exceções da gravidade

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Os clowns (...) sempre tratam do mesmo problema, qual seja, da fome: a fome de comida, a fome de sexo, mas também fome de dignidade, de identidade, de poder. Realmente a questão que abordam constantemente é de saber quem manda, quem grita. No mundo dos clowns só existem duas alternativas: ser dominado, resultando no eterno submisso, a vítima, como acontece na Commedia dell’Arte; ou dominar, assim surge a figura do patrão, o clown branco (o Louis), que já conhecemos. É ele que conduz o jogo, que dá as ordens, insulta, manda e desmanda. Dario Fo. Manual Mínimo do Ator. Domínios da incompetência Exceções à gravidade Por Luciana Romagnolli Lido à queima-roupa, o título acima pode iludir um desastre distante do que vemos de fato no espetáculo estadunidense Exceções à Gravidade, apresentado no Circos – Fesival Internacional Sesc de Circo. Igualmente longe, porém, está de ser falso. A contradição sobre a qual se move o veterano palhaço Avner não é outra senão a incompetência absoluta para as ações mais triviais, como acender um cigarro ou colocar o chapéu, frente não somente à destreza para pequenas acrobacias, equilibrismos e prestidigitações, como também à impressionante perícia para a falha. Afinal, não parece mais simples errar virtuosamente, com precisão de tempo, espaço e ritmo, do que equilibrar uma escada de metal sobre o nariz. Sem a mínima máscara vermelha a recobrir a extremidade olfativa, mas trajado semi-à-paisana com chapéu, calças pretas e suspensório, o artista reinventa o protagonismo do nariz como ponto de suporte para o equilíbrio de jornais, penas e demais objetos. Inscrito na tradição dos palhaços mudos, cuja comunicação dá-se toda por pantomima, Avner insiste na repetição de uma nota só, a do erro, para então pegar a plateia no contrapé de um êxito insuspeitado. Suas habilidades surpreendem duplamente por não corresponderem às expectativas nem da imagem de um senhor de mais de sessenta anos, nem da comédia de erros de suas ações iniciais, dignas do convidado trapalhão de Peter Sellers. Para um artista do corpo, o encanto está justamente em fazer parecer fácil o que é difícil. E difícil, o que é fácil. Se no correr dos séculos muitas vezes o clown se desvencilhou de suas raízes mais transgressoras, identificadas primeiramente com

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Crítica realizada para a Circus - Festival Sesc de Circo

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Os clowns (...) sempre tratam do mesmo problema, qual seja, da fome: a fome de comida, a fome de sexo, mas tambm fome de dignidade, de identidade, de poder. Realmente a questo que abordam constantemente de saber quem manda, quem grita. No mundo dos clowns s existem duas alternativas: ser dominado, resultando no eterno submisso, a vtima, como acontece na Commedia dellArte; ou dominar, assim surge a figura do patro, o clown branco (o Louis), que j conhecemos. ele que conduz o jogo, que d as ordens, insulta, manda e desmanda.Dario Fo. Manual Mnimo do Ator.

Domnios da incompetnciaExcees gravidadePor Luciana RomagnolliLido queima-roupa, o ttulo acima pode iludir um desastre distante do que vemos de fato no espetculo estadunidense Excees Gravidade, apresentado no Circos Fesival Internacional Sesc de Circo. Igualmente longe, porm, est de ser falso. A contradio sobre a qual se move o veterano palhao Avner no outra seno a incompetncia absoluta para as aes mais triviais, como acender um cigarro ou colocar o chapu, frente no somente destreza para pequenas acrobacias, equilibrismos e prestidigitaes, como tambm impressionante percia para a falha. Afinal, no parece mais simples errar virtuosamente, com preciso de tempo, espao e ritmo, do que equilibrar uma escada de metal sobre o nariz. Sem a mnima mscara vermelha a recobrir a extremidade olfativa, mas trajado semi--paisana com chapu, calas pretas e suspensrio, o artista reinventa o protagonismo do nariz como ponto de suporte para o equilbrio de jornais, penas e demais objetos. Inscrito na tradio dos palhaos mudos, cuja comunicao d-se toda por pantomima, Avner insiste na repetio de uma nota s, a do erro, para ento pegar a plateia no contrap de um xito insuspeitado. Suas habilidades surpreendem duplamente por no corresponderem s expectativas nem da imagem de um senhor de mais de sessenta anos, nem da comdia de erros de suas aes iniciais, dignas do convidado trapalho de Peter Sellers. Para um artista do corpo, o encanto est justamente em fazer parecer fcil o que difcil. E difcil, o que fcil.Se no correr dos sculos muitas vezes o clown se desvencilhou de suas razes mais transgressoras, identificadas primeiramente com o grotesco e, num segundo momento, com a crtica da conduta humana, e trocou o incmodo de uma postura cruel e provocadora por uma atitude docilizada, eis hoje sua transgresso: como ser poltico, a recusa tirania do alto desempenho em uma sociedade com horror improdutividade. A virtuose da estupidez abre a rota fora do padro. Pois no seria o gasto improdutivo o que h de menos homogeneizvel no mundo? Esta reduo do humano falha, imperfeio, ignorncia paspalho diante da vida, diria a pesquisadora Katia Maria Kasper , personificada ao longo da histria pela figura do palhao ganha ento outros matizes diante da habilidade de Avner na manipulao de objetos. sua maneira, os faz danar, tal como Chaplin com os pes, sejam pilhas de copos de plstico ou seu indefectvel chapu preto. Enquanto, no circo, o palhao espanta o medo entre um e outro nmero de risco, por vezes repetindo satiricamente as acrobacias recm-vistas, quando se converte no dono absoluto do show, Avner concentra em reduzida escala aptides de outros artistas de picadeiro, como o ilusionista e o equilibrista, e faz do palco de Excees Gravidade um microcosmo da diversidade circense. Menos ambicioso, claro, como melhor cabe inadequao prpria de um palhao.Outro trao distintivo dessa figura o que Dario Fo chamou de fome de poder. Avner a um s tempo tolo e dominador uma espcie de fuso da tradicional dupla Branco (astuto e autoritrio) e Augusto (ingnuo e desajeitado) num mesmo corpo, sendo que a dominao zombeteira do primeiro sobre o segundo recai tambm sobre a plateia. Esta uma construo gradativa. O senhor carismtico falseia ora expresses de medo ora de segurana, enredando os espectadores num tranado de sentimentos que vo constituindo a cumplicidade entre plateia e palco. No controle da multido sua frente, Avner converte seu apetite por satisfazer os espectadores em nsia destes por agrad-lo. O artista vira o jogo sutilmente lanando mo de estratgias como aumentar a luz sobre as cadeiras, fazer de um flash inapropriado um longo improviso e dirigir, como maestro, coros de vozes e palmas. tal o seu domnio em ludibriar o pblico e, assim, conquistar sua adeso irrestrita, que at o ltimo aplauso obedece sua regncia.