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EXISTE VIOLÊNCIA SEM AGRESSÃO MORAL?* Luís Roberto Cardoso de Oliveira Inicio este texto com uma provocação a res- peito da noção de violência: pode-se falar em vio- lência quando não há agressão moral? Embora a violência física, ou aquilo que aparece sob este rótu- lo, tenha uma materialidade incontestável e a dimen- são moral das agressões (ou dos atos de desconsi- deração à pessoa) tenha um caráter essencialmente simbólico e imaterial, creio que a objetividade do RBCS Vol. 23 n. o 67 junho/2008 Trabalho apresentado em “Estado, Violência e Cida- dania na América Latina: Jornadas Interdisciplinares”, realizadas na Freie Universität Berlin, Alemanha, en- tre 23 e 25 de junho de 2005. A versão original tinha como título “Direitos, insulto e cidadania: existe vio- lência sem agressão moral?”. Agradeço ao convite de Ruth Stanley, assim como seus comentários e dos de- mais colegas durante o evento. Agradeço também às leituras de Roberto Cardoso de Oliveira, Caetano Ara- újo, e Carlos Gomes de Oliveira. * segundo aspecto ou o tipo de violência encontra melhores possibilidades de fundamentação do que a do primeiro. Aliás, arriscaria dizer que na ausência da “violência moral”, a existência da “violência físi- ca” seria uma mera abstração. Sempre que se dis- cute a violência como um problema social tem-se como referência a idéia do uso ilegítimo da força, ainda que freqüentemente este aspecto seja tomado como dado, fazendo com que a dimensão moral da violência seja pouco elaborada e mal compre- endida, mesmo quando constitui o cerne da agres- são do ponto de vista das vítimas. Pois é exatamen- te a esta dimensão do problema que me detenho no contexto do debate sobre a relação entre direi- tos, insulto e cidadania. Nos últimos anos venho tentando compreen- der os atos ou eventos de desrespeito à cidadania que não são captados adequadamente pelo Judiciá- rio ou pela linguagem dos direitos, no sentido estrito do termo. Assim, procuro apresentar o conteúdo Artigo recebido em dezembro/2007 Aprovado em março/2008 A Roberto Cardoso de Oliveira, in memoriam, com admiração, carinho e saudade.

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EXISTE VIOLÊNCIA SEM AGRESSÃO MORAL?*

Luís Roberto Cardoso de Oliveira

Inicio este texto com uma provocação a res-peito da noção de violência: pode-se falar em vio-lência quando não há agressão moral? Embora aviolência física, ou aquilo que aparece sob este rótu-lo, tenha uma materialidade incontestável e a dimen-são moral das agressões (ou dos atos de desconsi-deração à pessoa) tenha um caráter essencialmentesimbólico e imaterial, creio que a objetividade do

RBCS Vol. 23 n.o 67 junho/2008

Trabalho apresentado em “Estado, Violência e Cida-dania na América Latina: Jornadas Interdisciplinares”,realizadas na Freie Universität Berlin, Alemanha, en-tre 23 e 25 de junho de 2005. A versão original tinhacomo título “Direitos, insulto e cidadania: existe vio-lência sem agressão moral?”. Agradeço ao convite deRuth Stanley, assim como seus comentários e dos de-mais colegas durante o evento. Agradeço também àsleituras de Roberto Cardoso de Oliveira, Caetano Ara-újo, e Carlos Gomes de Oliveira.

*

segundo aspecto ou o tipo de violência encontramelhores possibilidades de fundamentação do quea do primeiro. Aliás, arriscaria dizer que na ausênciada “violência moral”, a existência da “violência físi-ca” seria uma mera abstração. Sempre que se dis-cute a violência como um problema social tem-secomo referência a idéia do uso ilegítimo da força,ainda que freqüentemente este aspecto seja tomadocomo dado, fazendo com que a dimensão moralda violência seja pouco elaborada e mal compre-endida, mesmo quando constitui o cerne da agres-são do ponto de vista das vítimas. Pois é exatamen-te a esta dimensão do problema que me detenhono contexto do debate sobre a relação entre direi-tos, insulto e cidadania.

Nos últimos anos venho tentando compreen-der os atos ou eventos de desrespeito à cidadaniaque não são captados adequadamente pelo Judiciá-rio ou pela linguagem dos direitos, no sentido estritodo termo. Assim, procuro apresentar o conteúdo

Artigo recebido em dezembro/2007Aprovado em março/2008

A Roberto Cardoso de Oliveira, in memoriam,com admiração, carinho e saudade.

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desses atos por meio da noção de insulto moral, comoum conceito que realça as duas características prin-cipais do fenômeno: (1) trata-se de uma agressãoobjetiva a direitos que não pode ser adequadamen-te traduzida em evidências materiais; e, (2) sempreimplica uma desvalorização ou negação da identi-dade do outro.

Para formular a noção de insulto vali-me prin-cipalmente da idéia-valor vigente no Brasil expres-sa a partir da dicotomia consideração/desconsi-deração. Tal categoria remete a um tipo de atitudeimportante na definição das interações sociais e ar-ticula-se com pelo menos três tradições de refle-xão sobre o tema, as quais têm marcado o desen-volvimento do meu trabalho: (a) discussão em tornoda noção hegeliana de Anerkennung (reconhecimento)e da sua ausência expressa na idéia de Mißachtung(desrespeito, desatenção), retomada contempora-neamente nos trabalhos de Taylor (1994) e Hon-neth (1996); (b) debate francês sobre considération (eseu oposto, déconsidération), que remonta a Rousseaue que alguns desdobramentos recentes diretamenterelacionados com meu foco de interesse foram reu-nidos numa publicação de Haroche e Vatin (1998),em que o tratamento relativo à consideração é de-finido como um direito humano; e, (c) discussõesassociadas à noção maussiana de dádiva ou reci-procidade, assim como têm sido articuladas pelogrupo da Revue du M.A.U.S.S., especialmente nostrabalhos de Caillé (1998) e Godbout (1992, 1998).1

Desse modo, analiso a relação entre as idéiasde respeito a direitos plenamente universalizáveis,tendo como referência o indivíduo genérico, e deconsideração ao cidadão, portador de uma identi-dade singular. Tenho examinado essa relação emtrês contextos etnográficos distintos – no Brasil, noCanadá (Quebec) e nos Estados Unidos – por meioda análise de conflitos e de eventos políticos queenvolvem afirmação de direitos ou demandas porreconhecimento. A articulação entre as dimensõeslegal e moral dos direitos ou da cidadania encon-tra-se então no primeiro plano da pesquisa nessestrês países. Tanto nos processos de resolução dedisputas no âmbito dos Juizados de Pequenas Causasem Massachusetts, como no debate público sobrea soberania do Quebec, ou nas discussões sobredireitos quando da elaboração da Constituição de1988 e nas reformas que se seguiram no processode redemocratização do Brasil, as idéias de respei-to e consideração mostraram-se fecundas para a

compreensão dos fenômenos. O insulto moral reve-lou-se um aspecto importante dos conflitos nos trêscontextos etnográficos e, em vista de sua aparente“imaterialidade”, tendia a ser invisibilizado comouma agressão que merecesse reparação.

Apesar de o insulto moral aparecer com ca-racterísticas próprias e implicações diversas em cadacontexto etnográfico, está freqüentemente associadoà dimensão dos sentimentos, cuja expressão desem-penha um papel importante em sua visibilidade.Nesse sentido, o material etnográfico estimulou in-dagações sobre a expressão ou a evocação dos sen-timentos e a mobilização das emoções dos atoresna apreensão do significado social dos direitos, cujoexercício demanda uma articulação entre as identi-dades dos concernidos. Trata-se de direitos aciona-dos em interações que não podem chegar a bomtermo por meio de procedimentos estritamenteformais e que requerem esforços de elaboração sim-bólica da parte dos interlocutores para viabilizar oestabelecimento de uma conexão substantiva entreeles, permitindo o exercício dos respectivos direi-tos (Cardoso de Oliveira, 2004a, pp. 81-93). A ati-tude de distanciamento ou a ausência de deferênciaostensiva situadas no pólo oposto desta conexão,quando percebidas como constituindo um ato dedesconsideração, provocam o ressentimento ou aindignação do interlocutor, característicos da per-cepção do insulto.

Neste empreendimento, a fenomenologia dofato moral assim como proposta por Strawson,acionando a experiência do ressentimento, parece-me particularmente apropriada para caracterizar olugar dos sentimentos na percepção do insulto, dan-do visibilidade a este tipo de agressão, e sugerindouma distinção importante entre ato e atitude ou in-tenção para a apreensão do fenômeno:

Se alguém pisa na minha mão acidentalmente, enquan-to tenta me ajudar, a dor não deve ser menos aguda doque se pisasse num ato de desconsideração ostensiva àminha existência, ou com um desejo malévolo de meagredir. Mas deverei normalmente sentir, no segundocaso, um tipo e um grau de ressentimento que nãosentiria no primeiro [. . .] (Strawson, 1974, p. 5).

Ainda segundo Strawson, o ressentimento davítima nesse tipo de situação provocaria um sentimen-to de indignação moral em terceiros que tivessempresenciado o ato e capitado a intenção do agressor,dando assim substância ao caráter objetivo da agres-

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são. Evidentemente, quando falamos em sentimen-tos no plano moral, dirigimo-nos àqueles sentimentossocial ou intersubjetivamente compartilhados.

O insulto aparece então como uma agressãoà dignidade da vítima, ou como a negação de umaobrigação moral que, ao menos em certos casos, sig-nifica um desrespeito a direitos que requerem res-paldo institucional. Tomada como o resultado datransformação da noção de honra na passagem doantigo regime para a sociedade moderna (Berger,1983; Taylor, 1994), a dignidade é caracterizadacomo uma condição dependente de expressões dereconhecimento, ou de manifestações de conside-ração, cuja negação pode ser vivida como um in-sulto pela vítima, percebido como tal por terceiros.Esta formulação tem sido aprimorada pelo diálogocom abordagens que enfocam a dádiva ou as rela-ções de reciprocidade (ver La Revue du M.A.U.S.S.),o qual me permitiu caracterizar direitos que dãoprecedência ao elo social e que colocam em segundoplano a dimensão dos interesses individuais ou aidéia de direitos intrínsecos ao indivíduo. Assim,sugiro que o reconhecimento poderia ser concebi-do como a outra face do hau do doador na elabo-ração de Marcel Mauss sobre as trocas recíprocas;e argumento que a sua expressão constituiria umadas três dimensões temáticas presentes em quasetodos os conflitos que desembocam no Judiciário:

(1) a dimensão dos direitos vigentes na sociedade oucomunidade em questão, por meio da qual é feita umaavaliação da correção normativa do comportamentodas partes no processo em tela; (2) a dimensão dosinteresses, por meio da qual o judiciário faz uma avali-ação dos danos materiais provocados pelo desrespeito adireitos e atribui um valor monetário como indeniza-ção à parte prejudicada, ou estabelece uma pena comoforma de reparação; e, (3) a dimensão do reconheci-mento, por meio da qual os litigantes querem ver seusdireitos de serem tratados com respeito e consideraçãosancionados pelo Estado, garantindo assim o resgate daintegração moral de suas identidades (Cardoso de Oli-veira, 2004b, p. 127).

A caracterização do insulto como uma agres-são moral, de difícil tradução em evidências ma-teriais, trouxe à tona uma dimensão dos conflitosfreqüentemente mal equacionada pelos atores emsociedades complexas, modernas (contemporâneas),onde vigora o direito positivo. Seja devido à gran-de dose de impermeabilidade do Judiciário a de-mandas de reparação por insulto, como demonstra

a análise de pequenas causas nos Estados Unidos(Cardoso de Oliveira, 1989, 1996a, 1996b, 2002);seja devido à dificuldade de formular um discursoadequado para fundamentar direitos não universa-lizáveis, como sugere a resistência do Canadá an-glófono às demandas por reconhecimento doQuebec como uma sociedade distinta (Idem, 2002); ouainda seja devido aos constrangimentos para a uni-versalização do respeito a direitos básicos de cida-dania no Brasil, em vista da dificuldade experimen-tada pelos atores em internalizar o valor da igualdadecomo um princípio para a orientação da ação navida cotidiana (Idem, ibidem).

A propósito, essa dificuldade brasileira indu-ziu-me a propor uma distinção entre esfera e espa-ço públicos, como duas dimensões da vida social,vigentes nas sociedades modernas de uma maneirageral, mas que no Brasil teriam a peculiaridade deapresentarem-se de forma desarticulada. Enquan-to a esfera pública englobaria “o universo discursi-vo onde normas, projetos e concepções de mun-do são publicizadas e estão sujeitas ao exame oudebate público” (Idem, 2002. p. 12), seguindo Ha-bermas, o espaço público é caracterizado “comoo campo de relações situadas fora do contexto do-méstico ou da intimidade onde as interações sociaisefetivamente têm lugar” (Idem, ibidem). Tal noção deespaço público tem um campo semântico em al-guma medida similar ao definido por DaMatta emrelação ao mundo da rua, mas procura realçar umpadrão de orientação para a ação que combinaria aperspectiva da impessoalidade com uma atitudehierárquica em face do mundo, trazendo para ocotidiano dos atores o que Kant de Lima definecomo “paradoxo legal brasileiro” (1995, pp. 56-63). O que salta aos olhos no caso brasileiro é acontradição entre a hegemonia das idéias liberaisem prol dos direitos iguais na esfera pública e adificuldade encontrada pelos atores em atuar deacordo com essas idéias no espaço público, onde avisão hierárquica freqüentemente teria precedência.

Uma dificuldade a mais nos três casos etno-gráficos estudados deve-se ao fato de o reconheci-mento e a consideração não poderem ser converti-dos em direitos protegidos pelo Judiciário, pois nãohá como fundamentar legalmente a atribuição deum valor singular a uma identidade específica, eexigir o seu reconhecimento social. As demandaspor reconhecimento também não podem ser satis-feitas pela simples obediência a uma norma legal,

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na medida em que aquele que reconhece deve sercapaz de transmitir um sinal de apreço ao interlo-cutor – isto é, à sua identidade ou ao que ela repre-senta. Nos casos em que o reconhecimento torna-se uma questão, a ausência deste sinal é vivida comouma negação da identidade do interlocutor, que sesente agredido. É, nesse sentido, que o aspecto dia-lógico do reconhecimento se faz presente com to-das as suas implicações. Isto também significa queo reconhecimento é uma atitude ou um direito queprecisa ser permanentemente cultivado, e que asdemandas a ele associadas não podem jamais sercontempladas de forma definitiva. Mesmo quan-do elas são plenamente satisfeitas em um determi-nado momento, não há garantia de que o proble-ma não possa reaparecer no futuro.

O estudo de Juizados Especiais no DistritoFederal focaliza tanto as causas criminais como ascíveis e, neste último caso, as causas por dano mo-ral suscitam interesse especial. A literatura sobre osJuizados tem chamado a atenção para certas carac-terísticas particularmente interessantes que dizemrespeito à relação entre dádiva, insulto, direitos esentimentos. Assim como em minha pesquisa so-bre Juizados de Pequenas Causas nos Estados Uni-dos, os Juizados no Brasil também parecem imporàs causas que lhe são encaminhadas um forte pro-cesso de filtragem, o qual tende a excluir aspectossignificativos do conflito vivido pelas partes, redu-zindo substancialmente a perspectiva de um equa-cionamento adequado para suas demandas e preo-cupações. Desse modo, apesar de os litigantes terema oportunidade de resolver suas disputas por meioda conciliação ou de uma transação penal antes deterem suas causas avaliadas pelo juiz numa audiên-cia de instrução e julgamento, as duas primeiras nãoconstituem etapas ou possibilidades verdadeiramen-te alternativas à audiência judicial, pois parecemorientar-se pela mesma lógica de equacionamentoexclusivamente jurídico das disputas. Enquanto nosEstados Unidos os serviços de mediação costu-mam viabilizar a discussão de problemas que nãotêm espaço nas audiências judiciais, ainda que fre-qüentemente não consigam contemplar as deman-das dos atores em relação à reparação por insulto,no Brasil a conciliação e/ou a transação penal pro-curam produzir acordos que representam umaobediência estrita à lógica judicial, com o agravantede não manter a mesma preocupação com os di-reitos das partes ao devido processo legal, sendo

sistematicamente descritos como procedimentos decaráter impositivo.

Assim, a filtragem das causas começa no bal-cão do juizado, quando o autor tem sua causa “re-duzida a termo” pelos funcionários que enquadrama demanda em categorias jurídicas e encaminhamadministrativamente as causas. Em vez de atentarpara a perspectiva dos litigantes na disputa, os proce-dimentos de conciliação parecem procurar conven-cer as partes sobre a precedência da lógica judiciale dos constrangimentos que impediriam qualquerequacionamento de outra ordem (Kant de Lima etal., 2003, pp. 19-52). Na mesma direção, Alves falade “acordos forçados” em sua pesquisa sobre osJuizados Cíveis no Paranoá (2004, pp. 104-108),confirmando relatos que me foram feitos por alu-nos de direito estagiando em Juizados Especiais,segundo os quais esta atitude impositiva seria mui-to freqüente entre os conciliadores dos Juizados.Ao vestirem uma pelerine, os conciliadores assu-mem plenamente o papel de autoridades e acen-tuam ainda mais a distância em relação às partes.2

Nesse sentido, é necessário investigar melhor,com mais detalhe, a visão dos litigantes sobre o mo-do pelo qual suas causas são processadas no Juizado,e em que medida eles vêem seus direitos, interessese preocupações contemplados ao longo da tramita-ção da causa ou no desfecho no âmbito da instituição.Há sinais de que as diferenças entre conciliação, tran-sação penal e audiência de instrução e julgamentonem sempre são inteiramente claras para as partes(Gomes de Oliveira, 2005), e seria interessante in-dagar sobre os significados atribuídos à negocia-ção nas duas primeiras modalidades de encaminha-mento e ao julgamento do juiz na última delas.Confirmando-se o aparente descompasso entre aperspectiva dos litigantes e a dos operadores dodireito, como estes justificariam o padrão de trata-mento dado às causas no Juizado, e como perce-beriam o significado dos aspectos das disputas ex-cluídos do processo por meio da prática de reduzira termo?

Aliás, o que o Judiciário costuma deixar defora são todos aqueles aspectos das disputas asso-ciados à dimensão temática do reconhecimento,conforme definido acima. Como procurar-se-ádemonstrar em seguida, além de inviabilizar a com-preensão das causas onde o reconhecimento temum lugar significativo, o Judiciário acabaria cola-borando para o eventual agravamento destes con-

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flitos. Na mesma direção, o material etnográficonão apenas chama a atenção para a importância dadimensão moral dos direitos, mas sugere tambémque talvez não seja adequado falar em violênciaquando não houver agressão de ordem moral, dan-do sentido ao aparente paradoxo de que a “violên-cia física”, sem um componente simbólico/moral,seria apenas uma abstração, invertendo, de fato, aequação entre os pares material/simbólico, de umlado, e objetivo/subjetivo, de outro. A discussãode Simião (2005) sobre “violência doméstica” noTimor Leste é particularmente contundente em re-lação à precedência da dimensão simbólico-moralna constituição da violência. Entretanto, vale à penaabordar outros exemplos para caracterizar melhora problemática do insulto antes de concluir com oexemplo do Timor Leste.

São conhecidas as críticas à atuação dos Jui-zados Especiais Criminais (Jecrims) brasileiros noscasos que envolvem agressões à mulher e a negocia-ção de penas alternativas. Além da alta incidência ereincidência de casos de mulheres que são repeti-damente agredidas por seus companheiros e nãoencontram nos tribunais uma proteção adequada,o modo pelo qual suas causas são equacionadasnos Juizados dirige-se exclusivamente à dimensãofísica da agressão, deixando inteiramente de lado oaspecto moral que, de certo modo, machuca maise tem conseqüências mais graves.3 Refiro-me aoprocesso de desvalorização da identidade da víti-ma, levada a assumir a condição de total subordi-nação às idiossincrasias (agressivas) do companhei-ro. O discurso da perda da identidade é recorrente,e os direitos agredidos neste plano não encontramrespaldo no processo de resolução de disputa noâmbito do Judiciário. Embora os processos de con-ciliação e de transação penal critiquem, às vezes comveemência, as agressões do companheiro, há fortepressão para o acordo ou para a aceitação da penaalternativa negociada, sem que seja elaborado deforma adequada o significado moral da agressãosofrida. Isto é, esta dimensão não é nem abordada,o que inviabiliza sua reparação, dado que a sua per-cepção ou sanção não pode ser automaticamenteembutida no acordo, transação penal ou decisãofocada apenas no aspecto físico da agressão.

Pois, se a ocorrência do insulto demanda es-forços de elaboração simbólica para ganhar inteli-gibilidade, a sua reparação freqüentemente deman-daria ainda processos de elucidação terapêutica do

ponto de vista da vítima. Não me refiro a processosterapêuticos em sentido estrito, como um padrão,mas à necessidade de repor os déficits de significa-do provocados por agressões arbitrárias, vividascomo uma negação do eu ou da persona da vítima,e cujo caráter normativamente incorreto e merece-dor de sanção social negativa tem que ser internali-zado pela vítima para que sua identidade de pessoamoral, digna de estima e consideração, seja resgata-da. Como tem sido assinalado na literatura sobre oproblema do pagamento de cestas básicas comopena alternativa, que pode até mesmo punir as víti-mas de baixa renda, uma vez que retira recursossignificativos de sua unidade doméstica, a sançãonão guarda nenhuma relação com o aspecto mo-ral da agressão. Além disso, há relatos de que opróprio cumprimento da pena poderia ser enten-dido como um agravante da agressão moral à víti-ma, como nos “vários casos de autores chegaremno cartório com o comprovante de pagamento dacesta e dizendo que se ele soubesse que seria tãobarato bater na mulher, ele bateria mais vezes” (Be-raldo de Oliveira, apud G. Debert, 2002). Tal afir-mação, que provavelmente é repetida na frente davítima, imputa a ela a condição de um mero obje-to, sujeito às idiossincrasias do agressor.

Entretanto, os casos de agressão à mulher sãoapenas os mais conhecidos e os mais numerososatendidos pelos Jecrims. Problemas similares ocor-rem em causas envolvendo demandas do consumi-dor, ou em conflitos entre vizinhos e parentes, cujopotencial para desembocar em crimes graves émuito maior do que geralmente se imagina. Isto é,se levarmos em conta dados recentemente publi-cados pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP,indicando que 38% das agressões com arma defogo em Salvador e no Distrito Federal, por exem-plo, são protagonizadas por conhecidos, compa-nheiros ou familiares (Peres, 2004, p. 29).4 No queconcerne aos conflitos do consumidor, Ciméa Be-vilaqua relata vários casos nos quais o sentimentode terem sido desrespeitados por fornecedores éum aspecto central das causas encaminhadas porconsumidores. Em uma delas, após ter seu pleitocomercial plenamente contemplado pelo fornece-dor, o consumidor só concorda com o acordo ne-gociado na frente do delegado quando o forne-cedor se dispõe a pedir desculpas formais a ele(Bevilaqua, 2001, p. 319). O componente moral dasdisputas, aqui expresso pela percepção do insulto,

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pode ganhar amplitude surpreendente, como noconflito entre Anselmo, Denílson e Natalício, des-crito por Gomes de Oliveira (2005, pp. 90-93) emsua etnografia sobre Jecrims na cidade do Gama,em Brasília.

A rigor, trata-se de conflitos sistematicamenterepetidos entre estes três vizinhos, que vêm se agra-vando ao longo do tempo com a colaboração doJudiciário, não encontrando um caminho adequa-do para equacionar as respectivas disputas.5 Apesarde esses conflitos compartilharem muitos dos pro-blemas identificados por Gomes de Oliveira emoutras causas que chegam aos Juizados, não deixade ser curioso o fato de o Judiciário neste caso semostrar incapaz de lidar com a seqüência de pro-blemas entre as partes – um promotor (MP), porexemplo, sugeriu que um dos envolvidos mudassede endereço como forma de solucionar o proble-ma! (Idem, p. 90), conselho aparentemente seguidopor Denílson que não mora mais lá. Os três perso-nagens são pessoas de classe média baixa e residemem casas vizinhas que compartilham a área verdeem frente aos seus terrenos. Tal área não pode sercercada e, embora seja considerada área de transitolivre, não deixa de representar projeções associadasa cada terreno, conforme padrão generalizado emBrasília, emprestando certa ambigüidade a seu sta-tus no que concerne aos direitos das partes e ocupan-do lugar de destaque nos conflitos entre elas. An-selmo é pintor autônomo de carros, tem 38 anos,reside com a companheira e não tem filhos; Nata-lício tem 25 anos, está desempregado e reside coma mãe e os irmãos; Denílson tem 30 anos, moravacom a mãe na época dos conflitos e, atualmente,está residindo com a esposa em outra localidade.

O primeiro incidente relatado por Gomes deOliveira envolve Anselmo e Denílson, e teria sidodetonado pela iniciativa de Anselmo de plantar ár-vores na área verde sem respeitar os limites de suaprojeção. A mãe de Denílson não gosta da idéia epede ao filho que solicite a retirada das árvores. Aofalar com Anselmo, Denílson avisa que ele mesmoretiraria as árvores caso o outro não o fizesse. An-selmo toma a ameaça como uma ofensa, deixa tudocomo está, e Denílson tira as árvores plantadas naárea verde associada ao seu terreno. Anselmo ficairado com essa atitude, prepara um coquetel mo-lotov e o arremessa contra o carro de Denílsonapós pular o muro de sua residência. É então pro-cessado pelos danos ao carro e condenado a inde-

nizar Denílson, além de ter que prestar serviços àcomunidade como pena alternativa. Embora re-conheça a responsabilidade pelos estragos no car-ro, fica inconformado por não ter podido apre-sentar sua demanda em relação às árvoresarrancadas, já que o juiz teria se recusado a ouvi-lo,e não consegue entender a lógica do Juizado:

[. . .] um cara que rancou casca de uma árvore foi pre-so [referindo-se à notícia de um camponês preso porter arrancado casca de árvore protegida para fazer chá(LRCO)], eu vejo o cara quebrando uma árvore aquinão é crime, eu fui lá, fiz minha justiça, porque acheique se eu fosse lá e fizesse minha justiça o cara não iamais mexer comigo, o juiz vai me obrigar a pagar ocarro, me obriga a prestar serviços à comunidade, masnão obriga o cara a replantar as árvores (Idem, p. 92).

Além de reclamar da recusa do juiz, que lhehavia sugerido dar entrada em outro processo,Anselmo interpreta a pressa do Juizado como sinalde indiferença e arbitrariedade de uma decisão semsentido, afirmando: “Eu me senti um Zé ninguém,uma pessoa pequena, diminuída [. . .]” (Idem, p. 92).Anselmo alega que deveria ter direito à reparaçãopor danos morais e sugere, em sua fala, que a mo-tivação para fazer a sua justiça estava associada àtentativa de fazer com que Denílson não mexessemais com ele. Isto é, não o desrespeitasse ou não odesconsiderasse mais. Como nenhuma de suasalegações recebera atenção do Juizado, Anselmonão apenas fica insatisfeito com o resultado, mastambém concebe seu conflito com Denílson comouma questão em aberto, sujeita a ser retomada aqualquer momento.

No segundo episódio envolvendo Anselmo,a disputa é com Natalício, mas a lógica do Juizadocontinua igualmente distante da perspectiva daspartes. Agora os dois litigantes alegam terem sofri-do ameaças de parte a parte, e o juiz condena am-bos a pagarem cestas básicas como pena alternati-va. Os dois saem insatisfeitos do Juizado e Natalíciofaz críticas similares às que Anselmo havia feito an-teriormente, indicando contrariedade com a faltade espaço para discutir o caso. Como alega não tercondições de pagar as cestas básicas por estar de-sempregado, fica sujeito a uma eventual ordem deprisão do juiz. Assim como no primeiro episódio,o encaminhamento dado ao conflito no Juizadomantém a questão em aberto entre as partes, o quesugere a possibilidade de que as ameaças se trans-

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formem em agressões mais graves no futuro. Ofoco do Juizado na “redução a termo” das disputas,filtrando apenas a dimensão estritamente legal dosconflitos, talvez permita pensarmos numa certa fe-tichização do contrato – como categoria englobadoradas prescrições jurídicas de todo tipo –, caracterís-tica do direito positivo, em que o espaço para arti-cular demandas é limitado ao que está estipuladono contrato e no código penal (ou civil), como pres-crições autocontidas, auto-suficientes e abrangen-tes o bastante para equacionar os conflitos que che-gam ao Judiciário. Assim, a dimensão moral dosdireitos é totalmente descartada de qualquer avalia-ção, e relações entre pessoas, portadoras de identi-dade, são pensadas como relações entre coisas ouautômatos com interesses e direitos prescritos, massem sentimentos, autonomia ou criatividade.

Problemas desta ordem não são vividos comdramaticidade apenas nos Jecrims ou por litigantescomo Anselmo, Denílson e Natalício, mas pare-cem representar um padrão de dificuldade para li-dar com direitos associados à dimensão moral dasdisputas, característico de tribunais onde vigora odireito positivo, ou de instituições orientadas pelamesma lógica, em diversas partes do mundo. Rela-tos sobre a Comissão de Verdade e Conciliaçãoestabelecida na África do Sul para lidar com as atro-cidades do apartheid ou o debate em torno da para-nóia do querelante na Austrália são bons exemplosda abrangência do problema e da pluralidade desituações onde a invisibilidade dos respectivos di-reitos aos olhos do Judiciário e a importância doseu equacionamento do ponto de vista das partesemergem de maneira muito forte.

Em uma análise interessante e criativa sobrejustiça transicional em três países africanos que pas-saram por regimes opressivos ou situações de guerracivil, Simone Rodrigues (2004) apresenta um mate-rial particularmente estimulante sobre a Comissãode Verdade e Reconciliação instalada na África doSul no período pós-apartheid. Sob a liderança do Re-verendo Desmond Tutu, a Comissão foi instaladacomo alternativa aos tribunais judiciais que vinhamjulgando os crimes ocorridos durante o apartheid,inclusive aqueles que teriam sido cometidos peloCongresso Nacional Africano. A Comissão reali-zava sessões públicas televisivas em canal aberto emobilizou a sociedade. Uma de suas característicascentrais, e que gerou muitas críticas no início dostrabalhos, era o fato de que todos aqueles que se

dispusessem voluntariamente a contar toda a ver-dade sobre os crimes políticos (em sentido amplo)que teriam cometido durante o apartheid seriam anis-tiados pela Comissão. Os depoimentos eram reali-zados na presença das vítimas (quando vivas) oude seus parentes e advogados, que poderiam fazerperguntas ao criminoso confesso. Com a possibili-dade de anistia, a ênfase do procedimento não es-tava na punição dos culpados ou responsáveis, masna restauração da harmonia social, expressa pormeio da categoria nativa Ubuntu. Além do carátercatártico dos depoimentos para vítimas e agresso-res, o desvendamento de eventos carregados desimbolismo e emoção para as partes, em um con-texto institucional muito significativo e amplamen-te compartilhado pela sociedade como um todo,acabou tendo um forte componente terapêutico,viabilizando a reparação de ofensas e sofrimentosque, segundo os atores, uma condenação judicialjamais teria realizado.

Há muitos relatos de parentes das vítimas nosquais a oportunidade de tomar conhecimento so-bre o que teria de fato ocorrido quando do desa-parecimento, ou assassinato, de seus entes queridosé descrita como uma experiência de alivio e de re-estruturação da identidade da maior relevância.Além da superação da angústia viabilizada peloacesso à informação, as condições em que o pro-cesso se dá permitem uma reelaboração da perdaou da agressão num novo patamar de inteligibili-dade, renovando o significado da experiência e dainserção social das partes. Desse modo, ao permi-tir que a experiência de agressão seja revivida commaiores esclarecimentos e possibilidades de mobi-lizar as emoções para restabelecer uma conexãoplena com os eventos vividos no passado, e con-tando com o apoio institucional adequado, a Co-missão seria um bom exemplo dos processos deelucidação terapêutica mencionados acima. Empoucas palavras, o processo de (re)discussão doscrimes do apartheid no âmbito da Comissão, dra-matizado nos depoimentos e na busca por esclare-cimento dos atores, cuja indignação e eventual ar-rependimento (dos agressores) são “ritualmente”sancionados pelo Estado, produz uma ressimboli-zação da experiência das partes e a renovação desuas identidades como pessoas morais, dignas dorespeito e da consideração que haviam perdido.

Mas, se o exemplo da África do Sul revelapossibilidades efetivas de reparação para o insulto

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de ordem moral, a discussão sobre a paranóia doquerelante na Austrália indica a dificuldade que asinstituições modernas têm para lidar com este ti-po de agressão. Os dados australianos foram retira-dos da edição de abril de 2004 do British Journal ofPsychiatry, que traz os resultados de pesquisa realiza-da sobre o tema por um grupo de psiquiatras aus-tralianos. Segundo eles, a paranóia do querelante játeria ocupado um lugar de destaque na literatura,mas teria caído em descrédito na primeira meta-de do século XX, “atacada por críticas de que nãofazia mais do que patologizar aqueles com energiae disposição para defender seus direitos” (Lester etal. 2004, pp. 352-356). A pesquisa foi feita em seisescritórios de Ouvidores, com o auxílio de pro-fissionais experientes no encaminhamento de re-clamações apresentadas por cidadãos, cuja pri-meira tentativa de resolver seus problemas nas maisdiversas instituições e tipos de atividade (governo,negócios, serviços) havia fracassado. Esses pro-fissionais da ouvidoria foram solicitados a pre-encher questionários sobre reclamantes especial-mente persistentes, cujos casos já haviam sidoarquivados. Cada vez que um caso fosse identifica-do, os profissionais selecionavam, como controle,o próximo caso nos arquivos apresentado por

pessoa do mesmo gênero e faixa etária, cuja recla-mação era similar em linhas gerais. Entre os 110casos selecionados 96 tiveram seus questionários res-pondidos, sendo que 52 correspondiam a recla-mantes persistentes e 44 aos casos de controle.Setenta e dois por cento dos persistentes eramhomens que, num universo equilibrado de acordocom o gênero, indicava uma super-representaçãode homens no grupo persistente. O material foiclassificado segundo muitas variáveis comporta-mentais e constitui uma rica fonte de análise a serdesenvolvida em várias direções. Em um manus-crito ainda inédito, comparo de forma mais deta-lhada este material com dados etnográficos do Brasile dos Estados Unidos e sugiro que, ao não conse-guir entender adequadamente demandas de repa-ração por insulto, o Judiciário tende a interpretá-lascomo produto de alguma deficiência mental dosreclamantes.6 No momento, gostaria apenas de sa-lientar alguns dados que ajudam a caracterizar subs-tancialmente a percepção do insulto do ponto devista dos atores e a amplitude de causas onde ele sefaz presente, sem deixar de identificar caracterís-ticas excepcionais que sugerem a existência deproblemas psicológicos mais agudos entre os re-clamantes.

sociados da identidade do reclamante. Ainda quehaja diferenças significativas entre as duas colunas,é interessante notar que, com exceção da últimavariável – “fazer ameaças ao telefone ou em pes-soa” –, todas as demais também aparecem comalguma intensidade na coluna dos Controles. Neste

Como mostra o quadro, todas as variáveisselecionadas indicam aspectos que demonstram oenvolvimento pessoal dos reclamantes com suascausas e trazem à tona dimensões da reclamaçãoque não se resumem a demandas por reparação deinteresses ou de direitos impessoais, totalmente dis-

Quadro Comparativo entre Reclamantes Persistentes e Controles

Indicadores de Perspectiva ou Comportamento

Assinalan danos à auto-estima

Querem desculpas por mal-trato

Justiça baseada em princípios

Querem vingança

Querem “to have their day in court”

Fazem ameaças ao telefone ou em pessoa

Persistentes

40%

67%

60%

43%

29%

52%

Controles

12%

32%

18%

11%

04%

00%

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aspecto, enquanto as três primeiras variáveis fazemuma forte associação entre direito e identidade – esua relevância também seria facilmente demonstra-da nos casos discutidos anteriormente –, as três úl-timas refletem com maior ênfase a necessidade daspartes em confrontar as agressões alegadas parasuperar o problema e resgatar suas identidades ouo sentido que atribuem à cidadania. A propósito, sea quarta e a sexta variáveis expressam uma atitudeagressiva diante do problema, a demanda de “terseu dia no tribunal” (to have their day in court) consti-tui uma expressão de duplo sentido no mundoanglo-saxão: de um lado caracteriza o direito detodo cidadão, como pessoa moral, ter seus direitosrespeitados e suas reclamações ouvidas pelo Esta-do; de outro, é utilizada para assinalar uma certacondescendência institucional para com aqueles liti-gantes cujo comportamento ou argumentos nãofazem muito sentido do ponto de vista do tribunal,mas fazem questão de exercer o direito de seremouvidos pelo juiz.

Em qualquer hipótese, embora seja inegávelo caráter excessivo de alguns comportamentos delitigantes classificados como persistentes, há umacontinuidade com os casos-controle nos quais osatores demonstram sensibilidade ao insulto. Maisdo que uma dimensão paranóica, os reclamantes per-sistentes chamam a atenção para as dificuldades dasinstituições judiciárias ou congêneres em lidar como insulto, assim como para o significado social des-se tipo de agressão. Aliás, como discuto no manus-crito supracitado (ver nota 7), o fenômeno descri-to como querulous paranoia no British Journal of Psychiatryé muito mais abrangente do que parece à primeiravista, e poderia ser mais bem compreendido a par-tir da problemática do insulto.

Para concluir, gostaria de fazer menção aotrabalho de Simião (2005) sobre o Timor Leste,que mostra como o descrédito em relação à dimen-são moral da violência teria marcado o processode “invenção da violência doméstica” como umproblema social contemporâneo. Tradicionalmen-te, os timorenses concebiam várias situações em quebater na mulher e nos filhos, ou eventualmente apa-nhar da mulher nas mesmas circunstâncias, tinha umaspecto pedagógico. Bater para corrigir problemasde comportamento seria uma atitude legítima entremarido e mulher ou entre pais e filhos, desde quefosse feito com moderação. Ainda hoje, discursoslegitimando o bater pedagógico encontram respal-

do de homens e mulheres em vários lugares noTimor. Entretanto, a forte atuação de ONGs e or-ganismos internacionais no combate a essas práti-cas, sem qualquer esforço para compreender o seusentido local, tem mudado este quadro. Os pro-gramas de combate à “violência doméstica” insti-tuídos pelo Estado sob forte influência do discur-so universalista (e por vezes sociocêntrico) em defesados direitos humanos e da igualdade de gênero,sem as mediações necessárias para ajustar o discur-so ao contexto local, têm tido algum êxito na prote-ção das mulheres contra este novo tipo de agressão,mas têm também criado novos impasses, confu-sões e ambigüidades. Com a criminalização dasagressões (físicas) à mulher em sentido amplo, fo-ram inviabilizados, em grande medida, os procedi-mentos tradicionalmente acionados para o equacio-namento desse tipo de conflito, que em muitascircunstâncias respondem melhor às demandas daspartes.7 Trata-se de um processo complexo e ricoem implicações bem abordadas no trabalho de Si-mião, o que me leva a fazer três observações nosentido de enfatizar a importância da precedênciasimbólico-moral da violência para uma melhorcompreensão do fenômeno.

Em primeiro lugar, se atentarmos para o pon-to de vista dos atores e para o contexto de referênciade suas representações, verificaremos que a agres-são física do passado, legitimada socialmente pormeio de seu sentido pedagógico, passa a ser carac-terizada como um ato de violência, recriminadosocialmente, no momento em que seu conteúdopedagógico perde vigência e o ato passa a ser in-terpretado como uma agressão à identidade da ví-tima. Enquanto o bater tinha uma justificativa mo-ral e o sofrimento da vítima era essencialmente físico,a prática era não só aceita, mas também defendidapor homens e mulheres, que se limitavam a criticaros excessos. Não obstante, quando o bater se cons-titui numa nova forma de agressão, dirigida à pes-soa da vítima e representada como um desrespeitoou negação de sua identidade como pessoa moral,a agressão ganha ares de “violência doméstica” epassa a ser intolerável. Essa mudança aparece cla-ramente na descrição que Simião faz do caso datimorense que durante onze anos apanhara do ma-rido sem que isto fosse um problema na relação,até o momento em que ela passou a conviver comestrangeiros no escritório local da Cruz Vermelha,onde trabalhava; para surpresa do marido, decidiu

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pedir divórcio. Segundo Simião, “à dor física queela sentiu durante anos agora se somava a uma dormoral. O sentido do ato de agressão mudara, mu-dando, com isso, as suas conseqüências” (2005, p.94). Indagando sobre o caso, o autor descobre que“a mulher agora envergonhava-se por apanhar domarido” (Idem, p. 95). Se a dor física havia sidoplenamente suportável durante anos, a vergonha ea humilhação eram intoleráveis.8

Um segundo aspecto da precedência simbó-lico-moral na compreensão da violência tambémpresente no caso do Timor refere-se a situaçõesnas quais, ante a ausência de agressão física, não sepercebe o sofrimento provocado pelo insulto, pormais que o problema seja verbalizado. Assim, sebater é um ato sujeito a conotações múltiplas nacultura local, ser obrigada pelo marido a obedecê-lo contra a sua vontade é considerado um insultograve: “uma ofensa ao direito que a mulher tem deter a sua opinião e sua vontade respeitadas dentrode casa – desde que, evidentemente, sua vontadenão implique o abandono de seus deveres” (Idem,p. 236). Tomar uma segunda esposa sem consultarou obter o apoio da primeira seria um bom exem-plo do tipo de violência percebida como grave pelapopulação e ocultada no discurso da igualdade degênero (Idem, p. 237). De certo modo, como suge-rido na introdução deste trabalho, esse segundo tipode violência, simbólico-moral, teria sua objetivida-de mais bem fundamentada do que a primeira, es-tritamente associada à agressão física.

Finalmente, para evitar qualquer tipo de socio-centrismo em relação ao Timor Leste, vale lembrarque em 2004 a Suprema Corte do Canadá avaliouuma ação de inconstitucionalidade que contestavao direito de pais e mestres baterem pedagogica-mente nas crianças, e pronunciou-se positivamente,reafirmando este direito desde que houvesse mode-ração nesse sentido. Seria adequado falar em vio-lência neste caso? Ou, em qualquer outro que tives-se como referência agressões consideradas legítimas?

Notas

Uma quarta vertente desse debate tem como referên-cia o trabalho de Carol Guilligan — In a different voice(1982/1993) —, que contrapõe o foco na obediência aregras e na idéia de separação, característica das teoriasde desenvolvimento moral, e predominante entre ho-mens, a precedência atribuída à relação no equaciona-

mento dos mesmos problemas, e que seria mais comumentre as mulheres. Esta perspectiva tem sido retomadana análise de disputas jurídicas nos Estados Unidos(Conley e O’Barr, 1990, 1998).Uma pesquisa realizada por Júlia Brussi em três Juiza-dos Especiais Criminais no DF sugere que esta distân-cia é característica dos Juizados freqüentados por ato-res de baixa renda, não tendo sido registrada no Juizadosituado na área mais rica da cidade (Brussi, 2005).Dois documentários na televisão (Globo Repórter)sobre o tema da “violência” contra a mulher impressio-naram-me com os relatos de mulheres que após anos desofrimento com surras, facadas e até tiros de seus com-panheiros haviam finalmente conseguido uma separa-ção efetiva e tentavam reconstruir suas vidas. Mesmonos casos em que as agressões físicas atingiam níveisabsolutamente inacreditáveis, provocando longos pe-ríodos de convalescença, às vezes superiores a um ano,os relatos sobre as dificuldades de superação dos “trau-mas” psicológicos e de recuperação ou reabilitação daidentidade agredida davam a nítida impressão de queos problemas eram mais graves. O drama da reabilita-ção de uma identidade distorcida após anos de sofri-mento dava sinais claros sobre a importância da dimen-são moral do problema.Os dados em relação a outras unidades da federaçãosão compatíveis com os especificados para Salvador eDistrito Federal, e podem ser consultados em Violênciapor armas de fogo no Brasil, Relatório Nacional – NEV/USP, 2004, coordenado por Maria Fernanda T. Peres.Segundo Gomes de Oliveira (2005, p. 90), Anselmo eNatalício já teriam se confrontado em várias causasinter-relacionadas no Juizado: perdas e danos, lesãocorporal, ameaça, execução de sentença, penhora etc.O manuscrito, intitulado “A invisibilidade do insulto:ou como perder o juízo em Juízo”, foi a base de pales-tras proferidas na Escola Superior do Ministério Públi-co da União em 12 de maio de 2004, e no NúcleoFluminense de Estudos e Pesquisas — Nufep, da UFF,em 4 de agosto do mesmo ano.Roberto Kant de Lima chamou minha atenção para aimportância deste processo de criminalização, ao limi-tar ou mesmo eliminar as possibilidades de uma solu-ção satisfatória para as partes, o qual também caracte-rizaria a atuação dos Jecrims no Brasil.Não se trata de justificar a agressão física sob qualquerângulo, mas de distinguir analiticamente as dimensõesfísica e moral da agressão, sem deixar de atribuir a estaúltima uma precedência conceitual na definição dosatos de violência. Não só devido à dramaticidade dasconseqüências objetivas a ela associadas, mas tambémpor encontrar respaldo na experiência dos atores que,convincentemente, identificam na agressão moral umacontundência singular, totalmente ausente dos atos deagressão física em sentido estrito.

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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS 193

EXISTE VIOLÊNCIA SEMAGRESSÃO MORAL?

Luís Roberto Cardoso de Oliveira

Palavras-chave: Violência; Agressãomoral; Insulto; Direitos; Identidade.

Este artigo propõe a idéia de que nãoseria adequado classificar como violênciaatos de agressão que não contivessem umcomponente moral. Embora este últimotenha um caráter eminentemente simbó-lico, e não material, sua objetividade comoexpressão de violência seria muito maispalpável do que uma agressão física emsentido estrito. A agressão moral é entãodefinida como um insulto, que teria duascaracterísticas básicas: (1) trata-se de umaagressão objetiva a direitos que não podeser adequadamente traduzida em evidên-cias materiais; e, (2) sempre implica umadesvalorização ou negação da identidadedo interlocutor. Também é abordada a di-ficuldade do Judiciário em lidar com estetipo de agressão em que vigora o direitopositivo, gerando insatisfação entre as par-tes e, às vezes, chegando mesmo a contri-buir para o agravamento do conflito.

IS THERE VIOLENCE WITHOUTMORAL AGGRESSION?

Luís Roberto Cardoso de Oliveira

Keywords: Violence; Moral aggression;Insult; Rights; Identity.

The article submits that it is not adequateto classify as violence acts of aggressionthat do not carry a moral component. Des-pite having an eminently symbolic andimmaterial character, such moral compo-nent would carry a much greater objec-tivity as an expression of violence than aphysical aggression in the strict sense ofthe term. Moral aggressions are then defi-ned as an insult, which convey two basiccharacteristics: (1) it is an objective injuryto rights, which cannot be adequatelytranslated into material evidence; and,(2) it always implies some devaluation ornegation of the identity of the interlo-cutor. The paper also addresses the dif-ficulties of the judiciary in dealing withsuch aggressions where positive law pre-vails, producing discontentment amongthe parties and often aggravating theconflict.

PEUT-ON PARLER DE VIOLEN-CE SANS AGRESSION MORALE?

Luís Roberto Cardoso de Oliveira

Mots-clés: Violence; Agression morale;Insulte; Droits; Identité.

L’article défend l’idée qu’il ne serait pasadéquat de classifier les actes d’agressionqui n’ont pas une composante moralecomme étant de la violence. En dépitd’un caractère éminemment symboliqueet non matériel, leur objectivité commeune expression de la violence seraitbeaucoup plus palpable que celle d’uneagression physique au sens strict. L’agres-sion morale est alors définie comme uneinsulte, qui aurait deux caractéristiquesfondamentales : (1) il s’agit d’une agres-sion objective, qui ne peut être adéqua-tement traduite en évidences matérielles;et, (2) elle implique toujours en une dé-valorisation ou une négation de l’identitéde l’interlocuteur. L’article aborde égale-ment les difficultés du pouvoir judiciaireà traiter ce genre d’agression dans laquellele droit positif prévaut, ce qui produitune grande insatisfaction et qui, parfois,contribue à aggraver le conflit.