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EXERCÍCIO 11 Nietzsche, o imperdoável Clint Eastwood e os assassinos por natureza (Heroísmo e violência)

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EXERCÍCIO11Nietzsche,oimperdoávelClintEastwood

eosassassinospornatureza(Heroísmoeviolência)

I-Introdução

Se o cinema convida a incluir a emocionalidade dentro do conceito,fazendo-a interagir com o elemento lógico, Nietzsche é o ilósofo –di icilmente assimilável por nossa cultura – que estendeu um véu desuspeita radical sobre osmilenarmente apregoadosdireitos daRazão, daVerdadeedaMoral,emsuapretensãodeesgotarosentidodomundo.O elemento “pático” desempenha nos textos e nas ideias de Nietzsche

um papel tão fundamental quanto no cinema, ou talvez muito mais, deformaquea linguagem logopáticadas imagensnãopoderáproblematizareste ilósofodamesmamaneiraquefezcomPlatão,Aristóteles,SãoTomás,Descartes ou Kant, nem sequer superá-lo vitalmente, como no caso deHegel e Schopenhauer.Ocaráteracentuadamenteartísticodopensamentoe do estilo expositivo nietzschiano o torna um ilósofo fatalmente“cinematográ ico”, de forma que não se pode esperar um con lito frontalentreNietzscheeocinema.AssimfalouZaratustra pode ser consideradooprimeirofilmefilosóficodahistóriadopensamento.Ao contrário, Nietzsche consideraria ainda a própria noção de uma

“razão logopática” um produto marcado pelo intelectualismo niilista eantivital que combate ou um resíduo do desejo de reduzir o mundo aesquemas compreensivos, mesmo que o façam, desta vez, através de“imagens conceituais”. Segundo Nietzsche, o mundo só pode ser aludidoatravésdesignos indiretosedemetáforas.Oencontroentre linguagememundoestáessencialmenteperturbado,eosvaloreshumanoscondenadosaocampodo indiretoedoalusivo.Toda linguagemé retórica.Nomáximoserá possível realizar um estudo genealógico do desejo ilosó ico deconhecer do homem, que não se conforma simplesmente com viver omundo e padecê-lo, situando este instinto particular no contexto davitalidade. O interesse pelo saber seria visto como uma paixão, como ummovimentoparticulardavida.Umestudogenealógicodessanaturezaserianecessárioparasaber,igualmente,oqueéqueohomemécapazdefazercomaverdade,umavezdescoberta.As morais dos bons sentimentos e intenções, incluídas as morais

socialistas,sãovistasporNietzschecomoumprodutoespecialmentenocivodoracionalismomoralistaecognitivista.Osgrandes ideaismoraisnãosão– para Nietzsche – nada mais que iguras poderosas do que denomina“VontadedePotência”,atendênciacegaqueosorganismospossuemdeseexpandir em detrimento de forças contrárias, a necessidade de dominar,de ocupar, de submeter, nem sequer em busca do suposto “prazer” que

isso poderia proporcionar, mas pela pura força expansiva. Não há aínenhum “instinto de preservação”, nem nenhum objetivo hedonista nomovimento irrefreável da Vontade de Potência, somente um organismotentandoseresermais.Lógica e Moral são epifenômenos desta força vital fundamental, que

deve ser estudada por uma nova psicologia profunda, livre dasingenuidades habituais das psicologias consciencialistas. Livrar-se dospreconceitosmorais,baseadosemumapsicologialinear,foiamissãodesteilósofo singular e – até hoje – solitário ou incompreendido, apesar dosmuitosestudosdedicadosaele.À luz do erro fundamental do ponto de vista moral sobre o mundo,

produziu-se – segundo Nietzsche – uma autêntica inversão dos valores:tudooqueévital,exuberante,ricoecriadorfoicombatidocomoperigosoeincontrolável, enquanto o manso, medíocre, inofensivo (todo o “bom”, o“bem-intencionado”) foi elogiado e promovido às mais altas esferas devalor.Oigualitarismodemocrático,cristãoesocialistaimperaportodoladoe os espíritos superiores e criativos correm perigo de extinção,sistematicamente derrotados pela moral dos fracos, que sempreconseguempredominaratravésdesuaspráticassub-reptícias,vingativaseressentidas.Estes espíritos baixos têm o enorme poder de ser numerosos, já que

invadem literalmente o mundo e o dominam por meio da tiraniademocráticaeda iloso iaascética.Masavidaéessencialmenteviolentaenão se pode acabar com essa violência (por exemplo, através de umaorganizaçãodiferentedotrabalhoedavidasocial,comoqueriaMarx),poisos homens são naturalmente exploradores de outros homens e outrosseres, e querer eliminar isso seria como amputar ummembro ou retiraruma parte do cérebro. Os homens fortes e criadores são obrigados, nassociedadesmodernas,asetransformaremdelinquentes,asombradoquepoderiam ser em uma sociedade de homens fortes, embriagados devitalidade.

II

Setehomenseumdestino (EUA,1960),deJohnSturges:Ocon litoentreHeroísmoeMoralidade.Os imperdoáveis (EUA, 1992), de Clint Eastwood:Amaravilhosa volta do

velhopistoleiro.Assassinos por natureza (EUA, 1994), de Oliver Stone:A violência como

formadeser.

Nãodeixa de ser curioso que os chamados ilmes de caubóis de classeBapresentemaviolênciaemestadopuroesemafetaçõesmoralistas(comoofazem também, atualmente, os ilmes de Silvester Stallone com a sérieRambo),talvezporqueestes ilmessejamabertamentedirigidosàsclassessociaismaisbaixas,quecostumamtercomaviolênciaumtipoderelaçãomaisdesinibidaenaturaldoqueasclassesmaisaltas. Jáosconsiderados“clássicos” do gênero (os ilmes de John Ford, Fred Zinemann, GeorgeStevenseJohnSturges,entreoutros),aomesmotempoqueapresentamaviolência, apresentam uma problematizaçãomoral (e às vezesmoralista)dela. (Existem alguns realizadores de ilmes de caubóis que não recaemnisto,porexemplo,RobertAldrich[sobretudoemVeracruz],SergioLeone[EraumaveznoOeste ]eSamPeckimpah[Meuódioserásuaherança],emcujos ilmes as considerações morais são sistematicamente deixadas delado.)Estaatitudehíbrida(dealguémque,aomesmotempo,abreoâmbitoda

violência,masnãoquer,porassimdizer,sujaromundocomela)nãodeixadeproduzirumefeitodesagradávelnoespectadordispostoaverum ilmede caubói até as últimas consequências, por assim dizer, inocentementedespojadojádeantemãodequalquertipodeprevençãomoralista,prontopara se entregar a uma saudável orgia de violência. Ele quer ver aproblematizaçãomoral da violência em outro tipo de ilme, precisamenteemum ilmenãoviolentoouantiviolento.Finalmenteacaba-sedeixandodelado,naprópria fantasia, aproblematizaçãomoral, entrega-seàmagiadocinema, desta vez materializada na violência, mas que em outras vezespoderiaserexpostaemumcontodefadasouemumaaventura.Umbomexemplodeste“moralismocaubói”éoclássicodeJohnSturges,

Sete homens e um destino. Neste ilme, sete pistoleiros são contratadospelos habitantes de uma pequena vila mexicana, perdida no meio dasmontanhas, que está sendo constantemente saqueada pelo bandidoCalvera(EliWallach).Ossetehomenssãomostrados comopistoleiros :não

trabalham,sóoquesabemfazerédispararsuasarmascomcompetência,sãovalentesetemerários,segurosdesi,viajamconstantementesemrumode inido,nãoconstituemfamílianemse ligamanenhumapessoaoulugarde formaconstanteetc.,ouseja,ascaracterísticasclássicasdoherói dessetipo de ilme, talvez tipi icado imortalmente por Shane, o personagemprincipaldofilmeOsbrutostambémamam,deGeorgeStevens.Entretanto,precisamenteessascaracterísticas,fortementenietzschianas

–ouseja,vinculadascomoheroísmoguerreiro–desteshomensfortestêmcomoconsequênciaarealizaçãodevaloresmoraisqueNietzscheadmiraeelogia: os sete pistoleiros aceitam o trabalho por um pagamento ridículo(20dólaresque,comodizumdeles,“nãodánemparapagarpelasbalas”),simplesmente porque icam admirados com a atitude corajosa doscamponeses, fartos de serem humilhados por Calvera, e também porquegostamdoperigoedaoportunidadedesecolocaremàprova.Assim,fazemo que fazem não por dinheiro ou glória: trata-se de um trabalho inglórioemumpequenopovoado imersonodeserto, queninguém sabe se existeounãoequeninguémsepreocupaseésaqueadoporbandidos.Trata-seexatamente da generosidade elogiada por Nietzsche, que não nasce deuma “lei moral” que obriga a ser generoso, mas da exuberância vitaltransbordante do herói, que “temmuito a dar aos outros” simplesmenteporquesobranele,porquenãoconseguiriaviversozinhotantavida.Estes valores são manifestados claramente no apogeu dramático do

ilme, quando Calvera consegue expulsar os sete pistoleiros da vila, mascometeumgraveerromoraldenaturezanietzschiana:acreditaqueessessetepistoleirossãocomoele,ambiciosos,mesquinhosecalculistas.Masnoilme,assimcomonaéticadeNietzsche,faz-seumadiferençamuitograndeentre a violência mesquinha e gratuita (Calvera, que saqueia vilas paraalimentarseushomens,para lhesdarsegurançadeumaformacovardeefácil,atacandohomensdesarmadosetc.)eaviolênciadoherói(adossetemagní icos, que se oferecem a troco de nada, dispostos amorrer por 20dólaressimplesmenteemnomedeumapaixãovital... emortal).Assim,aocontráriodoque esperaCalvera, os sete voltamà vila (quandopoderiamter partido tranquilamente sem olhar para trás, favorecidos pela sórdida“moralidade” dos pistoleiros de Calvera) e aniquilam todo o bando, cujochefe morre sem entender nada, envolvido em sua própria mesquinhezignorante e limitada, sem compreender a ética nietzschiana da violência(“Você voltou! A um lugar como este. Um homem como você. Por quê?”,exclama Calvera agonizante, diante de Chris [Yul Brynner]). Na muda enuncadada respostaa este “porquê”dobandidoquemorre, está todoo

sentidonietzschianodofilme.Mas esta bela concepção da vida é completamente estragada pela

autoconsciênciamoralistado ilme,espéciedeirrupçãodosvaloresmoraistradicionais no próprio coração do heroísmo, como se os sete pistoleirosfossem nietzschianos, mas com consciência de culpa cristã. Com efeito,depois do primeiro ataque de Calvera, em uma conversa entre eles, ospistoleiroslamentaramnãoterraízesemlugarnenhum,nemfamília,nemilhos, como se a vida nômade e heroica que levam não tivesse nenhumsentido.Quandoas trêscriançasmexicanas falamcomBernardo (CharlesBronson)e se referema seuspais lavradores comocovardes, ele lhesdáumas palmadas e lhes diz que os verdadeiros heróis são na realidade oslavradores,seuspais,quetêmacoragemdeformarumafamíliaecultivaraterra,enquantonãohánenhumheroísmoemsabermanejararmas.Mas o inal do ilme explora abertamente esta curiosa ideologia

autorrecriminadora:decertaforma,ojovemChico(HorstBucholtz)foi,aolongo do ilme, o único que se dispusera sempre a defender o heroísmodas armas e, na primeira conversa mencionada, escandaliza-se ao ouvirChris falando com desprezo de sua vida de homem de armas. Depois deterem sido expulsos por Calvera, Chris diz ao jovemque ele falamal doslavradoresporque,naverdade,elemesmo,ojovem,éumdeles.Depoisdeaniquilarosbandidos,o jovemabandonaráasarmasepassaráavivernopovoado, junto coma índiamexicana que se apaixonoupor ele. Sentadosemseuscavalos,prontosparapartirdenovocomosemprefazemosheróisnietzschianos,ChriseVin(McQueen)(osúnicossobreviventesdabatalha,além do jovem), vendo a cena, comentam: “Foram os lavradores queganharam. Nós perdemos. Nós sempre perdemos.” E partem sem rumo,comooventocomqueforamcomparadosminutosantespelopatriarcadaaldeia,nomomentomaisfelizdoroteiro.Os sete pistoleiros, segundo o velho, não receberão a gratidão dos

lavradores porque estes somente se lembram do que vem em épocascertas (época de semeadura, de colheita, de chuva etc.), e a chegada dospistoleirosfoiextemporânea,“foradeépoca”.Ovelhodizqueeles,ossetemagní icos, terão sido para os lavradores somente como o vento que osajudaaafugentarasnuvensdechuvaquandoestassãoindesejáveisparaa plantação; desta mesma maneira, os pistoleiros apareceram paraafugentarosbandidos,comosefossemumaforçadanatureza.Mas,depoisdesseventoocasional,todosvoltarãoaoquerealmenteimporta:otrabalho,a construção de uma casa, a formação de uma família. Os própriospistoleirossobreviventesadmitemasimesmosquesãoperdedoresdiante

destesvaloresclaramentecristãos.Contudo, a força vital do ilme, o heroísmo intrínseco de suas imagens,

parece falarmais altodoque esta inesperadamoral tradicional destiladapelospersonagens.Semaquelevento forte,avida tranquiladocamponêsnãopoderiacontinuar.Foramasarmas,enãoamansidãocamponesa,queexpulsaramCalvera.Seamoralmansafossegeneralizada,elanãopoderiase instaurar, seria arrasada por naturezas inferiores como Calvera. Se aviolência, como assinala Nietzsche, de ine a própria Vontade de Potênciados homens, as armas não serão somente como o vento passageiro, masterãodeserlevadassempreconsigo,comofazemosheróis.Observequeesta é aprimeiravezqueo cinemaéproblematizado, em

vez de problematizar, porque encontrou um ilósofo que dá ao elemento“pático” e trágico um lugar ainda mais destacado e expressivo do que oque outorga o cinema. Este pode problematizar a tese lógico-racionalistados ilósofos tradicionais, até o século XIX. A partir daí, as coisas secomplicam. Apesar da admissão do elemento pático, o cinema é aindamoralistaecognitivo,envenenadopelobemepelaverdade.Aindafaltamaeleséculosparachegaraoníveldevitalidadedatragédiagrega.

Mas,paranivelarascoisasetentarfazeraspazescomNietzsche,no ilmeOsimperdoáveis,deClintEastwood,espéciederenascimentodeumgêneroquepareciaacabado,imperaaideologiacontráriaàdo ilmeanterior.Aquio protagonista é Will Munny, uma espécie de guerreiro aposentado, umpistoleiro terrível, assassino de mulheres, crianças e xerifes, com umcurrículo invejável de assassinatos e roubos temerários, mas queabandonou as armas (e a bebida que lhe dava valentia para fazer taiscoisas) quando se casou com Claudia, uma mulher que adorava e quefaleceutrêsanosantes.Elamorreudeixando-oliteralmentesemnenhumavida, sem a vida de pistoleiro bêbado e encrenqueiro que abandonou esem a vida de lar e de família, arrasada pelo falecimento prematuro damulher.Eleagoraviveemumapequenafazendaemcompanhiados ilhospequenos, velho e cansado, meio míope, aparentemente tendo perdidotodasasantigasqualidades:nãodisparamaisasarmas,perdeuapontariae sequer sabe como montar. Parece o fantasma do caubói valente ejusticeiro que fora, uma espécie de igura mítica em desuso e fora deestação. Os porcos que cria estão doentes e suas economias nãoprosperam.Nesse momento de crise, aparece na fazenda Scho ield Kidd (Jaimz

Woolvett),umjovemdestemidoqueprecisadeumcolaboradorparamatar

três pistoleiros que des iguraram o rosto de Delilah, uma prostituta dopequeno povoado de Big Whisky, e ganhar o dinheiro que as outrasmulheres do bordel estão oferecendo a quem conseguir capturar osculpados.Depoisderejeitaraoferta(Munnyalegaqueestácansadoeque“já não é mais o mesmo”, que sua mulher o mudou), acaba searrependendo e corre atrás de Kidd, aceitando ocupar-se, “pela últimavez”, de um “trabalho sujo”, mas dizendo constantemente que isso nãosigni ica que esteja voltando a sua vida anterior, que ele mudou, que sófaráaquilorapidamente–“emumasduassemanas”,comodizaos ilhos–paraconseguirumpoucodedinheiro.NaverdadeomotivopeloqualWillaceitaseencarregardoassassinato

doshomenspodeseranalisadoparaalémdesuasurgênciaseconômicas.Omotivo explícito é o dinheiro,mas omotivoprofundo tema ver comumareivindicação,umaespéciededívidasimbólicadenaturezacon lituosa,atécontraditória.Claudiaéamulherque,aoqueparece,tiroudeWillsuavidade bandido. Outra mulher – Delilah – é o motivo da perseguiçãoempreendida por Kidd (embora ele, pessoalmente, a empreenda pordinheiro), uma mulher que foi des igurada e a quem outras mulheresqueremvingar,dandoojustocastigoaosculpados.Umaimagemdemulherestá envolvida tanto na aposentadoria de Will como na volta – emboradeclaradamente fugazesemsigni icado–asua terrívelvidaanterior.Emum momento do ilme, quando Munny se prepara para partir, há umatransiçãorápidadacâmera,dorostodaprostitutamarcadaparaafotodafalecida mulher de Will, sugerindo fortemente uma troca, algo como opagamento de uma dívida. Emuma conversa posterior,Will diz aDelilahque,apesardeseurostodes igurado,aescolheriasequisessedormircomumaprostituta,masquenãopode fazer issoporqueaindaamaa esposa.DelilahseemocionacomissoesómaistardedizemaelaqueWillperdeuamulherváriosanosatrás.Will precisa do dinheiro para pagar suas dívidas,mas tambémprecisa

responderaessechamadodemulheresparavingarumamulher,ouseja,parasaldaroutradívida.Senteobscuramentequedeveissoaumamulher,mas paradoxalmente se prepara para consumar uma ação que amulhermorta jamais aprovaria. Assim diz a ele seu amigo Ned Logan (MorganFreeman): “Se Claudia estivesse viva, você não se meteria nisso.” Istoparece indicar que, na verdade, trata-se de uma dívida de Will consigomesmo, uma espécie deprovadeque ainda é capazde fazer o que faziaantes,dequenãoestáacabado,ouseja,paradoxalmente,dequeamulhernãoomudou,continuasendoomesmoeistoérea irmadocadavezmaisà

medida que ele diz a simesmo e repete aos outros, constantemente, quenão quer voltar a ser o que era, quemudou. Ao longo do ilme, quandoinalmente Will exuma toda sua selvageria anterior, ele percebe que,apesar de tudo, Claudia não o transformou em outra pessoa. Como diz omíticoShane,do ilmedeGeorgeStevens: “Umhomemnãopodemudaroqueé.”Neste ilme, tambéméapresentadocontinuamenteocon lito formulado

no ilme de Sturges que analisamos antes: uma vida familiar calma etranquilaeumavidadepistoleiro,arriscadaeefêmera.WillMunnyoptoupela primeira, mas se vê obrigado (real ou simbolicamente) a voltar àsegunda, só que velho e cansado, com a vista fraca e sem sua antigahabilidadeerapidezcomasarmas.Tambémaquihá,comoemSturges,umjovem – Scho ield Kidd – que está se iniciando na vida de pistoleiro, quefala de forma provocadora e encrenqueira, aludindo aos homens que jámatou,queadmiramuitotudooqueouviufalararespeitodeWillMunny,aspirando um dia a ser como ele, matar tantos homens e fazer tantosmale ícioscomoWill fez.Esteoescutade formacansadaedistante, comoseojovemnãosoubesserealmentedoqueestáfalando.Paraquemmatoumuita gente, toda essa conversa iada sobre matar é insuportavelmentevaziaegratuita.Mas,emtodocaso,oretirovoluntáriodeWill,suavelhiceecansaçoparecemindicaroenvelhecimentodavidadosantigospistoleiros,o envelhecimentodavidaheroica e –porquenão? –dospróprios ilmesdecaubóis.Pelo contrário, a vida familiar e tranquila é representada e defendida

(paradoxalmente,pormeiodasarmasepelamaissádicaviolência)porumxerifemoralista,LittleBigDaggett (GeneHackman),queestáconstruindoumacasa(osímbolodaestabilidade,danegaçãodoheroísmonômade),emcujobalcãofrontal,segundodiz,espera“tomarcafé,fumarcachimboevero pôr do sol”, um ideal grandioso de mediocridade eterna, como diriaNietzsche.Daggettestáempenhadonatarefadedesarmaropovoadoparatorná-lo um lugar tranquilo onde as famílias possam “viver em paz”. Naentrada de Big Whisky, há um letreiro no qual se mencionamregulamentosquemandamdeixar armas e bebidasnaportada cidade erecolhê-lasno inaldavisita.Contudo,seusprocedimentossãotãobrutaisquesempre icaaideiadequeoxerifeestádesarmandotodomundoparasetornarelemesmocadavezmaispoderosoeinvencível.A“justiça”administradaporDaggettébastantepeculiar.Quandoocorre

o incidentecomaprostitutaDelilah,cujorostoécortadopordoisdeseusclientes,oxerifeaparecenolocalondeosculpadosforampresos.Primeiro,

Daggettpensaemaçoitá-los,oquejáparecedemasiadamentebenevolenteparaAlice, que gerencia as prostitutas, diante do que os homens izeramcom Delilah. Depois de uma negociação, na qual o dono do prostíbulo,Skinny, faz com que o xerife observe que a prostituta marcada erapropriedadedeleequeagoranãovaipoder trabalharmais,anãosernalimpeza (“Ninguém vai querer dormir com uma prostituta marcada”),Daggett decide a questão economicamente: os caubóis são obrigados aentregarumcertonúmerodecavalosaodonodoestabelecimento,oque,presumivelmente, pagaria com justiça o preço da prostituta dani icada. Adecisão horroriza as mulheres do bordel. Durante uma breve discussão,DaggettdizaAlicequenaverdadeaquelesrapazesnãosãobandidos,quesimplesmente izeram uma besteira essa noite, mas que não cometemcrimesde formapermanente.Alicepergunta: “Comoasprostitutas?”Esteincidenteinicialexplicaperfeitamenteemqueconsistea“justiça”deLittleBig Daggett, uma justiça que ignora qualquer valor da pessoa, que éacionadapormeiodenegociaçõeseponderaçõesmateriaiseburocráticas,sempreseguindoaideologiada“pazesegurança”.QuandoAliceperguntaa ele: “Nem mesmo vai açoitá-los?”, o xerife responde: “Já não tivemossanguesuficienteestanoite?”Aparentemente Will representa o envelhecimento dos valores

guerreiros, mas ao longo do ilme vemos que nenhum dos mais jovensconseguevencero xerifemoralistaque constróiumacasa.Osnumerososcolaboradores de Daggett, dos quais este está sempre cercado, sãoconfusos,nãoatirambem,sãofrágeis,umtantocovardes,muitoinsegurose se amparam fortementeno autoritarismode seupatrão e, nomomentodeentraremação,carregamosrevólverescheiosdedúvidas.Talvezparasimbolizar a impotência e a insegurançada guardapessoal do xerife, umdesses homens émaneta, mas leva consigo três armas que, sem dúvida,não conseguirá utilizar em um momento de perigo. Na verdade, tem-setoda a impressão de que esse impressionante grupo de homens temsomente uma fortaleza, a força dos fracos, diria Nietzsche, mas queconfrontados com um homem de verdade, com um velho pistoleiro deantigamente, como Shane, Johnny Guitar ou o xerife Kane, nenhumdelesterianadaa fazer, seriammortos facilmente, comoacabaacontecendonoinal.Todaaordemjurídico-policialdacidadeparece tão fracae inseguracomoaprópria casaqueDaggett constrói comsuasprópriasmãos equetemgoteiraserachadurasportodaparte.“Elepodeserdurão”,comentaomaneta,“masnãoébomcarpinteiro.”Porém,oesquemadesegurançadoxerifefuncionaperfeitamenteenem

sequer o experiente e terrível pistoleiro Bob (Richard Harris) consegueenfrentá-locomsucesso,sendopublicamentehumilhadopelosinistroLittleDaggett. As prostitutas, que ofereceram o dinheiro para que alguémmatasseosbandidos,perdemtodasasesperançasquandoveemaderrotapúblicadoDuqueBob:“Ninguémvaivir”,murmuramdesconsoladas.Enoentanto alguém vem, e vem o único que poderia acabar com a hipocrisiamoralista e a falsa estabilidade do xerife Daggett e com tudo o que elarepresenta. Vem um caubói do passado, antigo, remontando o tempo e oenvelhecimento, jáqueninguémnapresentesituaçãopoderiafazeroquesó ele será capaz de fazer. Durante todo o ilme, Will desempenha seutrabalho de pistoleiro de aluguel quase sem vontade, assolado pelasdúvidas,comopulsotremendoeoolharopaco.Amortedosdoisbandidoséummodelodecasualidades, atos falhoseacidentais,nadaaver comosantigos justiçamentos, na época de ouro dowestern, onde Gary Coopermetia emBurt Lancaster uma bala certeira nomeio dos olhos. Àmedidaque a violência cresce, o próprio jovem Scho ield Kidd, tão belicoso noinício, ao entrar em contato com a desgraça da morte alheia e com oterrível ato de eliminar alguém (“você dispõe do que ele faz e de tudo oquepoderiafazer”,de inelugubrementeWill),percebequeelenãoénemnunca será um pistoleiro, enquanto aquele velho que parecia acabadonunca poderá, apesar de tudo, deixar de sê-lo. Finalmente, até aslimitações impostas pela idade e o passar do tempo se transformam,contrario sensu , em terríveis forças reivindicativas e o pistoleiro retornadas cinzas e consegue matar aquele que estava representandolegitimamente o bem, a paz e a estabilidade, acabando com sua guardapessoal tão temível empoucos segundos, comoquemderrubaumcastelode cartas e mostra sua fragilidade latente. No chão, moribundo, o xerifemoralista e moralizador murmura, diante do absurdo de sua morteiminente: “Eu não mereço morrer assim. Estou construindo uma casa.”Imperturbável,Will responde: “Não temnada a ver commerecimento”, edispara.Osimperdoáveisrea irmaosvaloresdoheroísmo(comsuaaparênciade

acaso,arbitrariedadeeriscoinútil)edeumgênerocinematográfico,contrao moralismo dos “clássicos”. Ao matar o xerife, Will Munny matou ohipócrita denunciado por Nietzsche, que tentou transformar sua própriaVontade de Potência numa campanha demoralização doOeste selvagem.Sóoheroísmoconseguiuderrotá-lo,mesmoemseuocaso.Oheróicansadoconsegue ser mais forte do que o moralista poderoso. Por uma vez, aomenos,amoralderebanhofoivencida,eohomemforte,apesardaidadee

damiopia,nãofoidestruídopelosmaisfracos.Oshomenssãoincuravelmenteviolentos,diriaNietzsche.Quandoelesse

aposentamese retiramaumaaparentevida tranquilaepacata, cheiadepaz, trabalho e amor, na verdade só o que fazem é redistribuir suaviolência de outra maneira, a violência dos valores organizadores eestabilizadores, a violenta administração da “justiça”. É o que constitui aviolência do Estado, a aparente força das polícias e da justiça comum. Ojovem deSetehomenseumdestino,queabandonaasarmase icanavila,poderá se transformar, como correrdo tempo, emumLittleBigDaggett,transmutando seu paci ismo em uma nova forma de violência e derepressão.Os imperdoáveis descon ia nietzschianamente destes valoresconsagrados e ainda aposta no herói forte e criador, que até emdesvantagem ísica, velho e cansado, conseguirá derrubar a ordemexistenteerestaurarumaordemdejustiçamaisprofundaedemaisvalor.Sabe que só ele poderá fazê-lo, assim como só os sete pistoleirosconseguiram livrar o povoado de Calvera. No discurso consciente, Willrepete automaticamente a ideologia paci ista: fala de uma “mudança”, dizque “não émais omesmo”, a irma que agora é um “homemde paz” etc.,mas,detantorepeti-las,suaspalavrasperdemtodosigni icadoeseusatosmostram que não há consciênciamoralista nelas. Ele sabe perfeitamenteque, ao vingar a morte de Ned e ao fazê-lo da única forma possível(quando a lei foi assumida pelo moralista fraco e covarde e, ao mesmotempo,todo-poderoso),fezexatamenteoquedeviafazer.Além dos conceitos-imagem da violência e do heroísmo, não se pode

deixar de comentar outro conceito, insólito neste tipo de ilme, que sepoderia chamar “Relação do Intelectual com a Violência”, no qual ClintEastwood introduz inesperadamente uma violenta crítica aocolaboracionismo dos intelectuais na constituição do estado de violência.Essa crítica é colocada através da igura moralmente repulsiva do sr.Beauchamp, um escritor gorducho de biogra ias, covarde e acomodado,quechegaàcidadeacompanhadodoinglêsBob,dequemestáescrevendouma biogra ia, mas que rapidamente, quando seu patrão éindecorosamenteexpulsodacidade,passaparaoladocontrário,aceitandoagora a versãodos fatos dadapor seunovo chefe, LittleBigDaggett. AtéquandoDaggettestá“interrogando”Ned,enquantootorturacomochicote,as anotações sóbrias e cientí icas do escritor servem para ajudar otorturador a descobrir as contradições na con issãode seuprisioneiro.Ointelectualse incorporaàmáquinadetortura, incorporada,porsuavez,àordemexistente.No inal,quandoWillMunnymatatodomundonobarde

Skinny,opequenoBeauchampsónãoseofereceparaescreverabiogra iade Will porque este o põe para correr desesperadamente. Talvez ofrustradoeadaptávelescritorencontreporaíalgumoutrochefe,dequemaceitarádócilecovardementesuaversãoo icialdos fatos.Éassimqueosintelectuais escrevem a história e costumam se relacionar com umaviolênciadaqualparticipamsutilmente.

Hámuitopoucos ilmesque se salvamda críticanietzschianaàmoral e àverdade racional e, quando surge um ilme assim, amoral e vital até amedula,perigosoe revitalizador,nãoémuitobemaceitopelos críticosdorebanho.No cinemamais comercial, a violência costuma ser apresentadasendo praticada pormalvados e psicopatas, sistematicamente derrotadospor corajosos defensores daOrdeme da Lei.O herói emgeral é violentopor necessidade, sempre como resposta a outra violência, arbitrária eilegítima.Este é o sentidoda famosa “licençaparamatar”de JamesBond(protótipoda“violênciaenlatadaeinofensiva”aquesefazreferência).Noilme007contraohomemdapistoladeouro (1974),oagente007explicacriteriosamente que, enquanto os bandidos matam impunemente, ele, oagente secreto, só mata assassinos e pessoas que colocam em risco aordemmundial.Estaarticulaçãointernaaofatobrutodaviolênciaatorna,ao mesmo tempo, inofensiva, porque permite diferenciar verdade ementira,bememal,nopróprionúcleodaviolênciae,destaforma,torná-lacontrolável e racional. Apesar das frequentes queixas a respeito da“violência no cinema”, na maioria das vezes trata-se desta violênciadomesticada,pormaisinsaciávelquepossaparecer.Nietzsche foi o ilósofoquemostrouque a violêncianão resiste a estas

quali icaçõesprolixas,aviolênciacaracterizaoserhumanoemsuasimpleshumanidade e só super icialmente poderia ser submetida aos dualismosda iloso ia tradicional. Assim, a violência era condenada – ouproblematizada, pelomenos – no ilme de Sturges e reivindicada atravésdeumprocessocomplexonodeEastwood.EmAssassinospornatureza,deOliver Stone, a violência é, pura e simplesmente, exibida em toda suaimpudicaexuberância,semmotivonemjusti icativa–comopura“Vontadede Potência” – no único ilme não moralista de Oliver Stone, sua obramenos elogiada socialmente, um dos poucos ilmes autenticamentenietzschianosdetodaahistóriadafilosofiavisual.É impossível, ou pelo menos desonesto, falar meramentedo conteúdo

deste ilme sem mencionar o estilo e a montagem exuberante: ilmadoalternadamenteemcoreseempretoebranco,usandomaisdeumformato

(35, 16, Super-8 e vídeo) e uma Polaroid, a violência é formalizada, ohorror não se limita ao que é exibido, mas se manifesta na própriavertigem das imagens, nas inclinações doentias das câmeras, nasdistorções, imagens esfumadas, cores violentas, sobreposições, que vãotransmitindo de forma sensível e imediatauma espécie de perspectivismopsicótico, quase insuportável e muito di ícil de acompanhar visualmente . Ahistória parece ser contada por vários narradores drogados que falamsimultaneamente enquanto pensam em outra coisa. Constantemente, emtelas paralelas, são mostrados insetos e grandes animais devorando-semutuamente, ou tendo relações sexuais destrutivas, como queproporcionando um contexto natural para a violência do ser humano ediminuindodrasticamenteasaparentesdiferenças.A expansividade sem nenhuma autoconsciência dessa violência, cujo

sentidoseesgotaemsimesmo, jáestáexplícitanopróprio títulodo ilme,“assassinos por natureza”. Este tema é desenvolvido no momentoiloso icamente mais importante do ilme, quando Mickey (WoodyHarrelson) está sendo interrogado na prisão e diz aos policiais que ele esuaviolentanamorada,MalloryKnox (JulietteLewis),matamcomo fazemtodososseresnaturais,quecontinuamentesedevoramunsaosoutros:ésimplesmente sua natural e inevitável maneira de ser. Antes disso, umvelho índioqueelesacabammatandoporacidentenarraumahistórianaqual umamulher salva a vida de uma serpente e, quando esta ica bem,mata a mulher que a salvou, mordendo-a. Quando é interrogada, elasimplesmenteresponde:“Vocêsempresoubequeeueraumaserpente.”Aparábola acaba se aplicando ao próprio índio, que émorto pela naturezaselvagemdeMickeyemumadesuassúbitasconfusõesmentais,apesarde,noplanoconscientee“normal”,osdois,eleeMallory,teremfeitoamizadecomoíndioesesentiremgratosporsuahospitalidade.A teseéexplicitamenteantimoral, oumelhor, anaturezaparece excluir

radicalmente a moralidade, sem sequer problematizá-la ou refutá-la. Afábulada serpente, e a própria tese “naturalista” do ilme, é reproduzidanovamentena relaçãoqueosdoisassassinos têmcomoapresentadordeTVWayne Gayle (Robert Downey Jr.), que os ajuda colocando a mídia àdisposição deles para que manifestem suas ideias, critica o sistemacarcerárioqueosoprimee, inalmente,acabaajudando-osafugirnomeiodeumaarrepianterebeliãodepresos.Nãoobstantetodosestes“favores”,a natureza da serpente falamais alto e Mickey e MallorymatamWaynedepois de ele ter se identi icado com seus ideais e os ajudado a fugir.“Pensei que éramos amigos”, sussurra o desolado Wayne, tão desolado

quanto a mulher que salvou a vida da serpente. Mas o que Mickey eMallory fazem não é imoral (nem moral), não pode ser moralmentequali icado. É simplesmente o que eles são. “Sentirei sua falta”, declaram,depoisdeconsumaresseatodeviolência,tãogratuitoquantoinevitável.Mas,para falaraverdade,umcríticomoralistapoderia interpretarque

esta“sublime iloso iavital”está,apesardetudo,postacomoumaespéciede justi icativaa posteriori de decisões que foram tomadas por motivosempíricosmuitomaisprosaicos.Certamente,umainterpretaçãosociológicadiriaqueMickeyeMallorysãoprodutosdafaltadeamordesuasfamíliaseefetivamenteacumplicidadedeambostemorigemnocon litofamiliardeMallory, que Mickey resolve pela violência. (Mata os pais dela e ao sairgritaaoirmãomenor:“Vai.Estálivre!”)Mas,precisamente,estamatançaéuma reivindicação diante da violência com a qual os dois jovens foramcriadosemanipuladosenãouma“correçãomoral”quedeveriaserjulgadaa partir de um suposto nível “superior”. O que ocorre é, segundo a óticanietzschiana, exatamente um choque entre violências, entre formas devida,sãovontadedepotênciaemcon lito.SeatesedaVontadedePotênciaéassumidaseriamente,nãohánenhumhiatoporondepudessesein iltraralgum argumento racionalista do tipo moral, nenhum lado da vitalidade“temrazão”oupossuiuma“justi icativa”privilegiadaemsualutademortecomooutrolado.Por outro lado, como emLaranjamecânica (1971), de Stanley Kubrick,

neste ilme tematiza-se a violência institucional e legitimada, veiculada jáatravés dos laços familiares e de trabalho, unida a ummoralismo social,muito bem representado pelo diretor do presídio, Dwight McClusky(Tommy Lee Jones), um indivíduo astuto, político, com a típica força dosimpotentes, e pelo corrupto e violento detetive Jack Scagnetti (TomSizemore), cuja mãe foi assassinada por um atirador solitário. Essaviolênciaémostradaemtodoseudesprezívelrefinamento,suamorosidadee sua intencionalidade corretiva, e é terrivelmente problematizada porStone(problematizaçãoessasimbolizadapelahorrívelmortedeMcCluskynas mãos dos presos). Por sua vez, a violência de Mickey e Mallory émostradaemtodasuacriatividadeanimal,suaespontaneidadeespumantee alvoroçada. A alegria do criminoso, na plenitude de sua saúde ísica eespiritual, a total ausência de remorso ou de consciência de culpa estãopresentes nestes dois “alegres delinquentes” nietzschianos, simplesnaturezas em ebulição. Certamente os dois são exemplos típicos denaturezasricasegenerosas,mas–comoapontouNietzscheemumdeseustextos – são sistematicamente tratados comodelinquentespela sociedade

erigida pelos mais fracos, que só podem exercer sua própria violênciaatravés das instituições estabelecidas, de forma dissimulada e astuta. OmelhordeMickeyeMalloryéprecisamenteopiordopontodevistasocial.Talvez a maior e mais profunda problematização da moral vigente,

atravésdaexibiçãodasvicissitudesdaVontadedePotência,estejacontidaem um cartaz que os numerosíssimos admiradores de Mickey e MallorylevampelasruasequedizMurderme,Mickey(Mate-me,Mickey).O“mate-me”(comoo“Ata-me”deAlmodóvar)éumpedidodeajuda,umaexigênciade afeto, um convite à sexualidade e ao amor.Antes de condenar osassassinos,lembremosqueelesassimosão“pornatureza”,equetambémpornaturezaaspessoasbuscamdesesperadamente“serassassinadas”, istoé, seramadas. Assassinos por natureza é, comoO porteiro da noite , apesar detudo,umahistóriadeamor.

III-QuemfoiFriedrichNietzsche?

Filósofo alemão nascido em Röcken, na região da Turíngia, em 1844,primogênito do pastor protestanteKarl LudwigNietzsche. Seus dois avôstambémforampárocos.Estaascendênciareligiosadomaiorantirreligiosodahistóriada iloso ia–queseconsideravaoanticristo–nãodeixadeserirônica. O jovem Friedrich fez seus estudos primários e secundários emNaumburg.Jánoanode1856,quandotinha12anos,começouasofrerosprimeiros sintomas de uma longa doença, que nunca o abandonaria –fortes dores de cabeça e nos olhos. Em 1859, começou a receber umasólida formação humanística na escola de Pforta, demonstrandoprecocemente um grande interesse pela música e chegando a comporalgumaspeças.Em1864, foiestudar teologiae iloso ia clássicaemBonn.Em 1865, renunciou, contra a vontade de sua mãe, a continuar suaformação religiosa como pároco, na época em que descobria com grandefascínio a iloso ia de Schopenhauer, da qual se fez partidário e à qualdedicou um belo texto chamado “Schopenhauer educador”. Em 1868,conheceupessoalmenteograndemúsicoRichardWagner,porquem icouigualmentefascinado,comoquediantedeumaespéciedereligião,poisaspaixõesdeNietzscheeram–tantoaspositivascomoasnegativas–deumaintensidade inigualável. Na verdade, relacionava a iloso iaschopenhauriana da vontade de viver e amúsica sobre-humana e nobredeRichardWagner com temasde suaprópria iloso ia,queestava sendogestadanaquelaépoca.Em 1869, a Universidade da Basileia o nomeou catedrático de iloso ia

clássica, apesar deNietzschenão ser aindadoutor. Poucosmeses depois,outorgaram-lhe o título de doutor sem exame nem tese, na Universidadede Leipzig, em reconhecimento aos seus trabalhos publicados na revistaRheinischesMuseum,deseuprofessorRitschl.Nessemesmoano,Nietzscherenuncia a sua cidadania alemã em favor da Suíça. Em 1870, pedepermissão à universidade para ir à guerra franco-prussiana, na qualparticipa como enfermeiro, mas elemesmo adoece gravemente e volta àBasileia. A partir de 1871, começa a trabalhar no que seria umade suasobras fundamentais,O nascimento da tragédia (obra ilológico- ilosó icapublicadanoanoseguinte,comacolhidamuitoruimporpartedos ilólogospro issionais).EstessãoanosdeprofundointeresseporWagner,nosquaisassiste à inauguração do teatro wagneriano em Bayreuth. Também sãoanos de trabalho intelectual intenso, mas, ao mesmo tempo, aumenta afrequênciadesuascrisesdesaúde.Em1876,Nietzschepropõecasamento

a Mathilde Trampedach, a quem conhecera uma semana antes, mas érejeitado.Em1878,rompeude initivamentesuasrelaçõescomWagner,depoisde

profundasdecepçõescomosfestivaisdemúsicadeBayreuth.Em1879,foiobrigado a se aposentar prematuramente (aos 35 anos) por doença. Auniversidade passa a lhe pagar uma pensão. É curioso como todas asgrandes obras de Nietzsche são produzidas no período posterior a suaaposentadoriaprematuraesãorealizadasemmeioàsmaisterríveiscrisesde saúde (para quem acha que não é possível produzir boa iloso iaquandonãose tem“ascondiçõesadequadas”).Nesseperíodo,elededica-se a viajar intensamente pelo Mediterrâneo, enquanto seus livros –inclusive as diversas partes deAssim falou Zaratustra – vão sendopublicados.Em1882,conheceLouAndreaSalomé,umamulherinteligenteeliberal,

ligada a grandeshomensde sua época (comoNietzsche, Freud e o poetaRilke).NietzscheeopsicólogoPaulRéeseapaixonaramaomesmotempopor Lou e planejaram viver juntos, tentando uma experiência inédita deamor e colaboração intelectual. Diz-se queNietzsche propôs casamento aLouemváriasoportunidades,massemprefoirejeitado.Emtodocaso,LoueRéeacabarampartindojuntosedeixandoNietzschesozinho.Deresto,asolidão foi a grande companheira de Nietzsche em toda a sua vida, massobretudonessaépoca.“Nãomaisentreosvivosqueentreosmortostivealguémaquemme sentisse unido”, escreveu ele certa vez. Zaratustra foiumaespéciedepoemasobreasolidãodoesclarecido.Osanosde1886a1888 foram extraordinariamente prolí icos, e neles foram produzidasquasetodasasobras-primasdeNietzsche,comoseeletivesseadivinhadoo grande colapso que se aproximava em sua vida. Em 1889, teve umagrave crise emTurim, apartirdaí começa a escrever a seus amigosumasériedecartasdetomdemencial,nasquaisseautointitula“OCruci icado”e seatribuiumaextraordináriamissãohistórica (partedestes textosestápresente em sua obra autobiográ ica Ecce Homo). Nunca mais serecuperoudestadoença.Ficouinternadoemváriasinstituiçõesparatratardedoençasnervosas,atormentadoporumaparalisiaprogressiva.Contudo,Nietzsche ainda permaneceu vivo durante uma década, durante a qualsuas obras foram publicadas ou reeditadas, sobretudo por sua irmãElisabeth. Essaspublicações forammuitodiscutidaspor especialistas, porserem supostamente apócrifas, e motivaram uma série de investigaçõesbibliográficasdepoisdamortedeNietzsche,ocorridaem1900.

Principais obras:O nascimento da tragédia (1872),Consideraçõesextemporâneas (1873/1874/1876),Humano,demasiadohumano (1878),Oandarilhoesuasombra (1880),Aurora (1881),Agaiaciência (1882),AssimfalouZaratustra (1883/1884),Alémdobemedomal (1886),Genealogiadamoral (1887),O caso Wagner (1888),Crepúsculo dos ídolos (1888),Oanticristo (1888, publicado em 1894),Ecce Homo (1888, publicado em1908),NietzschecontraWagner(1888).

IV-Textosnietzschianos

Texto 1 –A psicologia mostra, contra os preconceitos morais, que osinstintos“bons”têmorigemapartirdos“maus”.“Toda psicologia, até o momento, tem estado presa a preconceitos e

medosmorais:nãotevecoragemdedesceràsprofundezas.Compreendê-lacomomorfologiaeteoriadaevoluçãodavontadedepoder,comofaço–éalgoqueninguémtocounemsequerempensamento,namedidaemqueépermitidover,noquefoiatéagoraescrito,umsintomadoqueatéaquifoisilenciado. A força dos preconceitos morais entrou profundamente nomundomaisespiritual,aparentementemais frioe livredepressupostos–de modo inevitavelmente nocivo, inibidor, ofuscante e deturpador. Umaautêntica isiopsicologiatemquelutarcontraresistênciasinconscientesnocoração do investigador, tem ‘o coração’ contra si. Já uma teoria docondicionamento mútuo dos impulsos bons e maus desperta, como umaimoralidademaissutil,aversãoedesgostonumaconsciênciaaindaforteeanimada–emaisaindaumateorianaqualosimpulsosbonsderivemdosmaus.”(Nietzsche,Alémdobemedomal,SeçãoI,aforismo23)

Texto2–Mausquesãofelizes.“Di icilmente alguém tomará por verdadeira uma doutrina apenas

porque ela o torna feliz ou virtuoso (...). A felicidade e a virtude não sãoargumentos. Mas as pessoas, entre elas espíritos sóbrios, esquecem debomgradoquetornarinfelizetornarmautambémnãopodemsercontra-argumentos. Algo pode ser verdadeiro, apesar de nocivo e perigoso nograumaisalto.Maisainda,podeserdaconstituiçãobásicadaexistênciaofato de alguém se destruir ao conhecê-la totalmente – de modo que afortalezadeumespíritosemediriapeloquantode“verdade”suporta(...).Masnãohádúvidadeque,paraadescobertadedeterminadaspartesdaverdade, os maus e os infelizes estão mais favorecidos e têm maiorpossibilidadedeêxito–sem falarnosmausquesão felizes–espéciequeosmoralistasnãomencionam.”(Nietzsche,Alémdobemedomal,Seção2,aforismo39)

Texto 3 –Aqueles que criam são considerados perigosos e maus; osmedíocreseinofensivossãoconsideradosmoralmentebons.“Certos impulsos fortes e perigosos, como o espírito empreendedor, a

temeridade, a sede de vingança, a astúcia, a rapacidade, a ânsia de

domínio, que até agora tinham de ser não só respeitados (...) masdesenvolvidosecultivados(...)sãosentidos–agoraquelhesfaltamcanaisdeescoamento–bemmaisintensamenteemsuapericulosidade,epassoapassosãotachadosde imoraiseabandonadosàdifamação.Os impulsosependoresopostosalcançamhonrasmorais;o instintode rebanho tiraaospoucos suas conclusões. Quanto de perigoso para a comunidade, para aigualdade, existenumaopinião,numestadoouafeto,numavontade,numdom, passa a constituir a perspectivamoral, o temor é novamente aqui opai da moral. Quando os impulsos mais altos e mais fortes, irrompendopassionalmente,arrastamoindivíduomuitoacimaealémdamedianiaedaplanura da consciência de rebanho, o amor-próprio da comunidade seacaba, sua fé em simesma – sua espinha dorsal – é quebrada. Portantoserão justamente esses impulsos os estigmatizados e caluniados. Aespiritualidadesuperioreindependente,avontadedeestarsóemesmoagrande razão serão percebidas como um perigo. Tudo que ergue oindivíduo acima do rebanho e infunde temor ao próximo é chamado demau. A mentalidade modesta, equânime, submissa, igualitária, amediocridadedosdesejos conquista fama e honrasmorais.” (Idem, SeçãoV,af.201)

Texto 4 –Violência e exploraçãopertencemessencial e inevitavelmente àvida, pois ela consiste na vontade de potência, cujo movimento énaturalmenteexpansivo,agressivo,avassalador.“Abster-se de ofensa, violência, exploraçãomútua, equiparar a própria

vontade coma dooutro.Num certo sentido tosco isso pode tornar-se umbomcostumeentreosindivíduos,quandoascondiçõesparaissoexistirem– a saber, sua efetiva semelhança em quantidade de força emedidas devalor,eofatodepertenceremaumcorpo.Mas,tãologosequisesselevaradiante tal princípio, tomando-o como princípio básico da sociedade, eleprontamente se revelaria comoaquilo quede fato é: vontadedenegaçãoda vida, princípio de dissolução e decadência. Aqui devemos pensarradicalmente, nos livrando de toda fraqueza sentimental: a vida éessencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e maisfraco,opressão,dureza,imposição,incorporaçãoeexploração.Masporqueempregar sempre essas palavras, que há muito estão marcadas de umaintenção difamadora? (...) Em toda parte hoje em dia sonha-se, inclusivesob roupagem cientí ica, com estados vindouros da sociedade em quedeverá desaparecer o ‘caráter explorador’ – isso paramim soa como sealguémprometesse inventarumavidanãoorgânica.A ‘exploração’nãoé

própriadeumasociedadecorrompidaouimperfeitaeprimitiva:fazparteda essência do que vive, como uma função básica do organismo, éconsequência da própria vontade de potência, que é precisamente avontadedevida.”(Idem,SeçãoIX,af.259)

Texto5–Osbonsdelinquentes.“O tipo do criminoso é o tipo do homem forte situado em condições

desfavoráveis,umhomemfortequesetransformaemdoente.Oquefaltaéaselvavirgem,umanaturezaeumaformadeexistirmaislivreeperigosa,situações nas quais o instinto do homem forte possa ser uma arma deataque e de defesa. Suas virtudes foram proscritas pela sociedade: seusinstintosmaisenérgicos,quelhesãoinatos,misturam-seprontamentecomosafetosdepressivos,comasuspeita,omedo,adesonra.Masestaéquaseareceitadadegeneração isiológica.Quemtemdefazeràsescondidas,comuma tensão, uma previsão, uma astúcia prolongadas, o quemelhor podefazer,oquemaisgostariadefazer,acabasetornandoanêmico;ecomoasúnicas coisas que obtém de seus instintos são sempre o perigo, aperseguição e as calamidades, seu sentimento se volta contra seusinstintos: sente-os como uma fatalidade. Em nossa sociedade – em nossadomesticada, medíocre e castrada sociedade –, um homem vindo danatureza, chegado das montanhas ou das aventuras do mar, degeneranecessariamente em criminoso. Ouquase necessariamente: pois há casosemqueessehomemmostrasermaisfortedoqueasociedade:ocorsárioNapoleãoéocasomaisfamoso.“Para o problema apresentado, é de importância o testemunho de

Dostoievski (...). Este homem profundo (...) teve uma impressão muitodiferente da que ele mesmo aguardava com relação aos presidiários daSibéria, em meio aos quais viveu durante um longo tempo, todos elesautoresdecrimesgraves,paraosquaisnãohaviamaisnenhumcaminhode volta à sociedade. Deram-lhe a impressão, mais ou menos, de estartalhadosdamelhor,maisduraemaisvaliosamadeiraquechegaacresceremterrarussa.Generalizemosocasodocriminoso:imaginemosnaturezasàsquais,poralgummotivo, falteaaprovaçãopública,quesabemquenãoproduzem a impressão de ser bené icas, úteis, imaginemos essesentimento de pária de não ser considerado igual,mas excluído, indigno,impuro.Todasessasnaturezastêmemseuspensamentoseemseusatosacor do subterrâneo; nelas tudo se torna mais pálido do que naquelasoutras nas quais brilha a luz do dia. Mas quase todas as formas deexistência que hoje nós consideramos distintas viveram em outro tempo

nessa atmosfera semissepulcral: o homemde ciência, o artista, o gênio, oespíritolivre,oatordeteatro,omercador,ograndedescobridor...(...).“Chamo a atenção para o fato de que ainda hoje, sob o regime de

costumesmaissuaveque jamaisdominounaTerra, aomenosnaEuropa,todo estar à margem, toda forma incomum, impenetrável, de existência,nos sugere aquele tipo que o criminoso conduz a sua perfeição.”(Nietzsche,Crepúsculodosídolos,“Incursõesdeumextemporâneo”,af.45)