excelentÍssimo senhor desembargador … · na constituição estadual por ......
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MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO
Procuradoria-Geral de Justiça
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EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR PRESIDENTE DO EGRÉGIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO
O PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO
ESPÍRITO SANTO, no uso de suas atribuições constitucionais, vem, com fulcro
no art. 29, inc. I da Lei 8.625/93, c/c. o art. 30, XVI, da Lei Complementar
Estadual n.º 95/97, e art. 112, III, da Constituição do Estado do Espírito
Santo, propor a presente
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
da Lei nº 3.819, de 04 de janeiro de 2012, do Município de Serra (doc. 01),
que deu nova redação ao artigo 206 da Lei 1.522/1991 e ao artigo 2º,
inciso II da Lei 3.083/2007, requerendo, desde logo, seja concedida a
antecipação dos efeitos da tutela pretendida, in limine litis e inaudita
altera parte, pelos fatos e fundamentos abaixo aduzidos.
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I – DO ATO NORMATIVO IMPUGNADO
No mês de novembro do ano de 2011, o Vereador João Luiz Teixeira
Corrêa apresentou à Câmara Municipal da Serra o Projeto de Lei nº
211/2011, dispondo sobre a alteração de dispositivos das Leis nº 1.522/1991
e 3.083/2007.
As alterações pretendidas pelo Vereador permitem que igrejas ou templos
religiosos possam exceder o limite sonoro estipulado para as demais
pessoas, naturais ou jurídicas, podendo chegar ao limite de 85 dB de 7 às
22 horas, e ainda permite que na véspera de feriados e datas religiosas se
atinja o mesmo limite após as 22 horas.
Cumpre ainda destacar a justificativa trazida pelo vereador ao Projeto de
Lei em questão:
“pesquisas recentes indicam a Serra como uma das cidades
com o maior número de homicídios que estão diretamente
ligados ao narcotráfico. As igrejas tem um papel de extrema
importância em nossa sociedade, recuperando pessoas,
restaurando famílias que acabam sendo vítimas deste
grande mal que assola nossas comunidades, que são as
drogas lícitas e ilícitas. Este importante trabalho feito pelas
comunidades tem sido comprometido pois a grande maioria
destas comunidades não dispõe dos recursos necessários,
para fazer na acústica dos tempos religiosos o trabalho
devido para atender a legislação em vigor, que tem sido
penosa e injusta com as comunidades religiosas”.
Em 09 de janeiro a Lei foi sancionada e promulgada com a seguinte
redação:
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Lei Municipal nº 3.819/2012
DÁ NOVA REDAÇÃO AO INCISO 1º DO ART. 206 DA LEI Nº
1.522/1991 E DÁ NOVA REDAÇÃO AO INCISO II DO ART. 2ª DA
LEI Nº 3.083/2007.
O PREFEITO MUNICIPAL DA SERRA, ESTADO DO ESPÍRITO
SANTO, no uso de suas atribuições legais, faz saber que a
Câmara municipal decretou e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º. Dá nova redação ao inciso 1º, do artigo 206, da Lei
1.522/1991 que dispõe sobre a criação do Código de Postura
do Município da Serra a execução regular de política
Administrativa:
Art. 206 – São permitidos os ruídos que provenham:
I – de sinos de igrejas ou templos e, bem assim, de
instrumentos musicais utilizados no exercício do culto ou
cerimônia religiosa, celebrados no recito das respectivas
sedes das associações religiosas, no Máximo de 85
decibéis (85 dB) medido na curva A. No período das 7
às 22 horas, exceto aos sábados e na véspera dos dias
de feriados e datas religiosas de expressão popular,
quando então será livre o horário.
Art. 2º. Dá nova redação do inciso 2º, do artigo 2º, da Lei nº
3.083/2007, que dispõe sobre a autorização ao Poder
executivo Municipal a promover o controle da emissão de
ruídos e poluição sonora de forma a garantir o sossego e o
bem estar público e dá outras providências:
Art. 2º. Excetuam-se das proibições deste artigo os SOS
produzidos por:
II – de sinos de igrejas ou templos e bem assim, de
instrumentos musicais utilizados no exercício do culto ou
cerimônia religiosa, celebrados no recinto das
respectivas sedes das associações religiosas, no Máximo
de 85 decibéis (85 dB) medido na curva A. No período
das 7 às 22 horas, exceto aos sábados e na véspera dos
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dias de feriados e datas religiosas de expressão popular,
quando então será livre o horário.
Art. 3º. Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação.
No entanto, conforme será demonstrado, a espécie legislativa acima
colacionada está eivada de irremissível vício de inconstitucionalidade,
merecendo a pronta censura desse E. Tribunal.
II - DA COMPETÊNCIA DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO PARA
O PROCESSAMENTO E JULGAMENTO DA AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI MUNICIPAL EM FACE DA CONSTITUIÇÃO
ESTADUAL
Sendo o Brasil uma Federação, tipo de Estado caracterizado pela
descentralização territorial do poder, no qual os Estados-Membros e os
Municípios possuem autonomia, manifesta-se essa unidade de Estado em
três esferas, cada qual delimitada pelas normas da Constituição Federal,
que atua como Estatuto da Federação.
Nos termos dos artigos 18 e 29 da Constituição Republicana de 1988, o
Município goza de autonomia, o que equivale dizer que tais entes detêm
competência para gerir seus próprios interesses. A competência municipal
funda-se em quatro capacidades: I) auto-organização, através da lei
orgânica; II) autogoverno, com a eleição de seu próprio corpo de agentes
políticos; III) capacidade legislativa, preparando o ordenamento jurídico
local e; IV) autoadministração, organizando e mantendo o serviço público
local.
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Essa feição autônoma dos Municípios não tem par nas ordens
constitucionais pretéritas. De fato, as Constituições anteriores
determinavam que os Estados-Membros deveriam organizar seus
municípios, assegurando-lhes autonomia. Note-se que a autonomia era
dirigida aos Estados-Membros, porque a estes cabia organizar os
Municípios.
Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, ficou diretamente assegurada a autonomia Municipal, de maneira
que a ingerência do Estado nos assuntos do Município ficou limitada aos
aspectos expressamente indicados na Constituição Cidadã.
Pelo fato de o Município não mais sofrer ingerência do Estado-Membro,
estando a disciplina jurídica principiológica do Município quase que
totalmente inserta na Carta da República, há poucas questões que, por
força da própria Constituição Federal, foram atribuídas à regulação pela
Constituição Estadual (e.g., fusão, desmembramento de municípios, etc.).
Com efeito, somente em raras hipóteses estar-se-á diante de
inconstitucionalidade de Lei Municipal em face da Constituição Estadual,
uma vez que, conforme visto, a Constituição do Estado-Membro pouco ou
quase nada tem a ditar, em termos de diretrizes, ao Município.
Pode ocorrer, contudo, de as Constituições Estaduais repetirem norma já
constante na Constituição da República, caso em que uma eventual
inconstitucionalidade de Lei Municipal ofenderia tanto a Constituição
Federal quanto a Constituição Estadual.
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Assim, como em nosso sistema não se admite ação direta de
inconstitucionalidade de Lei Municipal em face da Constituição da
República Federativa do Brasil, abre-se a possibilidade de controle de
constitucionalidade da Lei Municipal por meio de jurisdição constitucional
estadual, a ser exercida pelo Tribunal de Justiça do Estado.
A Constituição do Estado do Espírito Santo traz essa previsão no art. 109,
inciso I, alínea “e”:
Art. 109. Compete, ainda, ao Tribunal de Justiça:
I - processar e julgar, originariamente:
..............................
e) as ações de inconstitucionalidade contra lei ou atos
normativos estaduais ou municipais que firam preceito desta
Constituição;
A esse propósito, assim se manifesta o Professor André Ramos Tavares1
[...] somente pode existir jurisdição constitucional no âmbito
do Estado-membro se a Constituição Federal assegurar às
unidades federadas não só a liberdade para criar
Constituições autô-nomas, mas também o poder de regular
a defesa judicial de sua específica Constituição. É
exatamente o que fez a atual Lei Magna, no § 2º do mesmo
art. 125. Nesse dispositivo, a Constituição Federal declara a
competência dos Estados para criar mecanismos de
proteção de suas Constituições contra leis inferiores que lhes
sejam contrárias.
Permite-se, assim, uma verdadeira jurisdição constitucional
estadual, a que estarão submetidos os atos normativos
emanados tanto do Estado-membro como de seus
Municípios. Determina o referido dispositivo constitucional:
“Cabe aos Estados a instituição de representação de
1 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional / André Tavares Ramos. 5. ed.
São Paulo: Editora Saraiva, 2007. p. 385-386.
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inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou
municipais em face da Constituição Estadual, vedada a
atribuição da legitimação para agir a um único órgão.
Vê-se, pois, que a defesa da Constituição Estadual mira, em última análise,
a defesa da Constituição Federal, por garantir a melhor interpretação das
normas constitucionais em todos os níveis da federação. Ganha, com isso,
a unidade e a força normativa da Lei Fundamental.
Não por outra razão, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal admite
que cabe Recurso Extraordinário do acórdão que decide representação
de inconstitucionalidade estadual quando o parâmetro é norma presente
na Constituição Estadual por repetição obrigatória:
Reclamação com fundamento na preservação da
competência do Supremo Tribunal Federal. Ação direta de
inconstitucionalidade proposta perante Tribunal de Justiça
na qual se impugna Lei municipal sob a alegação de ofensa
a dispositivos constitucionais estaduais que reproduzem
dispositivos constitucionais federais de observancia
obrigatoria pelos Estados. Eficacia jurídica desses dispositivos
constitucionais estaduais. Jurisdição constitucional dos
Estados-membros. - Admissão da propositura da ação direta
de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça local,
com possibilidade de recurso extraordinário se a
interpretação da norma constitucional estadual, que
reproduz a norma constitucional federal de observancia
obrigatoria pelos Estados, contrariar o sentido e o alcance
desta. Reclamação conhecida, mas julgada improcedente.
(Reclamação 383. Relator: Ministro Moreira Alves. Órgão
Julgador: Tribunal Pleno. Data do Julgamento: 11/06/1992).
Sobressai, então, com clareza, que é cabível o conhecimento de ADI pela
Corte Estadual, mesmo que a norma constitucional estadual violada seja
repetição de disposição da Carta Magna, cabendo, da decisão do
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Tribunal de Justiça, recurso extraordinário com fulcro no artigo 102, inciso III,
da CRFB/88.
Destarte, revela-se plenamente possível a argüição de
inconstitucionalidade, via processo objetivo de controle concentrado
abstrato, perante o Tribunal de Justiça, mesmo quando o dispositivo
violado for norma de repetição obrigatória da Constituição da República.
Portanto, se o Supremo Tribunal Federal tem a missão precípua de atuar
como guardião da Constituição da República Federativa do Brasil,
declarando a inconstitucionalidade de leis e atos normativos que com ela
conflitam, resta evidente que cabe a esse Colendo Sodalício Estadual
atuar como guardião da Constituição do Estado do Espírito Santo,
controlando a constitucionalidade das leis e atos normativos municipais ou
estaduais com esta conflitantes.
III – VÍCIO DE COMPETÊNCIA - LEI 3.819/2012 EXTRAPOLA A COMPETÊNCIA
SUPLEMENTAR DO MUNICÍPIO. AFRONTA AOS ARTIGOS 19, INCISO IV E 28,
INCISO II, AMBOS DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO.
Para exata compreensão da matéria, mister analisar o que diz a
Constituição da República (que não deve ser encarada como o parâmetro
de constitucionalidade para o presente caso) sobre as regras de
distribuição de competência entre os entes federados.
O artigo 24 da Constituição Federal preconiza que:
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Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal
legislar concorrentemente sobre:
..............................
VI – florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza,
defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio
ambiente e controle de poluição.
..............................
§1º- No âmbito da legislação concorrente, a competência
da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
§ 2º- A competência da União para legislar sobre normas
gerais não exclui a competência suplementar dos Estados .
§ 3º- Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados
exercerão a competência legislativa plena, para atender a
suas peculiaridades.
§ 4º- A superveniência de lei federal sobre normas gerais
suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrária.
O art. 30, sobre a capacidade legislativa local, apregoa:
Art. 30 – Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de interesse local;
II – suplementar a legislação federal e a estadual no que
couber.
Seguindo esse panorama, a Constituição Capixaba assim dispôs:
Art. 19. Compete ao Estado, respeitados os princípios
estabelecidos na Constituição Federal:
..............................
IV - exercer, no âmbito da legislação concorrente, a
competente legislação suplementar e, quando couber, a
plena, para atender às suas peculiaridades;
..............................
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Art. 28. Compete ao Município:
I - legislar sobre assunto de interesse local;
II - suplementar a legislação federal e estadual no que
couber;
Logo, vê-se que compete à União e aos Estados legislar concorrentemente
sobre proteção do meio ambiente e controle da poluição. A competência
da União consiste no estabelecimento das normas gerais, enquanto que
aos Estados compete complementar a legislação federal. Já aos
Municípios cabe a suplementação da legislação federal e estadual no que
couber.
É claro que a competência atribuída aos Estados para complementar as
normas gerais da União não afasta a competência dos Municípios para,
quando houver interesse local, baixar legislação que supra lacunas ou
especifique minúcias decorrentes de idiossincrasias locais. Entretanto, não
poderá o Município, em hipótese alguma, dispor de forma contrária (ou
menos restritiva, como no presente caso) às normas gerais da União. A
atuação municipal, como visto, deve se restringir ao detalhamento
daquelas legislações, para adequá-las às particularidades locais, sob pena
de invadir seara normativa que não lhe é atribuída.
As normas gerais atinentes à poluição sonora estão delineadas na
Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente – Conama nº 01/90
(doc. 02), cujo item I esclarece que a “emissão de ruídos, em decorrência
de quaisquer atividades industriais, comerciais, sociais ou recreativas,
inclusive as de propaganda política, obedecerá, no interesse da saúde, do
sossego público, aos padrões, critérios e diretrizes estabelecidos nesta
Resolução”, dispondo o item II serem “prejudiciais à saúde e ao sossego
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público (...) ruídos com níveis superiores aos considerados aceitáveis pela
norma NBR 10.152 - Avaliação do Ruído em Áreas Habitadas visando o
conforto da comunidade, da Associação Brasileira de Normas Técnicas –
ABNT”.
Da análise da Tabela 1 constante da referida NBR 10152 (doc. 03), extrai-se
que os níveis aceitáveis mais elevados são aplicáveis a pavilhões fechados
para espetáculos e atividades esportivas, em nível sonoro aceitável que
pode variar de 45 dB(A) (nível sonoro para conforto) a 60 dB(A) (nível
sonoro aceitável para a finalidade – acima desse limite já se considera
zona de desconforto). Calha reproduzir toda a tabela:
Tabela 1 - Valores dB(A) e NC
Locais dB(A)
Hospitais
Apartamentos, Enfermarias, Berçários, Centros cirúrgicos
Laboratórios, Áreas para uso do público
Serviços
35-45
40-50
45-55
Escolas
Bibliotecas, Salas de música, Salas de desenho
Salas de aula, Laboratórios
Circulação
35-45
40-50
45-55
Hotéis
Apartamentos
Restaurantes, salas de estar
Portaria, recepção, circulação
45–55
40-50
45-55
Residências
Dormitórios
Salas de estar
35-45
40-50
Auditórios
Salas de concerto, teatros
Salas de conferência, cinemas, salas de uso múltiplo
30-40
35-45
Restaurantes 40-50
Escritórios
Salas de reunião
Salas de gerência, salas de projetos e de aministração
Salas de computadores
30-40
35-45
45-65
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Salas de mecanografia 50-60
Igrejas e templos (Cultos meditativos) 40-50
Locais para esporte
Pavilhões fechados para espetáculos e atividades esportivas
45-60
No escopo de melhor ilustrar o que os órgãos técnicos entendem por
limites admissíveis de ruídos, sem que se exponha a saúde humana a riscos,
releva trazer a lume o que diz outra norma técnica da ABNT, a NBR 10151
(doc. 04), na Tabela 1 – Nível de critério de avaliação NCA para ambientes
externos, em dB(A):
Tipos de áreas Diurno Noturno Área de sítios e fazendas 40 35 Área estritamente residencial urbana ou de hospitais ou de
escolas 50 45
Área mista, predominantemente residencial 55 50 Área mista, com vocação comercial e administrativa 60 55 Área mista, com vocação recreacional 65 55 Área predominantemente industrial 70 60
Logo, nas normas técnicas que regulam os patamares de propagação
sonora, o nível mais elevado alcança, no máximo, 70 dB(A).
Ocorre que, a malsinada Lei nº 3.819/2012 ignorou os balizamentos
técnicos federais, fazendo inserir alterações nas Leis nº 1.522/1191 e nº
3083/2007, para expandir aqueles limites apenas para as igrejas e templos
religiosos, fixando em 85 dB(A) para o horário de 7 às 22 horas, e ainda
tornando livre o horário quando se tratar de sábados, véspera de feriados e
datas religiosas de expressão popular.
A lei conferiu, assim, tratamento menos protetivo ao meio ambiente do que
a legislação federal, em clarividente extravasamento da competência
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legislativa municipal, e conseqüente violação dos artigos 19, inc. IV e 28, II
da Constituição do Estado do Espírito Santo.
Corroborando a tese ora apresentada, o Prof. Paulo Affonso Leme
Machado2 baseando-se na doutrina de Alvaro Luiz Valery Mirra pontua
que:
é bastante freqüente, na prática, que os Municípios, ao
legislarem em tema de meio ambiente, procurem diminuir o
rigor do legislador federal ou estadual e, com isso, ampliar
ou facilitar o exercício de atividades potencialmente
degradadoras do meio ambiente em seus territórios, sem o
devido respeito às restrições já anteriormente estabelecidas
pelas normas da União e dos Estados. Tais iniciativas das
municipalidades, porém, devem ser impugnadas por
contrariarem os limites constitucionais da competência
legislativa dos Municípios.
A mesma senda segue Márcia Dieguez Leuzinger3, afirmando que “não se
pode ignorar que o aspecto suplementar diz respeito exclusivamente ao
caráter mais restritivo da norma municipal, não sendo admitida pelo
sistema que contrarie ou deturpe a finalidade e conteúdo das normas
federais e estaduais, visto que a exacerbação da competência municipal
significaria, muitas vezes, o sacrifício da proteção e defesa do meio
ambiente”.
A jurisprudência segue nesse sentido. Esclarecedora decisão do Supremo
Tribunal Federal, mutatis mutandis aplicável ao caso:
2 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 13. ed. São Paulo:
Malheiros, 2004, p. 386. 3 LEUZINGER. Márcia Dieguez. Meio Ambiente: propriedade e repartição constitucional de
competências. Rio de Janeiro: Esplanada, 2002, p.131.
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E M E N T A: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE -
LEGITIMIDADE ATIVA DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS
DEFENSORES PÚBLICOS (ANADEP) - PERTINÊNCIA TEMÁTICA -
CONFIGURAÇÃO - DEFENSORIA PÚBLICA -RELEVÂNCIA DESSA
INSTITUIÇÃO PERMANENTE, ESSENCIAL À FUNÇÃO DO ESTADO
- A EFICÁCIA VINCULANTE, NO PROCESSO DE CONTROLE
ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE, NÃO SE ESTENDE AO
PODER LEGISLATIVO - LEGISLAÇÃO PERTINENTE À
ORGANIZAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA - MATÉRIA
SUBMETIDA AO REGIME DE COMPETÊNCIA CONCORRENTE
(CF, ART. 24, XIII, C/C O ART. 134, § 1º) - FIXAÇÃO, PELA
UNIÃO, DE DIRETRIZES GERAIS E, PELOS ESTADOS-MEMBROS,
DE NORMAS SUPLEMENTARES - LEI COMPLEMENTAR ESTADUAL
QUE ESTABELECE CRITÉRIOS PARA INVESTIDURA NOS CARGOS
DE DEFENSOR PÚBLICO-GERAL, DE SEU SUBSTITUTO E DE
CORREGEDOR-GERAL DA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO -
OFENSA AO ART. 134, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA,
NA REDAÇÃO QUE LHE DEU A EC Nº 45/2004 -LEI
COMPLEMENTAR ESTADUAL QUE CONTRARIA,
FRONTALMENTE, CRITÉRIOS MÍNIMOS LEGITIMAMENTE
VEICULADOS, EM SEDE DE NORMAS GERAIS, PELA UNIÃO
FEDERAL - INCONSTITUCIONALIDADE CARACTERIZADA -
AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE. ASSOCIAÇÃO
NACIONAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS (ANADEP) - ENTIDADE
DE CLASSE DE ÂMBITO NACIONAL - FISCALIZAÇÃO
NORMATIVA ABSTRATA - PERTINÊNCIA TEMÁTICA
DEMONSTRADA - LEGITIMIDADE ATIVA "AD CAUSAM"
RECONHECIDA. –
(...)
A USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA, QUANDO
PRATICADA POR QUALQUER DAS PESSOAS ESTATAIS,
QUALIFICA-SE COMO ATO DE TRANSGRESSÃO
CONSTITUCIONAL. - A Constituição da República, nos casos
de competência concorrente (CF, art. 24), estabeleceu
verdadeira situação de condomínio legislativo entre a União
Federal, os Estados-membros e o Distrito Federal (RAUL
MACHADO HORTA, "Estudos de Direito Constitucional", p. 366,
item n. 2, 1995, Del Rey), daí resultando clara repartição
vertical de competências normativas entre essas pessoas
estatais, cabendo, à União, estabelecer normas gerais (CF,
art. 24, § 1º), e, aos Estados-membros e ao Distrito Federal,
exercer competência suplementar (CF, art. 24, § 2º).
Doutrina. Precedentes. - Se é certo, de um lado, que, nas
hipóteses referidas no art. 24 da Constituição, a União
Federal não dispõe de poderes ilimitados que lhe permitam
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transpor o âmbito das normas gerais, para, assim, invadir, de
modo inconstitucional, a esfera de competência normativa
dos Estados-membros, não é menos exato, de outro, que o
Estado-membro, em existindo normas gerais veiculadas em
leis nacionais (como a Lei Orgânica Nacional da Defensoria
Pública, consubstanciada na Lei Complementar nº 80/94),
não pode ultrapassar os limites da competência meramente
suplementar, pois, se tal ocorrer, o diploma legislativo
estadual incidirá, diretamente, no vício da
inconstitucionalidade. A edição, por determinado Estado-
membro, de lei que contrarie, frontalmente, critérios mínimos
legitimamente veiculados, em sede de normas gerais, pela
União Federal ofende, de modo direto, o texto da Carta
Política. Precedentes. (...) (ADI 2903, Relator(a): Min. CELSO
DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 01/12/2005, DJe-177
DIVULG 18-09-2008 PUBLIC 19-09-2008 EMENT VOL-02333-01
PP-00064 RTJ VOL-00206-01 PP-00134)
Também o Superior Tribunal de Justiça se posicionou sobre o assunto:
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO RESCISÓRIA.
LEGITIMIDADE DO MUNICÍPIO PARA ATUAR NA DEFESA DE SUA
COMPETÊNCIA CONSTITUCIONAL. NORMAS DE PROTEÇÃO
AO MEIO AMBIENTE. COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR.
EDIFICAÇÃO LITORÂNEA. CONCESSÃO DE ALVARÁ
MUNICIPAL. LEI PARANAENSE N. 7.389/80. VIOLAÇÃO. (...)2. A
teor do disposto nos arts. 24 e 30 da Constituição Federal,
aos Municípios, no âmbito do exercício da competência
legislativa, cumpre a observância das normas editadas pela
União e pelos Estados, como as referentes à proteção das
paisagens naturais notáveis e ao meio ambiente, não
podendo contrariá-las, mas tão somente legislar em
circunstâncias remanescentes. (...) 4. A Lei Municipal n.
05/89, que instituiu diretrizes para o zoneamento e uso do
solo no Município de Guaratuba, possibilitando a expedição
de alvará de licença municipal para a construção de
edifícios com gabarito acima do permitido para o local, está
em desacordo com as limitações urbanísticas impostas
pelas legislações estaduais então em vigor e fora dos
parâmetros autorizados pelo Conselho do Litoral, o que
enseja a imposição de medidas administrativas coercitivas
prescritas pelo Decreto Estadual n. 6.274, de 09 de março de
1983. Precedentes: RMS 9.279/PR, Min. Francisco Falcão, DJ
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de 9.279/PR, 1ª T., Min. Francisco Falcão, DJ de 28.02.2000;
RMS 13.252/PR, 2ª T., Min. Francisco Peçanha Martins, DJ de
03.11.2003. (AR 199800252860, TEORI ALBINO ZAVASCKI, STJ -
PRIMEIRA SEÇÃO, 14/04/2008)
Da mesma forma, o Pleno do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito
Santo em recente julgado, assim se posicionou:
EMENTA: ação DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
Suspensão LIMINAR DA VIGÊNCIA DA LEI MUNICIPAL N
2.392/2004. AUTORIA DO PODER LEGISLATIVO DO MUNICÍPIO
DE GUARAPARI. AUMENTO DO LIMITE DE PROPAGAÇÃO DE
SOM PREJUDICIAL À SAÚDE PÚBLICA. INFRINGÊNCIA DA
LEGISLAÇÃO FEDERAL DE REGÊNCIA. ELEVAÇÃO DOS
PATAMARES MÁXIMOS DE DECIBÉIS. COMPETÊNCIA
LEGISLATIVA SUPLEMENTAR OU COMPLEMENTAR DO
MUNICÍPIO. APARENTE INCONSTITUCIONALIDADE VERIFICADA.
PRESENÇA DO FUMUS BONI IURIS E DO PERICULUM IN MORA.
LIMINAR CONCEDIDA. 1. Levando em consideração a
natureza cautelar da medida liminar em sede de Ação
direta de inconstitucionalidade (RITJES, art. 169, alínea "b"),
necessária se faz a presença do fumus boni iuris e do
periculum in mora. 2. Considerando que compete ao
município legislar sobre assunto de interesse local de forma
suplementar ou complementar à legislação federal e
estadual (art. 30, inciso II c/c art. 24, inciso VI, da CF e art. 28,
incisos I e II, da Constituição do Estado do Espírito Santo),
não poderia a Lei Municipal nº 2.392/2004 elevar os limites
dos níveis toleráveis de sons e ruídos prejudiciais à saúde já
estabelecidos pela legislação federal de regência. 3. Na
hipótese, verifica-se a presença do fumus boni iuris,
porquanto a Lei Municipal nº 2.392/2004 elevou os limites
máximos de pressão sonora. Ultrapassando os parâmetros já
estabelecidos pela legislação geral nacional. Inclusive no
que diz respeito à determinação da União em relação à
observância de normas técnicas editadas pelos órgãos
normatizadores (ABNT e INMETRO). 4. Por sua vez, a presença
do periculum in mora se verifica em razão do habitual e
frequente exacerbamento de potentes aparelhos de som
utilizados com alto volume em vias públicas, provocando a
consequente poluição sonora a redução da capacidade
auditiva das pessoas, além de afetar negativamente o
turismo regional, sendo de somenos importância a
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circunstância de ter sido a lei municipal em referência
editada em idos de 2004, notadamente porque o dano à
saúde pública é contínuo. 5. Verificada a presença dos
requisitos legais e o relevante interesse de ordem pública,
imperioso deferir o pedido liminar, para determinar a
suspensão da eficácia da Lei nº 2.392/2004, do Município de
Guarapari. (TJES, Classe: Ação de Inconstitucionalidade,
100110014402, Relator : CARLOS HENRIQUE RIOS DO AMARAL,
Órgão julgador: TRIBUNAL PLENO, Data de Julgamento:
29/03/2012, Data da Publicação no Diário: 23/04/2012)
Em remate, lapidar decisão desse E. Tribunal de Justiça, assentando que a
atividade legislativa municipal em caráter suplementar não pode
prevalecer sobre normações gerais federais, conforme se lê do excerto
jurisprudencial que segue:
CONSTITUCIONAL E AMBIENTAL. USO DO SOLO URBANO.
COMPETÊNCIA CONCORRENTE. MEIO AMBIENTE. INTERESSE
DA COLETIVIDADE. 1. O uso do solo urbano submete-se aos
princípios constitucionais que informam a função social da
propriedade, evidenciando a defesa do meio ambiente e
do bem estar comum da sociedade. 2. Segundo
precedente do STJ, "a União, os Estados e os Municípios têm
competência concorrente para legislar sobre o
estabelecimento das limitações urbanísticas no que diz
respeito às restrições do uso da propriedade em benefício
do interesse coletivo, em defesa do meio ambiente para
preservação da saúde pública e, até, do lazer" (RONS
8.766⁄PR). 3. Incide, no caso, a Lei Federal nº 6.676⁄79 e a Lei
Estadual nº 3.384⁄80, com a redação do artigo 45 dada pela
Lei nº 5.640⁄98, o que retira a eficácia de qualquer Lei
Municipal que contrarie os citados diplomas legais. 4. A
citada legislação não impede o parcelamento ou
desmembramento do solo em determinadas regiões
consideradas Zonas Especiais, dentre elas o Município de
Guarapari, mas tão somente normativam a forma como se
dará o fracionamento, para evitar abusos ou degradações
do solo e do meio ambiente. 5. Recurso desprovido. (TJES,
Classe: Apelação Civel, 21990192771, Relator: JOSÉ
EDUARDO GRANDI RIBEIRO - Relator Substituto : SAMUEL
MEIRA BRASIL JUNIOR, Órgão julgador: TERCEIRA CÂMARA
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CÍVEL , Data de Julgamento: 20/08/2002, Data da
Publicação no Diário: 12/11/2002)
Ademais, ao determinar que as igrejas e templos religiosos poderiam
ultrapassar o período das 22 horas nos sábados, véspera de feridos e datas
religiosas de expressão popular, quando seria livre o horário, a Lei em
comento ainda desconsiderou por completo o item 6.2.2 trazido pela NBR
10151, norma técnica da ABNT, que dispõe acerca dos limites admissíveis
de ruídos, sem que se exponha a saúde humana a riscos:
6.2.2. Os limites de horário para o período diurno e noturno
da tabela 1 podem ser definidos pelas autoridades de
acordo com os hábitos da população. Porém, o período
noturno não deve começar depois das 22 h e não deve
terminar antes das 7 h do dia seguinte. Se o dia seguinte for
domingo ou feriado o término do período noturno não deve
ser antes das 9 h.
Portanto, vislumbra-se que é dada certa discricionariedade à autoridade
local para determinar os limites de horário para o período diurno e noturno
de acordo com os hábitos da população. Entretanto, esta
discricionariedade se encontra balizada pela segunda parte do item
acima, pelo qual se impõe que o limite de horário nunca comece depois
das 22 horas nem termine antes da 7 horas, logo, o horário de 22 às 7 horas
deve sempre ser observado.
Além disso, percebe-se que, ao tratar de feriados e domingos, a norma
técnica supratranscrita é ainda mais criteriosa, haja vista que para estes
casos o horário noturno não deve terminar antes das 9 horas.
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Sendo assim, a lei municipal, ao suplementar legislação de matéria de
competência concorrente do Estado e da União, não poderia ter
suprimido o rigor trazido pelas normas federais e estaduais, poderia apenas
ampliar o seu rigor, com escopo de adequar a norma ao interesse local.
Entretanto, a norma municipal não só trouxe o aumento do limite sonoro
para 85 dB, como também flexibilizou os limites de horários, permitindo que
o limite sonoro diurno fosse estendido ao período noturno,
desconsiderando por completo os reais motivos das limitações sonoras e
de horário trazidas pela legislação federal, que são a garantia do sossego
público e da saúde da população, bem como a garantia a um meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
Ante o exposto, resta clarividente que houve extravasamento da
competência legislativa municipal, e consequente violação aos artigos 19,
inc. IV e 28, II da Constituição do Estado do Espírito Santo, razão pela qual
deve ser declarada a inconstitucionalidade da Lei nº 3.819/2012, do
Município da Serra.
III – VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E DO MEIO AMBIENTE
ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO – A MAJORAÇÃO DO LIMITE SONORO
APENAS PARA IGREJAS E TEMPLOS RELIGIOSOS AFRONTA AOS ARTS. 1º E 186
DA CARTA ESTADUAL
Destaca-se, outrossim, o tratamento diferenciado conferido pela lei ora em
análise às igrejas e aos templos religiosos.
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A Lei 3.819/2012, do Município da Serra, estabeleceu limite sonoro mais
benéfico às igrejas e aos templos religiosos (85 dB, no período de 7 às 22
horas), e ainda determinou que os mesmos podem ultrapassar o horário
das 22 horas quando se tratar de sábados, véspera de feriados e datas
religiosas de expressão popular.
Contudo, vislumbra-se que este tratamento diferenciado viola não só os
limites impostos pela Resolução CONAMA nº 001/1990 e pelas normas
técnicas trazidas pelas NBR 10152 e NBR 10151, conforme explanado no
tópico anterior, como também afronta aos princípios da igualdade e do
meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Nesse ponto, destacam-se os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de
Mello, quando discorre acerca do descumprimento de princípios:
Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma
norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa
não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas
a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de
ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão
do princípio atingido, porque representa a insurgência
contra todo o sistema, subversão de seus valores
fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço
lógico e corrosão de sua estrutura mestra.
No que tange ao princípio da igualdade, imperioso se faz a leitura do
artigo 1º da Constituição Estadual do Espírito Santo, do qual se infere a
observância aos princípios fundamentais trazidos pela Carta Magna,
vejamos:
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Art. 1º. O Estado do Espírito Santo e seus Municípios integram
a República Federativa do Brasil e adotam os princípios
fundamentais da Constituição Federal.
Em razão da norma constitucional estadual supra, que faz remissão aos
princípios fundamentais da Carta Magna, resta clarividente que também
são adotados no ordenamento jurídico estadual os princípios trazidos pelo
caput do artigo 5º da Constituição Federal4, dentre eles o princípio da
igualdade.
A respeito da possibilidade de se adotar normas constitucionais estaduais
remissivas à Constituição Federal no controle de constitucionalidade
estadual, destaca-se o brilhante julgado de relatoria da Desembargadora
Catharina Maria Novaes Barcellos:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº
3.062⁄2007, ORIUNDA DO MUNICÍPIO DE SERRA. CRIAÇÃO DE
PRIORIDADE PARA OS ARTISTAS LOCAIS EM EVENTOS CULTURAIS.
INVOCAÇÃO DE CONTRARIEDADE A NORMA CONSTITUCIONAL
ESTADUAL REMISSIVA A ASPECTOS DA CARTA REPUBLICANA.
PARÂMETRO IDÔNEO PARA O CONTROLE CONCENTRADO PERANTE
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA. NATURALIDADE. FATOR DE DISCRÍMEN
ALHEIO OU EXTERIOR ÀS PESSOAS. OFENSA AO PRINCÍPIO DA
ISONOMIA E, POR VIA DE CONSEQUÊNCIA, AOS ARTIGOS 1º E 3º DA
CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. PEDIDO JULGADO
PROCEDENTE. EFEITOS EX TUNC. I. As normas constitucionais
estaduais remissivas à disciplina de determinada matéria prevista
na Constituição Federal constituem parâmetro idôneo de controle
concentrado de constitucionalidade no âmbito do Tribunal de
Justiça local. II. Segundo o nosso modelo federativo, cada Estado-
membro possui não apenas o dever de se abster de violar os
princípios cuja observância por cada componente seja
obrigatória, mas também o dever de realizar os fins eleitos na
Constituição federal, assim como assegurar que os seus princípios
sejam observados pela comunidade estadual, na sua esfera de
4 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
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vigência, inclusive mediante o controle de constitucionalidade.
[...] IX. Partindo-se do princípio da unidade da Constituição,
mediante o qual se estabelece que nenhuma norma
constitucional será interpretada em contradição com outro
enunciado do mesmo texto, e atentando-se, simultaneamente,
para o entendimento consolidado do STF no sentido de não haver
graus distintos de hierarquia entre normas constitucionais - ou seja,
todas elas se colocariam no mesmo plano - não é possível
implementar ação afirmativa ao arrepio do texto constitucional
(inc. III do art. 19), mormente quando ele busca densificar a matriz
principiológica contemplada no caput do art. 5º do Estatuto
Supremo. X. Ao afrontar o princípio da isonomia positivado na
Constituição Republicana, o art. 1º da Lei Municipal nº 3.062⁄2007
também violou as proposições remissivas veiculadas nos arts. 1º e
3º da Carta Magna Estadual, o que autoriza a procedência do
pedido veiculado na presente demanda, com efeitos ex tunc. XI.
Pedido julgado procedente. (TJES, Classe: Ação de
Inconstitucionalidade, 100080013152, Relator: CATHARINA MARIA
NOVAES BARCELLOS, Órgão julgador: TRIBUNAL PLENO, Data de
Julgamento: 18/06/2009, Data da Publicação no Diário:
06/07/2009).
Portanto, conforme explanado pela Eminente Desembargadora Relatora,
a proposição remissiva trazida pelo artigo 1º da Constituição Estadual
constitui parâmetro para o controle de constitucionalidade estadual.
Sendo assim, não há qualquer empecilho para que este Egrégio Tribunal
de Justiça declare a inconstitucionalidade de norma municipal com base
na violação ao princípio da igualdade. Feita esta ressalva, retornemos à
análise da inconstitucionalidade da Lei nº. 3.819/2012.
Conforme se infere do diploma legislativo ora impugnado, foi estabelecido
tratamento diferenciado às igrejas e aos templos religiosos, em razão de as
comunidades religiosas desempenharem “um papel de extrema
importância em nossa sociedade”, e, ainda, em função de se considerar
que a legislação tem sido injusta e penosa com as comunidades religiosas
ao exigir que estas cumpram a lei e isolem acusticamente seus espaços.
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Logo, a lei ora em análise se fundamenta no papel social desempenhado
pelas igrejas e templos religiosos e na falta de recursos financeiros que
estes dispõem, para justificar tratamento mais benéfico do que aquele
despendido aos demais contribuintes do Município.
Ora, como se pode afirmar que a exigência de cumprimento de uma lei
seja penosa e injusta para as igrejas e templos religiosos ao mesmo tempo
em que é plenamente aceitável para os demais munícipes? Ou então,
como presumir que apenas as igrejas e os templos religiosos não dispõem
de recursos para fazer isolamento acústico?
Por certo, não é razoável permitir que algumas entidades produzam
poluição sonora em razão de suas atividades, inclusive em qualquer
horário, sem que se exija delas as mesmas medidas mitigadoras exigíveis
dos demais cidadãos, como por exemplo, a implantação de isolamento
acústico.
Urge salientar que a inconstitucionalidade neste caso se dá em razão de a
mesma lei conceder tratamento mais benéfico às igrejas e aos templos
religiosos ao mesmo tempo em que determina para as demais
manifestações dos munícipes a observância aos limites regulares de
propagação sonora, desprendendo tratamentos diferentes para situações
idênticas.
Sob esse aspecto, cumpre colacionar os ensinamentos do ilustre Ministro
Gilmar Ferreira Mendes, ao discorrer acerca do princípio da isonomia:
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O princípio da isonomia pode ser visto tanto como exigência
de tratamento igualitário (Gleichbehandlungsgebot) quanto
como proibição de tratamento discriminatório
(ungleichbehandlungsverbot).[...] Tem-se a exclusão de
beneficio incompatível com o principio da igualdade se a
norma afronta o princípio da isonomia, concedendo
vantagens ou benefícios a alguns segmentos ou grupos sem
contemplar outros que se encontram em condições
idênticas. Essa exclusão pode verificar-se de forma
concludente ou explícita. Ela é concludente se a lei
concede benefícios apenas a um grupo específico; a
exclusão de benefícios é explícita se a lei geral que outorga
determinados benefícios a certo grupo exclui sua aplicação
a outros segmentos. O postulado da igualdade pressupõe a
existência de, pelo menos, duas situações que se encontram
numa relação de comparação. Essa relatividade do
postulado da isonomia leva, segundo Maurer, a uma
inconstitucionalidade relativa (relative Verfassungswidrigkeit)
não no sentido de uma inconstitucionalidade menos grave.
É que inconstitucional não se afigura a norma “A” ou “B”,
mas a disciplina diferenciada das situações (die
Unterschiedlichkeit der Regelung)5.
Devemos nos ater ainda para o fato de que o Brasil é um estado laico, e
tal norma atenta contra a liberdade individual de crença religiosa. Isso
porque, a partir do momento que a produção de ruída por igrejas e
templos é permitida em níveis que atinjam os locais próximos, estar-se-á
obrigando a todas as pessoas próximas, independentemente de seu
credo, a participar, mesmo que indiretamente, da atividade religiosa, o
que não é admissível em um Estado Democrático de Direito.
De tal forma, aos cultos religiosos devem ser impostas as mesmas restrições
dadas às manifestações públicas em geral, como forma de preservação
do princípio da igualdade. Não sendo aceitável permitir que o legislador
5 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade:
Estudos de Direito Constitucional. 3. Ed. Ver. E ampl. São Paulo: Saraiva, 2007. P. 10-11.
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municipal crie norma para dar tônus de legalidade a uma situação
claramente atentatória às garantias constitucionais.
No que tange ao dever do legislativo de observar o princípio da
igualdade, destaca-se o ensinamento de Uadi Lammego Bulos, in verbis:
A igualdade constitucional mais do que um direito é um
princípio, uma regra de ouro, que serve de diretriz
interpretativa para as demais normas constitucionais. Daí o
Supremo Tribunal Federal apontar o seu tríplice objetivo:
limitar o legislador, a autoridade pública e o particular. [...]
Como limite ao legislador, a isonomia impede que ele crie
normas veiculadoras de desequiparações ilícitas e
inconstitucionais.6
De outro giro, a lei em comento ainda afronta à garantia constitucional a
um meio ambiente ecologicamente equilibrado, esculpida no artigo 186
da Carta Estadual.
Art. 186. Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente saudável e equilibrado, impondo-se-lhes e,
em especial, ao Estado e aos Municípios, o dever de zelar
por sua preservação, conservação e recuperação em
benefício das gerações atuais e futuras.
A violação ao princípio contido no dispositivo supra é facilmente
constatada ao se considerar que o Legislativo Municipal, ao autorizar que
os templos religiosos ultrapassem os limites sonoros, impõe aos cidadãos do
Município da Serra a convivência com ruídos em nível prejudicial à saúde e
ao sossego. Conclui-se que o legislativo, no presente caso, promove o
estímulo à poluição sonora quando deveria combatê-la.
6 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 6. Ed. Ver. E atual. São Paulo:
Saraiva, 2011. P. 541.
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Urge, pois, que se restabeleça o direito fundamental da presente geração
a viver numa cidade que prima pelo meio ambiente ecologicamente
equilibrado, e, ainda, que zela pela igualdade de tratamento aos
munícipes, suspendendo os efeitos da Lei em comento por afronta aos
artigos 1º e 186 da Constituição Estadual.
IV – DA ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA
Na presente Ação Direta de Inconstitucionalidade, não se almeja a análise
de um caso concreto, mas sim de lei municipal, com o escopo de se
declarar sua inconstitucionalidade em face da Constituição Estadual,
extirpando do mundo jurídico norma que conflita com essa Lei
Fundamental.
Destarte, necessário se faz a concessão antecipada dos efeitos da tutela
pretendida na presente Ação Direta de Inconstitucionalidade, com
espeque no art. 10 e seguintes da Lei nº 9.868/99, c/c artigo 273 do Estatuto
Adjetivo Civil, pelos fundamentos adiante demonstrados:
Inicialmente, temos o requisito imprescindível à concessão da tutela
satisfativa in limine litis – fumus boni iuris, facilmente constatado pela singela
análise do diploma legal impugnado, que, no exercício de competência
legislativa suplementar, firma limites de pressão sonora que excedem os
limites fixados pelas normas gerais federais de regência, em claro
desbordo de sua competência legislativa, e, ainda, o faz em benefício de
parcela da população, em clara violação aos princípios da igualdade e
do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
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Já o periculum in mora reside no fato de a coletividade ser compelida a
suportar limites de propagação do som potencialmente prejudiciais à
saúde. Tal situação, de grave periclitação do bem-estar público pela
poluição sonora, bem como a interferência na liberdade religiosa, não
podem se prolongar no tempo, devendo ser o quanto antes coibida por
essa Colenda Corte.
Desta forma é urgente a concessão da medida liminar por essa Corte
Constitucional Estadual, tendo em vista estar cabalmente comprovada a
inconstitucionalidade da Lei nº 3.819, de 04 de janeiro de 2012, do
Município de Serra.
IV – DOS PEDIDOS
Ex positis, requeiro:
a) A suspensão liminar da vigência da Lei Municipal nº 3.819/2012,
do Município de Serra, conforme artigo 169, alínea “b”, do
Regimento Interno deste Egrégio Tribunal de Justiça e artigo 12
da Lei Federal nº. 9.868/99;
b) A notificação do Presidente da Câmara Municipal e do Prefeito
da Serra, para os fins previstos no artigo 169, alínea “a”, do
Regimento Interno deste Egrégio Tribunal de Justiça;
c) E, por derradeiro, seja a presente Ação Direta de
Inconstitucionalidade julgada procedente, declarando-se a
inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 3819/2012, do Município
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de Serra, adotando-se as providências necessárias para que
cessem, ex tunc, todos os seus efeitos.
Dá-se à causa, por força de expressa disposição legal, o valor de R$ 100,00
(cem reais).
Pede deferimento.
Vitória, em 26 de abril de 2012.
FERNANDO ZARDINI ANTONIO
PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA