existe ou não existe a chamada mineiridade?

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Existe ou não existe a chamada Mineiridade? * Leonildo Miranda Mineiridade! Ser ou não ser mineiro? Não posso negar a minha história de vida, a minha essência, a construção de minha identidade, as raízes culturais que embasaram a minha constituição como ser social e humano, acima de tudo. Cresci brincando nos quintais, nos pés de goiaba, entre as folhagens do abacateiro e a laranja campista que invadia a cozinha da casa. Era o leiteiro entregando o leite fresquinho, os burros com cargas de laranja nos balaios de taquara vendidas aos centos, a verdureira Pedrelina com os maxixes e “sambambaias”, o padeiro com o cesto de pães e sua buzina tão esperada, a boiada passando em frente à porta da casa com seus mil bois e os vaqueiros tocando os seus berrantes, o carreiro Teófilo e o cantar gemido do carro de boi. As touradas, então, gritando pelas ruas, lá ia eu cantarolando: é hoje, é hoje, é hoje, o circo da tourada, os home paga tudo e as muié num paga nada. A lona do circo se instalava e lá estávamos eu e meu irmão gêmeo saindo pelas ruas da cidade: eu vi o sol, eu vi a lua, eu vi o palhaço no meio da rua. As procissões e festas formavam um cenário deslumbrante de um cortejo histórico e mítico. Sem contar os causos mirabolantes em volta da fogueira, de onça, lobisomem e assombrações, os enterros que passavam pela porta de casa e que fazia questão de acompanhar: era um ato de consideração. Não sei se existo de fato, sem antes adentrar a minha infância, observando tranquilo o caminhar dos anos passeando pela imaginação. Lá no interior de Minas, Serro, uma cidadezinha entre serras, deixando os sonhos falarem: “ê, Minas! Por detrás dessas montanhas já se pode vê a fumacinha subino. É só fechá os zóio e imaginá uma casinha lá no pé do morro. Dexano iscapuli pela chaminé, aquele cherim cheroso. É sabor de vida, de quero mais. É clima de famia em vorta do fugão a lenha. É fogo crepitano no peito, é calô de amizade. É prazê em recebê os zamigo, é prosa animada, de aconchego. É sabô de infância, de compartilhá aligria. É prazê, é curtura, é história, é carinho, é a essência da nossa gente mineira, uai!”. “Sua bença, pai! Deus bençoe meu filho!” dizia meu pai – é fato, tendo em vista a continuidade desta tradição, hoje, com os meus filhos: Bença, papai! E eu respondo: Deus te abençoe, Marcela, Michelle ou Matheus! - como fosse um eco no descortinar da infância, ainda sinto o clamor da descoberta a se revelar além das montanhas, a veia poética surgindo no delinear da criação, esboçando um contexto místico nas entrelinhas da sensibilidade, em que um arrepio descreve a tessitura do sentir, num

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Existe ou não existe a chamada Mineiridade? * Leonildo Miranda

Mineiridade! Ser ou não ser mineiro? Não posso negar a minha história de vida, a minha essência, a construção de minha identidade, as raízes culturais que embasaram a minha constituição como ser social e humano, acima de tudo. Cresci brincando nos

quintais, nos pés de goiaba, entre as folhagens do abacateiro e a laranja campista que invadia a cozinha da casa. Era o leiteiro entregando o leite fresquinho, os burros com cargas de laranja nos balaios de taquara vendidas aos centos, a verdureira Pedrelina com os maxixes e

“sambambaias”, o padeiro com o cesto de pães e sua buzina tão esperada, a boiada passando em frente à porta da casa com seus mil bois e os vaqueiros tocando os seus berrantes, o carreiro Teófilo e o cantar gemido do carro de boi. As touradas, então, gritando pelas ruas, lá ia eu cantarolando: é hoje, é hoje, é hoje, o circo da tourada, os home paga tudo e as muié num paga nada. A lona do circo se instalava e lá estávamos eu e meu irmão gêmeo saindo pelas ruas da cidade: eu vi o sol, eu vi a lua, eu vi o palhaço no meio da rua. As procissões e festas formavam um cenário deslumbrante de um cortejo histórico e mítico. Sem contar os causos mirabolantes em volta da fogueira, de onça, lobisomem e assombrações, os enterros que passavam pela porta de casa e que fazia questão de acompanhar: era um ato de consideração.

Não sei se existo de fato, sem antes adentrar a minha infância, observando tranquilo o caminhar dos anos passeando pela imaginação. Lá no interior de Minas, Serro, uma cidadezinha entre serras, deixando os sonhos falarem: “ê, Minas! Por detrás dessas montanhas já se pode vê a fumacinha subino. É só fechá os zóio e imaginá uma casinha lá no pé do morro. Dexano iscapuli pela chaminé, aquele cherim cheroso. É sabor de vida, de quero mais. É clima de famia em vorta do fugão a lenha. É fogo crepitano no peito, é calô de amizade. É prazê em recebê os zamigo, é prosa animada, de aconchego. É sabô de infância, de compartilhá aligria. É prazê, é curtura, é história, é carinho, é a essência da nossa gente mineira, uai!”.

“Sua bença, pai! Deus bençoe meu filho!” dizia meu pai – é fato, tendo em vista a continuidade desta tradição, hoje, com os meus filhos: Bença, papai! E eu respondo: Deus te abençoe, Marcela, Michelle ou Matheus! - como fosse um eco no descortinar da infância, ainda sinto o clamor da descoberta a se revelar além das montanhas, a veia poética surgindo no delinear da criação, esboçando um contexto místico nas entrelinhas da sensibilidade, em que um arrepio descreve a tessitura do sentir, num

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estado latente de amor à vida, me fazendo ver além de mim mesmo, esse ser mineiro, nas cozinhas e quintais de Minas, alimentado pelo folclore que colore os saberes e transporta a um estado de plenitude quase mágica, encantando a existência...

Saborear as histórias e causos, atiçando assim, o fogo da imaginação à beira do fogão a lenha, com a figura carinhosa da mãe-preta Tereza, sob um lenço tingido de carvão, fazendo um cafezinho de rapadura, pegando uma brasa nos dedos ou preparando um capitão, bola de comida enrolada na mão, para estimular ainda mais o apetite. Crescer comendo fubá suado, broa de fubá com queijo, apreciar, de cócoras, o meu avô e tios fazendo o

queijo do Serro, a minha avó fazendo o sabão de cinzas, a horta toda irrigada, o moinho de fubá sendo tocado pela água corrente, aquele carneiro jogando os jatos de água, cantando em meus ouvidos: reco... reco... reco... Essa canção da liberdade ao expressar a natureza perene da mineiridade que se instalou em mim não me deixa quaisquer dúvidas sobre a minha identidade mineira, esse caipira que se perpetuou na veia e no coração de quem deixa transparecer naturalmente esse estado de alma: sou mineiro da gema, com muita honra. Sou caipira, caapora, morador do mato, que, numa amplitude mais além, caracteriza toda a humanidade, pois o praneta Terra é uma rocinha de Deus no universo. Venho do interior de minhas raízes culturais, na construção de minha história pessoal, de minha identidade, de minha alegria de ser parte de um povo forte, receptivo, feliz por natureza, convivendo com a simplicidade e que se alegra com pouca coisa.

Como mencionei em um dos meus livros, Causos e lendas do folclore brasileiro, “Ser mineiro é ser paciente, é esperar a hora certa. Principalmente, mordiscando umas quitandas assadas em forno de barro com cafezinho de rapadura. Não é preciso pressa, porque mineiro não perde o trem. Não carece de ter o muito, despeja logo um sorriso, desculpa para uma boa prosa. Mineiro não se aperreia à-toa, se contenta com pouco. Ele reinventa uma história, que parece ficar mais bonita, florida, dessas flores de colocar na janela, quando faz serenata para a lua alumiar o coração das pessoas. Mineiro não toma assento, fica de cócoras. Mineiro não deita, espicha as pernas. Mineiro não descansa na enxada, é mais um pretexto para espiar as formigas. Para o mineiro, saber plantar, é mais do que remexer a consciência, é semear esperança. É dormir tranquilo, com a cabeça leve, convidando ao sorriso, os que baterem em sua porta, porque sempre haverá algo de si mesmo para oferecer.” Eu sou mineiro de coração. Eu sou mineiro, uai!

Mito ou verdade? História ou inventividade? “Cada quar, cada quar...” Mas Minas são muitas, como dizia Guimarães Rosa. Fui crescendo em minha ideologia de aprendiz, como pesquisador, escritor, poeta, ator e diretor de

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teatro, e tento até hoje, porque ainda não sei nada, assimilar o que a escola da vida, que não dá diploma, e que muitas vezes nos dá a oportunidade de aprender com quem nunca estudou, extraindo da existência, o sentimento de amor à vida, às pessoas, à terra, à família, aos amigos e também aos desconhecidos. Ao adentrar as matas do inconsciente, “São Bento, água benta, Jesus Cristo no altar, arreda os bicho mal do caminho, prus fio de Deus passá”, deixo-me passar por esse caçador de valores culturais, na alegoria de um Curupira imaginário que tenta revelar a própria história.

Em outra leitura, diversas leituras: a dos olhares, às vezes distraídos, sofismando uma frase provinda de um outro tempo: “educação vem do berço!”. A leitura da simplicidade de quem não se distancia dos que se intitulam doutores do saber comprometido com a educação intelectual e profissional, mas que, tomara Deus, não se esqueçam do

quesito sensibilidade, e muito menos permaneçam indiferentes à própria identidade histórico-cultural, permitindo-se assim, viajar no tempo em que se escoa o cheiro melado do café de rapadura pelo terreiro afora, e reparar o barulhinho dos biscoitos de goma quebrando lá den dos zorvido. Podendo então, respirar o olor das manhãs de Minas, sem dizer que nunca viu a avó pela greta. Brincar nos quintais da

fantasia, carregados de sonhos e se esconder atrás da porta, para assustar a quem passe, quando a luz da usina se apaga, ficando aquele breu, com a precisa impressão de passos se arrastando no assoalho da casa abandonada.

Deixo aqui o meu agradecimento pela vida, pela oportunidade de ter nascido em uma terra abençoada pela graça de Deus, essas Minas Gerais, esse berço tão rico de tudo. De história, de cultura, de saber, de paz, de alegria, riquezas perenes que me fizeram aprender a crescer e a ser humano.

* Leo(nildo) AraújoEscritor, poeta, ator, diretor e dramaturgo www.leoleo.com.br

Esse artigo foi publicado na Revista Eletrônica – Jornalismo – Newton Paiva – Maio/2010