existe algo que se possa chamar de “arqueologia brasileira”?

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ESTUDOS AVANÇADOS 29 (83), 2015 7 A Ulpiano Bezerra de Meneses, mestre. Introdução USO do patrimônio arqueológico para construção de identidades nacio- nais foi uma prática corriqueira no século XX. O caso mais famoso talvez seja o da Rodésia: antiga colônia inglesa do sul da África, nomeada em homenagem a Cecil Rhodes, exemplar acabado de capitalista neocolonial in- glês do final do século XIX; o país foi, após a expulsão da minoria branca que o controlava politicamente, rebatizado Zimbabwe, nome de um famoso sítio arqueológico localizado em seu território. O caso do sítio de Zimbabwe é sinto- mático porque a história das investigações ali realizadas mostra como arqueólo- gos europeus ou de origem europeia tiveram ao longo de décadas uma imensa dificuldade em aceitar uma autoria africana, negra e nativa, para as estruturas monumentais de pedra que o constituem (Trigger, 1989). Na década de 1930, são também conhecidos os usos de dados arqueológi- cos para identificar a suposta origem dos ancestrais arianos dos alemães nazistas. Na Índia, na década de 1990, disputas sobre origem, autenticidade e associa- ções entre diferentes grupos religiosos hindus e mulçumanos e os templos em Ayodhia, mediadas em parte por arqueólogos a quem cabia conferir atestados de autenticidade aos vestígios, levaram à eclosão de conflitos violentos entre os grupos litigantes. Na América Latina, é notável como México e Peru estabele- ceram também narrativas nacionais a partir de usos distintos de parte de seus patrimônios arqueológicos (Tantaleán, 2014). O imponente edifício do Museu Nacional de Antropologia, localizado no bosque de Xapultepec, na cidade do México, e que tem em seu centro o famoso disco do sol asteca, é um exemplo de como, naquele país, o projeto de nação construído no século XX escolheu o passado asteca, em detrimento de outros grupos como os zapotecas ou maias, como maior representante da nacionalidade. Os exemplos são inúmeros e podem ser repetidos à exaustão. É, portanto, natural que arqueólogos contemporâneos desconfiem de projetos de arqueolo- gias nacionais. O caso do Brasil é ainda mais complexo: embora nossas atuais fronteiras tenham, de maneira geral, se constituído já no século XVIII, graças em boa parte à política Pombalina, tal unidade territorial foi forjada a sangue e fogo logo após a independência, ao longo do período regencial e no início do segundo reinado, para ser somente efetivada graças às ações de Rio Branco, Existe algo que se possa chamar de “arqueologia brasileira”? EDUARDO GÓES NEVES I O

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O texto formula a questão da existência de um corpo de problemas e dadosparticulares que sejam exclusivos, ou ao menos uma prerrogativa, da arqueologia brasileira.Como resposta, propõe um exame das características do próprio registro arqueológico,suas ambiguidades e lacunas.

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ESTUDOS AVANADOS 29 (83), 2015 7A Ulpiano Bezerra de Meneses, mestre.IntroduoUSO do patrimnio arqueolgico para construo de identidades nacio-nais foi uma prtica corriqueira no sculo XX. O caso mais famoso talvez seja o da Rodsia: antiga colnia inglesa do sul da frica, nomeada em homenagemaCecilRhodes,exemplaracabadodecapitalistaneocolonialin-gls do nal do sculo XIX; o pas foi, aps a expulso da minoria branca que ocontrolavapoliticamente,rebatizadoZimbabwe,nomedeumfamosostio arqueolgico localizado em seu territrio. O caso do stio de Zimbabwe sinto-mtico porque a histria das investigaes ali realizadas mostra como arquelo-gos europeus ou de origem europeia tiveram ao longo de dcadas uma imensa diculdadeemaceitarumaautoriaafricana,negraenativa,paraasestruturas monumentais de pedra que o constituem (Trigger, 1989). Na dcada de 1930, so tambm conhecidos os usos de dados arqueolgi-cos para identicar a suposta origem dos ancestrais arianos dos alemes nazistas. Nandia,nadcadade1990,disputassobreorigem,autenticidadeeassocia-es entre diferentes grupos religiosos hindus e mulumanos e os templos em Ayodhia, mediadas em parte por arquelogos a quem cabia conferir atestados de autenticidade aos vestgios, levaram ecloso de conitos violentos entre os grupos litigantes. Na Amrica Latina, notvel como Mxico e Peru estabele-ceramtambmnarrativasnacionaisapartirdeusosdistintosdepartedeseus patrimnios arqueolgicos (Tantalen, 2014). O imponente edifcio do Museu Nacional de Antropologia, localizado no bosque de Xapultepec, na cidade do Mxico, e que tem em seu centro o famoso disco do sol asteca, um exemplo de como, naquele pas, o projeto de nao construdo no sculo XX escolheu o passado asteca, em detrimento de outros grupos como os zapotecas ou maias, como maior representante da nacionalidade.Os exemplos so inmeros e podem ser repetidos exausto. , portanto, natural que arquelogos contemporneos desconem de projetos de arqueolo-giasnacionais.OcasodoBrasilaindamaiscomplexo:emboranossasatuais fronteiras tenham, de maneira geral, se constitudo j no sculo XVIII, graas emboapartepolticaPombalina,talunidadeterritorialfoiforjadaasangue efogologoapsaindependncia,aolongodoperodoregencialenoincio do segundo reinado, para ser somente efetivada graas s aes de Rio Branco, Existe algo que se possa chamar de arqueologia brasileira?EDUARDO GES NEVES IODOI 10.1590/S0103-40142015000100002ESTUDOS AVANADOS 29 (83), 2015 8Joaquim Nabuco e outros j na virada do sculo XIX para o XX. Embora est-veis, muitos dos limites fsicos do Brasil so arbitrrios, como o caso de nossa grandefronteiracomaColmbia,marcadaporumalinharetaqueatravessa bosques e rios, e divide ao meio povos indgenas aparentados, por centenas de quilmetros,desulanorte,desdeacidadedeTabatingaatorioTiqui,na chamada cabea de cachorro do alto rio Negro.Nesse sentido estrito, no se pode falar em algo como arqueologia brasi-leira, principalmente quando se considera que tal arqueologia nada mais que a histria dos povos que aqui habitavam antes da chegada dos europeus, quando o Brasil ainda no existia. Difcil separar, por exemplo, o contexto arqueolgico dos pampas gachos e uruguaios. Na extremidade oposta, o rio Oiapoque no funciona como uma fronteira que marque diferenas notveis entre as arqueolo-gias do Amap e da Guiana Francesa (Rostain, 2012). Por outro lado, foroso reconhecerque,dopontodevistainstitucional,existesimumaarqueologia brasileira, representada por um nmero crescente de cursos de graduao e pro-gramasdeps-graduaoeorganizadalegalmenteporumasriedenormas resultantesdoesforodeintelectuaiscomoRodrigoM.F.Andrade,Mrio de Andrade e Paulo Duarte que protegem e regulam o acesso ao patrimnio arqueolgico nacional mediante a atuao do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Iphan).Feitas essas ressalvas conceituais e prticas, poder-se-ia, mesmo assim, in-dagar se h algum corpo de problemas ou mesmo categorias de vestgios cujo estudo seja prerrogativa nica, ou ao menos preferencial, da arqueologia que faz no Brasil e que somente ela tenha capacidade de estudar?1A arqueologia uma cincia que se consolidou no nal do sculo XIX no contexto do colonialismo europeu e, posteriormente, no sculo XX, no neoco-lonialismo norte-americano. , portanto, natural que na Amrica Latina, embo-ra de maneira mais atenuada no Mxico e no Peru, o desenvolvimento da teoria arqueolgica tenha sido tributrio de desenvolvimentos ocorridos na Europa e nos Estados Unidos. De certo modo, esse ainda o quadro que se nos apresenta no incio do sculo XXI: com exceo da arqueologia social latino-americana, j criticamente avaliada em seus acertos e erros, existem ainda esforos tmidos no sentido da produo de um corpo terico e metodolgico que seja prprio ao contexto latino-americano, em geral, e sul-americano, em particular (Tantalen; Aguilar, 2012). Por exemplo, na arqueologia das terras baixas tropicais, um dos temas dominantes das ltimas dcadas tem sido o esforo em identicar a emer-gncia da chamada complexidade social um sinnimo para designar o surgi-mento de sociedades hierrquicas que no fundo uma das pautas de pesquisa estabelecidas pela chamada escola processualista h mais de quarenta anos nos Estados Unidos (Roosevelt, 1991). sabido e discutido como um dos pilares do processualismo foi o estabe-lecimento de uma distino conceitual entre histria e processo, cabendo a esse ESTUDOS AVANADOS 29 (83), 2015 9ltimo o papel de objeto digno de investigao cientca, enquanto a primeira seria relegada lata de lixo do particularismo (Trigger, 1978). Tal distino afas-ta, de sada, uma das contribuies mais ricas que a arqueologia sul-americana podefazersHumanidades.Essacontribuiopartedapremissadeque,no estudo da Amrica do Sul antiga, a arqueologia , antes de tudo, histria. Mais do que retrica, a distino entre histria e processo no contexto sul-americano importanteporqueoexamedetalhado,feitoluzdasevidnciasempricas, de processos vistos a distncia como aparentemente clssicos, universais e, por-tanto, padronizados na literatura arqueolgica internacional, tais como a emer-gncia do Estado ou o incio da produo de alimentos, mostra, nos trpicos do Novo Mundo, trajetrias mais ricas e diversicadas que fogem aos esquemas tipolgicos evolutivos consagrados. Desse confronto, percebe-se que a elabora-o de tais esquemas que posicionam, por exemplo, o surgimento do Estado e da desigualdade social como etapas fundamentais na histria da humanidade segue muito mais preceitos ideolgicos que propriamente um exame abrangente das evidncias disponveis para todo o planeta.De fato, parece cada vez mais claro que as sociedades sul-americanas an-tigas operavam em um contexto de uidez permanente que fora a elaborao de outras categorias interpretativas. Pode ser que tenha chegado o momento, na Amrica do Sul em geral e em sua poro tropical em particular, de olhar menos para fora do continente em busca de referncias tericas e, ao contrrio, de se fazer o movimento inverso: o de um mergulho profundo nas evidncias que se tm construdo que, aliado diculdade em se aplicar os conceitos produzidos em outros contextos, possa contribuir para a elaborao de um quadro terico maisricoemenosarticial,eque,paradoxalmente,possaterumarelevncia conceitual que v alm do continente.Se vivel, tal movimento poder emular algo que ocorreu h mais de trs dcadas na antropologia social das terras baixas. Em um trabalho hoje conside-radoclssico,intituladoAconstruodapessoadassociedadesindgenasbrasi-leiras, Anthony Seeger, Roberto da Matta e Eduardo Vieiros de Castro (1979) notaram como cada regio etnogrca do mundo teve seu momento na hist-ria da teoria antropolgica, imprimindo seu selo nos problemas caractersticos entre pocas e escolas. Assim, a Melansia descobriu a reciprocidade, o sudeste asiticoaalianadecasamentosimtrica,africaaslinhagens,abruxariaea poltica. Ainda para esses autores aoriginalidadedassociedadestribaisbrasileiras(demodomaisamplo, sul-americanas) reside numa elaborao particularmente rica da noo de pessoa, com referncia especial corporalidade enquanto idioma simb-lico focal. Ou, dito de outra forma, sugerimos que a noo de pessoa e uma considerao do lugar do corpo humano na viso que as sociedades indgenas fazem de si mesmas so caminhos bsicos para uma compreen-so adequada da organizao social e cosmologia destas sociedades. ESTUDOS AVANADOS 29 (83), 2015 10O uso do conceito de noo de pessoa como ferramenta analtica abriu um caminho fundamental para a etnologia indgena das terras baixas sul-americanas, dandoaessecampodoconhecimentoumpapeldedestaquenaproduode teoriasantropolgicasquevoalmdocontextosul-americano.,portanto, legtimo se considerar que um movimento semelhante se pode gestar no mbito da arqueologia brasileira. Qual seria, nesse sentido, a contribuio terica ori-ginal que a arqueologia do Brasil e do trpicos americanos pode fazer teoria arqueolgica? O contexto sul-americano se presta bem a responder esse tipo de pergunta por algumas razes que irei brevemente enumerar. Em primeiro lugar, porque Vista do Stio Sol de Campinas do Acre, com um conjunto de montculos dispostos em forma circular ao redor de uma praa central com uma estrada linear saindo em direo noroeste.Foto Deyvesson GusmoESTUDOS AVANADOS 29 (83), 2015 11o continente foi provavelmente o ltimo do planeta a ser ocupado pelo Homo sapiens. O debate sobre a antiguidade da ocupao humana dessas terras certa-mente intenso e est longe de ser resolvido. H, no entanto, um consenso, talvez um pouco conservador, de que toda a Amrica do Sul era certamente ocupada h pelo menos cerca de onze mil anos, seno antes, e que, o que importante, tais ocupaes antigas j mostravam padres adaptativos e econmicos distintos entre si. Aps a ocupao inicial, e o consequente e aparentemente rpido pro-cesso de diferenciao e especializao que a ela se seguiu, o continente perma-neceu relativamente isolado durante a maior parte de sua histria at o incio da colonizao europeia, no incio do sculo XVI. Isso quer dizer que quaisquer processosdemudanaoudeestabilidadevericadosemdiferentespartesdo continente resultaram da ao de fatores puramente locais, locais aqui deni-dos em uma escala continental. Trata-se de um quadro essencialmente diferente, porexemplo,doscontinenteseuropeueasitico,ondehevidnciasdeque processosdeexpansodemogrcatranscontinentaisteriamsidoresponsveis pela introduo de inovaes como a agricultura ou mesmo o Estado.OisolamentogeogrcodaAmricadoSulaindamaisinteressante quando se considera o quadro de diversidade social, cultural, econmica e po-ltica presente no continente poca do incio da colonizao europeia. Todo esse quadro se constituiu por populaes que descendiam de um nico ou de poucos grupos humanos fundadores (Rasmussen et al., 2014). por isso que, para a arqueologia, possvel se tratar a Amrica do Sul como uma espcie de laboratrio: foi o ltimo continente a ser ocupado no planeta, por uma popu-laofundadorapequena,masqueaocabodealgunsmilniosexibiatodoo quadro de diversidade social e poltica caracterstico da humanidade. Tal quadro se desenvolveu em um contexto de isolamento de outros continentes, ou seja, apenas variveis locais atuaram em sua constituio. Isso no aconteceu por toda parte: na Austrlia e Nova Guin, por exemplo, a ocupao humana ainda mais antiga que na Amrica do Sul, mas no se vericou nesses locais, por exemplo, a emergncia de formaes polticas, como o Estado, a despeito do isolamento peridico da Oceania com relao sia ao longo de milnios (Kirch, 2000).Ao contrrio, portanto, da melansia, parece que as sociedades antigas sul--americanas, ou pelos menos algumas delas, lograram cumprir uma espcie de ciclo histrico completo, em uma trajetria que se inicia com modos de vida organizadosembandoseterminacomsociedadeshierarquizadas.Umexame mais prximo dessa trajetria mostra, no entanto, uma srie de rudos ou des-vios que comprometem a coerncia interna do discurso e que sero brevemente aqui enumerados.Economias paleondias OregistroarqueolgicodaocupaoinicialdaAmricadoSulnunca acomodoumuitobemodiscursodequeasocupaeshumanasdonaldo Pleistoceno e incio do Holoceno, ao redor de dez mil anos atrs, teriam sido ESTUDOS AVANADOS 29 (83), 2015 12caracterizadas pela caa de animais de grande porte. Essa hiptese vem despen-cando a olhos vistos nos ltimos anos, na medida em que acumulam evidncias de ocupaes anteriores transio Pleistoceno/Holoceno, e, mais importante para a discusso aqui proposta, ca cada vez mais claro que no houve uma nica estratgia econmica caracterstica das primeiras ocupaes do continente. De fato, parece que, desde o incio, a diversidade, e no a padronizao, foi a marca da ocupao do continente (Politis; Prates; Prez, 2009). A produo de alimentos As evidncias de produo de alimentos, principalmente de domesticao de plantas, no Novo Mundo so quase to antigas quanto em qualquer outra parte do planeta. Na Amrica do Sul, h evidncias antigas de domesticao de milho e abboras na regio da bacia de Guayas, litoral do Equador; de abbo-ras, feijes e coca em Jama/Jequetepeque do Peru; mandioca na regio do vale do Cauca na Colmbia (Piperno, 2011). Tal diversidade de centros antigos de domesticao ou cultivo de plantas domesticadas pode ser vista como reexo do padro de diversidade cultural acima esboado. , no entanto, curioso que, ao contrrio do Velho Mundo, onde o advento da produo de alimentos est de algum modo direta ou indiretamente ligado emergncia da vida urbana, em casos como Jeric, atal Hyk ou Gbekli Tepe, no h, na Amrica do Sul, uma correlao imediata entre a domesticao de plantas e a emergncia da vida sedentria,muitomenosdourbanismo.Arquelogos,temosumadiculdade imensaemlidarcomcasoscomoesses,eaconsequnciaaproliferaode termos deselegantes, e conceitualmente pouco ecientes, como horticultores incipientes. Por sinal, talvez seja o caso de banir a expresso incipiente da li-teratura arqueolgica nacional, no s pela feiura da palavra, mas principalmente pelaperspectivaanacrnicaqueenxergaahistriacomoumaestradademo nica que levasse vida urbana e ao Estado, sendo incipientes os grupos que iniciaram tal viagem e no conseguiram complet-la. O exemplo da Amrica do Sul importante porque talvez nos force a adotar e melhor compreender a pro-posta de separao, feita por Rindos (1984) h mais de trinta anos, entre domes-ticao e agricultura. Se no Velho Mundo a domesticao de plantas e animais le-vou ao desenvolvimento de modos de vida agropastoris, por que no considerar, na Amrica do Sul, a possibilidade de que sociedades viveram por milnios com modos de vida que incluam o consumo de plantas domesticadas e selvagens sem que estivessem a caminho de modos de vida plenamente agrcolas?A cermica As cermicas mais antigas das Amricas foram encontradas em contextos tropicais nas terras baixas sul-americanas: em Valdivia, no litoral do Equador; em San Jacinto e Puerto Hormiga, no baixo rio Magdalena, norte da Colmbia; nos sambaquis do litoral amaznico, no Brasil; e tambm em sambaquis uviais no baixo rio Amazonas. Nesse ltimo caso, as datas do sambaqui de Taperinha indi-cam a produo cermica h cerca de sete mil anos (Barnett; Hoopes, 1995). O ESTUDOS AVANADOS 29 (83), 2015 13contexto da produo antiga de cermica nas terras baixas interessante porque todos esses complexos antigos so bem diferentes uns dos outros, indicando que no houve um nico centro original de produo. Mais interessante ainda o fato de que, em alguns desses contextos, a cermica claramente no funcionava para o processamento ou armazenamento de alimentos, conforme se mostrou para o contexto do stio San Jacinto II, no norte da Colmbia. A presena de cermicas antigas em contextos de ocupaes as quais, malgrado as evidncias de plantas domesticadas no registro, no se pode dizer que se tratava de grupos agricultores cria uma srie de problemas para a aplicao mecnica de conceitos como Arcaico ou Formativo, do mesmo modo que difcil o uso dos con-ceitos de agricultor incipiente, horticultor etc. A adeso cega a tais categorias classicaria por exemplo como Arcaicos stios monumentais, mas sem a presen-a de cermica, como Caral, localizado no litoral norte-central do Peru e com datas iniciais em cerca de 3.500 a.C., e como Formativos stios muito menores e mais antigos, mas com presena de cermica, localizados em outras partes do continente. Em outras palavras, at que ponto o uso de conceitos como Arcaico ou Formativo mais mascara que elucida o que de fato se pretende entender que soasdiferenteshistriascujostestemunhosenviesadosjazementerradosnos desertos, pampas ou orestas do continente? (Neves, 2007).O Estado Para os que trabalham nas terras baixas da Amrica do Sul, a sombra do Estado e a do monumentalismo se fazem projetar com um efeito muito maior Cermicas do Sambaqui Monte Castelo, Rio Guapor, com cerca de 3.800 anos, algumas das mais antigas das Amricas. Foto Eduardo NevesESTUDOS AVANADOS 29 (83), 2015 14que os seis mil metros de altitude da Cordilheira dos Andes. A arqueologia sul--americana convive j h dcadas com o mito fundador que concede s terras al-tas a primazia pelas inovaes culturais no continente. De todas essas primazias, o Estado talvez tenha sido a mais cobiada. Talvez por causa disso, arquelogos das terras baixas tm passado os ltimos vinte anos tentando mostrar que havia sociedades complexas e hierarquizadas, por exemplo, na Amaznia. Na ausncia deevidnciascompatveiscomumaespciedelistaquequaliquetaissocie-dades como Estados, construiu-se um argumento que associa complexidade com sociedades do tipo cacidado. No irei aqui discorrer sobre os problemas ensejadosportalassociao,masdenitivamentemepareceerradoequiparar complexidade com hierarquia. A antropologia cultural j nos mostra h dcadas que sociedades simples, no hierarquizadas, podem de fato ser bastante comple-xas, por exemplo, em suas relaes de parentesco ou sistemas de classicao da natureza.Dequalquermodo,osarquelogosamazonistasparecemtersidobem--sucedidosemseuintentodebuscadesociedadescomplexasoucacicadosna oresta tropical. H hoje bons exemplos de conjuntos de stios arqueolgicos emaltoXingu,Maraj,Santarm,AmazniaCentraleBolviaqueindicama presena de sociedades sedentrias, formas claras de modicao da paisagem e algum tipo de hierarquia associada mobilizao de mo de obra para constru-odeestruturasmonumentais(Heckenberger;Neves,2009).Taisexemplos desaamaetnologiadasterrasbaixasaincorporarosdadosarqueolgicosna formulao de hipteses sobre as polticas amerndias, j que no h exemplos etnogrcos comparveis. Quando estudadas, no entanto, numa perspectiva de histria,verica-sequeessasformaessociaishierarquizadasecentralizadas tinham uma tendncia fragmentao, dissoluo, mesmo antes da conquista europeia. Esses movimentos centrfugos podem talvez ser explicados, em uma outra escala, a partir dos processos de recusa ao Estado propostos h quarenta anos pelo etnlogo francs Pierre Clastres (2003) em livros como A sociedade contra o Estado. Uma vez mais, a aplicao mecnica de conceitos como caci-cado, ao menos nas terras baixas, parece mais atrapalhar que ajudar a entender taishistrias,dadaaefemeridadedetaiscacicadosreveladanoregistroarqueo- lgico.Ainsistnciaemsuaaplicaolevar,emltimaanlise,proliferao de adjetivos como simples, efmero, transitrio ou o j famigerado in-cipiente.Espero ter mostrado, ainda que brevemente, por meio dos exemplos aqui apresentados, as imensas limitaes que a herana tipolgica coloca para o en-tendimento das diferentes histrias antigas dos povos indgenas da Amrica do Sul. A crtica aqui esboada no original e j foi feita sob diferentes aspectos, conceituais e tambm prticos. J perto do nal desta reexo, legtimo voltar pergunta que orientou o caminho aqui percorrido: Existe uma contribuio terica original que arqueologia brasileira pode fazer disciplina?ESTUDOS AVANADOS 29 (83), 2015 15Apesardenoterrepostaclaraaestapergunta,estoucertodequeela passa por uma aproximao dos conceitos de histria e temporalidade das socie-dadesindgenassul-americanas.Almdoimperativopoltico,edaprpriaur-gncia, que tem uma arqueologia indgena na Amrica do Sul, o entendimento de outras formas de conceber a histria formas essas cristalizadas nos prprios objetos e contextos estudados pelos arquelogos contribuir para sosticao da disciplina.Lembro-me tambm de minha prpria experincia de arquelogo traba-lhando em terras indgenas em diferentes partes da Amaznia. Dessas experin-cias aprendi que ao menos para os grupos Tukano do rio Uaups, na fronteira com a Colmbia, e Palikur do rio Ua, na fronteira com a Guiana Francesa a histria no est inscrita nos objetos e tampouco so os objetos utilizados como ndices para a construo das narrativas histricas. A histria, nesses casos, est inscrita na paisagem, nas montanhas, nos aoramentos rochosos e nas cachoei-ras, alm dos prprios mitos, borrando assim a separao articial entre mito e histria.Da incorporao desses princpios pode surgir a constatao de que a his-tria no cumulativa, tampouco uma echa apontando para o futuro. Nessa perspectiva, passam a fazer sentido o padro cclico das dinmicas sociais, a eter-na transio para a agricultura e, acima de tudo, o anacronismo da ideia de incipincia. Por outro lado, diculdades metodolgicas enormes se apresentam nesse quadro, s vezes em se fazer uma arqueologia sem artefatos, mas justa-mente do confronto com tais problemas que uma contribuio original poder advir.J no nal de sua vida, Claude Lvi-Strauss, em uma srie de entrevistas concedidas ao lsofo Didier Eribon armou: Meu respeito pela histria, o gos- toquetenhoporelaprovmdosentimentoqueelameddequenenhuma construodoespritopodesubstituiramaneiraimprevisvelcomoascoisas realmenteaconteceram(Lvi-Strauss;Eribon,2005).NaAmricadoSul,a histria antiga do continente se inscreveu de uma maneira que desaa, quando observada sob a lente da histria, a aplicao de esquemas tipolgicos desenvol-vidos para outros contextos. Como disse Bruce Trigger h quase quarenta anos, o futuro da arqueologia o passado. nesse passado imprevisvel que mora a riqueza da arqueologia do Brasil. O desao tentar entend-lo em uma poca emque,paradoxalmente,nuncahouvetantosarquelogos,mastambmem que ele nunca esteve to ameaado. Nota1 A discusso aqui apresentada se restringe arqueologia das ocupaes anteriores ao in-cio da colonizao europeia. A chamada arqueologia histrica tem feito suas prprias contribuies originais nos ltimos anos, que no sero aqui discutidas.ESTUDOS AVANADOS 29 (83), 2015 16RefernciasBARNETT, W.; HOOPES, J. (Ed.) The emergence of pottery: technology and innova-tion in ancient societies. Washington: Smithsonian Institution Press, 1995.CLASTRES,P.AsociedadecontraoEstado:pesquisasdeantropologiapoltica.So Paulo: Cosac & Naify, 2003.HECKENBERGER,M.;NEVES,E.G.AmazonianArchaeology.AnnualReviewof Anthropology, v.38, p.251-66, 2009.KIRCH, P. V. On the road of the wind: an archaeological history of the Pacic Islands before European contact. Berkeley: University of California Press, 2000.LVI-STRAUSS, C.; ERIBON, D. De perto e de longe. 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Como resposta, prope um exame das caractersticas do prprio registro arqueo-lgico, suas ambiguidades e lacunas.PALAVRAS-CHAVE: Arqueologia, Terras Baixas da Amrica do Sul, Teoria Arqueolgica, ndios do Brasil, Patrimnio Arqueolgico.ABSTRACT This text addresses the question of the existence of a particular set of proble-ms or data that could be characteristic of Brazilian archaeology proposing that archae-ologists should look at the archaeological record of tropical lowland South America on its own to nd the answers.KEYWORDS: Archaeology, Lowland South America, Archaeological theory, Brazilian In-dians, Archaeological Heritage.Eduardo Ges Neves pesquisador no Laboratrio de Arqueologia dos Trpicos, Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de So Paulo.@ [email protected] em 7.3.2015 e aceito em 13.3.2015.I Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de So Paulo, So Paulo/SP, Brasil.ESTUDOS AVANADOS 29 (83), 2015 18