eugène enriquez__01__o papel do sujeito humano na dinâmica social

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  • 7/29/2019 eugne enriquez__01__o papel do sujeito humano na dinmica social

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    in: Psicossociologia: Anlise social e interveno (de Andr Lvy, Andr Nicola, EugneEnriquez e Jean Dubost); belo horizonte; 2001; autntica; pgs.: 027 ~ 044

    O PAPEL DO SUJEITO HUMANO NA

    DINMICA SOCIAL (1)

    Eugne Enriquez

    O tema que abordarei tem retido minha ateno h vrios anos (2). A razo simples: comomuitos outros autores, fiquei irritado com o sucesso das teses sobre a morte do sujeito(desenvolvidas por discpulos dogmticos de Michel FOUCAULT) e com as teses sobre ahistria como processo sem sujeito (L. ALTHUSSER). De minha parte, pareceu-me sempre

    aberrante fazer desaparecer o indivduo humano do movimento da histria, pois, em maiorou menor grau, ele participa da dinmica de uma determinada sociedade, como psique,como lugar de condutas significativas e como ser em interao contnua com outros, emgrupos e organizaes. Fazer desaparecer o indivduo ou o sujeito (voltarei mais tarde distino que possvel fazer entre esses dois termos), sob o pretexto de que o pensamento"de direita" s tinha encarado a histria sob o ngulo da ao dos grandes homens, pareceu-me o sinal do triunfo de teorias que enaltecem, mesmo sem diz-lo, um determinismoabsoluto dos processos sociais. Seguindo essas abordagens, o indivduo s pode endossarcondutas enunciadas como legtimas por sua nao, sua classe ou sua raa. O indivduotorna-se, assim, um ser falado, um ser agido; ele nunca um ser falante nem um autor de

    seus atos.

    contra essa tendncia reducionista, que nega a interrogao de D. LAGACHE, segundo aqual "o papel das personalidades individuais na histria no pode ser descartado a priori",que decidi me manifestar.

    No momento atual, meu propsito susceptvel de ser considerado como modismo. Asgrandes determinaes sociais esto enterradas (sem dvida um pouco precipitadamentedemais) e, ao invs, s se fala do indivduo, do sujeito, do aumento do individualismo. Noentanto, no porque esse tema voltou violentamente que vou abandon-lo. Com efeito, por

    um lado, fui um dos primeiros a abord-lo e no tenho nenhuma razo para me desdizer; poroutro lado, a argumentao que proponho se afasta da que tem sido habitualmenteapresentada.

    Para ir diretamente ao cerne do assunto, gostaria de partir de uma considerao trivial: todoindivduo nasce em uma sociedade que instaurou, em parte voluntariamente, em parteinconscientemente, uma cultura. Em outras palavras, impossvel analisar a conduta de umindivduo sem referi-la conduta dos outros para com ele, conduta estruturada social eculturalmente. Nessas condies, para retomar a terminologia de C. CASTORIADIS, todoindivduo fundamentalmente heternomo, isto , ele s existe e s pode funcionar no

    interior de um social dado, de uma cultura particular que desenvolve suas "significaesimaginrias" (CASTORIADIS) (3) especficas e que lhe dita, em parte, sua conduta. Nessascondies, preciso pressupor, logicamente, a anterioridade dos processos sociais, j que

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    nascemos sempre em um grupo, em uma etnia, em uma classe, em uma nao etc.

    Essa emergncia acontece, alm disso, numa sociedade que , ela prpria, heternima, jque ela no se pensa como sendo o produto da ao histrica e da atividade psquica de seusmembros, mas como estando submetida a um Sagrado Transcendente, que pode tomar aforma de totens, de antepassados e de Deuses, ou de um Deus nico, que lhe deu direito existncia. Uma tal sociedade heternima tem, portanto, tendncia a s produzir indivduosheternimos, conformados a seus votos e a seus ideais. No necessrio, no entanto, irmuito longe nesse sentido, ou seramos constrangidos a nos alinhar tese que querocombater: a do determinismo social que traz, ao mesmo tempo, o esvaziamento da histria(j que a histria tem um sentido predeterminado, quer seja por Deus, BOSSUET, BURKE,DE MAISTRE, quer pelo desenvolvimento das foras produtivas, MARX, LENIN) e o do

    papel do indivduo em um processo que se desenvolve segundo uma lgica implacvel. Defato, as sociedades nunca so totalmente heternimas. Elas crem em seus Deuses e em seusmitos, mas s at certo ponto (Paul VEYNE (4) teve razo ao perguntar se os gregosacreditavam em seus mitos). Freqentemente, elas souberam mant-los " maior distncia

    possvel" (5), a fim de que eles desempenhassem seu papel de garantia das vidas psquica esocial, mas deixassem tambm, a cada homem, "a possibilidade de saber que alhures, numlugar-tela, se projetam os desejos mais insatisfeitos e ficar seguro de que esse alhures novir invadir o aqui da vida cotidiana" (6).

    S quando os religiosos cedem ao desejo de instaurar um Estado teocrtico, que pode exigiro sacrifcio de seus membros pela causa que encarna, que a distncia no pode mais sermantida e que possvel situar a sociedade completamente (ou quase completamente,

    porque toda sociedade comporta falhas, zonas inexploradas, portadoras de mudanaspossveis) do lado da heteronomia. Notemos que as sociedades modernas, desde aRenascena e, sobretudo, desde a Revoluo Francesa, souberam deixar sua parte aoreligioso sem lhe atribuir uma autoridade essencial sobre as conscincias nem um papelcentral na organizao. Elas se tornaram, mesmo sem perceb-lo, cada vez mais fundadorasdelas mesmas e afastaram um pouco seu aspecto heternimo e, em certos casos, fantico (7).

    Quanto ao indivduo humano, ele tambm s parcialmente heternimo. Embora exista, emtoda sociedade, um discurso dominante, esse discurso modulado diferentemente pelosdiversos grupos e classes que compem essa sociedade e, s vezes, at mesmo se choca, noa um contra-discurso organizado mas, como dizem FRITSCH e PASSERON, choca-se a

    condutas que se referem a outros valores e hbitos, ignorando soberanamente a ideologiadominante. Alm disso, no se pode esquecer que o discurso, por mais totalitrio que seja,no reina totalmente sobre as conscinciase os inconscientes e que ele provoca fenmenosde rejeio, a mdio ou a longo prazo. claro que conseqncias danosas podem decorrerde tal discurso. Mas, como FREUD aponta:

    no parece que se possa levar o homem, seja l por que modo, a trocar sua natureza pela deum trmita; ele sempre estar inclinado a defender seu direito liberdade individual, contraa vontade da massa (8).

    Enfim, devemos nos le

    mbrar que cada indivduo um desvio em relao a todos os outros,na medida em que sua psique se estrutura progressivamente, apoiando-se nas funescorporais, em pessoas e grupos sempre diferentes. Deve-se, portanto, concluir que o

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    indivduo mais heternimo (mais conformado aos imperativos sociais) est sempre emcondies de demonstrar, como evocava FREUD, uma "parcela de originalidade e deautonomia".

    Acrescentarei ainda que o indivduo desempenha sempre, de maneira invisvel, pelo menosde imediato e, s vezes, sem sab-lo, um papel essencial nas transformaes sociais. O queescreve CASTORIADIS a respeito do nascimento do capitalismo esclarece esse ponto:

    Centenas de burgueses, visitados ou no pelo esprito de Calvino e pela ideia de asceseintramundana, se pem a acumular riquezas. Milhares de artesos arruinados e decamponeses esfaimados encontram-se disponveis para entrar nas fbricas. Algum inventauma mquina a vapor, outro um novo tear. Filsofos e fsicos tentam pensar o universocomo uma grande mquina e buscam encontrar suas leis. Reis continuam a se subordinar e adebilitar a nobreza e criam instituies nacionais. Todos os indivduos e grupos em questo

    perseguem fins que lhes so prprios. Ningum visa totalidade social enquanto tal. Noentanto, o resultado, o capitalismo, de uma ordem completamente diferente (9).

    Assim, se os processos psicogenticos pressupem, ento, os processos sociais, comosublinha CASTORIADIS, estes ltimos nunca regulam completamente a condutaindividual, sempre imprevisvel, ainda mais porque no so desprovidos de ambigidade, deambivalncia e de contradio (salvo no caso da "horda primitiva" ou de uma sociedade queerigiu um Estado total, dominando os homens pelo terror e pela opresso interiorizados).

    Tendo argumentado que a heteronomia completa no pode existir, fico mais vontade parame distinguir de uma certa tendncia do pensamento contemporneo, relativa ao papel doindivduo e do primado do individualismo. Poderei tambm precisar as diferenas queestabeleo entre indivduo e sujeito (mesmo observando que essas diferenas podem ser denatureza ou simplesmente de grau).

    De fato, a individualizao, objeto de tantas preocupaes, , mais freqentemente, apenasum elemento do processo de massificao. Se cada um deve manifestar sua singularidade,deve faz-lo porque todos os outros esto submetidos mesma injuno. Um diretor de

    pessoal de uma grande empresa dizia recentemente a seus gerentes: "Todos vocs devem setornar criativos". Assim, cada um deve ser criativo sua maneira, mas a criatividade torna-se uma norma irrefutvel. E esse diretor continuava: "Quero ver vocs todos como uma

    nica cabea". O conformismo est diretamente implicado em uma tal concepo doindividualismo. Assim, em nossa poca, no bom fazer parte dos que no so combatentes,"matadores frios", vencedores que querem ir at o fim, que gostam de tomar iniciativa egostam do risco, que esto prontos a se "exaurir" pelo triunfo da equipe, do seu servio, dasua organizao. Uma nova tica puritana se organiza: o vencedor deve experimentar umaascese, deve se sacrificar (sacrificar sua vida, seu tempo, sua famlia) pela organizao daqual ele veste a camisa. Ele deve gozar com essa renncia, pois no h tarefa mais elevadado que desempenhar a misso que lhe foi confiada. Nessa tica, o elemento esportivo

    predomina, porque o homem de sucesso no o homem nobre nem o virtuoso, mas ohomem da performance mensurvel, performance sempre a recomear, a vitria nunca

    sendo definitiva. Ao contrrio, ela pode ser bem efmera. O winner [vencedor] sempre podese tornar o loser [perdedor]. Max WEBER no se enganava quando escrevia: "Quando oexerccio do dever profissional no pode ser ligado a valores espirituais e culturais mais

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    elevados, o indivduo renuncia, em geral, a justific-lo". Nos Estados Unidos, onde seuparoxismo predomina, a busca da riqueza, desvestida de seu sentido tico-religioso, tende,hoje em dia, a se associar a paixes puramente agonsticas, o que lhe confere, na maioria dasvezes, caractersticas de um esporte (10).Assim, quando se fala do indivduo, tem-se no pensamento um indivduo conformado, quedeve funcionar segundo comportamentos que agradem sociedade. Esse movimento deconformismo no fascina somente os indivduos que trabalham na indstria e no comrcio.Tem repercusses e impacto profundo em todos os membros da sociedade, pelo prprio fatoda empresa ter conseguido vender sua paixo pela eficcia ao conjunto do corpo social e,assim, ter exportado seus valores para fora de seu campo restrito. Todos os indivduosdevem ter agora o esprito de empresa, quer se trate de pessoas que trabalhem na empresa,nas universidades, nos hospitais. A adeso "cultura da empresa" torna-se dogma; o "cultoda empresa", um novo ritual.

    particularmente perturbador o fato de que esse movimento no apenas invade todos oscampos da vida social, mas que, alm disso, no se restringe a pessoas susceptveis de obtersatisfaes tangveis, financeiras ou de prestgio, ou ainda, posies de poder. Ele atinge,igualmente, os que W. REICH, naquele tempo, designava por "z-ningum" (11), os quetendem a se tornar transmissores dos ideais da sociedade. REICH mostrava que o "z-ningum" admirava tanto os que ele acreditava serem grandes, aqueles a quem chamamosvencedores, que ele se desfazia de sua capacidade de liberdade e de produo de ideias, paradepositar seu destino nas mos dos outros, algumas vezes mostrando-se mais "realista que orei". O "z-ningum" est sempre, igualmente, na primeira fila para aplaudir os grandes edar consistncia a todos os movimentos autoritrios de tipo mais ou menos fascistizante.Como escreve REICH:

    O grande homem sabe quando e em qu ele "z-ningum". O "z ningum" ignora que ele "z-ningum" e tem medo de ter conscincia disso. Ele dissimula sua pequenez e suaestreiteza de esprito por trs de sonhos de fora e de grandeza, atrs da fora e da grandezade outros homens. Orgulha-se dos grandes chefes de guerra, mas no se orgulha de simesmo. Admira o pensamento que ele no concebeu, em vez de admirar o que ele concebeu(12).

    Por isso que ele pode propagar a "peste" emocional, a renncia ao pensamento como

    prazer de representao ininterrupta e processo destinado a todos os homens.O processo de individualizao, favorecendo a singularidade na massificao buscada eaceita por grandes, mdios ou pequenos homens, , ento, a condio de produo e derepresentao de indivduos que se situam mais na heteronomia do que na autonomia.

    Resta-me, depois de descrever esse fenmeno, agora bem conhecido, tentar interpret-lo edemarcar sua abrangncia. S com essa condio ser possvel refletir sobre o que constituio surgimento do sujeito.

    Esses indivduos heternimos (levando-se em conta que a heteronomia total no existe nessemundo) precisam, para existirem, idealizar a sociedade e os ideais que ela prope. Emoutras palavras, eles funcionam (mais do que vivem) sob a gide da doena do ideal. Quanto

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    mais os ideais so necessrios constituio do sujeito, pois lhe fornecem uma base e opoder de escolher entre aes legitimadas pela sociedade, ou por suas prprias exignciaspessoais, tanto mais a doena do ideal (a idealizao) desempenha um papel fundamental naedificao de uma sociedade e de indivduos heternimos. Por que a idealizaodesempenha um papel to importante?

    Porque ela nos tranqilizaprofundamente: uma sociedade idealizada, apresentando-se comoobjeto maravilhoso, a melhor garantia de nossa estabilidade psquica. Ela transmite umamensagem de serenidade: a ordem social existe e nos preserva de toda interrogaofundamental a seu respeito (especialmente sobre o caos originrio, sempre ameaador); omundo criado no contestvel, a sociedade d um sentido preestabelecido a nossasdiversas aes e nos indica, portanto, o que devemos fazer e como seremos recompensados.A idealizao permite a cada um sentir-se parte interessada no devir social e ser liberto deseu desamparo original, evocado por FREUD no Futuro de uma Iluso, angstia de estarsem proteo e ser abandonado, rejeitado pelas autoridades tutelares que assumem o papelde pais benevolentes. Alm disso, ela lisonjeia nosso prprio narcisismo. Se adoramoschefes que encarnam ideais fortes ou sociedades aparelhadas de virtudes admirveis, ns

    prprios nos tornamos admirveis. Miramo-nos no espelho que nos estendido pelo prprioobjeto de nossa admirao.

    A idealizao , assim, o mecanismo central que permite a toda sociedade instaurar-se emanter-se e a todo indivduo viver como um membro essencial desse conjunto, correndo ummnimo possvel de riscos. por isso que o indivduo pode aceitar recalcar seus desejos,reprimir suas pulses, aderir profundamente s injunes sociais e, s vezes, ser um agenteativo desses processos de recalque, de represso e de adeso. Ele troca sua liberdade pelasegurana de manter seu narcisismo individual, apoiado pelo narcisismo grupal ou social(pois cada grupo ou cada sociedade quer formar um "ns" indissocivel).

    necessrio precisar esse ltimo ponto. Vivemos em sociedades nas quais, de fato, os ideaisso mltiplos, contraditrios, nas quais, dificilmente, eles suscitam a aceitao ou aidentificao. Vivemos um dficit de ideais transcendentes, enquanto o sculo XIX nos tinhadado como ideal o progresso infinito do esprito humano em sua vontade de domniocientfico do mundo. De fato, estamos divididos e angustiados. Perdemos progressivamentenossos marcos identificatrios. o momento em que as identidades pessoais comeamadeteriorar e as sociedades tentam redefinir identidades coletivas fortes, mesmo se os ideais

    que elas tm a nos propor so, freqentemente, ideais vazios e desprovidos de sentido. (Comefeito, que sentido pode ter ganhar por ganhar, produzir por produzir, consumir porconsumir?)

    Ora, a tentativa de refazer identidades coletivas fortes, provocando a idealizao (quando ascausas a defender e os projetos a realizar no so evidentes), est cheia de perigos. Aidentidade coletiva, o narcisismo social, tem como futuro possvel a xenofobia, o racismo, ofanatismo. G. DEVEREUX expressa-o muito bem:

    O ato de formular e de assumir uma identidade coletiva macia e dominante, e isso,

    qualquer que seja essa identidade, constitui o primeiro passo para a renncia `definitiva' identidade real. Se somos apenas um espartano, um capitalista, um proletrio, um budista,estamos perto de no ser absolutamente nada e, portanto, de simplesmente no ser (13).

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    Reencontrar a coeso, graas a identidades coletivas fortes, se voltar ao grupo depertinncia, ao nosso "ns", imputar os problemas ao outro, sem se dar conta de que,atravs desse processo, ns prprios nos dissolvemos enquanto portadores de umaidentidade irredutvel dos outros. recusar (como j apontei anteriormente) o fato de quesomos o produto de identificaes mltiplas, de que podemos ter marcos identificatriosmutveis ao longo de nossa vida e de que, graas a esse jogo identificatrio, podemosescapar pr-formao desejada pela sociedade e no nos tornar indivduos totalmenteheternimos.

    A identidade coletiva favorece ainda, como mostrou FREUD (14), o "narcisismo daspequenas diferenas", que tem como efeito "unir uns aos outros, pelos vnculos do amor [eeu mencionaria os da fascinao, da seduo ou da obrigao], uma massa maior dehomens, com a nica condio de restarem ainda outros de fora para serem alvos deataques". Esse "narcisismo" permite "uma satisfao cmoda do instinto agressivo e atravsdela a coeso da comunidade se torna mais fcil para seus membros". No podemos, noentanto, esquecer que esse "narcisismo grupal" pode at chegar ao racismo exacerbado e,da, ao fanatismo religioso e poltico que permite a indivduos de uma cultura nosuportarem o menor desvio da parte de outros que compartilham a mesma cultura. Comefeito, quanto mais uma cultura se quer unificada, mais intolerante ela se torna e mais eladeseja a morte dos outros ou, ao menos, a sua converso. Ela animada pelo dio e por umaalucinao coletiva, na qual se forja uma imagem dos estrangeiros (ou dos desviantes) como

    perseguidores onipotentes e, portanto, seres a eliminar. O indivduo que adere sem falha aesse tipo de cultura s pode se sacrificar por ela e comportar-se de forma heternima. V-se,

    portanto, que, quanto mais a identidade coletiva existe, menos o questionamento possvele menos os indivduos podem tentar aceder autonomia.

    O indivduo individualizado (e no individuado, a individuao estando do lado daconstituio do sujeito), o indivduo singular, preso na massificao obtida pelo apego sidentidades coletivas, no pode ser considerado como sujeito humano. Tal indivduo s saberepetir, reproduzir, recriar o funcionamento social tal como ele (salvo a reserva j feita,mas sobre a qual fao questo de insistir, de que um tal indivduo, totalmente pr-formado edefinido pela sociedade, sempre tem em si mesmo os recursos para se libertar das malhas dosocial).

    A essa figura do indivduo individualizado ope-se seu inverso: a figura do sujeito. O sujeitohumano aquele que tenta sair tanto da clausura social quanto da clausura psquica, bemcomo da tranqilizao narcsica, para se abrir ao mundo e para tentar transform-lo.Quando digo que o sujeito transforma o mundo, as relaes sociais, as significaes dasaes, no quero identific-lo ao grande homem que tem uma viso globalizante, que visa transformao da totalidade enquanto tal. Quero simplesmente dizer que cada um, aceitandoas determinaes que o fizeram tal como , tem como projeto voluntrio, nos lugares davida cotidiana, em sua vida de trabalho, em suas relaes sociais de todos os dias, tentarintroduzir uma mudana em si mesmoe nos outros, por mnima que seja, a respeito dequalquer tipo de problema.

    O sujeito um ser criativo. Para definir criatividade, o melhor citar WINNICOTT (15):

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    A pulso criativa pode ser vista em si mesma; bem entendido, ela indispensvel ao artistaque deve fazer obra de arte, mas ela est igualmente presente em cada um de ns, beb,criana, adolescente, adulto ou velho, que pousa um olhar surpreso em tudo o que v; elaest presente em quem faz, voluntariamente, qualquer coisa, seja uma lambuzada com seusexcrementos, seja um choro intencionalmente prolongado para saborear sua musicalidade.Essa pulso criativa aparece tanto na vida cotidiana da criana retardada, que sente prazerem respirar, quanto na inspirao do arquiteto que, de repente, sabe o que quer construir e

    pensa ento nos materiais que poder utilizar, a fim de que sua pulso criativa tome forma efigura, e que o mundo possa testemunh-la.

    A referncia a WINNICOTT significa que no me interesso particularmente pela vontadeque os grandes homens tm de transformar todas as variveis do mundo (uma tal

    preocupao a de um esprito "elitista"); levo a srio, em compensao, a vontade de cadaum de fazer mudar as coisas (pequenas e grandes) e o desejo de criar, aqui e agora, umanovidade irredutvel. Os artistas no se enganaram a esse respeito.

    HUNDERTWASSER declara a seus alunos:

    Se vieram para aprender, ainda pior, porque vo aprender coisas que no lhes so prprias,que no correspondem a vocs e que estragaro suas vidas. A nica maneira de seencontrarem enquanto artistas atravs de sua prpria ao criadora (16) e isso pode serfeito somente em suas casas, no na escola!.

    Paul KLEE escreve:O que quero ensinar a meus alunos no a forma fechada, imobilizada; a formao, agestao, o nascimento, o primeiro movimento indistinto da matria, antes que ela se fixeem natureza morta... Quanto mais longe mergulha o olhar do artista, mais seu horizonte sealarga do presente ao passado. E mais se imprime, em lugar de uma imagem da natureza,aquela nica que conta, a criao enquanto gnese.

    Marcel DESCHAMP exclama: "Alarguei a maneira de respirar" e o poeta VictorSEGALEN, em seus Conselhos a um viajante, assim se expressa:

    Evita escolher um lugar de asilo... chegars, meu amigo, no ao charco das alegriasimortais, mas aos remansos cheios de em briaguez do grande rio diversidade.

    O sujeito , portanto, um ser capaz, ao mesmo tempo sapiens, demens (objeto da hybris),ludens e viator, homem portanto de sabedoria e loucura, do jogo e da vagabundagem,respirando a plenos pulmes um ar salubre, dando "um sentido mais puro s palavras datribo" (MALLARM), interessando-se mais pela germinao das coisas do que pelosresultados tangveis, inebriado pela diversidade da vida e capaz de perceb-la; portanto,homem que sabe desposar suas contradies e fazer de seus conflitos, de seus medos, desuas metamorfoses a prpria condio de sua vida, sem dominar o caminho que toma nem

    as conseqncias exatas de seus atos; homem apto a recolocar em jogo sua vida e a correrriscos.

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    Foi por isso que chamei esse sujeito de criador da histria (17). Porm, preciso parar ummomento, porque uma armadilha nos espera aqui: o criador de histria, em particular ogrande homem, freqentemente apenas um "indivduo individualizado", preso na gangados ideais, mesmo se tem a aparncia de um sujeito que teve uma influncia primordial nadinmica social.

    Os grandes homens correspondem efetivamente definio de pessoas que querem criarcoisas voluntariamente. No entanto, esto presos fantasia do dominao total que os leva anegar a alteridade do outro (e, alis, a sua prpria alteridade). Michel SERRES, a esserespeito, prope uma viso totalmente negativa:

    No digo: h loucos perigosos no poder e um s bastaria. Mas digo: no poder s h loucosperigosos. Todos jogam o mesmo jogo e escondem da humanidade que eles preparam suamorte sem acasos, cientificamente (18).

    Essa viso radical e no posso compartilhar inteiramente dela. O que no impede que elatenha uma parte de verdade. Com efeito, entre os grandes homens, pode-se identificar osmegalmanos ocupando uma posio paranica, os manipuladores ocupando uma posio

    perversa, os sedutores ocupando uma posio histrica. Caracterizemos rapidamente essestrs tipos. O megalmano, um pouco paranico, sente-se eleito por Deus, pela natureza, pararealizar uma misso salvadora, para lavar o mundo de sua sujeira, fazendo-o tomarconscincia de sua culpabilidade, assegurando-lhe a redeno, recriando-o apenas pela

    palavra e instalando-se num imaginrio enganoso (no qual tudo se torna possvel). Assim, ho exemplo, estudado por FREUD (19), do presidente Woodrow WILSON, identificado a seu

    pai, pastor presbiteriano que lhe havia reservado o papel de salvador do mundo. WILSONacreditava-se eleito por Deus (seu pai encarnando a palavra divina) para propor, depois daguerra de 1914-1918, os fundamentos de uma paz geral e definitiva entre as diferentesnaes em guerra. Sabe-se o que aconteceu com esse projeto grandioso: o desmembramentodo imprio austro-hngaro deu Alemanha a hegemonia da Europa Central e foi um dosfatores da segunda guerra mundial. Essa desagregao da Europa Central tem ainda,atualmente,efeitos devastadores (aumento dos nacionalismos e do anti-semitismo). "Eis asconseqncias dos atos `virtuosos' daquele que se tomava como o Jeov dos Hebreus",segundo FREUD e BULLITT (20), do homem que declarava, durante a campanha para asua eleio presidncia dos Estados Unidos, a um de seus detratores:

    Lembre-se de que Deus quis que eu fosse presidente dos Estados Unidos e que nem vocnem nenhum mortal pode impedi-lo (21).

    Assim tambm HITLER, caso bem conhecido e, ao mesmo tempo, complexo demais paraser evocado em poucas linhas, quis fazer do alemo o povo eleito e, para isso, deveria fazerdesaparecer o outro povo que se considerava objeto da eleio divina, o povo judeu. Poder-se-iam citar muitos outros nomes; basta o de STALIN, obcecado com a fora pela fora,inventando compls, incapaz de viver sem inimigos e fazendo seu povo pagar pelo fruto deseu delrio paranico.

    Quanto ao manipulador perverso, esse est, por sua vez, possudo pela fantasia do domniototal dos seres e das coisas, cr falar a linguagem da verdade, reduz as relaes humanas arelaes de objetos, s considera o mundo sob o ngulo econmico. LENIN, que no tinha

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    interesse algum pelos outros, que queria dobrar o mundo sua vontade, que tomou o podercontra os mencheviques, graas a um golpe de fora (porque o perverso no ama o real e, aocontrrio, denega a realidade), que estava pronto a utilizar qualquer meio para chegar a seusfins, um bom exemplo desses chefes perversos; a um nvel mais irrisrio, os tecnocratas,recm-sados das grandes escolas, quiseram dobrar o mundo a seus modelos e a suasequaes.

    O sedutor histrico o novo tipo de grande homem em voga. Ele v o mundo como umgrande teatro e tem o papel de escrever a pea mais persuasiva, de assegurar a mise-en-scne mais ao gosto da mdia e de ser o ator com melhor desempenho. O teatro tambm

    para ele um terreno de esportes, como j indiquei anteriormente. Ele histrico na medidaem que erotiza o conjunto das relaes sociais, onde gosta da performance por ela mesma(ela d satisfao a seu eu grandioso, que toma a si mesmo por ideal), s pensa em termosde estratgia, tem gosto pelo instantneo, pelo acontecimento (Bernard TAPIE declara: souum ser dos acontecimentos). O surpreendente que esse homem no se reivindiquecapacidades carismticas excepcionais, como WILSON ou HITLER, ou capacidadesmanipulatrias, nem uma fora de pensamento e de ao, como LENIN: ao contrrio, ele se

    probe de ser excepcional. Sua mensagem simples: "Sou admirvel porque o quis equalquer um de vocs pode se tornar admirvel, se fizer como eu, se tiver tanta coragemquanto eu". O grande patro italiano C. de BENEDETTI exprime muito bem essa posio:

    Na Itlia, meus aliados (...) so as pessoas comuns, porque sou, a seus olhos, umademonstrao do possvel (...). Se elas tomarem um grande patro italiano, AGNELLI porexemplo, no podem sonhar em se tornar AGNELLI. AGNELLI a gente nasce, no se torna.Em contrapartida, possvel tornar-se DE BENEDETTI, h milhares de empresrios naItlia que podem querer isso e esper-lo. Partem de uma situao similar minha e o temponecessrio para isso no parece uma durao mtica, mas uma durao realista.

    Pode-se compreender o sucesso de um tal modelo, pois ele promete a qualquer um, com acondio de ser corajoso, poder ser um verdadeiro chefe de empresa (e o que maisglorioso atualmente que chegar a esse lugar?).

    Poderia acrescentar minha panplia de "caracteres" os antigos burocratas obsessivos quefizeram sua carreira sombra de grandes homens (os apparatchiki) e que um dia se tornamuma mistura de manipuladoresperversos e de sedutores-histricos, como GORBATCHEV.

    Mas uma tal evoluo e uma tal mistura de estilo ainda muito nova para ser descrita eexplicada de maneira rigorosa. Tentarei em outra ocasio.

    Em todo caso, se os megalmanos-paranicos podem parecer mais ou menos "doidos"segundo a concepo de Michel SERRES, os outros escapam a essa denominao. Eles seapresentam, ao contrrio, como indivduos perfeitamente normais. Mas, talvez, de umanormalidade esmagadora. M. CHIRAC declarou um dia: "Eu no sonho, no tenho dvidasmorais". Podemos nos perguntar se essa falta de fantasia no um pouco perigosa paraquem fala e para aqueles a quem ele se dirige. A psicanalista Joyce McDOUGALL (22)caracteriza essas pessoas como "caracteriais de tipo normal". Ela descreve a seu respeito:

    O caracterial de tipo normal criou para si uma carapaa que o protege de todo despertar deseus conflitos neurticos e psicticos. Ele respeita as ideias recebidas como respeita as

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    regras da sociedade e no as transgride jamais, nem mesmo na imaginao. O sabor damadeleine no desencadeia nada nele e ele no perder seu tempo em busca do tempo

    perdido. Mesmo assim, ele perdeu alguma coisa. Essa normalidade uma carncia queatinge a vida fantasmtica e que afasta o sujeito dele mesmo.

    Em outras palavras, um indivduo sem fantasias, sem interrogao, sem dvida, um sujeitoencarapaado (segundo o termo de McDOUGALL) ou encouraado (segundo aterminologia de REICH) est afastado dele mesmo e, mais ainda, dos outros. Pode-se ento

    perguntar se essa hipernormalidade lhe permite ser sensvel surpresa, ao inusitado, aperceber as coisas e os seres sob outro ngulo, criar seja l que novidade for.

    Teramos, assim, nas duas extremidades: os loucos de poder e os hiper-normais. Eles tmuma influncia social inegvel, pois exprimem em voz alta o pensamento banalizado e dosatisfao aos desejos recalcados. So mesmo os mais numerosos entre as pessoas queocupam postos de responsabilidade. Mas no so verdadeiros criadores de histria, nosentido que dou a esse termo, pois falta a ambos, conforme McDOUGALL, "uma certaanormalidade" (uns pecam pelo excesso, outros pela falta) que lhes permitiria "manter osolhos vidos da infncia" (McDOUGALL) e ter vontade "de tudo questionar, de tudodesarrumar, de tudo realizar" (McDOUGALL). So desprovidos da aptido transgresso.

    No confiam na "imaginao radical" (CASTORIADIS) que jaz em todo ser humano. E,assim, s sabem repetir, reproduzir. So portadores da pulso de morte, tanto em sua formaviolenta como em sua forma sedutora.

    A noo de sujeito torna-se precisa: no apenas algum que traz um projeto voluntrio, tambm um ser que atinge "um certo grau de anormalidade" e que est em condies deinterrog-lo, de se lanar no desconhecido, de ter segundo, o termo de FREUD, "uma almade conquistador", mesmo se nada descobre, mesmo se no provoca mais que um leveimpacto sobre o movimento do mundo. tambm um homem que demonstra consistncia.S. MOSCOVICI, a partir de trabalhos de Psicologia Social Experimental que desenvolveucom C. FAUCHEUX, insiste sobre essa noo, "que significa, por um lado, o carterirrevogvel de sua escolha e, por outro, a recusa de compromisso sobre o essencial (23). Emcerto sentido, o sujeito um homem movido por uma ideia fixa, como FREUD quandoenunciava: "A Psicanlise a minha causa". V-se bem aqui a diferena entre consistncia ecoerncia. Um ser coerente tem uma personalidade compacta, sem falhas. Corre pela vidacomo em uma auto-estrada. Ele no tem projeto, a no ser o de continuar a fazer funcionar a

    sociedade tal como ela . Um ser consistente pode ter dvidas, tomar caminhos transversais,recolocar em questo algumas de suas ideias (como FREUD ou MARX, remanejandocontinuamente suas anlises e suas teorias). Mas ele conserva o mesmo projeto, que umverdadeiro projeto existencial: permitir a tomada de conscincia, fazer advir o sujeitoindividual, em FREUD; favorecer a tomada de conscincia de situaes reais, fazer advir osujeito coletivo, em MARX. Se o sujeito evolui, ele o faz em sua linha, em sua linhagem, natradio da qual herdeiro e que enriquece e deforma.

    Mas essa consistncia deve ser perceptvel e deve poder provocar reaes e discusses.MOSCOVICI, igualmente, acrescenta que um tal sujeito deve "optar por uma posio clara,

    visvel e, em seguida, criar e sustentar um conflito com a maioria, l onde a maioria tentada a evit-lo."

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    O sujeito no homem de comprometimentos. Ao mesmo tempo, uma pessoa capaz decriar redes de alianas, pois sabe que se ele se encontrar sozinho, se outros no podem seidentificar a ele e com sua causa, s poder fracassar (no toa que a criao daAssociao Internacional de Psicanlise pode tranqilizar FREUD e que a criao da 1aInternacional era ardentemente desejada por MARX). A ideia fixa no impede a astcia (nosentido da Mtis dos gregos) e o aproveitamento da oportunidade, quando ela se apresenta.ARISTTELES dizia que o homem de gnio deveria saber utilizar o Kairos, a ocasio.Aqui no se trata de manipulao, porque o sujeito deve estar cheio de furor (de hybris),deve ser capaz de sair dele mesmo (ek-stase), para fazer triunfar suas ideias.ARISTTELES j o sabia e o mostra muito bem no "problema trinta", recentementerepublicado. Consistncia e furor, consistncia e astcia andam juntas. Nem MARX nemFREUD foram pessoas boazinhas; no entanto, souberam conciliar furor, consistncia eastcia, o que no nada fcil.

    Uma outra caracterstica do sujeito a de viver como um "exota", segundo a expresso de V.SEGALEN. Para SEGALEN, o exota aquele que tem a percepo do diverso e o poder deconceber outro, sendo assim aquele que olha o mundo como se o visse pela primeira vez.Ele , portanto, o homem pronto a ser tomado pela surpresa e pelo inusitado, como tambma provoc-los. Est muito prximo do que BLANCHOT evoca a respeito do homem votadoao exlio, disperso. BLANCHOT escreve:

    h uma verdade do exlio, h uma vocao do exlio" e essa vocao " a disperso, porquea disperso, da mesma forma que apela para uma estadia sem lugar, da mesma forma querenega toda relao fixa entre a fora e um indivduo, um grupo ou um Estado, delimitatambm, diante da exigncia do todo, uma outra exigncia e, finalmente, interdita a tentaoda Unidade-Identidade (24).

    O "exota", o exilado, no pode jamais estar colado a uma organizao, a um Estado, a umaidentidade coletiva. possvel ser um "exota" na sua prpria sociedade, sentir-se margemmesmo se a sociedade deseja sua integrao. O que interessante, no momento atual, que,em vista dos movimentos de migrao que se intensificam, sero vistos cada vez mais"exotas" reais, isto , pessoas vindas de outros pases, provenientes de outras culturas,

    pessoas que, assim, necessariamente, pousaro um olhar novo e surpreso sobre a sociedadeque os acolhe e que, quer queiram ou no, question-la-o e a influenciaro, do mesmomodo que sero influenciados por ela.

    Os "exotas", entretanto, no ficaro presos no processo de idealizao. Estaro, ao contrrio,presos na necessidade de sublimao, como os "exotas" indgenas que teriam escolhido essedestino.

    Serei breve sobre o processo de sublimao, sobre o qual discorri vrias vezes em textosrecentes (25). Deixarei de lado o aspecto indispensvel da atividade de sublimao naformao do vnculo social, na medida em que evidente, agora, que nenhuma sociedade

    poderia ter sido fundada se os homens no pudessem ter passado do prazer sexual direto aoprazer da representao e da imaginao, se eles no pudessem ter passado da satisfao das

    pulses egostas quelas obtidas pelo agenciamento de pulses altrustas, valorizadassocialmente.

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    Parece-me mais importante observar que a sublimao implica no reconhecimento, por cadaum, de sua prpria estranheza, da estranheza dos outros e no desejo de propor, sem vontadede dominao, ao conjunto dos indivduos com os quais se vive, uma investigao conjuntae partilhada. Sublimar aceitar sua parte de estranheza, de contradio, de remorsos, demetamorfose ou de xtase. O fato de poder se interrogar sobre si mesmo, de se descobrirestrangeiro para consigo mesmo (porque o ser humano se constitui na clivagem), permiteconsiderar o outro como menos estranho e mais semelhante a si mesmo. Assim, o outro (oua coisa) no mais um ser a dominar, a domar, por nossa atividade intelectual ou fsica, masalgum com quem se pode tentar manter relaes de reciprocidade, relaes que podem semostrar difceis, conflituosas se necessrio, mas que tendem a ser as mais simtricas

    possveis.

    A sublimao no impede o ideal, mas ela luta contra a doena do ideal. O sujeito entoaquele que aceita se recolocar em questo, ser questionado, ele no tem necessidade deligaes que lhe sirvam simplesmente de apoio para existir. De fato, sublimar difcil,

    porque viver ao mesmo tempo como ser completo (homo sapiens [homem sbio], homodemens [homem louco], susceptvel de ser atravessado por afetos que no controla, que o

    pem em estado de desordem, sem saber se poder aceder a uma nova ordem, homo ludens[homem jogador] e homo viator [homem viajante], como evoquei precedentemente) e comoser clivado, dividido, mantendo-se em p diante da angstia provocada pela ausncia dosDeuses e pela possibilidade de que o outro no seja um apoio, mas se revele adversrioimplacvel. A sublimao implica, igualmente, na aceitao da tradio, da filiao, dadvida que temos para com os que nos precederam e para com as geraes futuras. Se advida no reconhecida, se o homem cede tentao de auto-engendramento, estar talvezem condies de se tornar um grande homem. Ele deixar apenas runas atrs de si. Paraengendrar novidades e a vida, preciso admitir ainda a violncia mortfera que atua nafantasia de auto-engendramento. Sublimar , portanto, estar consigo mesmo, com os outros,com seus pais e com seus filhos, em uma relao na qual a vida palpita, vida cheia deangstia e de alegria, de possvel morte e de transfigurao.

    Essas pessoas que no cedem s iluses, que vivem com os outros, no numa interrogaopermanente, mas numa interrogao suficiente, colocam-se ento numa histria coletiva,sabendo que seu lugar nunca estar totalmente assegurado, sentindo-se e querendo-se, em

    parte, integradas, em parte, exiladas. So talvez elas que provocam as rupturas maisfundamentais, a possibilidade de um caminho para a instaurao de sociedades de sujeitos

    mais autnomos, mesmo quando elas no o sabem e mesmo quando pensam que so apenas"z-ningum", sem projeto voluntrio verdadeiramente constitudo (em tal caso, arealizao de uma vida guiada por suas prprias exigncias e pelo reconhecimento dovnculo social que forma o projeto).

    Essas pessoas, definitivamente, comportam-se como verdadeiros heris. Utilizo o termo nosentido que lhe deu FREUD: o heri, aquele que teve a coragem "de sair da formaocoletiva". Essas pessoas souberam colocar seus ideais, reconhecer a alteridade do outro,reconhecer-se a si mesmas. (O caminho para o outro passa pelo caminho para si). Esseherosmo um herosmo partilhvel. Basta que cada um queira tentar ser ele mesmo com os

    outros. Ento, o mundo ser composto mais por sujeitos autnomos do que por indivduos"individualizados" e a dinmica social ser o produto do confronto de homens livres eresponsveis.

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    Para concluir meu intento, evidente que as condies colocadas para atingir a plenaautonomia indicam que sua ocorrncia fraca. mais fcil deixar-se guiar que conduzir sua

    prpria vida, mais fcil imitar que inventar, mais fcil idealizar que sublimar. Mas umaoutra constatao necessria: da mesma maneira que o indivduo totalmente heternimono existe, como mostrei na primeira parte de minha exposio, o sujeito inteiramenteautnomo tambm no existe. Simplesmente porque o homem clivado, contraditrio,mistura inextricvel [ue no se desemaranha, desembaraa ou desenlaa] de pulso devida e de morte, capaz do melhor e do pior, freqentemente obcecado pelo poder, pelo

    prestgio e sentindo um desejo de segurana narcsica e, tambm, porque as sociedadesprecisam, para se manter, de um mnimo de iluses e de crenas, de disfarces e dehipocrisia. Cada um de ns , de fato, em certos momentos, mais um indivduo pronto aaderir, incapaz de se colocar questes, pedindo amarras fortes, cedendo idealizao (dosDeuses, do Estado ou de um outro ser humano, caso contrrio, a paixo no seria dessemundo) e, em outros, um sujeito mais autnomo, em condies de questionar o mundo e a simesmo e de procurar, tateando, seu prprio caminho. Portanto, a ideia de uma sociedade ede um sujeito tendo acedido autonomia se dilui. O que permanece, em compensao, a

    possibilidade de cada sociedade e de cada pessoa entrever a dificuldade do caminho e de, svezes, arriscar-se por ele. Tanto quanto impossvel chegar verdade, impossvel atingir aautonomia. Nem por isso a busca da verdade e da autonomia devem terminar. Saber que

    perseguimos um fim impossvel nos chama, simplesmente, para um pouco de modstia, dehumor e de ironia, em relao a ns mesmos e a nossas possibilidades de influncia. Talvezseja ao atingir a conscincia de nossas impossibilidades que cheguemos, maisfreqentemente, a nos conduzir de maneira autnoma e a no nos deixar prender nas ilusesque o social difunde e das quais o ser humano particularmente vido. Se, s vezes, osheris ficam cansados, em outros momentos, podem se reerguer e nos surpreender.Aceitemos o augrio e trabalhemos cotidianamente para fazer da "vida imediata"(ELUARD) mais um lugar de surpresas do que um lugar de repetio morna.

    notas:

    01.- Traduzido de ENRIQUEZ, Eugne. "Le rle du sujet humain dans la dynamique sociale".Revue Europenne des Sciences Sociales. Tomo XXIX, 89, 1991, p. 75-89, por Sonia Roedel.

    02.- Cf. meu texto "Individu, cration et histoire". In: Connexions, n. 44, E.P.I., 1984, e ocaptulo de minha tese Pouvoir et lien social, Paris: Gallimard, 1980, intitulado "O papel daconduta do indivduo".

    03.- CASTORIADIS, C. L'institution imaginaire de la socit. Paris: Seuil, 1975.

    04.- VEYNE, P. Les Grecs ont-ils cru a leurs mythes? Paris: Seuil, 1975.

    05.- ENRIQUEZ, E. "Le mythe ou la communaut inchange". L'esprit du temps, n. 11, Ed. deMinuit, 1986.

    06.- Ibidem.

    07.- Esse ponto ser retomado mais adiante neste texto.

    08.- FREUD, S. Malaise dans la civilisation (1929). Paris: PUF., 1970.09.- CASTORIADIS, C., op. cit.

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    10.- WEBER, M. L'thique protestante et l'esprit du capitalisme. Paris: Plon, 1964.

    11.- REICH, W. coute, petit homme.(1948). Trad. franc. Paris: Payot, 1973.

    12.- REICH, W. op. cit.

    13.- DEVEREUX, G. Ethnopsychanalyse complmentariste. Paris: Flammarion, 1975.

    14.- FREUD, S., op. cit.

    15.- WINNICOTT, D. W. Jeu et ralit. Paris: Gallimard, 1975.

    16.- Sublinhado por mim.

    17.- ENRIQUEZ, E. Individu, cration et histoire, op. cit.

    18.- SERRES, M. "La thanatocracie". Critique, maro 1973.

    19.- FREUD, S. e BULLITT, W. Le prsident T. W. WILSON. Nova trad. Paris: Payot, 1990.

    20.- FREUD, S. e BULLITT, W., op. cit.

    21.- FREUD, S. e BULLITT, W., op cit.

    22.- McDOUGALL, J. Plaidoyer pour une certaine anormalit. Paris: Gallimard, 1978.

    23.- MOSCOVICI, S. Psychologie des minorits actives. Paris: PUF., 1979.

    24.- BLANCHOT, M. L'entretien infini. Paris: Gallimard, 1970.

    25.- Citemos simplesmente o ltimo texto publicado: Idalisation et sublimation. PsychologieClinique, n. 3, 1990.