excertos sobre a música do final da idade média

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ALGUNS EXCERTOS SOBRE A MÚSICA DO FINAL DA IDADE MÉDIA Anônimo IV compara as realizações de Léonin e Pérotin Observação 1: Deve-se a Anônimo IV a maioria das informações sobre Léonin e Perótin, os mestres da Escola de Notre Dame, chamada de Ars Antiqua (em oposição à Ars Nova representada por Guillaume de Machaut). Não se sabe quem foi essa pessoa, por isso recebeu a alcunha de Anônimo IV. Observação II: organa é o plural de organum. E notai que mestre Léonin, conforme aquilo que ficou dito, foi o melhor compositor de organa, que fez o grande livro do organum a partir do gradual e do antifonário por forma a embelezar o serviço divino. E este livro foi usado até ao tempo do grande Pérotin, que o refundiu e escreveu muitas cláusulas, ou puncta, pois ele era o melhor compositor de descante, melhor ainda do que Léonin. Já o mesmo não diremos quanto à subtileza do organum, etc. Mas o mesmo mestre Pérotin fez excelentes quadrupla, como Viderunt e Sederunt, com grande abundância de cores da arte harmónica, e também vários e mui nobres tripla, como Alleluia posui adiutorium, Nativitas, etc. Compôs também conductus a três vozes, como Salvatoris hodie, e conductus a duas vozes, como Dum sigillum summi patris, e até conductus monofónicos [simplices conductus] com vários outros, como Beata viscera, etc. In Jeremy Yudkin, The Music Treatise of Anonymous IV: a New Translation, MSD, 41, Neuhausen-Stuttgart, AIM/H nssler-Verlag, 1985, p. 39. Franco de Colónia disserta sobre a música mensurável -- excerto de Ars cantus mensurabilis, C. 1250 A música mensurável é a melodia medida por intervalos de tempo longos e breves. Para que se entenda esta definição, consideremos o que são a medida e o tempo. A medida é um atributo que indica a duração e a brevidade de qualquer melodia mensurável. Se digo "mensurável", é porque no cantochão este tipo de medida não está presente. O tempo é a medida do som propriamente dito, bem como do oposto do som, a sua omissão, comumente chamada pausa. Digo que "a pausa é medida pelo tempo", pois, se assim não fosse, duas melodias diferentes -- uma com pausas, outra sem elas -- não poderiam ser proporcionalmente conjugadas uma com a outra. A música mensurável divide-se na que é totalmente mensurável e na que só o é parcialmente. A música totalmente mensurável é o discante, pois este é medido pelo tempo em todas as suas vozes. A música parcialmente mensurável é o organum, que não é medido em todas as suas vozes. A palavra organum, note- se, é usada em dois sentidos -- no sentido próprio e no sentido comumente aceite. Pois o organum no sentido próprio é o organum duplum, também chamado organum purum. Mas no sentido comumente aceite o organum é qualquer cântico eclesiástico medido pelo tempo.

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Excertos Sobre a Música Do Final Da Idade Média

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Page 1: Excertos Sobre a Música Do Final Da Idade Média

ALGUNS EXCERTOS SOBRE A MÚSICA DO FINAL DA IDADE MÉDIA Anônimo IV compara as realizações de Léonin e Pérotin Observação 1: Deve-se a Anônimo IV a maioria das informações sobre Léonin e Perótin, os mestres da Escola de Notre Dame, chamada de Ars Antiqua (em oposição à Ars Nova representada por Guillaume de Machaut). Não se sabe quem foi essa pessoa, por isso recebeu a alcunha de Anônimo IV. Observação II: organa é o plural de organum.

E notai que mestre Léonin, conforme aquilo que ficou dito, foi o melhor compositor de organa, que fez o grande livro do organum a partir do gradual e do antifonário por forma a embelezar o serviço divino. E este livro foi usado até ao tempo do grande Pérotin, que o refundiu e escreveu muitas cláusulas, ou puncta, pois ele era o melhor compositor de descante, melhor ainda do que Léonin. Já o mesmo não diremos quanto à subtileza do organum, etc. Mas o mesmo mestre Pérotin fez excelentes quadrupla, como Viderunt e Sederunt, com grande abundância de cores da arte harmónica, e também vários e mui nobres tripla, como Alleluia posui adiutorium, Nativitas, etc. Compôs também conductus a três vozes, como Salvatoris hodie, e conductus a duas vozes, como Dum sigillum summi patris, e até conductus monofónicos [simplices conductus] com vários outros, como Beata viscera, etc. In Jeremy Yudkin, The Music Treatise of Anonymous IV: a New Translation, MSD, 41, Neuhausen-Stuttgart, AIM/H nssler-Verlag, 1985, p. 39.

Franco de Colónia disserta sobre a música mensurável -- excerto de Ars cantus mensurabilis, C. 1250 A música mensurável é a melodia medida por intervalos de tempo longos e breves. Para que se entenda esta definição, consideremos o que são a medida e o tempo. A medida é um atributo que indica a duração e a brevidade de qualquer melodia mensurável. Se digo "mensurável", é porque no cantochão este tipo de medida não está presente. O tempo é a medida do som propriamente dito, bem como do oposto do som, a sua omissão, comumente chamada pausa. Digo que "a pausa é medida pelo tempo", pois, se assim não fosse, duas melodias diferentes -- uma com pausas, outra sem elas -- não poderiam ser proporcionalmente conjugadas uma com a outra. A música mensurável divide-se na que é totalmente mensurável e na que só o é parcialmente. A música totalmente mensurável é o discante, pois este é medido pelo tempo em todas as suas vozes. A música parcialmente mensurável é o organum, que não é medido em todas as suas vozes. A palavra organum, note-se, é usada em dois sentidos -- no sentido próprio e no sentido comumente aceite. Pois o organum no sentido próprio é o organum duplum, também chamado organum purum. Mas no sentido comumente aceite o organum é qualquer cântico eclesiástico medido pelo tempo.

Page 2: Excertos Sobre a Música Do Final Da Idade Média

Jacob de Liége reage contra a Ars Nova Em certa ocasião em que se reuniram alguns bons cantores e leigos judiciosos, e em que se cantaram motetes à maneira moderna e também alguns antigos, pude verificar que até mesmo aos leigos agradaram mais os motetes antigos e a maneira antiga do que os novos. E, ainda que a maneira nova tenha agradado quando era novidade, tal não acontece já, começando até a desagradar a muitos. Deixai, pois, que a música antiga e a antiga maneira de cantar voltem à sua terra natal; deixai que voltem a ser praticadas; deixai de novo florescer a arte racional. Pois ela foi exilada, a par da correspondente técnica de cantar, como que violentamente expulsa da comunidade dos cantores; mas tal violência não deverá ser eterna. Onde vedes, afinal, tão grandes motivos de agrado nesta lascívia estudada através da qual -- e muitos são os que assim pensam -- se perdem as letras, se diminui a harmonia das consonâncias, se altera o valor das notas, se despreza a perfeição, se exalta a imperfeição e se destrói a medida? Excerto do Speculum musicae, c. 1325, livro 7, cap. 46, trad. ing. in SR, pp. 189-190.

Giovanni Boccaccio, excerto do Decameron Levantadas as mesas, a rainha ordenou que trouxessem os instrumentos, pois todas as damas sabiam a dança de roda, e os mancebos também, e alguns deles tocavam e cantavam mui excelentemente. Ao ouvir tal pedido, Dioneo pegou num alaúde e Fiammetta numa viola, e começaram docemente a tocar uma dança. Então a rainha, juntamente com outras damas e dois mancebos, escolheu uma ária e deu início a uma dança de roda de ritmo lento -- enquanto os criados saíam para comer. Quando isto terminou, começaram a cantar deleitosas e alegres cantigas. E assim continuaram por muito tempo, até a rainha entender que eram horas de irem dormir... Giovanni Boccaccio, Decameron, jornada primeira, introdução, trad. inglesa de C. V. Palisca.