disseram os modernos” (QUINTAIS, 2011, p. 86. ). Tal como fi-gurada pelo poeta, a modernidade coloca em questão a possibilidade de partilha da experiência de mundo. Nar-rar(-se) se tornou totalmente problemático: a poesia não é mais conciliável com a confissão. Isso decorre, talvez, do vínculo de certa modernidade, com a qual Quintais dialoga, com o presente, em detrimento do passado. Algo próximo foi descrito por Hayden White, quando iden-tifica um “ódio ao historiador” no início do século XX:

Para um segmento considerável da comunidade artística, o historiador parece ser o portador de uma doença que foi ao mesmo tempo a força motriz e a nêmese da civilização no século XIX. É por isso que grande parte da ficção moderna gira em torno de tentar libertar o homem mo-derno (ocidental) da tirania da consciência histó-

Rui ChafesA Manhã V1992/1993

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rica. Ela nos diz que somente libertando a inteligência humana do senso histórico é que os homens estarão aptos a enfrentar o problema do presente (WHITE, 1994, p. 52).

Certamente, cabe uma objeção: o comentário de White refere-se à figuração que dada ficção faz da história e do historiador; o texto de Quintais, no entanto, refere-se à poesia. Não é o caso, aqui, de se teorizar sobre as diferenças que separam aquela des-ta. Embora seja necessário reconhecer fronteiras, talvez se pos-sa pensar que há, na oposição aludida pelo poeta, o eco dessas vozes que tentaram “libertar” a “inteligência humana do senso histórico”, por meio da exclusão da confissão. O que está em jogo é a dificuldade de apreensão do texto literário como algo que corresponda a um conjunto de fatos em estado natural, resgatáveis por meio da poesia. A despeito de tudo isso e do endosso à modernidade no título, o texto de Quintais é com-posto, em grande medida, por um discurso narrativo e memo-rialístico. O enunciado é preenchido pela cena da mãe subindo a Rua Castilho1, onde crescera o poeta, espaço a partir do qual se estabelece o arco que reconfigura, no presente, o passado. A imagem da mãe já envelhecida, com “passo medido pelo cansaço e pela fraqueza”, a percepção de que “o mundo parece ter crescido desmesuradamente”, a lembrança do “regresso das Áfricas” e da situação econômica marcada pelo “problema da habitação e [por] tudo isso que parecia desesperar os entea-1 Ressalte-se a possível referência a António Feliciano de Castilho, poeta romântico, que reagiu contra a incorporação de técnicas modernas na poesia portuguesa, na famosa “Questão do Bom Senso e Bom Gosto”.

dos do Império” são elementos memorialísticos que gravitam como que à espera de uma... confissão. Tudo se passa como se a visão da mãe subindo a rua convocasse o poeta a dizer algo sobre ela, a confessá-la na materialidade de um texto. Como se, por algum motivo, aquela cena não pudesse ficar só no nível da sua ocorrência. Nesse sentido, assinala-se a ironia do título, já que o procedimento do texto termina por ser o oposto daquilo a que se propõe o poeta logo no início: “Sejamos modernos, pois”. Por outro lado, a combinação dos discursos memorialís-tico e metalinguístico torna lícita a pergunta: o que fazem os modernos ali, na rua do poeta? Ou por outra: por que a visão da mãe – “parando uma, duas vezes, passando as mãos pelo rosto suado” – suscita a metalinguagem, explicitada na oposi-ção entre a poesia e a confissão?

Se, por um lado, a modernidade livra o poeta do “in-fortúnio da confissão”, por outro, ela lhe rouba “o idioma em que a luz de verão se faz de novo”. Dos modernos deriva a noção de que o homem não é senhor de sua palavra e de que, por isso, o poeta não pode mais retornar ao “princípio” para “descrever certeiramente” as coisas da vida. Aí estão as forças de tensão desse texto – e de grande parte da poética de Quintais: a autonomia da linguagem em relação ao enunciador e o sonho de uma comunicação linguística redentora.

Essas ambivalências presentes no texto de Quintais tornam-se ainda mais acentuadas quando se leva em consi-deração a ideia de que a voz poética está implicada em uma

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tarefa inglória: “o princípio que quero descrever certeiramente sem que lhe saiba o tema ou a palavra que o torna claro.”. O nó, portanto, é dado pela intuição de que, não obstante o dis-curso da modernidade (ou por causa dele), ainda se viva sob a regência de um mito, sob a crença – resistente a toda barbárie e a todo desmonte teórico – de que a palavra exata existe. Mas há, na poesia de Luís Quintais, uma falta de otimismo: ela já não pode ser alcançada.

Embora ele dialogue amiúde com essa modernidade, é possível notar que Quintais não é absolutamente moderno. Um dos questionamentos que o poeta leva a cabo em sua produ-ção é o da utilidade da poesia. Leia-se, nesse sentido, o poema “Inútil poesia”. Se se pode dizer que ele conclui algo, talvez seja a ideia de que é preciso renunciar definitivamente à imagem do bardo produtor de um universo próprio, da ontologia dos substantivos próprios. Semelhante a l’art engagé de que tanto buscou se afastar, uma certa modernidade caiu em um utilita-rismo com sinal trocado, como descreveu o poeta W. H. Au-den:

a heresia oposta é dotar a falta de preocupação com aspectos funcionais, como uma utilidade mágica toda própria, de tal forma que o poeta chegue a conside-rar-se um deus, um criador de um universo subjetivo e ex-nihilo – para esse poeta, o universo visível, material é um nada (AUDEN, 1993, p. 67-68).

Por isso, dizia mais acima da não modernidade de Quintais. Ele procura para sua poesia um lugar que não renun-

cie à alegoria em favor da metáfora. Rosa Maria Martelo, aliás, destaca esse movimento na novíssima poesia portuguesa, a qual perde o medo da alegoria, aceitando que a poesia fala pela des-continuidade e que, fugindo ou não da confissão, o resultado é o mesmo: há sempre uma dimensão de perda (MARTELO, 2009, p.14). No poeta que analiso neste trabalho, a metáfora permanece como um sonho que, plasmado na condição de uto-pia, não é mais acessível. Quando se reconhece a dificuldade de levar adiante a ideia de uma coincidência entre substância e representação, tão cara àqueles que valorizavam a metáfora, nesse momento, a indagação sobre o que pode a poesia torna-se seríssima. É bem verdade que “[...] haverá metáforas, outra vez, // o símile perfeito, a ironia acabada [...]” (QUINTAIS, 2010, p. 18). Mas, para Quintais, esse tempo ainda não chegou.

Com isso não quero, entretanto, afirmar que o poeta opte por um retorno à confissão. Penso, ao contrário, que ele, em certo sentido, recusa uma via atravessada por muitos, os quais desembocaram em uma poesia feita não tanto de palavras em sentido comum, como se cada poema criasse os nomes próprios que o povoam. Quintais percorre, por outro lado, outro cami-nho, como que ciente e desejoso da cilada. Mas o que seduz o poeta é antes de uma sereia do que de uma górgona. Não há paralisia: “Assim, a atmosfera, que é um escalar – como o “medo” ou Angst que quis convocar –, armadilha-me a vida, e eu respondo, devolvo o seu eco, transfiguro a poderosa – e invencível – cilada.” (QUINTAIS, 2011, p. 13).

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Se for assim, é possível pensar que o poeta aceita a pro-posição dos “modernos”, que alertam para a cilada da lingua-gem transparente. Mas, em outro viés, parece recusar uma das saídas propostas na modernidade. Sobretudo aquela que Hugo Friedrich toma como sendo a estrutura da lírica moderna, que “prescinde da humanidade no sentido tradicional, da ‘experiên-cia vivida’, do sentimento e, muitas vezes, até mesmo do eu pes-soal do artista” (FRIEDRICH, 1978, p. 17).

Para que não se pense que esse movimento de repensar o lugar da poesia se dá apenas nos textos em prosa vale a pena recupera o poema “Terra Sigillata”, publicado originalmente em Lamento (1999).

Terra SigillataPara Bruno Quintais

Por detrás de uma vitrina do MuseuRegional da Guarda,fragmentos de cerâmicadescrevem o secreto arco do passado.A cor rubra onde o anônimo nome foi escrito,e que ao longo de séculosa luz reuniu, nada me diz das mãos do ceramistaque até mim viajam.

O sonho da linguagem despertao misterioso espelho do que passa.A imaginação inicia o seu ofício.Saberei pronunciar a palavra certa?Sitiarei os vocábulos que das mãos se desprendem?

Regresso no primeiro comboio da tarde.A velocíssima paisagem

que sobre a janela se debruçavai fazendo assentar o pósobre a indecifrável página.Chegará a noite, estarei em Lisboa,onde o que vi será eloquência apenas,o chamamento que a linguagem fará escutar. (QUINTAIS, 2011, p. 43)

Nesse texto, coloca-se, novamente, a questão da confis-são. A própria organização do poema é feita de modo a encenar o debate estético que os versos propõem: como pensar a trans-posição da experiência vivida para a materialidade do texto? Trata-se de um texto descritivo-narrativo que, em cada estrofe, dá conta de um momento da narrativa. A primeira traz o poeta diante de cerâmicas romanas, a indagar-se sobre uma origem para as peças históricas. Origem que é escorregadia, inacessível, porque só pode ser presumida a partir de “fragmentos”: “A cor rubra onde o anônimo nome foi escrito, / e que ao longo de séculos / a luz reuniu, nada me diz das mãos do ceramista / que até mim viajam”. O passado é, aqui, ruína e não há mais a pos-sibilidade de reconfigurá-lo tal qual, nem tampouco fazer dele o objeto ontológico bem acabado, o heterocosmo que funciona autonomamente. É isso que nos coloca a segunda estrofe, quan-do se atribui à imaginação o ofício de encadear os fragmentos e completar as ruínas. Mas isso é “um sonho da linguagem” que não mais apazigua. Ao contrário, permanecem as inquietações: “Saberei pronunciar a palavra certa? / Sitiarei os vocábulos que das mãos se desprendem?”. O poema traz, em sua estrofe fi-nal, uma cena de escrita, em que a experiência vivida no museu

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é “assentada” “sobre a indecifrável página”. Mas tudo se passa como se o vivido não fosse mais do que um “pó” daquilo que por sua vez já fora somente “fragmentos” que viajaram até o os olhos do poeta. Ressalte-se, ainda, essa imagem da viagem e daquilo que, “ao longo de séculos” foi acumulando perdas, de tal modo que, escrito o poema, “o que vi será eloquência apenas, / o chamamento que a linguagem fará escutar”.

A despeito de não ser mais uma prosa, como o primeiro texto analisado, “Terra Sigillata” é configurado a partir de uma discursividade que não abre mão da narratividade. Estabelece-se, por conseguinte, uma espécie de continuidade entre a prosa e a poesia, ambas trabalhando em favor de uma autobiografia que é novamente convocada para o texto literário, embora não se trate mais de uma confissão. No caso de “Il faut être abso-lument moderne”, os parênteses correspondem ao recurso que projeta a imagem de um narrador que retoma anaforicamente outros elementos do texto a fim de explicá-los, especificá-los, relacioná-los por meio da livre associação a outros elementos convocados pela memória. É possível notar até mesmo o apelo à verossimilhança, como quando se explica o motivo de a mãe estar suada – “afinal estamos no pino do verão e a rua foi sempre soalheira, ou pelo menos soalheira deste lado em que a minha mãe sobe”. Em “Terra Sigillata”, a divisão das estrofes, a quebra do verso em consonância com a sintaxe, a progressão textual por meio das referências ao “primeiro comboio da tarde” e à chega-da a Lisboa durante a noite também acentuam esse recurso à

narração. Pode-se ver nessa proximidade entre a prosa e poesia

um peristaltismo da poesia portuguesa, descrito por João Bar-rento ainda na década de 1980, a qual (re)estabelece um pa-radigma da narratividade nos textos poéticos: “as incursões da prosa pela obra poética sinalizam um hibridismo que, não afec-tando o carácter lírico da linguagem, constituem uma marca de ‘perturbação’ do purismo mais tradicional na organização do poema” (BARRENTO, 1988, p. 44). No caso de Quintais, esse apelo à prosa talvez tenha que ver com fato de os modernos terem ido parar na Rua Castilho.

A narratividade confere aos poemas (em prosa ou em verso), por vezes, uma dicção explanatória, em que se pode es-preitar um discurso reflexivo que tenta combinar à estética as indagações sobre os sentidos da passagem do tempo. É o que ocorre nos dois textos que analisei mais acima, ambos voltados para o tempo. Entretanto – e registre-se, aqui, uma diferença em relação a Helder Moura Pereira, que era o ponto de partida para João Barrento em seu ensaio –, essa narratividade talvez não possa mais significar um retorno à narrativa, tal como Walter Benjamin a descrevera. Ou seja, não se trata mais de convocar a narrativa em oposição à informação – aquela oriunda da sabe-doria do artesão, da experiência; esta mãe do romance, gênero em que “os fatos já nos chegam impregnados de explicações”

(BENJAMIN, W. 2014, p. 219). Portanto, narratividade não significa mais experiência. A explanação na poesia de Quintais

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talvez seja menos o indício de uma sabedoria do que uma “cilada” à qual se atira o poeta. Recuperem-se as figurações do bardo que são feitas por subtração, como em “Terra Sigillata”: “Saberei pronunciar a palavra certa?/ Sitiarei os vocábulos que das mãos se desprendem?”. Ou como em “Il faut être absolument moderne”: “o princípio que quero descrever certeiramente sem que lhe saiba o tema ou a palavra que o torna claro.”

Por isso, não se pode pensar no retorno à confissão, porque não se tem mais a certeza da partilha de uma experiên-cia. Nada nos é dito sobre o passado, o “anônimo nome” nada nos diz “das mãos do ceramista”. É talvez um momento difícil para se fazer poesia, e isso é encenado na composição do livro Riscava a palavra dor no quadro negro, que Quintais publicou em 2010. Composto por trinta e três poemas formados pratica-mente por dísticos, forma que muito se presta à máxima, o livro é finalizado com um texto em prosa, à guisa de um posfácio escrito pelo autor. Como se a poesia já não fosse mais autô-noma, reclamasse uma explicação, que, aliás, pouco lhe servirá, uma vez que já não há mais uma origem recuperável: “Gostaria de acreditar que os poemas não surgem dessa seta claramente transposta, e que, impregnados – densos – de sentido, acabam afinal por não ter sentido.” (QUINTAIS, 2011, p. 14).

Em outros poemas de Quintas, essa discursividade é expressa por versos de abertura que funcionam como uma espécie de tese, a partir da qual se desdobra o restante do poema, como em “As proposições poéticas” (QUINTAIS, 2011, p. 42):

As proposições poéticas,mensuráveis como a distância que separa as margens [de um rio,

são primeiro circunstanciais,depois arrogam-se da experiência de todos.

Um verão abstracto cola-se ao vocabuláriodo inverno,o inverno presente.Uma luz cinzenta torna-se azul:vai, passo a passo,ao encontro do estio.

E o estio é a mente, a mente que se separa do tempo,mede o rio com rigore anota a sede que se alojara no vento

que sopra e antes não sopravaque despe as árvores e as lança para a memória que as vestemagnificamente.

Ó árvore cheia de verde folhase do azul da imaginação,torna-te agora poema– és agora verão.

Já no título, esse poema traz um substantivo que designa a sua engenharia: um conjunto de asserções. O poema, atualizável na leitura, é figurado como aquilo que escapa à sua origem, porque sendo feito de proposições “circunstanciais” viaja no tempo, para se tornar “experiên-cia de todos”. Daí a importância do gesto de leitura, para que a árvore-poema dê seus frutos, vindo de sua “memória

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excessiva”, por ser inesgotável, como descreve Silvina Ro-drigues Lopes:

[...] Mas o poema testemunha a verdade que ele é, não uma verdade que ele relata. [...] O que se “narra” do acontecimento não é nada que tenha acontecido em definitivo num passado, algo encerrado no passado, mas a potência do acontecer própria do acontecimento – aquilo que nele se actualiza e nele permanece inactual depende da faculdade de dar sentido às sensações, isto é, de construir o recordável delas (LOPES, 2012, p. 48).

Por isso, a frequência com que se menciona a “men-te”, é ela quem, por meio da leitura, “[...] se separa do tempo, / mede o rio com rigor / e anota a sede que se alojara / no vento”. Ao poeta, resta não mais a máscara de criador, de ori-gem e baluarte do sentido. Ao deixar a paisagem da memória se assentar “sobre a indecifrável página”, ele nos oferece não mais que um “esboço”: “O esboço na página/ profunda do que não escreverei/ é aquilo a que chamam de poema, / um mapa da cidade sem mapa” (QUINTAIS, 2010, p. 15).

“Mapa” pouco útil, portanto. Não servindo para de-signar a rota correta, talvez termine por conduzir-nos a uma cilada necessária. Porque está sempre a nos dizer das ruínas que nunca voltarão a ser totalidade (chegaram um dia a sê-la?). Ao buscar uma saída para o impasse advindo da di-cotomia entre poesia e confissão, Quintais parece sinalizar a importância desse gesto que é a própria busca. Contra todo cinismo contemporâneo, tão indisposto à crítica e tão propí-cio à autoconservação, o poeta lança-se. Lança-se na cilada

à procura da “potência do acontecer” que talvez um dia nos salve. Mas já não há em seu gesto o otimismo daqueles que vaidosamente se sacrificam para a glória do que virá. Ofe-recendo “a um leitor simplesmente o vestígio”, busca, quem sabe, arrancar-lhe “uma experiência que não pode ser metri-ficada, que não é mensurável”.

Não quis, neste texto, negar a possibilidade de metá-foras na poesia de Quintais, nem tampouco filiá-lo exclusiva-mente à alegoria. Sendo assim, também não me parece justo dizer que sua poesia esteja confinado ao registro confessional. Contudo, não me parece correto simplesmente cortar o nó, dizer que o poeta cria um heterocosmo onde há “o idioma em que a luz de verão se faz de novo”. Parece-me, por outro lado, que, ao reconhecer o sentido sempre excessivo da poe-sia, o poeta continua a buscar a palavra como potência. Em um momento tão indisposto à esperança, Quintais acena-nos com a ideia de que as coisas simplesmente podem ser de ou-tra maneira.

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Referências Bibliográficas

AUDEN, W. H. A mão do artista. São Paulo: Siciliano, 1993.BARRENTO, J Palimpsestos do tempo. O paradigma da narratividade na poesia dos anos 80. Revista Colóquio/Le-tras. Ensaio, n.º 106, Nov. 1988, p. 39-46.BENJAMIN, W. O narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e polí-tica. São Paulo: Editora Brasiliense, 2014.FRIEDRICH, H. Estrutura da lírica moderna – da metade do século XIX a meados do século XX. São Paulo: Duas Cidades, 1978.LOPES, S. R. A poesia memória excessiva. In: ______. Literatura, defesa do atrito. Belo Horizonte: Chão da Feira Edições, 2012. MARTELO, R. M. “O olhar alegorista na poesia por-tuguesa contemporânea”. In: Portuguese Cultural Studies. Vol. 2. Universiteit Utrecht. Utrecht: 2009. Disponível em: http://www2.let.uu.nl/solis/psc/p/PVOLUME-TWOPAPERS/MARTELO-P2.pdf. Acesso em 06 de julho de 2015.QUINTAIS, L. Riscava a palavra dor no quadro negro. Lis-boa: Cotovia, 2010. QUINTAIS, L. Poesia revisitada. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2011.RIMBAUD, A. Une saison en enfer. In: Œuvres completes. Paris: Gallimard, 1979.WHITE, H. Trópicos do discurso. São Paulo: Edusp, 1994.

Rui ChafesQueria voltar ao teu corpo

2014

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Este texto tem dois objetivos. Primeiro, fazer uma análise da estrutura organizacional da obra. Se-gundo, listar as principais e mais frequentes imagens que aparecem no livro como um todo e em cada um dos cinco conjuntos separadamente. Algumas (pou-cas) tentativas de estabelecer relações de significa-do serão realizadas, mas, neste trabalho, não existe a pretensão de se fazer uma leitura interpretativa dos poemas, nem de um recorte temático deles. A Imprecisa Melancolia é a primeira obra poética de Luís Quintais, lançada em 1995. O livro é composto por 39 poemas agrupados em cinco conjuntos, sendo que dois desses 39 poemas (o primeiro e o último) estão isolados dos demais. O primeiro conjunto de poemas parece abor-dar principalmente quatro sentidos (visão, audição, olfato e tato), com ênfase na visão e na audição. Eles surgem de forma isolada ou relacionada, sendo que a relação, na maioria das vezes, não é sinestésica. Há, no primeiro poema deste conjunto, ao final, a ima-

As imagens de A imprecisa melancolia, de Luís Quintais

Tiago Cabral Vieira

UniversidadeFederal de MinasGerais

gem de uma “árvore cheia do verde das folhas e do azul da imaginação” (note-se as cores). O poema seguinte é o relato de uma cena (aspecto visual) em que essa árvore destaca-se como uma figura central. No poema seguinte, “O voo do pardal”, o eu-lírico diz observar a cena do voo: “assisti ao voo do pardal saltando feliz”. Em “O andori-nhão-preto”, há menções ao “calor na planície” (tato) e a “uma melodiosa morada” (audição). Em “Arte privada”, aparece a “música”, uma “gravura”, “o cheiro das inusitadas chuvas”, “o rumor da imagem” e o “ocre escuro das areias”. Nos dois próximos poemas, há uma forte carga visual, seja na descrição da cena em “Postal ilustrado” (note-se o tí-tulo), seja nas referências às artes plásticas em “A simetria de uma manhã de março”. Em “Ária antiga”, a referência à música já aprece no título. Em “A dificuldade da beleza” existe “Um rumor de insectos roendo os interstícios do silêncio” e o eu-lírico, em referência a uma “noite”, afir-ma: “Toco-a com o pensamento”. Finalmente, em “Gesto alegre da distracção”, último poema do primeiro grupo, aparecem o “som de uma asa”, uma “mão fechada” um “ar-co-íris”, e a “melodiosa água”. Já o segundo conjunto de poemas, a começar pela epígrafe – “Journeys in sunlight toward the dark”1 – tem como fio condutor uma travessia, uma caminhada, uma passagem, uma jornada através de um espaço urbano.

1 “Jornadas na luz em direção à escuridão”, em tradução livre.

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Em todos os poemas desse conjunto aparecem imagens e/ou referências que remetem a uma cidade ou ambiente urbano. No último poema desse conjunto, “Passagem”, há a imagem de uma “cidade-rio” e a figura do personagem da mitologia grega, Caronte. Na terceira parte, o eu lírico refere-se a uma segunda pessoa, um tu. Isso não é algo exclusivo desse grupo de poe-mas, mas vale notar, no entanto, que isso acontece de forma insistente nesse conjunto. No quarto agrupamento, também existe um eixo comum a todos os poemas: são várias as referências à cul-tura da Grécia Antiga. Máscaras, atores, simulacro (que, se observadas dentro de um mesmo contexto, levam o leitor a pensar no teatro), mitos (que obviamente remetem à mito-logia) diáspora, arquétipo e deuses são termos que aparecem nos poemas deste grupo. Há um poema em que dois perso-nagens afirmam: “entre dois rios sucumbimos ao esforço. / Abraçámos os mortos”. Os “dois rios” podem ser entendidos como integrantes do conjunto de rios do Hades. Existe ain-da um menção indireta à Odisseia, presente nos seguintes versos, do poema de número 6 desta parte: “uma narrativa de ruidosas travessias, / de guerreiros medindo, para obscuros fins, / a devastadora força do vento, / em busca de refúgio”. O quinto e último conjunto é composto por três poemas que tratam cada um de uma faceta da linguagem (a saber, a linguagem intimista, a linguagem poética e a lin-

guagem cotidiana ou prosaica respectivamente). “História de uma despedia” fala sobre um “diário” que “escreve-se, con-tinua a escrever-se”, de uma “língua decididamente estran-geira” e de uma “nativa língua”. “Em Ischia, no tardio maio” possui uma referência direta ao poeta modernista inglês Wystan Hugh Auden, dono de uma “disciplina de escrever poemas todas as manhãs / porque o que conta afinal é o trabalho”. E, por último, “Arquivo”, ao contrário do poema anterior, fala sobre “anódinas mensagens, avisos, sinalefas, / verdades que de tão prosaicas já não detinham sequer o pro-saísmo da vida”. Agora que possuímos um panorama de como se or-ganiza cada um dos cinco conjuntos do livro, comecemos, então a análise das imagens que permeiam o conjunto de poemas da obra como um todo. A principal imagem do livro é a oposição caracteri-zada pelo binômio escuridão/claridade. Os termos utilizados para remeter a essas imagens são variados – como manhã e noite, luminosidade e treva, verão e inverno –, mas as duas palavras mais frequentes são luz e sombra. Enquanto as ima-gens de escuridão em claridade aparecem de alguma forma em 34 dos 39 (97%, portanto) poemas do livro, o binômio luz/sombra aparece (de forma isolada ou simultânea) em 28 (72% dos poemas). Numa tentativa de relacionar o título do livro ao seu conteúdo, poder-se-ia dizer que a imprecisão ou inexati-

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dão da melancolia é caracterizada por uma constante al-ternância de condição (entre melancolia e alegria) – em “O voo do pardal”, por exemplo, o eu-lírico mostra expli-citamente uma condição de alegria: “A emoção com que assisti ao voo / do pardal saltando feliz / na opulência da luz, / de ramo em ramo / roubando à indiferença / a ale-gria do dia.”; já em “Calçada de São Francisco”, aparece a condição oposta: “Vou tentando a total ausência de luz / em que minha alma se encontra / há muito mergulhada. / Vou tentando a luz que me rodeia com a treva / que sepultaram em mim”. Existe também a presença de uma ambivalência do caráter da claridade no que concerne a uma possível positividade ou negatividade. Muitas vezes, a luz, que, tradicionalmente, carrega uma conotação posi-tiva, aparece com um caráter negativo, como, por exemplo, a aurora que cega de “A noite, as sombras”, os riscos que “iluminam [...] a dor diluía, a decepção” de “A visitação da luz” e a “ilusória luz” da razão, de “Os mitos”. Além da oposição central entre escuridão e cla-ridade, algumas outras imagens são bastante recorrentes e permeiam o conjunto de poemas do livro, e não apenas dos grupos separadamente. As imagens são: o binômio so-noridade/silêncio; figuras de aves; o binômio verão/inver-no; a figura de um rio; a imagem de cinzas; e a memória da infância. O que se pretende fazer é observar como tais imagens se distribuem ao longo da obra e também tentar,

em alguns momentos, localizar algum significado que seja recorrente a algumas delas. O segundo binômio de imagens mais frequente no livro é o de sonoridade/silêncio, presente em 17 dos poe-mas do livro. O termo sonoridade é utilizado, aqui, para englobar variadas formas de sonoridade (musicalidade, voz, ruído) que aparecem de forma isolada ou em contra-posição ao silêncio, este que também surge isoladamente. Apesar de menos óbvia, pode ser estabelecida uma relação entre este binômio e o principal. A sonoridade poderia ser associada à claridade (num sentido de agitação, presença) e o silêncio à escuridão (quietude, ausência). Há a ideia de sonoridade e/ou silêncio nos poemas: “As sombras não pertencem à tarde”; “O andorinhão-preto”; “Arte priva-da”; “Ária antiga”; “Da dificuldade da beleza”; “No gesto alegre da distracção”; “Visões do mundo”; “Dos lugares a este lugar”; “Realidade”; “É nas ínfimas palavras por onde fala a sombra”; “Chamei-te. O mar estacou o seu rumor”; “Habitara o seu cubículo de luzes”; “Deixara como único testemunho”; “Com o passar do tempo”; “História de uma despedida” e “Em Ischia, no tardio maio”. O primeiro poe-ma do livro, “As sombras não pertencem à tarde”, contém os versos: “O silêncio que transpõe o escuro / não per-tence ao silêncio. / O som é pura forma.” A sonoridade, de maneira isolada, seja como musicalidade, voz ou ruído, está em: “O andorinhão-preto”; “Ária antiga”; “No gesto

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alegre da distracção”; “Chamei-te. O mar estacou o seu rumor”; “Deixara como único testemunho”; “Com o pas-sar do tempo”; “História de uma despedida” e “Em Ischia, no tardio maio”. Vale notar que nesses dois últimos, a so-noridade também é representada pela própria linguagem, que é o viés temático dos dois poemas. Há um contraste entre sonoridade e silêncio em “Arte privada”, “Realidade” e “É nas ínfimas palavras por onde fala a sombra”. Em “Da dificuldade da beleza”, “Visões do mundo” e “Realidade”, está presente uma mistura (não necessariamente sinesté-sica) de sentidos, dos quais um deles é a audição. A figura do silêncio, isoladamente, está em: “Da dificuldade da be-leza”; “Dos lugares a este lugar” e “Habitara o seu cubículo de luzes”. Apesar de o eu lírico afirmar em “Arte privada” que “há sempre uma ave, ou a sombra dela, nos meus poemas”, imagens de aves ou pássaros aparecem em somente nove dos 39 poemas. São eles: “O voo do pardal”; “O andori-nhão-preto”; “Arte privada”; “No gesto alegre da distrac-ção”; “Manhã de inverno”; “Calçada de São Francisco”; “A noite, as sombras”; “A visitação da luz” e “História de uma despedida”. No primeiro destes poemas, o eu lírico se compara a um pardal: “este pardal saltando entre copas altas que sou eu”. “O andorinhão-preto” fala sobre a pas-sagem desse pássaro pelas “ruas de Lisboa”. Em “No gesto alegre da distracção”, não aparece a imagem óbvia de uma

ave, mas existe alguma referência no verso “Como se o som de uma asa quebrasse a razão”. Em “Manhã de inverno”, há uma cotovia: “E no meu pensamento voa a cotovia”. Em “Calçada de São Francisco”, “Pássaros em migração vão toldando as suas águas” [de um rio]. Em “A noite, as sombras” e “A visitação da luz” as aves surgem como figu-ras que trazem a luz: “As aves descem então, descrevendo / o lúmen dos presságios”; “como se as primeiras aves o trouxessem / preso a ténues fios, / riscos que iluminam o voo”. Finalmente, em “História de uma despedida”, a imagem das aves parece ser uma personificação do tempo: “Mas as aves levantam-se da terra, / sobrevoam planícies, e o homem continua sentado, / morto na vetusta idade da explicação intransigente”. O binômio verão/inverno, que também aparece em nove poemas, possui uma relação direta com o binô-mio principal do livro em razão da associação entre os valores semânticos de cada um: verão associando-se com a luz (calor, forte luminosidade) e inverno remetendo à escuridão (frio, fraca luminosidade). Esse binômio apare-ce nos seguintes poemas: “As proposições poéticas”; “O andorinhão-preto”; “Arte privada”; “Da dificuldade da beleza”; “A imprecisa melancolia”; “Manhã de inverno”; “No cortejo das sombras”; “História de uma despedida” e “Em Ischia, no tardio maio”. Em “As proposições poéti-cas” e “Arte privada”, o verão está diretamente relaciona-

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do ao processo de criação poética: “Ó árvore [...] torna-se agora poema / és agora verão”; “Por exemplo, esse poema começado numa manhã de Junho / e nunca terminado: um princípio de verão”. Em “O andorinhão-preto”, essa ave aparece “deixando para trás o fim do verão”. Em “Da dificuldade da beleza”, o eu lírico relata uma cena de “um prelúdio de uma noite de verão”. Em “A imprecisa melan-colia”, o verão aparece com sua característica tradicional, pois, simplesmente, “fazia / muito calor”. Em “Manhã de inverno”, é enfatizada a passagem do inverno para o verão: “O verão entrou pelo inverno adentro”. Em “No cortejo das sombras” e “História de uma despedia”, em vez do ve-rão ou de um contraste com a imagem deste, há apenas a figura do inverno. Finalmente, em “Em Ischia, no tardio maio”, o verão surge como uma condição, um estado de espírito: “a magia dos verões acesos nos corpos”. Há a imagem de um rio também em nove poemas. São eles: “As proposições poéticas”; “O voo do pardal”; “Da dificuldade da beleza”; “Calçada de São Francisco”; “Dos lugares este lugar”; “Realidade”; “Passagem”; “Habitara o seu cubículo de luzes” e “Em Ischia, no tardio maio”. Em “As proposições poéticas” e “Da dificuldade da beleza”, o rio está associado, assim como o verão, ao processo de cria-ção poética: “As proposições poéticas, mensuráveis como a distância que separa as margens de um rio”; “E distan-te no tempo, um outro o salva: / um poeta nomeia seus

rios / numa frente de combate.” Em “O voo do pardal”, o rio parece ser uma espécie de lugar-entidade: “há sempre um rio entre as árvores, / parece dizer o pardal, / um rio que te recusa / as convicções da alma”. Em “Calçada de São Francisco” e “Realidade”, há a figura do próprio Tejo: “Tejo, disseste, e a recordação das sílabas teve a força de um sacramento”; “chegada de famílias-à-beira-Tejo”. Em “Dos lugares este lugar”, a figura do rio aparece “rasgando a pertença do céu ao azul / em nuvens”. Em “Passagem” e “Habitara o seu cubículo de luzes” a imagem do rio está diretamente relacionada à tradição da mitologia grega, em que a morte muitas vezes é vista como uma passagem re-presentada pela travessia de um rio: “Na cidade-rio, no seu curso, / Caronte chora por nós”; “e entre dois rios sucum-bimos ao esforço. / Abraçamos os mortos”. “Em Ischia, no tardio maio” não possui exatamente a figura de um rio, mas existe, no poema, a ideia de travessia sobre a água, seja de forma literal – “Tinha vindo de ferry” – ou figurada – “sonhara que caminhara sobre as águas”. A última das imagens mais frequentes de A Im-precisa Melancolia é a da cinza. Ela está presente em seis poemas: “Da dificuldade da beleza”; “No gesto alegre da distracção”; “A imprecisa melancolia”; “Calçada de São Francisco”; “Não é só de ti que sinto a ausência” e “Em Is-chia, no tardio maio”. Em “Da dificuldade da beleza”, o eu-lírico diz que sua “adversidade é uma paisagem / povoada

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de medos e de cinzas”. Em “No gesto alegre da distracção”, “não há idioma que o [arco-íris] diga em segundas núp-cias de fogo e cinza”. Em “A imprecisa melancolia” a cinza simboliza a expressão que dá o título tanto ao livro quanto ao poema: “Assinalar uma cinza, / a imprecisa melancolia”. Em “Calçada de São Francisco” e “Não é só de ti que sinto ausência”, a cinza aparece com uma espécie de resquício de discurso ou linguagem: “Serve-me o espaço ao cimo da Calçada de São Francisco, o modo como te comoves ao criar a distância e a cinza das palavras”; “Das coisas ditas sobra apenas a ambiguidade / do que ficou dito, / onde não há assomo de coragem, / apenas uma sombra / parada na noite, / na cinza da linguagem.” Já em “Em Ischia, no tardio maio”, a cinza aparece como resquício da música: “Em Via Santa Lucia depositarei as cinzas da sua música”. A memória da infância irrompe em cinco poe-mas: “Azagaia, árvore, sombra”; “Arte privada”; “A noite, as sombras”; “As máscaras que caem” e “História de uma despedida”. Em termos gerais, o primeiro desses poemas é o relato de uma cena em que o eu-lírico, num momento de sua infância, arremessa, no quintal de sua casa, uma azagaia (lança) que trespassava a “sombra da árvore que se erguia”. Em “Arte privada”, é estabelecida uma relação entre uma tonalidade de cor (amarelo acastanhado) e a memória da infância: “O ocre escuro das areias espalha-do na mesa é um símbolo da infância”. Em “A noite, as

sombras”, a infância aparece como uma flor porque abre suas pétalas em falésias: “Acordo a meio da noite, e sei que teus olhos devoram as sombras, que a alegria não subsiste à ruína; oculta falésias por onde a infância abre as suas pétalas”. Finalmente, em “História de uma des-pedida”, a infância aparece de uma maneira mais tradi-cional uma vez que ela “tem destas elevadas explicações, adoçadas a gosto para que não se compreenda”. Por fim, vale fazer uma última ressalva. Outras imagens presentes no livro não foram abordadas por uma série de razões: não são tão frequentes quanto às que foram mencionadas; não possuem uma relação tão óbvia com o binômio principal ou a temática sugerida pelo título; são representadas por palavras muito vagas, com significação pouco específica; e o texto deste artigo ficaria muito longo se todas fossem trabalhadas. Podem ser representadas simplesmente pelas próprias palavras, por uma metonímia (no caso da flor, como “pétalas”) ou por uma ação verbal que remeta ao substantivo (no caso do sonho, como o ato de sonhar). Segue uma lista des-sas imagens, que aparecem cada uma, em média, em três poemas (com exceção da última): realidade; flor; memó-ria; rosto; sonho; binômio verde/azul; distância; vento e a própria linguagem (referenciada pelo processo de criação poética, pelo ato de falar ou pelos termos “idioma”, “voz”, “palavras”, “língua” e “frase”).

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A Imprecisa Melancolia possui uma estrutura orga-nizacional desconexa, pelo menos num primeiro momen-to, e um conjunto de temáticas e imagens bastante varia-dos. Essa abrangência de estilo torna difícil a realização de uma leitura interpretativa que leve em conta o conjunto de poemas do livro como um todo e a relação deles com a temática sugerida pelo título. Afora alguns poucos poemas em que desponta a figura de um melancólico de forma explícita e o binômio central de imagens do livro (ao qual algumas das outras imagens podem ser relacionadas) – de onde se poderia estabelecer uma relação entre escuridão e uma tristeza profunda, ou até mesmo a acídia –, há pouca melancolia no primeiro livro de Quintais.

Referências Bibliográficas

QUINTAIS, L. La Imprecisa Melancolía: edición bilíngue. s/l: Editora Lumen, 1995.

Rui ChafesMurmúrio V

2015

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Antologia de poemasde Luís Quintais

a imprecisa melancolia (1995)

DA DIFICULDADE DA BELEZA

A beleza é difícil.

Queria ensaiar uma magia menorcom a consciência de que cada homem tem a sua porção de

[paraísomesmo nos lugares mais adversos.

Mas a minha adversidade é uma paisagempovoada de medos e de cinzas.Vejo morte e sofrimento lá longee o que me comove está mais perto e é inapreensível.

Penso naquele pátio medieval de uma aldeia da Beira Interioronde ontem assisti ao prelúdio de uma noite de Verão.O poço negro dos céus. A hera baloiçando ao vento. O cortejo

[das estrelas.Um rumor de insectos roendo os interstícios do silêncio.

Poderia enumerar todas as coisas que então preencheram os meus[sentidos

e reduzir essa expressão de coisas que desfilam, recebem nomes,a um falhanço sem limites.

Retomo a pedra fria em que estive sentado naquela noite.Toco-a com o pensamento até à falaz eloquência da realidade.

Falhar é seguir, novamente, a estrada da atrocidade quotidiana.

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Terra SigillataPara o Bruno

Por detrás de uma vitrina do Museuregional da Guarda,fragmentos de cerâmicadescrevem o secreto arco do passado.A cor rubra onde o anónimo nome foi escrito,e que ao longo de séculosa luz reuniu,nada me diz das mãos do ceramistaque até mim viajam.

O sonho da linguagem despertao misterioso espelho do que passa.A imaginação inicia o seu ofício.Saberei pronunciar a palavra certa?Sitiarei os vocábulos que das mãosse desprendem?

Regresso no primeiro comboio da tarde.A velocíssima paisagemque sobre a janela se debruçavai fazendo assentar o pósobre a indecifrável página.Chegará a noite, estarei em Lisboa,onde o que vi será eloquência apenas,o chamamento que a linguagem fará escutar.

lamento (1999)Penso em Ungaretti nas trincheirasrecordando os seus rios: o Isonzo, o Nilo, etc.Há uma fuga nesta indiferença.São nobres os exemplose exemplar a responsabilidade do alheamento.

Vejo um campo devastado dentro de mim,a torre da Canção erguendo-se sobre as ruínas da tranquilidadeque me cerca.

A beleza é difícil.

Procuro a noite e a solidão num pátio medieval.Procuro na minha memória essa noite e essa solidão.É preciso salvar o momento, penso.E distante no tempo, um outro o salva:um poeta nomeia os seus riosnuma frente de combate.A morte envolve-o. Porém, ele assume a ventura da beleza.Assina o seu rosto junto ao sofrimento.

Com o início desse conhecimentoescrevo: «A beleza é difícil. Pode derrubar-nos, entretanto.»

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Uma bicicleta junto ao mar

Nesta esplanada sentar-me-ia com o O’Neill. Teríamos tema de conversa. A bicicleta. Mas prefiro-te a ti, e a este jogo de palavras em que nos embrenhamos por invenção tua. A contraluz uma bicicleta junto ao mar. A contraluz uma bicicleta é uma das simbólicas sugestões do infinito, como tal da procura de que somos o testemunho. A mais elaborada das abstracções em que tudo o que particulariza esta bicicleta cessa, dilui-se na misteriosíssima luz de um final de tarde. É pura forma, e facilmente pode convocar o pensamento, a razão pela qual os objectos se suspendem no tempo, a desmedida razão porque existem. Este artefacto, a bicicleta a contraluz junto ao mar, lança-nos no indefinível da subtil operação de exumar o tempo, os seus voláteis princípios, o regresso à terra. E assim, o que traduz esta bicicleta, esta singularidade de um fim de tarde, este esquema de sombras equilibrado num poste junto ao mar? Traduz a comovedora articulação entre fuga e permanência, ausência móvel e presença parada, de que ela é a mágica, improvável concretização.

verso antigo (2001)

Apócrifo (atribuído a Jorge de Sena)

Convoco o vício de alma que tenho:desgosto-me de gentese o meu coração é uma pedra alucinada

capaz de ferir o horizonteem que outros se perfilam.Ácido, devoro o coração pedra.

Atrozmente perseguindo inimigosnas franjas do mundo,creio no santo inferno da injusta medida,

a mais tenaz, a menos passageira.

angst (2002)

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Blues para um gato azul

O gato que habita a linguagem.O gato líquido do poetaque destrói a denotativa modernidade

dos seus versos por dentro,e faz repor, no epicentro da palavra,a fuga romântica, a enumeração,

a ilegível onomatopeia, eia, ooooah!O gato que habita o senso comumda linguagem. O gato que se soltou

de palavras anónimas,e eu com as janelas abertas a escutar,sem cuidar ter escutado,

o bruaaaaaa das ruas. O gato-arquétipo,ilusão lentíssima, que faz desfilarhá séculos o longo nome da literatura.

O gato do sem-regresso.Assim alguém o tenha descrito, a esse gatoque vem da origem

plangente da palavra, e depois por Hermesmetamorfoseado noutro gato,e depois entregue, e sempre

duelo (2004)até ao fim — haverá um fim para o fimdo gato? —, aí onde alguém perguntarácomo se descreve o gato, e sob o arbítrio

de uma assembleia de mulheres, crianças, velhos (preparados para o naufrágio),cada um com o seu gato de estimação

na cabeça, se desenhará o retrato do gatoentretanto morto, ou, o mesmo é dizer,caminhando ao lado de um deus que passa,

hoje, anónimo, sem peso, sem aura felinaque lhe dê terra e lhe dê tempo.Quem merece o gato, ainda?

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Ver o norte

Represento o Inverno que se abre à visão. Aceito a dupla cilada da luz. Ver o ver. Assim pensei a infinita progressão das imagens, aquilo a que alguns chamam de o filme no cérebro. Escrevo, delimito a circunstância e o seu perímetro através de um esforço na claridade, sabendo porém que é opaco o pensamento nas transparências invocadas. Estou sob o sortilégio da luz, da cegueira mais extrema. Repre-sento o gelo, as admoestações do vento, a imaginada música do crepúsculo que se avizinha. Certos vestígios de animais — animais de pequeno porte, irreconhecíveis no meu falso adestramento do mundo — progridem na neve, e vão ao encontro do escuro. Caminho na luz, faço suspender o ilegível que me vencerá. Persigo fragmentos.

canto onde (2006)

Depois da escrita

Eu convoco o lugar onde ninguém está, onde o olhar é raro, e o ruídoé a plana e fugaz vontade do pensamento.

Será esta a vertigem, o abandonado court de ténis após as chuvas de uma tarde de Maio,a linguagem mais branda de uma poça de água na imperfeita sinté- tica superfície.

Eu começo depois da escrita, toda a escrita começa depois da escrita.

mais espesso que a água (2008)

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XVI

Tudo são máquinas, a luciferina intençãode cortar, pela janela, o desenho interrompido,

ou então, tudo são máquinas ainda, quandoa boca se desenha presa às palavras

enunciadas desde o começo da biografia(que biografia, se só haverá farrapos?):

fantasmas enunciando-se à pressae que a cidade reúne nos muros que a não cingem já.

Tudo são máquinas prestes a incendiar mapas,a eliminar traços, a apagar vestígios.

«Começará o mundo depois do mundo acabado»,escreveste no caderno.

É de lixo lírico, a paisagem, humano resíduo.As máquinas que escrevem, escrevem na pele.

Tudo são máquinas. O mundo irá começardentro de momentos, prepara-te.

riscava a palavra dor no quadro negro (2010)

depois da música (2013)

BOB DYLAN DIRIGE-SEAOS SEUS CONTEMPORÂNEOS

Uma imagem perseguia-me em tempos já remotos. Se meperguntassem o que fazia, onde estava, o que pretendia, di-zia sempre, não estarei lá, aí, nesse lugar onde me querem abandonar, como se abandona um cão velho numa estrada perdida. Ou então dizia, não, não me chamem poeta, não é uma atribuição que me pertença, nunca poderia sê-lo.Agora que já passou muito tempo desde a minha última fuga de Hibbing, prefiro que me recordem como o expedi-cionário musical que sempre fui. Ou tão-só como o rapaz do trapézio, o que é sempre bonito, quando penso que sou hoje um septuagenário que sorri à morte. Como sempre, tenho a dizer-vos que a face do perpetrador se anuncia a cada passo e que se esconde habilmente. Para onde quer que nos viremos, ela surge-nos, espreita-nos, como um abismo que nos espreita. O que vai acontecer?, perguntar-me-ão. Terá de haver uma explosão de algum tipo. A densa chu-va irá cair, inevitavelmente. Recordem-se do último verso dessa canção, quando digo: «projectéis de veneno invadem as águas». O que queria eu dizer? Apenas isto: que somos tomados de assalto por mentiras, continuamente. Cercados por mentiras proferidas pelas inúmeras cabeças falantes que estão em todo o lado. Abram os jornais, liguem a televisão, circulem pela web. Olhem para essa gente que nos invade o tempo e o espaço. Vejam como nos roubam, como nos esvaziam o crânio, nos roubam a alma, esses filhos da puta sem remissão! Não sei o que pensam os mais novos de tudo isso, mas seria bom que parassem um minuto, que se per-

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mitissem a si mesmos um minuto. Hoje, nem de Hibbing poderia fugir, nem sequer faria sentido. Para onde quer que se vá, a merda é sempre a mesma. Para que servem então as canções, as minhas, as dos outros, os inúmeros poemas escritos, ditos, reditos? Para que se permitam um minuto, o vosso minuto. Nenhum de nós tem já morada ou origem. A minha vida continua a ser a rua que eu piso, e a música, e a velha guitarra aqui a meu lado enquanto escrevo este texto, são meros utensílios de uma procura, de um impulso que me foi fiel e ao qual fui fiel. Recebi condecorações por isso. A última das quais, das mãos do Presidente Obama. Mas não lhes atribuo grande importância. Parece-me uma trivialização do que disse, escrevi, cantei. No seu pior, todas as condecorações são armadilhas. Caí em algumas. Lamen-to-o. De resto, o mundo é irreformável. Como mudar o mundo se todos se afadigam na defesa dos seus interesses? Como? O que me foi e é caro na ideia de revolução pren-de-se com uma hipótese de fuga num mundo irrespirável e talvez inapelável e sem fuga. Mudar a vida, diria o Rim-baud da minha juventude nova-iorquina. A poesia? Nunca ninguém a leu. Não é de agora. Foi sempre assim. A poesia ofende e ninguém gosta de ser ofendido. Ofender é também inspirar, mas quem é que quer inspirar ou ser inspirado? É um perigo. Um perigo para todos e para cada um. Quem se faz inspirado passará a habitar os seus próprios sonhos. E quem quer isso? Pior coisa só mesmo viver na rua. Tudo começa no sonho e na rua, mas paga-se caro. Muito caro. Não há dinheiro que pague tal dívida. Afinal, serei apenas, quem sabe, um cão velho que por aqui anda há muito, mas que espera pelo novo ainda, e ele não chega, em nenhuma manhã chegará certamente. Em verdade vos digo que não me sinto velho, não, mas continuo a ouvir os mesmos discos que ouvia no início, os blues do Delta: Son House, Robert Johnson, Skip James. Ah, e por vezes, regresso a Woody Guthrie.

Brincava com uma lupa. O vidro ampliava a luz, desmate-rializava os objectos. Como na rua Morgue, o símio vinha sobrepujado pelo medo. Mas a fome seria a resposta. A fome responde sempre ao medo. Somos criaturas apavora-das, diz-nos a evolução. Reconheci-lhe os movimentos na sala, a agilidade também minha, a fragilidade só aparente. Reconheci-o, tomando-o pelo olhar, como quem alicia um amigo para uma insensatez, para uma desrazão feliz e mor-tal. Ele aproximou-se com a serenidade de um humano que se compraz com a violência enquanto se debruça sobre a primeira refeição do dia. Os olhos revelaram-me o seu medo e, por instantes, sem decifração possível, entrevi-lhe o gesto rápido e quase indolor dos dentes sobre a pequena mão. Não fugi. Não lhe movi perseguição. Prisioneiro do espanto do sangue contornando a mão e a lupa, preenchendo todos os espaços dos objectos desmaterializados, vermelho, rubro como a intensidade que se solta da palavra rubra. Rubro é sinónimo de mordida, medo, fome e paralisia vital perante o sangue disperso sobre o vidro que amplia. Rubra é a vi-olência de uma memória que vem depois. Rubra cabeça de-cepada do animal que saltou do medo para a mão e que se prestou ao cuidado de uma ciência tropical. Rubra a cicatriz que teima na mão, que se diluirá com a minha morte, como traço que se apaga, como dor murada pelo esquecimento.

o vidro (2014)

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QUINTAIS, Luís. Arrancar penas a um canto de cisne. Lisboa: Assírio & Alvim (Grupo Porto Editora), 2015.

Da dificuldade da beleza (p. 762-763); Terra Sigillata (p. 721); Uma bicicleta junto ao mar (p. 570); Apócrifo (Atribuído a Jorge de Sena) (p. 543); Blues para um gato azul (p. 428-429); Ver o norte (p. 393); Depois da escrita (p. 265); Poema XVI (p. 213); Bob Dylan dirige-se a seus con-temporâneos (p. 143-144); [Brincava com uma lupa] (p. 87).

Rui ChafesÉ assim que tudo começa (detalhe)

2017

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