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EU SEI EM QUEM

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Confrontando a teologia relacionaDouglas Wilson (org.), John MacArthur,

R. C. Sproul, John Frame e outros

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Eu não sei mais em quem tenho crido, © 2006 Editora Cultura Crista. Traduzido de Bound Only Once, Copyright © 2001 by Douglas Wilson et al, publicado por Canon Press, P.O. Box 8729, Moscow, ID 83843.

Todos os direitos são reservados.

Ia edição - 2006 3.000 exemplares

Tradução e revisão Vagner Barbosa

Leitura final Wendell Lessa V. Xavier

Editoração OM Designers

Capa Leia Design

Conselho EditorialCláudio Marra tPresidente), Ageu Cirilo de Magalhães Jr., Alex Barbosa Vieira, André Luiz Ramos,

Fernando Hamilton Costa, Francisco Solano Portela Neto, Mauro Fernando Meister, Valdeci da Silva Santos e Francisco Baptista de Mello.

Wilson, Douglas 1953 -

W 747e Eu não sei mais em quem tenho crido / Douglas Wilson (org.); [tradução Vagner Barbosa].- São Paulo: Cultura Cristã, 2006.

208p. ; 16x23cm.

Tradução de Bound only once: the failure of open theism ISBN 85-7622-109-8

1 .Apologética Cristã. 2. Teísmo Aberto. 3.Soberania de Deus. I.Wilson, D. II.Título.

CDD 2 led. - 231

€ÇDITORfi CULTURR CRISTÃ

Rua Miguel Teles Júnior, 394 — CEP 01540-040 - São Paulo - SP C.Postal 15.136 - CEP 01599-970 - São Paulo - SP

Fone (11) 3207-7099 - Fax (11) 3209-1255 Ligue grátis: 0800-0141963 - www.cep.org.br - [email protected]

Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas Editor: Cláudio Antônio Batista Marra

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Sumário

Prefácio ..............................................................................................................9

Beleza

1. O Encanto da Ortodoxia............................................................................... 17Douglas J. Wilson

2. Metáfora em Exílio ..................................................................................... 29Douglas M. Jones

3. Atlas Encolheu os Ombros: Adorando na Beleza da Santidade................ 47R. C. Sproul, Jr.

Verdade

4. Teologia Drag Queen ................................................................................ 59Ben R. Merkle

5. A Teologia Relacional e a Presciência D ivina............................................73John M. Frame

6. O Ataque dos Teístas Relacionais à Expiação ...........................................83John MacArthur, Jr.

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7. Deus sem Disposição de Mudar................................................................... 95Phillip R. Johnson

8. Trindade, Tempo e Teísmo Relacional:Uma Passada de Olhos pela Teologia Patrística........................................... 105Peter J. Leithart

9. Fundamentos do Conhecimento Exaustivo.................................................115Douglas J. Wilson

Bondade

10. Implicações Pastorais do Teísmo Relacional........................................... 151Thomas K. Ascol

11. A Sarça de Moisés ou a Cama de Procrusto?.........................................165Steve M. Schlissel

12. Idolatria Relacional....................................................................................179Joost F. Nixon

Epílogo.............................................................................................................. 189Douglas J. Wilson

Notas..................................................................................................................193

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Colaboradores

Thomas K. Ascol, PhD, é o editor de The Founders Journal e pastor da Igreja Batista da Graça, Cape Coral, Florida.

John M. Frame é Professor de Teologia Sistemática e Filosofia no Seminário Teológico Reformado, Orlando.

R. C. Sproul, Jr. é o editor de Table Talk, pastor da Igreja Presbiteriana de São Pedro e diretor do Highlands Study Center.

Phillip R. Johnson é o diretor executivo de Grace to You e presbítero da Grace Community Church, Sun Valley, Califórnia.

Douglas M. Jones é pesquisador-docente do Departamento de Filosofia no New St. Andrews College, Moscow, Idaho, e editor sênior da revista Credenda/Agenda.

Peter J. Leithart, PhD, é pesquisador-docente do Departamento de Teologia e Literatura no New St. Andrews College, Moscow, Idaho, e ministro ordenado da PCA.

John MacArthur, Jr. é presidente do Master’s Seminary and College, Santa Clarita, Califórnia, destacado professor de Grace to You e pastor da Grace Community Church, Sun Valley, Califórnia.

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Ben R. Merkle é professor de Teologia no New St. Andrews College e editor colaborador da revista Credenda/Agenda.

Joost F. Nixon é pastor da Christ Church, Spokane, Washington, e editor * colaborador da revista Credenda/Agenda.

Steve M. Schlissel é pastor da Messiah’s Congregation, Brooklin, Nova York.

Douglas J. Wilson é pastor da Christ Church, Moscow, Idaho, editor da revista Credenda/Agenda e Pesquisador-Docente de Teologia e Filosofia no New St. Andrews College.

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Prefácio

Para surpresa do cristão evangélico descuidado, ataques contra a visão clás­sica de Deus têm sido feitos pela principal corrente liberal há mais de um século. O que tem sido totalmente surpreendente, dos últimos dez anos para cá, é que esses ataques agora estão vindo de dentro do campo evangélico. Como foi ob­servado pela publicação de vanguarda Christianity Today, desde 1990 a assim chamada “mega mudança” tem ocorrido dentro das escolas e ministérios evan­gélicos. Essa mudança não somente altera a visão de mundo do teísmo clássico, mas também enfraquece seriamente a teologia evangélica ortodoxa tanto de seu poder quanto de seu apelo pastoral. Essa mudança afeta várias doutrinas rela­cionadas à doutrina de Deus que têm estabilizado o testemunho e a vida de oração da Igreja há muitos séculos. Essa mudança causa impacto particular­mente na forma pela qual nós entendemos a soberania, a onisciência e a provi­dência de Deus. Essa mudança não apenas modifica a forma pela qual nós falamos sobre Deus, mas também atinge o próprio coração da doutrina de Deus, a mais básica verdade da fé cristã. Um dos resultados dessa mega mudança é que a palavra “evangélico” tem se tomado tanto sem sentido quanto sem utilida­de para muitos de nós. Um mega vírus teológico, que provoca uma infinidade de conseqüências sérias, tem atacado o próprio sistema imunológico da fé cristã. Esse vírus atingirá mortalmente toda uma geração de professores e ministros cristãos se a cura não for disseminada rápida e eficazmente.

É importante que o leitor desse livro entenda que o princípio que está pre­sente nesse rebuliço não é o interminável debate entre calvinistas e arminianos, como alguns teístas relacionais insistem em dizer.1 Greg Boyd, professor do Bethel College, uma respeitada instituição evangélica, insiste em dizer que crê

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na onisciência de Deus, mas a define como “Deus sabendo tudo o que é possí­vel saber”. O ponto de Boyd e de seus aliados teístas é que Deus simplesmente não sabe quais serão as ações futuras de pessoas “livres” (isso não se encaixa no pensamento arminiano de qualquer período histórico). O leitor desse livro rapidamente entenderá que os autores são fortemente agostinianos em sua perspectiva, mas isso não deve tirar de foco a principal questão. Ser forte­mente agostiniano não é um vício. Pelo contrário, ser fortemente agostiniano, em quase todos os sérios conflitos teológicos, tem sido uma virtude. A aborda­gem, em si mesma, também é clara no presente debate. Como o leitor percebe­rá, ela é rigorosamente submetida às Sagradas Escrituras. “À lei e ao testemu­nho! Se eles não falarem desta maneira, jamais verão a alva” (Is 8.20).

Os argumentos do teísmo relacional geralmente estão arraigados na noção de que a visão clássica de Deus o apresenta como um déspota ou como um soberano dominador. Eles insistem que Deus tem conhecimento, mas não todo o conhecimento. Ele não conhece os atos futuros de seres livres, caso contrá­rio esses atos não poderiam ser praticados por criaturas verdadeiramente li­vres. Já que Deus não sabe o que acontecerá na sua vida amanhã, ele não é uma Divindade isolada e distante, mas um Deus envolvido e pessoal. O deus do teísmo relacional está pronto para entrar em novas experiências e tornar-se profundamente envolvido em nos ajudar, à medida que nós, juntamente com ele, encaramos os eventos que nós não sabíamos que aconteceriam. Clark Pinnock, um teólogo adepto do teísmo relacional, afirma que a onipotência de­veria ser entendida como o poder de Deus em lidar com qualquer nova situa­ção. David Basinger, outro adepto do teísmo relacional, sugere até mesmo que “Deus voluntariamente perdeu o controle sobre os assuntos terrenos”.2 No sentido mais básico, esses teólogos negam o “simples conhecimento” em Deus, já que crêem que a liberdade humana requer que se chegue a essa conclusão.

O leitor que aborda esse assunto pela primeira vez precisa entender que os teístas relacionais apelam consideravelmente às próprias Escrituras. Alguns deles, como o exegeta Greg Boyd, recorrem às Escrituras com mais perspicá­cia que outros. Sendo esse o caso, todos eles recorrem às Escrituras de forma que, geralmente, parecem bem firmados. No entanto, isso é uma estranha fic­ção. Embora esses escritores recorram consistentemente ao texto da Escritura (por exemplo, “God Repenting” e outros textos), o leitor desse livro rapidamen­te descobrirá que os teístas relacionais recorrem a um uso seletivo de alguns textos. Eles também empregam uma hermenêutica que é carente tanto de cla­reza quanto de consistência.

Apesar dos esforços feitos pelos teístas relacionais para rejeitar uma iden­tificação com a teologia do processo, é necessário um certo esforço para se

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Prefácio 11

enxergar alguma diferença substancial entre o antigo pensamento do processo e essa moderna heresia “evangélica”, exceto pelo fato de que os teístas relacionais insistem em que Deus criou o mundo e é, portanto, distinto dele. A teologia do processo tenta construir um quadro da realidade, baseado na física de Newton, que vê Deus como participando das mesmas categorias de realidade humana que os seres humanos. Nessa posição antiga, Deus, com respeito à realidade, é contingente, dependente, temporal, relativo, e está em constante mudança. Nesse caso, não adianta cantar “Ao Rei eterno, imortal...”.

Mas o que o teísmo relacional deve a essa corrente liberal primitiva? Greg Boyd, um dos defensores mais biblicamente embasados do teísmo relacional, livremente admite que “a posição fundamental da visão de mundo como espo­sada por Charles Hartshome está correta”.3 O significado disso é simples: o teísmo relacional compartilha da posição de “teísmo bipolar”, estabelecida pela teologia do processo. O teólogo Millard Erickson está correto quando observa que “essa bipolaridade concebe Deus tanto como absoluto quanto como relati­vo, tanto como necessário quanto como contingente, tanto como eterno quanto como temporal, tanto como imutável quanto como mutável”.4

As concepções clássicas de Deus não são sempre completamente afirma­das. Elas precisam ser ajustadas por um contínuo trabalho exegético no texto da Sagrada Escritura. Nós somos devedores tanto dos Pais da Igreja quanto dos reformadores nesse ponto, mas devemos admitir que, às vezes, idéias filo­sóficas e culturais têm influenciado a obra da teologia bíblica e nosso entendi­mento de Deus. Eu, pessoalmente, creio que os teístas relacionais se opõem a várias concepções equivocadas sobre Deus que vieram à tona na história da teologia cristã. Nós devemos ser gratos por isso. A grande tragédia é que, no processo de rejeitar a idéia de Deus como “poder irrestrito... eles muito rapida­mente divorciaram o conceito bíblico de poder da coerção”.5

Essa não é uma mudança pequena. Essa realmente é uma mudança enor­me, de imensas proporções.

Recentemente, tem sido publicado um grande número de artigos e livros úteis que tratam diretamente do teísmo relacional. Eu não sei mais em quem tenho crido é um livro assim. Ele reflete uma saudável variedade de aborda­gens ao tema, pois é uma obra composta por vários artigos de vários autores. Ela inclui crítica filosófica, bíblica e teológica. Ninguém tem que concordar com cada palavra escrita aqui para desfrutar da experiência e da abordagem ampla feita pelos escritores. Isso fará com que alguns leitores fiquem um pouco mais melindrosos com o livro, pois muitos evangélicos não estão acos­tumados a tratar a teologia com seriedade em nossa época, mas essa é uma crítica necessária, e eu espero que ela tenha ampla divulgação. Eu a reco-

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mendo àqueles que estão dando sua primeira passada de olhos no teísmo relacional e também àqueles que já estão profundamente imersos nesse de­bate profundamente importante. Infelizmente, eu tenho que concordar com a observação de Douglas Wilson, de que “se esse ‘novo modelo’ de teologia não é uma heresia, então a heresia não existe” .

John H. ArmstrongPresidente de Reformation & Revival Ministries Carol Stream, Illinois

12 Eu não sei mais em quem tenho crido

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Uma vez preso, o Cordeiro de Deus foi morto,O hissopo vermelho, a culpa, cancelada e branca.Diante do mundo foi o Cordeiro Sacrificado, e nunca mais morrerá.Mas a mente humana essa riqueza ainda desdenha Pois eles cegam e escarnecem de nossos senhores menores, De nossas palavras grávidas que carregam a luz encarnada, Das metáforas que falam da grande verdade.E assim eles moem o seu silogístico grão Para fazer seu pão oco, seus bolos de ar;E assim eles pisam suas pequenas uvas euclidianas Para fazer e beber seu fino e tépido vinho.Mas os homens farão mundos etéreos em vão,Uma vez preso, o Verbo de Deus reinará.

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BELEZA

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O Encanto da OrtodoxiaDouglas J. Wilson

Introdução

O bispo Warburton certa vez disse que a ortodoxia “é minha doxia; a heterodoxia é a doxia de outro homem”. A máxima tende a nos agradar, pois apela para nossa moderna noção de que, no fundo, todas as questões de verdade e erro são subjetivas e questão de preferência pessoal. Dois ministros de dife­rentes denominações conversam, e um diz ao outro: “Claro, nós servimos ao mesmo Deus - você da sua forma e eu da forma dele”. E, assim, a modernidade, sorrindo silenciosamente, parece ter perdido a própria noção de ortodoxia.

Mas, é claro, isso não é tão fácil assim. Q conceito de ortodoxia é realmente inescapável, e nenhum homem pode agir fora de suas limitações. A palavra grega ffiffiòffiignifica direto, ou correto, eJcTõx&fienva do verbo dokein, que significa pensar. A palavra doxa. o ancestral im^Kaíto de doxia. significa opinião. Portan­to, significa uma crença correta ou uma opinião correta. É espantosoque afguém possa ser contra isso. Podemos verificar que ninguém é contra isso - todo homem afirma que o que ele mesmo sustenta é a verdade. Cada pessoa no mundo, durante todo o dia, cada dia, pensa que está certa. Até mesmo aqueles infelizes relativistas e niilistas pensam que entendem que a verdade não existe. E bom eles irem até onde puderem. Eles não vão muito longe.

Ninguém jamais censurou a ortodoxia, a não ser em nome de outra ortodoxia. Aqueles muitos que reclamam fidelidade a “nenhuma ortodoxia” são evidência não de que essa observação esteja incorreta, mas de que o pensamento confuso está se tomando uma virtude nacional. De fato, nós apenas estabelecemos orto- doxias e absorvemos ações ortodoxas como heresias. Dessa forma, cada posi- Sla£jyillE^EÍSdfíXÍâ^4jtoÍSâ^Wê&ílSÁI^fiíWSIIl2’’- A questão, para os cristãos,

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18 Eu não sei mais em quem tenho crido

refere-se ao modo pelo qual a linha reta deve ser traçada. Nós definimos que algo é verdadeiro e correto de acordo com as palavras dos homens? Ou não? Nós apelamos à Palavra de Deus? Ou não?

A antítese de reto é torto ou torcido. Continuando a analisar a questão da ortodoxia, nós temos apenas duas opções. Ou os homens dizem que a Palavra de Deus é torta ou Deus diz que a palavra dos homens é torcida. Um pronunciará juízo sobre o outro, e, necessariamente, nesse juízo, o juiz pressupõe ser o árbitro de tudo aquilo que é bom, verdadeiro e amável, e, assim, a questão chega a um ponto inevitável - qual alegação, a do homem ou a de Deus, é correta?

O apóstolo Pedro fala, e não muito rebuscadamente, daqueles que mercadejam a verdade de Deus:

“E tende por salvação a longanimidade de nosso Senhor, como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada, ao falar acerca destes assuntos, como, de fato, costuma fazer em todas as suas epístolas, nas quais há certas coisas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam, bem como também deturpam as demais Escrituras, para a própria destruição deles” (2Pe 3.15,16).

A palavra traduzida como (dett^pam é streblao, que se refere a colocar

aqueles que estão ocupados nessa atividade não se descrevem dessa forma. Eles não advertem seus seminaristas de que estão sendo instruídos por pessoas ignorantes e instáveis. A afirmação de Pedro, aqui, talvez seja um pouco ten­denciosa. Sua opinião sobre sua principal atividade é a de que eles estão certos. Mas será que estão mesmo?

Quando nós nos voltamos para a Palavra de Deus como o padrão, como devemos fazer, nós descobrimos que devemos ter mais do que assentimento profissional. Quando trabalhamos dentro de categorias bíblicas, vemos que a ortodoxia envolve muito mais do que mero conhecimento intelectual. A ortodo­xia exige todas as nossas faculdades, nossa razão, nossa imaginação, nossos hábitos corporais e nossas afeições. O pensamento reto é inconsistente com vidas tortas. A fé sem obras é morta; as histórias sem dragões são entediantes; o culto é uma questão de sólida doutrina e de uma comida bem feita no fogão; e um deus ligado à terra, porém como uma pintura nobre, é algum tipo de Prometeu, e não o Deus de Abraão. O fato de que, para muitos, o precedente parece ser uma corrente de non sequiturs ajuda a demonstrar nosso proble- ma. Nós falhamos em ver que a ortodoxia é realmente um hábito corporal que. naturalmente, tem que incluir a mente. jEsse é o motivo pelo qual a verdadeira ortodoxia é amável e envolve o homem integralmente.

Assim nós podemos expandir nossa observação anterior. Ou os homens alegam que a Palavra de Deus é feia, ou Deus dirá que a palavra do homem é

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feia. Ou os homens alegam que o doce é amargo, ou Deus alegará que os homens o esqueceram, a fonte da água viva. Assim, o caminho da salvação pode ser encontrado não na afirmação das verdades da ortodoxia com confian­ça, mas pelo reconhecimento de que as palavras de Deus são vida em si mes­mas. Elas são ouro refinado, são como mel aos lábios, são vinho envelhecido, elas nos convidam a um banquete no reino.

O nosso próprio Senhor está sentado à mesa com atavios transparentes, roupa branca de linho, e a prataria está perfeitamente alinhada, à moda ortodo­xa. O cristal é glorioso, e cada taça está cheia de vinho tinto, o vinho rubro da aliança perpétua. Ao lado de cada assento está uma pedra branca servindo de crachá, com um nome escrito sobre ela, a mão, antes do início dos tempos. O mistério é glorioso - se não há tempo, então como nós podemos ter referentes temporais pomo antes? - e a comida é ainda melhor.

Mas quandonos olhamos para essa festa, e quando nós esperamos por ela, há alguns homens instáveis que tentam nos distrair. Eles têm uma concepção alternativa para a festa, mais de acordo com nosso estilo de vida contemporâ­neo, sem parar, 24 horas por dia, sete dias por semana. A vida é relacional, e a ceia não está preparada porque nós temos que ajudar a prepará-la e nós estamos muito ocupados. A vida é um processo, eles dizem, e, assim, a verdade pode ser encontrada em uma loja de conveniência perto de você. Eles querem alguma ajuda para tirar o invólucro de plástico, como uma embalagem a vácuo que fica agarrada a uma caixinha de bala, e se nós colecionarmos um número suficiente de cupons nós podemos, eventualmente, resolver o problema do mal.

A relacionalidade de Deus

C. S. Lewis, certa vez, comentou que tudo o que não é eterno é eternamente out ofdate, mas esse é um sentimento inaceitável para os americanos contem­porâneos. Nós cremos no progresso irresistível, e nós queremos “novas e me­lhores” pompas em tudo, inclusive em nossa teologia. Uma chamada na capa de um recente livro sobre o teísmo relacional diz: “Esse livro é um importante ato de coragem que nos convida a um novo e corajoso pensamento”.1 Mas, para que haja esse tipo de melhoria, tudo o que nós afirmamos tem que ser “improvável” em princípio, e, assim, manter-nos fora de qualquer dogmatismo. Considere esse exemplo: “O modelo trinitariano parece superior ao teísmo do processo na questão da relacionalidade divina”.2 Isso é improvável?

Claro, várias coisas podem nos fazer suspeitar do que está lá fora. Eu acho que foi (Charles Hodge que disse que, se é verdade, então não é novo, e, se é novo, então não é verdade. Quando tribos, especialmente tribos letradas, co­meçam a descobrir que o que a Bíblia tem dito por vários séculos é realmente

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20 Eu não sei mais em quem tenho crido

o que nós, aqui em nossa época, só agora conseguimos descobrir, só é necessá­rio dar mais um passo para se dizer que não importa o que a Bíblia disse duran­te todo esse tempo. Isso acontece porque todo o projeto é racionalista desde o princípio, e quer que a autoridade resida dentro do homem, e não em Deus.

Um de meus filhos, certa vez, me perguntou em que Deus se baseou quando fez o mundo. Esse tipo de erro é compreensível em uma criança, e até mesmo amável, mas, quando os teólogos do teísmo relacional cometem o mesmo erro repetidas vezes, isso deixa de ser uma gracinha agradável. O erro age da seguinte forma: uma afirmação bíblica sobre Deus é considerada, enquanto todas as outras afirmações sobre Deus são ignoradas. A direção de todas as afirmações também é ignorada, e a afirmação escolhida é inter­pretada em termos humanos. A questão é feita. Deus fez o mundo, e quando eu faço alguma coisa eu me baseio no mundo. E já que Deus deve se basear em alguma coisa, como eu também me baseio, e o mundo ainda não havia sido feito, em que ele se baseou?

Observe o método. “Deus repetidamente enviou Elias para chamar Acabe ao arrependimento, mas o rei se recusou a arrepender-se. Deus estava brin­cando de gato e rato com Acabe? Se Deus sabia, desde o momento em que enviou Elias, que o convite seria recusado, então Deus está sendo desonesto em criar uma falsa esperança”.3 Em outras palavras, se eu fizesse algo seme­lhante, eu seria culpado de criar uma decepção. Quando eu faço alguma coisa, eu tenho que me basear no mundo, e é claro que, se eu destruo cidades com terremotos, eu sou culpado de genocídio.

Tudo isso foi dito não para alegar que todo teísta clássico seja inocente desse mesmo problema. Isso acontece, e com freqüência. Mas, quando isso ocorre, é porque o exegeta ou teólogo, inconsistentemente, permite que preo­cupações racionalistas e próprias da criatura ditem ao texto o que ele deve dizer. Esse é exatamente o mesmo problema que nós encontramos nos escrito­res teístas relacionais. Um exemplo de um erro teísta clássico, nesse contexto, pode ser encontrado no comentário de Albert Barnes sobre o Salmo 2. Seu comentário é sobre a frase “no seu furor”. “É claro que essas palavras devem ser interpretadas de acordo com o que nós sabemos ser a natureza de Deus, e não de acordo com as mesmas paixões nos homens. Deus se opõe ao pecado, e expressará sua oposição quando se inflamar em sua ira, mas isso será da forma mais calma, e não como resultado de uma paixão descontrolada”.4 É claro que isso é assustador, mas é o exemplo de um exegeta ortodoxo adotando os métodos que nós condenamos nos teístas relacionais.

A Bíblia nos diz que o furor de Deus será muito grande. A expressão literal se refere a calor ou queima, como quando uma pessoa está inflamada em ira. O teólogo teísta relacional diria que essa é uma expressão da ira de Deus, e, então, forçaria sua interpretação em termos da ira humana. Mas Barnes tam­

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O Encanto da Ortodoxia 21

bém traz a interpretação para o nível da criatura, interpretando a expressão em termos de um lago em um dia de verão - calmo. Um diz que a ira de Deus é como a ira humana e o outro diz que a ira de Deus é como a calma humana, mas ambos ignoram o propósito das figuras de linguagem. As expressões bíblicas sobre Deus, todas elas juntas , convidam-nos a penetrar mais acima e mais adentro. ̂ Símbolos e figuras de linguagem; são menos do que aquilo que repre­sentam, e não mais. Eles apontam para algo além de si mesmos, e. no caso de Deus, a algo transcendente. É claro que Deus não perde o controle, como acontece com um ser humano pecaminoso. Sua ira é muito mais terrível que isso. Ela transcende a ira. É claro que Deus não é paciente da mesma forma que o homem é paciente - sua serenidade é permanente e não tem limites. Ela transcende a serenidade.

dfohn Sandersjfala com mais sabedoria ao afirmar que “uma expressão não-íTteral não resolve o problema, poraue ela tem aue significar alguma coi-....... ........................ ,, llw n n„M .......... ,... t ÍN| | l-r - ... r - --A- ~ ---------r^-_ .--a-- ,'-i.V, 11. 1̂ - ; >, rrf—Ifri'III Ml ‘|— I1" ----- . ■ Y--~- — ... - .

sa. Essa expressão antropomórfica é uma expressão exatamente de quê?”.5 Ela é a expressão de algo semelhante à figura usada, e aponta para algo além da figura usada. Quando nós olhamos para além de uma figura especí­fica, nós devemos nos lembrar de que toda a Bíblia nos ensina sobre Deus e olha, pela fé, para além de cada palavra pela qual ele revela seu caráter e sua natureza.** Deus se revela na narrativa histórica, na poesia e nas porções didáticas da Escritura. Não é o caso de nós encontrarmos aproximadamente todas as ex­pressões antropomórficas na poesia e algumas poucas nas histórias. Até mes­mo as porções didáticas nos falam de uma forma franca que nos leva a olhar em fé para o que está dito além das palavras.

Deus “nos salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos” (2Tm 1.9; cf. Tt 1.1-3). A frase traduzida aqui como “antes dos tempos eternos” é literal. Como isso é possível? Como nós podemos ter uma referência temporal antes da própria temporalidade? Nós precisamos considerar todo o ensino bíblico sobre esse assunto, onde quer que ele se encontre. Nós agimos corretamente quando nos humilhamos em adora­ção. Essa adoração não significa que nós não saibamos que estamos usando palavras finitas para glorificar o Deus infinito. “Se eu disser que Deus está ‘fora’ ou ‘além’ do tempo e do espaço, eu quero dizer a mesma coisa quando digo que ‘Shakespeare está fora de A Tempestade', isto é, suas cenas e perso­nagens não exaurem seu ser”.6 Dizer que Shakespeare está fora de uma de suas peças é usar uma figura de linguagem. Nós podemos facilmente dizer que ele está acima dela, antes dela, dentro dela ou abaixo dela. E se nós comparar­mos a relação de Shakespeare com sua obra com a relação entre Deus e sua criação, nós seremos forçados a usar as mesmas preposições.

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22 Eu não sei mais em quem tenho crido

Mas o uso da ilustração de uma peça de teatro é ofensivo para nós. Nós dizemos que Hamlet é um personagem de ficção, enquanto nós somos reais. Essa não é uma boa comparação, nós murmuramos, mas observe onde e por qual motivo nós nos ofendemos. Nós somos muito maiores que Hamlet, e o zelo pela glória da humanidade enche o recinto. Ninguém está preocupado em dizer que Deus é muito maior que Shakespeare. E claro que a analogia é limitada - assim como a analogia do oleiro e do barro, feita nas Escrituras - e não cobre completamente cada aspecto de nossa discussão. Mas a ilustração ainda fun­ciona, porque está apontando, por meio de uma metáfora, para algo muito maior e mais misterioso que uma peça de teatro. “[O Senhor] faz estas coisas conhecidas desde os séculos” (At 15.18).

A visão do teísmo relacional também deve ser rejeitada, porque seus defen­sores não afirmam realmente seus métodos e pressupostos. Como eles querem continuar (por algum tempo) sendo considerados evangélicos, eles querem co­locar algumas coisas fora dos limites. Por exemplo, Pinnock diz que a onisciên- cia de Deus é claramente um item necessário. “Obviamente, Deus deve co­nhecer todas as coisas que podem ser conhecidas e conhecê-las verdadeira­mente”.7 Mas como é isso? Isso não é um ataque aos versículos bíblicos quan­do usado de acordo com a tendência dos proponentes do teísmo relacional?

“Disse mais o S e n h o r : Com efeito, o clamor de Sodoma e Gomorra tem se multiplicado, e o seu pecado se tem agravado muito. Descerei e verei se, de fato, o que têm praticado corresponde a esse clamor que é vindo até mim; e, se assim não é, sabê-lo-ei” (Gn 18.20,21). Eu descerei e verei, diz o Senhor. Ele não apenas não sabe o que acontecerá no futuro, mas também parece não saber o que está acontecendo nesse momento em Sodoma e Gomorra. Relaci­onado a isso está o fato de que ele não conhece o passado - ele descerá para investigar o que eles têm praticado.

Os próprios proponentes do teísmo relacional recuam diante da feiúra de seus próprios métodos de narração de histórias. Isso acontece tanto porque eles mes­mos hesitam em andar tão perto do abismo quanto porque, menos piedosamente, eles estão com a consciência endurecida e sabem que os evangélicos que eles estão tentando seduzir não gostariam de ir tão longe. Mas dê tempo ao tempo. Dentro de uma geração, os evangélicos começarão a adorar um deus mais pare­cido com Thor do que com o Deus de Abraão, Moisés, Davi, Jesus e Paulo. Thor, como nós sabemos, é conhecido por experimentar dissabores, e esse novo deus “expressa frustração”.8 Onde nós chegaremos depois de mais uma geração?

“Deus não é calmo e imperturbável, mas é profundamente envolvido e pode ser ferido”.9 Um deus que pode ser “ferido” é um deus que pode eventualmen­te ser morto. A morte de Deus é a esperança permanente do homem pecador - porque isso abriria uma vacância à qual o homem aspira - e esse é o objetivo de todas as formas de liberalismo teológico. E todas as formas de abertura

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teológica são, muito certamente, uma tendência do liberalismo teológico. Quan­do nós finalmente matarmos esse deus, alguns podem querer chorar no funeral, mas não haverá urrf lágrima sequer em seu coração. Esse não será um crepús­culo divino rodeado por pagãos desesperados, mas a remoção final de um deus enfadonho que, apesar de nossos maiores esforços para promover a idolatria, ainda nos lembra muito o Deus da Escritura.

A falha da imaginação

Quando nos é dada uma visão bíblica do Deus vivo, a imaginação humana cambaleia e cai por terra. Isaías está perdido, é um homem de lábios impuros, e Moisés está escondido na fenda de uma rocha para que não seja dissolvido. Na revelação de si mesmo a nós. Deus se descreve em inumeráveis formas para que nós não cometamos o erro de confundi-lo com uma criatura. Ele está acima, abaixo, atrás e na frente, de forma que nós podemos saber que ele é tudo isso e, estritamente falando, nada disso. Ele é um guerreiro, um pastor, um rei, um cons­trutor, um marido, e, nessas imagens, a imaginação santificada é convidada a reunir todas elas e a transcendê-las, para louvá-lo e adorá-lo.

A linguagem humana é sempre inadequada quando o homem fala sobre Deus, o Pai Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra. Mas há uma inadequação própria da criatura, uma limitação santa, revelada virtualmente em cada pala­vra da Escritura, e portanto há uma inadequação clara. O que diferencia os dois tipos de inadequação não são as imagens antropomórficas (que estão em toda parte e são inevitáveis), mas uma diferença ética e estética. Certas ima­gens de Deus que encontram paralelo nas criaturas são dignas dele, e outras não são. Sua graça em perdoar nossos pecados pode ser prontamente compa­rada com a cura da lepra, mas não pode ser comparada com um descongestio­nante nasal realmente bom. Sua salvação é como a água viva, e não se parece nem um pouco com a vigorosa dieta do Dr. Pepper. A inadequação daqueles teólogos teístas que tentam ver como a descrição de Deus está acorrentada, é, no fundo, uma falha da imaginação.

A majestade da poesia bíblica sempre abre nosso pensamento. A expressão poética bíblica é encarnacional, o que significa que há um corpo de “carne”, mas é um corpo que revela o Pai. A expressão poética idólatra nada revela de cima, e empenha sua energia em reorganizar o que está aqui embaixo. As imagens idólatras do divino são consistentemente más metáforas, porque são muito truncadas e trazem nosso pensamento para o nível humano, dando-nos imagens ridículas e torcidas de Deus. Considere algumas afirmações grossei­ras e inadequadas sobre Deus, e reflita sobre como elas fazem sentir que nosso deus do teísmo relacional mais se parece um convidado no programa de entre­

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vistas do Jô Soares. “Deus é o melhor de todos os alunos”.10 Nós esperamos ler na próxima linha que ele interage bem com os outros e não corre com tesouras na mão. “Obviamente, Deus sente a dor de relacionamentos rompi­dos”.11 É mesmo? Será que ele não precisa fazer terapia?

Então compare essas afirmações (e muitas outras semelhantes a essas) com a exaltação da glória de Deus, encontrada em Isaías 40.9-11:

Tu, ó Sião, que anuncias boas-novas, sobe a um monte alto! Tu, que anuncias boas-novas a Jerusalém, ergue a tua voz fortemente; levanta-a, não temas e dize às cidades de Judá: Eis aí está o vosso Deus! Eis que o Senhor Deus virá com poder, e o seu braço dominará; eis que o seu galardão está com ele, e, diante dele, a sua recompensa. Como pastor, apascentará o seu rebanho; entre os seus braços recolherá os cordeirinhos e os levará no seio; as que amamentam ele guiará mansamente.

As imagens são simples, terrenas, limitadas, e ainda assim são gloriosas. Quando Isaías lamenta que nós nos afastamos de nosso Deus, ele o faz de forma que não nos encoraja a nos enfiarmos embaixo da cama. Essa lamentação não se toma fragilizada pelo uso de uma imagem extraída da ordem criada. Até mesmo aqui, cada imagem singular, apesar de maravilhosa, se for absolutizada em isolamento das outras, pode nos afastar dos profundos e ortodoxos oceanos e nos conduzir para as sombras da heresia. O Senhor certamente é nosso pastor, mas ele não é apenas um pastor. E, assim, o profeta apresenta uma outra imagem:

Quem na concha de sua mão mediu as águas e tomou a medida dos céus a palmos? Quem recolheu na terça parte de um efa o pó da terra e pesou os montes em romana e os outeiros em balança de precisão? (Is 40.12)

Nós temos aqui uma série de questões retóricas, e a resposta pressuposta em todas elas é que quem quer que tenha medido as águas na palma da mão, ou medido os céus a palmos, ou pesado os montes em romana, nada tem a ver com a quantificação de toda a criação. As mãos, palmos e balanças são men­cionadas para nos ensinar que tudo isso nada tem a ver com medidas e escalas. Somente Deus sustenta os oceanos na palma de sua mão, e ele é capaz de fazer isso, porque ele não tem mãos.

Quem guiou o Espírito do S e n h o r? Ou, como seu conselheiro, o ensi­nou? Com quem tomou ele conselho, para que lhe desse compreensão?Quem o instruiu na vereda do juízo, e lhe ensinou sabedoria, e lhe mos­trou o caminho de entendimento? Eis que as nações são consideradas por ele como um pingo que cai dum balde e como um grão de pó na

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balança; as ilhas são como pó fino que se levanta. Nem todo o Líbano basta para ser queimado, nem os seus animais, para um holocausto.Todas as nações são perante ele como coisa que não é nada; ele as considera menos do que nada, como um vácuo (Is 40.13-17).

Quem dirigiu o Espírito do Senhor? Você não sabe? Nunca ouviu falar? Foi Clark Pinnock. Quem foi seu conselheiro para ensinar-lhe o caminho do juízo? Ora, alguém de coração vagaroso e de alma cabeçuda - Greg Boyd. Quem o ensinou, e quem lhe mostrou o caminho do entendimento? Bem, vocês sabem, sempre há John Sanders, cujo livro tem muitas notas de rodapé e respeitabilida­de acadêmica.

Injusto? Eles não afirmam isso sobre si mesmos? Bem, realmente eles afir­mam isso sim, e não somente sobre si mesmos, mas também sobre todos nós, pequenos e frágeis criadores de deuses, cujo fôlego está em nossas narinas. No kteísmo relacional,V futuro é imprevisível, e vem à existência como resultado de uma cooperação de esforços entre Deus e o homem, em cujo processo Deus aprende muitas lições profundas. Ele é surpreendido a cada dia, e aprende com aquilo que nós fazemos. Em resumo, ele não é o Deus de Isaías.

Com quem comparareis a Deus? Ou que coisa semelhante confrontareis com ele? O artífice funde a imagem, e o ourives a cobre de ouro e cadeias de prata forja para ela. O sacerdote idólatra escolhe madeira que não se cor­rompe e busca um artífice perito para assentar uma imagem esculpida que não oscile. Acaso, não sabeis? Porventura, não ouvis? Não vos tem sido anunciado desde o princípio? Ou não atentastes para os fundamentos da terra? Ele é o que está assentado sobre a redondeza da terra, cujos morado­res são como gafanhotos; é ele quem estende os céus como cortina e os desenrola como tenda para neles habitar; é ele quem reduz a nada os príncipes e torna em nulidade os juizes da terra. Mal foram plantados e semeados, mal se arraigou na terra o seu tronco, já se secam, quando um sopro passa por eles, e uma tempestade os leva como palha (Is 40.18-24).

Somente o mais profundo tipo de cegueira espiritual pode impedir uma pessoa de ver o que Isaías está fazendo aqui. “A quem comparareis a Deus?”. Ora, Isaías está comparando Deus a todos os tipos de coisas no decorrer de todo esse capítulo, e, portanto, o ponto central de cada comparação deve ser mostrar que todas elas entram em colapso sob o peso da glória eterna. Essas comparações são metáforas santas que chamam nossa atenção para cima, para o que transcende todas elas. E, quando nos alegramos nessa linguagem escriturística, alguns exegetas se juntam a nós, com um ouvido poético com­parável a uma placa de metal, e querem nos fazer reconhecer que o texto

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compara Deus a um pastor, e eles nunca viram um pastor que tenha conhe­cimento do futuro.

A quem, pois, me comparareis para que eu lhe seja igual? - diz o Santo. Levantai ao alto os olhos e vede. Quem criou estas coisas? Aquele que faz sair o seu exército de estrelas, todas bem contadas, as quais ele chama pelo nome; por ser ele grande em força e forte em poder, nem uma só vem a faltar (Is 40.25,26).

O que pode ser semelhante a Deus? A resposta, caros amigos, é: nada. E nós mostramos que podemos comparar Deus a nada comparando-o com tudo o que é adequado para isso, e, logicamente, nada é totalmente adequado. Nele nós vivemos, e nos movemos, e existimos. Isso não é um Cristianismo zen, mas o reconhecimento de que a Bíblia não nos dá uma versão esquemática dos atributos de Deus, cuidadosamente elaborados em forma de tabela. Em vez disso, a Bíblia aponta, canta, grita, come, alitera, ensina, glorifica, compara e exulta. Vocês não vêem? Elevem seus olhos para o alto, diz Isaías.

Por que, pois, dizes, ó Jacó, e falas, ó Israel: O meu caminho está encoberto ao S e n h o r , e o meu direito passa despercebido ao meu Deus? Não sabes, não ouviste que o eterno Deus, o S en h o r , o Criador dos fins da terra, nem se cansa nem se fatiga? Não se pode esquadrinhar o seu entendimento.Faz forte ao cansado e multiplica as forças ao que não tem nenhum vigor.Os jovens se cansam e se fatigam, e os moços, de exaustos, caem, mas os que esperam no S en hor renovam as suas forças, sobem com asas como águias, correm e não se cansam, caminham e não se fatigam (Is 40.27-31).

A conclusão a que Isaías chega nessa passagem maravilhosa é notável. Ele chega ao fim dessa gloriosa exaltação fazendo uma afirmação do conhecimento de Deus. Considerando o que acabamos de ler, por que Jacó e Israel dizem que o seu caminho está encoberto ao Senhor? Vocês não sabem, pequenos e tolos teólogos - perdão, importantíssimos e esmerados teólogos - que não há inquiri­ção fora do entendimento de Deus? Ele conhece o fim desde o começo, e é precisamente isso, na mente de Isaías, que o distingue daqueles ídolos cegos que, de fato, não podem nos dizer o que está por vir. Ele ressalta precisamente isso nesse capítulo. Eles não conhecem o futuro não porque o futuro não exista para ser conhecido, mas porque eles não são deuses verdadeiros (Is 41. 23,24). Deu­ses que não conhecem o futuro não habitam nos altos céus, como o nosso Deus, mas são paparicados nas ruínas da Babilônia, habitadas por corujas e chacais.

Quando passagens como essa são lidas, e preferencialmente em voz alta, há uma tentação de se concluir que o problema do teísmo relacional não é sua

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exegese, mas sua surdez. O erro do teísmo relacional é uma profunda carência de imaginação.

Conclusão

Samuel Butler, certa vez, repudiou aqueles que “provam sua doutrina ortodo­xa com socos e pancadas”. Nem tanto. É fácil debochar da ortodoxia em um mundo caído, mas somente porque nossa carne ama o que é torto. A severidade do tesbita não nos lisonjeia adequadamente. Mas se nós mudarmos umas poucas palavras para mostrar o tipo de coisa que realmente está acontecendo nos deba­tes teológicos, o gancho não funciona tão bem. “Com zelo e empenho apostólico ele tentou salvar sua amada esposa”. Somente um grosseirão não faria isso.

Faz parte da humildade permanecer calado se Deus deixou algo sem ser revelado. “As coisas encobertas pertencem ao S e n h o r , nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cum­pramos todas as palavras desta lei” (Dt 29.29). Mas se Deus revelou algo de forma clara, como ele fez com relação ao seu conhecimento do fim desde o começo, não é humildade fazer de conta que ele nada disse sobre esse assun­to. Também não é humildade acusar de arrogância aqueles que têm ouvido e se lembrado das palavras de Deus.

Esse não é um debate sobre a natureza do tempo. Se alguém afirmar que Deus não conhecia o traçado de Dakota do Sul, nosso debate subseqüente não será sobre a natureza da geografia, mas sobre se Deus está sendo honrado como Deus ou se está sendo insultado.

A esperança do evangelho está realmente em jogo aqui. Nossa redenção foi realizada “pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácu­la, o sangue de Cristo, conhecido, com efeito, antes da fundação do mundo, porém manifestado no fim dos tempos, por amor de vós” (IPe 1.19,20; cf. Ef 1.4). As idéias têm conseqüências e destinos, e uma das conseqüências de nós tentarmos ler as Escrituras sem qualquer poesia em nossa alma será a destruição eventual de qualquer possibilidade de ministrar às almas. Apenas imagine o compositor do hino tentando animar o abatido.

“Eu não sei o que o futuro reserva,mas eu conheço aquele que também não conhece muito bem o futuro”.

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2Metáfora em Exílio

Douglas M. Jones

O projeto do Iluminismo estava destinado ao fracasso, porque ele foi ineren­temente imperfeito com relação à dimensão estética da vida, especialmente a dimensão da metáfora. Sem uma apreciação saudável da pervasividade e do poder da metáfora e da imaginação, uma história de qualquer tipo não teria êxito. A metáfora não é alguma decoração periférica da linguagem. Ela envol­ve padrões de associação e inferência que interagem com os mais importantes aspectos do conhecimento. A própria criação, especialmente a da vida humana à imagem de Deus, é entretecida com a metáfora, e a falha de qualquer ten­dência em se relacionar com essa profunda realidade sempre produzirá histórias insatisfatórias. O conto iluminista era particularmente chato, e por isso perma­neceu apenas por alguns séculos. O Cristianismo ortodoxo, porém, expandindo as realidades do Antigo Testamento, sempre viveu, moveu-se e se alegrou den­tro de um mundo de profundos significados e imagens, conexões que desven­dam a verdade, bondade e beleza trinitárias, ressuscitando as culturas que abraça. Tudo isso significa que nós não podemos ignorar a dimensão estética quando avaliamos perspectivas de qualquer tipo, e não apenas teológicas. A falha na estética aponta para a falha na verdade e na bondade, pois elas estão intima­mente relacionadas na Escritura.

Mas o que há, especificamente, sobre as categorias iluminista/modernista que sufoca a dimensão estética da vida? Essa é a pergunta motivadora desse ensaio. Especificamente, a resposta dada pelos defensores do teísmo relacional da teolo­gia de Deus é a mesma que foi dada pelo Iluminismo. Ambas as respostas aca­bam matando a estética, e isso é um indicador de sua falsidade. Mas nós precisa­mos examinar pontos específicos para que essa alegação seja bem fundamenta­da. Minha estratégia, então, é começar examinando uma intrigante tensão que

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30 Eu não sei mais em quem tenho crido

salta aos olhos na forma pela qual John Sanders, um defensor do teísmo relacional, trata a metáfora. Para resolver essa tensão, Sanders segue um certo caminho anti-estético, que acaba determinando quase todos os outros pontos de sua defe­sa da teologia relacional. Essa encruzilhada no caminho é central para todo o seu projeto.(Minha conclusão será que a teologia relacional não é algum tratamento “honesto” e “corajoso” de textos bíblicos, mas uma posição que os deixa à mar­gem, quase que de forma inimaginável, partindo dos pressupostos iluministas que objetivam triturar a dimensão estética da teologia escriturística.

Sanders e a metáfora

Nas páginas iniciais de The God Who Risks, a tensão fundamental que imediatamente se nos apresenta é o conflito entre a posição de Sanders sobre a metáfora e a consistência lógica. Ele quer manter as duas, mas não conse­gue. Ele se vê como levando a metáfora muito a sério, e vê o projeto relacional como apresentando uma nova e iconoclasta metáfora:

A sensibilidade de muitas pessoas será chocada pela noção de que Deus assume riscos, pois a metáfora vai contra a semente de nosso costumeiro modo de pensar a providência divina. Os teóricos da metáfora, contudo, afirmam que uma boa metáfora, supostamente, desafia as formas conven­cionais de se ver as coisas e sugere uma perspectiva alternativa... Quando certas metáforas (por exemplo, Deus como Rei) reinam por muito tempo na teologia, nós corremos o risco de sermos condicionados a negligenciar aspectos do relacionamento de Deus conosco. Quando isso acontece, nós precisamos de novas metáforas “iconoclastas” que nos revelem algo que esteja sendo negligenciado. Minha luta é para que a metáfora de Deus como alguém que assume riscos abra novos caminhos para que nós pos­samos entender o que está em jogo para Deus na providência divina.1

A tensão em questão surge em sua explicação sobre a linguagem metafóri­ca/antropomórfica e a restrição imposta pela consistência lógica. Por um lado, ele corretamente reconhece que “as metáforas têm a qualidade peculiar de dizer que algo ‘é’ e ao mesmo tempo ‘não é’”.2 Isso significa que ele afirma que metáforas e antropomorfismos em geral comunicam por meio de contradições implícitas e categorias de erro implícitas - “é” e “não é”. Paul Ricoeur e outros expositores da metáfora observam a mesma característica: “O paradoxo con­siste no fato de que não há outra forma de se fazer justiça à noção de verdade metafórica a não ser incluir a incisão crítica do “não é” (literal) dentro da vee­mência ontológica do “é” (metafórico)”.3 Da mesma forma, Gemma Fiumara

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Metáfora em Exílio 31

observa que “o paradoxo de uma metáfora é que ela parece afirmar uma iden­tidade enquanto também, de alguma forma.^e^LiPj3JL£xemplQ. -qiLando-a- Escritura revela que “Cristo é..oLjCo r ò e ^ ^mesmo temoo. é e não é um cordeiro. Em parte, uma metáfora nos leva a imaginar ou a abraçar uma coisa em alguns, mas não em todos os termos de outra (em contraste, o literalismo atribui todas as características de uma à ou­tra). Nós realmente não temos dificuldade em compreender esse tipo de verda­de. Ela não “mata” a comunicação. Ela é uma parte excedentemente natural de nosso discurso normal. A maior parte de nossa linguagem e de nosso pensamen­to é metafórica, e todos nós comunicamos e interpretamos as tensões e contra­dições internas da metáfora com pouca dificuldade na conversa do dia-a-dia.

Apesar disso, apenas uma página adiante, Sanders nos diz que todos os modelos teológicos, inclusive o seu, devem satisfazer as demandas do “públi­co” e da “intelegibilidade conceituai”. Parte dessa demanda de intelegibilidade é que “se um conceito é contraditório, ele é reprovado em um teste-chave de intelegibilidade pública, pois o que é contraditório não tem significado”.5

Para que o modelo faça sentido, o conjunto de conceitos que ele envolve deve ser desembrulhado e examinado para a verificação de sua consis­tência interna, coerência com outras crenças que nós afirmamos, compreensividade... Se os conceitos que integram o modelo são mutua­mente inconsistentes, a coerência do modelo é questionada. Um modelo com muitas tensões internas carece de coesão.6

Aiprimeiraaronia aoui é que, como a maior parte das tentativas em proteger o mundo dos perigos da metáfora, essa própria afirmação emprega as tensões implícitas da metáfora. Observe que os conceitos são coisas que podem ser “desembrulhadas” e colocadas dentro de um modelo cujas restrições, se fo­rem muito frágeis, podem fragilizar a “coesão” e causar sua ruína. Os concei­tos, para Sanders, são e não são embalados, e estão e não estão unidos dentro de outras coisas. A segunda^e mais importante ironia é que ele positivamente quer levar a metáfora a sério, até mesmo em sua forma implícita “é e não é”, embora aqui ele alegue que “o que é contraditório não tem significado”. Em tais padrões, a metáfora, mais do que qualquer coisa, deve ser totalmente carente de significado (juntamente com a maior parte da Escritura). Apesar disso, nós entendemos essas metáforas muito bem, muito embora elas não satisfaçam as exigências de uma consistência estritamente lógica. Portanto, um aspecto de sua abordagem aceita afirmações como “Cristo é o Cordeiro”, enquanto o ou­tro insiste que frases como essa nem mesmo têm significado. Toda a sua tese para a interpretação de figuras antropomórficas da Escritura depende da toma­da de um desses dois caminhos.

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Mas o que mais especificamente produz essa tensão com a metáfora na abordagem iluminista/teísta à razão? Nós percebemos que o Iluminismo foi um reavivamento de muitos aspectos do antigo Helenismo, sem a existência das formas platônico-aristotélicas. Os dois períodos ainda compartilham do mesmo comprometimento com o valor máximo da razão e de seu intelectualismo, a visão de que o conhecimento é primeiramente uma realidade mental. Tanto Platão quanto Descartes e todos os seus amigos modelaram o conhecimento em termos de precisão matemática, tanto nas definições socráticas quanto nas “claras e distintas idéias” de Descartes. Para que uma mente autônoma nreen- cha as funções divinas, cada alegação de verdade tem que ser examinada claramente, de forma que o indivíduo.tenhajjpdeLexojate^Mas isso significa que tudo que não seja claro ou diretamente intelectual tem que ser considerado menos que realidade. Dessa forma, os gregos e seus netos iluministas denegriram o corpo, as emoções, a imaginação, a metáfora, etc., pois nada disso pode ser capturado pelo seu estreito intelectualismo.

Parafiristóteles) a metáfora era um desvio e um mero ornamento do literal. Tudo o que é metafórico pode, por fim, ser reduzido ao que e literal A metáfora não pode se ajustar às proposições de um silogismo, porque a logica não pode processar os mistérios não-cognitivos da metáfora. A antiga oposição à metá­fora ainda se vê nos livros contemporâneos de lógica. Considere o seguinte movimento, aparentemente inocente, contra a metáfora, na obra The Art o f Reasoning, de David Kelley:

No contexto do arrazoado... onde nós estamos preocupados com as rela­ções lógicas entre as proposições, uma tradução literal geralmente se faz necessária. Para saber como uma certa proposição é logicamente relacio­nada a outras, nós temos que saber exatamente o que essa proposição diz e o que ela não diz. Se duas pessoas usarem termos metafóricos em uma argumentação, nós não saberemos se elas estão realmente falando sobre o mesmo assunto até que formulemos suas posições em termos literais.7

Aqui, como na maior parte da tradição helenista/iluminista, a metáfora é considerada um obstáculo confuso a ser transposto para que nós alcancemos as alegações literais “reais”. Observe que isso é feito para satisfazer uma con­cepção específica de conhecimento: “nós temos que saber exatamente o que essa proposição diz”. Somente objetos plenamente transparentes podem ser contados como conhecimento. Presumivelmente, a metáfora esconde a verda­de, e o termo literal a revela. Nós encontramos um contraste ainda mais forte entre a lógica e a metáfora em vários pensadores iluministas, tais como Galileu, Montaigne, Descartes e Leibniz. Thomas Hobbes (1558-1679) resume o con­traste iluminista entre lógica e metáfora da seguinte forma:

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Metáfora em Exílio 33

[É um abuso da linguagem] quando eles usam as palavras metaforicamen­te, isto é, em um sentido diferente daquele para o qual elas foram criadas, e, portanto, enganam outros... a luz da mente humana é sensível às palavras, mas por exatas definições isentas de ambigüidade; a razão é o passo, o aumento da ciência é o caminho, e o benefício da humanidade, o fim. E, ao contrário, as metáforas e as palavras ambíguas e sem sentido são como o ignesfatui, e arrazoar sobre elas é perambular entre inumeráveis absurdos, e seu fim é a contenda e a sedição, ou o desprezo.8

Da mesma forma, John Locke (1632-1704) argumenta:

Já que a inteligência e a imaginação encontram mais facilmente diversão no mundo que a seca verdade e o conhecimento real, a linguagem fig u ­rativa e a alusão na linguagem dificilmente serão admitidas, como uma imperfeição ou abuso dela... Mas, se nós quisermos falar das coisas como elas são, nós devemos admitir que toda a arte da retórica, além da ordem e da clareza, toda a aplicação figurativa das palavras, inventada pela eloqüência, servem somente para insinuar idéias erradas, levar a paixões, e, portanto, turvar o juízo, e, além disso, são puro logro... Elas, certamente, em todos os discursos que têm o objetivo de informar e instruir, devem ser completamente evitadas, e onde a verdade e o conhe­cimento são pretendidos não se pode pensar em algo mais danoso, seja a linguagem ou a pessoa que faz uso dela.9

Observe, novamente, como é típico, que não se pode lutar contra a metáfora sem que se faça uso dela. Hobbes nos diz que as palavras são “ordenadas” como um pastor; a mente é uma “luz” que pode ser apagada e aumentada. Locke descreve a verdade como “seca” que pode recusar a “aceitação” da metáfora; as palavras podem ser “aplicadas” como tinta; a eloqüência - uma profusão de símbolos - pode “inventar”, “lograr” e ser “danosa” - uma fenda enorme. Apesar de serem falsos, esses recortes são totalmente compreensíveis e significativos. O uso que eles fazem da metáfora não mata a comunicação.

Mas por que esses pensadores se aventuram a fazer negações tão truncadas? Com a devoção iluminista à matemática como o modelo de pensamento, so­mente itens claros e quantificáveis podiam ser qualificados como conhecimen­to. A metáfora revela muitos aspectos de nosso ser (emocional, moral, estético, imaginativo e físico) que são centrais para o conhecimento, mas não podem ser colocados dentro de caixas matemáticas (veja mais abaixo'). Dessa forma, a metáfora e a visão iluminista de consistência lógica não podem permanecer lado a lado. Uma das duas precisa sair de cena, e esses pensadores iluministas alegremente abriram mão da metáfora. Mas Sanders e os relacionistas afir-

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mam querer sintetizar os dois mundos - e abraçar tanto a metáfora quanto uma visão estrita da razão. Alguma coisa sairá no prejuízo.

Como, então, Sanders (e outros defensores do relacionismo teológico) re­solve esse dilema de abraçar e ao mesmo tempo rejeitar o discurso metafóri­co? Ele precisa abraçar as profundezas não-cognitivas da metáfora e uma rica abordagem à razão dentro dos limites metafórico/escriturísticos (veja abaixo) ou colocar-se ao lado do Iluminismo e abraçar sua estrita concepção de racionalidade, que procura reduzir todas as metáforas a alegações logicamente aceitáveis. Ele opta pela segunda possibilidade, e isso se revela em sua discus­são sobre o antropomorfismo.

e— Sanders e o antropomorfismo

Movendo-se em direção à sua consideração reducionista da metáfora, Sanders esquematiza quatro aspectos-chave de antropomorfismo que podem ser resumidos como segue:

1) A Bíblia ensina as coisas ocultas e a incompreensibilidade de Deus, mas isso não se deve à inadequação da língua, mas à distinção entre Criador e criatura e ao fato de que nenhuma pessoa pode ser plenamente circunscrita pela linguagem.10

2) O antropomorfismo é único e pervasivo no Antigo Testamento em con­traste com compreensões mais abstratas. Além disso, na encarnação, o próprio Deus tem características humanas atribuídas a si.11

3) Os contextos de passagens tradicionalmente reconhecidas como transcendentais, especialmente Isaías 55.8, não se referem a diferenças ontológicas ou epistemológicas entre o homem e Deus, mas somente a diferenças morais.12

4) No sentido mais amplo de antropomorfismo, toda a nossa linguagem so­bre Deus é linguagem humana, isto é, toda linguagem inevitavelmente atribui propriedades a Deus que são derivadas de categorias humanas. O antropomorfismo é uma forma inevitável de dizer que Deus é incognoscível.13

Os primeiros dois pontos acima não são objetáveis em si mesmos, sua rejei­ção depende de como eles são influenciados pelo quarto ponto. Para explicar o quarto ponto, Sanders tem que invocar o ponto três, e, por isso, vamos tratar dele agora. Meu foco será colocado sobre a dicotomia que o ponto quatro coloca entre o agnosticismo e a pregação unívoca (isto é, uma consideração reducionista da metáfora). Eis como o argumento do ponto quatro acima funci­ona pelas premissas nas próprias palavras de Sanders:

4a. “Se Deus fala a nós por meio da Escritura, então Deus sabe como usar a linguagem e os conceitos humanos de forma que eles sejam adequados ao entendimento daquilo que ele deseja que nós saibamos”.14

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4b. “Isso requer que nós presumivelmente possamos compartilhar o contex­to entre Deus e a criação” (“compartilhar o contexto” significa compartilhar “as condições de nossa existência, inclusive nossa linguagem, história e mundo espaço-temporal”).15

4c. “Deus entra nesse contexto conosco por estar em relação conosco”.164d. “Estando em relação conosco... Deus faz uso das formas humanas de

conhecer e de falar para se comunicar conosco... nós nada sabemos de um Deus que não se relaciona conosco”.17

4e. “Relação conosco”, portanto, significa uma predicação unívoca (em con­traste com a predicação meramente analógica): “Tem que haver algumas pro­priedades que são usadas para Deus no mesmo sentido em que são usadas para coisas na ordem criada. De outra forma, voltaríamos para a caverna do agnosticismo”.18

As conexões conceituais nesse argumento, portanto, são as seguintes: a revelação divina requer um contexto compartilhado, que requer relacionamen­to, que requer uma predicação unívoca. Observe como essa noções fluem jun­tas na conclusão do seu argumento:

A linguagem antropomórfica não exclui a pregação literal de Deus. E claro que a questão deve ser feita: a que os antropomorfismos se referem? Se Deus desfruta do mesmo contexto conosco entrando em relação conosco, como a revelação bíblica pressupõe, então nós temos uma base para a nossa linguagem usada para fazer referência a Deus. O que eu quero dizer com a palavra literal é que nossa linguagem sobre Deus é realidade descri­tiva (verídica), de tal modo que haja um referente, um outro, com o qual nós estamos em relação e de quem nós temos conhecimento genuíno.19

Portanto, de acordo com Sanders, nosso modelo teológico de Deus deve optar por uma pregação unívoca (literalidade forte) ou pelo agnosticismo (total falta de relação). Como um silogismo disjuntivo, o argumento de Sanders se reduz a: ou nós temos uma pregação unívoca de Deus ou nós temos que ser agnósticos sobre ele. Mas nós não somos agnósticos, considerando que nós temos a genuína revelação de Deus. Portanto, nossa pregação deve ser unívoca.

Todavia, Sanders usa esse argumento para responder às objeções à importância que ele dá ao antropomorfismo, principalmente objeções oriundas de preocupações com a transcendência radical e com a antinomia (que são levantadas primariamen­te pela tradição reformada). Suas respostas a essas objeções são relevantes aqui, porque elas ajudam a elaborar sua explicação reducionista sobre a metáfora.

Contra a primeira objeção - a transcendência radical - levantada por teólo­gos mais especulativos, tanto pagãos quanto cristãos, que têm posicionado Deus como o “totalmente outro”, totalmente além da apreensão humana, infinitamente

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diferenciado de nós, Sanders argumenta que isso é impossível, e, para fundamen­tar seu argumento, ele remete às formas das premissas 4d e 4e acima:

[Nós] não podemos saber como Deus é em si à parte de nós, porque todo o nosso conhecimento de Deus está embebido dentro de circunstâncias nas quais Deus nos colocou. Deus pode ser diferente em si mesmo (in se) daquilo que é conosco (quoad nos), mas nós não podemos ter conhecimento dessa diferença. Nosso Senhor, Criador e Redentor é o que Deus é realmente em relação conosco. Se Deus é diferente em si mesmo, nós não podemos dizer.20

Sua segunda principal resposta à objeção da transcendência radical tam­bém emprega um aspecto de 4d acima:

Como aqueles que alegam que o finito não pode conter o infinito sabem que esse é o caso? E logicamente possível que a realidade última esteja além do conhecimento humano, mas como a pessoa que faz essa afirma­ção pode saber disso?... Essa pessoa alega que algo é incognoscível e que ela pode saber algo sobre o incognoscível.21

A segunda e, conforme penso, mais forte objeção ao antropomorfismo de Sanders é um apelo à antinomia ou aparente contradição. Aqueles de nós que, na tradição reformada, geralmente elucidam a relação entre a soberania de Deus e a responsabilidade humana em termos de mistério, paradoxo ou antinomia, de forma semelhante apelam ao mesmo recurso para elucidar a Trindade e a encarnação. Onde os teólogos relacionais defendem a busca de uma explica­ção lógica, clara e distinta para a relação entre a soberania de Deus e a respon­sabilidade humana, nós, reformados, geralmente negamos que essas realidades sejam compreensíveis de uma forma racionalista. Como ensina a Confissão de Fé de Westminster, Deus “ordenou livre e imutavelmente tudo quanto acon­tece, porém de modo que nem Deus é o autor do pecado nem violentada é a vontade da criatura” (III. 1) - a predestinação e a vontade livre lado a lado. Essa verdade, declara a Confissão de Fé, é um “alto mistério” (III. 8) na “sa­bedoria inescrutável” de Deus (V.4). Sanders rejeita essa réplica por várias razões, a maioria das quais são ninharias semânticas sobre “antinomia”, mas a resposta mais interessante é uma elaborção sobre 4d e 4e acima. Sua resposta é tão relevante que eu vou fazer uma citação completa:

Um ponto final contra a objeção da antinomia é que ela procura escapar das regras que circundam a intelegibilidade. O que os filósofos chamam de con­tradição, alguns teólogos chamam eufemisticamente de antinomia ou para­doxo lógico. Mas, ao fazer teologia, nós temos simplesmente que “jogar

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pelas regras” do jogo, e uma dessas regras é que nosso discurso deve fazer sentido. Interessantemente, os teólogos que reivindicam o direito de serem inconsistentes esperam fazer sentido com o que estão dizendo. Minha posi­ção aqui não elimina o paradoxo ou o mistério (como definidos acima) ou as metáforas e enigmas. Ela simplesmente exclui o discurso que se encontra fora dos limites da consistência e da coerência - isto é, o nonsense...Ser racional na prática da teologia é entrar no domínio do critério público de intelegibilidade. A exclusão das contradições do discurso teológico não é idiossincrática, mas uma exclusão pública imposta pela comunida­de. Para sermos inteligíveis, nós temos que ser capazes de nos comuni­carmos uns com os outros. Isso significa que nós devemos agir dentro dos limites nos quais Deus nos criou. Nós simplesmente não temos outra escolha além de pensar e falar dentro desses limites. Se cairmos na contradição ou na incoerência, violamos algumas das condições do cri­tério público pelos quais a teologia é considerada significativa. Isso não significa que a lógica seja o padrão ao qual Deus esteja sujeito, mas é o padrão para que nós tenhamos um discurso significativo sobre Deus.Podem existir realidades incompreensíveis a nós, realidades que estejam completamente fora de nossa habilidade para entendê-las. Contudo, se Deus deseja se comunicar significativamente conosco, então ele terá que fazer isso dentro das condições de sua própria criação. Uma dessas condições é que a intelegibilidade exclui a antinomia.22

A s duas teses entrelaçadas nessa passagem são: a) todo discurso que viola os “lim ites” da consistência lógica (observe a metáfora) é carente de sentido; b) toda com unicação significativa deve ser reduzida ao literal (isto é, deve po­der ser inserida em um silogism o lógico). Esse reducionism o lógico é a chave pa ra todo o pro jeto da teologia relacional. Em resumo, a teologia relacional de D eus é exatamente o que acontece quando todas as descrições divinas são forçadas nas categorias de positivism o lógico da segunda metade do século 20. Os pressupostos epistem ológicos são os m esm os. N o recorte acima, Sanders diz que “a lógica... é o padrão para que nós tenhamos um discurso significativo sobre D eus” e que “se Deus deseja se comunicar significativam ente conosco, então ele terá que fazer isso dentro das condições de sua própria criação” . Qualquer coisa além desses lim ites lógicos é “incom preensível” e irrelevante. W ittgenstein disse a mesma coisa: “Os limites de minha linguagem são os lim i­tes de meu mundo. A lógica pervade o mundo: os lim ites do mundo são os seus lim ites também... O método correto da filosofia seria esse. D izer nada além do que pode ser dito”.23E, com esse positivism o lógico primordial, A. J. Ayer expli­cou a conexão intelegibilidade-literalidade da seguinte forma: “somente se algo for literalmente significativo... uma afirmação de verdadeiro ou falso pode ser

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feita com propriedade... [de outra forma] o objeto não poderia ser entendido no sentido em que hipóteses científicas e de afirmações do senso comum são entendidas”.24 E, assim, toda a linguagem antropomórfica e metafórica deve ser reduzida a uma linguagem literal e unívoca.

Considere três breves exemplos do argumento relacional que revelam esse reducionismo comum:

(a) John Sanders:

Se nós levarmos a sério nosso status de criatura, então nós temos que nos contentar em conhecer e falar sobre Deus dentro das condições de nossos limites de criatura. Em outras palavras... o uso de metáforas e linguagem antropomórfica (no sentido amplo) quando falamos de Deus é necessário...O propósito desse livro não é reduzir Deus aos limites da compreensão humana, mas propor que, dentro dos limites de nossa condição humana,Deus pode ser conhecido, e propor um modelo de relacionamento divino- humano que reexplore antigas perspectivas de nosso entendimento de Deus e aprofunde nossa apreciação da liberdade, do amor, da sabedoria e do poder de Deus... Se Deus decide revelar-se a nós como um ser pessoal que entra em relação conosco, que tem propósitos, emoções, desejos e que sofre por nós, então nós devemos nos regozij ar nessa representação antropomórfica e aceitá- la como revelando a nós a própria natureza de Deus.25

Sanders, aqui, começa com a linguagem metafórica e com o antropomor­fismo. Mas nós já sabemos, devido às suas restrições racionalistas, que essa linguagem não pode ser verdadeiramente figurativa. Ela deve ser reduzida ao literal. Dessa forma, quando Sanders menciona os assuntos em questão, a saber, propósitos genuínos, emoções, desejos, amor, sofrimento, nós só pode­mos entender essa citação em sentido estritamente unívoco. Nenhuma outra opção é aceitável. O literal (o “antropomorfismo” de Sanders) agora revela univocamente “a própria natureza de Deus”. A imaginação metafórica é po­dada. Nós não podemos mais dizer que Deus “é e não é” emoção ou amor em qualquer sentido criativo. Ele tem que se prender às restrições do silogismo. E eu concordo plenamente que muitos teólogos clássicos caem no mesmo erro ao contrário (muitos deles seguem Platão,26 enquanto os teólogos relacionais preferem Descartes e Locke: não há grande diferença). Mas por que pegar algum caminho? Por que não ver a linguagem metafórica como confiável, embora não seja matemática?

(b) Gregory Boyd (em uma série de desafios separados, mas similares):

Quando uma pessoa está em relacionamento genuíno com outra, a dis­posição de ajustamento entre elas é sempre considerada como uma virtu­de. Por que isso deveria se aplicar a pessoas e não a Deus?

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Como alguém pode estar sinceramente disposto a fazer algo que sabe que nunca fará? E como alguém pode mudar sua opinião se sabe que sua opinião é eternamente constituída?Se a posição clássica está correta, nós temos que estar dispostos a acei­tar que Deus podia ao mesmo tempo dizer que o comportamento dos israelitas “não entra na minha mente” e que o comportamento dos israelitas “está eternamente na minha mente”. Se isso não é uma contradição, então o que é?Você pode genuinamente procurar uma moeda na sua casa se você sabe que não vai encontrá-la?O bom senso nos diz que nós só podemos lamentar uma decisão se essa decisão resultou de outra que nós não estávamos esperando.27

Todos esses tipos de questões retóricas estão baseados nas reduções metafó­ricas também. Em cada caso, e em inúmeros outros, Boyd oferece algum item psicológico para consideração: ajustes relacionais, sinceridade, arrependimento, familiaridade, busca e lamentação. Nós podemos conceber duas opções de inter­pretação: nós podemos entendê-los em um sentido metafórico que revela a ver­dade ou imediatamente reduzi-los a um silogismo. A abordagem metafórica, pelo menos, deixaria aberta a questão de se esses itens estão falando de forma pura­mente unívoca ou se permitem versões transcendentes e genuínas de cada tese. Mas, considerando a abordagem iluminista de Boyd à metáfora, ele não pode permitir que uma passagem específica ou toda a Escritura determine essas ques­tões. Como Sanders, ele tem que reduzir cada metáfora ao nível mais literalista, pois isso é o que o “bom senso” exige. Como Boyd observa:

É necessário nos esforçarmos para termos uma teologia plausível por­que, para muitos de nós, a mente deve ser totalmente convencida para que o coração seja transformado... Aposição da teologia relacional sobre Deus e sobre o futuro faz mais sentido intelectual do que a posição clássica... A posição relacional é a única opção que evita o paradoxo impenetrável (ou, como muitos argumentariam, a contradição) de se afir­mar que livres ações autodeterminadas foram estabelecidas uma eterni­dade antes que os agentes livres as realizassem.28

Nós podemos ouvir Hobbes cochichando ao fundo. Boyd parece querer di­zer que a fé é a substância de um intelecto plenamente convencido, a evidência de coisas deduzidas.

(c) William Hasker:A noção de que Deus está no controle é simplesmente ambígua. Os pais de crianças pequenas certamente desejam estar no controle de tudo o que

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acontece... e geralmente têm esse desejo em um grau considerável. Mas, se eles forem sábios, eles não tentarão exercer esse controle determinando cada detalhe daquilo que seus filhos fazem e experimentam... Uma conside­ração similar não deveria ser feita sobre o controle de Deus sobre nós?29

Aqui a paternidade de Deus é reduzida. Uma abordagem saudável à metá­fora, novamente, pelo menos deixaria aberto algum mistério poético quanto a de que forma Deus é ou não é um pai. Talvez ele aja de alguma forma maravilhosmente superior na qual ele controle todas as coisas, como um escul­tor ou um autor, mas na qual nós tenhamos liberdade genuína. Mas essa não pode sequer ser uma alternativa legítima para Hasker. A metáfora deve ser exilada. Hasker também joga de acordo com as regras iluministas:

Uma doutrina inteligível deve poder ser expressa em sentenças gramati­calmente bem elaboradas... Nós também podemos exigir que uma doutrina inteligível não seja contraditória ou de qualquer forma impossível. Parece, ainda, que uma proposição não é bem entendida a menos que seja possí­vel dar um relato de pelo menos algumas relações inferenciais não-triviais que se coloquem entre ela e outras proposições relevantes.30

A metáfora genuína não pode jogar por essas regras, e, muito embora as metáforas tenham abundância de relações inferenciais, muitas das quais nós podemos mostrar, mas não podemos dizer, essas relações são demasiadamente sutis para as estruturas iluministas.

Os problemas com o reducionismo estético da teologia relacional

Minha proposição original é a de que a teologia relacional deve ser falsa porque ela obstrui as características da estética. Especificamente, ela assume uma posição reducionista da metáfora, excluindo toda a significação que não se encaixa em uma referência quantificável e na literalidade. Embora eu tenha feito críticas pelo caminho, eu agora as colocarei juntas:

I ) Violação da Disjunção da Metáfora: o argumento central sobre o qual toda a exegese de Sanders foi construída é o silogismo disjuntivo: ou nós temos uma pregação unívoca de Deus ou nós temos que ser agnósticos sobre ele. Mas nós não somos agnósticos, pois nós temos a revelação divina. Portanto, nossa pregação sobre Deus deve ser unívoca. Nas palavras de Sanders, “Deve haver algumas propriedades que são usadas pra Deus no mesmo sentido em que elas são usadas para coisas da ordem criada”.31 A primeira premissa falha se nós pudermos encontrar pelo menos uma outra opção além da inequivocidade e o agnosticismo. E a outra opção nem sequer é a clara opção analógica explicada

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pelos medievais. Os pressupostos da metáfora são realmente mais sutis que a predicação analógica, pois a metáfora evoca aspectos racionais, porém não- cognitivos, de nosso ser (veja abaixo). Mas uma outra opção pode quebrar a disjunção exclusivista da teologia relacional. E, de fato, como citado acima, o fato de que os teólogos relacionais podem comunicar argumentos em favor da literalidade somente por meios de metáforas não-unívocas é uma prova suficien­te de que a inequivocidade e o agnosticismo não são as únicas possibilidades. Se os teólogos relacionais podem se comunicar fora da disjunção que eles exigem para a revelação divina, então pode ser que Deus também possa.

2) Significação dos principais discursos: mesmo sem levar em conta as questões da univocidade, as exigências de lógica e comunicabilidade são dife­rentes. Se a significabilidade só pode ser aplicada àquilo que é logicamente consistente, a maior parte de nossa língua e muitas disciplinas devem ser expul­sas pelos teólogos relacionais. A lógica só toleraria afirmações indicativas com­pletas, e somente afirmações indicativas seriam capazes de preencher o crité­rio iluminista/relacional de “consistência lógica”, já que somente eles têm refe­rentes claros, distintos e identificáveis. Não somente toda a linguagem figurati­va deve ser excluída, mas também a maior parte de perguntas, imperativos, exclamações, etc. Nada disso se eleva ao patamar privilegiado de afirmações indicativas. A teologia relacional não somente exclui muito de nossa língua (e da linguagem bíblica também) como carente de sentido, mas, à moda do positivismo lógico, os campos da ética, da estética, das emoções, da imagina­ção e etc. também devem se manter em silêncio, pois grande parte de sua área de atuação não pode ser reduzida à forma silogística.

3) Falha de significado como referência: o problema apenas identificou a raiz de uma noção comum, mas simplista, de significado-como-referência que permeia os escritos dos teólogos relacionais. Esse é o primeiro laço para as categorias iluministas, especialmente para os tipos de afirmações positivistas lógicas observadas anteriormente. O significado lingüístico, obviamente, é um assunto complexo, e a filosofia do século 20, sempre que pôde, evitou falar em idéias ou intelecto quando discutiu o significado (a filosofia medieval era muito mais sofisticada sobre esse assunto). Mas uma das mudanças ocorridas no século 21 foi que se deixou de falar no significado como mental e passou-se a falar do significado como referente no mundo (o projeto extensional). Para que a noção da teologia relacional sobre a univocidade possa funcionar, assim como seu desejo de receber somente afirmações capturadas pela lógica, ela também tem que admitir que o significado é referência. Observe esse pressuposto tra­balhando na discussão de Sanders sobre o antropomorfismo: “O que eu quero dizer com a palavra ‘literal’ é que nossa linguagem sobre Deus é realidade representativa (confiável), de tal forma que há um referente, um outro, com o qual nós estamos em relação e de quem nós temos conhecimento genuíno”.32 É esse tipo de vinculação do significado ao referente que anula a metáfora e

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todos os outros tipos de linguagem relacionados acima. Mas muitos pensado­res, cristãos e não-cristãos, têm mostrado que o significado é mais que um referente. Uma boa parte de nossa linguagem não pode sequer ser vinculada a um referente no mundo (“o”, “e”, “para”, etc.), e mesmo assim possui signifi­cado. Além disso, essa posição começa a fazer com que meros símbolos físicos assumam propriedades quase mágicas. Símbolos inertes repentinamente ga­nham a habilidade de “referir-se” e “apontar” para objetos no mundo, como rochas fazendo nascer setas. O significado é muito mais complexo, e envolve não somente referentes, mas também convenções sociais, intenções mentais e muito mais. Reduzir o significado ao referente permite que a univocidade da teologia relacional brilhe e cause seus danos, mas, quando nós enxergamos que o projeto se baseia em uma visão simplisticamente falsa do significado, o proje­to se apaga. Em uma nota de rodapé, Sanders tenta fracamente se distanciar dessa acusação: “afirmar a univocidade não nos compromete com o ‘quadro teórico’ de significado de acordo com o qual uma palavra se refere a um refe­rente empírico”.33 Mas isso confunde o assunto em questão. Sanders está pre­ocupado aqui exatamente em permitir múltiplos referentes, mas ele não aban­dona seu pressuposto mais básico de que significado é referência, como oposto à combinação de uso, intenção, etc. E ele não pode abrir mão dessa alegação sem derrubar todo o projeto da teologia relacional.

4) Irredutibilidade da metáfora: o principal ponto sobre referência permite um aumento de detalhes da hostilidade da teologia relacional à metáfora genuína. Para os teólogos relacionais e outros pensadores iluministas, cada metáfora pode e deve ser reduzida a um núcleo literal antes que possa ser admitida como signifi­cativa e logicamente apresentável, e redutibilidade significa o encontro do referen­te. Mas os referentes da metáfora geralmente são imagens (às vezes imagens ou padrões mentais reais) que não podem ser transformadas em proposições indicativas ou evocam referentes que são cognitivamente importantes, mas que não são puramente intelectuais no sentido iluminista, isto é, esquemas emocionais, atitudes estéticas, conotações subjetivas, virtudes éticas, etc. Como vários pensa­dores têm observado, a metáfora é muito mais parecida com a música do que com a matemática. A música é cognitivamente muito poderosa e significativa, embora não possa ser reduzida a simples proposições. A música pode se relacionar a partes de nosso ser que nunca poderão ser qualificadas como função silogística, embora elas sejam geralmente mais determinantes na armação de julgamentos mentais. A metáfora age da mesma forma. De forma totalmente irônica, Sanders solidariamente cita vários pensadores (Lakoff, Johnson, Gill)34 que têm uma posi­ção semelhante à minha com relação à metáfora, mas ele aparentemente falha em perceber como suas conclusões corroem totalmente todo o projeto da teologia relacional. Jerry Gill, por exemplo, resume a profundidade e a irredutibilidade da metáfora de uma forma que reflete muito do meu criticismo acima:

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A metáfora é utilmente entendida como um fenômeno mediatário no qual certos aspectos e qualidades intangíveis entre as várias dimensões da realidade experimentada podem ser expressos por meio do contexto, uso e configuração de certos aspectos e qualidades tangíveis dessa realida­de. O que isso significa, claro, é que o sentido de uma profunda e rica metáfora não pode ser exaurido por alguma quantidade de análise, que há mistérios em nossa experiência que não podem ser encontrados e usados mediativamente. De fato, pode ser que a própria natureza da metáfora seja um mistério em si mesmo, um mistério que não pode ser abordado de forma indireta.35

A teologia relacional não somente é hostil à metáfora e à dimensão estética em suas reduções da metáfora divina, mas ela também revela um intelectualismo quase gnóstico que alimenta sua inclinação matemática. Embora Sanders e outros, especialmente Boyd, objetivem corretamente censurar qualquer apri­sionamento do Cristianismo em categorias helenistas, eles mesmos abraçam a primazia do intelecto (uma característica permanente do Helenismo e do Mo­dernismo) de uma forma que faria com que até mesmo Platão ficasse enrubescido: “a mente deve estar totalmente convencida para que o coração seja plenamente transformado”.36

5) Aplicação equivocada da lógica: a lógica, é claro, tem seu lugar, mas a teologia relacional, em vez de fazer o balanço adequado da aplicação da lógica, é a causa de sua confusão. Quando nós vemos pessoas usando cegamente cate­gorias pagãs, é importante descobrir qual é a motivação original. O que foi que motivou a disciplina da lógica? Tanto para o Helenismo quanto para o Iluminismo, o objetivo da lógica era ajudar a preservar a objetividade do conhecimento contra o ceticismo relativista. A matemática foi o modelo da objetividade epistemológica, com suas fórmulas universais e suas provas dedutivas. Na esperança de imitar essa objetividade em outras áreas do conhecimento, eles tentaram matematizar o pensamento humano encontrando um cálculo intelectual que pudesse produzir o conhecimento objetivo. Deixando de lado o século 20, a maior parte das eras percebeu que a matemática não pode se aplicar a todas as áreas da vida. Nem tudo pode ser quantificado, nem tudo tem o tipo de enquadramento necessário ao cálculo. Mas essa verdade foi especialmente negligenciada com relação à lógica. Embora tenha suas origens na imitação da matemática, a lógica foi rapidamente aplicada também a todos os aspectos da realidade. Portanto, a “soberania da razão” tomou-se um selo de qualidade do Iluminismo, e até mesmo pensadores como Immanuel Kant tentaram reinar nesse campo. As origens da lógica devem nos dar uma noção de seus limites. Como a matemática, o mundo da lógica (como foi observado acima) é limitado àquilo que é quantificado e medido. Para que algo possa ser contraditório, ele tem que ser simples e sujeito à negação. E,

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como a matemática, o campo físico atende habilmente a essa finalidade (com qualificações menores). Nós podemos facilmente falar sobre a impossibilidade física de se ter uma bola que é vermelha e não-vermelha ou uma porta que é retangular e não-retangular ao mesmo tempo. As dúvidas começam a surgir quan­do nós começamos a tentar aplicar a lógica em arenas não-físicas, nas quais nós não temos certeza de onde as extremidades começam e terminam. Admitindo que os antigos platonistas estavam equivocados em tentar colocarem-se no lugar do Deus cristão, os cristãos deveriam estar apreensivos sobre qualquer menção de necessidades não-sobrenaturais flutuando sobre o universo. Mas, deixando isso de lado, a teologia relacional envolve uma aplicação muito equivocada da lógica, apresentada acima. Em vez de confinar a lógica naturalmente ao campo físico, ela não hesita em admitir que o campo divino é clara e distintamente quantificável. Aplicando a lógica ao campo divino, a teologia relacional pressupõe conhecer todos os limites e possíveis negações, mas isso parece ser um equívoco fundamental sobre a natureza e habilidades da lógica.

6) Revelando o incompreensível: os defensores da teologia relacional não são polêmicos ao desafiar aqueles especuladores não-revelacionais que falam sobre o que é impossível falar: se Deus está totalmente além das categorias humanas, então nós não podemos falar sobre ele. Mas os teólogos relacionais apelam a essa tese contra aqueles de nós que estão um pouco desemparelhados com a epistemologia revelacional - “Sem a revelação nós não podemos saber que alguma coisa existe fora de nossos limites, e se, pela revelação, nós somos informados sobre uma existência transcendente, nós só podemos entendê-la pelo uso de nossas condições” [isto é, univocidade/literalidade iluminista].37

Primeiro, observe como a transcendência é rejeitada a priori, já que nada pode quebrar a barreira da literalidade (mas veja a primeira crítica acima). Segun­do, os teólogos relacionais são totalmente confiantes de que nenhuma das passa­gens “tradicionais” referentes à transcendência (por exemplo, Is 58.8) “se refere a diferenças individuais entre Deus e o homem, nem a diferenças ontológicas ou epistemológicas. Para Isaías, Deus não pode ser comparado aos homens no sen­tido de que ele ama aqueles que não deveria amar”.38 Mas o fato é que, no con­texto, nenhum limite ético semelhante a esse é apresentado aqui. Em vez disso, a passagem abertamente se refere a várias características epistemológicas: ouvir, buscar, encontrar, conhecer e pensar. E como diferenças éticas ou de caráter não são espécies de epistemologia e ontologia? Esse estreitamento só pode ser super­ficial. E, terceiro, vários textos da Escritura revelam a verdade da incom- preensibilidade além de nossas categorias. Até mesmo em termos da teologia relacional, Deus pode expressar a nós, em linguagem humana, o fato de que seu ser e seu conhecimento são categoricamente diferentes dos nossos, sem especifi­car seu conteúdo em termos unívocos. Esse tipo de revelação seria assim:

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Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria quanto do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? (Rm 11.33,34).Conhecer o amor de Cristo, que excede todo o entendimento, para que sejais tomados de toda a plenitude de Deus. Ora, àquele que é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos, conforme o seu poder que opera em nós... (Ef 3.19,20).

Ironicamente, considerando o argumento da teologia relacional sobre a univocidade, a questão retórica “quem conheceu a mente do Senhor?” real­mente é respondida. Nós conhecemos a mente do Senhor, já que Deus pode falar a nós somente de forma unívoca - ou, como diz Sanders, “tudo o que nós podemos saber é o que Deus é em relação a nós... Nosso Senhor, Criador e Redentor é o que Deus é realmente em relação a nós”.39 E, mais uma vez, os cristãos abraçam esse aspecto do projeto iluminista tanto quanto os teólogos relacionais, e não leva muito tempo para que a Trindade e a encarnação sejam eliminadas. Elas, também, são muito mais complexas e interessantes que as simplicidades matemáticas de Aristóteles e Descartes. O tempo dirá.

Considerando tudo o que foi dito acima, é evidente que a teologia relacional está profundamente comprometida com os critérios iluministas para a metáfora e a razão. E, ainda, apesar de todas as suas queixas contra o Helenismo, eles não hesitam em abraçar seu reavivamento no Iluminísmo e na filosofia analítica do século 20. Observe esta afirmação reveladora de William Haskers:

Muitos de nós também têm encontrado seu lar filosófico na tradição analítica.E é simplesmente fato que o hábito de pensar engendrado por essa tradição não é particularmente congênito à teoria da eternidade de Deus... Um possível comentário sobre isso é que a atual preferência pelo modo analítico de pensa­mento é simplesmente um fato contingente sobre um segmento de nossa comunidade filosófica, e não deve mais ser dada a ela a mesma lealdade irrefle- tida que era dada às inclinações platônico-místicas de algumas gerações ante­riores de filósofos. O comentário é justo, mas o problema é inescapável. Só se pode ver o mundo e Deus do lugar de onde de fato se está.40

Uma pessoa pode rejeitar as categorias platônicas do etemalismo divino e ainda ser aturdida com essa admissão. Isso não somente historicia e trivializa toda a contribuição da teologia relacional, mas também coloca em evidência o problema da maior parte da filosofia cristã contemporânea. Nós ainda somos suficientemente complacentes para não tentarmos esclarecer as antíteses bíblicas e descartarmos tanto os pressupostos helenistas quantos os pressupostos iluministas sobre modalidade, conhecimento e linguagem. Nós ainda gastamos

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muito tempo imitando os adoradores de Baal e chamando o que temos feito de nova e experimental teologia bíblica.

Se minhas críticas acima tiverem algum mérito, então nós estamos diante de uma poderosa ironia: a teologia relacional alega permitir a criatividade divina e novos discernimentos estéticos:

Se a posição clássica sobre a presciência divina estiver correta, há coisas positivas que os humanos podem fazer e coisas que eles não podem.Nós podemos apreciar novidades - novas canções, poemas novos, pin­turas originais, reviravoltas na história, um divertimento espontâneo, danças criativas, e assim por diante. Nós podemos nos admirar, experi­mentar aventuras e desfrutar de surpresas quando encontramos o ines­perado. Embora a Bíblia seja explícita em atribuir muitas dessas experiên­cias a Deus, a posição clássica as descarta. Isso não é limitar Deus?41

A glória de novas canções e novos poemas e da criatividade, contudo, depen­de do tipo de metáfora e da dimensão estética matematicamente selecionada pelos métodos da teologia relacional. Seus pressupostos centrais sobre a metáfo­ra e a razão são os próprios agentes que destroem a criatividade genuína. Des­cartes, Hobbes e Locke não podiam ter inspirado uma tradição poética (e não inspiraram), pois eles eram hostis a ela. Tudo se toma matematizado e domesti­cado, inclusive o Deus Triúno. Não se podem afirmar os pressupostos da teologia relacional e ao mesmo tempo compreender as profundezas da poesia. Nenhum artista genuíno jamais ficaria impressionado com as simplicidades relacionais. Por outro lado, a ortodoxia histórica, despida de todo Helenismo, é o próprio coração da beleza, da bondade e da verdade. Onde quer que a teologia relacional negue novas canções, novos poemas e criatividade tanto a Deus quanto ao homem, a ortodoxia cristã tem as profundezas metafóricas para abraçar os mis­térios divinos na medida em que Deus tem o controle de todas as coisas, preserva a genuína liberdade humana toma-lá-dá-cá e ainda é o modelo transcendental de toda aventura, divertimento e criatividade nos seus caminhos insondáveis (Rm11.33), caminhos que maravilhosamente excedem todo o entendimento (Ef 3.19), dos quais a criatividade humana pode ser apenas uma sombra.

Mas, para chegarmos até lá, nós não podemos seguir após o paganismo, inqui­etados, como Boyd, por estarmos cada vez mais e “mais fora de sincronia... com nossa cultura”.42 Em vez disso, nós devemos ser desejosos por sermos tolos diante das estreitas perspectivas tanto do Helenismo quanto do pensamento iluminista:

Ninguém se engane a si mesmo: se alguém dentre vós se tem por sábio neste século, faça-se estulto para se tornar sábio. Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus; porquanto está escrito: ele apa­nha os sábios na sua própria estultícia (ICo 3.18,19).

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3Atlas Encolheu os Ombros:

Adorando na Beleza da SantidadeR. C. Sproul, Jr.

O pós-modernismo, a atual máscara usada para encobrir o ceticismo e a descrença, tem uma hoste de campos diferentes nos quais procura espalhar sua incerteza. Embora o termo em si mesmo seja um tipo de garra de poder, o equivalente filosófico de “novo e aperfeiçoado”, ele não é novo nem aperfeiço­ado. Em vez disso, ele é somente outra narrativa, como todas as outras que o precederam, que nos diz que nós não sabemos o que estamos dizendo.

Ele faz sua investida sobre a literatura sob a aparência externa de descons- trucionismo, argumentando que não há um sentido inerente em um dado texto e que o evento da leitura é a colisão do leitor com o escritor desconhecido, incognoscível, apesar da política toda-poderosa e dos pressupostos culturais. Isso quer dizer que Shakespeare escreveu e eu desfruto de The Taming ofthe Shrew somente porque nós somos dois misóginos reacionários, eToni Morrison escreve o que escreve, e eu desfruto disso, somente porque ele sofre sob a brutal opressão de misóginos reacionários como eu.

No campo da História, o pós-modernismo nós dá uma ficha limpa, levando a premissa essencialmente válida de que os vitoriosos escrevem a história a um extremo absurdo. Isso também nos dá ficção histórica. Se a História é somente a imaginação de coisas passadas (escrita por brancos), por que não escrever uma história diferente? Nessa nova história, os oprimidos serão os heróis e os benfeitores da humanidade. O telégrafo seria tanto uma invenção de alguma tribo antiga de Pago Pago quanto uma obra de Samuel Morse. Provavelmente mais do que isso, pois Samuel Morse foi um deles, um dos garotos maus que escreveu a história como a conhecemos.

O pós-modernismo, contudo, é uma erva daninha que não somente faz germi­nar sua presença tão nociva quanto “cipó de bruxa”1 em uma variedade de

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campos sortidos de pesquisa. Ele também ataca as próprias raízes da civilização. Ele opera abaixo da superfície, destruindo o solo que edifica o mundo. Abaixo da civilização está o leito de rocha, essa tríade de virtudes, beleza, verdade e bonda­de, sobre a qual a civilização supostamente está edificada. E ele vai ainda mais abaixo do leito de rocha e tenta atacar a fundação dos pilares, o próprio Deus.

Foi Platão que colocou a bondade, a verdade e a beleza como os maiores bens. Ele descreveu essas três virtudes como a fonte de toda virtude, no senti­do de que todas as outras virtudes são virtudes somente à medida que todas elas servem a essas três. Essas três sozinhas, na mente de Platão, são propri­amente fins em si mesmas. Elas devem ser possuídas por causa de si mesmas. A coragem também é uma virtude, não em si mesma, mas somente porque ela serve à bondade, à verdade e à beleza. A fidelidade também. Mas essas três virtudes são boas, porque são boas. Elas são verdadeiras, porque são verdadei­ras. E elas são belas porque, são belas. Elas são dados, da mesma forma que toda a geometria de Euclides foi construída sobre os pressupostos do ponto, da linha e do plano.

Platão, em um sentido limitado, estava certo. Ele, pela graça comum do único Deus verdadeiro, topou com três dos atributos fundamentais do próprio Deus. Deus, embora Platão provavelmente não admitisse, é o fundmento sobre o qual esses pilares estão estabelecidos. Ele é a fonte da fonte e o fim do fim. Sem ele, esses pilares se perdem no espaço sem fim. Esse é o objetivo do pós-moder- nismo: que essas três virtudes sejam banidas de toda carne. O pós-modemismo é filho da modernidade destrutiva, que já pavimentou de forma bem-sucedida o caminho para o paraíso da universidade e estabeleceu uma influência poliglota.

Poucos de nós, contudo, vivemos na universidade. O pós-modemismo, por toda a sua obtusidade aparente, não está restrito a uma torre de marfim. A investida contra o nosso mundo diário é mais direta, menos matizada. Nós habi­tamos um mundo em que cada um é convencido de sua impossibilidade de ter acesso à verdade, o que não é verdade. Talvez esse seja o nosso credo mais amplamente difundido. Nossa epistemologia é que não existe epistemologia. Nós sabemos somente uma coisa: que nós nada sabemos. Isso vicia qualquer ética. Até mesmo se nós quisermos afirmar uma ética objetiva, dizer que X é bom, não-X é mau, nós não poderemos elaborá-la, pois não há verdade objetiva. Com uma epistemologia relativista, nós não podemos dizer que é verdade que X é bom. Dessa forma, nós aceitamos como boa a crença de que o bem não existe. Tudo é apenas uma questão de ponto de vista. Assim, da mesma forma que seria falso afirmar que alguma coisa é falsa, é errado afirmar que alguma coisa seja errada. Eu sei, eu sei. Mas você não pode levar essas pessoas a uma consistência lógica, como se isso tivesse algo a ver com a verdade. Afirme a um relativista, seja epistemológico, moral ou ambos, que o sistema contradiz a si mesmo e você receberá não um olhar perplexo, mas um sorriso aberto. A con-

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sistência, afinal de contas, é a fonte de preocupação de umas poucas mentes, e a contradição é o selo de garantia da verdade (que, logicamente, não existe).

Na Igreja, contudo, nós estamos alarmados. Se não há verdade, então Jesus não é a verdade. Se não há bem, então nem mesmo o Pai é bom. Quando nós finalmente percebermos que o dinossauro do modernismo com o qual nós está­vamos lutando estava morto há algum tempo, nós voltaremos a atenção para o Filho que está no trono. Nós argumentamos feroz e persuasivamente que a verdade existe e pode ser conhecida. Nós argumentamos com igual ardor que certo e errado não são meros fantasmas pessoais ou sociais. Mas, quando chegamos na beleza, nós seguimos o ritmo imposto pelos pós-modemistas. Quan­do a beleza é relegada a uma simples questão de gosto, quando o pós-moder- nismo insiste que não há um padrão transcendental para a beleza, a Igreja tem respondido com um ressoante “amém”.

O problema, contudo, é o mesmo. Nós não podemos colocar a verdade fora do pasto, porque ela está baseada na própria natureza de Deus. Quando Jesus diz “eu sou a verdade”, é isso o que ele quer dizer. Ele não é a verdade para alguns e não-verdade para outros. Ele é imutavelmente a verdade. Quando os anjos celestiais cantam “Santo, Santo, Santo é o Senhor dos exércitos”, eles estão descrevendo seu caráter. Eles não estão sugerindo que ele será justo para alguns, justo e ímpio para outros e ímpio ao mesmo tempo e na mesma relação. Eles também não estão louvando a Deus porque ele é santo agora enquanto, no fundo de seu coração, estão preocupados com o que acontecerá quando isso mudar. Ele é imutavelmente santo. E, quando a Escritura nos diz para louvar ao Senhor na beleza da santidade, ela, da mesma forma, está atribuindo beleza a Deus não somente como um termo descritivo, mas como sua própria natureza. Sua beleza não é como a nossa, sujeita às vicissitudes do tempo. Deus não está em seu céu aplicando creme anti-rugas para mantê-las à distância. Ele imuta­velmente é beleza. Se ele é beleza, então nossa preocupação deve ser ter nossa compreensão de beleza refletida nele. Nós não somos livres para formar nossa própria compreensão de beleza mais do que o somos para formar nossa compreensão de verdade ou de bondade. Nós não devemos chamar o feio de bonito da mesma forma que não devemos chamar o mal de bem.

E Deus também não. Como a Igreja tem contendido com o relacionamento de Deus com seu mundo, assim também ela tem contendido com o relacionamento de Deus com Deus. Por exemplo, quando a Escritura nos diz que Deus é bom, o que ela está nos dizendo? Ela está dizendo que há um padrão de justiça que precede a própria existência de Deus? Ela está dizendo que a bondade é algo que transcende até mesmo o próprio Deus? Se for assim, de onde vem esse padrão? Haverá um deus acima de Deus, um criador do padrão, sobre o qual Deus está estabelecido para ser tão puro? Ele teria autoridade sobre a bondade ao ponto de amanhã determinar que é mau dar ao pobre e é justo roubar o que ele

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tem? Deus é sub lego, abaixo da lei, ou supra lego, acima da lei? A Igreja sempre respondeu que ele não é nem uma coisa nem outra. Deus é autônomo, a lei para si mesmo. Deus não está abaixo da lei, de forma que ele seja bom porque se submeta a algum padrão que ele não criou. Ele também não está acima da lei de forma que possa mudá-la de acordo com seu querer. O bom é bom, porque corresponde ao caráter de Deus. E Deus é bom, porque esse é seu caráter. Ele não pode chamar o mau de bom, pois isso contradiria a si mesmo.

O mesmo princípio se aplica à beleza. Nós não dizemos que Deus é beleza porque exista um padrão eterno de beleza que transcenda Deus, mas ao qual ele é favoravelmente comparado. Mas a beleza também não é uma mera cria­ção de Deus, com a qual ele pode, por direito de propriedade, fazer o que lhe agrade. A beleza é beleza, porque Deus é beleza. Ele é, em uma palavra, auto- estético, isto é, beleza em si mesmo.

Ele é imutavelmente assim. Sua bondade, sua verdade e sua beleza prece­dem a ordem criada, e por isso não há forma de modificá-la pela criação, e é aqui que está o tropeço para os teólogos relacionais.

Como o pós-modernismo, a teologia relacional não é nova. E, como no pós- modernismo, as recusas em reconhecer qualquer relação com seus primos mais velhos simplesmente não são verdadeiras. A teologia do processo se desenvolveu no mesmo cemitério de descrença que foi o liberalismo do século 19, isto é, os proponentes dessa idéia de que Deus muda saíram das principais correntes das instituições liberais. Sua tradição era de descrença. Assim como o arqui-herético Márcion, que os precedeu, sua motivação era, em parte, separar-se do repugnante Deus do Antigo Testamento e agarrar-se ao doce e temo Deus do Novo Testa­mento. Eles fizeram um deus à sua própria imagem, e quando o Deus Vivo pare­ceu não ser igual ao deus que eles tinham criado, eles alegaram que ele estava pelo menos tentando.

Os teólogos relacionais, contudo, não vieram das fileiras da incredulidade, mas da ala arminiana da Igreja. Eles desonestamente se apresentam como evangélicos, embora, de fato, eles não sejam nem mesmo teístas históricos. Contudo, essa é sua “tradição de fé”.

Um dos grandes problemas do Arminianismo, ou semi-pelagianismo, é que ele quer percorrer dois caminhos. O homem toma decisões livres, como esco­lher abraçar o evangelho, e Deus conhece o futuro. Nos debates sobre sua posição equivocada sobre a relação entre a vontade do homem e a providência de Deus, muitos apologistas reformados têm perguntado com vigor cada vez maior como Deus pode conhecer um futuro que ele não estabeleceu. Os teólo­gos relacionais admitem a questão, e, para sustentar a vontade livre do homem, retiram de Deus o absoluto preconhecimento de todos os eventos futuros. Um pequeno preço a pagar pela liberdade. Eles são simplesmente arminianos que escolheram a porta com o tigre.

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Deus, de acordo com esses homens, deve ser desculpado, é claro. Não é culpa de Deus que ele não possa conhecer o que não pode ser conhecido. Se não aconteceu ainda, como ele pode saber? E esses homens argumentam até mesmo que sua concepção de um deus que não conhece o futuro é ainda maior do que o onisciente conhecedor de todas as coisas, que é o Deus da Igreja. Além disso, o Deus deles tem que ser rápido no gatilho. Ele tem que ajustar seus planos e ficar sempre um passo à nossa frente, e isso sem saber qual será o nosso próximo passo.

Mas esse Deus não é, no fundo, tão terrivelmente grande. Rejeitando o co­nhecimento da verdade daquilo que é futuro, nós rejeitamos também o conhecimento da beleza. A beleza se torna uma bestialidade nas mãos desse deus ignorante, e essa feiúra necessariamente afeta nossa adoração. Nós não podemos adorar o Senhor na beleza da santidade, se Deus não sabe o que está por vir.

Uma das razões, segundo creio, pelas quais a Igreja tem abandonado tão prontamente qualquer defesa de uma natureza objetiva da beleza é que a bele­za é claramente menos quantificável que a bondade e a verdade. A verdade é aquilo que corresponde à realidade, e Deus deu a todos os homens faculdades racionais e empíricas pelas quais ela pode ser conhecida. A bondade também é comparativamente fácil de se quantificar. Deus nos deu sua Palavra, e essa Palavra contém sua lei. Dessa forma, nós sabemos que o mal é qualquer falta de conformidade com essa lei ou a transgressão dessa lei.

Mas como podemos medir a beleza? Se tentarmos dissecar a beleza, cortá-la em fatias finas e colocá-las sob o microscópio, vamos descobrir que a matamos. Alguém pode atribuir a ela números e notas e traduzir o Concer­to Brandenburg em números, mas qualquer um, até mesmo o maior amante da aritmética, reconhece que algo significativo é perdido na tradução. Há algo de misterioso na beleza, assim como há algo muito misterioso em Deus. Contudo, o fato de que Deus é beleza coloca fim no debate sobre a relativi­dade da beleza. Se a velocidade da luz é a constante no universo de Einstein, pela qual o tempo e o espaço podem ser relativizados, assim também Deus é a constante necessária da beleza, tanto porque ele é beleza em si mesmo quanto porque ele é beleza imutável.

Embora a beleza seja misteriosa, como seu oposto, nós a conhecemos quan­do a vemos ou quando a ouvimos. Até mesmo o mais grosseiro relativista sabe que está mentindo quando afirma que os ruídos erráticos que escapam de uma bomba hidráulica são tão belos quanto os sons da melodia Canon in D, do compositor Pachelbel. Nós afirmamos a objetividade da beleza, pelo menos em parte, na prática. Nós plantamos flores em vez de ervas daninhas; nós pendu­ramos quadros, em vez de bolotas de tinta; nós colocamos Bach em nosso aparelho de som, em vez de som de batidas de carro.

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A praticidade é um grande ponto de venda dos gurus da teologia relacional. Eles argumentam que parte daquilo que deve ter apelo para nós é se há ligação com a prática. Nós somos informados no prefácio de The Openness o f God, de Clark Pinnock e outros, que:

nós precisamos de uma teologia que seja biblicamente fiel e intelectual­mente consistente, e que reforce, em vez de tornar problemática, nossa experiência com Deus. A visão de Deus apresentada nesse livro pode parecer nova para quem estiver fora dos círculos eruditos, nos quais ela é bem conhecida. Mas se nós nos lembrarmos de que ela apresenta uma forma sistemática daquilo que a maioria dos cristãos já experimenta em sua vida devocional, então ela não parecerá tão estranha.

David Basinger, professor de filosofia no Roberts Wesleyan College, recebeu a tarefa, em The Openness o f God, de explicar aos leitores as implicações práticas da teologia relacional. Embora em nenhum momento ele tenha dito que a questão da estética afeta diretamente nossa adoração, ele disse como a teologia relacional afeta nossas orações, uma parte vital de nossa adoração. Sua aborda­gem consiste em expor os fundamentos da posição clássica sobre um certo tema, como a oração, e a posição dos teólogos do processo, e então ele tenta colocar sua própria posição nos limites seguros do meio termo entre uma e outra. Para aqueles que afirmam um futuro estabelecido, nós certamente não temos motivo para fazer nossas petições em oração, pois tudo já foi decidido. Para o pobre público do processo, também não há motivo para fazer petições em oração, pois Deus não pode fazer nada. Na posição da teologia relacional, quando oramos, nós somos graciosamente convidados por Deus para participar com ele da cria­ção de um futuro desconhecido. Onde esse é o alegado meio termo?

Ao contrário dos proponentes da soberania específica [a posição de que Deus ordenou tudo o que acontece], nós não cremos que Deus possa unilateralmente garantir que tudo e somente o que ele deseja que aconteça em nosso mundo de fato acontecerá. Nós afirmamos, em vez disso, que, já que Deus escolheu criar um mundo no qual nós possuímos significativa liberdade, e já que nós podemos ser significativamente livres somente se ele não controlar unilateralmente a forma como essa liberdade é utilizada,Deus voluntariamente abre mão do controle dos assuntos terrenos naque­les casos em que ele nos permite exercer nossa liberdade.Contudo, ao contrário dos proponentes do teísmo do processo, nós afirmamos que Deus conserva o direito de intervir unilateralmente nos assuntos terrenos, isto é, nós cremos que a liberdade de escolha é um dom concedido por Deus a nós, e, portanto, Deus conserva o poder e a prerrogativa moral de desabilitar ocasionalmente nossa habilidade de fazer escolhas voluntárias para manter as coisas em seu rumo.2

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A soberania de Deus e a liberdade do homem, em outras palavras, são como um pouco de dinheiro guardado em uma conta corrente. Aquilo de fato é bom dinheiro, mas o dono não pode passar muitos cheques por mês.

O que isso tem a ver com a nossa adoração? A adoração se envolve com a beleza, quando nós nos reunimos na presença de Deus para renovar a aliança com ele. Nós começamos essa renovação no contexto em que nos lembramos dos grandes e graciosos atos de Deus em nosso favor no passado. Muitos dos salmos de Davi, que eram cantados na adoração do povo de Deus desde o tempo em que foram escritos, consistem em recontar os grandes feitos de Deus. Mas aqui há um problema. Quando nós praclamamos os louvores de Deus por suas bênçãos, nós achamos, com base na teologia relacional, que, afinal de contas, ele não fez tanto assim. Nós não podemos adorá-lo em seu santuário, porque ele foi passivo. Nós não podemos agradecê-lo por confundir os inimigos de Gideão, mas devemos louvar Gideão. Nós não devemos louvá-lo por ter aberto o Mar Verme-' lho, pois, aparentemente, ele ficou tão surpreso quanto Moisés por tudo o que ’ aconteceu. Ou, pelo menos, ele não sabia que os filhos de Israel atravessariam a pé seco enquanto os exércitos de Faraó seriam cobertos pela água.

Nós estamos no mesmo barco. O que nós temos que agradecer a Deus em nossos dias? Nós temos que ser gratos a ele pelo primeiro cristão que nos falou sobre a obra de Cristo? Certamente que não. Ele não sabia que isso acontece­ria, muito menos determinou que isso acontecesse. Devemos agradecer a ele por nos livrar de todos os perigos e incertezas pelos quais temos passado? Não, pois essas incertezas foram incertezas para ele também. Eu devo louvar a Deus pelas pequenas bênçãos com as quais ele tem agraciado meu lar? De jeito nenhum. Meus filhos existem somente por causa de decisões tomadas por minha querida esposa e por mim, e por causa do curso natural das coisas.

Nossa adoração e nossas orações, quando nós nos reunimos para renovar a aliança, contudo, não se concentram em tomo das muitas bênçãos que fluem dessa aliança com Deus, mas na obra de Cristo na cruz. Nós nos reunimos para nos lembrar que Jesus Cristo, no Calvário, redimiu-nos de tal forma que nós agora temos paz com Deus. Mas aqui, novamente, nós somos deixados à posição relacional, com pouco pelo que louvar. A crucificação de Cristo não aconteceu em um vácuo. Esse evento central para a adoração e para a História aconte­ceu na história, através dos eventos inter-relacionados de uma hoste de deci­sões humanas. O que aconteceria se os fariseus tivessem aceitado alegremen­te o ensino de Jesus? Ou suponha que Judas tivesse escolhido não trair nosso Senhor. Suponha que Pilatos tivesse apenas repreendido Jesus. Suponha que a multidão, em um ato inesperado e consciente, tivesse pedido que Barrabás fosse condenado à morte e que Jesus continuasse vivo. Suponha que Jesus preferisse a vida simples de um carpinteiro. Nós acabamos ficando sem moti­vos para louvar a Deus. Além disso, alguém pode se maravilhar com o modo

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pelo qual o Pai se desesperou quando testemunhou a crueldade imposta sobre seu Filho. Nós adoramos ao Pai por ter realizado nossa redenção, mas na teo­logia relacional ele não fez isso. Nossa adoração não somente é diminuída, mas esvaziada. A beleza do evangelho é perdida, pois ele nada é além de uma série de eventos casuais imprevisíveis.

É claro que nós também perdemos a forma encantadora na qual ele causou o cumprimento das profecias referentes ao Salvador. O que trouxe José e Maria a Belém além de um censo para pagar impostos a César? Como nós temos uma pessoa sendo um produto de Belém, Nazaré e Galiléia separada para interagir com uma hoste de decisões humanas? O mesmo se aplica, contudo, a todas as profecias da Escritura. Quando Daniel revela o sentido do sonho de Nabuconosor, em Daniel 2, ele apresenta um futuro muito específico. O Impé­rio Medo-Persa destruiria a poderosa Babilônia. A Grécia seria o próximo grande império, e depois viriam os romanos. Quantas decisões humanas foram neces­sárias para trazer à existência essa sucessão de quatro potências mundiais? Qual o grau de clareza da profecia? Daniel nos diz que “certo é o sonho, e fiel sua interpretação” (Dn 2.45). Parece que, afinal, Deus conhece o futuro.

Nossa adoração começa com o reconhecimento de nossos pecados e das muitas bênçãos de Deus a nós. O próximo passo é a lembrança da obra de Cristo em nosso favor, no cumprimento de todas as promessas, de Gênesis 3.15a Malaquias 4.4-6. Mas nós não paramos aí, como a revelação de Deus também não pára por aí. Sabendo que nós mesmos fomos abençoados pelo onipotente e onisciente Deus do universo, sabendo que nós mesmos estamos em paz com ele, nós aguardamos o cumprimento das futuras bênçãos de Deus. Nós o adoramos por estarmos na plenitude dos tempos e por provarmos a consumação do reino. Daniel nos dá uma idéia disso, quando explica a última parte do sonho de Nabuconosor:

Mas, nos dias destes reis, o Deus do céu suscitará um reino que não será jamais destruído; este reino não passará a outro povo; esmiuçará e con­sumirá todos estes reinos, mas ele mesmo subsistirá para sempre, como viste que do monte foi cortada uma pedra, sem auxílio de mãos, e ela esmiuçou o ferro, o bronze, o barro, a prata e o ouro. O grande Deus fez saber ao rei o que há de ser futuramente (Dn 2.44,45).

A beleza da adoração alcança seu ápice na certeza da consumação do reino. Nós nos alegramos porque sabemos que todas as coisas acontecerão correta­mente, que nós seremos como ele e que nós o veremos como ele é, porque nós sabemos que, naquele grande dia, todo joelho se dobrará e toda língua confessa­rá que Jesus Cristo é o Senhor. Nós nos alegramos porque sabemos que ele enxugará toda lágrima. E tudo isso se reduz a um talvez no ensino da teologia relacional. Em vez de ouvir suas promessas, nós nos reunimos para ouvir seus

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desejos e seus sonhos. Em vez de descansar em seu poder, nós somos chama­dos para nos cingir e tentar realizar seus objetivos. Em vez de encontrar paz em saber o que acontecerá, nós nos reunimos para nos preocuparmos com o Não- Tão-Grande Preocupado no céu. Sim, como eles prometem, nós encontramos um deus que é mais acessível, mais ligado a nós, porque nós não encontramos o capitão dos exércitos do Senhor, mas um deus que é, como um profeta, um de nós, “um porcalhão como nós”. Nós não somos uma noiva adornada para o rei, mas uma coleção casual de flores daquele que não é o Senhor da Dança, mas que vai fazendo as coisas conforme segue pelo caminho.

E aqui está a chave da beleza e da adoração - a intencionalidade. Ela está na extremidade oposta do espectro da casualidade. A beleza exige uma união intencional entre a harmonia e a complexidade. O universo é bonito e declara a glória de Deus, em parte por causa da dança das estrelas, da dança das partí­culas subatômicas e da dança das partículas subatômicas na dança das estre­las. Apesar das alegações de Heisenberg, não existem movimentos casuais de matéria sem propósito. A História reflete a glória de Deus da mesma forma, quando Deus combina conjuntos cambaleantes de partículas, do surgimento ao ocaso dos impérios ao par de meias que eu estou usando, em uma delicada dança de beleza. Todas essas coisas vêm a acontecer não porque Deus as deixou a seu bel-prazer, mas porque ele não fez isso.

Ao tirar Deus de cena em seu papel de causa última de tudo o que aconte­ce, nós ficamos sem causa última. Nós somos deixamos sem intencionalidade, e ficamos somente com a colisão casual de tempo, espaço e matéria. Os teólogos relacionais são piores que os cientistas materialistas que esticam nos­sa credulidade aos limites do universo alegando que toda realidade é um aci­dente. Em vez disso, os teólogos relacionais afirmam que toda realidade é um acidente e Deus é um espectador. Eles são deístas que negam até mesmo que Deus deu corda no relógio. Eles roubaram Deus de sua glória e querem que nós nos alegremos com isso.

Há, contudo, boas notícias. Os teólogos relacionais, pelo menos, alegam estar abertos em sua relacionalidade, chegando até a considerar aceitável a teologia do processo, que, segundo eles, não os descreve adequadamente. Basinger argumenta:

Eu não considero nosso modelo teologicamente superior a todos os outros no sentido de que eu creia que nosso sistema deva ser o único modelo auto-consistente e abrangente que pode justificavelmente ser reivindicado por seus proponentes como uma perspectiva plausível do relacionamento entre Deus e o mundo. Eu também não creio que o mode­lo relacional seja experimentalmente superior no sentido de que eu creia que esse seja o único modelo que qualquer pessoa sincera e atenta possa achar racionalmente satisfatório. Assim como nem todas as crianças

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concordam com o estilo mais apelativo dos pais e nem todos os alunos con­cordam com o estilo mais apelativo de ensino, nem todos os cristãos concordam com o estilo mais apelativo de interação do humano com o divino. E eu não vejo base objetiva para negar que os proponentes de outros modelos possam justificavelmente continuar a ver suas perspec­tivas sobre o relacionamento entre Deus e nosso mundo como o mais plenamente pessoal.

Há alguma diferença?

Mas há uma profunda diferença. As boas-novas são que nós não precisa­mos nos curvar ao ídolo que esses homens criaram em suas próprias imagina­ções borbulhantes. Nós podemos orar com confiança de que, em sua graça, Deus não permitirá que seus redimidos caiam nessa heresia destruidora. Além disso, como nós continuamos a adorar o Deus que não somente conhece, mas determina o futuro, nós podemos orar para que ele destrua as obras idólatras de iniqüidade e seus trabalhadores. Nós podemos confiar não que nossas orações mudem a soberana e eficaz vontade do Deus exaltado sobre todas as coisas, mas que ele quer, e ele prometeu, por sua glória eterna, zelar pelo seu próprio nome. E quando ele trouxer a dança da história a um fim, então nós dançare­mos com ele, ria grande, final e certa festa de casamento do Cordeiro.

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VERDADE

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4Teologia Drag Queen

Ben R. Merkle

Ao contrário da forma pela qual costumam falar, os defensores da teolo­gia relacional de Deus não estão necessariamente explorando um novo e excitante território. Como disse Salomão, “o que foi é o que há de ser; e o que se fez, isso se tornará a fazer; nada há, pois, novo debaixo do sol. Há alguma coisa que se possa dizer: isso é novo? Não! Já foi nos séculos que foram antes de nós” (Ec 1.9, 10). O Pregador sabia disso muito bem, tendo experi­mentado pessoalmente as vãs folias, e suas obras falam sobre o assunto em questão. A doutrina relacional de Deus é meramente uma reedição de uma das mais detestáveis partes da teologia do século 16, com Socínio. Ou, mais recentemente, a teologia relacional de Deus é uma versão rebatizada daquilo que tem sido formado na Universidade de Chicago há pelo menos cinqüenta anos sob a liderança da teologia do processo. Esse capítulo tentará provar a validade do provérbio de Salomão: “não há nada novo debaixo do sol”. O ensino relacional de Deus é uma antiga heresia.

Socinianismo

Nos primeiros anos da Reforma, Calvino tinha grande esperança de avan­çar a doutrina protestante na Polônia. O rei polonês, Sigusmund Augustus, tinha alegremente recebido encorajamento regular e conselhos de Gene­bra. De fato, Calvino dedicou seu comentário sobre o livro de Hebreus ao rei, que também tinha as Instituías lidas e expostas em sua presença duas vezes por semana por um pastor italiano.1 Nesse tempo, muitos viam os poloneses como tendo a possibilidade de se desenvolverem em uma nação

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totalmente protestante, onde a teologia reformada poderia verdadeiramen­te lançar raízes e florescer. Infelizmente, ainda durante a vida de Calvino, provou-se que esse não era o caso. O povo polonês tornou-se totalmente receptivo à teologia anti-trinitariana, e logo formou uma forte comunidade unitariana-anabatista, que, mais tarde, tomou o nome de seu mais influente mestre, Fausto Socínio.

Fausto nasceu em Siena, Itália, em 1539. Seu tio, Laelius Socínio, foi um teólogo influente, conhecido por experimentar os ensinos anti-trinitarianos e outras extravagâncias heréticas. Laelius se empenhou na discussão teológica com Calvino, Melanchton e Bullinger. Calvino o advertiu sobre os perigos de seus ensinos, mas isso foi em vão. Laelius morreu, sem arrependimento, em 1562, e Fausto continuou a obra de onde seu tio havia parado. Trabalhando com uma hermenêutica altamente racionalista, Fausto Socínio experimentou várias heresias cristológicas enquanto vivia em Lyons, Florença e Basiléia, eventual­mente se estabelecendo na Polônia com a já formada Igreja Unitariana. Embo­ra tenha se recusado a ser batizado pela Igreja na Polônia, logo ele se tomou seu mais famoso porta-voz.

Juntamente com seus ensinos anti-trinitarianos, Socínio afirmava a posição pelagiana da expiação (a crucificação serviu como um exemplo para nós, mas o perdão é encontrado somente por meio de nosso próprio arrependimento e boas obras), negando tanto a predestinação quanto a presciência. No fim do século 17, Francis Turretin fez um contraponto com os ensinos de Socínio em suas Institutes of Elenctic Theology. De fato, as Instituías de Turretin parecem um jogo cós­mico no qual a bola está presa a um poste, por uma corda, recebendo pancadas de todos os lados, com Socínio sendo espancado em todas as páginas. Embora Socínio defendesse várias outras heresias, é sua posição sobre a presciência de Deus que é mais relevante aqui. Turretin descreve muito bem a posição de Socínio.

Outra questão de grande importância se refere ao futuro contingente das coisas, o conhecimento do qual os socinianos se esforçam para que Deus estabeleça mais facilmente a diferença entre livre vontade (sua liberdade de toda necessidade, até mesmo daquilo que é geralmente em­pregado pela presciência de Deus)... eles abertamente afastam dele o conhecimento de contingências futuras como não sendo o tipo de coi­sas que se possa saber, dizendo que ele absolutamente não as conhece ou que só as conhece como probabilidade indeterminada. Socínio diz:“Já que não há razão, nenhuma passagem da Escritura da qual possa ser claramente inferido que Deus conhece todas as coisas antes que elas aconteçam, nós devemos concluir que não devemos afirmar que Deus tenha essa presciência, especialmente quando muitas razões e o claro testemunho não pedem isso, e até se opõem totalmente a isso”.2

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Teologia do processo

O ensino de Socínio dominou a Polônia durante o século 18 e serviu como precursor do criticismo racionalista do século 19. Uma seita específica que se desenvolveu a partir do criticismo do século 19 foi a teologia do processo, a “filha intelectual” de Alfred Whitehead (1861-1947). Whitehead, filho de um vigário da Igreja da Inglaterra, foi um matemático e filósofo do início do século 20. Whitehead começou a se intrometer em teologia por causa de suas próprias teorias sobre a natureza do tempo e sobre como os eventos acontecem no tempo. Para Whitehead, o processo era fundamental. O tempo, em vez de fluir como uma corrente está­vel, “vem à existência em pequenas porções”.3 Em cada momento, todas as entidades reais são intuitivamente sentidas (na terminologia de Whitehead, “preendido”).4 Quando o momento formador culmina, desfrutando de sua imediaticidade subjetiva, então ele preende todas as outras entidades reais. Essa metafísica, embora não muito excitante ao redor da mesa, foi aplicada vigoramente à área da teologia por um dos alunos de Whitehead, Charles Hartshome.

Embora Whitehead tenha aplicado sua especulação à teologia, ele sempre foi um matemático de coração, e sua aplicação teológica nunca pareceu ser o material de que os sermões são feitos. Hartshome, por outro lado, pegou a metafísica de Whitehead e a descrição da Divindade que Socínio tinha feito e, com as duas, fez uma religião à qual qualquer racionalista poderia pertencer. Hartshome, embora nunca tenha sequer passado perto de fingir que a Escritu­ra fosse autoritativa (ou pelo menos relevante para esse assunto), enfeitou a teologia do processo com uma vestimenta cristã de festa. O que era filosofia com Whitehead tornou-se teologia com Hartshome.

Hartshome claramente viu a teologia do processo como um reavivamento sociniano.

Nós temos alguma outra razão para rejeitar que a velha proposição sociniana de que até mesmo a mais elevada forma concebível de conhecimento é do passado-e-definido como o passado-e-definido e do futuro e parcialmente indefinido como futuro e parcialmente indefinido?... Deus é onisciente?Sim, no sentido sociniano. Nunca uma grande descoberta intelectual pas­sou pelo mundo de forma tão discreta do que a descoberta sociniana do sentido próprio de onisciência. Até hoje as obras de referência falham em nos falar sobre isso... Como dizem os socinianos, de uma vez por todas, os eventos futuros, eventos que ainda não aconteceram, não podem ser co­nhecidos, e a alegação de conhecê-los só pode ser falsa.5

A inexistência do futuro é importante para os teólogos do processo pela mesma razão que a impossibilidade de presciência foi importante para Socínio.

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Um futuro concreto significa que, de algum modo, todas as ações são restritas. Já que a teologia do processo requer o mesmo tipo de vontade autônoma como o socianismo, a teologia do processo também vê a mesma solução negar algum conhecimento do futuro.

Sua exegese, embora alegue pertencer, sempre tão obscuramente, ao Cris­tianismo, nunca se submete à Escritura. Em vez disso, Hartshome e os adeptos atuais da Teologia do Processo somente se preocupam com o criticismo que recebem da Filosofia, repudiando qualquer apelo à Escritura como divagação de fundamentalistas ignorantes. Eu descreverei a impressão que Hartshome tem de Deus na próxima seção para estabelecer comparações com a Relacionalidade de Deus, mas é importante lembrar que os Socinianos sacrifi­caram a presciência de Deus por causa de uma existência capaz de ter um livre arbítrio absoluto. Veremos que os teólogos da Teologia do Processo e da Teologia Relacional fazem o mesmo.

A relacionalidade de Deus

Embora o arranjo de vários pensamentos da teologia do processo tenha aces­sórios mais alarmantes, vários canalhas têm denunciado o maior ponto fraco da teologia do processo, a negação da presciência de Deus, para fazer sala para uma vontade livre racionalista, dando-lhe uma completa remodelagem e atirando- o bem no meio do campo da ortodoxia. Sob a aparência externa da relacionalidade de Deus, essa heresia assumiu a posição de jogador da terceira fila, correndo desesperadamente e procurando alguém para lhe dizer que ele realmente perten­ce aqui ao chão.6 Geralmente não fica muito claro se os autores dos livros da teologia relacional estão tentando convencer o resto da cristandade ou a si mes­mos de que eles realmente estão dentro dos limites da ortodoxia.

Tanto os proponentes da teologia relacional quanto os filósofos do processo começam sua argumentação com a acusação de que a descrição clássica ortodoxa da onipotência e da onisciência de Deus é algum tipo de resultado do Helenismo.

Pois nossa contenda é que os ‘erros teológicos’ em questão dão à palavra Deus um sentido que não é verdadeiro de acordo com os escritos sagrados e com a concreta piedade religiosa. Esse resultado surgiu, em parte porque os teólogos na Europa medieval e no Oriente Próximo estavam como que apren­dendo da filosofia grega e eram muito ignorantes de qualquer outra filosofia.7

Hartshome, então, passa a descrever a proposição platônica em A Repúbli­ca de que ser perfeito deve significar ser completamente imutável, e, como ele crê, esse pressuposto platônico permanece na fundação do Cristianismo histó­rico. John Sanders escreve um capítulo inteiro fazendo essa mesma acusação

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no livro The Openness o f God. Quando Sanders pergunta de onde vem a posição ortodoxa, ele dá sua própria explicação: “A resposta, em parte, é en­contrada na forma em que os pensadores cristãos têm usado certas idéias filosóficas gregas”.8 É estranho como ambas as heresias parecem esquecer que foi a ortodoxia clássica que defendeu a encarnação.

O que é uma escolha real?

A partir daqui, tanto os teólogos do processo quanto os teólogos relacionais come­çam a desenvolver sua eloqüência sobre as virtudes de uma Divindade mutável. Hartshome começa com um retrato horroroso da posição histórica sobre Deus.

Esse é o mais elevado ideal de poder para governar sobre marionetes às quais é permitido pensar que tomam decisões, mas que são realmente toma­das por outros para fazer exatamente o que eles querem fazer? Por vinte séculos nós temos tido teólogos que parecem dizer sim a essa questão.9

Ele é totalmente claro em seu conceito sobre o Cristianismo histórico: “Nenhum teólogo jamais esteve tão comprometido com o conceito que eu estou criticando do que o cristão Jonathan Edwards. E ele pensava, com considerável justificação, que representava a tradição”.10 Hartshome se recusa a adorar um Deus Todo-Poderoso, e em vez disso exige um deus que lhe permita participar também.

Mas como é isso se Deus é o supremo e, contudo, benevolente tirano? Nós podemos adorar um Deus tão destituído de generosidade a ponto de nos impedir de participar, apesar de submissos, na determinação de detalhes do mundo, como participantes menores no processo criativo que é realidade?.11

Essa última citação descreve a relação central entre a teologia do processo e a teologia relacional, e, incidentalmente, a força orientadora por trás das duas. Hartshome pede para ser inserido no “processo criativo”, mas sua definição desse processo criativo inclui a razão pela qual ele quer tanto participar dele. Esse processo criativo é realidade. Em outras palavras, ser real, no sentido que significa sua existência, significa tomar parte nesse momento culminante do pro­cesso, preendendo todas as outras entidades reais. Contudo, nós devemos enten­der que, no momento crucial, todos os jogadores participam em pé de igualdade. O Espírito Santo pode me influenciar, mas é igualmente provável que eu o influ­encie. Se alguém imutável participasse de nosso momento de preensão isso es­tragaria toda a brincadeira. Se Deus entrasse no momento culminante como um ser imutável, isso seria como o valentão entrar em nosso jogo de bolinhas de gude com a precondição de que ele não perderia nenhuma bolinha. Obviamente nós

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não gostaríamos de jogar bolinhas de gude sob essas restrições. Afinal, esse não seria um jogo real. Agora, se nós pensarmos em coisas maiores e melhores, nós veremos que um Deus dessa natureza roubaria nossas vidas da realidade. Hartshome exige um deus cujas bolinhas de gude também estejam em jogo.

Assim nós vemos que, para que algo seja uma parte do processo, Hartshome exige mutabilidade. Se alguém não é mudado pelo processo, então esse alguém nunca esteve no processo. Essa posição não somente deve elevar o homem à condição de co-criador, mas também deve trazer Deus infinitos pontos para baixo.

De acordo com Whitehead, o relacionamento básico é preensão, que, na forma mais concreta (chamada de “preensão” física), é definida como ‘sentimento de sentimento’, significando o modo pelo qual um sujeito sente os sentimentos de um ou mais sujeitos. Em outras palavras, ‘simpatia’ no sentido mais literal...Deus disse conhecer o mundo por preensões físicas, em outras palavras, sen­tindo os sentimentos de todos os sujeitos que compõem o mundo.12

Deus deve ser outro jogador nesse momento culminante, no qual todos nós influenciamos uns aos outros. Para que Deus seja real, ele deve estar sujeito a ser mudado por mim. Ele deve ser mutável.

Do lado relacional, Pinnock, embora passando por cima da matemática e da física de Whitehead, pula direto para um argumento paralelo ao de Hartshome. Para Pinnock, somente uma visão relacional nos dá um Deus que permite que nossa vida seja real e significativa.

Nós cremos que a Bíblia apresenta uma visão relacional de Deus como vivo e ativo, envolvido na história, relacionando-se conosco e mudando em relação a nós. Nós vemos o universo como um contexto no qual há escolhas, alternativas e surpresas reais. A relacionalidade de Deus signi­fica que Deus está aberto às realidades mutáveis da história, que Deus cuida de nós e permite que nós o impactemos. Nossas vidas fazem dife­rença para Deus - elas são verdadeiramente significativas.13

Novamente há esse pressuposto de que, a menos que Deus seja de alguma forma afetado por minhas decisões, então minhas escolhas não podem ser re­ais ou significativas.

Agostinho lidou com essa tolice quando discutiu com Cícero sobre o mesmo assunto.

Agora, contra o sacrílego e ímpio atrevimento da razão, nós afirmamos tanto que Deus conhece todas as coisas antes que elas venham a existir quanto que nós fazemos por nossa livre vontade o que quer que nós saibamos ou sinta-

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mos que deva ser feito por nós somente porque nós queremos assim... mas isso não significa que, embora haja para Deus uma certa ordem de todas as causas, nada dependa da livre escolha de nossa própria vontade, pois nossa própria vontade está incluída nessa ordem de coisas que é certa para Deus e é abraçada por sua presciência, pois a vontade humana também causa ações humanas; e aquele que preconhece todas as causas de todas as coisas certa­mente, entre essas causas não seria ignorante de nossa própria vontade.14

Influência divina

Na teologia do processo, a habilidade de Deus para controlar a história é limita­da à sua habilidade de nos controlar ou de nos incitar: “O poder de Deus é persua­sivo, não controlador”.15 Nesse momento de apreensão, o homem sente a vontade divina incitando-o para um caminho ou outro, mas o que o homem faz com esse impulso depende totalmente de si mesmo. A possibilidade de um homem rejeitar o estímulo de Deus existe porque, de outra forma, nossas escolhas não seriam reais.

Deus não criou criaturas como nós, com nossa grande capacidade para discordar da auto-determinação e com grande valor instrumental destrutivo, simplesmente porque a liberdade é, em si mesma, de grande valor, mas porque seres capazes dos valores que nós desfrutamos de­vem necessariamente ter essas capacidades.16

A teologia relacional defende uma descrição similar das interações divinas com esse mundo. Deus não manipula os cristãos, ele os incita. “A disputa é somente que Deus, como regra geral, deve permitir que a escolha seja volun­tária no sentido de que seja livre de manipulação coerciva divina”.17 Deus não tem um plano para nossa vida. Como diz John Sanders, ele tem objetivos.

E desejo de Deus que nós entremos em um relacionamento de amor do tipo toma-lá-dá-cá, e isso não é realizado por Deus forçar seu projeto sobre nós.Em vez disso, Deus quer que nós atravessemos a vida com ele, tomando decisões juntos. Juntos nós decidimos o curso real de minha vida.18

Mas Sanders salienta a existência de um obstáculo.

Com relação à liderança do Espírito, o modelo de risco implica que nós podemos ou não falhar em entender a direção do Espírito. Nós podemos não entender o que Deus espera de nós em um caso específico. Nós podemos não compreender exatamente a sabedoria divina que Deus ten­

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ta nos dar para resolver algum problema. Deus faria tudo o que estivesse ao seu alcance para nos ajudar, mas. como ele depende de nós para algumas coisas, não há garantia de que nós vamos nos apropriar da sabedoria divina... O mais profiindo de nosso relacionamento com Deus desenvolve, contudo, o melhor que nós experimentamos de seu amor, que nos capacita a um melhor entendimento de como nós devemos viver e de como podemos dar mais de nós mesmos em amoroso serviço ao Senhor, Ao fazer isso, nós seguimos sua liderança.19

Sanders ressalta o mesmo ponto que a teologia do processo, mas ele remove toda a terminologia filosófica e a substitui por uma linguagem evangélica. Em vez de “apreender todas as realidades”, nós temos “relacionamento pessoal” .

É interessante observar que tanto os teólogos do processo quanto os teólo­gos relacionais vêem essa mudança de pensamento com o uma mudança de uma propensão masculina de nossa percepção de D eus para uma forma mais feminina de concebê-lo. Pinnock alude a esse fato em uma nota de rodapé, quando ele descreve o modo com o Deus, em vez de se apegar ao seu direito de dominar, convidou todos para serem seus parceiros.20 Em sua nota de rodapé, ele ressalta que essa é uma concepção que as feministas provavelmente abra­çarão, “tendo experimentado o poder dominador masculino”.21 Hartshome devo­ta várias páginas a esse mesmo ponto.

A queixa feminista de que elas têm adorado uma Divindade masculina pare­ce pertinente e bem fundamentada... Muito mais apropriada é a idéia de uma mãe, influenciando, mas simpática com e, portanto, influenciada por seus filhos e se alegrando no aumento de sua criatividade e liberdade.22

Os teólogos relacionais freqüentemente tentam se distinguir dos teólogos do pro­cesso sobre a questão de como o poder de Deus pode agir, insistindo que a teologia relacional descreve um Deus que, embora geralmente limite sua interação conosco ao estímulo, ainda é capaz de coerção real, e às vezes age assim. Nós somos livres porque ele escolhe nos dar a oportunidade para fazermos escolhas livres, mas, em qualquer ponto, se as coisas ficarem perigosas, ele pode interromper nossa liberdade para dar um jeito na situação. Nós somos como uma criança pequena sentada 110 colo do pai, que nos permitiu assumir a direção e nos deu a sensação de completo controle sobre o automóvel da família. Nós realmente estamos dirigindo. Mas, a qualquer momento, se nós dirigirmos para o acostamento ou se sairmos da faixa, nosso pai corrige nosso ereo, embora isso nos tire o privilégio de estarmos em real controle: “Os teístas da vontade livre reconhecem que Deus não controla muito daquilo que aconte­ce. Contudo, ao contrário dos teístas do processo, eles são inflexíveis em sua crença de que esse é o resultado de uma escolha moral, e não de uma restrição externa”.23

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William Hasker, enquanto discutia a relação entre como o poder de Deus pode ser exercido e como é a presciência que ele tem, colocou a questão dessa forma:

Formalmente as duas teorias [teologia do processo e teologia relacional] estão de acordo aqui: Deus sabe o que é logicamente possível que ele saiba, e isso não inclui o que depende das livres ações futuras de suas criaturas. Mas, de acordo com o teísmo da vontade livre, Deus é capaz de saber muito mais do que segundo o teísmo do processo, porque ele é capaz de fazer mais para garantir a realização de seus planos.24

De acordo com Hasker, o Deus relacional pode saber mais do que o Deus do processo, porque ele tem a mão mais livre para controlar nossa vida. Mas nem mesmo essa distinção é levada em conta pelo teólogo relacional David Basinger. Em seu ensaio Divine Power: Do Process Theists Have a Better Idea? Basinger sugere que as limitações colocadas sobre Deus pela teologia do processo são realmente inconsistentes com as premissas do teísmo do pro­cesso. Por fim, Basinger conclui que é inconsistente com as premissas do teísmo do processo que exista a possibilidade de que Deus controle no mesmo nível que o deus relacional, em vez de simplesmente influenciar nossas decisões. “Em resumo, enquanto podem existir boas razões pelas quais o deus do proces­so possa nunca controlar nosso comportamento por meio de manipulação psi­cológica, eu não vejo razão para negar que esse controle seja possível”.25 Com isso, parece possível que o deus do processo e o deus relacional sejam capazes da mesma influência (embora Basinger negue com veemência).

Diferenças

Uma das coisas totalmente cômicas sobre ler livros do gênero relacional é o fato de que os autores relacionais sentem uma obrigação de explicar, muito freqüentemente, por que a teologia que eles defendem não é a teologia do proces­so. O efeito lembra um garoto apavorado que, ao olhar para a mãe, diz imediata­mente: “Eu não estava brincando com fósforos, honestamente eu não estava”. A própria negação da acusação é suficiente para nos deixar desconfiados.

Os escritores relacionais tendem a se distanciar dos teólogos do processo essencialmente por dizerem: “Sim, é verdade que o Deus que nós estamos des­crevendo age de forma muito parecida com o Deus da teologia do processo, mas a diferença é que o nosso Deus não tem que agir assim, ele escolhe agir assim”. O Deus da teologia do processo não é ontologicamente separado da criação, mas é necessariamente dependente dela. Os defensores da teologia relacional afir­mam que Deus é separado da criação, mas escolhe ser dependente dela. Embo-

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ra essa distinção esteja muito longe de ser suficiente para distanciar a teologia relacional da teologia do processo, ela deve ser admitida como uma distinção. Os teólogos relacionais são totalmente críticos da linha da teologia do processo e fazem um bom trabalho mostrando como um deus que é ontologicamente depen­dente de sua criação não pode ser Deus. Pinnock escreve:

A teologia do processo nega a independência ontológica, afirmando que Deus precisa do mundo tanto quanto o mundo precisa de Deus. Isso deixa de fora a distinção entre Deus e o mundo, tão central na descrição da Escritura. Isso faz com que Deus seja passivo demais, capaz somente de experimentar o mundo e organizar os elementos que se apresentam a ele. A Bíblia descreve Deus como mais presente no mundo do que isso, como uma Divindade realizando a salvação na história e movendo todas as coisas em direção a uma nova criação.26

Para alguém que afirma a visão clássica da soberania de Deus, essa última citação pode ser totalmente frustrante. Quando alguém ouve um proponente da teologia relacional criticando outra posição por fazer com que Deus seja “pas­sivo demais” e insistindo que nós devemos crer em um Deus que está movendo todas as coisas, um crente na soberania de Deus pode somente ouvir o sujo gritando mal lavado para todo semelhante que vê passar. Distinções como es­sas podem ser difíceis de se ver para aqueles que estão a alguma distância de afirmar a posição em questão. Por exemplo, há algum tempo atrás, enquanto eu estava no centro da cidade fazendo evangelismo, encontrei por acaso um personagem de aparência estranha que estava pronto para realizar um show drag em um clube noturno naquela noite. Quando eu comecei a explicar a condenação bíblica ao homossexualismo ele me parou para explicar que ele não era homossexual, era apenas um artista ilusionista-transgenérico. Essa dis­tinção, embora seja totalmente ridícula para a maioria de nós, parecia a diferen­ça entre a noite e o dia para esse homem.

Mas, olhando a fundo, tanto a drag queen quanto os defensores da teolo­gia relacional têm seus pormenores. Talvez haja uma diferença entre a práti­ca homossexual e uma drag queen, e uma diferença similar existe entre os teólogos do processo e os relacionais. Contudo, isso não remove a acusação de que a teologia relacional é a irmã caçula da teologia do processo, pois pequena diferença não é um ponto consistente. Se um homem condena o homossexualismo, mas usa um vestido e anda todo enfeitado para despertar a fantasia homossexual de outros homens, nós temos todo o direito de ques­tionar sua auto-professada distância do público gay. Os autores encontram- se em uma posição igualmente embaraçosa, difamando a soberania de Deus em uma tentativa de aumentar sua própria vontade autônoma, enquanto rei-

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vindicam ser membros da boa ortodoxia. Nós devemos desafiá-los: tirem o vestido ou admitam que gostam de garotos.

Os teólogos relacionais tentam manter distância da teologia do processo recusando-se a negar a creatio ex nihilo, a doutrina de que Deus criou todas as coisas do nada. De muitas formas, essa doutrina se refere à própria bondade de Deus. Quando Paulo quer estabelecer diferença entre os ídolos dos atenienses e o Deus da Bíblia, é à criação de Deus que ele recorre. Quando Jó questiona Deus, Deus o censura apontando para a criação. É essa divisão entre Criador e criatura que requer que nós sejamos adoradores e ele seja adorado. Portanto, nós devemos elogiar os teólogos relacionais por afirmarem esse atributo vital de Deus. Mas essa tentativa de se apegar aos remanescentes da ortodoxia coloca os teólogos relacionais em dificuldade. Eles agora têm um pé em cada canoa. Eles devem escolher entre a teologia do processo e a ortodoxia, ou cairão na água. Sua atual indecisão não pode ser mantida.

A razão para isso é simples. Os filósofos do processo já mostraram qual é o preço que deve ser pago pelo homem que quer um Deus distante. Whitehead foi um filósofo brilhante, e ele sabia exatamente o que estava fazendo quando fragmentou sua cosmologia. Para alcançar o tipo de autonomia de que precisa­va, a destruição da creatio ex nihilo era absolutamente necessária. Cobb e Griffin começam sua introdução à teologia do processo citando Whitehead: “Whitehead observou que ‘o que quer que sugira uma cosmologia sugere uma religião’”.27 Whitehead sabia que uma religião é formada por e depende de sua cosmologia. A teologia do processo pressupõe que o que ela pensa é verdade sobre a vida nesse mundo (primariamente, o fato de que nossa vontade é autô­noma) e então parte desses pressupostos para a cosmologia que deve existir para dar suporte à sua conclusão. Eles concluem, corretamente, que esse tipo de vontade requer um deus que não nos criou. Eles vêem claramente que de­vem se afastar de forma ampla e clara da idéia de um Deus Criador, pois um Deus Criador é necessariamente um Deus Controlador. “A teologia do proces­so rejeita a noção de creatio ex nihilo, se isso significar criação a partir do nada absoluto. Essa doutrina é parte e parcela da doutrina de Deus como o absoluto controlador”.28 Observe que nem mesmo os teístas do processo vêem um meio-termo nesse debate. Ou Deus criou tudo a partir do nada e é o Controlador absoluto de todas as coisas ou ele não criou tudo do nada e não é tão poderoso. A creatio ex nihilo requer a soberania de Deus. Tentar ficar com um pé em cada canoa é tomar a parte do heterossexual e da drag queen. E, infelizmente para os defensores da teologia relacional, para mudar a metáfo­ra, o homem que fica entre dois exércitos toma tiros dos dois lados.

Também é interessante a forma pela qual os teístas relacionais organizam suas prioridades. De uma forma central, o deus da teologia do processo é me­lhor que o deus da teologia relacional. Se essa habilidade de dar às criaturas

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essas escolhas “reais” faz com que um deus seja um deus melhor, então um deus que é ontologicamente construído não seria melhor que um deus que ape­nas tenta agir assim na maior parte do tempo? Por exemplo, se nós admitirmos que o comportamento moral é uma virtude, então que tipo de deus seria um deus melhor, um deus que tem comportamento moral edificado sobre sua ontologia ou um deus que tenta ser moral na maior parte do tempo, mas que eventual­mente falha um pouquinho? Obviamente, todos nós concluiríamos que o deus que tem perfeição moral fundamentada em seu próprio ser é um deus melhor. Se, como os defensores da teologia relacional afirmam, a mutabilidade de Deus é uma virtude, então um deus cuja mutabilidade está fundamentada em sua ontologia (isto é, o deus da teologia do processo) parece ser um deus melhor.

O fim da linha

Para se distanciarem da teologia do processo, os proponentes da teologia relacional são obrigados a forçar todos os tipos de inconsistência em sua teolo­gia. Os teólogos do processo, sendo completamente livres das restrições da ortodoxia, têm o privilégio de poder levar suas premissas à sua conclusão lógi­ca. De muitas formas, as conclusões dos teólogos do processo são a redutio que os relacionais engolem com relutância.

Por exemplo, tanto na teologia do processo quanto na teologia relacional, pensar em liberdade de escolha é o teste para uma existência válida. Nossa vida não é genuína se nós não pudermos fazer escolhas livres. Hartshome, o teólogo do processo, leva essa premissa ao seu fim lógico. Como a escolha é a condição sine qua non de uma existência válida, então as crianças, que não nos dão razão para crer que estão fazendo qualquer escolha real, certamente não devem ser consideradas vida válida.

As pessoas são muito mais conscientes do processo de decisão do que supomos que os animais sejam. Mas quando nos aproximamos disso, quão consciente é uma criança em determinar suas atividades? Se os chimpanzés não têm liberdade, muito menos liberdade tem uma criança, que, pelo teste que parece aplicável, é muito menos inteligente que um chimpanzé adulto (nunca se poderá conjecturar esse fato daquilo que os defensores da Vida dizem sobre o feto ser uma pessoa sem qualificação, tão frouxo é seu critério de personalidade).29

Hartshome, mais tarde, ressalta - “Os psicólogos sabem que as células de seu [de uma criança pequena] cérebro devem ter sido amadurecidas definidamente além do estado do recém-nascido, ou de um feto, que alguns

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psicólogos têm comparado com as células do cérebro de um porco”.30 A vida do feto, para o teólogo do processo, tem o valor equivalente da vida de um porco. Por quê? Porque os psicólogos podem nos dizer que esse bebê não toma decisões, que formariam sua habilidade de fazer escolhas “livres”, que são a medida de seu valor. Hartshome vai além ao dizer que:

praticamente toda sociedade até séculos recentes tinha por certo que matar humanos adultos era uma questão muito mais séria do que o infanticídio (se o infanticídio fosse cometido pelos pais). Isso é suficien­te para mostrar que a idéia de um feto como uma pessoa em pleno sentido não é tão verdadeira que possa ser usada como uma premissa não-con- trovertida para conclusões políticas ou morais.31

Por outro lado, o Cristianismo diz que a criança é uma vida real. Por quê? Porque Deus decretou que fosse assim. Nossas escolhas são reais e vantajo­sas porque Deus decretou que seria assim. Os defensores da teologia relacional podem se colocar ao lado da ortodoxia clássica na questão do aborto, mas eles fazem isso apesar, e não por causa, de suas premissas. Afinal, para eles, somente aqueles que fazem escolhas são verdadeiramente uma existência “real” viva.

Oakland e Miami

Enquanto é verdade que os defensores da relacionalidade de Deus não trans­mitem exatamente a mesma mensagem ensinada pelos teólogos do processo, a relacionalidade de Deus certamente está bebendo da mesma fonte. Os defen­sores da relacionalidade tentam se distanciar da teologia do processo dese­nhando um grande espectro e colocando a ortodoxia (sempre retratada como uma retomada do deus ultra-transcendente helenista sem interação real com este mundo) de lado e a teologia do processo (um deus ultra-imanente que não é realmente um deus) do outro. Então, depois que nós ficamos totalmente hor­rorizados com essas duas únicas opções, nós supostamente temos prazer em descobrir que a teologia relacional se coloca exatamente no meio, com um deus que é tanto transcendente quanto imanente. Aqueles de nós que pensam que isso já foi alcançado em Nicéia obviamente ainda estão sofrendo com a lava­gem cerebral helenista.

E claro que colocar o Helenismo e a ortodoxia clássica lado a lado no es­pectro é algo como dizer que Salt Lake City e Boston são duas cidades do Noroeste. E chamar a teologia relacional de ponto de equilíbrio entre o Calvinismo e a teologia do processo é algo como dizer que Oakland está a meio caminho

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entre San Francisco e Miami. A teologia relacional verdadeiramente é a irmã caçula da teologia do processo. Muitos dos autores relacionais louvam de cora­ção as obras que os teístas do processo estão realizando e até mesmo admitem a pesada influência que o pensamento do processo tem sobre suas próprias opiniões. Em sua crítica da teologia do processo, Pinnock devota um parágrafo inteiro às maravilhosas idéias que tem recebido de Hartshome. Sendo assim, talvez o Sr. Pinnock deva ter a última palavra nesse capítulo.

Ele [Charles Hartshome] tem me ensinado que pensar em Deus como literalmente todo-poderoso despe o universo finito de um grau de poder.Ele tem insistido no ponto de que Deus, embora seja imutável em seu caráter, é certamente capaz de mudar em resposta à criação mutável. Em minha teologia, pelo menos, Deus tem usado os pensadores do processo para me levar a mudar certas idéias que eu tinha e a criá-las nos padrões das Escrituras.32

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A Teologia Relacional e a Presciência Divina

John M. Frame

Os teístas relacionais negam que Deus conheça o futuro exaustivamente. Em sua opinião, Deus é geralmente ignorante sobre o que acontecerá,1 e, even­tualmente, até mesmo erra.2 Ele “expressa frustração”3 quando as pessoas fazem coisas que ele não esperava. Ele muda sua posição, quando as coisas não vão como ele esperava.4 Nessas disputas, os teólogos relacionais admitem diferir da “posição clássica sobre Deus, desenvolvida na tradição ocidental”,5 que prevaleceu desde os primeiros Pais da Igreja até o presente com poucas exceções (como a heresia sociniana).6 Essa posição clássica é a posição de todas as tradições teológicas cristãs: ortodoxa oriental, católica romana e todas as formas de protestantismo.7 Essa posição afirma que Deus tem conhecimen­to completo de tudo o que acontece no passado, presente e futuro. Dessa for­ma, a teologia relacional nega a posição cristã histórica sobre a onisciência de Deus. O presente artigo discute as principais questões na controvérsia entre a posição clássica e a posição relacional.

Libertarismo

Por que essa divergência radical do consenso quase universal entre as pro­fissões de fé cristãs? Os teístas relacionais oferecem várias razões para sua posição, mas a mais fundamental, em meu julgamento, é que a posição clássica é inconsistente com a liberdade humana no sentido libertarista. Já que os teístas relacionais (também chamados de teístas da vontade livre) querem afirmar a liberdade humana nesse sentido, eles devem abandonar a posição clássica da onisciência de Deus.

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Um ato livre, no sentido libertarista.8 é um ato totalmente sem causa. indeterminado. Ele não é causado por Deus, nem por qualquer coisa em sua criação, nem mesmo pelos desejos e disposições daquele que o realiza. Tais causas podem nos “influenciar” ou nos “inclinar” para uma certa escolha jmas elas nunca determinam uma escolha, se essa escolha for livre no sentido libertarista. No momento da escolha, de acordo com essa posição, nós somos sempre igualmente capazes de escolher ou de não escolher uma alternativa específica.9 Por essa razão, a liberdade libertarista é algumas vezes chamada de “liberdade de indiferença”, pois até o exato momento da escolha nada é determinado: a vontade é indiferente.10

Mas se as pessoas forem livres no sentido libertarista, então as decisões hu­manas são radicalmente imprevisíveis. Nem mesmo Deus pode conhecê-las com antecipação. Se em 1930 Deus soubesse que eu escreveria esse artigo em 2000, então eu não estaria escrevendo livremente. Eu não poderia deixar de escrevê- lo. Dessa forma, se minha escrita é uma livre escolha no sentido libertarista, nem mesmo Deus poderia ter tido certeza dela com antecipação. A liberdade libertarista exclui a posição clássica sobre a presciência de Deus.11

Por esse ponto de vista, o futuro é de tal natureza que não pode ser conhe­cido exaustivamente. Assim, os teístas relacionais alegam que, de seu ponto de vista, Deus é onisciente no sentido de que ele conhece tudo o que pode ser conhecido. O fato de que ele carece de conhecimento exaustivo sobre o futuro não é propriamente uma limitação, mas uma inabilidade de fazer um círculo quadrado. Assim como sua onipotência o capacita a fazer tudo o que pode ser feito, sua onisciência o capacita a conhecer tudo o que pode ser conhecido. Isso inclui o conhecimento do passado e do presente, mas não do futuro, de forma que os teístas relacionais chamam sua posição de presentismo.12

Para os teístas relacionais, portanto, a liberdade libertarista é uma premissa fundamental, um padrão pelo qual todas as outras afirmações teológicas são julgadas. Tipicamente, os teístas relacionais não discutem a causa (tal como ela é) da liberdade libertarista, eles a pressupõem.13 Ela é seu pressuposto. Assim, Deus não pode ter conhecimento exaustivo do futuro. Pinnock diz:

Contudo, a onisciência não precisa significar presciência exaustiva de todos os eventos futuros. Se esse fosse o seu significado, o futuro seria fixo e determinado, assim como o passado. O conhecimento total do futuro implicaria a fixação de eventos. Nada no futuro precisaria ser deci­dido. Isso também implicaria que a liberdade humana é uma ilusão, que nós não fazemos diferença e não somos responsáveis.14

Ele está dizendo que Deus não pode conhecer o futuro exaustivamente porque, se ele o conhecesse, não haveria liberdade libertarista.

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Na minha opinião, porém, o libertarismo carece tanto de apoio da Escritura quanto de coerência.15 A Escritura não fala de Deus determinando as escolhas dos seres humanos. Em Provérbios, o escritor declara: “O coração do homem pode fazer planos, mas a resposta certa dos lábios vem do S e n h o r ... O coração do ho­mem traça o seu caminho, mas o S e n h o r lhe dirige os passos.” (Pv 16.1,9).16 Além disso, o conselho de Deus traz todas as coisas à existência: os cristãos são predes­tinados à vida etema “segundo o propósito daquele que faz todas as cousas confor­me o conselho17 da sua vontade” (Ef 1.11; compare com Rm 11.36; Lm 3.37,38).18

O teísta relacional Gregory Boyd tenta mitigar as implicações do fato de que Jesus predisse a traição de Judas (Jo 6.64,70,71; 13.18,19; 17.12), mas ele admite o coração da questão:

A Escritura em outra parte ensina que um tempo terrível pode advir quando Deus discerne que ele é útil para lutar contra um indivíduo específico ou um grupo de pessoas. Nesse ponto, ele afasta seu Espírito dessas pessoas, endu­rece seu coração, e assim sela seu destino (por exemplo, Gn 6.3; Rm 1.24-27).19

Claramente, a decisão de Judas de trair Jesus não foi livre no sentido libertarista. Nessa ocasião, ele não era igualmente capaz de escolher qualquer alternativa. A afirmação de Boyd implica que muitas decisões não são livres nesse sentido.

Mas quais decisões humanas são livres no sentido libertarista? A Escritura nunca ensina o libertarismo e nem mesmo o menciona explicitamente. Os libertarianos tentam extraí-la do ensino bíblico sobre a responsabilidade huma­na, mas a própria Escritura nunca faz isso. Judas é plenamente responsável por sua traição de Cristo, apesar de nós termos visto acima que esse não foi um ato livre no sentido libertarista.

A Escritura nem sequer julga a conduta de uma pessoa, como seria de se esperar, no sentido libertarista, mostrando que a conduta em questão não teve causas.20 Se apenas as ações não-causadas fossem moral ou legalmente res­ponsáveis, como poderia ser provada a culpa moral ou legal? E impossível provar que qualquer ação humana seja não-causada. Além disso, os tribunais, tanto hoje quantos nos tempos bíblicos, corretamente pressupõem o oposto do libertarismo: que ações moralmente responsáveis (como opostas, por exemplo, a acidentes ou a um comportamento insano) são motivadas. A falta de um motivo diminui ou anula a responsabilidade. Assim, o libertarismo, que os teístas relacionais consideram como o fundamento da responsabilidade moral, real­mente destrói a responsabilidade moral.21

Essas considerações mostram, em minha opinião, que a liberdade libertarista não existe. Portanto, ela não é uma barreira para nossa confissão de que Deus conhece o futuro exaustivamente. O libertarismo é tão importante para o teísta relacional que, sem ele, a posição relacional perde toda a credibilidade.

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Ignorância divina na Escritura?

Contudo, nós devemos considerar também a controvérsia dos teístas relacionais quando dizem que as próprias Escrituras revelam um Deus que, em alguns momentos, é ignorante sobre o futuro. Pinnock diz:

Muitos crêem que a Bíblia diz que Deus tem presciência exaustiva, mas não é assim. Ela diz, por exemplo, que Deus provou Abraão para ver o que ele faria e, depois do teste, disse por meio do anjo: “Agora sei que temes a Deus” (Gn 22.12). Essa foi uma peça de informação que Deus estava ansioso para verificar. Em outro lugar, M oisés diz que Deus estava provando o povo para saber se ele realmente o amava ou não (Dt 13.3).

Ele também menciona Jeremias 32.35 (“nem me passou pela mente que fizessem tal abominação”) e os versos nos quais Deus espera que “talvez” seu povo o ouça (Jr 26.3; Ez 12.3, etc.). Durante toda a discussão, Pinnock volta várias vezes a falar sobre a importância da liberdade libertarista, até o ponto em que o leitor é levado a perguntar se Pinnock não está lendo esses textos com lentes libertaristas.

Como indiquei anteriormente, outros teístas relacionais também discutem passagens nas quais, do seu ponto de vista, Deus está em dúvida, muda de opinião, é frustrado, descobre novas informações, e assim por diante. Nesse artigo, eu não posso tratar exaustivamente dessa lista de passagens, mas sugiro alguns princípios que devem orientar a interpretação.22

1. Tipicamente, as passagens nas quais Deus “descobre” alguma coisa ocorrem em contextos judiciais. Em Gênesis 3.9, Deus pergunta a Adão: “Onde estás?”. Esse não é um pedido de informação.23 Nesse verso, Deus começa seu exame judicial. A resposta de Adão confirma a acusação de Deus, e Deus responde em juízo e em graça. Mas o mesmo contexto existe em outros textos nos quais Deus “desce” e “descobre” alguma coisa. Veja Gênesis 11.5; 18.20, 21;24 22.12; Deuteronômio 13.3; Salmos 44.21; 139.1,23,24. Quando Deus se aproxima, ele se aproxima como juiz. Ele conduz um “encontro de fato” pela observação pessoal e pela interrogação, e depois apresenta seu veredito e sen­tença (geralmente, é claro, mitigada por sua misericórdia). Portanto, nenhuma dessas passagens apresenta a ignorância divina.

2. Deus “se lembrando” e “se esquecendo” também são categorias judi­ciais na Escritura, porque são categorias pactuais. Para Deus, “lembrar-se” de sua aliança significa simplesmente executar seus termos. Assim, Deus “lem­brou-se” de Noé e das criaturas da terra, em Gênesis 8.1 (compare com 9.15,16; Êx 6.5).25 O “esquecimento” de Deus é seu adiamento do cumprimento dos

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A Teologia Relacional e a Presciência Divina 77

termos da aliança (SI 9.18; 13.1) ou sua administração da maldição sobre os violadores da aliança (Jr 23.39).

3. Quando Deus diz que algo “nunca passou pela minha mente” (Jr 7.31; 19.5; 32.35), ele não está confessando ignorância, mas descrevendo seus pa­drões para o comportamento humano (outro ponto judicial). Observe o contex­to de Jeremias 7.31:

Edificaram os altos de Tofete, que está no vale do filho de Hinom, para queimarem a seus filhos e a suas filhas, o que nunca ordenei, nem me passou pela mente.

Os contextos de 19.15 e 32.35 são semelhantes. “Mente”, aqui, é coração em hebraico, e, geralmente, na Escritura, focaliza as intenções (compare com 2Cr 7.11; Ne 7.5). Deus está dizendo aqui que o terrível sacrifício humano de Tofete é totalmente contrário aos seus santos padrões. Deus não era ignorante dessas práticas nem do perigo de que Israel seria tentado a pecar dessa forma. Ele explicitamente proibiu o sacrifício humano em Levítico 18.21 e em Deuteronômio 18.10. Assim, no sentido intelectual, essas práticas entraram em sua mente.

4. Algumas passagens dizem que Deus muda de opinião em resposta às circunstâncias. Geralmente a Escritura diz que Deus “tem compaixão” de um juízo que havia planejado ou se arrepende de um curso de ação que havia tomado26 (Gn 6.6; 18.16-33; Êx 32.9-14; ISm 15.35; J1 2.13,14; Am 7.1-6; Jn 4.1,2). Paradoxalmente, contudo, essa mutabilidade divina é parte de seu pro­pósito pactuai imutável.27 Deus diz a Jeremias:

No momento em que eu falar acerca de uma nação ou de um reino para o arrancar, derrubar e destruir, se tal nação se converter da maldade contra a qual eu falei, também eu me arrependerei do mal que pensava fazer-lhe. E, no momento em que eu falar acerca de uma nação ou reino, para o edificar e plantar, se ele fizer o que é mal perante mim e não der ouvidos à minha voz, então, me arrependerei do bem que houvera dito lhe faria (Jr 18.7-10).

Esse princípio significa que muitas profecias28 são condicionais. A natureeza de seu cumprimento depende das respostas humanas.

Essa conclusão, em si mesma, é adequada aos teístas relacionais, mas a sua implicação é que Deus não pretende que essas profecias sejam revelações de seu propósito imutável. Ao contrário do que dizem os teístas relacionais, Deus tem um propósito imutável, descrito em Efésios 1.11 e em outros textos citados acima. Esse propósito é imutável, mas ele ordena mudança, inclusive a compai­

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xão divina mencionada nas passagens acima. Deus decretou eternamente que muitos de seus propósitos seriam realizados por meios criados, inclusive a oração intercessória e as respostas das pessoas a profecias condicionais.

5. Há algumas formas pelas quais Deus experimenta mudança quando en­tra em um mundo temporal. A encarnação de Cristo é o exemplo mais claro, misteriosa como é. Jesus cresceu em sabedoria e estatura (Lc 2.52), muito embora ele fosse onisciente (Jo 2.24,25; 16.30; 21.17). Ele respondeu a even­tos: alegrou-se nesse, irou-se naquele. Em um momento ele descansou, em outro ele se cansou. Ele nasceu em Belém e foi criado em Nazaré. Não foi somente a natureza humana de Jesus que sofreu todas essas mudanças, mas a Pessoa de Jesus, o Deus-homem.

Em um sentido, Deus sempre experimenta mudanças desse tipo quando está presente no mundo. Quando Deus encontrou Moisés na sarça ardente, ele disse uma coisa e depois outra. Quando Deus age no mundo, na providência e na redenção, suas ações são temporalmente sucessivas. Ele faz uma coisa primeiro, e depois faz mais uma. Ele faz o que é apropriado em cada situação, respondendo a uma situação de uma forma e a outra de outra forma. Isso é, como os teístas relacionais enfatizam, um tipo de mudança.

Aqueles que defendem a imutabilidade de Deus contra os teístas relacionais às vezes descrevem essas sucessões temporais como “antropomórficas”. E claro que, em certo sentido, tudo o que nós dizemos sobre Deus é antropomórfico, porque nós usamos linguagem humana. Mas eu não gosto de pensar que o termo antropomórfico possa captar todo o envolvimento temporal de Deus na história. O termo antropomórfico sugere que Deus não agiu realmente de uma forma temporalmente sucessiva. Mas, na Escritura, Deus está realmente presente na história, fazendo uma coisa e depois outra.29

O erro do teísmo relacional não está em alegar que as ações de Deus na história são temporais e responsivas, e nem em afirmar que no mundo tempo­ral há um tipo de “toma-lá-dá-cá” entre Deus e suas criaturas. Os teístas relacionais erram ao negar que, em adição à imanência de Deus no mundo, ele também existe de forma transcendente, governando tudo no mundo por seu decreto abrangente.

Assim, Deus é tanto plenamente consciente quanto responsivo às suas cria­turas. Nós podemos ser gratos aos teístas relacionais por nos mostrarem como é persuasivo nas Escrituras o tema da responsividade divina, mas nossa conclusão não deve ser negar a soberaria e a presciência exaustiva de Deus. Em vez disso, devemos vê-lo como ainda mais soberano do que nós pensávamos antes: gover­nando não somente de um reino transcendente atemporal, mas também como onipresente temporalmente, existindo em e com todos os eventos mutáveis da natureza e da história, usando o “toma-lá-dá-cá” da história para realizar seu propósito eterno imutável, governando imanentemente como o Senhor.

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A Teologia Relacional e a Presciência Divina 79

O conhecimento exaustivo de Deus sobre o futuro

Nós já vimos, portanto, que a responsividade divina observada nas Escritu­ras não nos refuta a crença no decreto eterno e na presciência exaustiva de Deus. Mas a Escritura dá testemunho da presciência eterna de Deus?

A Escritura tipicamente nos mostra o conhecimento de Deus sobre o futuro por meio do fenômeno da profecia. Um aspecto da profecia é a predição de eventos futuros. Além disso, uma evidência que revela um verdadeiro profeta é que suas predições sobre eventos futuros deve ser verdadeira (Dt 18.22). Em Isaías, Deus desafia os deuses das outras nações a predizerem o futuro, sabendo que somente ele é capaz de fazer isso (Is 41.21-23; 42.9; 43.9-12; 44.7; 46.10; 48:3-7).

Os teístas relacionais concordam que há um elemento preditivo na profecia, mas insistem em que esse elemento preditivo não implica que Deus tenha pres­ciência exaustiva. Para mostrar isso, eles enumeram três tipos de profecia:

Uma profecia pode expressar a intenção de Deus em fazer alguma coisa no futuro, independente da decisão da criatura. Se a vontade de Deus é a única condição exigida para que alguma coisa aconteça, se a cooperação humana não está envolvida, então Deus pode garantir seu cumprimento de forma unilateral e pode anunciar esse cumprimento com antecedência...Uma profecia também pode expressar o conhecimento que Deus tem de que alguma coisa acontecerá, porque as condições necessárias para isso foram cumpridas e nada pode evitá-la. Na época em que Deus pre­disse a Moisés o comportamento de Faraó, o caráter desse governante era tão rígido que seu comportamento era totalmente previsível... Uma profecia também pode expressar o que Deus quer fazer se certas condi­ções forem cumpridas.30

Eu concordo que na Escritura há profecias de todos esses tipos. Eu discuti acima as profecias condicionais, e é claro que eu admito que Deus pode anunciar suas próprias ações independentemente da decisão das criaturas.31 O segundo tipo de profecia que Rice menciona deve ser problemático para os teístas relacionais, porque (como foi mencionado anteriormente com relação à interpretação de Boyd sobre Judas) ela sugere que algumas decisões hu­manas (a decisão de Faraó, na citação de Rice) são moralmente responsá­veis, muito embora elas claramente não sejam livres no sentido libertarista. E estranho ver os teístas relacionais falando em “condições necessárias” para o comportamento de uma pessoa e usando termos como “rígido” e “total­mente previsível” - linguagem determinista em apoio à posição libertarista! É claro que, para os teístas relacionais, Faraó e Judas se endureceram antes de

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seu endurecimento se tornar irreversível, isto é, uma vez que o endurecimen­to surgiu, Deus fez com que essas pessoas fossem responsáveis por ações que não podiam ser evitadas.

Eu creio, contudo, que, além das profecias desse tipo, há outros tipos que (1) não afirmam simplesmente as intenções divinas, mas dependem, para seu cum­primento, das escolhas humanas; (2) implicam que as decisões de Deus deter­minam as escolhas humanas; e (3) não são meramente condicionais.

Considere, como exemplos, as antigas profecias da história do povo de Deus, dadas por Deus a Noé (Gn 9.26,27), Abraão (Gn 15.13-16), Isaque (Gn 27.27- 29,39,40), Jacó (Gn 49.1-28), Balaão (Nm 23 - 24) e Moisés (Dt 32.1-43; 33.1- 29). Aqui Deus anuncia (de forma categórica, e não condicional), com muitos séculos de antecedência, o caráter e a história dos patriarcas e de seus descen­dentes. Essas profecias antecipam incontáveis decisões livres de seres huma­nos, muito tempo antes que qualquer um dos envolvidos tivesse tempo de for­mar seu caráter.

Em 1 Samuel 10.1-7, o profeta Samuel diz a Saul que, depois que deixar Samuel, encontrará três homens, e mais adiante um grupo de profetas. Samuel lhe diz precisamente o que os três homens levarão e quais serão os aconteci­mentos da jornada. Por meio de Samuel, Deus claramente antecipa em deta­lhes as decisões livres dos homens e profetas sem nome, tanto quanto os even­tos da jornada. Compare um registro semelhantemente detalhado dos movi­mentos de um inimigo de guerra em Jeremias 37.6-11.

Em 1 Reis 13.1-4, Deus, por meio do profeta, diz ao ímpio rei Jeroboão que levantará um rei fiel, chamado Josias. Essa profecia foi feita três séculos antes do nascimento real do rei Josias. Compare referências em Isaías 44.28 - 45.13 ao rei persa Ciro aproximadamente um século antes de seu nascimento.32 Muitos casa­mentos, muitas combinações de esperma e óvulo, muitas decisões humanas foram necessárias para que esses indivíduos fossem concebidos, nascessem, assumissem o trono e cumprissem essas profecias. Esses textos pressupõem que Deus sabe como todas essas contingências serão cumpridas. O mesmo é verdade com rela­ção a Jeremias 1.5, onde se diz que Deus conhecia Jeremias antes que ele estives­se no ventre materno e o designou para ser um profeta. Compare também a con­versa entre Elias e Hazael da Síria, em 2 Reis 8.12, e a detalhada cronologia futura em Daniel 9.20-27 sobre a vida dos impérios e a vinda do Messias.

A Escritura não é duvidosa ao mostrar como Deus consegue esse conheci­mento extraordinário. Deus conhece, como eu disse anteriormente, porque ele controla todos os eventos da natureza e da história por seu próprio plano sábio. Deus faz tudo de acordo com sua sabedoria (SI 104.24) e realiza tudo de con­formidade com o propósito de sua vontade (Ef 1.11). Portanto, Deus sabe tudò sobre as estrelas celestiais (Gn 1.15; SI 147.4; Is 40.26; Jr 33.22) e sobre os menores detalhes do mundo natural (SI 50.10,11; 56.8; Mt 10.30). “Deus o

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A Teologia Relacional e a Presciência Divina 81

sabe” é uma forma de expressão semelhante a um juramento (2Co 11.11; 12.2,3) que garante a verdade das palavras humanas sobre o pressuposto de que o conhecimento de Deus é exaustivo, universal e infalível. O conhecimento de Deus é conhecimento absoluto, uma perfeição pela qual ele deve ser louvado (SI 139.17,18; Is 40.28; Rm 11.33-36).

Dessa forma, “Deus conhece todas as coisas” (IJo 3.20) e

Não há criatura que não seja manifesta na sua presença; pelo contrário, todas as coisas estão descobertas e patentes aos olhos daquele a quem temos de prestar contas (Hb 4.13).

Esse conhecimento inclui o conhecimento exaustivo do futuro? Considerando a inadequação dos argumentos dos teístas relacionais, a forte ênfase da Escritura sobre o conhecimento exaustivo de Deus sobre o futuro e o ensino bíblico de que o plano de Deus abrange toda a história, nós devemos dizer que sim.

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6O Ataque dos Teístas

Relacionais à ExpiaçãoJohn MacArthur, Jr.

Há mais de uma década, um artigo controvertido em Christianity Today anunciou o surgimento do teísmo relacional. O artigo “Evangelical Megashift” foi escrito por Robert Brown, um proeminente teólogo canadense. Brown des­creveu uma mudança radical no horizonte evangélico - uma “mega mudança” em direção a um “novo modelo” de pensamento, distanciado do teísmo clássico (que Brown rotulou de “velho modelo” teológico).1 O que o artigo destacava era o movimento que hoje é conhecido como visão “relacional” de Deus, ou “teísmo relacional”.

Embora o próprio Brown seja um defensor do teísmo relacional, seu artigo de 1990 nem exaltou nem condenou essa mega mudança. Nele, Brown procu­rou apenas descrever como a nova teologia era radicalmente diferente do con­ceito evangélico de Deus, propondo novas explicações para conceitos bíblicos como ira divina, justiça divina, julgamento e expiação - e assim por diante, sobre cada aspecto da teologia evangélica.

 questão de uma Divindade manipulável

O artigo de Brown retratou o novo modelo teológico em termos benevolen­tes. Ele viu o movimento como uma tentativa de remodelar algumas das mais difíceis verdades da Escritura, empregando paradigmas mais amigáveis para explicar Deus.

De acordo com Brown, o velho modelo teológico coloca Deus sob uma luz severa. No evangelicalismo do velho modelo, Deus é um magistrado rigoroso cujo julgamento é um veredito cruel e inflexível. O pecado é uma ofensa contra

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sua lei divina; a ira de Deus é a fúria de um soberano indignado, é uma retribui­ção sem alento pelo pecado; e a expiação pode ser adquirida somente se o pagamento total pela penalidade judicial do pecado for feito.

No novo modelo teológico, contudo, o modelo de Deus como magistrado é colocado de lado em favor de um modelo mais congênito - o modelo de Deus como um Pai amoroso. Os pensadores do novo modelo querem eliminar as conotações negativas associadas com as difíceis verdades bíblicas, tais como a ira divina e a justa retribuição de Deus contra o pecado. Dessa forma, eles simplesmente redefinem esses conceitos utilizando modelos que evocam “a ter­nura de um relacionamento familiar”.2 Por exemplo, eles sugerem que a ira divina nada mais é que um tipo de desprazer paterno que inevitavelmente faz com que Deus nos dê encorajamentos amorosos. Deus é um “juiz” somente no sentido dos juizes do Antigo Testamento (como Débora, Gideão ou Samuel)3 - significando que ele é um defensor de seu povo, e não uma autoridade que move um julgamento contra ele. O pecado é simplesmente um “mau comportamento” que rompe a comunhão com Deus, e a solução para ele é sempre correção, nunca retribuição. Nem mesmo o inferno é realmente uma punição, mas a maior expressão da liberdade dos pecadores, porque, de acordo com o pensamento do novo modelo, “a destinação ao inferno não é uma sentença judicial”4 - de forma que, se alguém vai para lá, é puramente por escolha própria.

Foram-se todos os vestígios da severidade divina. Deus foi diminuído e do­mesticado. De acordo com o novo modelo teológico, Deus não deve ser pensa­do como justamente indignado contra a desobediência de suas criaturas. Aliás, o artigo de Brown tinha um subtítulo: “Por que você pode não ter ouvido sobre ira, pecado e inferno recentemente”. Ele caracterizou o Deus do novo modelo teológico como uma divindade mais gentil, amorosa e amigável.

Além disso, um dos principais objetivos da mega mudança promovida pelo teísmo relacional parece ser eliminar completamente o temor do Senhor. De acordo com Brown, “ninguém negaria que é mais fácil se relacionar com um Deus percebido como mais gentil e amoroso”.5

Logicamente, o Deus do velho modelo teológico também é incessantemente gracioso, misericordioso e amoroso (um fato que não poderia ser percebido na grosseira caricatura que os defensores do novo modelo pintam quando descre­vem “o velho modelo da ortodoxia”). Mas os teólogos do velho modelo ensinam que há mais no caráter de Deus do que beneficência. Deus também é santo, justo e irado contra os ímpios todos os dias (SI 7.11). Ele é ardente em sua indignação contra o pecado (c f SI 78.49; Is 13.9-13; Sf 3.8). O temor do Se­nhor é a própria essência da verdadeira sabedoria (Jo 28.28; SI 110.10; Pv 1.7; 9.10; 15.33). O “temor do Senhor” é até mesmo motivo para o evangelismo (2Co 5.11). “Nosso Deus é fogo consumidor” (Hb 12.29; cf. Dt 4.24) e “terrí­vel coisa é cair nas mãos do Deus vivo” (Hb 10.31).

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Contudo, os teístas relacionais estão determinados a eliminar ou deixar de explicar toda característica do caráter de Deus, exceto aquelas que são instan­taneamente “percebidas como gentis e amorosas”. Eles não querem se com­prometer com um Deus que exige ser temido. Sua teologia tem o objetivo de construir uma divindade manipulável, um deus com o qual “é mais fácil se relacionar” - um ser semi-divino que foi despido de todas as características da glória e da majestade divina que possam provocar qualquer temor ou medo na criatura. Eles o transformaram em um gentil e inofensivo criado celestial.

Redefinindo a expiação

Acima de tudo, o deus do novo modelo nunca exige qualquer pagamento pelo pecado como uma condição para o perdão. De acordo com o novo mode­lo, se Cristo sofreu por nossos pecados, foi somente no sentido de que ele “absorveu nosso pecado e suas conseqüências” - certamente não que ele te­nha recebido qualquer punição imposta por Deus em nosso lugar na cruz. Ele simplesmente tomou-se participante conosco no problema humano de dor e sofrimento (afinal, a “dor e o sofrimento” terrenos são exatamente as piores conseqüências do pecado que os teólogos do novo modelo podem imaginar).

O ponto mais perturbador no artigo de Robert Brown é uma observação dispensável quase incidental já perto do fim, na qual ele afirma que, de acordo com a teologia do novo modelo, “a cruz não foi um pagamento judicial”, mas simplesmente uma expressão visível, espaço-temporal, de como Cristo sempre sofreu por causa de nosso pecado.6

Em outras palavras, de acordo com o novo modelo teológico, a obra expiatória de Cristo não foi verdadeiramente substitutiva; ele não fez um pagamento de resgate pelo pecado; nenhuma culpa foi imputada a ele; Deus não o puniu como um substituto pelos pecadores. Nada de seu sofrimento na cruz foi admi­nistrado por Deus. Em vez disso, de acordo com o novo modelo, expiação significa que nossos pecados são simplesmente “perdoados” pelo simples exer­cício da tolerância amorosa de Deus; nosso relacionamento com Deus é nor­malizado; e Cristo “absorveu as conseqüências” de nosso perdão (o que prova­velmente significa que ele sofreu a indignidade e vergonha que acompanham a resignação à ofensa).

Então o que significa a cruz, de acordo com os teólogos do novo modelo? Muitos deles dizem que a morte de Cristo foi nada mais que uma exposição pública das terríveis conseqüências do pecado - de forma que, oferecendo seu sangue para satisfazer a justiça de Deus, Cristo estava apenas demonstrando os efeitos do pecado para cumprir uma percepção pública de justiça.7 Outros teólogos do novo modelo vão ainda mais além, virtualmente negando a necessi­

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dade de qualquer tipo de resgate pelo pecado.8 Além disso, todo o conceito de um pagamento para expiar a culpa do pecado é um nonsense se os teístas relacionais estiverem certos.9

Dessa forma, os teólogos do novo modelo modificaram drasticamente a dou­trina da expiação de Cristo, e nesse processo eles formaram um sistema que em nenhum sentido é verdadeiramente evangélico, mas é um repúdio do núcleo da singularidade do evangelho. Realmente não é exagerado dizer que sua doutrina rala e franzina da expiação apaga o verdadeiro significado da cruz. De acordo com o teísmo relacional, a cruz é simplesmente uma prova demonstrativa da “espontaneidade para sofrer” que Cristo tinha - e, nessa visão aguada da expia­ção, ele sofre juntamente com o pecador, e não no lugar do pecador.

É minha convicção que esse erro é a raiz de uma árvore doente que nunca poderá gerar frutos (cf. Mt 7.18-20; Lc 6.43). A história da Igreja está cheia de exemplos daqueles que rejeitaram a natureza vicária da expiação de Cristo e, portanto, naufragaram na fé.

A redução sociniana

De fato, as inovações do “novo modelo” descritas por Robert Brown no artigo de 1990 - e os princípios distintivos do teísmo relacional, inclusive a posição dos teístas relacionais sobre a expiação - não são um “novo modelo”. Elas cheiram a Socinianismo, uma heresia que floresceu no século 16.

Assim como o moderno teísmo relacional, o Socinianismo do século 16 foi uma tentativa de livrar os atributos de Deus de tudo aquilo que parecia cruel ou severo. De acordo com o Socinianismo, o amor é o atributo governante de Deus. Seu amor essencialmente subjuga e anula seu desprazer pelo pecado. Sua bon­dade cancela sua ira. Portanto, de acordo com os socinianos, Deus é perfeita­mente livre para perdoar os pecados sem exigir pagamento de qualquer tipo.

Além disso, os socinianos argumentavam que a idéia de que Deus exige um pagamento pelos pecados é contraditória com a própria noção de perdão. Eles alegavam que os pecados podiam ser redimidos ou resgatados, mas não os dois. Se um preço deve ser pago, então os pecados não são verdadeiramente “perdoados”. E se Deus realmente deseja perdoar o pecado, então nenhum pagamento de resgate é necessário. Além disso, de acordo com o argumento sociniano, se um preço é exigido, então a graça não é mais graça do que qual­quer transação legal, como o pagamento de um ticket de zona azul.

Inicialmente, esse argumento pode parecer sutilmente apelativo à mente humana, mas ele é completamente contrário ao que a Escritura ensina sobre graça, expiação e justiça divina. Ele depende de definições daqueles termos que ignoram o que a Escritura ensina claramente.

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A graça não é incompatível com o pagamento de um resgate. Foi puramen­te pela graça que o próprio Deus (em Cristo) fez o pagamento que nós devía­mos ter feito. De fato, de acordo com 1 João 4.9,10, essa é a expressão consu­mada da graça e do amor divino - que Deus prontamente enviou seu Filho para suportar um mundo de culpa e morrer pelo pecado para propiciar sua justa indignação, satisfazer plenamente sua justiça, e, portanto, redimir os pecadores: “Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” [itálico acrescentado] (lJo 4.10). Cristo veio para ser “o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29). Essa linguagem é uma clara referência ao sistema sacrificial do Antigo Testamento, deliberadamente evocando o concei­to de expiação, que, no sistema sacrificial judaico, envolvia o pagamento de um preço de sangue, uma penalidade pelo pecado.

Além disso, qualquer pessoa que estude o que a Escritura tem a dizer sobre o perdão de pecados verá muito rapidamente que a aspersão do sangue de Cristo é o único fundamento sobre o qual os pecados podem ser perdoados. Não pode haver perdão, a menos que um resgate sangrento seja pago. Lembre-se, isso é exatamente o que socinianos e teístas relacionais negam. Eles dizem que o perdão é incompatível com o pagamento de uma penalidade - os pecados que devem ser resgatados nunca foram remidos verdadeiramente. Mas Hebreus 9.22 refuta cla­ramente essa alegação: “Sem derramamento de sangue não há remissão”.

A doutrina bíblica da expiação substitutiva

Na cruz, Deus fez de Cristo uma propiciação - uma satisfação da ira divina contra o pecado (Rm 3.25). O sacrifício que Cristo ofereceu foi um pagamento da penalidade pelo pecado, penalidade que foi estabelecida por Deus. Cristo ofe­receu a si mesmo sobre a cruz a Deus. Ele “nos amou e se entregou a si mesmo por nós, como oferta e sacrifício a Deus, em aroma suave” (Ef 5.2, itálico acres­centado). Sua morte foi um sacrifício oferecido para saciar a justiça de Deus. Essa foi a única forma pela qual Deus podia continuar sendo justo enquanto justificava os pecadores (Rm 3.26). Essa foi a única forma pela qual ele podia perdoar o pecado sem comprometer sua própria justiça e santidade.

A Escritura expressamente ensina isso. Cristo morreu em nosso lugar e em nosso favor. Cristo se ofereceu “uma vez para sempre para tirar os pecados de muitos” (Hb 9.28). Ele “carregou em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados” (IPe 2.24), e, quando foi pregado sobre a cruz, ele sofreu a plena ira de Deus em nosso favor. “Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus e oprimido. Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nos­

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sas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados” (Is 53.4, 5). “ O S e n h o r fez cair sobre ele a iniqüidade de nós todos” (Is 53.6). “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar” (G13.13). Esses são princípios estabelecidos no siste­ma sacrificial do Antigo Testamento, e não conceitos extraídos dos paradigmas legais grego e romano, como os teístas relacionais tanto alegam.

Foi Deus quem decretou e orquestrou os eventos da crucificação. Atos 2.23 diz que Cristo foi “entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus”. A mão e o conselho de Deus determinaram cada faceta do sofrimento de Cristo (At 4.28). De acordo com Isaías 53.10, “ao S e n h o r agradou moê-lo, fazendo-o enfermar”. Esse mesmo versículo diz que o Senhor fez de seu Servo uma “oferta pelo pecado”. Em outras palavras, Deus puniu Cristo pelo pecado sobre a cruz, e, portanto, fez dele uma oferta pelo pecado. Toda a ira e vingan­ça do Todo-Poderoso ofendido foi colocada sobre ele, e ele se tornou o Cordei­ro sacrificial que carrega os pecados de seu povo.

Essa é a essência do livro de Hebreus. “E impossível que o sangue de carneiros e de bodes remova pecados” (Hb 10.4). O verso 10 diz: “Nessa vontade é que temos sido santificados, mediante a oferta do corpo de Jesus Cristo, uma vez por todas”. Muito claramente esses versos estão ensinando que Cristo foi sacrificado como uma expiação sangrenta para cumprir as exigências da justiça de Deus. Não é de se espantar que muitos achem cho­cante essa verdade. Ela é chocante. E ela é profunda. Ela deve nos colocar prostrados diante de Deus. Qualquer “novo modelo” que diminua ou negue a verdade do sofrimento vicário de Cristo nas mãos do próprio Deus é um “modelo” seriamente defeituoso.

O que você pensa quando pondera a morte de Cristo sobre a cruz? O teísmo relacional reafirma a velha mentira liberal de que ele foi basicamente um már­tir, uma vítima da humanidade - entregue à morte nas mãos de homens maus. Mas a Escritura diz que ele era o Cordeiro de Deus, uma vítima da ira divina.

O que fez com que as misérias de Cristo sobre a cruz fossem tão difíceis de suportar não foi o escárnio, nem a tortura, nem o abuso dos homens maus, foi o fato de que ele levou sobre si todo o peso da fúria divina contra o pecado. Os sofrimentos mais dolorosos de Jesus foram não somente aqueles infligi­dos pelos cravos, pregos e espinhos, a mais excruciante agonia que Cristo suportou foi a plena penalidade pelo pecado em nosso favor - a ira de Deus derramada sobre ele em medida infinita. Lembre-se de que quando ele, final­mente, clamou em agonia, foi por causa das aflições que ele recebeu da própria mão de Deus: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mc 15.34). Nós não podemos sequer começar a saber o que ele sofreu. Essa é uma terrível realidade a ser ponderada. Mas nós temos coragem para não seguir os teístas relacionais na rejeição da noção de que ele suportou a

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punição de seu Pai por causa de nossos pecados, pois nessa verdade está a própria espinha dorsal do genuíno Cristianismo. Essa é a principal razão pela qual a cruz é uma ofensa (cf. ICo 1.18).

A Escritura diz: “[Deus] o [Cristo] fez pecado por nós; para que, nele, fôs­semos feitos justiça de Deus” (2Co 5.21). Nossos pecados foram imputados a Cristo, e ele suportou o preço cruel de ser nosso substituto. Da mesma forma, sua justiça foi imputada a todos os que crêem, e esses crentes ficam diante de Deus plenamente justificados, vestidos com as puras vestes brancas da perfei­ta justiça de Deus. Em outras palavras, esse é o sentido do que aconteceu na cruz para cada crente: Deus tratou Cristo como se ele tivesse vivido nossa vida pecaminosa, de forma que ele possa nos tratar como se nós tivésse­mos vivido a vida perfeita e imaculada de Cristo.

Negue a natureza vicária da expiação - negue que nossa culpa foi transferida a Cristo e que ele suportou a penalidade correspondente a ela - e você terá negado o próprio fundamento de nossa justificação. Se nossa culpa não foi transferida a Cristo e paga na cruz, como a justiça de Cristo pode ser imputada a nós para nossa justificação? Toda visão deficiente da expiação tem que lidar com esse problema, e, infelizmente, aqueles que compreendem equivocada- mente o sentido da expiação, invariavelmente, acabam proclamando um evan­gelho diferente, um evangelho que nega o princípio da justificação pela fé.

A luta pela expiação

A expiação é um tema teológico que tem sido debatido desde que Anselmo de Canterbury (1033-1109) começou a focalizar a clara luz da Escritura sobre esse tão negligenciado e geralmente mal compreendido aspecto da redenção. A igreja primitiva, consumida por controvérsias sobre a Pessoa de Cristo e a natureza da Divindade, mais ou menos tomou por certa a doutrina da expiação. Ela raramente era um assunto de debate ou análise sistemática nos escritos da igreja primitiva, mas, quando os Pais da Igreja escreveram sobre a expiação, eles empregaram a terminologia bíblica sobre resgate e propiciação.

Poucos argumentam que os Pais da Igreja tinham uma compreensão bem formada da expiação como uma substituição penal, mas Augustus Hodge sali­entou que a idéia de expiação vicária estava mais ou menos implícita em sua compreensão, exatamente como se ela fosse “geralmente deixada em um alto grau como pano de fundo e misturada confusamente com outros elementos da verdade ou da superstição”.11 Especificamente, alguns dos Pais da Igreja pare­ciam confusos sobre a natureza do resgate pago por Cristo - especialmente sobre a questão de a quem esse resgate era devido. Alguns deles pareciam pensar que esse resgate foi pago a Satanás, como se Cristo tivesse pago uma

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taxa ao demônio para libertar os pecadores. Essa posição geralmente é chama­da de teoria do resgate da expiação.

Contudo, de acordo com Augustus Hodge, “com poucas exceções, toda a Igre­ja, desde o começo, tem afirmado a doutrina da redenção no sentido de uma propiciação literal de Deus por meio da expiação do pecado”.11 Certos comentári­os sobre o resgate de Cristo, feitos pelos Pais da Igreja, não deveriam ser admitidos como afirmações doutrinárias estudadas e conscientes, mas como expressões in­fantis de uma deformada e inadequada doutrina da expiação. Philip Schaff, comen­tando sobre a falta de clareza sobre a expiação nos escritos da igreja primitiva, diz: “Os mestres da igreja primitiva viviam mais em grata alegria da redenção do que em reflexão lógica sobre ela. Nós percebemos em suas exibições desse abençoado ministério a linguagem de um sentimento entusiástico em vez da linguagem de uma análise aguda e de definições cuidadosas”.12 Contudo, Schaff acrescenta: “Todos os elementos essenciais da posterior doutrina da redenção podem ser encontrados, de forma expressa ou implícita, antes do fim do 2- século”.13

Até Anselmo, nenhum teólogo de ponta tinha gasto realmente muita energia na sistematização da doutrina bíblica da expiação. Anselmo escreveu sobre esse assunto a obra Cur Deus Homo? [Por que Deus se Tomou Homem?], ofere­cendo evidência bíblica de que a expiação não foi um resgate pago por Deus ao demônio, mas um débito pago a Deus em favor dos pecadores, uma satisfação da justiça divina. A obra de Anselmo sobre a expiação lançou os fundamentos para a Reforma Protestante e se tomou o próprio coração da teologia evangélica. A articulação da doutrina de Anselmo, conhecida como teoria da substituição penal, há muito tempo tem sido considerada um aspecto essencial de toda dou­trina verdadeiramente evangélica. Historicamente, todos aqueles que abandona­ram essa posição passaram a integrar movimentos fora do evangelicalismo.

Um contemporâneo próximo de Anselmo, Pedro Abelardo, respondeu com uma posição sobre a expiação que é virtualmente a mesma posição mantida por alguns dos principais teístas relacionais modernos. De acordo com Abelardo, a justiça de Deus é submissa ao seu amor. Ele não exige pagamento pelo pecado. Em vez disso, o valor redentivo da morte de Cristo consistiu no poder do exemplo amoroso que ele deixou para que os pecadores seguissem. Essa posi­ção é geralmente chamada de teoria da influência moral da expiação. A posição de Abelardo foi posteriormente adotada e refinada pelos socinianos do século 16 (como discutido acima).

Claro, como acontece com a maioria das heresias, há um pedacinho de verdade na teoria da influência moral. A obra expiatória de Cristo é a expres­são consumada do amor de Deus (1 Jo 4.9,10). Ela também é um motivo para o amor do crente (lJo 4.7,8,11), mas o grande problema com a abordagem de Abelardo é que ele fez da expiação nada mais que um exemplo. Se Abelardo estivesse certo, a obra de Cristo na cruz nada realizaria de objetivo em favor

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dos pecadores - pois não haveria o aspecto de propiciação real na morte de Cristo. Isso faz com que a redenção do pecador seja essencialmente nossa responsabilidade. Os pecadores são “redimidos” por seguirem o exemplo de Cristo. A “salvação” é reduzida a uma reforma moral motivada pelo amor. Trata-se de uma forma de salvação pelas obras.

A posição de Abelardo sobre a expiação é a doutrina que está no núcleo da teologia liberal. Como toda forma de salvação pelas obras, ela é um evangelho diferente daquele apresentado como boas-novas na Escritura.

Uma terceira posição sobre a expiação foi inventada por Hugo Grotius (1583- 1645) durante a controvérsia arminiana na Holanda. Conhecida como a teoria governamental da expiação, essa posição é uma espécie de meio-termo entre Abelardo e Anselmo. De acordo com Grotius, a morte de Cristo foi uma de­monstração da justiça de Deus, mas não um pagamento real em favor dos pecadores. Em outras palavras, a cruz mostra com o que se pareceria a puni­ção pelo pecado se Deus o tratasse como merece, mas nenhum pagamento vicário do débito dos pecados foi feito por Cristo.

Grotius, assim como Abelardo e os socinianos, cria que Deus pode perdoar pecados sem qualquer tipo de pagamento, mas dizia que a dignidade e autorida­de da lei de Deus ainda precisavam ser afirmadas. O pecado é um desafio ao direito que Deus tem de governar. Se Deus simplesmente negligenciasse o pecado, ele estaria abrindo mão de seu direito moral de governar o universo. Dessa forma, a morte de Cristo foi necessária para manter sua autoridade como governante, pois ela provou sua prontidão e seu direito de punir, muito embora ele renuncie às reivindicações de sua justiça contra pecadores arrependidos. A morte de Cristo, portanto, não foi uma substituição pela puni­ção merecida por alguma outra pessoa, mas simplesmente um exemplo público da autoridade moral de Deus e de sua aversão ao pecado.

Em outras palavras, diferentemente de Abelardo, Grotius viu que a morte de Cristo revelou tanto a ira quanto o amor de Deus. Como Abelardo, contudo, Grotius cria que a expiação foi exemplar, e não substitutiva. Cristo realmente não sofreu no lugar de qualquer outra pessoa. A expiação não teve uma reali­dade objetiva em favor dos pecadores, ela foi somente um gesto simbólico. A morte de Cristo foi somente um exemplo e a redenção, portanto, depende com­pletamente de algo que o pecador precisa fazer. Dessa forma, a teoria gover­namental também resulta inevitavelmente em salvação pelas obras.14

O novo modelo teísta relacional parece vacilar entre duas opiniões erradas, às vezes ecoando o governamentalismo de Grotius, às vezes ecoando suspeitosamente a teoria de Abelardo,15 mas uma coisa sobre a qual todos os teístas relacionais concordam é esta: Anselmo e a posição da substituição penal da expiação são obsoletos, parte de um modelo ultrapassado que eles mal po­dem esperar para que o movimento evangélico jogue fora.

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Evangelicalismo? Dificilmente

Claramente, Brown, Pinnock, Greg Boyd e a maioria dos principais defenso­res do novo modelo do teísmo relacional querem ser aceitos como evangélicos. Próximo do fim de seu artigo, Brow pergunta em voz alta se o novo modelo de pensamento tem lugar debaixo do guarda-chuva evangélico. Mas ele fornece um quadro mais útil das boas-novas de Deus ou é um “outro evangelho”?16

As gerações mais antigas de evangélicos teriam respondido essa questão sem hesitação, declarando que a mensagem do teísmo relacional é “outro evan­gelho” (G11.8,9). Além disso, seria exatamente assim que eles teriam respon­dido se socinianos, unitaristas, liberais e vários outros mascates de novas teolo- gias tivessem feito o mesmo desafio ao “velho modelo”.

Infelizmente, o principal segmento dessa geração de evangélicos parece carecer da vontade ou do conhecimento de decidir se os teístas relacionais são lobos em pele de cordeiro ou se são verdadeiros reformadores.17 Mas deve ser claramente afirmado, por qualquer definição de evangelicalismo com integridade histórica,18 o teísmo relacional se opõe ao próprio núcleo de ver­dades que os evangélicos representam. Portanto, por qualquer definição bí­blica, eles são hereges, pregadores de um evangelho diferente. Essas duas acusações são substanciadas pelo abandono da expiação substitutiva por parte do teísmo relacional.

De fato, a única diferença significativa entre os teístas relacionais de hoje e os socinianos de tempos passados é que os socinianos negavam a divindade de Cristo, o que os teístas relacionais ostensivamente não fazem. Por outro lado, os teístas relacionais negam a divindade do próprio Deus, humanizando-o e tentando reconciliá-lo com os modernos padrões de correção política.

Em “Evangelical Megashift”, Robert Brow alega que “a influência do vento [a teologia do novo modelo] chega inesperadamente por meio de cada fenda, quando nós lemos As Crônicas de Námia, de C. S. Lewis”.19 Lewis não era um teólogo, e não há dúvida de que suas posições foram atenuadas no que diz respeito às penas eternas. Ele afirmava outras posições que causavam arrepios no velho modelo evangélico, mas seria espantoso se ele realmente tivesse simpatia pela posição dos teístas relacionais sobre uma divindade domesticada e diminuída.

Nas Crônicas de Námia, Aslan, o feroz e amoroso leão, representa Cristo. Suas garras são espantosamente terríveis, cortam como facas quando as unhas estão à mostra, mas são macias e aveludadas quando as unhas estão encolhi­das.20 Ele é tanto bom quanto temível. Quando as crianças do conto de Lewis olharam para ele, elas “começaram a tremer”.21 Sr. Castor diz sobre ele: “Ele é selvagem, vocês sabem. Ele não é um leão domesticado”,22 E Lewis, como narrador, observa: “As pessoas que não estiveram em Nárnia talvez pensem que uma coisa não possa ser boa e má ao mesmo tempo”.23

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Esse mesmo falso pressuposto básico foi o ponto inicial da heresia do teísmo relacional. Os teólogos do novo modelo partiram do pressuposto de que Deus não podia ser bom e terrível ao mesmo tempo e, a partir daí, começaram a despir Deus daqueles atributos de que eles não gostavam. Assim como os socinianos e os liberais que os precederam, os teístas relacionais procuram orientar a questão de forma a fazer com que Deus seja “bom” de acordo com uma definição humanista, terrena, de “bom”. Eles estão inventando um deus de sua própria autoria.

No livro final da série As Crônicas de Nárnia, um macaco ímpio coloca uma pele de leão sobre um asno e finge que ele é Aslan. Essa é uma sinistra e perigosa pretensão, e no fim ela conduz à perdição de incontáveis narnianos. O deus do teísmo relacional é como um asno com pele de leão, e está afastando muitas pessoas do glorioso Deus das Escrituras.

Deus é bom e temível. Sua ira é tão real quanto seu amor. Ele é aquele que “guarda a misericórdia em mil gerações, que perdoa a iniqüidade, a transgres­são e o pecado, ainda que não inocenta o culpado” (Ex 34.7) sem satisfazer sua própria justiça e sua ira.

Os verdadeiros evangélicos nunca abandonam essas verdades, e aqueles que não podem digerir Deus da forma em que ele se revelou não têm o direito de rotular-se de “evangélicos”. Essas são questões pelas quais vale a pena lutar, como provam tanto a história da Igreja quanto as Escrituras. O surgimento do teísmo relacional é uma grave ameaça à causa do verdadeiro evangelho. Deus pode levantar uma nova geração de guerreiros evangélicos com coragem e convicção para lutar pela verdade da expiação substitutiva.

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7Deus sem Disposição de Mudar

Phillip R. Johnson

Talvez o maior dilema para aqueles de nós que afirmam a posição clássica de um Deus totalmente soberano e imutável seja o problema de como entender o sentido das várias afeições divinas mencionadas na Escritura. Se Deus é eternamente imutável - se sua vontade e sua mente são fixas e constantes, como seu caráter - como poderia ele sequer experimentar o surgimento e a perda de paixões que nós associamos com amor, alegria, exasperação ou ira?

O teísmo clássico ensina que Deus é impassível - não sujeito a sofrimento, dor, ou à decadência e fervor de paixões involuntárias. Nas palavras da Con­fissão de Westminster, Deus é “um espírito puríssimo, invisível, sem corpo, membros ou paixões, imutável” (II.l).

Deus sem paixões? É possível conciliar esse fato com os dados bíblicos? Considere Gênesis 6.5,6: “Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mal todo desígnio do seu coração; então, se arrependeu o Senhor de ter feito o homem na terra, e isso lhe pesou no coração” (itálico acrescentado). De fato, a Escritura freqüentemente atribui emoções mutáveis a Deus. Várias vezes ela diz que ele está pesaroso (SI 78.40), irado (Dt 1.37), satisfeito (lR s 3.10), feliz (Sf 3.17) e movido por piedade (Jz 2.18).

O teísmo clássico trata essas afirmações bíblicas como antropopatismo - expressões figurativas que atribuem paixões humanas a Deus. Eles são o equi­valente emocional daquelas metáforas físicas tão conhecidas como antropomorfismos - nas quais mãos (Êx 15.17), pés (lRs 5.3), olhos (2Cr 16.9) ou outras partes do corpo humano são atribuídas a Deus. Nós sabemos muito bem que Deus é Espírito (Jo 4.24), e “um espírito não tem carne nem ossos” (Lc 24.39) - portanto, quando a Escritura fala em Deus como tendo

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partes do corpo, nós naturalmente lemos essas expressões como figuras de linguagem. Quase ninguém alegaria que os textos bíblicos que atribuem carac­terísticas físicas a Deus devem ser interpretados de forma literal.1

Mas os textos que atribuem emoções a Deus são outro assunto. Muitos cristãos detestam ter que concluir que esses textos devem ser entendidos como figurativos em algum grau.2

Acima de tudo, um dos maiores confortos a qualquer crente é que Deus nos ama. Mas, se o amor é desprovido de paixão, nós pensamos que esse é um tipo inferior de amor. A doutrina da impassibilidade divina não diminui o amor de Deus?

Para complicar ainda mais a questão, quando nós tentamos contemplar como qualquer uma das afeições divinas pode ser fixa e constante, nós começamos a imaginar que Deus é inerte e desprovido de sentimento.

Temendo essas inferências, alguns se lançam no extremo oposto e insistem que Deus é ainda mais apaixonado do que nós. Em um desses onipresentes fóruns teológicos da Internet, um ministro que detestava a doutrina da impassi­bilidade divina escreveu: “O Deus da Bíblia é muito mais emocional do que nós, nada menos que isso!”.

Alguém ainda mais sarcástico respondeu: “Sério? Seu deus tem mais dispo­sição para mudar do que minha avó?”.

O ponto estava claro, embora tenha sido apontado de forma indelicada. É um sério erro imputar a Deus qualquer tipo de pensamento moldado da mesma forma que as paixões humanas - como se Deus possuísse um temperamento sujeito a oscilação involuntária.

De fato, um momento de reflexão revelará que, se Deus é “sujeito aos mes­mos sentimentos” (c f Tg 5.17), sua imutabilidade fica seriamente indeterminada em todos os pontos. Se suas criaturas podem literalmente fazer com que ele mude seu ânimo pelas coisas que fazem, então Deus não está verdadeiramente no controle de seu próprio estado mental. Se influências externas podem forçar uma mudança involuntária na disposição de Deus, então que garantia real nós temos de que seu amor por nós permanecerá constante? Foi precisamente por isso que Jeremias citou a impassibilidade de Deus como a principal garantia de seu amor estável por si mesmo: “As misericórdias do S e n h o r são a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim” (Lm 3.22). O próprio Deus fez uma afirmação semelhante em Malaquias 3.6: “Pois eu, o S e ­

n h o r , não mudo; por isso vós, os filhos de Jacó, não sois consumidos”.Muitos acham a doutrina da impassibilidade profundamente insatisfatória.

Quando reconhecemos que expressões como “os ouvidos do Senhor” (Tg 5.4) são antropomórficas, reconhecemos que Deus não tem ouvidos físicos. Então se nós admitirmos que as expressões bíblicas sobre as afeições divinas são antropopáticas, nós estamos também sugerindo que Deus não tem afeições reais? Ele é totalmente desprovido de sentimento? Se nós admitirmos que a dor,

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a alegria, a compaixão e o prazer de Deus são antropopáticos, nós devemos concluir também que ele realmente é frio, apático e indiferente?

O deus alternativo do teísmo relacional

Essa é precisamente a forma pela qual os teístas relacionais - e até mesmo alguns que rejeitam o teísmo relacional - têm compreendido mal a doutrina da impassibilidade divina. Um artigo recente em Christianity Today afirmou que a doutrina da impassibilidade é realmente uma relíquia fora de moda da filosofia grega que mina o amor de Deus.

Se amor implica vulnerabilidade, a compreensão tradicional de Deus como impassível torna impossível dizer que “Deus é amor”. Um Deus Todo- Poderoso que não pode sofrer está miseravelmente prostrado, porque não pode amar nem se envolver. Se Deus permanece imóvel diante do que quer que nós façamos, há realmente muito pouca importância em se fazer uma coisa ou outra. Se amizade significa permitir-se ser afetado pelo outro, então essa Divindade imóvel e sem sentimentos não pode ter amigos nem ser nossa amiga.3

O teísta relacional Richard Rice também exagera a doutrina da impassi­bilidade. De acordo com ele, esta é a doutrina de Deus que tem dominado a história da Igreja:

Deus mora em perfeita bem-aventurança fora da esfera do tempo e do espaço... Ele permanece essencialmente não-afetado por eventos e expe­riências das criaturas. Ele não é tocado pelo desapontamento, pesar ou sofrimento de suas criaturas. Assim como sua soberania não encontra oposição, sua serena tranqüilidade não conhece interrupções.4

Em outro lugar, Rice alega que os teístas clássicos comumente consideram a terminologia bíblica sobre as afeições divinas como “vôos poéticos essencialmente não-relacionados às qualidades centrais que o Antigo Testamento atribui a Deus”. Em vez disso, de acordo com Rice, o Deus do teísmo clássico “é feito de estofo duro. Ele é poderoso, autoritário e inflexível, por isso os doces sentimentos dos quais nós lemos nos profetas são meramente exemplos de licença poética”.5 Para Rice, o Deus da principal corrente histórica do Cristianismo é distante, reservado, descui­dado, sem sentimentos e totalmente indiferente aos apuros de suas criaturas.

Por outro lado, Rice retrata o deus do teísmo relacional como um deus de fer­vente paixão, cuja “vida interior”6 é movida por “uma ampla faixa de sentimentos,

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incluindo alegria, dor, ira e arrependimento”.7 De acordo com Rioe, Deus também experimenta desejos frustrados, sofrimento, agonia e angústia severa. Além disso, todas essas agressões são infligidas a ele por suas próprias criaturas.8

Clark Pinnock concorda: “Deus não é calmo nem retraído, mas profunda­mente envolvido e pode se ferir”.9 Pinnock crê que a essência do amor e da ternura divina são vistos no fato de Deus “tornar-se vulnerável dentro de um relacionamento conosco”.10

E assim os teístas relacionais querem apresentar uma dicotomia ao público cristão. As duas claras e únicas opções, de acordo com eles, são o deus tempes­tuosamente apaixonado do teísmo relacional (que está sujeito a feridas que podem ser infligidas por suas criaturas) e o deus totalmente indiferente que eles relacio­nam ao teísmo clássico (que, no fim, se parece com um iceberg metafísico).11

Considere cuidadosamente o que os teístas relacionais estão dizendo: seu deus pode ser ferido; suas próprias criaturas podem afligi-lo com angústia e mágoa; ele é regularmente frustrado quando seus planos são contrariados; e ele fica amargamente desapontado quando sua vontade não é cumprida - o que aconte­ce regularmente.12 Os teístas relacionais colocaram Deus nas mãos de pecado­res irados, porque somente esse tipo de deus, eles alegam, é capaz de amor verdadeiro, doçura genuína ou afeições significativas de qualquer espécie.

De fato, já que o Deus do teísmo clássico não pode ser ferido por suas criaturas, os teístas relacionais insistem em que ele não pode ser “relacional”. Ele é muito isolado, desprovido de sentimentos, apático e privado de toda sensibilidde. De acordo com o teísmo relacional, essas são ramificações inescapáveis da doutrina da impassibilidade divina.

Essa é, francamente, a investida favorita do teísmo relacional sobre o teísmo clássico. Ela tem grande apelo no que se refere aos típicos cristãos de banco de igreja, pois nenhum verdadeiro crente jamais admitiria que Deus é insensível e descuidado.13

A triste verdade é que, nesses dias, a doutrina da impassibilidade divina tem sido geralmente negligenciada e menosprezada até mesmo por aqueles que ainda afirmam o teísmo clássico. Muitos daqueles que rejeitam as outras inovações do teísmo relacional são vacilantes com relação à impassibilidade. Eles têm sido facilmente influenciados pelas caricaturas, ou têm sido muito lentos em refutá-las.14

Pondo em ordem algumas das dificuldades

Para ser franco, a impassibilidade é uma doutrina difícil, tanto difícil de se entender quanto cheia de perigos para qualquer um que a manuseie sem o devido cuidado. E perigos estão à espreita dos dois lados do reto e estreito caminho.

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Enquanto os arminianos-radicais teístas relacionais estão preocupadamente ridi­cularizando a doutrina da impassibilidade divina, alegando que ela transforma Deus em um iceberg, uns poucos hiper-calvinistas e outros parecem realmente preparados para concordar que Deus é desprovido de sentimentos e frio como o gelo.15 Obviamente, pessoas de ambos os lados do debate sobre o teísmo relacional estão confusas sobre essa doutrina, e isso era de se esperar. Afinal, nós estamos lidando com algo que possivelmente não podemos compreender completamente. “Pois quem conheceu a mente do Senhor?” (Rm 11.34).

Nós devemos começar reconhecendo que todos nós estamos muito inclinados a pensar em Deus em termos humanos. “Pensavas que eu era teu igual”, diz o Salmo 50.21. “Mas eu te argüirei e porei tudo à tua vista”. “Os meus pensamen­tos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o S e n h o r , porque assim como os céus são mais altos que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos, mais altos que os vossos pensamentos” (Is 55.8,9). Repetidamente a Escritura nos lembra que as afeições de Deus são inescrutáveis (c f Ef 3.19; Rm 11.33).

Para citar somente um exemplo, considere que o amor de Deus nunca oscila nem declina. Só isso já o toma diferente de qualquer amor que nós tenhamos experimentado. Se nós observarmos como a Bíblia define o amor, em vez de observarmos como nós experimentamos as paixões associadas a ele, nós vere­mos que tanto o amor divino quanto o amor humano possuem as mesmas carac­terísticas, que são explicadas nos mínimos detalhes em 1 Corintios 13. Mas observe que nenhuma característica na definição bíblica de amor tem alguma coisa a ver com paixão. O amor real, nós descobrimos, em nada é semelhante à emoção à qual a maioria das pessoas se refere quando menciona “amor”.

É por isso que nós devemos deixar a Escritura, e não a experiência humana, formar nossa compreensão das afeições de Deus. Aqueles que estudam a ques­tão biblicamente logo descobrirão que a Palavra de Deus, não meramente o teísmo clássico, coloca as afeições divinas em um plano infinitamente mais alto que as paixões humanas. Nós podemos aprender muito com as expressões antropopáticas, mas as afeições divinas continuam escondidas em alto grau em um mistério incompreensível, impenetrável, muito acima do nosso entendimento.

Nós não podemos compreender completamente o que a Escritura quer di­zer, por exemplo, quando ela nos fala que o Deus eternamente imutável ficou tão irado contra Israel no Sinai que ameaçou aniquilar toda a nação e essenci­almente anular a aliança feita com Abraão:

Disse mais o S en h o r a Moisés: Tenho visto este povo, e eis que é povo de dura cerviz. Agora, pois, deixa-me, para que se acenda contra eles o meu furor, e eu os consuma; e de ti farei uma grande nação. Porém Moisés suplicou ao S e n h o r , seu Deus, e disse: Porque se acende, S e n h o r , a tua

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ira contra o teu povo, que tiraste da terra do Egito com grande fortaleza e poderosa mão? (Êx 32.9-11)

Duas coisas são perfeitamente claras nesse registro: primeiro, nós não devemos ler essa passagem e imaginar que Deus esteja literalmente sujeito a ter acessos de raiva. Sua ira contra o pecado certamente é mais do que um mau humor. Nós sabemos que essa passagem não deve ser interpretada com literalidade grosseira.

Como nós podemos estar certos disso? Bem, a Escritura claramente afirma que não há variações reais em Deus (cf. Tg 1.17). Ele não pode real e literal­mente ter oscilado entre cumprir e não cumprir a aliança feita com Abraão (Dt 4.31). Aintercessão de Moisés nesse incidente (Ex 32.12-14) não pode literal­mente ter provocado uma mudança de opinião em Deus (Nm 23.19). Em ou­tras palavras, uma interpretação estritamente literal do antropopatismo nessa passagem é uma impossibilidade, pois isso impugnaria ou o caráter de Deus ou a credibilidade de sua Palavra.

Contudo, uma segunda verdade emerge de forma igualmente clara desse vívido registro da justa ira de Deus. A passagem destrói a noção de que Deus é distante e não se envolve com seu povo. Muito embora essas descrições da ira de Deus não devam ser compreendidas literalmente, elas também não devem ser descartadas como não tendo significado.

Em outras palavras, nós podemos começar a entender o sentido da doutrina da impassibilidade somente depois que nós admitirmos a total impossibilidade de conhecermos a mente de Deus.

O próximo passo é reconhecer o uso bíblico de antropopatismo. Já que nossos pensamentos não são como os pensamentos de Deus, seus pensamen­tos devem ser descritos para nós em termos humanos que nós possamos en­tender. Muitas verdades vitais sobre Deus não podem ser expressas, exceto por meio de figuras de linguagem que se acomodam às limitações da língua e da compreensão humana.16

Os antropopatismos devem ser garimpados para que seu significado seja extraído. Enquanto é verdade que eles são figuras de linguagem, nós devemos reconhecer que essas expressões significam alguma coisa que nós devemos com­preender. Especificamente, eles nos garantem que Deus não é alheio ou indife­rente à sua criação.

Contudo, como nós os reconhecemos como metafóricos, nós devemos tam­bém confessar que há algo que eles não significam. Eles não significam que Deus esteja realmente sujeito a mudanças de humor ou à melancolia, espasmos de paixão ou acessos de fúria. Para deixar isso bem claro, a Escritura geralmen­te enfatiza a constância do amor de Deus, a infinidade de suas misericórdias, a certeza do cumprimento de suas promessas, a imutabilidade de sua mente e a

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ausência de qualquer flutuação em suas perfeições. “Em Deus não há variação nem sombra de mudança” (Tg 1.17). Essa imutabilidade absoluta é uma das características transcendentes de Deus, e nós devemos resistir à tendência de alinhá-la ao nosso entendimento humano finito.

Então, o que significa a impassibilidade?

E o que dizer sobre a acusação de que a impassibilidade transforma Deus em um iceberg? Essa acusação é falsa. Na verdade, a principal corrente do teísmo clássico sempre negou que Deus seja frio e distante de sua criação. Um dos primeiros Pais da Igreja, Justino Mártir, disse que qualquer doutrina sobre Deus que o veja como apático remonta a algum tipo de nominalismo ateu:

Se alguém não crê que Deus cuida [de sua criação], essa pessoa, portanto, ou insinuará que Deus não existe ou afirmará que, embora Deus exista, ele se compraz no vício, ou existe como uma pedra, e que nem virtude nem vício são alguma coisa, mas somente na opinião de homens essas coisas são boas ou más. E essa é a maior profanação e impiedade.17

Deus não é como uma pedra ou um iceberg. Sua imutabilidade não é inércia. O fato de que ele não muda de opinião certamente não significa que ele seja desprovido de pensamento. Da mesma forma, o fato de que ele não está sujeito a paixões involuntárias não significa que ele seja desprovido de afeições. O que isso significa é que a mente de Deus e as afeições de Deus não são como os pensamentos e as paixões humanas. Nada há de involuntário, irracional ou fora de controle nas afeições divinas. Eis aqui como J. I. Packer descreve a doutrina da impassibilidade:

Isso significa não que Deus seja insensível e sem sentimentos (um equí­voco freqüente), mas que os seres criados não podem infligir-lhe dor, sofrimento e aflição por sua própria vontade. Quando Deus experimenta sofrimento e dor (o que as Escrituras, com seus muitos antropopatismos, mais o fato da cruz, mostram que acontece), ele o faz por sua própria deliberação. Ele nunca é vítima de suas criaturas. A principal corrente cristã construiu a doutrina da impassibilidade com o sentido não de que Deus seja estranho à alegria e ao prazer, mas com o sentido de que sua alegria é permanente, jamais nublada por alguma dor involuntária.18

Observe a ênfase de Packer: as afeições de Deus nunca são passivas ou involuntárias, mas sempre ativas e deliberadas. Em outro lugar, Packer escreve:

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[A impassibilidade] não é insensibilidade, indiferença e alheamento pes­soal diante da criação; não é insensibilidade e indiferença diante de um mundo caído; não é falta de habilidade ou de vontade de ter empatia com a dor e o sofrimento humano. Impassibilidade significa simplesmente que as experiências de Deus não acontecem como as nossas, pois as suas experiências são pré-conhecidas, desejadas e escolhidas por si mesmo, e não surpresas involuntárias colocadas sobre ele, independen­te de sua decisão, como regularmente acontece conosco.19

R. L. Dabney entendia a doutrina de forma semelhante. Ele descreveu as afeições de Deus como “princípios ativos” para distingui-las de meras emo­ções passivas. Ele escreveu:

Elas não são paixões, no sentido de flutuações ou agitações, mas afei­ções de sua vontade, ativamente distintas das cognições em sua inteli­gência. Elas são verdadeiras funções optativas do Espírito divino [ex­pressões dos desejos e vontades espirituais de Deus].20 Embora possam ser antropopáticas, as afirmações com relação ao arrependimento, ira, piedade, prazer, amor, ciúme e ódio de Deus nas Escrituras, nós as violen­taremos se negarmos que ele aí atribui a si mesmo afeições ativas de um modo apropriado à sua natureza.21

Observe que tanto Packer quanto Dabney insistem, e não negam, que Deus tem verdadeiras afeições. Ambos, contudo, vêem as afeições divinas como sempre ativas, nunca passivas. Deus é o soberano iniciador e instigador de suas próprias afeições - que nunca são descontroladas ou arbitrárias. Ele não pode agir contra sua própria vontade, mas é sempre a fonte e o autor de todas as suas disposições afetivas.

Jonathan Edwards fez outra distinção útil. Ele escreveu:

As afeições e paixões são geralmente mencionadas como a mesma coisa.Apesar disso, no uso mais comum da linguagem, há, de alguma forma, uma diferença. Afeição é uma palavra que, em sua significação ordinária, parece ser algo mais extensivo do que paixão, sendo usada para todos os atos vivamente vigorosos da vontade ou da inclinação, mas paixão é usada para aqueles atos mais repentinos, e cujos efeitos sobre o espírito animal são mais violentos, nos quais a mente é mais subjugada e fica menos no controle de si mesma.22

Edwards sugere que paixões são involuntárias e irracionais, enquanto afei­ções são volições e disposições que estão sob o controle dos sentidos racionais.

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Considerada essa distinção, parece perfeitamente apropriado dizer que, en­quanto Deus é “sem paixões”, ele certamente não é “sem afeições”. De fato, sua alegria, sua ira, sua angústia, sua piedade, sua compaixão, seu prazer, seu amor, seu ódio - e todas as outras afeições divinas - resumem a própria perfei­ção de todas as afeições sinceras (apesar de imperfeitas) que nós conhecemos como humanos. Em suas afeições, estão ausentes o enfraquecimento e o fluxo de mudanças que nós experimentamos nas emoções humanas, mas essas afei­ções são sentimentos reais e poderosos. Sugerir que Deus é desprovido de sentimentos é torcer a intenção da doutrina da impassibilidade.

Dessa forma, uma compreensão adequada da impassibilidade não deve nos levar a pensar que Deus seja desprovido de sentimentos. Mas seus “sentimen­tos” nunca são passivos. Eles não vêm e vão ou mudam e flutuam. Eles são disposições ativas, soberanamente dirigidas, e não reações passivas ao estímu­lo externo. Eles diferem, dessa forma, das paixões humanas.

Além disso, o ódio e o amor de Deus, seu prazer e sua dor por causa do pecado, são tão fixos e imutáveis quanto qualquer outro aspecto do caráter divino (Nm 23.19; ISm 15.29; Ml 3.6; Tg 1.17).23 Se Deus parece mudar de humor na narrativa bíblica - ou na realização de sua providência - é somente porque, de tempos em tempos, ao cuidar de seu povo, ele coloca essas várias disposições mais ou menos na superfície, mostrando-nos todos os aspectos de seu caráter, mas seu amor nunca é dominado pela sua ira, ou vice-versa. De fato, não há mudança nele como nós a conhecemos.

Mas como pode ser isso? Nós não sabemos. Como seres humanos, nós não podemos imaginar como as afeições de Deus podem ser livres de mu­danças, assim como não podemos imaginar a própria infinitude. Nas palavras de Dabney, “nós podemos retratar uma concepção adequada [das afeições de Deus]? Não, elas são elevadas, não podemos atingi-las. Mas esse é o enten­dimento consistente da revelação, e a única apreensão de Deus que não trans­cende nem viola a razão humana”.24 As afeições de Deus, assim como qual­quer outro aspecto de seu caráter, simplesmente não podem ser entendidas em termos puramente humanos, e é por isso que a Escritura emprega expres­sões antropopáticas para descrevê-las.

Dabney também dá uma palavra sábia de cautela sobre o perigo de se colocar de lado o significado das figuras bíblicas de linguagem. Enquanto ele reconhece o amplo uso de antropopatismos na Escritura, ele não pretende ex­tirpar dessas metáforas as implicações de seu sentido comum. Essas expres­sões podem ser figurativas, argumenta Dabney, mas elas não são vazias de significado. Citando alguns versos que falam do prazer e da ira de Deus, Dabney pergunta: “Tudo isso é tão antropopático que não pode significar nem mesmo que os princípios ativos de Deus têm um objetivo? Por que não deixar a Escri­tura dizer o que ela tão claramente declara?”.25

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Ao contrário dos teístas relacionais, Dabney viu claramente ambos os lados daquilo que a Escritura declara: Deus é imutável e permanente, mas ele não é desprovido de afeição por sua criação. Sua impassibilidade nunca deve ser joga­da contra suas afeições. Sua imutabilidade não exclui seu envolvimento pessoal com suas criaturas. A transcendência não é incompatível com a imanência.

Deus não é um iceberg metafísico. Se, por um lado, ele nunca está à mercê de suas criaturas, por outro lado ele não está isolado delas. Sua ira contra o pecado é real e poderosa. Sua compaixão pelos pecadores também é sincera e certa. Sua misericórdia está verdadeiramente sobre todas as suas obras. E, acima de tudo, seu amor eterno por seu povo é mais real, mais poderoso e mais garantido do que qualquer emoção terrena que possa receber o rótulo de “amor”. Ao contrário do amor humano, o amor de Deus não falha, não oscila e é eter­namente constante. Esse simples fato deveria nos convencer de que as afei­ções de Deus não são como as paixões humanas.

De fato, esse não é em si mesmo um princípio do Cristianismo? Qualquer pessoa que imaginar as afeições divinas como paixões fluidas, vacilantes, care­ce de entendimento bíblico sobre a constância e a fidelidade de Deus. E por isso que eu me oponho tão fortemente à rejeição da impassibilidade de Deus por parte do teísmo relacional. Sob o pretexto de fazer com que Deus seja “relacional”, eles minaram a constância de seu amor, eles o despiram de todos os seus atributos incomunicáveis e deram um passo enorme no sentido de moldá- lo à imagem de suas criaturas. Quem pode dizer onde terminará a campanha para humanizar Deus?26

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Trindade, Tempo e Teísmo Relacional: Uma Passada de Olhos

pela Teologia PatrísticaPeter J. Leithart

A alegação histórica básica do teísmo relacional é que o teísmo clássico foi profundamente influenciado pelas categorias filosóficas helénicas, que distorceram a revelação bíblica de Deus. Como John Sanders explica: “Os Pais da igreja primitiva viveram na atmosfera intelectual em que a filosofia grega (especialmente o Platonismo Médio) dominava”.1 Embora Sanders seja cuida­doso em dizer que “os Pais primitivos não entregaram tudo ao Helenismo”, ele conclui que eles contribuíram para o desenvolvimento de uma teologia “clássi­ca” que “funciona como pré-entendimento que exclui certas interpretações da Escritura que não se ‘ajustam’ à concepção daquilo que é ‘apropriado’ para que Deus se pareça, como derivado da metafísica grega”. Como resultado, “o sistema metafísico grego ‘espremeu’ o Deus descrito na Bíblia” e adversa­mente formou “compreensões cristãs sobre a natureza de Deus, a Trindade, a eleição, o pecado, a graça, a aliança, a soberania de Deus, a salvação e a encarnação”.2 Essa retórica tem um apelo óbvio a cristãos que estão se esfor­çando para serem consistentemente bíblicos em sua compreensão de Deus.

Deve-se admitir que a acusação não é totalmente falsa. Longe disso. Os bem conhecidos fatos da teologia histórica se agrupam aqui: os Pais alexandrinos Clemente e Orígenes foram profundamente afetados pelas formas da filosofia platônica; Agostinho confessou que os escritos dos platonistas foram cruciais no desenvolvimento de sua teologia; Aquino começou a adaptar Aristóteles à fé cristã, mas pelo menos em algumas ocasiões a adaptação foi na direção opos­ta.3 Certamente algumas das formas caracteristicamente cristãs de pensar so­bre a relação de Deus com sua criação, sobre o tempo e o espaço empregam idéias anteriormente formuladas pelos filósofos gregos.4 Ainda hoje, a obra de purgar a teologia dos elementos pagãos gregos continua inacabada.

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Partindo desses fatos incontestáveis, contudo, o argumento pode partir por uma grande variedade de direções, especialmente na esfera da generalidade. Como Sanders mostra, o processo foi tanto uma cristianização do Helenismo quanto uma helenização da Igreja,5 e a definição de onde cada uma foi realizada ainda requer muito tempo de estudo. É suficiente dizer, em geral, que é possível que terminologias e conceitos de um sistema possam ser adaptados em um novo sistema sem distorcer a nova perspectiva. Além disso, isso aconteceu, necessari­amente, no próprio Novo Testamento, onde palavras que possuíam uma bagagem cultural helenista foram colocadas a serviço do evangelho hebraico.6 Para julgar­mos a evidência que o teísmo relacional oferece, temos que perguntar se os odres gregos confinaram o vinho do evangelho ou se o vinho arrebentou os odres.

Alguns escritores, pelo menos, argumentam que em alguns assuntos impor­tantes o processo ocorreu durante os primeiros séculos da Igreja cristã, e espe­cificamente na teologia própria, a doutrina de Deus. Isso significa que os con­ceitos filosóficos gregos não impuseram limites à compreensão cristã de Deus, mas que o evangelho mudou a forma em que os termos gregos eram entendi­dos. John Zizioulas, por exemplo, examinou o uso que os capadócios fizeram da filosofia grega e argumenta que eles fundamentalmente reformularam o siste­ma filosófico e a terminologia que herdaram. De acordo com Zizioulas, a filoso­fia grega era “monista”, significando que a realidade era basicamente “uma”. Uma simples forma de pensar sobre isso é considerar o processo de “abstra­ção”: considere um objeto específico e pense a quais categorias ele pode per­tencer, começando da mais específica e indo para a mais geral. Um gato é um felino, um mamífero, um animal, um ser vivo, e assim por diante. A coisa mais geral que se pode dizer sobre um objeto é que ele “existe”, e isso pode ser dito sobre qualquer coisa que exista. Tudo pode ser colocado dentro da caixa com o rótulo “ser”. Para muitos filósofos, contudo, “ser” não é uma categoria de abs­tração, mas um princípio filosófico. Embora não seja material, ele é a realidade da qual tudo o que existe “participa”, ou ele simplesmente é tudo.

Como Zizioulas destaca, entre esses pressupostos, um tipo de relação e interação é impossível. Se o gato e o rato são, em última instância, partes de uma realidade de ser, então em algum nível eles não são realmente inimigos, mas simplesmente pontos nos quais o “ser” está caçando a si mesmo no celeiro (que também é parte do Ser!). Aplicada à teologia, a visão monista pode levar a muitas direções. Por um lado, os deuses podem ser seres poderosos, porém limitados, subordinados à realidade maior do “Ser”, como os deuses da mitolo­gia grega - personalidades poderosas, mas não absolutas. Por outro lado, pode-se identificar “Deus” com “ser”, mas, nesse caso, “Deus” não pode realmente se relacionar com coisa alguma, já que se relacionar com alguma coisa signifi­ca relacionar-se com outras “partes” de si mesmo. Deus é absoluto, mas ao custo de se tomar impessoal - ele não é um Deus a quem nós amamos e a

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quem podemos orar. Para Aristóteles, o imóvel por trás do mundo em movi­mento é “pensado pensando em si mesmo”, dificilmente uma visão de Deus que inspire intimidade e lealdade. Sobre os pressupostos monistas, a noção de um Ser absoluto, porém pessoal, é um nonsense.

Em vários aspectos, os teólogos gregos demoliram essa concepção da rea­lidade. Afirmando a doutrina bíblica da criação, eles insistiam em que há uma diferença real entre Deus e o mundo. Portanto, é possível que os dois se rela­cionem, interajam e se empenhem em mútuos atos de amor. Meditando sobre a revelação de Deus em Jesus e no testemunho do Novo Testamento sobre ela, os Pais gregos reconheceram que Deus se revelou comotriúno. A diferença real não é simplesmente uma característica da relação de Deus com o mundo: há uma diferença real dentro de Deus, e essa diferença significa que Deus é eterna e essencialmente pessoal.

Com essas duas doutrinas, os Pais gregos romperam com o monismo da filosofia primitiva. Não é o caso de que tudo possa ser classificado sob a cate­goria de “ser”, pois há um abismo fundamental e intransponível entre “ser- Criador” e “ser-criatura”. Da doutrina da Trindade, eles concluíram que a rea­lidade última não é simplesmente uma: ela é não mais uma do que três, nem mais três do que uma. Pluralidade e relação, amor e comunhão, estático subs­tituído e “Ser” monista são as realidades ontológicas básicas. Ao formular a doutrina da criação e até mesmo as doutrinas da Trindade e da encarnação, os Pais empregaram terminologia filosófica. Contudo, embora as palavras conti­nuassem as mesmas, seu significado foi basicamente mudado.7 O vinho deixou os odres irreconhecíveis.

Para resumir, a discussão de Zizioulas alcançou duas coisas: primeiro, ela revela algumas das complexidades da recepção da filosofia grega pela Igreja cristã e indica que seria uma distorção dizer que o teísmo clássico é o Helenismo com roupagem cristã. As armadilhas atenienses eram suficientemente óbvias, mas de forma significativa os teólogos cristãos se sentiam completamente em casa em Jerusalém. Segundo, a discussão focaliza nossa atenção sobre aquela área na doutrina de Deus na qual a teologia cristã se afastou mais dramatica­mente do esquema filosófico-cultural predominante, a saber, a doutrina da Trindade.8 O simples fato de que os Pais da Igreja formularam a doutrina da Trin­dade mostra que a filosofia grega não funcionou como uma camisa de força da qual os teólogos eram incapazes de escapar. Se a filosofia grega tivesse exer­cido poder de veto, todos nós seríamos arianos.

Alega-se freqüentemente, contudo, que algumas formulações da Trindade, especialmente a de Agostinho, foram moldadas em termos helenistas. De acor­do com Sanders, a doutrina de Deus elaborada por Agostinho revelou os pres­supostos helenistas de muitas formas, quando “as noções neo-platônicas... ri­valizaram com as sensibilidades bíblicas de Agostinho pela preeminência em

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seu pensamento”. Especificamente, Sanders acusa que a ênfase de Agostinho sobre “a imutabilidade, simplicidade e espiritualidade” de Deus como “os três atributos divinos mais importantes” foi inspirada em conceitos neoplatônicos.9 Sanders vai além ao traçar os efeitos dessas influências estranhas sobre a visão de Agostinho sobre o homem, o pecado, a predestinação e a aliança.

Sobre a Trindade, Sanders repete as críticas-padrão contra Agostinho. Pri­meiro, Agostinho usou “analogias psicológicas” para explicar a doutrina da Trin­dade, isto é, ele descobriu uma imagem criada da Trindade na tríade de intelecto, vontade e memória na mente humana. Como resultado, Agostinho encorajou a posição de que “a natureza da Trindade é conhecida quando nos voltamos para dentro de nós mesmos e examinamos nossas faculdades”. Já que a verdade em si mesma é encontrada “nas faculdades individuais herdadas... não em nossas relações com os outros”, a natureza de Deus também é concebida como basica­mente unitária: “a essência de Deus deve ser única”. Segundo, Sanders acusa que Agostinho fez com que “a substância divina, e não o Deus tripessoal, seja o princípio ontológico mais elevado. A substância de Deus é o que é fundamental­mente real, e não as relações entre o Pai, o Filho e o Espírito - sem falar das relações entre o Deus triúno e suas criaturas”. Isso afetou a forma pela qual Agostinho concebia a relação de Deus com a criação, pois reduzir Deus à subs­tância divina “faz de Deus uma deidade distante, arriscadamente próxima de um ser impessoal”. Portanto, “a relação de Deus com a criação [é] vista em termos mecanicistas, e não em categorias personalistas e pactuais”.10 Embora nós veja­mos a relação mais plenamente abaixo, já está evidente que os temas da relação de Deus com o espaço e o tempo estão ligados aos conceitos de Trindade.

Sanders não é o único escritor contemporâneo que faz essas alegações, e Colin Gunton, entre outros, atribuiu os erros da doutrina trinitarina de Agostinho à influência da filosofia grega. Gunton alega que Agostinho ignorou a história de Jesus como o lugar onde a tri-unidade de Deus é revelada, mostrando sua desconfiança neoplatônica do mundo material e temporal. De acordo com Gunton, essa tendência de separar Deus e o mundo surge em outras partes da doutrina trinitariana de Agostinho. Agostinho descreveu as teofanias do Antigo Testa­mento (aparecimentos de Deus) como sendo mediadas por anjos. Para Gunton, isso é problemático: significa que o auto-revelado Deus não tem qualquer tipo de contato imediato com o mundo, e nós somos deixados com um Deus desco­nhecido que age por meio de anjos, e não com o Pai que se relaciona com o mundo por meio de suas duas “mãos”, o Filho e o Espírito. Como Sanders, Gunton também critica Agostinho por empregar analogias psicológicas da Trin­dade, o que é outro retrato do mundo do tempo e da matéria: “A analogia crucial para Agostinho é entre a estrutura interna da mente humana e o ser interno de Deus, pois é na primeira que a segunda deve ser conhecida, esse lado da eternidade, em qualquer caso, mais realmente do que na ‘externa’ eco-

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nomia da graça”. Analogias psicológicas tendem a terminar em modalismo, a posição herética de que Deus não é realmente três, mas revela-se de três modos diferentes. Por sua própria natureza, as imagens trinitarianas extraídas da alma humana não podem capturar a idéia de três pessoas. A memória, o entendimento e a vontade são operações de uma mente, não três pessoas ou subsistências distintas. Se essa é a principal analogia da Trindade, então as pessoas não são pessoas, mas atividades de um Deus.

Essas acusações são uma espécie de clichê nos estudos sobre Agostinho, e elas não são desprovidas de fundamento. Agostinho fez afirmações que, tomadas isola­damente, parecem implicar que Deus é mais fundamentalmente Um do que Três, que a substância é a Deidade real, e que as pessoas são meramente atividades do Deus Único. Apesar disso, eu creio que a teologia trinitariana de Agostinho pode ser defendida contra muitas dessas críticas, e esquadrinhar essa questão em maio­res detalhes nos dará um modesto caso de estudo contra a alegação de que o teísmo clássico está em dívida com as idéias gregas. No fim, eu espero que essas considerações ainda forneçam mais uma ou duas armas na luta contra o Helenismo, luta que os Pais da Igreja começaram, mas que nunca chegou ao fim.

Os livros 2 - 4 do tratado de Agostinho Sobre a Trindade“ tratam principal­mente dos “envios” ou “missões” do Filho e do Espírito, isto é, da encarnação do Filho e do derramamento do Espírito em Pentecoste. Agostinho teve boas razões para discutir esses temas em profundidade. Obras anteriores sobre a Trindade tinham enfatizado a unidade de Deus, e, para balancear essa ênfase sobre a unida­de de Deus, os teólogos tinham colocado uma ênfase correspondente sobre a eco­nomia da redenção, na qual as pessoas são manifestas. Em um bom número de escritores, essa ênfase sobre a economia conduziu ao subordinacionismo. Seu raci­ocínio foi mais ou menos assim: se o Filho e o Espírito foram “enviados” pelo Pai, então o Filho e o Espírito devem ser menos que o Pai.12

Vivendo depois do Concílio de Nicéia, Agostinho não poderia se dar ao luxo de ser confuso sobre esses assuntos. Ele tinha que deixar claro que o Filho é co-etemo e consubstanciai com o Pai, e, nos livros 2 - 4 , ele examinou critica­mente as bases do subordinacionismo. O fato de que o Filho e o Espírito foram enviados, argumenta Agostinho, fala-nos sobre sua origem, mas nada nos diz sobre seu status ontológico. Uma pessoa pode ser enviada sem ser inferior (2.7-11). De acordo com muitos teólogos primitivos, as teofanias eram apareci­mentos do Filho, e isso também, às vezes, era mencionado de formas que chei­ravam a subordinacionismo. Mas Agostinho argumentou que a Bíblia nos dá muito pouca evidência para que possamos decidir qual Pessoa da Trindade se manifesta nas teofanias. O Filho pode ter aparecido, mas “isso não significa que Deus Pai nunca tenha aparecido aos patriarcas nesse tipo de aparência externa” (2.32). Se o próprio Pai apareceu aos santos do Antigo Testamento, não há base no Antigo Testamento para a subordinação do Filho a ele.

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Mas isso conduz a uma outra questão: se o Filho e o Espírito foram “envia­dos” antes do nascimento de Cristo e do Pentecoste, o que é único nesses envios feitos na nova aliança? Agostinho já tinha distinguido claramente entre os envios ou missões do Filho e do Espírito e a processão eterna do Filho e do Espírito, e ele responde a essa questão com base nessa distinção. Depois de passar a maior parte do livro 4 tratando da obra da redenção de uma forma numerológica altamente especulativa, ele chega à passagem chave em 4.29:

Assim como ser nascido significa que o ser do Filho procede do Pai, assim também ser enviado significa que seu ser procede dele. E assim também, para o Espírito Santo, o fato de ser dom de Deus significa que ele procede do Pai, de forma que seu envio significa ser conhecido como proveniente dele.

Agostinho estava fazendo duas coisas aqui. Primeiro, ele insiste em dizer que os envios não são algo como “tomar-se”, mas algo como “tornar-se conhe­cido”. O Filho era eternamente gerado do Pai, e o Espírito eternamente proce­de do Pai e do Filho, e isso era verdade antes do nascimento de Cristo e antes do Pentecoste. Segundo, ele foi capaz de isolar o que é distintivo sobre a che­gada do Filho e do Espírito na “plenitude do tempo”. O que é novo é que o Filho é enviado para tomar-se conhecido como o Filho do Pai, para ser um Mediador que revela o conhecimento de Deus Pai a nós. Os aparecimentos anteriores não tiveram esse propósito, isto é, revelar o Pai e revelar a relação do Pai com o Filho. O Espírito, da mesma forma, tinha aparecido antes do Pentecoste, mas no Pentecoste foi revelado que ele é o Espírito do Pai e do Filho.

Ao contrário de Gunton e Sanders, portanto, Agostinho não ignora a história redentiva em favor de revelações “internas” e “mentais” da Trindade. Além disso, ele nem mesmo introduz as analogias psicológicas da Trindade até o livro9 de seu tratado, no qual ele admite que esse é um esforço especulativo para refinar sua compreensão daquilo que ele aprendeu com a Escritura e com a história. Agostinho não apenas gasta uma grande quantidade de espaço para tratar da história, mas também deixa evidente que ele crê que a história de Jesus e do Espírito, do nascimento de Cristo até o Pentecoste, são o local mais importante da revelação da Trindade. Todo o propósito do Filho ser “enviado” no tempo é revelar o Pai e a origem do Filho no Pai. O tempo é, para Agostinho, o meio no qual a vida interior da Divindade é revelada, pois, na progressão do tempo, as diferenças reais entre Pai, Filho e Espírito são manifestas aos ho­mens. A história não criou as Pessoas da Trindade, mas a história é o estágio no qual as Pessoas da Trindade são reveladas. O teísmo clássico de Agostinho, portanto, não nos apresenta um Deus distante e não-interativo, um Deus fecha­do em si mesmo, um Deus afastado da história humana, um Deus cuja natureza

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é “ficar sozinho”. Em vez disso, seu teísmo trinitariano clássico nos apresenta um Deus cujo caráter eterno interpessoal é revelado no tempo e em interação com o mundo.

Se os “envios” na história revelam a vida interior de Deus, então a realidade interior de Deus não é algum tipo de “ser” completamente estático. Isso seria nada menos que a morte.13 Mas Deus é “vida”, e, nas relações internas da Trin­dade, a vida de Deus é uma vida em “movimento”. A história dinâmica e redentiva revela um dinamismo interno, que é a vida de Deus.14 De acordo com Gerald Bray, é exatamente para cá que a teologia trinitariana de Agostinho conduz. Embora pegue empréstimos do neoplatonista convertido Marius Victorinus, o conceito agostiniano de ser divino como movimento “deve sua origem ao quadro de um Deus ativo revelado no Antigo Testamento, tanto quanto às afirmações cristãs sobre a origem da segunda e da terceira pessoas da Trindade”. Bray se refere aqui à posição patrística de que Deus “gera eternamente” seu Filho, e o Espírito procede eternamente do Pai e do Filho (ou, no Oriente, do Pai). Se há algo que isso signifique é que a vida interior de Deus é ativa, e que um “processo” eterno de geração e processão é inerente ao ser trinitariano de Deus. O teísmo clássico é trinitariano, e por essa razão se afasta do pressuposto de “toda teologia anterior”, que admite que “o ser divino é estático”. Bray conclui: “É... da maior importância compreender que Agostinho não cria em um Deus estático”.15

Na verdade, os teólogos (inclusive Agostinho) nem sempre compreendem as implicações da doutrina da Trindade, e, além disso, a teologia ocidental nem sempre foi decisivamente trinitária. A trajetória da teologia trinitariana, contu­do, caminha na direção de um conceito de Deus que seja necessária e eterna­mente “estático”, como o do Pai que gera eternamente o Filho, que é e não é ele mesmo, e do Espírito, que procede eternamente como o dom eterno do Pai ao Filho e do Filho ao Pai.16

Nesse ponto, Agostinho estava de acordo com a teologia trinitariana de Atanásio e dos capadócios. T. F. Torrance explica isso em uma passagem que merece ser citada com alguma extensão:

A noção grega de energeia... também foi cristianizada sob o impacto transformador do conceito bíblico da atividade criativa e providencial do Deus vivo. Em contraste especialmente com a visão aristotélica de Deus, que é caracterizada por uma “atividade de imobilidade”... e que move o mundo somente como “o objeto do desejo do mundo”... a posição atanasiana de Deus foi uma na qual atividade e movimento eram consi­derados intrínsecos ao próprio ser de Deus... Deus nunca está sem sua atividade... pois sua atividade e seu ser são essencial e eternamente um.O ato de Deus não é uma coisa e seu ser é outra, pois eles são inerentes mútua e indivisivelmente um ao outro. Portanto, em vez de Deus ser

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inativo em seu ser interior, pertence à essência e natureza eterna de seu ser mover, energizar e agir. Foi esse conceito dinâmico de Deus que marcou tão distintivamente a compreensão cristã da encarnação como a corporificação pessoal, no espaço e no tempo, da interação providencial e redentiva de Deus com a humanidade. Dessa forma, os teólogos nicenos pensavam em Jesus Cristo como um com Deus Pai em ato tanto quanto em ser, pois ele encarnou a presença ativa do próprio Deus na história humana e constituiu, em tudo o que foi e fez, o livre movimento perma­nente do ser divino em condescendência e amor à humanidade. A filantropia salvadora - a palavra favorita de Atanásio para designar o amor ativo de Deus por nós - foi a própria antítese do eras aristotélico... o desejo imanente por si mesmo, por meio do qual o Motor não movido permanentemente afeta o mundo. Enquanto com o conceito aristotélico dessa relação inercial com o cosmo não poderia haver idéia de qualquer criação do nada ou de qualquer começo do tempo, o conceito judaico- cristão de Deus vivo e ativo estabeleceu a doutrina da criação a partir do nada e lançou o fundamento de um conceito muito diferente de movi­mento na realidade criada.17

Focalizar a Trindade, em resumo, capacita-nos a afirmar da forma mais forte possível que Deus é eternamente pessoal, relacional e ativo, sem tomá-lo dependente, de alguma forma, da sua criação.

De acordo com Zizioulas, as doutrinas da Trindade e da criação foram os dois pilares do programa anti-helenista dos capadócios. Nós já tratamos da Trindade em alguma profundidade e, para encerrar, eu ofereço algumas obser­vações não-históricas da doutrina da criação. Em um ensaio brilhante,18 Rowan Williams explorou as implicações pastorais e sociais da afirmação clássica de que Deus é independente da criação, isto é, “está fora” da continuidade do tempo e do espaço de tal forma que a criação é totalmente dependente dele de forma unilateral. Williams começa fazendo uma crítica à teóloga feminista Sallie McFague. McFague argumenta que a noção do Deus que faz algo completa­mente diferente de si mesmo “gera e legitima o controle monárquico sobre o mundo” e encoraja a imitação desse Deus indiferente. Para fundamentar uma “teologia para uma era nuclear”, McFague argumenta, é necessário obscure­cer a distinção Criador-criatura e insistir que os interesses de Deus são “alinha­dos com os do mundo”. Para McFague, o mundo deve ser visto como corpo de Deus.19 Embora difiram em muitos pontos, McFague compartilha com o teísmo relacional a insistência de que Deus é um jogador dentro de uma história toma- lá-dá-cá, e não um Deus vivo em um abrigo seguro.20

Essa parece ser uma perspectiva libertadora, mas, no fim, ela é o oposto. Contra a alegação feminista, Williams ressalta que a criação não é um proces-

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so pelo qual Deus manipula e controla um mundo que tem outros planos para si mesmo. Em vez disso, a doutrina da criação ensina que, “antes da Palavra de Deus, não havia nada sobre o que se impor”. Falar da criação, portanto, é dizer que tudo o que há existe porque Deus livremente falou, e falar da providência é dizer que Deus continuamente fala para trazer novas situações à existência. O teísmo relacional, ao contrário, implica que há uma criação independente do movimento e da vontade de Deus, uma criação à qual Deus tem que responder, e, correspondentemente, um Deus que é “dependente do mundo em certos aspectos”,21 Isso, portanto, sugere que Deus fez um mundo “que então precisa ser ativamente governado, subjugado, inclinado de seu curso natural para o propósito divino”, em vez de sugerir que “o soberano propósito de Deus é o que o mundo está se tomando”. Embora tente garantir a liberdade, o teísmo relacional descreve os homens como seres que têm inclinações autônomas que devem ser subjugadas para que o propósito de Deus seja realizado. Esse Deus, e não o Deus do teísmo clássico, é o Deus coercitivo.

Os teístas relacionais estão corretos sobre a necessidade de purgar a dou­trina de Deus dos vírus helenistas, mas isso não exige o abandono do teísmo clássico. Em vez disso, nós devemos seguir mais consistentemente a trajetória daquelas características do teísmo clássico que apresentam o mais profundo desafio ao Helenismo, a saber, a criação e a Trindade. O problema, afinal, são os odres, não o vinho.

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Fundamentos do Conhecimento Exaustivo

Douglas J. Wilson

Muitos cristãos professos hoje em dia estão inconformados com o ensino bíblico dos atributos de Deus como eles têm sido tradicionalmente definidos. Em particular, entre alguns crentes há um desconforto crescente quando se dizem coisas do tipo: Deus é “imutável”, ou Deus é “impassível”, ou Deus é “onisciente” . Esses termos parecem, para a mente moderna, construções teológicas artificiais. Conseqüentemente, se alguém começa a afirmar que esses conceitos e idéias vieram a nós por meio de invenções febris de esco­lásticos medievais, e não da Bíblia, a acusação pode ser facilmente crida. Mas ela é verdadeira!

A rejeição de uma visão tradicional de Deus pode parecer “progressista”, “moderna”, “pós-modema” ou algo assim - ou, de qualquer forma, algo recente. Mas toda a questão da presciência de Deus é uma das mais essenciais, e é claro que esse é um assunto perene. Nós devemos dar atenção à advertência de Salomão. Realmente não há nada novo debaixo do sol, e isso se aplica à questão de se Deus conhece as futuras escolhas feitas por agentes livres. Como já foi visto em outro ponto deste livro, no tempo da Reforma, essa rejeição “moderna” do teísmo clássico foi articulada por um homem chamado Socínio. Ele e seus seguidores “socinianos” argumentavam usando muitas das mesmas formas que nós obser­vamos em nossos debates hoje. Por não terem uma compreensão ampla da his­tória da Igreja, muitos cristãos modernos tendem a esbaforidamente descobrir novidades que são tão velhas quanto andar para a frente. A Igreja já foi cercada por esse muro antes, e essas questões foram levantadas - e respondidas - antes.

Em sua roupagem moderna, uma antiga frase usada para rejeitar a compre­ensão tradicional do conhecimento e da presciência de Deus foi a frase “onis- ciência dinâmica”. Certamente parece muito melhor falar “onisciência dinâmi­

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ca” do que “ignorância divina”, mas, a menos que nós sejamos cuidadosos, nós logo nos encontraremos tão ignorantes quanto o “deus” que professamos cultuar.

As descrições são variadas - teísmo da vontade livre, relacionalidade de Deus, e assim por diante - mas o ponto essencial é o mesmo. O conhecimento de Deus é interativo, e ele aprende quando o futuro se desenrola. Nessa pers­pectiva, Deus pode conhecer (e ele conhece) tudo o que pode ser conhecido, mas as futuras escolhas e decisões de indivíduos de vontade livre são conside­radas como pertencendo ao reino do incognoscível, não ao reino do que pode ser conhecido. Conseqüentemente, Deus não conhece essas escolhas, porque elas não são consideradas objetos genuínos de conhecimento. As escolhas fu­turas não são consideradas objetos de conhecimento, assim como círculos qua­drados não são considerados objetos genuínos de conhecimento.

Considerada uma certa visão da vontade livre, as escolhas genuinamente livres não podem ser objetos de conhecimento genuíno antes que sejam realmente prati­cadas. Conseqüentemente, Deus não pode realmente conhecer esses eventos fu­turos que são controlados por essas vontades livres. Isso significa que ele não conhece aquilo que não controla diretamente ou provoca antecipadamente. Apela- se àquelas passagens que representam Deus como descobrindo, procurando ou respondendo àquelas escolhas aparentemente feitas fora do seu controle.

Embora adeptos dessa posição possam usar o termo “onisciência”, sua com­preensão do termo é radicalmente diferente daquilo que nós entendemos que a Escritura ensina. As diferenças são tão radicais que, quando chegamos à sua conclusão lógica, elas nos trazem um deus totalmente diferente.

O que nós dizemos importa. O que nós confessamos é importante, e, como nós veremos, importante para nossa salvação. O evangelho trata tanto da Pes­soa quanto da obra do Senhor Jesus. Nossa salvação é encontrada não somen­te no fato de que Jesus morreu na cruz, mas também naquilo que confessamos sobre a identidade daquele que morreu.

Porquanto há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens,Cristo Jesus, homem, o qual a si mesmo se deu em resgate por todos: testemunho que se deve prestar em tempos oportunos. Para isto fui designado pregador e apóstolo (afirmo a verdade, não minto), mestre dos gentios na fé e na verdade (lTm 2.5-7).

Cristo é o nosso Sumo Sacerdote e Apóstolo de Deus (Hb 3.1). Como nosso Sumo Sacerdote, ele nos representa diante de Deus, e, como apóstolo de Deus, ele representa Deus a nós. Como ele é Yahweh, ele é nosso Salvador. A forma pela qual nós entendemos essas coisas é muito importante.

Nós vamos lidar com o conhecimento, com a presciência e com o evan­gelho, e vamos respeitar essa ordem. Eu quero primeiro tratar da questão da epistemologia. Como nós, como cristãos, sabemos o que sabemos? Como nós

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chegamos a compreender a verdade doutrinária? Depois nós vamos considerar o que a Bíblia ensina sobre o conhecimento ou a onisciência de Deus e como isso se relaciona à sua presciência de eventos futuros. Por último, nós passare­mos a examinar como essas questões afetam o evangelho de nossa salvação.

Razão e submissão

Primeiro vem a questão da epistemologia. Como nós sabemos o que é verda­deiro? Aqueles que rejeitam o que a Bíblia ensina sobre a natureza de Deus porque esse ensino entra em conflito com suas idéias de “razão” têm um problema com o racionalismo - a convicção de que nós não podemos ser forçados a nos submeter a uma doutrina que não faz muito sentido para nós. Esse racionalismo tem uma perspectiva muito elevada dos poderes da razão humana quando trata de revelações dadas pela mente do próprio Deus. Observe que o problema não é com a razão propriamente dita, mas com a razão carnal como um ídolo.

Através de toda a Escritura nós encontramos um claro contraste entre a filosofia do homem natural e a mente de Cristo. Quando essas passagens são trazidas à tona para confrontar as várias doutrinas dos racionalistas, a resposta geralmente é um balançar de ombros. Embora isso não seja suficiente, é razoá­vel. A Palavra de Deus pode cortar a árvore da razão humana ao nível do chão, e apesar disso nós ainda vemos os racionalistas descansando à sua sombra.

O apóstolo Paulo não tem em alta conta a imoralidade humana, nem a vai­dade intelectual que ela invariavelmente produz.

Isto, portanto, digo e no Senhor testifico que não mais andeis como também andam os gentios, na vaidade dos seus próprios pensamentos, obscurecidos de entendimento, alheios à vida de Deus por causa da ignorância em que vivem, pela dureza do seu coração, os quais, tendo-se tornado insensíveis, se entregaram à dissolução para, com avidez, come­terem toda sorte de impureza. Mas não foi assim que aprendestes a Cris­to, se é que, de fato, o tendes ouvido e nele fostes instruídos, segundo é a verdade em Jesus, no sentido de que, quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe segundo as concupiscên- cias do engano, e vos renoveis no espírito de vosso entendimento, e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade (Ef 4.17-24).

Paulo é muito claro sobre isso. Nós não chegamos a Cristo por meio de nossa razão, mas colocando de lado nossa pseudo-razão e subjugando-a. Por essa razão, a epistemologia que é fundamental para o teísmo da vontade livre repre­senta uma séria ameaça ao evangelho. Deus nos deu o dom da razão para nos

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capacitar a receber, entender e obedecer a sua verdade. Ele não nos deu a razão para julgar sua verdade. A razão pode legitimamente tentar entender a verdade para obedecer a ela. A razão não pode deliberar sobre se obedecer faz sentido ou não. Quando um homem compra um computador, ele também recebe um manual de operações. Esse manual destina-se a capacitá-lo a entender como operar o computador - ele não tem o objetivo de ensinar como o computador opera. Quando lemos a Bíblia, nossa razão deve tentar entender como Deus quer que nós operemos. O que nós devemos crer? O que nós devemos fazer? A Bíblia não nos foi dada para que nós possamos entender a mecânica de como Deus opera.

Por essa razão, a vontade de obedecer deve preceder o entendimento - credo ut intelligam. “Eu creio para que eu possa entender”. Como Esdras, nós devemos preparar nosso coração para buscar a lei de Deus, para entendê-la e obedecer a ela (Ed 7.10). Os racionalistas consistentemente afirmam que a verdade não precisa ser aceita se ela não faz sentido à “razão”, mas isso não justifica aqueles que estão perecendo. O evangelho não faz sentido para eles.

Certamente, a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas paranós, que somos salvos, poder de Deus (1 Co 1.18).

Os não-regenerados precisam do evangelho, mas exatamente aquilo que lhes dá a única esperança de salvação é um nonsense para eles. O evangelho está coberto para aqueles que estão perecendo (2Co 4.3). A réplica pode ser que o evangelho não faz sentido para eles, porque seus processos de pensa­mento estão distorcidos pelo pecado, e eles são teimosos. Isso está correto - esse é o problema. Mas isso nos mostra que os processos de pensamento humano, turvados pelo pecado, não podem ser a corte na qual nós determina­mos o que é verdadeiro e o que é falso. Se nossa razão for renovada pelo Espírito Santo, ele nos possibilita ver, na Escritura, com os olhos da razão, o que Deus nos revelou. Antes dessa obra, a Bíblia continua sendo uma linguagem espiritual desarticulada, porque o homem natural não entende as coisas do Es­pírito, pois elas se discernem espiritualmente (ICo 2.14). Essa cegueira não justifica os incrédulos. O evangelho não faz sentido para eles. Nós podemos, portanto, concluir que a corte da razão humana autônoma é uma corte sem condições de tratar de realidades espirituais. A sabedoria do homem é a loucu­ra de Deus (ICo 1.18-25).

Os adeptos do teísmo relacional desejam a verdade bíblica? Eles desejam se submeter ao claro ensino da Escritura na questão da onisciência e do evangelho? Se eles não desejam (em nome da razão), então eles precisam tomar cuidado pelo menos para que não percam a própria coisa que colocaram no lugar do claro ensino da Bíblia. A razão autônoma, como Dagom, necessariamente vai cair. Nós sempre perdemos aquilo que cultuamos no lugar de Deus.

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Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este crucifica­do. E foi em fraqueza, temor e grande tremor que eu estive entre vós. A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasi­va de sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder, para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria humana, e sim no poder de Deus. Entretanto, expomos sabedoria entre os experimentados; não, porém, a sabedoria deste século, nem a dos poderosos desta época, que se reduzem a nada; mas falamos a sabedoria de Deus em mistério, outrora oculta, a qual Deus preordenou desde a eternidade para a nossa glória; sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século conheceu; porque, se tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória (ICo 2.2-8).

Nessa passagem, Paulo está falando do evangelho - Cristo crucificado. Depois de se referir à cruz, ele rapidamente contrasta sua mensagem com a sabedoria humana. A sabedoria humana, por si mesma, não aceita a loucura da cruz. Em contraste com a sabedoria humana, Paulo fala da sabedoria de Deus, que é a cruz de Cristo. A sabedoria da cruz foi preordenada, diz ele, antes das eras. Se os governantes desse mundo tivessem conhecido a sabedo­ria preordenada de Deus na cruz, eles não a teriam cumprido, crucificando Cristo. Mas eles não a conheceram, e foram instrumentos de Deus para ga­rantir nossa salvação. O ensino claro desse texto não é somente que a cruz salva pecadores, mas que a cruz foi preordenada antes dos tempos, e essa afirmação causa problemas para a sabedoria humana. Paulo se gloria no fato de que assim é. A cruz salva alguns pecadores e confunde outros. A “razão” que os dois grupos de pecadores têm em comum não é competente para julgar essas coisas. Todos os nossos pensamentos devem se submeter a Cristo (2Co10.4,5); nós devemos amar a Deus com toda a nossa mente (Mt 22.37); e nunca devemos presumir que Deus precise de nosso conselho (Rm 11.34,35). Quando o apóstolo pergunta: “Quem foi o seu conselheiro?”, ele não espera que alguém no fundo da sala levante sua mão.

Logicamente, nós devemos entender o que Deus está nos falando antes que possamos obedecer. Foi por isso que ele nos deu a razão. Mas nós não temos qualquer obrigação de conciliar várias verdades filosoficamente em nossa mente antes de podermos aceitá-las. A razão pode receber a informação, procurando entender o que Deus disse. Ela não tem autoridade para contrastar a verdade recebida com outra verdade revelada e determinar como costurar uma com a outra de forma que façam sentido bom e plausível para o homem natural.

Nós também podemos reconhecer que Deus não se contradiz. A verdadei­ra razão é uma parte de seu caráter, assim como a santidade ou a bondade. Mas ele é quem pode dizer se contradiz a si mesmo ou não - nós certamente não o podemos. Nós sabemos que Deus é santo, porque ele se revelou como

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tal. O fato do mal no mundo que ele governa é um problema para nós, mas ele é o juiz, e não nós. Nós sabemos que Deus é bom, porque ele assim se revela na Escritura. Crianças de três anos de idade são assassinadas neste mundo, mas ele é o juiz que determina se isso está ou não de acordo com sua bondade, e não nós. E nós sabemos que Deus conhece todas as coisas, inclusive o futuro, porque ele nos disse isso. Isso causa alguns quebra-cabeças filosóficos bastante interessantes sobre a natureza da eternidade e do tempo, mas ele é quem julga se isso é contraditório ou não. Ele nos disse em sua Palavra que essas coisas são assim e ele não as resolveu, e isso deve ser suficiente para nós. Nós podemos ficar confusos com tudo isso, mas Deus é o fundamento de toda razão e ordem, e o problema não o deixa perplexo. Mas um homem tentar determinar o que o Deus eterno pode ou não pode fazer na história enquanto habita na eternidade é como um besouro tentando fazer física quântica. Se Deus descesse para nos explicar, como Jó queria que ele fizesse, eu posso imaginar qualquer um de nós tentando seguir o raciocínio. Que pensamento engraçado! Depois das duas premissas, nosso cérebro explodiria.

Alguns podem querer responder que essa humildade proposta realmente nos isenta de qualquer responsabilidade de fazer sentido. Realmente, sempre que falamos, a Escritura exige que nós façamos sentido. Aqueles que acei­tam os limites colocados pela Escritura sobre a razão humana sabem que isso não é motivo para falar sem sentido, mas uma admoestação para que nós aprendamos quando devemos nos calar - de forma que nós possamos evitar falar coisas sem sentido. “Tal conhecimento é maravilhoso demais para mim, não o posso atingir” (SI 139.6). Aqueles que não admitem que o conhecimen­to que Deus tem de nossas ações é “maravilhoso demais” começaram a falar nonsense em nome de evitar falar nonsense. Quando se aproxima do qua­dro negro para resolver um grande problema, um orgulhoso besouro não pode sequer segurar o giz.

Aqueles que insistem em compreender o incompreensível perderam com­pletamente a mensagem central de Eclesiastes:

Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo; também pôs a eternidade no coração do homem, sem que este possa descobrir as obras que Deus fe z desde o princípio até o fim (Ec 3.11).

Nós temos uma ânsia pelo conhecimento, porque Deus colocou a eternida­de em nosso coração. Mas, quando ultrapassamos nossos limites, quando nos intrometemos nessas coisas, descobrimos que não podemos decifrá-las. Nossa vida é vivida debaixo do sol, e nós devemos reconhecer os limites de nosso raciocínio. O sábio e grande Salomão sabia que os caminhos de Deus são inescrutáveis, e esse conhecimento pode influenciar tudo o que fazemos. Essa

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admoestação concernente aos votos diante de Deus pode ser aplicada também ao nosso raciocínio teológico - os princípios envolvidos são os mesmos.

Guarda o teu pé quando entrares na casa de Deus; chegar-se para ouvir é melhor do que oferecer sacrifícios de tolos, pois não sabem que fazem mal. Não te precipites com a tua boca, nem o teu coração se apresse a pronunciar palavra alguma diante de Deus, porque Deus está nos céus, e tu, na terra; portanto, sejam poucas as tuas palavras (Ec 5.1,2).

Se desconsiderarmos essa admoestação, podemos confundir nosso cami­nho em uma pretensa sabedoria. Nós pensamos que podemos entender como um Deus eterno interage conosco, vivendo como nós em um mundo cheio de mudanças, mas nós não podemos entender isso. Em nossa vida, “tudo depen­de do tempo e do acaso” (Ec 9.11). Mas Deus é soberano sobre o tempo, e soberano sobre o acaso. Ele é sempre e eternamente o Senhor.

Sei que tudo quanto Deus faz durará eternamente; nada se lhe pode acrescentar e nada lhe tirar; e isto faz Deus para que os homens temam diante dele (Ec 3.14).

As objeções à doutrina bíblica da exaustiva onisciência de Deus são de raízes filosóficas, e não exegéticas. Além disso, essas raízes filosóficas são filosofia vã, elas se recusam a aprender a lição que Deus queria ensinar - isto é, que os homens devem temer diante dele. Contudo, alguns cristãos professos rejeitam essa doutrina bíblica, mas, por várias razões, ainda querem afirmar que a Bíblia é (em sua maior parte) verdadeira, ou autoritativa, ou importante para eles em sua comunidade de fé, ou em algum outro lugar. A Bíblia ainda tem que lidar com isso. Portanto, toma-se necessário que eles, de alguma for­ma, vinculem a Bíblia à sua filosofia. Como será discutido abaixo, certos versos isolados de seu contexto se encaixam nesse esquema - com facilidade - mas todos nós sabemos que versos isolados se encaixam em qualquer coisa. Shakespeare expressou bem esse fato em O Mercador de Veneza: “Na reli­gião, quando surge um erro que merece condenação, sempre aparecerá uma pessoa sóbria para dar a sua bênção e aprovação com um versículo, esconden­do a grosseria debaixo de uma bela roupagem”.

O método racionalista para determinar a verdade não pode ser distinguido, em princípio, do método do liberalismo, da alta crítica e do criticismo textual dos incré­dulos. Um conservador com esse método pode pensar que os liberais fizeram julgamentos errados, mas, compartilhando do método dos liberais, ele afirma seu direito de julgar. A história nos mostra que, sobre essa questão do racionalismo, aqueles que compartilham dos métodos dos incrédulos, em algum ponto, passam a desfrutar de sua incredulidade. As idéias têm conseqüências - objetivos.

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A razão submissa nos diz que nós devemos considerar a Bíblia - toda ela - como nossa autoridade final e infalível. É admitido por todos que a audiência primária dos autores da Escritura foram as pessoas às quais eles especifica­mente se dirigiram, isto é, a carta de Efésios foi escrita para os efésios. Mas a Bíblia é para nós também? A resposta é sim. A autoridade da Escritura deve ser o chefe supremo em todas as eras.

Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da lei, até que tudo se cumpra (Mt 5.18).

O padrão deve ser sempre a Escritura - toda ela. A Igreja foi formada para existir “por todas as gerações” (Ef 3.21), e foi edificada sobre “o funda­mento dos apóstolos e profetas” (Ef 2.19-22). Por todas as gerações, a Pala­vra de Deus deve ser nosso guia. Jesus citou Deuteronômio sobre esse as­sunto: “Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4.4).

Uma continuidade entre doutrina e obediência é pressuposta na gran­de comissão que Cristo deu à Igreja: “Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-s em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mt 29.19). Nós devemos ensinar obediência àquilo que Cristo disse para fazer e para pensar. Para isso, devemos nos voltar para aquilo que a Bíblia ensina.

Para os cristãos, essa continuidade de ensino doutrinário é edificada sobre o firme fundamento da suficiente Palavra de Deus. Os pensamentos do homem, a razão do homem, a doutrina do homem e, para usar a frase de Orwell, as “duvidosas pequenas ortodoxias” não são o padrão. Nós não descobrimos Deus nem o inventamos. Deus se revela.

O que a Bíblia diz

Dito isso sobre o papel da razão, o que a Bíblia ensina diretamente sobre a onisciência de Deus? Nós começaremos com passagens que atribuem conhe­cimento a Deus de forma geral e, a partir daí, discutiremos as passagens que falam de seu conhecimento exaustivo do futuro. Em ambos os casos, a Escritu­ra é abundante em referências a essas doutrinas intimamente relacionadas, a saber, onipresença exaustiva e a onisciência de Deus.

Ocultar-se-ia alguém em esconderijos, de modo que eu não o veja? - diz o Senhor; porventura, não encho eu os céus e a terra? - diz o Senhor (Jr 23.24).

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A resposta à primeira pergunta retórica é óbvia - não. A resposta à segunda pergunta é igualmente óbvia. Ninguém pode se esconder de Deus. Nessa passa­gem de Jeremias, o profeta está implacavelmente contrastando as profecias inúteis do homem com a genuína Palavra de Deus. Os inventores das vãs palavras huma­nas são ignorantes. O Deus vivo que fala conhece todas as coisas. Nenhum lugar secreto o exclui: se existe um lugar no céu ou na terra (e, escrituristicamente, não há outros lugares), então Deus enche esse lugar. A implicação é óbvia: Deus não enche esses lugares ignorantemente. Ele está lá e nada está escondido dele.

E não há criatura que não seja manifesta na sua presença; pelo contrário, todas as coisas estão descobertas e patentes aos olhos daquele a quem temos de prestar contas (Hb 4.13).

Isso ensina que o conhecimento que Deus tem sobre nós é total e imediato, isto é, não há mediador entre Deus e os “fatos”. Todas as coisas estão desco­bertas e abertas diante dele. Não há refúgio de seu conhecimento. Se alguma coisa é criada, isto é, se é uma criatura, então ela não pode se esconder dos olhos do Senhor. Toda criatura está plenamente à vista do Senhor, e ele nos observa inteligentemente. Ele não está olhando fixamente para nós com ausên­cia mental, ou olhando distraidamente a meia-distância. Nós temos que prestar contas a ele à luz do que ele observa, e ele observa tudo.

São meus todos os animais do bosque e as alimárias aos milhares sobre as montanhas. Conheço todas as aves dos montes, e são meus todos os animais que pululam no campo (SI 50.10,11).

Quando Jesus nos ensinou que nem um pardal cai ao chão se essa não for a vontade do Pai, ele podia ter indicado a passagem acima para fazer eco ao seu ensino. Deus conhece cada ave das montanhas. Seu conhecimento do universo é muito mais do que um grande e amplo conhecimento - ele se estende aos mínimos detalhes. Deus conhece muito mais que o número correto de galáxias, ele conhece todos os movimentos do pardal em seu quintal - cada mergulho, cada passo, cada movimento, cada piscar de olhos, cada puxão em um tufo de grama. Deus conhece.

Não se vendem dois pardais por um asse? E nenhum deles cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai. E, quanto a vós outros, até os cabe­los todos da cabeça estão contados (Mt 10.29,30).

É claro que nós estamos perdendo o centro da doutrina do Senhor se disser­mos: “Sim, Deus conhece tudo sobre pardais, mas onde está escrito na Bíblia

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que Deus está informado sobre as andorinhas?”. Jesus está nos dando um exemplo prático para nos mostrar as extremidades do conhecimento de Deus. Ele nos convida a estender esse ensino a cada canto e a cada fenda do univer­so. Se alguém disser que Deus conhece a posição e a velocidade de cada átomo no planeta Júpiter, isso não deve nos fazer alegar que ele seja ignorante sobre os átomos em Netuno.

Como nós valemos mais do que muitos pardais, nós não devemos nos sur­preender quando descobrimos que Deus mantém os olhos sobre nós também.

Ou não vê Deus os meus caminhos e não conta todos os meus passos?(Jó 31.4)

Quantos passos eu dei hoje? Eu não sei, mas Deus certamente sabe. Ele os conta. O Senhor não se distrai de nós nem por um momento. Ele conta todos os nossos passos. Eliú concorda com Jó com relação ao que Deus sabe:

Os olhos de Deus estão sobre os caminhos do homem e vêem todos os seus passos (Jó 34.21).

Essa verdade não pode ser limitada a indivíduos importantes como Jó. Essa é uma verdade geral sobre cada pessoa da raça humana. O Senhor vê todos os homens dessa forma.

Porque os caminhos do homem estão perante os olhos do Senhor, e ele considera todas as suas veredas (Pv 5.21).

Nenhum lugar do universo está fora do alcance do Senhor - nem mesmo os enclaves secretos de nosso coração. Se Deus contempla o infemo e a destrui­ção (pois ele é o Senhor tanto de um quanto de outro), então quanto mais ele contempla nosso coração? Deus vê tudo por fora e tudo por dentro.

O além e o abismo estão descobertos perante o Senhor; quanto mais o coração dos filhos dos homens (Pv 15.11).

Deus sabe tudo sobre nós. Ele sabe quando escovamos nossos dentes; ele sabe quando usamos um guardanapo; ele sabe quando nos sentamos à mesa de jantar e o que estamos pensando em todo o tempo: “Tu, só tu, és o conhecedor do coração de todos os filhos dos homens” (IRs 8.39b).

Sabes quando me assento e quando me levanto; de longe penetras os meus pensamentos. Esquadrinhas o meu andar e o meu deitar e conhe-

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ces todos os meus caminhos. Ainda a palavra me não chegou à língua, e tu, S e n h o r , já a conheces toda (S I 139.2-4).

Nós vivemos nossa vida diante dos olhos de Deus. Deus, como se revela na Escritura, está diante da nossa face. Isso deixa os pecadores nervosos (o que é esperado), mas a Bíblia não adapta a verdade para fazer com que nos sintamos melhores conosco mesmos.

O Senhor olha dos céus; vê todos os filhos dos homens... ele, que forma o coração de todos eles, que contempla todas as suas obras (SI 33.13,15).

Deus forma o coração de cada indivíduo, e ele pondera tudo o que nós fazemos. Nossas ações são pesadas em suas balanças, e nossos motivos estão em suas mãos.

“Acaso, alguém ensinará ciência a Deus, a ele que julga os que estão nos céus?” (Jó 21.22). Essa é uma pergunta retórica, com a esperada resposta: “Não”. Nin­guém pode ensinar ciência a Deus. Mas se o teísmo da vontade livre estiver correto, então, muitas pessoas podem ensinar ciência a Deus. Se a teologia relacional estiver correta, então, toda vez que alguém faz uma escolha, Deus tem uma surpresa. Cada pessoa que faz uma escolha está ensinando algo a Deus. Mesmo que o que essa pessoa ensina a Deus seja nada mais que certos aspectos não revelados de sua própria personalidade, permanece o fato de que Deus está aprendendo alguma coisa que uma criatura originou. Até mesmo alguns pagãos sabem que isso é falso:

Nele vivemos, e nos movemos, e existimos, como alguns dos vossos poetas têm dito: Porque dele também somos geração (At 17.28).

O poeta pagão citado acima sabia que o ambiente de todas as criaturas é Deus. Não é de se surpreender que o juízo de Deus no último dia dependa desse conhecimento exaustivo.

Portanto, nada julgueis antes do tempo, até que venha o Senhor, o qual não somente trará à plena luz as coisas ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios dos corações (ICo 4.5).

Alguma parte do que foi dito talvez seja aceita pelos adeptos do teísmo relacional. Enquanto alguns que sustentam essa posição afirmam que Deus nem mesmo necessariamente conhece tudo o que acontece no presente, os problemas reais de sua perspectiva são causados pelo conhecimento que Deus tem do futuro. Conseqüentemente, alguns simplesmente negam que Deus co­nheça as futuras ações livres de suas criaturas.

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Nós devemos começar com a percepção de que o debate entre calvinistas e arminianos não se refere à presciência exaustiva de Deus. O debate sobre o teísmo da vontade livre não é um debate entre calvinistas e arminianos. Os dois lados confessam a doutrina ortodoxa de Deus, que afirma que Deus co­nhece o fim desde o começo. Antes da fundação do mundo, Deus viu o último cachorro amarelo descer uma rua no fim do mundo, e antes dos tempos eternos Deus sabia o número de pelos das costas desse cachorro.

Já que ambos os lados concordam sobre isso, os reformados às vezes usam esse terreno comum para pressionar seus irmãos arminianos na questão de um “futuro predeterminado”, que é o debate entre eles. A presciência exaustiva­mente verdadeira da parte de Deus exige que o futuro seja fixado - determi­nado - antes que qualquer um de nós nascesse? Alguns que afirmam a doutri­na do “livre arbítrio” aceitam o poder desse argumento, e conseqüentemente aceitam a sua conclusão. “Muito bem, então se a presciência divina destrói a vontade livre, então nós devemos negar a presciência simplesmente porque nós devemos afirmar a vontade livre”. Para seu mérito, os arminianos evangélicos têm se mantido fiéis à Escritura nesse ponto, apesar da força do argumento.

Os adeptos do teísmo relacional podem responder que simplesmente estão sendo logicamente coerentes de uma forma que os arminianos não são. Eles estão dispostos a dizer o que necessariamente se segue da afirmação da vontade livre, e, de acordo com eles, os arminianos não estão dispostos a isso. Mas esse debate teológico específico, como todos os debates teológicos, não pode ser iso­lado de outras verdades ensinadas na Escritura. Quando toda a Escritura é leva­da em conta, os arminianos são muito mais consistentes em sua teologia que os defensores do teísmo da vontade livre. Um homem que se apega a uma idéia deve ser capaz de dizer que ele é mais coerente com essa idéia específica do que aqueles que não se apegam a ela, mas esse é um orgulho vão. Quem quer colocar uma coisa que Deus revelou sobre si mesmo contra tudo o mais que ele revelou sobre si mesmo e então se orgulhar de que suas deduções lógicas são “mais consistentes”? Em um sentido estrito, os adeptos do teísmo da vontade livre podem ser coerentes, mas, se as premissas da teologia bíblica forem toda a Escritura, então sua consistência solitária é derrubada por causa de toda a in­consistência radical e irracionalidade presente em vários outros lugares.

Sendo assim, o que a Bíblia ensina sobre a presciência ? “[Busquem] o Senhor, que faz estas coisas conhecidas desde séculos” (At 15.18). Nós devemos come­çar observando que Deus não tem a mesma relação com o tempo que nós temos.

Assim diz o Alto, o Sublime, que habita a eternidade, o qual tem o nome de Santo: Habito no alto e santo lugar, mas habito também com o contrito e abatido de espírito, para vivificar o espírito dos abatidos e vivificar o coração dos contritos (Is 57.15).

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Uma tradução literal da Septuaginta nesse texto tem a leitura: “Portanto, assim diz o Senhor Mais Elevado, Aquele que habita nos lugares mais elevados para sempre”. Para sempre não é usado aqui como um advérbio, dizendo-nos a quantidade de tempo que o Senhor vive. Para sempre, aqui, funciona como um substantivo: para sempre é a casa de Deus. Dessa forma, o texto está dizendo muito mais do que a duração da vida de Deus. A eternidade é sua morada. Seu lar é a eternidade sem fim.

Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade, tu és Deus (SI 90.2).

O leitor deve tomar o cuidado de observar o tempo presente do verbo. Ele é semelhante ao uso crucial do tempo presente na famosa resposta de Cristo: “Antes que Abraão existisse, eu sou”. Essa é uma reivindicação de divindade, uma reivindicação baseada em sua atemporalidade. Ele não disse: “Antes que Abraão existisse eu existia também”. De eternidade a eternidade, Deus é Deus. Desde a eternidade, Deus é Deus, e até a eternidade, Deus é Deus. Nós não somos simplesmente informados que desde a eternidade Deus era Deus, e até a eternidade Deus será Deus.

Como Deus habita a eternidade, nós não devemos nos surpreender que sua presciência de eventos futuros seja tão exaustiva quanto seu conhecimento de eventos passados.

Assim é como nós podemos considerar a presença da profecia através das Escrituras. Quando revela suas profecias na Bíblia, Deus fala sobre muito mais do que suas próprias ações - constantemente ele prediz as ações das pessoas. Isso é notável, e distingue Deus dos ídolos.

Anunciai-nos as coisas que ainda hão de vir, para que saibamos que sois deuses; fazei bem ou fazei mal, para que nos assombremos, e juntamente o veremos. Eis que sois menos do que nada, e menos do que nada é o que fazeis; abominação é quem vos escolhe (Is 41.23,24).

Uma reflexão de poucos momentos revelará exemplos sem conta de ações livres declaradas como realizadas, muito tempo antes de serem praticadas, pelo Senhor - o decreto de Ciro, a negação de Pedro, a traição de Judas, a quantia de moedas de prata usada para custear a traição do Senhor, as cam­panhas militares de Alexandre, o Grande, e o leitor pode apresentar centenas de outros exemplos.

Além disso, é surpreendente quantas passagens falam sobre o próprio evan­gelho em relação àquilo que aconteceu antes que o mundo fosse feito. Um bom exemplo, para começar, é 2 Timóteo 1.8-10:

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Não te envergonhes, portanto, do testemunho de nosso Senhor, nem do seu encarcerado, que sou eu; pelo contrário, participa comigo dos sofri­mentos a favor do evangelho, segundo o poder de Deus, que nos salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos, e manifestada, agora, pelo aparecimento de nosso Salvador, Cristo Jesus, o qual não só destruiu a morte, como trouxe à luz a vida e a imortalidade, mediante o evangelho (2Tm 1.8-10).

A graça foi oferecida aos pecadores na mente e no propósito de Deus antes do início dos tempos - antes do início do pecado. Isso não pode ser conciliado com a sabedoria humana, mas pode ser conciliado com o ensino de Paulo. Esse é o ensino de Paulo.

Paulo, servo de Deus e apóstolo de Jesus Cristo, para promover a fé que é dos eleitos de Deus e o pleno conhecimento da verdade segundo a piedade, na esperança da vida eterna que o Deus que não pode mentir prometeu antes dos tempos eternos e, em tempos devidos, manifestou a sua Palavra mediante a pregação que me foi confiada por mandato de Deus, nosso Salvador (Tt 1.1-3).

Deus prometeu vida eterna por meio da pregação do evangelho antes dos tempos eternos. O texto grego aqui é claro. A frase é pro chronon aionion - antes dos tempos eternos. Se a vida eterna foi prometida antes dos tempos eternos, e, portanto, antes do começo do pecado, e a pregação do evangelho foi a manifestação dessa promessa, então o que fazer com o teísmo da vontade livre? E, mais ainda, o que o teísmo da vontade livre faz com essas afirmações escriturísticas do evangelho?

De acordo com a posição relacional, o evangelho é algo que Deus decidiu fazer na história em resposta às escolhas humanas. Um defensor dessa posição disse que “a história é o resultado combinado daquilo que Deus e suas criaturas decidem fazer”. Isso claramente inclui a história do pecado e da redenção. A Bíblia diz diferente, e o faz nos termos mais claros possíveis. O evangelho do teísmo relacional é uma resposta temporal de Deus - resolvendo os problemas da criação - e não o cumprimento de qualquer promessa pré-temporal. Mas o fun­damento de nossa confiança no evangelho é encontrado no fato de que Deus cumpre sua Palavra, cumpre suas promessas. A pregação do evangelho é descri­ta por Paulo como uma manifestação dessa promessa pré-temporal.

No devido tempo, quando o tempo estava pronto, Deus manifestou sua Palavra por meio da pregação. Essa manifestação é uma promessa feita an­tes do tempo, feita pelo Deus que não pode mentir. Paulo nos dá uma garantia

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maravilhosa aqui, e o teísmo da vontade livre, segundo creio, joga fora essa garantia. Para eles, a promessa não é a mesma coisa sobre a qual Paulo está falando a Tito. Os dois evangelhos não estão baseados no mesmo propósito nem na mesma promessa.

Pedro nos ensina sobre nossa redenção pelo precioso sangue de Cristo - certamente, o coração do evangelho - e ele diz o seguinte sobre Cristo, o Cordeiro do sacrifício:

Conhecido, com efeito, antes da fundação do mundo, porém manifesta­do no fim dos tempos, por amor de vós (IPe 1.20).

Nós temos aqui o mesmo conceito encontrado na passagem de Tito. Algo foi estabelecido antes do início do mundo e mais tarde foi revelado no curso da história. Esse algo foi a cruz - o evangelho. Nessa passagem, não importa (para nossa discussão) como a palavra proegnosmenou é traduzida - seja como “preordenado”, “conhecido de antemão” ou “escolhido”. Eu creio que a NKJY esteja correta aqui, mas, seja qual for o caso, essa transação redentiva, seja o que for, foi feita antes do início do mundo. Mas os adeptos da teologia relacional negam isso.

Esse planejamento feito antes da criação também é claro em Efésios 1. Minha aplicação dessa passagem não pressupõe uma compreensão reformada dela. Não importa, para nossa discussão, se os escolhidos aqui são os eleitos, como afirmam os calvinistas, ou os crentes conhecidos de antemão, como afir­mam os arminianos. O ponto em questão é que a salvação de alguns pecadores foi ordenada ou conhecida, de antemão, antes da fundação do mundo.

Assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele em amor (Ef 1.4).

Se as palavras têm significado, então alguém, de alguma forma, foi escolhi­do em Cristo para a santidade e para a irrepreensão antes que o mundo fosse feito. Mas se alguém foi escolhido para a salvação ou conhecido como rece­bendo a salvação antes que o mundo fosse feito, isso significa que essas pes­soas foram objeto genuíno do conhecimento de Deus (como afirmam os arminianos) ou objetos genuínos do amor redentivo de Deus (como afirmam os calvinistas). Em qualquer caso, o conhecimento que Deus tem do futuro é cla­ramente visto. Deus sabia que o pecado ocorreria e mesmo assim criou o mun­do - j á tendo planejado a salvação dos pecadores.

O uso da frase “se as palavras têm sentido” é muito importante aqui. É irônico que as pessoas possam ter a razão em tão elevada estima a ponto de dizer que ela é competente para investigar as profundezas da sabedoria e do

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conhecimento de Deus, tanto quanto a natureza do tempo e da eternidade, e quando recorrem ao legítimo trabalho da razão - determinar o que as palavras realmente estão dizendo - então a razão cai ao chão. Como o profeta diz em algum lugar, se o homem não pode correr com o homem, como ele competirá com os cavalos? Se a razão humana não pode sequer compreender a sentença acima - “ele nos escolheu antes da fundação do mundo” - então como ela espera poder conciliar a soberania divina com a “soberania” humana?

Se quisermos falar biblicamente, devemos afirmar que o primeiro trabalho da razão é compreender o que o texto está dizendo. Suponha que alguém rejeite o ensino bíblico sobre a onisciência de Deus, mas não por razões gramaticais ou exegéticas. Suponha que essa pessoa rejeite o ensino sobre a onisciência de Deus, porque ele contradiz algo que sua “razão” insiste em afirmar. Nesse caso, quem é o Senhor? A razão ou Cristo? E quem é o servo? A razão ou Cristo? E, colocando a questão contra a parede, se essa pessoa não tem Cristo, por quanto tempo ela terá a razão?

Voltando à Escritura, nós somos confrontados com a questão de por que algumas pessoas recusam o evangelho. Por que algumas pessoas perecem? A Bíblia afirma tanto a responsabilidade quanto a reprovação de certos tipos de pecadores em um só fôlego.

São estes os que tropeçam na Palavra, sendo desobedientes, para o que também foram postos (IPe 2.8).

Esses pecadores tropeçam (repito que não importa, para nossa discussão, por que eles foram postos para tropeçar), e seu tropeço é definido como deso­bediência à Palavra - ao evangelho. A Bíblia diz (repito, se as palavras têm significado) que certas pessoas foram postas para desobedecer a Palavra. Qual é o papel da razão aqui? A razão deveria permanecer quieta em seu lugar, tomando notas? Ou deveria levantar-se de seu lugar e colocar-se contra a Palavra de Deus? Qual é a atitude razoável que ela deve tomar? A razão só é razoável quando se submete totalmente à vontade revelada de Deus.

Nós vemos um registro semelhante em João 12.37-40:

E, embora tivesse feito tantos sinais na sua presença, não creram nele, para se cumprir a palavra do profeta Isaías, que diz: Senhor, quem creu em nossa pregação? E a quem foi revelado o braço do Senhor? Por isso, não podiam crer, porque Isaías disse ainda: Cegou-lhes os olhos e endure- ceu-lhes o coração, para que não vejam com os olhos, nem entendam com o coração, e se convertam, e sejam por mim curados.

Muitos textos desse tipo podiam ser multiplicados e examinados por sua vez, mas esse não é o problema. Como foi discutido na primeira seção, é a

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abordagem a todos os textos que é o problema. Textos como esse, como se apresentam, ofendem os brios da sabedoria humana. Deus nos prometeu uma forma de escapar de nossas tentações, mas não nos prometeu uma forma de escapar da verdade. Nós não devemos ser indecisos quando ma­nuseamos a Escritura, não devemos discutir “possibilidades” na Escritura, trabalhando com “talvez isso” e “talvez aquilo”. Não é dessa forma que a Palavra de Deus vem a nós.

Sim, mas..o

O ensino da Bíblia é tão claro que algumas pessoas se espantam com a existência de algum debate. Como pode a posição do teísmo da vontade livre ser mantida por alguém? Por meio da Bíblia, talvez os leitores possam responder prontamente a questão. Existem numerosas passagens que mos­tram, em uma passada de olhos, o molde da doutrina da onisciência de Deus. Essas passagens precisam ser abordadas com tanta honestidade quan­to as passagens que nós já discutimos, sobre a eternidade de Deus. Toda a Escritura é proveitosa.

Por exemplo, em Gênesis 18, a Bíblia se refere ao Senhor descendo para saber se os habitantes de Sodoma eram tão maus quanto ele tinha ouvido. Como isso pode ser coerente com o ensino das passagens que relacionamos anteriormente?

Disse mais o S e n h o r : Com efeito, o clamor de Sodoma e Gomorra tem se multiplicado, e o seu pecado se tem agravado muito. Descerei e verei se, de fato, o que têm praticado corresponde a esse clamor que é vindo até mim; e, se assim não é, sabê-lo-ei (Gn 18.20,21).

Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, nós vemos exemplos do Deus invisível, transcendente, focalizando a si mesmo em uma imagem visível. No Novo Testamento, nós vemos Cristo, a imagem visível do Deus invisível (Cl 1.15), encarnado como um ser humano. No Antigo Testamento, as aparições do Cristo pré-encamado são chamadas de teofanias. Ora, é um erro lógico de primeira grandeza pegar o que se fala de Deus como manifesto nessas teofanias e aplicar a Deus em sua transcendência.

Se nós negligenciarmos as passagens que falam sobre a transcendência de Deus, sua onipresença, e assim por diante, nós poderemos concluir dessa pas­sagem que Deus, de fato, é limitado em seu conhecimento. Mas considere dois problemas com isso. Primeiro, isso exige que nós negligenciemos o claro ensino de muitas outras passagens sobre a natureza de Deus, passagens que já foram

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levadas em consideração aqui. Nós devemos nos lembrar de tudo aquilo que a Bíblia diz sobre o assunto - tota et sola Scriptura.

Segundo, essa negligência da transcendência de Deus nos dá um Deus mais limitado do que o que nós pretendemos. Nós não somente temos um Deus que é limitado em seu conhecimento, mas também temos um Deus que tem que an­dar quando quer fazer alguma coisa (Gn 18.2,3), que, quando anda, enche os pés de poeira (Gn 18.4), que não é de se surpreender que fique cansado (Gn 18.4), que fica com fome (Gn 18.5,8) e que pode entrar em combate corporal (Gn 32.24-30). Ao lutar contra o Anjo do Senhor, Jacó alegou ter visto D eus face a face (Gn 32.30) e Oséias deixa claro que viu o Senhor (Os 12.3,4). O Anjo do Senhor é freqüentemente representado no Antigo Testamento como uma teofania - um aparecimento de Deus. Tanto Hagar quanto o pai de Sansão entenderam dessa forma (Gn 16.11-13; Jz 13.22). Essas referências e teofanias nos apresentam, consideradas isoladamente, um Deus muito mais limitado que qualquer outro. Conseqüentemente, nós não precisamos realmente refutar uma posição e método que ninguém realm ente adota.

A objeção pode ser respondida dizendo-se que essas passagens simples­mente nos dão um Deus que p ode andar, e não um Deus que precisa andar. Mas lembre-se da metodologia empregada pelos defensores do teísmo relacional. Se a Escritura usa uma linguagem que diz que Deus procura, infere-se que Deus é ignorante e precisa procurar para que sua busca seja “genuína”. Dessa forma, empregando o mesmo método, por que nós não podemos dizer que, se a Escritura mostra Deus andando, nós devemos concluir que ele precisa andar para conseguir realizar o que planeja?

Duas opções básicas se abrem diante de nós. Nós podemos ou reconhecer que toda a Escritura é consistente e que um Deus infinito condescende em aparecer, de tempos em tempos, a homens finitos em uma forma finita, ou nós acabamos nos deparando com um Zeus olímpico - um deus que dorme, desco­bre as coisas, fica com fome, e, se nós quisermos nos alinhar com mais avan­ços na teologia evangélica “progressiva”, tem relações sexuais quando lhe apraz. Certamente esse pensamento deixa qualquer pessoa estarrecida. Mas p o r qu ê?

Se nós nos lembrarmos das passagens sobre a majestade e a transcendência de Deus, nós consideraremos passagens emelhantes a Gênesis 18 como des­crições cruas de uma teofania, isto é, o que acontece quando Deus assume uma forma visível, limitada, para lidar com os homens. Se podemos confiar na Escritura, esse Anjo do Senhor, essa teofania, anda, fala, não conhece, muda de direção, luta, etc. De uma forma comparável, nosso Senhor, depois da encarnação, dormiu, comeu, pregou, ficou cansado, não soube certas coisas, e assim por diante. Tudo isso pode ser afirmado sem que seja abandonada a perspectiva bíblica sobre a natureza do Deus transcendente. Em outras pala­vras, essa não é uma situação na qual nós temos que escolher entre um conjun-

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to de versículos e outro. Essa é uma escolha entre escolher todos os versículos e escolher apenas alguns.

Se nós não escolhermos todos os versículos, nós logo nos veremos afirman­do absurdos bíblicos - em outras palavras, apelando a esses exemplos para provar muito mais. Essas leituras da Escritura não são coerentemente seguidas por ninguém. Por exemplo, nós realmente queremos dizer (qualquer um de nós) que Deus pode ser derrotado por um homem em uma luta corporal?

Ficando [Jacd] só; e lutava com ele um homem, até ao romper do dia.Vendo este que não podia com ele, tocou-lhe na articulação da coxa; deslocou-se ajunta da coxa de Jacó, na luta com o homem. Disse este: Deixa-me ir, pois já rompeu o dia. Respondeu Jacó: Não te deixarei ir, se me não abençoares. Perguntou-lhe, pois: Como te chamas? Ele respon­deu: Jacó. Então, disse: Já não te chamarás Jacó e sim Israel, pois como príncipe lutaste com Deus e com os homens e prevaleceste. Tornou Jacó: Dize-me, rogo-te, como te chamas? Respondeu ele: Por que perguntas pelo meu nome? E o abençoou ali. Àquele lugar chamou Jacó Peniel, pois disse: Vi Deus face a face, e a minha vida foi salva (Gn 32.24-30).

Essa passagem nos dá um bom exemplo de como as teofanias devem ser consideradas à luz da Escritura. Quando Nabucodonosor reconhece que nin­guém pode deter a mão de Deus nem lhe dizer “que fazes?”, ele não espera obter a resposta de que Jacó podia fazer isso.

Dessa forma, em Gênesis 32, nós temos uma afirmação de que Deus foi visto face a face. Mas isso não é tudo. Nós também temos a clara afirmação de que ele lutou e foi vencido por um mortal. Agora ou Deus é muito mais fraco do que qualquer pessoa imagina ou ele se manifestou dessa forma por algum motivo. Quando o Deus infinito “desceu” a um ponto finito, foi para que alguns homens pudessem lidar com ele, e não para confundi-los com relação à sua infinitude. Essa é uma situação muito similar à de Sodoma.

Nós realmente queremos dizer que Deus precisa de alimento da mesma forma que nós precisamos e que ele tem que ir ao armazém para adquiri-lo? Lembre-se de que, a caminho para a destruição de Sodoma, o Senhor foi ter com Abraão a pé e Abraão lhe deu comida. Alguém realmente pensa que os anjos e o Senhor estavam conversando pelo caminho sobre quem se esqueceu de embrulhar o lanche de viagem?

Traga-se um pouco de água, lavai os pés e repousai debaixo desta árvore; trarei um bocado de pão; refazei as vossas forças, visto que chegastes até vosso servo; depois, seguireis avante. Responderam: Faze como disseste. Apressou-se, pois, Abraão para a tenda de Sara e lhe disse: Amassa de-

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pressa três medidas de flor de farinha e faze pão assado ao borralho. Abraão, por sua vez, correu ao gado, tomou um novilho, tenro e bom, e deu-o ao criado, que se apressou em prepará-lo. Tomou também coalhada e leite e o novilho que mandara preparar e pôs tudo diante deles; e permaneceu de pé junto a eles debaixo da árvore, e eles comeram (Gn 18.4-8).

Uma objeção semelhante à compreensão bíblica da onisciência de Deus é derivada daquilo que a Bíblia diz sobre Cristo na encarnação. “Jesus disse: Quem me tocou?’ (Lc 8.45). Como Cristo é plenamente Deus, e como os evangelhos deixam claro que Cristo não sabia certas coisas, não se segue que uma onisciência exaustiva não é uma característica necessária à Divindade?

Essas objeções à onisciência de Deus com base na encarnação realmente pos­suem sua própria classe. O fato supreendente de que Deus foi manifestado em carne (ITm 3.16), ou, colocado de uma outra forma, que o Verbo tomou-se carne e habitou entre nós (Jo 1.14), tem servido de matéria-prima para especulações he­réticas desde o início da era cristã. Alguns negavam a encarnação e diziam que Cristo era simplesmente uma semelhança de Deus. Outros diziam que a alma de Cristo era divina e seu corpo era humano. Em outras palavras, Deus vestiu uma roupa de homem da mesma forma que um homem pode vestir uma roupa de gorila. Falando de uma forma simples, os erros eram numerosos. No Concílio de Calcedônia, a Igreja teve sucesso em excluir todo tipo de especulações vãs e infrutíferas. Cristo é plenamente Deus, porque a Bíblia diz assim; e é uma pessoa, porque a Bíblia diz assim. Ele tem duas naturezas (divina e humana), mas somente uma Pessoa. Essas cercas precisaram ser levantadas, porque a razão orgulhosa queria saber como Cristo, em sua humanidade, podia não saber certas coisas, embora em sua divinda­de ele soubesse todas as coisas. A resposta é que nós não sabemos. A encarnação é um verdadeiro mistério. Contudo, embora não dê explicação detalhada, a Escritu­ra estabelece os limites daquilo que nós devemos afirmar - Cristo é plenamente Deus, plenamente homem, e uma Pessoa.

O que pode ser atribuído a uma natureza não pode ser atribuído a outra. O que é verdadeiro sobre uma natureza pode apropriadamente ser atribuído à Pessoa, mas não à outra natureza. A importância dessa distinção geralmente é perdida. Aqueles que querem dizer que Deus, em sua transcendência, não sabe certas coisas, porque o Deus encarnado, em sua humanidade, não sabia certas coisas adotaram uma metodologia repugnante que não pode ser limitada a ques­tões de conhecimento. Se Jesus era Deus, e tinha somente 1,60m de altura, podemos dizer que l,60m de altura é um novo atributo de Deus? Ou então considere outra forma pestilenta desse erro lógico - se Jesus era Deus, e Ma­ria era mãe de Jesus, então isso faz com que Maria seja mãe de Deus?

O Concílio de Calcedônia resguardou sua afirmação contra esse erro lógi­co fundamental quando disse: “Ele nasceu de Maria, a virgem, que é a mãe

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de Deus segundo sua humanidade”. Nas gerações subseqüentes, crentes supersticiosos se agarraram à expressão “mãe de Deus” e ignoraram a qua­lificação crítica que Calcedônia colocou sobre ela. No ensino e na metodologia da teologia relacional, nós somos agora confrontados com o mesmo tipo de pensamento que permitiu que as pessoas pensassem em Maria como mãe da Divindade. “Como Jesus é Deus, e tem uma mãe, ter uma mãe é um dos novos atributos da Divindade”.

Novamente, é irônico que aqueles mais inclinados a cometer esse erro lógi­co simples sejam os mesmos “racionalistas” que insistem que a razão humana é capaz de alcançar as profundezas das imensidades da sabedoria de Deus. Na encarnação, a Bíblia revela que Deus foi manifestado em carne. Isso não faz com que a humanidade e a Divindade sejam sinônimos. Portanto, quem foi seu conselheiro? Nenhum homem é capaz de aconselhá-lo, e isso inclui certa­mente aqueles dentre nós que não podem afirmar as distinções entre as cate­gorias mais fundamentais - categorias como baleia e torradeira, ou, para usar um exemplo mais extremo, entre Deus e homem.

Outro tipo de objeções escriturísticas à doutrina bíblica é um pouco dife­rente. Esse tipo de objeção parte das expressões usadas para descrever Deus nas Escrituras e estabelece uma doutrina de conhecimento limitado da parte de Deus.

“Porventura, não o teria atinado Deus, ele, que conhece os segredos dos corações?” (SI 44.21). O argumento é que se Deus tem que atinar, então ele não deve ter conhecido de antemão aquilo com que teve que atinar. Esse versículo dá uma boa idéia do uso de palavras como atinar quando usadas na Bíblia em atividades como examinar o coração. Seu discernimento aqui é descrito como sendo baseado em seu conhecimento presente dos segredos do coração. O salmista diz: “Ele, que conhece”.

Nós temos o mesmo tipo de informação no Salmo 139.

Sonda-me, 6 Deus, e conhece o meu coração, prova-me, e conhece os meus pensamentos (SI 139.23).

Esse convite a Deus para sondar e provar é uma oração perfeitamente natural de humildade. Davi não estava pedindo a Deus para vir sobre ele e descobrir coisas que ele não sabia antes. Isso pode ser visto por aquilo que ele diz em outros lugares desse mesmo salmo. O convite para sondar seu coração foi precedido por várias afirmações importantes.

Davi diz que Deus já o sondava e o conhecia (v.l); que Deus sabia quando ele se assenta e quando se levanta (v.2); que Deus, de longe, penetrava os seus pensamentos (v.2); que Deus conhecia o seu andar, o seu deitar e todos os seus caminhos (v.3); que Deus o cercava e punha sua mão sobre ele (v.5); que o

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conhecimento que Deus tem sobre ele incompreensível (v.6); que o Espírito de Deus, a presença de Deus, estava em todos os lugares, seja nos céus ou no abismo (v.8); e que Deus sabia quantos dias Davi viveria antes que ele tivesse vivido um dia sequer (v. 16). À luz de tudo isso, a afirmação de Davi deve ser entendida como uma oração natural de humildade: “Deus, eu quero ser sonda­do para que possa ser conduzido pelo caminho eterno”. Deus também usa essa linguagem. Quando o faz, está descendo ao nosso nível para revelar-se a nós. O uso de palavras como “sondar” é uma figura de linguagem e não pode ser entendido como nos ensinando que Deus é um bom aprendiz.

Ainda outra objeção à onisciência pode ser extraída de certas expressões que a Bíblia usa para falar de Deus ou quando o próprio Deus está falando.

Edificaram os altos de Baal, que estão no vale dos filhos de Hinom, para queimarem seus filhos e suas filhas a Moloque, o que nunca lhes orde­nei, nem me passou pela mente fizessem tal abominação, para fazerem pecar a Judá (Jr 32.35; cf. 19.5).

Para alcançar seu objetivo, os teístas da vontade livre devem alegar que Deus era totalmente cego à desobediência dos israelitas. Esse entendimento significa não somente que Deus não antevê exaustivamente o futuro, mas também que ele não é muito bom em prever o futuro comportamento humano com base nas circunstân­cias do presente. Considere: os israelitas estavam ocupando uma terra povoada por pagãos que tinham comportamentos abomináveis, inclusive a prática de sacrificar seus filhos no fogo a Moloque. Deus repetidamente os advertiu a não fazerem o que os cananitas faziam, nem a imitar o seu comportamento, e, ao que parece, essa abominação estava incluída nas suas tentações. Um analista humano razoavel­mente inteligente teria sido capaz de prever que isso seria um problema.

Mas nós não temos que nos apoiar nessa conjuntura. Deus os tinha adver­tido claramente sobre isso antes de eles entrarem na terra.

E da tua descendência não darás nenhum para dedicar-se a Moloque, nem profanarás o nome do teu Deus. Eu sou o Senhor (Lv 18.21; cf. 18.10).

Deus os advertiu sobre essa possível corrupção quando eles ainda esta­vam no deserto, mas, no tempo de Jeremias, ele tinha se esquecido do que tinha dito? O esquecimento de Deus já seria suficientemente mau, mas lembre-se de que essa admoestação dada por Deus tinha sido registrada na Escritura. Isso significa que, se Deus a esqueceu, ele conhecia sua revela­ção com menos profundidade do que ele esperava que os israelitas conhe­cessem. Deus, então, estaria dizendo: “Façam o que eu digo, não o que eu faço” (Dt 28.58,59).

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A idéia de que Deus queria comunicar por meio de Jeremias que ele nunca havia previsto a possibilidade de que essa abominação fosse excluída, pelas claras afirmações da Escritura, logicamente, é ridícula. Mas essas expressões, tanto aqui quanto através de toda a Escritura, podem soar como se Deus nun­ca tivesse pensado em alguma coisa.

Então, como nós devemos entender essas expressões? Logicamente, elas são uma figura de linguagem chamada anthropopateia - Deus é condescen­dente em se comunicar conosco, e ele usa expressões que não podem ser tomadas literalmente. Elas são usadas porque essa é a forma pela qual nossa mente trabalha. Para usar a expressão familiar de Calvino, Deus às vezes ceceia conosco. Nós devemos nos resguardar contra o abuso dessa explicação (isto é, explicar qualquer parte da Escritura como uma “figura de linguagem”) por meio de uma leitura cuidadosa e refletida da Escritura. O fato é que Deus nos deu sua Palavra, que contém tanto figuras de linguagem quanto afirmações prosódicas diretas. O papel correto da razão é estudar de forma submissa sua Palavra de forma que nós possamos aprender a distinguir os dois casos.

No caso dado acima, de Jeremias, a expressão simplesmente significa que Deus nunca ordenou essa atrocidade aos israelitas. Ele não podia e não refle­tiu sobre essa abominação, pois ele é imutavelmente santo. Ele não pode ser tentado e a ninguém tenta (Tg 1.13). Em vez de simplesmente dizer “eu não ordenei isso”, ele diz de forma muito mais enfática: “Nunca passou pela minha cabeça ordenar isso”.

Considerar literalmente essas expressões contradiria de forma vulgar o que a Bíblia nos ensina em passagens didáticas diretas sobre a natureza de Deus, e também conduziria a uma série de problemas para qualquer teologia. Por exem­plo, nós realmente queremos dizer que Deus tem face porque o salmista diz que ele esconde sua face (SI 13.1)? Ou que Deus tem pálpebras (SI 11.4)? Deus literalmente abriu o Mar Vermelho com o resfolegar de suas narinas (Êx 15.8)? Sua língua é um fogo consumidor (Is 30.27)? Seu poder é um braço literal (Is 53.1)? Deus tem intestinos (Is 63.15)?’

Atenta do céu e olha para a tua santa e gloriosa habitação. Onde estão os teus zelos e as tuas obras poderosas? A ternura do teu coração e as tuas misericórdias se detêm para comigo! (Is 63.15)

A expressão “ternura do teu coração”, aqui, literalmente, é uma referência às entranhas. Todos esses exemplos de antropomorfismo e antropopatismo são figuras de metonímia, na qual uma coisa é substituída por outra. Como os seres humanos têm uma certa sensação em seus intestinos quando são profunda­mente afligidos, por metonímia, eles podem fazer referência a essa sensação como se fosse o próprio sentimento de aflição. Deus se descreve até mesmo

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usando descrições tomadas do mundo animal. Ele ruge e brada (Jr 25.30); ele tem penas e asas (SI 91.4). Verdade!

E claro que tudo isso são figuras de linguagem, e não está aqui para escon­der nem para confundir. Elas nos foram dadas por Deus para que ele se comu­nicasse conosco. A face de Deus se refere à sua presença, seus olhos se referem à sua onipresença, seu braço ao seu poder, suas asas à sua proteção, e assim por diante. Deus fala de si mesmo dessa forma, e nós também deve­mos falar. Nós devemos ecoar a linguagem da Escritura em todos esses luga­res, mas devemos sempre nos lembrar do que estamos fazendo. Nós estamos falando analogicamente do Pai invisível.

O mesmo é verdade quando encontramos figuras que se referem ao conhecimento de Deus - por exemplo, aquelas figuras que representam Deus se arrependendo ou tendo compaixão (Gn 6.6; Êx 32.12,14), lembrando-se (Gn 9.15,16; Êx 6.5), ou esquecendo-se (SI 9.18; 13.1; Jr 23.39). “Lembrou-se Deus de Noé” (Gn 8.1). Deus coçou sua testa nesse momento? “Ai, minha nossa! Noé!”. Ou em Êxodo 6.5: “Rapaz, foi por pouco! Eu quase me esqueci! A aliança!”. A resposta de quem entende como funciona a linguagem humana é: “Claro que não!”. Se a razão humana não pode compreender figuras de lingua­gem humana, então como ela compreenderá o tempo e a eternidade?

E importante observar que, enquanto nós estamos tratando de figuras de linguagem em passagens poéticas e proféticas, nós também temos necessaria­mente figuras de linguagem em passagens históricas, nas quais um Deus infini­to coloca-se em um ponto finito para que possa interagir com os homens. Quando Deus aparece em um lugar, ele não está ausente dos outros - mesmo quando ele se declara presente em um lugar de forma enfática. Quando Deus tem compai­xão e muda o curso de uma ação, ele não está sendo volúvel como o homem seria. Ele muda de quê? Ele muda o caminho que nos parecia que ele estava tomando? Ou ele muda aquilo que ele determinou e planejou? A Bíblia não diz que tudo trabalha “segundo o propósito daquele que faz todas as coisas segun­do o conselho de sua vontade, até segunda ordem ou até que alguém tenha uma idéia melhor” (Ef 1.11).

Outra objeção à doutrina ortodoxa de Deus requer um tipo diferente de resposta (isto é, uma resposta extrabíblica), já que é uma alegação sobre o processo e desenvolvimento da doutrina sobre o curso da história da Igreja. Geralmente alega-se que o teísmo clássico é um fenômeno pós-católico. A idéia é que o teísmo clássico foi formulado e adotado pela Igreja no período patrístico e medieval e que os reformadores, infelizmente, falharam em se li­bertar do Escolasticismo medieval. Se nós fôssemos como os cristãos primiti­vos, diz o argumento, nós seríamos pós-pagãos, e não pós-católicos. “Nós não podemos permitir que categorias artificiais da teologia escolástica da Idade Média amarrem nosso estudo da Palavra de Deus”.

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Como Peter Leithart mostrou em seu ensaio, esse argumento não tem apli­cações legítimas (a Igreja assimilou alguns detalhes aqui e ali). Mas o proble­ma central com essa alegação referente à onisciência de Deus é que ela é um erro claro, e não há dúvida sobre isso.

O pregador de Eclesiastes diz que nada há novo debaixo do sol (Ec 1.10). A raça humana pode dizer seguramente, quando encontra várias opções teológi­cas, que já viu isso e provou aquilo, geralmente várias vezes. O antigo mundo incrédulo era povoado por muitas divindades finitas. Embora o homérico Zeus fosse poderoso, seu poder tinha limites. Os deuses do Olimpo moravam junto conosco no universo. Mas esse tipo de teologia foi sustentado pelos incultos e supersticiosos. Entre os gregos educados, emergiram várias opções filosóficas, dentre elas o Estoicismo. Os estóicos eram panteístas, o que significa que eles identificavam o universo com Deus, e, enquanto continuavam sendo idólatras, demonstravam uma compreensão muito mais requintada dos mistérios que nos confrontam na criação. Esse paganismo requintado é ocasionalmente colocado nas páginas do Novo Testamento, acompanhado de um exemplo, mencionado anteriormente, que o relaciona ao ponto em questão. A citação diz: “Pois de Deus somos geração”. A citação pode ser do poeta Aratus ou do escritor de hinos Cleander. Seja qual for o caso, Paulo aplica essa observação pagã da seguinte forma: “Nele nós vivemos, e nos movemos, e existimos”. Em outras palavras, toda criatura vive no ambiente de Deus. Isso foi escrito antes do surgimento do Escolasticismo medieval.

Entre o povo da aliança de Deus, os judeus, nós encontramos uma concep­ção muito elevada da onisciência exaustiva. E claro que nós já vimos essa concepção refletida nas passagens da Escritura que já discutimos, mas, para aqueles que precisam reforçar essa percepção, nós podemos facilmente en­contrar outras passagens que falam sobre isso. Por exemplo, nos livros apócrifos nós encontramos afirmações como essa:

Tal homem se apavora com a simples vista dos olhos dos homens, e não sabe que os olhos do Senhor são dez mil vezes mais brilhantes que o sol, perscrutando todos os caminhos dos homens e considerando suas par­tes mais secretas. Ele conhecia todas coisas quando elas foram cria­das; da mesma forma, quando elas foram aperfeiçoadas, ele as conheceu (Siraque 23.19,20; KJV).

Em outras palavras, Deus conhecia tudo antes que qualquer coisa fosse criada.

Toda sabedoria vem do Senhor, e está com ele para sempre. Quem pode contar a areia do mar, os pingos da chuva e os dias da eternidade? Quem pode descobrir o peso dos céus, o ar da terra, as profundezas e a sabedoria?

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A sabedoria foi criada antes de todas as coisas, e o entendimento da prudên­cia foi criado desde toda a eternidade (Siraque 1.1-4; KJV).

Quem pode contar o número de dias da eternidade? A resposta é: Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Não, a eternidade não tem dias literais.

Pois o Espírito do Senhor encheu a terra: e aquele que continha todas as coisas tinha conhecimento da voz (Sabedoria de Salomão 1.7; KJV).

Nós já discutimos a doutrina ensinada por Jeremias, de que Deus enche os céus e a terra. Nenhum lugar o exclui. Ou, como essa passagem de 2 Esdras diz, seu Espírito enche o universo. Ele, obviamente, não ignora nada do que acontece no universo.

Sim, o Espírito do Deus Todo-Poderoso, que fez todas as coisas e explorou todas as coisas escondidas nos segredos da terra, certamente conhecia nossas invenções e o que nós pensamos em nosso coração, até mesmo no coração daqueles que pecam e escondem seus pecados. Portanto, o Senhor descobriu todas as suas obras, e ele os envergonhará (2 Esdras 16.62: KJV).

Nós vemos aqui as implicações morais da onisciência exaustiva de Deus. O fato de que Deus conhece é, e deve ser mesmo, uma questão que se refere àqueles que querem esconder o pecado em seu coração.

Então Suzana clamou em alta voz, dizendo: Oh, eterno Deus, que conhe­ce os segredos e conhece todas as coisas antes que elas aconteçam (Suzana 42; KJV).

Suzana sabia muito mais do que nossos modernos mestres “racionalistas”. Antes que qualquer coisa viesse à existência, Deus a conhecia. Se algo vem a acontecer, Deus o sabia com antecedência. Essa tem sido a simples fé dos crentes há milênios. Suzana não tinha lido Tomás de Aquino. Se Deus conhece todas as coisas antes que elas aconteçam, como Suzana cria, isso significa necessariamente que o conhecimento de Deus é imutável. Seu conhecimento não aumenta quando ele interage com o mundo.

Logicamente essas citações apócrifas não possuem a mesma autoridade das afirmações feitas na Escritura, elas foram feitas simplesmente para mos­trar que a crença na onisciência exaustiva de Deus era tida como certa muito antes do primeiro escolástico medieval “jogar lama” nas águas teológicas. Dito de outra forma, a compreensão ortodoxa da onisciência de Deus é historica­mente antiga e pode ser demonstrada como tal.

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Fundamentos do Conhecimento Exaustivo 141

O ponto não precisa ser desnecessariamente insultante, mas o ídolo do racio­nalismo não precisa se alegrar. Aqueles que exaltam os poderes da razão têm muitos problemas quando se deparam com uma das missões que a razão pode realizar, tais como a elucidação de sentenças. Dessa forma, a acusação de que aqueles que são fiéis ao ensino bíblico nessa questão são enganados pelas categorias patrística ou medieval pode, efetivamente, ser um ponto de debate, mas continuará sendo efetivo somente até que aqueles que têm sido influenciados por ele descubram o quão falso ele é.

Relevância para o evangelho

Como a Escritura diz, o evangelho começa com nossa necessidade do evan­gelho. Como pecadores, nós somos unidos em uma profunda aliança com Adão. Nós somos unidos a Adão em sua desobediência e morte, e não temos escapa­tória individual. Nós fomos lançados no pecado por meio de uma cabeça corporativa e devemos ser removidos do pecado da mesma forma. Mas nós precisamos perceber mais do que somente o fato de que nós estamos “em pecado”. Nós estamos em pecado e sob a ira de um Deus santo: o pecado de Adão determinou o que nós somos. Mas como um Deus santo responde àquilo que nós somos? Sua ira é ardente contra nós - até mesmo os cristãos, por natu­reza, estavam sob sua ira antes da intervenção da graça. Nada, em nossa natureza e caráter, distinguia-nos daqueles que não são salvos.

O evangelho veio a nós enquanto nós estávamos nessa condição - unidos a Adão e debaixo da ira de Deus. Para nossa salvação, a Escritura nos manda atentar para a pessoa e obra de nosso Senhor Jesus Cristo. Com relação à sua pessoa, nosso Salvador serve como uma ponte entre Deus e o homem, e ele mesmo é tanto Deus quanto homem. Com relação à sua obra, nosso Salvador, o Deus/Homem, morreu na cruz para garantir o perdão de todo o seu povo, e ele ressurgiu dos mortos para garantir a justificação desse povo. Por tudo isso, a resposta exigida do pecador é arrependimento e fé. Mas, para que ninguém se glorie, tudo isso é dom de Deus, dado por ele como instrumento de salvação e usado para edificar o fundamento de nossa salvação, que é, novamente, a pessoa e obra de nosso Senhor.

Nosso propósito aqui é nos concentrarmos em um aspecto disso. O evange­lho pode ser derrotado quando nós remendamos qualquer um desses aspectos, mas em nossos dias uma das formas mais comuns (e encobertas) de atacar o evangelho é por meio da tentativa de colocar certos atributos de Deus “sobre a mesa” para que sejam debatidos entre os cristãos.

De fato nós podemos ser cristãos e discordar sobre o quanto Deus conhe­ce? A resposta é não e está diretamente relacionada ao nosso resumo do evan-

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gelho feito acima. A Bíblia, repetida e enfaticamente, relaciona nossa salvação mediante o evangelho com uma compreensão adequada de quem é Jesus. “Quem é o mentiroso, senão aquele que nega que Jesus é o Cristo? Este é o anticristo, o que nega o Pai e o Filho” (lJo 2.22). “Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo é nascido de Deus; e todo aquele que ama ao que o gerou também ama ao que dele é nascido” (lJo 5.1). Para ser considerada “nascida de Deus”, a pessoa deve afirmar que Jesus é o Cristo. Mas o que esse título - Cristo - envolve? João não quer dizer que qualquer pessoa que use a palavra “Cristo” esteja automaticamente salva. Isso incluiria virtualmente cada grupo cúltico na história da Igreja. Esse título se refere à confissão própria de Cristo, uma confissão que deve ser definida biblicamente.

Em Cristo, o mistério da Divindade se manifestou. “Aquele que foi manifes­tado na carne foi justificado em espírito, contemplado por anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, recebido na glória” (lTm 3.16). “Sabeis também que ele se manifestou para tirar os pecados, e nele não existe pecado (lJo3.5). “Aquele que pratica o pecado procede do diabo, porque o diabo vive pecando desde o princípio. Para isto se manifestou o Filho de Deus: para des­truir as obras do diabo” (lJo 3.8). Nossa salvação foi uma manifestação. Essa afirmação nos leva à questão óbvia - manifestação de quê? A resposta da Escritura é clara - Em Cristo, Deus se manifestou em carne para a nossa salvação. Afinitude da humanidade de Cristo foi “acrescentada” à sua divinda­de, em vez de ser uma “subtração infinita” dela.

“Nisto se manifestou o amor de Deus em nós: em haver Deus enviado o seu Filho unigénito ao mundo, para vivermos por meio dele” (1 Jo 4.9). Cristo é o Filho “unigénito” do Pai. Esse termo se refere ao relacionamento essencial único entre o Pai e o Filho.

Essas questões que rodeiam a Divindade e a encarnação de Cristo podem, em um primeiro momento, parecer antiquadas e sem aplicação prática para algumas pessoas. Os cristãos evangélicos, instintivamente, entendem a impor­tância da morte de Cristo sobre a cruz, isto é, eles entendem a importância de sua obra, mas uma compreensão adequada de sua pessoa é igualmente im­portante. Considere o franco ensino da Bíblia sobre esse assunto: nossa salva­ção repousa sobre uma confissão correta da identidade de Cristo.

“Aquele que confessar que Jesus é o Filho de Deus, Deus permanece nele, e ele, em Deus” (lJo 4.15). “Quem é o que vence o mundo, senão aquele que crê ser Jesus o Filho de Deus?” (lJo 5.5). “Também sabemos que o Filho de Deus é vindo e nos tem dado entendimento para reconhecermos o verdadeiro; e estamos no verdadeiro, em seu Filho, Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna” (lJo 5.20,21). Qualquer coisa menos do que essa confissão é um ídolo de uma espécie ou outra, e nós sabemos que os ídolos não salvam. Aquele que confia neles se envergonhará.

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Fundamentos do Conhecimento Exaustivo 143

Como cristãos, nós confessamos o Deus que se tomou homem. As opor­tunidades para que homens engenhosos roubem nossa herança, nesse ponto, são óbvias.

Porque muitos enganadores têm saído pelo mundo fora, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne; assim é o enganador e o anticristo. Acautelai-vos, para não perderdes aquilo que temos realizado com esfor­ço, mas para receber completo galardão. Todo aquele que ultrapassa a doutrina de Cristo e nela não permanece não tem Deus; o que permanece na doutrina, esse tem tanto o Pai como o Filho (2Jo 7-9; cf. lJo 4.2,3).

A Bíblia nos ensina, nos termos mais fortes possíveis, que nossa salvação depende da permanência fiel na doutrina de quem Cristo é.

Como cristãos, nós cremos no nome de Jesus: “O seu mandamento é este: que creiamos no nome de seu Filho, Jesus Cristo, e nos amemos uns aos outros, segundo o mandamento que nos ordenou” (lJo 3.23). “Estas coisas vos escre­vi, a fim de saberdes que tendes a vida eterna, a vós outros que credes no nome do Filho de Deus” (1 Jo 5.13). No mundo do Novo Testamento, o nome era uma coisa muito maior do que um simples rótulo. Crer no nome de Jesus Cristo é inseparável de crer em sua verdadeira identidade.

E crer no nome de Jesus era essencial para a salvação. Essa questão é clarafnente apresentada no evangelho.

Portanto, a forma pela qual a pessoa compreende a onisciência de Deus afeta o evangelho, sustentando-o ou derrubando-o. Nós vimos que é necessário afir­mar que Jesus é Deus para que uma pessoa seja considerada nascida de Deus. E como essa afirmação seria exigida de nós com relação a Cristo, mas não com relação a Deusl Nós não queremos ser encontrados na curiosa posição de afir­mar que, para sermos salvos, devemos afirmar a plena divindade de Cristo, mas que não é necessário afirmar a plena divindade de Deus. Se a onisciência é um atributo essencial da Divindade, como foi mostrado acima, então uma negação da onisciência é uma negação da Divindade. E isso que estamos discuttindo quando tratamos dos atributos de Deus - a identidade de Deus, a divindade de Deus. Quando Paulo reprova os coríntios, porque eles estavam se desencaminhando, ele reconhece que falsos mestres usam o nome de Jesus.

Mas receio que, assim como a serpente enganou Eva com sua astúcia, assim também seja corrompida a vossa mente e se aparte da simplicidade e pureza devidas a Cristo. Se, na verdade, vindo alguém, prega outro Jesus que não temos pregado, ou se aceitais espírito diferente que não tendes recebido, ou evangelho diferente que não tendes abraçado, a esse, de boa mente, o tolerais (2Co 11.3,4).

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“Outro” Jesus é identificável somente pelos atributos que lhe são reconhecidos. Se alguém alegar que conhece um certo Henry Simth, outra pessoa pode dizer: “Eu também o conheço!”. Mas quando essas duas pessoas começam a conversar, descobrem que um Henry Smith tem l,80m de altura e o outro tem l,50m. Um pesa 100 Kg e o outro pesa 60 Kg. Não levaria muito tempo para que elas desco­brissem que estão falando sobre pessoas diferentes que possuem o mesmo nome. Essa descoberta é feita com base nas diferenças entre os seus atributos.

Nós aprendemos acima que a negação do Filho é equivalente à negação do Pai. Esse é um caminho de duas vias: a negação do Pai é uma forma indireta de negar o Filho.

Essa diferença é análoga à diferença entre os cristãos e os mórmons. Os mórmons usam o nome Jesus Cristo, mas têm uma compreensão diferente de sua Pessoa, de seus atributos e de seu caráter. Os cristãos, portanto, podem dizer que não estão falando sobre o mesmo Jesus sobre o qual os mórmons falam, muito embora tanto cristãos quanto mórmons se refiram a todos os mes­mos eventos de sua vida, morte e ressurreição e extraiam todas as mesmas informações do mesmo Novo Testamento. Os mórmons podem dizer que estão se referindo ao Jesus de Nazaré, e não ao Jesus da Guatemala, mas isso não importa. Eles negam certos atributos essenciais que a Escritura atribui a Cristo, de forma que eles estão seguindo um ídolo de sua própria imaginação. O fato de que eles colocam um nome bíblico sobre esse ídolo não é relevante. Quando os israelitas cultuaram o bezerro de ouro que os tinha “tirado da terra do Egito”, eles estavam adorando um ídolo - muito embora eles tivessem sido tirados da terra do Egito. De forma semelhante, nossa preocupação é que essa nova definição da onisciência despoje Deus de sua divindade. Sendo assim, nós não estamos falando sobre a mesma pessoa, e, quando é afirmado que Cristo é Deus, essa afirmação não tem valor. O Pai já foi negado. Como aceitar o Filho?

Nós podemos ver que o ensino do teísmo relacional é, portanto, um ataque ao evangelho. O evangelho não é uma abstração suspensa no espaço. Nós devemos definir o evangelho pela forma na qual ele aparece na Escritura - contextuai e exegeticamente. Nossa informação sobre o conteúdo do evan­gelho, sua relação com verdades afins e a forma bíblica de compreender e obedecer devem ser extraídas das Escrituras. Nós fizemos isso. Nós vimos como a Bíblia descreve Deus e como ela relaciona a confissão adequada da divindade de Cristo à salvação. Nós devemos concluir que o evangelho re­pousa sobre uma correta compreensão de Deus e que essa compreensão não é opcional ou aberta à discussão.

Viu que não havia ajudador algum e maravilhou-se de que não houvesse um intercessor; pelo que o seu próprio braço lhe trouxe a salvação, e a sua própria justiça o susteve (Is 59.16).

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Fundamentos do Conhecimento Exaustivo 145

Para sermos salvos, nós devemos conhecer o Senhor, e devemos conhecê-lo como ele se revela. Isso significa que a salvação não pode ser compreendida fora dos limites daquilo que nós chamamos de teísmo clássico. “Grande é o S e n h o r nosso e mui poderoso; o seu entendimento não se pode medir” (SI147.5). De forma simples, isso significa que o Deus que salva conhece todas as coisas. Se ele não conhecesse tudo, inclusive o futuro, ele não seria o Deus revelado nas Escrituras, o Deus que salva.

Nós não devemos ser levianos com Deus. Deus não é restrito àquilo que ele é capaz de fazer. Nada fora de seus bons propósitos, de sua própria natureza e caráter pode restringi-lo de qualquer forma. “Eis que isso são apenas as orlas dos seus caminhos! Que leve sussurro temos ouvido dele! Mas o trovão do seu poder, quem o entenderá?” (Jó 26.14). Ninguém entende a majestade de nosso Deus, nem mesmo os nossos modernos teólogos que profundamente desejam um deus mais simpático e afável. Bem, eles podem ter um.

Aplicações finais

Mesmo depois de tudo isso, pode ser que alguém ainda queira perguntar qual é a diferença prática que a doutrina da onisciência faz. Por que ela é importante? As idéias têm conseqüências e objetivos, e essas idéias do teísmo da vontade livre são extremamente perigosas em suas implicações práticas no dia-a-dia, e não somente em suas implicações para a eternidade. Alguns cris­tãos suspeitam de “toda essa doutrina”, mas entendem a importância da obedi­ência cristã prática. Embora suas suspeitas não tenham base nas Escrituras, sua ênfase sobre a santidade prática é bíblica.

Sendo assim, quais são algumas das ramificações práticas dessa doutrina? O ponto não é que cada defensor do teísmo da vontade livre ensina essas implicações que serão apresentadas, mas que o ensino do teísmo da vontade livre tem essas implicações, sejam elas planejadas ou não.

A Bíblia diz que essa doutrina que diz que “Deus não conhece” cria a tenta­ção de tolerar o pecado secreto e é agradável àqueles que querem manter seus pecados em segredo. Dessa forma, a desobediência aberta pode ser checada pelo olho humano, mas os pecados secretos não estão mais ao alcance dos olhos de Deus. Por exemplo, logo surge a tentação de viciar-se em maus pen­samentos. Se Deus não conhece meus pensamentos, e nunca poderá conhecê- los, então a quem eu devo prestar contas? Com o tempo, esse raciocínio con­duz à tolerância para com o pecado aberto, inclusive o pecado de negar o ensino da Bíblia - o que já foi discutido.

E dizem: O S enhor não o vê; nem disso faz caso o Deus de Jacó. Atendei, ó estúpidos dentre o povo; e vós, insensatos, quando sereis prudentes? O

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que fez o ouvido, acaso, não ouvirá? E o que formou os olhos será que não enxerga? Porventura, quem repreende as nações não há de punir? Aquele que aos homens dá conhecimento não tem sabedoria? O S en h o r conhece os pensamentos do homem, que são pensamentos vãos (S I 94.7-11).

Relacionado a isso, a doutrina do teísmo da vontade livre cria a tentação de confessar o pecado parcialmente. Se uma pessoa tem o hábito de pensar sobre o que Deus não sabe, as oportunidades de auto-fraude são grandes. Mas qualquer tentativa de confessar o pecado de forma desonesta é uma negação prática da onisciência de Deus, até mesmo entre aqueles que afirmam a doutrina com seus lábios. Nós não devemos nos surpreender com o fato de que as negações teológi­cas de sua onisciência dêem espaço adicional para que o pecado se esconda.

Um defensor do teísmo da vontade livre pode responder que pode afir­mar com perfeita coerência que Deus de fato descobre cada pecado, e que Deus de fato julga cada motivo. A perfeita justiça será cumprida no último dia. Enquanto essa posição é mais admirável do que insistir que Deus não descobrirá quais coisas passaram despercebidas até o romper do último dia, um fato importante ainda deve ser observado sobre essa afirmação. Esse é um recuo radical do método exegético adotado por toda essa escola de pensamento. Anteriormente nós vimos que o método insiste em que pa­lavras como buscar devem significar a mesma coisa quando aplicadas a Deus e quando aplicadas aos homens. Portanto, Deus deve ser ignorante, pois ele realmente busca. Palavras como lembrar-se e sofrimento devem ser aplicadas da mesma forma.

Então, arrependeu-se o S en h o r de ter feito o homem na terra, e isso lhe pesou no coração (Gn 6.6).

Ora, quando eu me arrependo de algo que tenha feito, é porque eu pequei ou meti os pés pelas mãos. Ou eu desobedeci ou eu cometi um erro. Portanto, por que eu não emprego o método aqui? Por que recuar agora? Se Deus pode errar ao fazer o homem, como Gênesis claramente afirma, então qual princípio o impedirá de errar ao julgá-los? Se um Deus imutável e inerrante me diz que trará toda intenção e toda palavra frívola a um perfeito julgamento, então eu faço muito bem em dar-lhe ouvidos. Mas se eu recebo a mesma informação de um deus mutável, que de vez em quando se esquece, outras vezes volta atrás e outras vezes admite que fez alguma coisa errada, como eu saberei que um julgamento perfeito acontecerá? Se eu adoro a um deus interativo que de vez em quando diz “ôôôpa!”, então como posso esperar o cumprimento de suas promessas sobre a terra? O melhor que posso fazer é ter certeza de que ele tentará julgar corretamente. Se ele se lembrar, é claro.

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Fundamentos do Conhecimento Exaustivo 147

Pensar que Deus é limitado em seu conhecimento também cria a tentação de adorá-lo formal e externamente. “Lisonjeavam-no, porém de boca, e com a língua lhe mentiam” (SI 78.36). De onde vem esse pecado de hipocrisia, senão de uma compreensão deficiente daquilo que Deus conhecei Quando alguém mente a Deus, essa pessoa tem que crer, em algum nível de seu ser, que Deus pode ser enganado. Mas Deus só pode ser enganado se ele for limitado em seu conhecimento.

Um Deus exaustivamente onisciente está além da fraude, e meditar sobre isso é sempre bom para a alma.

Conclusão

Nosso Deus é um Deus etemo. Seu Espírito é etemo (Rb 9.14). Sua glória é eterna (IPe 5.10). Como nós vimos, isso significa muito mais do ele ser velho. Como ele é etemo, e não simplesmente longevo, nós podemos nos refugiar nele. “O Deus etemo é a tua habitação e, por baixo de ti, estende os braços eternos” (Dt 33.27).

Espera-se que até mesmo os pagãos entendam esse aspecto eterno de sua natureza e de seu caráter. “Os atributos invisíveis de Deus, assim o seu etemo poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, des­de o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis” (Rm 1.20). O fato de que cristãos professos negam nas Escrituras o que até mesmo os pagãos devem ver na ordem criada está quase além da compreensão. Muito mais é exigido do que a simples afirmação da palavra eterno. A palavra deve ser usada no sen­tido bíblico. E se os pagãos não têm justificativa pelo que fizeram, como nós devemos responder ao Senhor se renunciarmos àquilo que ele nos revelou?

Assim, ao Rei, etemo, imortal, invisível, Deus único, honra e glória pelos séculos dos séculos. Amém (lTm 1.17).

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BONDADE

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10Implicações Pastorais do

Teísmo RelacionalThomas K. Ascol

Em muitos aspectos, o teísmo relacional é um encaixe teológico perfeito para o zeitgeist americano contemporâneo. Em uma época na qual a empatia supera a veracidade, nós somos mais confortados por alguém que sente a nos­sa dor do que por alguém que fala honesta, inequívoca e consistentemente. Não nos causa desapontamento se você falha em cumprir as promessas que fez, mas não cessa de nos reafirmar o que realmente sente por nós. O deus do teísmo relacional preenche perfeitamente esse critério.

Greg Boyd alega que as diferenças entre o teísmo relacional e a ortodoxia são “relativamente sem importância”, “periféricas”, e “menores”.1 Outros ca­pítulos já destrincharam completamente o teísmo relacional pelas perspectivas bíblica, doutrinária e histórica. O teísmo relacional não pode ser legitimamente classificado como um subgrupo do evangelicalismo, pois tem uma compreen­são radicalmente diferente da realidade e, portanto, do Deus real. Suas implica­ções para a vida cristã são tão profundas quanto devastadoras.

Algumas dessas implicações são conscientemente afirmadas e celebra­das pelos proponentes do teísmo relacional. Por exemplo, Boyd acha que é pastoralmente útil para aconselhar uma pessoa que passou por uma grande tragédia o fato de que Deus ficou tão surpreso quanto qualquer pessoa com o que aconteceu. Na mente de Boyd, isso faz com que Deus seja mais gentil e simpático e, portanto, mais confiável.2 Outras implicações são mais sutis e podem até ser renunciadas pelo teísmo relacional, mas, como nós veremos, são inerentes a esse sistema de pensamento. Uma pessoa não pode possuir uma floresta sem possuir as árvores, não importa quão veementemente ela proteste o contrário.

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152 Eu não sei mais em quem tenho crido

Mina a confiança nas Escrituras

Boyd argumenta que “se nós simplesmente aceitarmos o claro significado da Escritura” nós concordaremos com o teísmo relacional, que diz que Deus às vezes “se arrepende de decisões que havia tomado”, “questiona aspectos de eventos futuros”, “experimenta frustração porque os agentes livres escolhem cursos improváveis de ação” e “genuinamente muda de opinião sobre ações que pretendia tomar”.3 Não obstante suas afirmações otimistas, a perspectiva relacional realmente entra na questão do “claro significado” das Escrituras e viola princípios fundamentais de interpretação. O resultado é uma imensa nu­vem de dúvidas pairando sobre a perspicuidade e confiabilidade da Escritura.

Um princípio hermenêutico há muito tempo sustentado declara que passa­gens que claramente afirmam uma doutrina ou princípio devem ser usadas para lançar luz sobre passagens narrativas.

Interprete o material histórico pelo material didático. O material histórico é uma narração, um registro daquilo que aconteceu no passado. O mate­rial didático é material destinado ao ensino. E importante que o material didático interprete o material histórico, e não o contrário.4

A importância desse princípio orientador pode ser demonstrada pela sua aplicação no ensino bíblico sobre a pecaminosidade da raça humana. Romanos 3.23 faz uma afirmação direta da universalidade da pecaminosidade humana: “Todos pecaram e carecem da glória de Deus” . Essa passagem didática lança luz sobre passagens narrativas ou testemunhais que tratam do mesmo assunto. Por exemplo, a história da vida de Daniel pode levar alguém a crer que, como não há registro de qualquer pecado que ele tenha cometido, ele tenha sido um homem sem pecado. Se as passagens narrativas sobre sua vida forem tudo o que nós tivermos, nós não poderemos refutar essa alegação.

Se o princípio articulado acima for seguido, não haverá perigo de se chegar a essa conclusão. Embora a narrativa possa sugerir que não houve pecado em Daniel, a passagem didática nos assegura que houve. Dando prioridade ao ensino que é claramente afirmado com relação ao pecado e usando a luz que ele irradia sobre a história da vida de Daniel, nós não faremos qualquer alega­ção de impecabilidade nele.

Os teístas relacionais viram-se contra esse princípio de interpretação. John Sanders vai a grandes profundidades para estabelecer padrões de passagens narrativas sobre o relacionamento divino-humano e usa esses padrões para reinterpretar Escrituras didáticas claras. As histórias de Adão, Noé, Abraão, Gideão, Moisés e Davi são citadas como exemplos de mudança de opinião, arrependimento, desapontamento ou de descuido da parte de Deus sobre o que

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Implicações Pastorais do Teísmo Relacional 153

aconteceu.5 O panorama dessas histórias é apresentado como evidência de que “Deus está em um dinâmico relacionamento toma-lá-dá-cá com os huma­nos, no qual Deus às vezes não consegue o que quer”.6

Os esforços para se interpretar esses textos à luz de passagens didáticas que afirmam o controle soberano de Deus sobre pessoas e eventos (o que Sanders chama de “textos de pancausalidade”) são acusados de tratamento hermenêutico inadequado”.7 Afirmações como as que se seguem são todas reinterpretadas à luz da “evidência” narrativa da relacionalidade de Deus.

Não poderei eu fazer de vós como fez este oleiro, ó casa de Israel? - diz o S e n h o r ; eis que, como o barro na mão do oleiro, assim sois vós na minha mão, ó casa de Israel (Jr 18.6).

O coração do homem traça o seu caminho, mas o S en h o r lhe dirige os passos (Pv 16.9).

Como ribeiros de águas, assim é o coração do rei nas mãos do S e n h o r ;

este, segundo o seu querer, o inclina (Pv 21.1).

Respondeu-lhe o S e n h o r : Quem fez a boca do homem? Ou quem faz o mudo, ou o surdo, ou o que v ê , ou o cego? Não sou eu, o S en h o r? ( E x 4.11)

Alguns resultados seriam divertidos, se os riscos não fossem tão grandes.Por exemplo, Provérbios 16.9 e 21.1 são usados para significar somente

que “Deus direciona os passos de seu povo (16.9) e orienta o rei de Israel (21.1) quando ele pede a sabedoria de Deus”. Êxodo 4.11 toma-se nada mais que “uma afirmação geral de que essas coisas acontecem no mundo de Deus” e uma admissão de que ele assume “plena responsabilidade” por criar um mun­do no qual os defeitos são possíveis.8 Com seu pressuposto de que Deus tem conhecimento limitado daquilo que acontecerá no futuro, o teísmo relacional precisou reconstruir afirmações claras da Escritura que dizem o contrário dis­so. A história de José é um bom estudo de caso. No fim da narrativa, José faz sua famosa declaração aos seus amedrontados irmãos, que reflete sua simples e completa confiança na soberania de Deus, que detalhou os eventos de sua vida. Essa é a explicação divinamente inspirada dos eventos de sua vida: “Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tomou em bem, para fazer, como vedes agora, que se conserve muita gente em vida” (Gn 50.20).

A interpretação que Sanders faz desse versículo é extremamente desde­nhosa. Ele escreve: “Eu entendo esse texto como significando que Deus reali­zou algo bom a partir de ações más”. Mais além ele comenta: “Embora [José] reconheça que eles o venderam para o Egito, ele sugere que se olhe pelo lado

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154 Eu não sei mais em quem tenho crido

brilhante - o que Deus fez por meio disso. Sua vida e a dos egípcios foram poupadas dos efeitos devastadores da fome”.9 De uma declaração teológica profunda sobre a incansável providência de Deus, Sanders reduz as palavras de José à simples capacidade de enxergar o lado bom em tudo.

Seja intencional ou não, a leitura relacional das Escrituras, se for seguida consistentemente, faz com que os ensinos diretos das Escrituras sejam um vácuo ou incompreensíveis.

Mina a confiança em Deus

A visão teísta relacional de Deus é uma visão que rouba o conforto e a confiança dos crentes. A compreensão tradicional de Deus dá peso total àque­las declarações bíblicas que o descrevem como “Senhor Deus Todo-Podero- so... Rei das nações!” (Ap 15.3), aquele que “governa as nações” (SI 22.28), “domina a fúria do mar” (SI 89.9) e “reinará para sempre” (Êx 15.18; cf. SI 93.1; 96.10; 9.1; 99.1; 146.10). A declaração inspirada de Nabucodonosor so­bre o exercício meticuloso e irrestrito da providência de Deus não causa qual­quer embaraço ao teísmo ortodoxo:

Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes? (Dn. 4.35)

O teísmo relacional rejeita o ensino sobre Deus e sua providência que esse versículo retrata, porque ele não se “encaixa” na “história bíblica” como ele a vê.10 Em vez de reconhecer Deus como o Governador sem rival do universo, os teístas da vontade livre querem retratá-lo como o “Jogador cósmico”. Essa compreensão de Deus supostamente tece conforto e esperança nos crentes, mas ela de fato destrói o próprio fundamento que a Bíblia estabelece para confiarmos em Deus.

Sanders é totalmente direto ao expressar seu desejo de substituir Deus como Rei por Deus como aquele que “assume riscos”.11 Deus assumiu um risco ao criar um mundo que ele povoou com criaturas dotadas de desejos livres. Ele fez isso em um esforço de realizar “o projeto divino”, que “envolve a criação de outros significantes que são ontologicamente distintos de si mesmo e sobre os quais ele derrama seu cuidado amoroso na expectativa de que eles respondam em amor”.12 Esse risco, argumenta Sanders, tem uma “grande chance de su­cesso e pouca possibilidade de falha”. De fato, “embora o pecado seja possível- por causa do tipo de mundo - ele simplesmente não era plausível em vista do bom ambiente que Deus estabeleceu e do amor que ele expressou”.13

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Implicações Pastorais do Teísmo Relacional 155

Mas qualquer leitor honesto da história ou da Escritura demonstra que o “projeto divino”, como Sanders o define, é um erro colossal. Jesus disse que somente uns “poucos” entrarão pela porta estreita e trilharão o caminho estrei­to do Deus amoroso (Mt 7.13,14), e análises missiológicas da história cristã certamente confirmam essa proclamação. Se o pecado e a degradação do mundo são resultado de uma ruptura altamente improvável da aventura criativa de baixo-risco de Deus, como se pode esperar que alguém confie nele para “projetos” futuros?

O teísmo relacional reduz Deus a um jogador cósmico - e esse jogador nem é vitorioso. Ele criou bilhões de portadores de sua imagem, apostando que eles escolheriam amá-lo e confiar nele. Isso era uma “coisa quase certa” por causa de seu amor e de sua provisão. Mas, em termos de uma completa análise quantitativa, sua aposta foi um fracasso. Desde a criação até o presente, o Deus relacional tem assumido riscos somente para experimentar repetidos fra­cassos. Tanto a Bíblia quanto a história estão cheias de registros de pessoas e “projetos” com os quais ele contou em vão.14

Como esse deus pode ser confiável? Se aquilo que ele queria fazer tem falhado tão repetida e catastroficamente, por que devemos depender dele para cumprir suas promessas, por mais bem-intencionado ele tenha sido ao fazê-las? Eu preferiria arriscar todas as finanças de minha família em um bilhete de loteria a confiar minha alma a um apostador com um cartel de vitórias tão pequeno.

Boyd não vê esse problema e, de fato, argumenta que a posição do teísmo relacional o deixa mais confiável do que a posição clássica. Em vez de ver Deus governando meticulosamente todos os negócios da vida por seus santos e bons propósitos, Boyd prefere pensar no exercício da providência de Deus como uma espécie de RPG, no qual o autor cria um grande número de enredos que o leitor pode progressivamente selecionar conforme o desenvolvimento da aventura no decorrer do livro. De forma semelhante, “o Deus do possível é o autor de toda a espinha central da história da criação e oferece alternativas possíveis às suas criaturas humanas e angélicas”, deixando, dessa forma, “vá­rios lugares para que os indivíduos exerçam sua vontade livre”.15

Um Deus que conhece exaustivamente o futuro ou que o ordena não é digno de confiança, diz Boyd, porque aquela coisa ruim que ele sabe que acon­tecerá a você dentro de dois dias infalivelmente acontecerá, não importa o que você faça ou deixe de fazer. Ele reclama:

Como a crença nesse “Deus fiel” o ajudará? Por que você realmente está confiando em Deus? Por simplesmente saber desde toda a eternidade que um terrível evento vai acontecer a você daqui a dois dias? Que segurança há nisso? Como essa crença pode ajudá-lo?16

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É muito melhor, pondera Boyd, ter um deus que conhece esse evento não como algo inevitável, mas simplesmente como uma de muitas possibilidades que podem sobrevir a você daqui a dois dias. Nesse caso, Deus trabalha para encorajá-lo a criar um futuro que evite essa possibilidade má - especialmente “se você for uma pessoa que freqüentemente fala com Deus e o ouve” e “tem família e amigos que oram por você com uma base consistente”. Nesses casos, você pode confiar em Deus “para evitar certas possibilidades futuras que ele vê que estão se aproximando”.17

Logicamente, o que Boyd falha em discutir é o motivo pelo qual alguém deseja­ria confiar nos cuidados de um deus cujas melhores intenções são frustradas repe­tidamente no decorrer da história. Além disso, um episódio extraído de sua própria experiência pastoral protesta contra essa teoria. Ele conta a história de “Suzana”, uma jovem mulher que “cresceu em um maravilhoso lar cristão”, que era uma “discípula piedosa e fervorosa de Jesus Cristo” desde a sua mocidade e há muito tempo tinha o desejo de ser missionária em Taiwan.18 Ela orava diariamente para que seu futuro marido, que deveria compartilhar desse desejo de fazer missão em Taiwan, “permanecesse fiel ao Senhor e conservasse puro o coração”. Ela encon­trou e namorou um homem assim por mais de três anos, enquanto estava na facul­dade. Depois de meses de oração, encontros e conversas com seus pais, pastor e amigos, todos concordaram que “seu casamento era da vontade de Deus”. A pró­pria Suzana recebeu uma confirmação especial disso enquanto orava certo dia.

Pouco tempo depois do casamento, enquanto estava em uma escola de missionários, o marido de Suzana começou a adotar um padrão de adultério e abuso, e recusava-se a ser ajudado ou a arrepender-se. Quando ele pediu di­vórcio, ela estava grávida, “irada”, “emocionalmente destruída e espiritualmen­te arrasada”. Para ajudá-la a lidar com a devastação de sua provação, Boyd lhe ofereceu “um caminho alternativo para compreender a situação”. Ele es­creve: “Eu sugeri a ela que Deus estava tão arrependido pela confirmação que tinha dado a ela quanto pela decisão de fazer Saul rei de Israel (ISm 15.11, 35; veja também Gn 6.5, 6)”.19 Mas por que Deus não trabalhou em Suzana para encorajá-la a criar um futuro que evitasse essa possibilidade? Certamente ela se encaixa no perfil apresentado por Boyd do tipo de pessoa que pode confiar no deus do teísmo relacional para fazer exatamente isso.

Como nós podemos confiar em Deus para “inspirar” seus filhos a tomarem certas decisões, quando ele mesmo é tão falível quanto nós porque não tem conhecimento exaustivo do futuro? E difícil ver como o teísmo relacional não reduz Deus ao nível de um “homem do tempo” dos flashes de meteorologia dos jornais - alguém que, por ser um especialista em sua área, tem acesso a infor­mações que não estão disponíveis a outras pessoas e que, por isso, está em melhor posição que os demais para fazer suposições sobre o futuro. Permane­ce a questão: por que nós deveríamos confiar nesse Deus?

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Uma coisa é basear nosso picnic nas previsões do tempo. Se uma chuva inesperada arruinar o seu dia, você pode ficar desapontado e até mesmo frus­trado com o meteorologista e com suas previsões, mas você reconhece que ele está apenas fazendo suposições sobre padrões meteorológicos. Você não es­pera que ele seja infalível. Contudo, nós temos expectativas muito mais eleva­das em relação a Deus. Se ele nos inspira a ações das quais ele posteriormente se arrepende, então, em última instância, ele não é confiável.

A visão clássica de Deus nunca nos levará a essa conclusão. Se, ao contrá­rio do que diz o teísmo relacional, Deus conhece o fim desde o começo (Is 46.10) e pensa e age por caminhos que são muito mais elevados que os nossos caminhos (Is 55.8,9), então nós podemos confiar nele para fazer todas as coi­sas - inclusive as coisas inexplicavelmente más - para o nosso bem (Rm 8.28). Remova o controle soberano de Deus sobre a vida e seu completo conheci­mento do futuro e o próprio fundamento para confiar nele começa a ruir.

Mina a fé em Cristo

A revisão que o teísmo relacional faz da natureza do futuro e de Deus corrói o próprio coração da fé cristã ao minar a fé em Jesus Cristo. Sem dúvida, essa é uma das implicações não-pretendidas pelos proponentes do teísmo relacional- e uma implicação que eles rejeitam fortemente. Mas quando a presciência limitada de Deus é aplicada à encarnação e à crucificação, a credibilidade de Cristo e do testemunho bíblico de Cristo ficam comprometidos.

No esquema relacional, Jesus não sabia - não podia saber - de antemão que seria chamado para morrer pelos pecadores. Sanders, sem qualquer constrangi­mento, reconstrói os eventos que conduziram a e que estiveram em tomo da morte de Cristo para retratar o Pai e o Filho decidindo somente no último minuto que Jesus tinha que morrer. “Embora a Escritura afirme que a encarnação foi planejada desde a criação do mundo, isso não aconteceu com a cruz. O caminho da cruz aparece somente na interação de Cristo com os humanos na história”. Somente na oração agonizante no Getsêmani, “Pai e Filho... chegaram ao enten­dimento de que não havia outra forma”. Mesmo depois dessa descoberta, ainda paira sobre Jesus a pergunta: “Será que isso vai dar certo?”.20

As predições de Jesus sobre sua traição, morte e ressurreição são conside­radas como observações gerais de possibilidades futuras, e não como evidên­cias de que ele era o Messias. Boyd crê que “a Escritura faz mais sentido quando nós entendemos as predições de Jesus sobre a traição de Judas” como uma predição bem-informada baseada em um bom discernimento do caráter de Judas.21 Na opinião de Boyd, Deus planejou o esquema básico da morte de Jesus. Quando percebeu que Judas havia se tomado um “filho da perdição”,

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tudo o que Deus teve que fazer foi calcular “como ele poderia usar estrategica­mente o caráter ímpio” de Judas para realizar o plano divino.22

Mas essa interpretação ainda é, evidentemente, determinista demais para Sanders. Jesus, ele argumenta, não sabia realmente que Judas haveria de traí-lo. Mesmo quando ele disse a Judas: “O que pretendes fazer, faze-o depressa” (Jo 13.27), um enorme risco estava envolvido, “já que não havia qualquer garantia de qual caminho Judas decidiria seguir”.23 A predição da negação de Pedro é trata­da de forma semelhante. Sanders acha preferível ver a predição de Jesus como uma suposição que de nenhuma forma sugere que ele soubesse com certeza o que aconteceria antes que acontecesse de fato. Nenhuma das profecias de Jesus a respeito de sua morte e ressurreição “exigem presciência exaustiva”. Na men­te de Sanders, a cruz não foi planejada antes da criação, e o próprio Jesus, certa­mente, não sabia de antemão quais eventos conduziriam e estariam envolvidos em sua prisão e execução.24 As coisas podiam ter corrido de forma totalmente di­ferente, e, de acordo com o teísmo relacional, isso não teria feito a menor diferen­ça na vida e ministério de Jesus ou em nossa própria estima por ele.

Jesus, contudo, via a questão de forma totalmente diferente. No discurso no cenáculo, ele claramente vincula suas predições à sua divindade e à crença de seus discípulos em sua divindade. Quando estava lavando os pés dos discípulos, ele disse: “Nem todos estais limpos” (Jo 13.11), fazendo uma referência óbvia a Judas. Ele fez uma nova alusão a Judas uns poucos versículos depois, identi­ficando-o com uma profecia do Antigo Testamento: “Não falo a respeito de todos vós, pois eu conheço aqueles que escolhi; é, antes, para que se cumpra a Escritura: aquele que come do meu pão levantou contra mim seu calcanhar” (Jo 13.18). Três versículos depois, Jesus declara: “Em verdade, em verdade vos digo que um dentre vós me trairá” (v.21). Finalmente, ele isola Judas como traidor dando a ele um pedaço de pão (v.26).

Em meio a essas claras expressões de presciência, Jesus explica aos discí­pulos o motivo pelo qual ele está lhes falando essas coisas: “Desde já vos digo, antes que aconteça, para que, quando acontecer, creiais que Eu Sou” (Jo 13.19). Literalmente, o que Jesus diz é que, “quando acontecer, creiais que ego eimi”. Ele relaciona sua presciência dos eventos e seu anúncio desses eventos à sua divindade e ao reconhecimento de sua divindade por parte dos discípulos. Ob­viamente, importava a Jesus que ele fosse entendido como predizendo com certeza o que aconteceria consigo. Sua presciência é fundamental para a cren­ça dos discípulos em sua divindade.

Menospreze a presciência de Jesus e você colocará em xeque sua divinda­de, e, portanto, minará a fé daqueles que ele chama para que confiem nele. Esse é precisamente o efeito do teísmo relacional. Pede-se que nós continue­mos confiando em um Cristo que está inclinado a cometer erros, porque não conhece exaustivamente o futuro. Como John Piper comentou sobre essa pas­

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sagem, a presciência de Jesus “era um aspecto de sua glória como o Verbo encarnado, o Filho de Deus. A negação dessa presciência é, como eu creio que João diria, um ataque à divindade de Cristo”.25

Mina a oração

Os proponentes do teísmo relacional respeitam o “status da oração peticio­nária dentro desse modelo por ser uma de suas características mais atrati­vas”.26 A oração é vista como um meio de influenciar Deus ao ponto de levá-lo a reverter seus próprios planos. Por outro lado, Deus é tão dependente da oração que, às vezes, por causa da falha do povo em orar, ele abandona os planos que gostaria de executar.27

A compreensão que uma pessoa tem da providência necessariamente causa impacto em sua posição sobre a oração. O que Deus pode ou escolhe fazer em seu relacionamento com o mundo governa as formas pelas quais nós pedimos sua ajuda em necessidades específicas. Aposição relacional sobre a realidade elimina o con­trole específico que Deus exerce sobre as criaturas. Como o futuro não é “real” e, portanto, não pode ser conhecido por Deus, e como as pessoas possuem liberdade no sentido libertarista, Deus depende das pessoas para ajudá-lo a criar o futuro. Quando Deus é visto como tendo esse tipo de necessidade em relação à sua cria­ção, a oração peticionária é, em último caso, indeterminada na vida do crente.

Isso pode não ser aparente à primeira vista. De fato, o teísmo relacional pode inicialmente parecer ter exatamente o efeito oposto. Boyd argumenta que sua compreensão é uma grande motivação para a oração porque, por ela, Deus pode ser significativamente afetado e influenciado por nós. Muitos exemplos bíblicos são citados pelos teístas relacionais como prova de que a oração provoca mudan­ça de opinião em Deus. Abraão (Gn 18.22-33), Jacó (Gn 32), Moisés (Êx 32.14; 33.1,2; Dt 9.13-29), Ezequias (2Rs 20.1-6) e Amós (Am 7.1-6) são considerados como pessoas que alteraram as intenções de Deus por meio de suas petições.28 A oração é vista como a forma pela qual a criatura exerce um “faça-isso espiri­tual”, que Deus decidiu compartilhar quando criou seres pessoais.29 Como a ora­ção pode mudar os planos de Deus, as pessoas devem se animar em participar do esforço para criar um futuro que se amolde aos seus próprios desejos.

A afirmação do arrependimento de Deus e sua resposta às orações que pleiteiam algo diferente daquilo que foi previamente anunciado são problemas hermenêuticos que desafiam os intérpretes bíblicos de toda persuasão. Os teístas relacionais professam resolver os problemas (e demarcar o terreno exegético ao fazer isso) interpretando essas passagens “literalmente”.30 Os tradicionalis­tas, somos levados a crer, evitam essas passagens, roubando, portanto, o real incentivo para que as pessoas orem ardentemente.

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Os comentaristas reformados e outros comentaristas, no decorrer da histó­ria, têm tratado esses desafios sem abandonar a posição clássica de Deus.31 Não pode haver dúvida de que as orações dos personagens bíblicos menciona­dos acima foram caracterizadas pelo fervor, pela paixão e pela eficácia. Não se segue daí, contudo, que essas qualidades tenham nascido de uma visão relacional de Deus. Além disso, quando esses exemplos são considerados em seu contexto mais amplo, eles apresentam uma visão da realidade (e, portanto, de Deus) que é radicalmente diferente da visão do teísmo relacional. A visão de Deus e de seu mundo que emerge daí pode e deve revigorar a oração sincera de uma forma que o teísmo relacional não pode.

Considere o caso de Ezequias. Isaías é enviado por Deus para dizer ao rei doente: “Põe em ordem tua casa, porque morrerás e não viverás” (2Rs 20.1). Depois que Ezequias orou com grande pranto, o Senhor, em resposta à oração do rei, promete a ele um período de mais quinze anos de vida. Boyd vê esse registro, que foi determinante em sua peregrinação teológica, como requerendo uma mudança de opinião da parte de Deus.

Se nós aceitarmos a posição clássica sobre a presciência e supusermos que o Senhor estava certo de que ele não deixaria Ezequias morrer, ele não estaria sendo incoerente quando disse a Ezequias que não sobreviveria? E se nós supusermos que Deus estava, de fato, certo de que Ezequias vive­ria mais quinze anos depois desse episódio, então ele não estaria enganan­do Ezequias quando disse que acrescentaria quinze anos à sua vida?32

Boyd não pode fugir de seu próprio criticismo, porque o teísmo relacional também deve lidar com o fato de que Deus disse que algo aconteceria antes que tivesse acontecido. O teísta relacional conclui que Deus não sabia que Ezequias oraria com tanto fervor para mudar os planos divinos. Como Deus não sabia disso, não há dilema moral quando ele reverte os planos que havia anunciado. O teísta clássico conclui que a ameaça de Deus continha uma ex­ceção implícita e que ele sabia que Ezequias se arrependeria e oraria. Dessa forma, em todo o tempo, Deus queria aumentar a vida do rei em quinze anos, mas queria que isso fosse uma resposta à sua oração.33

A posição clássica é apoiada pelo contexto mais amplo dessa história. Quando Ezequias morreu, seu filho, Manassés, que tinha doze anos de idade, tomou-se rei em seu lugar (2Rs 20.21; 21.1). O que isso significa é que Manassés nasceu durante os quinze anos de extensão da vida de Ezequias. Sanders diz que, se Ezequias não tivesse orado a Deus, “a história bíblica teria sido diferente”,34 mas essa é uma compreensão totalmente inadequada. Se Ezequias tivesse morrido quando Isaías lhe falou pela primeira vez, ele não teria deixado um herdeiro ao trono, e a promessa de Deus feita a Davi, trezentos anos antes,

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teria sido quebrada. O Senhor prometeu a Davi: “Nunca te faltará sucessor ao trono de Israel” (lRs 2.4), o que “simplesmente afirma que a posteridade de Davi não seria eliminada, de forma que sempre houvesse um descendente que pudesse ocupar o trono”.35

Se, como Boyd e seus colegas afirmam, Deus realmente ignorava o mo­mento da morte de Ezequias quando enviou Isaías até ele, então nós somos deixados com dúvidas insolúveis sobre a credibilidade de Deus. Se Ezequias tivesse morrido antes do nascimento de Manassés, seu filho, a Palavra de Deus teria falhado. E se nós não pudéssemos confiar naquilo que Deus diz, por que deveríamos pedir a ele que fizesse alguma coisa? Esse pensamento blasfemo, que emerge (sem dúvida, não de forma intencional) da posição do teísmo relacional sobre Deus, elimina qualquer desejo de orar com fervor.

Esse problema é aumentado se Deus for visto como tendo criado um mundo no qual as pessoas têm o poder de fazer coisas que ele nunca quis que aconteces­sem. Qualquer intervenção específica da parte de Deus para interferir diretamen­te no curso escolhido por uma pessoa seria uma violação tanto da personalidade do indivíduo quanto das “regras do jogo, soberanamente estabelecidas por Deus” ao criar pessoas dotadas de liberdade no sentido libertarista.36 Como alguém po­deria orar ferventemente para que Deus colocasse limites às pessoas más ou protegesse seu próprio povo se essa pessoa crer que Deus está impedido até mesmo de remover as escolhas potencialmente más de uma pessoa? Essa oração não seria um pedido para que Deus fizesse o que ele não se comprometeu a fazer?

Os exemplos de orações que nós temos na Bíblia não são nem um pouco difíceis, porque nenhum deles está baseado em uma visão relacional de Deus. Quando Daniel orou pela restauração de Judá, ele foi motivado por sua re­cente descoberta das promessas de Deus para fazer exatamente isso (Dn 9.1-19). Quando Zerá conduziu um milhão de soldados etíopes contra Judá, Asa orou: “S enhor, tu és o nosso Deus, não prevalecerá contra ti o homem” (2Cr 14.11). Não há a mais leve sugestão da preocupação de se violar a vontade livre de Zerá. Uma ausência semelhante de preocupação é encon­trada em uma oração de Ezequias, na qual ele pede: “Agora, pois, ó S enhor , nosso Deus, livra-nos das suas mãos, para que todos os reinos da terra sai­bam que só tu és o S enhor Deus” (2Rs 19.19).

Exemplos assim podem ser multiplicados muitas vezes. A Bíblia está cheia de orações que mostram grande confiança em que Deus fará tudo o que ele prometeu que faria e de confiantes petições para que Deus interve­nha direta e especificamente, fazendo com que as pessoas mudem o curso que pretendiam dar às suas ações. A confiança na soberania associada a uma consciência clara de nossa própria responsabilidade pessoal oferece um fundamento muito mais forte para a oração fervorosa do que aquele oferecido pelo teísmo relacional.37

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Mina a confiança viva

A posição relacional rejeita a idéia de que uma pessoa pode ser genuinamente livre se suas ações forem, de alguma forma, determinadas por Deus. Definindo a liberdade em termos libertaristas, os teístas relacionais excluem toda a noção do controle preciso de Deus sobre o mundo. Essa rejeição é proveniente de uma relutância em reconhecer uma distinção entre a vontade de Deus revelada e sua vontade decretada. Sanders gratuitamente rejeita essa distinção como “outro exemplo de uma tentativa de descobrir um Deus além do Deus da Escritura com base em idéias humanas”,38 mas a Escritura dá ampla razão para se pensar nestes termos: “As coisas encobertas pertencem ao S enhor, nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei” (Dt 29.29). Se não houver distinção entre a vontade secreta de Deus e sua vontade revelada, as afirmações bíblicas referentes aos desígnios, intenções e desejos de Deus tomam-se terrivelmente confusas.39 Se Deus não está no controle, quem está? Ninguém, de acordo com os teístas da vontade livre. Em seu esquema teológico, o mundo está à mercê coletiva das vontades humanas libertaristas, das vontades angelicais libertaristas e de Deus. É claro que nem pessoas nem anjos possuem tanto poder quanto Deus, mas, nesse caso, nem mesmo Deus tem controle sobre pessoas e anjos.40 Uma das implicações mais devastadoras disso é a existência do mal no mundo. Sanders admite que “pelo menos algum mal é fora de propósito” e que “Deus não tem um propósito divino específico para toda e cada ocorrência do mal”.41 Boyd também admite esse ponto: “É verdade que, de acordo com a visão relacional, podem acontecer coisas em nossa vida que Deus não planejou e que ele nem mesmo conheceu de antemão com certeza (embora ele sempre pré-conheça todas as possibilidades). Isso significa que, na visão relacional, podem acontecer coisas conosco que estão totalmente fora do propósito divino”.42

Esse pensamento, que é totalmente incoerente para aqueles que enxergam a soberania divina como ensinada na Escritura, é aplaudido pelos teístas relacionais como uma teodicéia importante. Boyd crê que “ela oferece a forma mais plausível para se escapar do dilema de admitir que Deus tem um propósito ao permitir os males específicos”.43 Basinger é ainda mais entusiástico:

Além disso, ver o mal dessa forma tem importância prática. Por exemplo, isso significa que nós, ao contrário do que afirmam os proponentes da soberania específica, não precisamos admitir que exista algum propósito divino para cada mal que encontramos. Nós não precisamos, por exem­plo, admitir que, quando alguém morre, “Deus o levou” por alguma razão, ou que os horrores que muitos experimentam neste mundo, de alguma forma misteriosa, encaixem-se no perfeito plano de Deus. Nós podemos

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justificavelmente admitir, em vez disso, que Deus geralmente fica tão desapontado quanto nós quando a existência terrena de uma pessoa termina cedo, ou quando alguém experimenta severa depressão ou quan­do alguém é torturado.44

Ele continua:

Pela nossa perspectiva, ver tragédias específicas neste mundo como o resultado de um sistema sobre o qual Deus escolheu não exercer comple­to controle é mais apelativo do que ver esses eventos como o resultado de um plano preordenado, específico, de Deus.45

Essa perspectiva falha em tratar adequadamente a morte de Jesus. O paradigma pelo qual todo o mal do mundo deve ser julgado é aquele que aconte­ceu na cruz. Na crucificação, nós somos forçados a reconhecer as duas formas diferentes de vontade em Deus. Nós encontramos fundamento para uma vida esperançosa e confiante em um mundo caído. A morte de Jesus Cristo é o grande aborto espontâneo de justiça que o mundo testemunhou. O único homem inocen­te que já existiu foi crucificado como um criminoso comum. Apesar disso, como a Bíblia exige que nós pensemos na cruz? Ela foi da vontade de Deus ou foi uma violação da sua vontade? O teísta relacional deve escolher entre essas duas possibilidades, pois eles se recusam a enxergar qualquer distinção na forma pela qual Deus deseja as coisas. O teísta clássico vê a cruz como o cumprimento da vontade decretada de Deus (que ele decretou desde a eternidade) e como uma violação de sua vontade revelada (isto é, o mandamento de não matar).

Os apóstolos não viram a morte de Jesus do ponto de vista relacional. No Pentecoste, Pedro pregou Cristo como sendo “entregue pelo determinado de­sígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mãos de iní­quos” (At 2.23). “Determinado desígnio e presciência de Deus” significa a vontade (decretada) de Deus. “Mãos de iníquos” significa que a morte de Je­sus foi contrária à vontade (revelada) de Deus. Essa mesma perspectiva é encontrada na oração dos discípulos, registrada em Atos 4.24-30. E difícil en­tender, à luz dessa perspectiva apostólica, por que Boyd é levado a nos ajudar a “nos desvencilharmos de qualquer suspeita de que o mal, de alguma forma, encaixa-se nos propósitos eternos de Deus”.46

Se o maior mal em todo o mundo, embora seja uma clara violação da vontade revelada de Deus, foi definitivamente decretado por Deus para o bem de seu povo, então por que nós não deveríamos crer que, de forma semelhante, todos os outros males do mundo, embora sejam contrários aos mandamentos de Deus, enquadram-se em sua boa, sábia e soberana vontade em favor daqueles que o amam e são chamados de acordo com o seu propósito? Essa forma de enxergar

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Deus de modo nenhum diminui a tragédia e o sofrimento causados pelo mal, mas nos dá razão para vivermos em alegria e esperança em meio ao sofrimento, pois, embora a dor que um filho de Deus sente possa parecer sem propósito, ela não é sem propósito. Nenhum sofrimento dos crentes nesse mundo é sem valor. José, Jó, Estevão, Paulo e qualquer outro crente que, como o Senhor, experimenta o mal neste mundo, pode ter a esperança e a certeza de que Deus está produzindo seus bons e sábios propósitos por meio do sofrimento de seu povo.47

A primeira pergunta, e sua respectiva resposta, do Catecismo de Heidelberg, resume essa visão esperançosa da vida cristã de uma forma maravilhosa. A per­gunta é: “Qual é o único consolo tanto na vida quanto na morte?”. A essa pergunta é dada a seguinte resposta:

O único consolo na vida e na morte é que eu, com corpo e alma, tanto na vida como na morte, não pertenço a mim mesmo, mas a meu fiel Salvador Jesus Cristo, que me livrou de todo o poder do diabo, satisfazendo, inteiramente, por seu sangue precioso, por todos os meus pecados, e me guarda de tal maneira que, sem a vontade de meu Pai celestial, nem um só fio de cabelo pode cair de minha cabeça, antes é necessário que todas as coisas cooperem para minha salvação. Por isso também me assegura, por seu Espírito Santo, a vida eterna, e me faz pronto e equipado para viver diante de sua santa vontade.

Nenhum teísta relacional jamais conhecerá esse conforto.

Conclusão

A casa devocional na qual se vive é fortemente determinada pelo funda­mento doutrinário sobre o qual ela está edificada. A vida vibrante, alegre, da fé que marcou a Igreja do Novo Testamento, estava arraigada em um firme com­promisso com a “doutrina dos apóstolos” (At 2.42). O apóstolo Paulo regular­mente estruturava seus argumentos em suas cartas às igrejas de forma que seus imperativos repousassem sobre seus indicativos. Primeiro ele lançava um fundamento doutrinário (por exemplo, Rm 1 - 11 e Ef 1 - 3), e depois ele exortava seus leitores a praticarem aquilo em que eles criam (como em Rm 12- 16 e Ef 4 - 6). A crença correta conduz à vida correta.

É difícil entender, então, a atitude quase indiferente de Boyd quando escreve: “Perto das doutrinas centrais da fé cristã, a questão de se o futuro é exaustiva­mente determinado ou parcialmente aberto é relativamente sem importância. Essa, certamente, não é uma doutrina que deveria dividir os cristãos”.48 Ao contrário do que Boyd afirma, o teísmo relacional não é simplesmente um debate filosófico.

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Ele redefine a realidade, e o Deus da realidade muda com ele. O que está em jogo é a própria doutrina de Deus, e, com ela, cada aspecto da vida cristã.

Como A. W. Tozer observou em meados do século passado, “a mais grave questão que está diante da Igreja é sempre o próprio Deus, e o fato mais por­tentoso sobre qualquer homem não é o que ele, em um dado momento, pode dizer ou fazer, mas o que ele, no íntimo de seu coração, concebe como Deus deve ser”. Ele vai além e observa: “Se nós fôssemos capazes de extrair de qualquer homem uma resposta completa à pergunta: ‘O que vem à sua mente quando você pensa sobre Deus?’, então nós poderíamos predizer com certeza o futuro espiritual do homem”.49 A redefinição de Deus feita pelo teísmo relacional adoece aqueles que a aceitam. Se nossa visão de Deus é diminuída, a piedade certamente diminuirá com ela.

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 Sarça de Moisés ou a Cama de Procrusto?

Steve /VI. Schlissel

Procrusto foi um gigante mitológico da Ática. “Ele colocava tudo o que caía em suas mãos sobre uma cama de ferro. Se alguma coisa fosse maior do que a cama de ferro, ele cortava a parte excedente; se fosse menor, ele a esticava até que se encaixasse exatamente no tamanho da cama”.1 A história de ho­mens caídos pode ser caracterizada como uma longa tentativa de forçar o Deus Todo-Poderoso a caber em uma cama de Procrusto. Nós queremos que Deus se encaixe em nossas expectativas, concorde com nossas exigências e se submeta às nossas definições. Foi isso o que aconteceu no Éden, no Sinai e na Encarnação. “Se Deus quer uma parte neste mundo”, dizem Adão e seus verdadeiros filhos, “ele terá que seguir os nossos termos”.

No Éden, a amorosa proibição de Deus foi rejeitada como sendo terri­velmente restritiva. Deus tinha oferecido somente uma razão para não se comer do fruto, e Eva achou três razões para comer dele. Três contra um. E nessa barganha ela fez uma redefinição, na qual Deus era mal e a serpente era boa. “Ele quer me impedir de ser tudo o que eu posso ser. Ele está com medo, com mesquinhez e com ciúme”. É verdadeiramente surpreendente que Deus tenha deixado nossos primeiros pais viverem o bastante para serem redimidos.

No Sinai, meus antepassados queriam sacudir a areia de entre seus dedos e seguir adiante, e se Deus quisesse acompanhá-los devia seguir os termos hu­manos. Dessa forma, eles construíram um ídolo de ouro na forma de um bezer­ro, erigiram um altar para ele, curvaram-se diante dele, ofereceram sacrifícios a ele e proclamaram: “São estes, ó Israel, os teus deuses, que te tiraram da terra do Egito”. É realmente surpreendente que Deus tenha permitido que Moisés o persuadisse a não destruí-los.

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Quando Deus tomou-se homem, ele veio para os que eram seus, mas os seus não o receberam. Eles tinham suas próprias idéias sobre Deus, sobre certo e errado, sobre bem e mal, sobre a que se assemelharia o reino de Deus e sobre quem deveria entrar nele. Quando ouviram as idéias de Deus pronunciadas por seu Filho unigénito, eles decidiram dar cabo dele. Eles o mataram. É realmente surpreendente que o mundo tenha tido continuidade, mas isso só aconteceu por causa da oração de Jesus: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”.

E hoje, ao que parece, nós ainda não sabemos. Nós ainda perdemos o ponto de encontro de Deus com Moisés na sarça ardente. Moisés perguntou: “suponha que eu diga aos israelitas que o Deus de nossos pais me enviou e que eles me pergun­tem o seu nome. Que lhes direi? Disse Deus: “Eu Sou o Que Sou. Assim dirás aos filhos de Israel: Eu Sou me enviou”. Essa afirmação era mais do que uma afirma­ção da imutabilidade de Deus, embora certamente fosse uma afirmação de sua imutabilidade. Essa afirmação foi a insistência divina de que somente Deus pode identificar Deus. Somente Deus sabe o que Deus é. Nossa parte é calar e ouvir.

Essa última frase não é cruel. Ela é essencialmente o que é dito em Roma­nos 9, onde Paulo trata da soberania de Deus. Como se estivesse discutindo contra os defensores do teísmo relacional, Paulo argumenta: “Tu, pois, me di­rás: De que se queixa ele ainda? Pois quem jamais resistiu à sua vontade?”. Sua resposta é: “Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus? Porventura, pode o objeto perguntar a quem o fez: Por que me fizeste assim?”. O Deus soberano não pode ser ontologicamente identificado pelo homem, nem pode ser economicamente julgado pelo homem. Deus não troca de lugar com o homem.

Apesar disso, nós notamos que a história humana, tanto fora quanto dentro da aliança, é caracterizada por um desejo aparentemente irresistível de refazer Deus à sua própria imagem, amarrá-lo na cama de Procrusto e... esticar aqui, cortar ali. A mais recente tentativa de colocar Deus sobre essa cama de ferro é despi-lo de sua presciência para dar lugar à nossa “vontade livre”.

Isso nos conduz a três considerações: (1) o erro da relacionalidade de Deus surge não somente de um pensamento equivocado, mas talvez até mesmo de uma metodologia equivocada. Hermann Bavinck, talvez o maior teólogo do século 20, poderia ter salvo esses proponentes do erro se eles tivessem falado menos e ouvido mais; (2) a relacionalidade de Deus, embora tenha surgido recentemente nos círculos bíblicos, não é um ensino novo; (3) a relacionalidade de Deus provavelmente terá uma ampla e simpática audiência, pois ela está perfeitamente sintonizada com o contemporâneo clamor por uma Divindade mais centralizada no homem, particularmente uma Divindade andrógena. Con­tudo, se as conseqüências dessa doutrina forem aceitas, elas provocarão uma aceleração do colapso social que temos experimentado e a morte da esperan­ça. Culturas livres não podem ser edificadas sobre divindades experimentais. As divindades experimentais sempre estarão a serviço de estados tirânicos.

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Não fale antes de ouvir

É uma tolice termos pressa quando falamos sobre Deus. É por isso que o Dr. Bavinck, em seu notável livro The Doctrine ofGod, começa examinando a incompreensibilidade de Deus. Isso é mais do que “Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?” - “Quem é tu, ó homem, para sequer falares sobre Deus?”. O temor de Deus, de acordo com Bavinck, deve ser o elemento que inspira e anima toda a investigação teológica.

Quando esse temor, pela graça de Deus, prepara o homem para abordar adequadamente seu mais santo assunto de pesquisa, ele descobre imediata­mente que tem dificuldade de dizer algo sólido sobre Deus. Se Deus é incom­preensível, como pode um homem sem ajuda aventurar-se a falar sobre ele? E até mesmo quando o homem diz que Deus é infinito, eterno e inatingível, ele não está dizendo realmente apenas o que Deus não é? Ele não pode ser medi­do pelo espaço, ele não está sujeito ao tempo e ele não muda.

Mas como nós podemos afirmar até mesmo isso sobre Deus com certeza? Porque Deus se revela ao homem. Deus é o iniciador. Ninguém pode defini-lo, é verdade, mas também ninguém pode conhecê-lo a menos que ele se revele. “A religião e o conhecimento de Deus podem ter sua origem somente na reve­lação. Se Deus não se revela às suas criaturas, o conhecimento dele é eviden­temente inalcançável”.2

Apesar disso, até mesmo quando Deus dá conhecimento de si mesmo ao homem,

O caráter e o grau desse conhecimento são muito peculiares e limitados, pois, embora Deus, em certa medida, torne-se manifesto à criatura, per­manece nele uma plenitude infinita de poder e de vida que não se torna manifesta. Seu conhecimento e seu poder não são exauridos no univer­so, nem são demonstrados em sua totalidade. É até mesmo impossível para Deus revelar-se plenamente a e em suas criaturas, pois o finito não alcança o infinito. Ninguém conhece o Pai senão o Filho (Mt 11.27; cf. Dt 29.29). Além disso, aquilo que Deus revela sobre si mesmo em e por meio de suas criaturas é tão rico e tão profundo que nunca poderá ser plena­mente conhecido por qualquer indivíduo humano. Em muitas áreas nós nem mesmo compreendemos o universo de seres criados, que tantas vezes nos confronta com enigmas e mistérios. Como, então, nós seremos capazes de entender a revelação de Deus em toda a sua riqueza e profun­didade? Contudo, admitindo tudo isso, nós não queremos negar a cognoscibilidade de Deus. A incompreensibilidade de Deus, em vez de anular sua cognoscibilidade, a pressupõe e afirma. As inescrutáveis ri­quezas do Ser Divino constituem um elemento necessário e importante

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para o nosso conhecimento de Deus. Permanece o fato de que Deus pode ser conhecido por nós no sentido e no grau em que ele se revela a nós na criação.3

E, é claro, era sua Palavra.Mais adiante, Bavinck explica como os nomes pelos quais Deus se revela nas

Escrituras o fazem conhecido a nós. Contudo, os nomes de Deus nos falam o que ele é em relação a nós, eles não podem nos dizer o que Deus é em si mesmo.

Os nomes de Deus... têm isso em comum. Todos eles são derivados da revelação de Deus. Não há um nome sequer que expresse o ser de Deus em si mesmo. O “nome revelado” é a base de todos os “nomes pelos quais nos dirigimos a Deus”.4

O conhecimento de Deus como ele é em si mesmo é possuído somente pelo próprio Deus. Para termos conhecimento exaustivo de como Deus é em si mesmo, nós tínhamos que ser Deus. “As coisas de Deus, ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus” (ICo 2.11). Esse é um “problema” para a busca do conhecimento de Deus que deve ser reconhecido e ao qual devemos nos sub­meter. Falhar em reconhecer esse problema fará com que a prática da teologia seja uma presunção vazia e um pecado. Qual é esse “problema”? Esse proble­ma se refere à linguagem que Deus usa para se tomar conhecido ao homem. A instrução de Bavinck aqui é absolutamente vital, especialmente quando ela é colocada sobre a alegada relacionalidade de Deus, pois os defensores da teolo­gia relacional escolheram construir seu sistema apoiando-se pesadamente so­bre um antropomorfismo, ou seja, o “arrependimento” de Deus, ou sua mudan­ça de opinião. Mas Bavinck explica:

Onde quer que a revelação de Deus na natureza e na Escritura seja dire­tamente dirigida ao homem, Deus usa a linguagem humana para revelar- se e manifesta-se em formas humanas. Segue-se que a Escritura não meramente contém alguns antropomorfismos. Pelo contrário, toda a Es­critura é antropomórfica. Do começo ao fim, a Escritura testifica de uma abordagem condescendente de Deus ao homem. Toda a revelação de Deus torna-se concentrada no Logos, que se tornou “carne”. É como se a revelação fosse uma humanização, uma encarnação de Deus. Se Deus falasse conosco na língua divina, ninguém seria capaz de entendê-lo, mas, desde a criação, em graça condescendente, fala conosco e manifes­ta-se a nós à moda humana. Portanto, todos os nomes pelos quais ele nos permite dirigir-nos a ele são derivados de relações terrenas e huma­nas. Dessa forma, na Escritura ele é chamado de El, o Poderoso; El-

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Shaddai, o Todo-Poderoso; YHWH, Aquele Que É; além disso, ele é chamado de Pai, Filho, Espírito, bom, misericordioso, santo, etc., expres­sões estas baseadas em relações humanas e aplicadas a Deus metafori­camente. Até mesmo os assim-chamados atributos incomunicáveis, isto é, imutabilidade, independência, unidade, eternidade, onipresença, etc., são derivados pela Escritura de formas e expressões que pertencem à existência finita, e, portanto, são expressos negativamente. Dessa forma, a eternidade precisa ser apresentada a nós como a negação do tempo. A Escritura nem mesmo tenta descrever essas perfeições divinas positiva­mente, isto é, sem indicar sua relação com a existência finita.5

Agora eu peço que o leitor me perdoe por fazer uma longa citação de Bavinck. Dr. Bavinck faz com que seja claramente compreendido, com uma força rara­mente vista, que não somente alguma coisa daquilo que nós lem os, mas tudo o que lem os sobre Deus na Bíblia é comunicado em termos antropomórficos. Sigam os seu argumento e o considerem os, pois, quando essas verdades são aceitas, elas geram uma humildade que nos afasta das bobagens relacionais.

Mas a Escritura é ainda mais enfática em seu antropomorfismo. Tudo o que pertence ao homem, tudo o que pertence à criatura, é aplicado a Deus, especialmente “órgãos, membros, sensações, afeições humanas”, etc. Deus tem uma alma (Lv 26.11; Mt 12.28) e um Espírito (Gn 1.2, etc.). Faz-se men­ção ao corpo de Deus, e, embora, em Cristo, Deus tenha assumido um corpo humano real (Jo 1.14; Cl 2.17) e a Igreja seja chamada de corpo de Cristo (Ef 1.22), todos os termos usados com referência a órgãos do corpo humano são aplicados a Deus; faz-se menção ao seu rosto (Êx 33.20,23; Is 63.9; SI 16.1 l;M t 18.10; Ap 22.4), aos seus olhos (SI 11.4; Hb 4.13), às suas pálpebras (SI 11.4), à sua menina dos olhos (Dt 32.10; SI 17.8; Zc 2.3), aos seus ouvidos (SI 55.1), ao seu nariz (Dt 33.10), à sua boca (Dt 8.3), aos seus lábios (Jó 11.5), à sua língua (Is 30.27), ao seu pescoço (Jr 18.17), aos seus braços (Êx 15.16), às suas mãos (Nm 11.23), à sua mão direita (Êx15.12), ao seu dedo (Êx 8.19), ao seu coração (Gn 6.6; Is 63.15; cf. Jr31.20; Lc1.78), ao seu seio (SI 74.11), ao seu pé (Is 66.1). Além disso, toda emoção humana está presente em Deus, por exemplo, alegria (Is 62.5), regozijo (Is65.19), dor (SI 78.40; Is 63.10), ira (Jr 7.18), amor, em todas as suas variações, por exemplo, compaixão, misericórdia, graça, longanimidade, etc.; além dis­so, zelo e ciúme (Dt 32.21), ódio (Dt 16.22), furor (SI 2.5), vingança (Dt 32.25).Além disso, ações humanas são atribuídas a Deus, como conhecer (Gn 18.21), tentar (SI 7.9), pensar (Gn 50.20), esquecer (1 Sm 1.11), lembrar-se (Gn 8.1; Êx 2.24), falar (Gn 2.16), chamar (Rm 4.17), comandar (Is 5.6), repreeender (SI 18.15; 104.7), responder (SI 3.4), testemunhar (Ml 2.14),

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descansar (Gn 2.2), trabalhar (Jo 5.17), ver (Gn 1.10), ouvir (Êx 2.24), chei­rar (Gn 8.21), provar (SI 11.4,5), sentar-se (SI 9.7), levantar-se (SI 68.1), ir (Êx 34.9), vir (Êx 25.22), andar (Lv 26.12), descer (Gn 11.5), encontrar (Êx 3.18),visitar (Gn 21.1), passar (Êx 12.13), desamparar (Jz 6.13), escrever (Êx 34.1), selar (Jo 6.27), gravar (Is 49.16), julgar (Is 11.4), disciplinar (Dt 8.5), punir (Jó 5.17), sarar e pensar as feridas (SI 147.3, c f 103.3; Dt 32.29), matar e deixar viver (Dt 32.29), enxugar as lágrimas (Is 25.8), eliminar (2Rs 21.13), lavar (SI 51.2), constituir (SI 2.6), limpar (SI 51.2), adornar (Ez 16.11), vestir (SI 132.16), coroar (SI 8.5), revestir de força (SI 18.32), destruir (Gn 6.7), assolar (Lv 26.31), matar (Gn 38.7), punir (Gn 12.17), julgar (SI 58.11), condenar (Jó 10.2), etc. Além disso, Deus é geralmente chamado por nomes que indicam certo ofício, profissão ou relação entre os homens.Por exemplo, ele é chamado de noivo (Is 61.10), esposo (Is 54.5), Pai (Dt 32.6), juiz, rei, legislador (Is 33.22), homem de guerra (Êx 15.3), herói (SI 78.65; Zc 3.17), arquiteto e edificador (Hb 11.10), agricultor (Jo 15.1), pastor (SI 23.1), médico (Êx 15.3), etc. Em relação com tudo isso, men- ciona-se o seu trono, o estrado de seus pés, seu cajado, seu cetro, suas armas, seu arco, sua espada, seu escudo, sua carruagem, sua bandeira, seu livro, seu selo, seu tesouro, sua herança, etc. Para indicar o que Deus é para seus filhos, uma linguagem derivada da criação animada e inanimada é aplicada a ele. Ele é comparado a um leão (Is 31.4), a uma águia (Dt 32.11), a um cordeiro (Is 53.7), a uma galinha (Mt 23.37), ao sol (SI 84.11), à estrela da manhã (Ap 22.16), à luz (SI 27.1), a uma lâmpada (Ap 21.23), ao fogo (Hb 12.29), a uma fonte (SI 36.9), à fonte de águas vivas (Jr 2.13), ao alimento, ao pão, à água (Is 55.1; Jo 4.10; 6.35,55), à rocha (Dt 32.4), a um refúgio (SI 119.114), a uma torre (Pv 18.10), a uma sombra (SI 91.1; 121.5), a um escudo (SI 84.11), a um caminho (Jo 14.6), a um templo (Ap 21.22), etc.As Escrituras recorrem a toda a criação, isto é, à natureza em suas várias esferas e especialmente ao homem, para contribuir para a descrição do conhecimento de Deus. O antropomorfismo parece ser ilimitado. Para nos dar uma idéia da majestade e do caráter exaltado de Deus, nomes são derivados de todo tipo de criatura, animada e inanimada, orgânica e inorgânica. Embora em si mesmo Deus seja anônimo, isto é, “sem nome”, em sua revelação ele é polinônimo, isto é, possui muitos nomes.6

Diante dessa evidência, é totalmente absurdo extrair um antropomorfismo empregado para fazer menção a Deus nas Escrituras e tentar usá-lo como a base da qual nós devemos revirá-lo para lá e para cá, revisá-lo, encaixá-lo na cama de Procrusto e usar esse novo deus, feito à nossa imagem, para resolver os problemas que nossas mentes fracas, por si mesmas, nunca conseguirão

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decifrar. Os defensores do teísmo relacional falam quando deviam ficar em silêncio. Transcrevo aqui uma citação que Bavinck faz de Agostinho:

Todas as coisas podem ser ditas de Deus, mas nada apropriadamente pode ser dito dele. Nada é mais comum do que essa pobreza de expressão.Você pode procurar um nome adequado para ele, mas não poderá achá-lo.7

“O S enhor está no seu santo templo; cale-se diante dele toda a terra [espe­cialmente aqueles que gostariam de se “relacionar” com ele]” (Hb 2.20).

Onde foi que eu ouvi isso antes?

Não é de se estranhar que teólogos das três grandes religiões que reivindi­cam origens bíblicas têm se defrontado com o problema de como a soberania divina se relaciona com a liberdade humana. Cada uma dessas religiões tem tido aqueles que enfatizam a soberania divina em detrimento da liberdade hu­mana, aqueles que defendem a liberdade humana até o ponto da efetiva nega­ção da soberania de Deus e aqueles que tentam focalizar uma e outra. No entanto, é interessante que o Islamismo tem tendido a cair no campo fatalista, no qual a liberdade humana é tragada pelo kismet. O Judaísmo tem, para todos os propósitos práticos, se preocupado primariamente com a liberdade humana. O Cristianismo, por sua vez, particularmente o protestantismo reformado, tem se empenhado em enfatizar a soberania e a liberdade igualmente.

Cada uma dessas tendências, por sua vez, conduz a outras. Politicamente, por exemplo, o Islamismo tende a ser autocrático; o Judaísmo tende a preferir centralizar as administrações que foram democraticamente eleitas; o Cristia­nismo consistente, como o protestantismo reformado, tende à república, ao go­verno representativo. Pode-se dizer que, ontologicamente, o Islamismo está arraigado no governo de um só; o Judaísmo, no governo de muitos; e o Cristia­nismo, no governo de um só e de muitos.

Além disso, a relação entre a soberania divina e a responsabilidade huma­na acarreta em cada religião a respectiva abordagem às pessoas de outras religiões. O Islamismo tende a converter pela espada; o Cristianismo (de tipo reformado) procura converter pela oração e pela persuasão. O Judaísmo, contudo, nunca teve interesse em converter adeptos de outras religiões: é uma religião auto-absorvida. Isso pode ajudar a explicar por que as maiores realizações pós-bíblicas do Judaísmo vieram quando ele estava mamando no seio esquerdo do Islamismo ou no seio direito do Cristianismo. Embora ale­gue ser a mãe de ambas as religiões, o Judaísmo, historicamente, tem sido uma criança dependente.8

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Tudo isso é só para dizer que a resposta à questão da relação entre a sobe­rania divina e a liberdade humana não nasceu e não está em um vácuo. Ela faz parte de um sistema, e qualifica e define esse sistema. É por isso que nós devemos nos preocupar com o erro do teísmo relacional. Sua tendência é ao Judaísmo, e não ao Cristianismo histórico.

O pensamento judaico sobre esse assunto é bastante variado. Gersonides (Levi ben Gerson, 1288-1344) podia ter sido co-autor de The Openness o f God. Ele afirmava que “Deus não sabe de antemão como um homem se com­portará em circunstâncias específicas”.9 O filósofo judeu espanhol, Hasdai Cresças (d. 1412), é geralmente considerado como tendo um espírito “calvinista” na abordagem dessa questão, preferindo enfatizar a soberania divina mesmo que ela pareça infringir a liberdade humana. Maimônides (1135-1204), geral­mente considerado o maior pensador judeu da Idade Média, afirmou não haver contradição entre a soberania divina e a liberdade humana, dizendo que com­preender exatamente a relação entre uma e outra está além de nossa capaci­dade humana.

Na esfera popular, porém, não há disputa a respeito de qual lado da questão é adotado pelo judeu médio: é a liberdade humana. “A doutrina da vontade livre... é geralmente mencionada como um dos princípios básicos do Judaísmo. É consistentemente admitido que Deus ensinou ao homem o que é certo e o que é errado e deixou-o escolher entre as alternativas e as conseqüências”.10 O rabi Akiva disse: “Tudo é previsto, mas a liberdade de escolha é dada”.11 O rabi Chanina disse: “Tudo é decretado, exceto se [uma pessoa] será boa ou má. Tudo está nas mãos de Deus, exceto o temor do Senhor”.12

Agora nós podemos ver que os defensores da relacionalidade têm um encon­tro marcado com os rabis. Rashi, em Berachos 33b e Megilla 25a, afirma que “Deus decreta o futuro de cada pessoa, seja ela alta ou baixa, rica ou pobre, sábia ou tola, branca ou negra. Se ela será boa ou má, isso não vem do céu [Deus]. A ela são dados dois caminhos, e ela deve escolher o bom”. Saadia Gaon diz: “Assim que o homem faz uma escolha entre alternativas, Deus a conhece. Em outras palavras, a decisão do homem precede o conhecimento que Deus tem sobre ela”. Judah Ha-Levi seguiu Saadia, afirmando que “as decisões do homem precedem o conhecimento de Deus”. Abraham Ibn Daud seguiu Judah Ha-Levi, crendo que, “para dar oportunidade para que a vontade humana seja feita livremente, ele [Deus] deixou certas ações não determinadas em sua própria mente”.13

Dessa forma, embora Maimônides rejeite esse encaminhamento, ele se tor­nou a “verdade” popular para os judeus praticantes. A livre vontade é “axiomática no Judaísmo”.14 Há uma razão para essa ênfase sobre a liberdade humana no Judaísmo: o Judaísmo é, primariamente, uma religião ética. A importância des­se ponto, quando transportada para o ensino contemporâneo sobre a relacionalidade de Deus, não pode ser exagerada.

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O Judaísmo é fundamentalmente uma religião ética, da mesma forma que o Cristianismo é fundamentalmente uma religião redentiva. O Judaísmo crê naquilo que faz, enquanto o Cristianismo faz aquilo em que crê. No Judaísmo, a ética conduz à redenção, enquanto, no Cristianismo, a reden­ção conduz à ética. No Judaísmo, o homem observa a lei de Deus para ser salvo. No Cristianismo, o homem é salvo para observar a lei de Deus. No Judaísmo, a pessoa faz o bem para ser redimida. No Cristianismo, a pessoa é redimida para fazer o bem.

Essas verdades pesam muito sobre a matéria que está sendo discutida, pois uma religião redentiva se preocupa em explicar nos mínimos detalhes a obra iniciatória de Deus - unilateral - na redenção, construindo, dessa forma, um corpo doutrinário que deve ser crido, enquanto uma religião ética se desvia (mais ou menos) do dogma e se estende sobre a observação, conduzindo a um corpo de minúcias casuísticas. Em uma religião redentiva, a preocupação com o problema da soberania de Deus e a liberdade do homem tende a ser “resolvi­da” com uma ênfase sobre a soberania de Deus, mas, em uma religião na qual o homem se salva mediante escolhas corretas, a soberania de Deus será ime­diatamente sacrificada no altar da “liberdade” humana.

Assim, o ensino da relacionalidade de Deus é, na verdade, não um retomo à religião pactuai da Bíblia, como se alega. E minha opinião que os defenso­res do teísmo relacional poderiam ter contribuído para esse retorno se esti­vessem usando arreios bíblicos e históricos, como os que foram colocados por Bavinck antes de considerar qualquer questão teológica, mas a metodologia dos adeptos do teísmo relacional foi determinada por seu pressu­posto, que foi, por sua vez, determinado pelo objetivo que eles queriam alcan­çar: a defesa da liberdade humana.

Está muito claro que essa redefinição de Deus significa uma redefinição do Cristianismo. O que eu espero que você consiga enxergar é o caráter dessa mudança. Essa redefinição de Deus mudará o Cristianismo de uma religião que promulga a ética com base na atividade redentiva de Deus para uma religião que alcança a redenção com base na atividade ética do ho­mem. Enquanto busca ostensivamente “resgatar” Deus de sua responsabi­lidade pelo mal, o teísmo relacional confere ao homem o mérito de justiça intrínseca e ativa.

Se o protestantismo reformado tendia para um lado da questão, era certa­mente para falar do homem como sendo limitado e de Deus como sendo livre. Enquanto engenhosamente chamam sua doutrina de relacionalidade [ou aber­tura] de Deus, o fato é que, no sistema do teísmo relacional, é o homem que é aberto e livre, enquanto Deus é limitado. Essa doutrina, se for amplamente aceita, será o terceiro (e final?) ataque dos seguidores de Procrusto contra o Cristianismo ocidental.

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 guerra contra o Deus que age

Permanece a questão de se nós seríamos daqueles que humildemente tiram suas sandálias e ouvem Deus falando da sarça ardente ou daqueles que o amarram na cama de Procrusto. No segundo caso, nós tentamos definir Deus partindo de nosso vocabulário limitado, negando a ele aquilo que vai além de nossas limitações. Nesse caso, nós tentamos impor aos céus nossas definições. No primeiro caso, Deus tem todo o direito de definir a si mesmo, é ele quem toma a iniciativa de revelar a si mesmo e é o único realizador da redenção em nós. Israel não produziu pragas sobre o Egito, mas viu a salvação providencia­da pelo Senhor.

Nós queremos que Deus fique quieto e veja a salvação providenciada pelo homem. Nós somos pecadores determinados a roubar de Deus os seus atos, somos pecadores que “botam pra quebrar”.

O primeiro ato procrusteano do homem foi o Evolucionismo, por meio do qual nós cortamos os pés sobre os quais a ordem social foi edificada. Não foi Deus que criou por seu ato, pelo fiat: as palavras apenas aconteceram. Por­tanto, não é sobre Deus que a ordem social deve ser edificada.

O segundo ato procrusteano do homem foi o Igualitarismo, no qual os atos ordenadores de Deus foram negados. Deus foi proibido de organizar a ordem social humana, em partes e no todo. Nós esticamos e puxamos até que tudo estivesse completamente arrumado sobre a cama, sem que fosse permitido o surgimento de qualquer distinção.

O ato procrusteano final do homem é introduzido na relacionalidade de Deus, pela qual nós enfiamos sua cabeça para dentro (em nossa mente vã), negando- lhe o direito e o poder de governar todas as coisas, em todos os tempos, do começo ao fim do tempo, para realizar toda a sua santa vontade. Nós não temos Deus como aquele que age, determinando quem deve estar com Cristo no céu e quem não deve estar com ele. Todos os atos determinativos perten­cem ao homem. A evolução diz que Deus não poderia ter começado a criação; o igualitarismo diz que ele não pode ordenar a criação; o teísmo relacional diz que ele não a completará.

O caminho para o terceiro ataque procrusteano está sendo pavimentado pela doutrina relacional. Em “Gutting the Godhead”, uma revisão de The Openness o f God, o pastor Richard C. Kleug observa:

O fato de que essa tese ganharia uma audiência favorável entre os cristãos professos é uma indicação evidente do alastramento da corrupção doutri­nária. Nossos antepassados - tanto calvinistas quanto arminianos - fica­riam horrorizados em pensar que seus sucessores negariam a presciência de Deus. [Na abordagem deste livro] é mais instrutivo ler a última seção

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A Sarça de Moisés ou a cama de Procrusto? 177

primeiro, considerando as implicações práticas da visão relacional de Deus. Na consideração dessas implicações você verá que a orientação que Deus dá pode estar errada, que a oração para que Deus aja no coração de outras pessoas pode ser considerada imprópria e que as provações não têm, necessariamente, um propósito. Então volte e veja qual caminho os auto­res relacionais tiveram que tomar para chegar nesse deserto. O “Deus relacional” pintado aqui, sem dúvida, terá um grande apelo àqueles que buscam um Deus levemente terapeuta e que, acima de tudo, são zelosos para garantir a soberania absoluta da vontade humana.

O que nós encaramos quando olhamos para a visão relacional é a fase três do procedimento procrusteano do homem. Através da fase um, nossa aceita­ção da evolução e nossa rejeição de nosso Criador, nós perdemos nossos fun­damentos. Perdemos o fundamento do trabalho e do descanso, do casamento e da família, do certo e do errado. Ao falharmos em seguir a definição que Deus dá de si mesmo (Criador Todo-Poderoso do céu e da terra), nós perdemos a habilidade de definir a nós mesmos. Tudo foi construído por usurpação, e aque­le que morreu com a mão fechada foi considerado vencedor.

Com a fase dois, na qual o Igualitarismo substituiu a liderança pactuai, a destruição da família foi garantida. Marido e mulher não seriam mais uma uni­dade pactuai, mas um par de entidades guerreiras competindo pelo poder. Es­palhando a autoridade igualmente pela cama de Procrusto, toda ela foi perdida. Somente o poder permaneceu. O poder dá direitos, e o poder é buscado me­diante maquinações políticas e coerção estatística.

A fase três busca remover o que quer que ainda reste da soberania de Deus- particularmente removendo da sociedade o testemunho que lhe é dado pelas Igrejas e pelos indivíduos reformados. Existe o risco de perdemos mais do que perdemos até agora. É por isso que o pastor Kleug é sábio quando nos sugere dar uma olhada no fim do livro primeiro. “Veja o que você abandonará: a orien­tação de Deus, a oração, e o sentido”. Quando nós deixamos de ouvir Deus falando da sarça ardente e imaginamos que podemos cirurgicamente alterá-lo três vezes na cama de Procrusto, nós perdemos nosso fundamento seguro, perdemos nossa ordem de vida, e, finalmente, perdemos nossa esperança.

Permita que a publicação desse livro seja uma oportunidade para uma reno­vação da unívoca religião cristã. Permita que ela seja uma oportunidade para retomarmos às nossas grandes declarações de fé. Permita que ela seja a opor­tunidade para que cada cristão confesse com seu coração e com sua boca:

Meu único consolo, na vida e na morte, é que eu, com corpo e alma, tanto na vida como na morte, não pertenço a mim mesmo, mas a meu fiel Salva­dor Jesus Cristo, que me livrou de todo o poder do diabo, satisfazendo

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inteiramente por seu precioso sangue por todos os meus pecados, e me guarda de tal maneira que, sem a vontade de meu Pai celestial, nem um só fio de cabelo pode cair de minha cabeça, antes é necessário que todas as coisas cooperem para minha salvação. Por isso também me assegura, por seu Espírito Santo, a vida eterna, e me deixa pronto e equipado para viver diante de sua santa vontade.15

Essa realmente é uma questão de sim ou não. Ou nós nos reunimos com os santos para ouvir Deus definindo todas as coisas, como na sarça ardente, ou nós nos reunimos com aqueles que tentam definir Deus, imaginando-o preso a uma cama de Procrusto, destruindo a si mesmos com cada ataque frívolo que lançam contra ele.

Encontre-me na sarça.

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12Idolatria Relacional

Filhinhos, guardai-vos dos ídolos.IJoão 5.21

Joost F. Nixon

Por muitos anos, o teísmo relacional foi um tema discutido por “teólogos e filósofos profissionais” nas vielas e becos de revistas teológicas técnicas.1 Am­plamente confinado aos círculos acadêmicos, onde a negação das doutrinas his­tóricas caracteriza a erudição, o teísmo relacional fez pouco dano à Igreja como um todo, mas, em sua magnanimidade, os adeptos do teísmo relacional decidiram compartilhar seu pequeno segredo com o público não-acadêmico. Será realmen­te surpreendente se esses homens estiverem fazendo uma verdadeira correção na teologia cristã, que perambulou errante por dois milênios.2 Mas se, como nós suspeitamos, essa é uma velha heresia reaquecida e vestida com roupagens pós- modemas, então muito obrigado, mas passe a carne e as batatas.

Os articulistas deste livro afirmam que a teologia relacional não é somente feia e errada, mas também é má. Aqui, inevitavelmente, alguém reclamará de antipatia: “Nós temos um diálogo pacífico, tratando de questões difíceis, ex­plorando um novo paradigma sobre a natureza de Deus, e esses grossos co­meçaram a ser malcriados”. São feitos apelos para que “nos amemos uns aos outros em meio às nossas divergências”, porque isso é apenas um “debate sobre a natureza do futuro”,3 e, “comparada à nossa fé comum na pessoa de Jesus Cristo e à importância da unidade amorosa que temos nele, essa e outras questões teológicas são periféricas”.4 Mas, enquanto concordamos que deve­mos amar uns aos outros, nós certamente discordamos sobre a importância do debate. O debate não é meramente sobre a importância do futuro, mas sobre a própria natureza de Deus e do evangelho.5 E, quando os interesses são tão elevados, o que precisamente o amor exige? O amor exige que palavras fora de moda, como “anátema”, “heresia” e “pecado” sejam empregadas onde for apropriado. Admitidamente, em nossos dias, em que a falta de tolerância é

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realmente a única atitude intolerável, nós estamos em clara desvantagem retó­rica quando recorremos a essa linguagem clara, mas confiamos que o leitor entenderá que o amor, e não uma disposição beligerante, estimula a linguagem que certamente será lida como carente de amor por nossa geração insípida.

Outros capítulos deste livro se dedicaram a mostrar que a doutrina do teísmo relacional é feia e anti-bíblica. Mas também há implicações morais na marcha de uma falsa doutrina, especialmente em uma doutrina tão perniciosa quanto o teísmo relacional, que precisam ser expostas. Thomas Ascol e Steve Schlissel discutiram as ramificações pastorais e culturais do teísmo relacional em suas contribuições para este livro, e eu espero acrescentar ao seu testemunho focalizando apenas um, porém muito importante, ponto: o teísmo relacional transgride o terceiro manda­mento, imputando ao amor de Deus características que a Bíblia atribui aos ídolos.

ídolos do coração

Embora o teísmo relacional tenha ramificações soteriológicas que são ver­dadeiramente assustadoras,6 seu principal ataque é contra a própria Pessoa de Deus. Reconhecendo que os atributos de transcendência, tais como a imutabilidade e a onisciência de Deus, saíram de moda há dois séculos, os defensores do teísmo relacional sacaram suas tesouras teológicas para resol­ver o aparente problema. Tragicamente, em sua tentativa de fazer com que Deus seja relevante, eles o privaram de sua majestade. Privando Deus de sua majestade, eles deixaram o homem arruinado e sem esperança. Esse é o efeito cascata que ocorre quando Deus é depreciado. Os ídolos, sejam feitos em fundições ou nas torres de mármore das academias, sempre têm um efeito devastador sobre aqueles que os cultuam. “Tomem-se semelhantes a eles os que os fazem e quantos neles confiam” (SI 115.8). E o que são os ídolos, aos quais os idólatras se tomam semelhantes? Como nós examinaremos mais deti­damente logo adiante, eles são vãos, inúteis e desprovidos de significado. Não é de se estranhar, então, que Deus proíba a idolatria no segundo mandamento:

Não farás para ti imagem de escultura, nem semelhança alguma do que há em cima nos céus, nem embaixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não as adorarás, nem lhes darás culto; porque eu sou o Senhor, teu Deus, Deus zeloso, que visito a iniqüidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem e faço misericórdia até mil gerações daqueles que amam e guardam os meus mandamentos (Ex 20.4-6).

A idolatria tem ramificações culturais massivas. Nós aprendemos a pecar como nossos pais, e geralmente são necessárias muitas gerações para

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desaprender a cometer o pecado - uma vez descoberto o erro. Enquanto nós agimos assim, as sanções e os juízos pactuais estão agindo contra nós. Os defensores do teísmo relacional não são pesquisadores desconhecidos, e sua influência no evangelicalismo não deve ser subestimada. Se sua teologia ga­nhar a discussão, gerações de cristãos cairão na idolatria.

O segundo mandamento se refere primariamente a ídolos de madeira, pedra e metal, mas os filhos da cultura ocidental estão muito longe de dobrar seus joelhos e glorificar bonecos, e, como um subgrupo da cultura ocidental, os teó­logos profissionais não são exceção - afinal, o que eles diriam ao seu presbité­rio? Não - para a modernidade, uma forma muito mais segura e respeitável de idolatria é a diversidade mental.7 Mas somente porque os idólatras modernos não eregem altares a Baal em seu quintal isso não significa que eles estejam isentos da censura de Deus. Deus informa a Ezequiel:

Filho do homem, estes homens8 levantaram os seus ídolos dentro do seu coração, tropeço para a inquidade que sempre têm eles diante de si; acaso, permitirei que eles me interroguem? (Ez 14.3)9

Os ídolos do coração podem ter diferentes formas, mas, para nosso propó­sito, eu quero tratar de um tipo de idolatria do coração que cultua um falso deus sob o nome do verdadeiro Deus, Yahweh. Esse tipo de idolatria agita-se diante do terceiro mandamento ao atribuir ao verdadeiro Deus a vaidade dos ídolos. Esse é um ataque à reputação do Deus vivo,10 e essa é a idolatria que os teólogos relacionais cometem.

O que está em um nome?

De todas as dez palavras dadas na coluna de fogo e na nuvem de fumaça do Sinai, talvez a menos compreendida seja a terceira. Poucos versículos são tão ricos e ao mesmo tempo compreendidos com tanta superficialidade pelos cristãos:

Não tomarás o nome do Senhor [Yahweh], teu Deus, em vão, porque o Senhor não terá por inocente o que tomar seu nome em vão (Êx 20.7).11

O contexto é particularmente importante aqui. Os dez mandamentos foram dados no Sinai e o povo não viu “aparência nenhuma no dia em que o S e n h o r ,

vosso Deus, vos falou em Horebe, no meio do fogo” (Dt 4.15). O segundo mandamento chama a atenção para esse, proibindo a representação de Deus sob qualquer forma ou imagem. Em vez disso, Deus - que é Espírito - é repre­sentado por algo imaterial, ou seja, seu nome.12 E assim nós temos o terceiro

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mandamento, que afirma que a representação legal de Deus (seu nome/repu­tação) não deve ser aviltada.

O que está em um nome? Muita coisa - especialmente para os escrito­res bíblicos. O nome de Deus é uma metonímia de sua Pessoa.13 O nome é uma palavra-símbolo que denota a Pessoa de Deus. Na oração sacerdotal do Messias, ele diz: “Manifestei o teu nome aos homens que me deste no mundo” (Jo 17.6). Jesus não está dizendo aqui que teve o cuidado de pro­nunciar o nome de Deus todo o tempo. Ele está dizendo que demonstrou, na carne, a Pessoa e o caráter de Deus enquanto esteve na terra.14 Outro exemplo está no Salmo 20.1, que diz: “O S e n h o r [Yahweh] te responda no dia da tribulação; o nome do Deus de Jacó te eleve em segurança” (SI 20.1). Aqui, novamente, o próprio Deus é aquele que deve ser invocado para dar proteção, como representado em seu nome. O uso da metonímia não é estranho a nós, que ficamos irados quando alguém queima a bandeira ou cospe na foto de nossa mãe.

Contudo, o nome de Deus é mais do que somente uma metonímia de sua Pessoa. O nome de Deus revela aspectos de seu caráter e, portanto, um ata­que ao seu caráter é um ataque ao seu nome. O Senhor quis revelar previa­mente aspectos de seu caráter por meio de seu nome, Yahweh:

Falou mais Deus a Moisés e lhe disse: Eu sou o Senhor. Apareci a Abrão, a Isaque e a Jacó como Deus Todo-Poderoso; mas pelo meu nome, o Senhor, não lhes fui conhecido (Ex 6.1,2).

Uma abordagem superficial a esse texto pode sugerir que o nome “Yahweh” só se tomou conhecido a partir dos dias de Moisés. No entanto, o nome aparece nas Escrituras antes do encontro de Moisés com Deus na sarça ardente (por exemplo, em Gênesis 2.4) e os homens começaram a invocar o nome do Senhor nos dias de Enos (Gn 4.26). Assim, embora o nome fosse empregado antes de Êxodo 6, Deus ainda não tinha revelado o significado que ele pretendia que o nome tivesse. J. A. Motyer oferece a seguinte tradução interpretativa de Êxodo 6.2,3:

E Deus falou a Moisés, dizendo: Eu sou Yahweh. Eu me mostrei a Abraão, a Isaque e a Jacó no caráter de El Shadai, mas no caráter expresso pelo meu nome Yahweh eu não me tornei conhecido a eles...15

O nome Yahweh, então, devia comunicar - de uma forma que uma imagem física não podia - o caráter de Deus. Até o princípio do Êxodo, o nome era como uma tenda desocupada. A partir dos eventos do Êxodo, porém, Deus ocuparia a tenda com uma figura de seu caráter, demonstrando ao povo o que sig­nifica ser Yahweh. De fato, quando Moisés clamou pedindo a Deus que

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mostrasse sua glória (Êx 33.18,19), Deus respondeu proclamando o seu nome e fazendo uma exposição dele.

Tendo o Senhor descido na nuvem, ali esteve junto dele e proclamou o nome do Senhor. E, passando o Senhor por diante dele, clamou: Senhor,Senhor Deus compassivo, clemente e longânimo e grande em misericór­dia e fidelidade; que guarda a misericórdia em mil gerações, que perdoa a iniqüidade, a transgressão e o pecado, ainda que não inocenta o culpa­do, e visita a iniqüidade dos pais nos filhos, até a terceira e quarta gera­ção (Êx 34.5-7).

O nome de Deus é cheio de significado. Ele é o Deus da glória, que mostra misericórdia e longanimidade ao povo da sua aliança e exerce o juízo (Êx 34.6,7). Ele é um guerreiro que destrói seus inimigos (Êx 15.3-7). Ele é um redentor que decisamente resgata seu povo do cativeiro (Êx 20.2). E até aqui nós estamos apenas colocando os pés no Êxodo. Deus, progressivamente, vai revelando mais aspectos de sua natureza ao longo de todo o Antigo Testamento até o Novo, de forma que as suas perféições vão se tornando manifestas. Essas perfeições, como têm sido entendidas pela ortodoxia histórica há milhares de anos, estão em claro contraste com a inutilidade e impotência dos ídolos. A visão de Deus que a Bíblia nos dá equilibra a imanência e a transcendência de Deus de uma forma que as doutrinas idólatras não conseguem fazer. Ao contrário das noções dos deístas, Deus está envolvido com sua criação. Ele é onipresente e, mediante sua providência, cuida de tudo o que suas mãos fizeram. Ele é uma Pessoa e, por­tanto, é relacional, e não, como Pinnock caricaturiza, “um olhar cósmico que não pisca”.16 Contudo, ao contrário do que dizem o panteísmo e a teologia do pro­cesso, Deus também é transcendente acima de toda a criação e distinto dela (Rm 1.23). É esse elemento - esse elemento transcendente das perfeições de Deus - que os igualitários modernos descartam.

Maqueando Deus

Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua boa vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes? (Dn 4.35)

Os leitores modernos lêem esse texto, e outros textos semelhantes a esse, com a boca fechada e sobrancelha franzida. Depois do espanto inicial, eles rapidamente se prontificam a levar Deus a alguma aula de boas maneiras. Afinal, quem ele pensa que é? O texto acima não tem por implicação dizer que

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Deus é de alguma forma melhor do que nós? E ele é? Mesmo? E o que fazer com o paradigma de liderança autoritária de Deus? Isso é coisa dos anos oitenta, você sabe. Deus não sabe que grupos de decisão são muito superiores ao seu modelo fascista?

Admito que o teísmo relacional está em vantagem aqui. Na mente contem­porânea, Deus não está sintonizado com a recente literatura administrativa e nem está sendo muito sensível às normas culturais do século 21.17 O Deus transcendente da Bíblia é terminantemente sem jogo de cintura. Não é de se surpreender que nossas tentativas de avivamento sejam respondidas de forma tão pobre. Mas não se preocupe! Embora os defensores da teologia relacional fiquem meio incomodados com o estilo retrógrado de Deus, por serem compa­nheiros amorosos e condescendentes, eles estão dispostos a ajudá-lo a sair desse embaraço com um bom maquiador. Um pequeno corte de onipotência aqui, uma torcida naquelas incômodas passagens sobre preordenação ali, e ele estará pronto para se tomar uma divindade mais relevante e simpática. Mas nenhuma maquiagem está completa sem uma atualização do vestuário. Os mantos da majestade divina devem ser trocados pela camisa colorida da mutabilidade. Agora está melhor. Agora Deus se parece muito mais... conosco!

O problema com a maquiagem relacional é exatamente esse - seu deus se parece muito conosco, e se parece também muito com a representação bíblica dos ídolos. O nome de Deus - seu caráter santo - foi reelaborado de tal forma que Deus foi despido de sua divindade. Como Deus não é representado por imagens fundidas, mas pelo seu nome, porque ele é Espírito e seus atributos não podem ser vistos, é vitalmente importante que ele seja representado com palavras adequadas à sua glória para que seja anunciado entre as pessoas sem que elas caiam na idolatria da mente. Isso nos remete novamente ao terceiro mandamento:

Não tomarás o nome do Senhor [Yahweh], teu Deus, em vão, porque o Senhor [Yahweh] não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão (Êx20.7).

No terceiro mandamento, Yahweh proíbe especificamente que a vaidade18 seja atribuída à sua Pessoa. A palavra hebraica shaw significa “vacuidade, nulidade, frivolidade”, podendo se referir tanto ao discurso quanto à conduta.19 A mesma palavra é empregada para designar uma vogal hebraica (shewa) que é tão pequena e insignificante que nem sempre é pronunciável. Portanto, a palavra “designa qualquer coisa que seja insubstancial, irreal, inútil, seja mate­rial ou moralmente. Portanto, essa é uma palavra usada para designar os ído­los”.20 Quando examinamos seu uso na Escritura, percebemos que eventual­mente essa palavra denota homens e ídolos que não merecem confiança. Um exemplo desse uso é encontrado em Jeremias 18.15:

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Todos os do meu povo se têm esquecido de mim, queimando insenso aos ídolos [vãos], que os fizeram tropeçar nos seus caminhos e nas veredas antigas, para que andassem por veredas não aterradas (Jr 18.15).

Em vez de andarem nas veredas antigas, os filhos de Israel se esqueceram de Deus e o substituíram pelos ídolos21 - blocos inanimados de madeira que não podem socorrer àqueles que a eles recorrem (cf. SI 115.1-8). Que contras­te eles fazem com o Deus vivo, cujo braço não está encolhido para que não possa salvar! Outra ocorrência é encontrada em Salmos 60.10,11:

Não nos rejeitaste, ó Deus? Tu não sais, ó Deus, com os nossos exércitos! Presta-nos auxílio na angústia, porque vão é o socorro do homem (SI 60.10,11).

“Vão” é uma palavra usada para descrever homens e ídolos que são inúteis e impotentes. Eles não podem salvar. Esse conceito é totalmente inadequado para ser usado com referência ao Deus vivo. Enquanto os teístas relacionais nunca empregam a palavra “vão” para descrever Deus, eles empregam o con­ceito quando limitam a habilidade de Deus para realizar seus propósitos.

Os teístas relacionais afirmam que, eventualmente, Deus é ameaçado.22 Ou melhor, Deus pode realizar sua vontade, mas em alguns casos isso só é possível se outros agentes livres cooperarem.23 Isso se aplica à oração. Sanders es­creve: “Nossa falha em praticar a oração impetratória significa que certas coisas que Deus deseja fazer por nós podem não ser possíveis24 porque nós não pedimos”. Nas palavras de Peter Baelz, “nosso pedido em fé pode tomar possível que Deus faça algo que ele poderia não ter feito se nós não pedíssemos".25 As boas intenções de Deus são motivadas pelas orações do homem? Os homens capacitam Deus? Misericórdia! Talvez Sanders devesse reescrever o texto do Salmo 127.1 mais ou menos da seguinte maneira:

Se os que edificam a casa não cooperarem,Em vão o Senhor a edifica

Sanders também aplica sua teologia à encarnação: “Deus coloca sua confi­ança em [Maria e José] dando seu consentimento aos riscos envolvidos. A encarnação não acontece por meio de um derramamento completo de poder, mas por meio da vulnerabilidade de ser genuinamente dependente de alguns camponeses judeus”.26 É espantoso para mim que, em vez de os homens colocarem sua confiança em Deus de que ele cumprirá suas promessas, nós temos aqui Deus colocando sua confiança nos homens! Além disso, é irônico que o salmista seja suficientemente sábio para saber que vão é o socorro do homem (SI 60.11), mas, de acordo com os teístas relacionais, Deus não sabia

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disso. E se o auxílio de Deus depende do auxílio de milhões de agentes livres e de suas atitudes más - auxílio que as Escrituras nos dizem que é vão - então o que podemos dizer sobre Deus? Bem, podemos dizer que seu braço onipotente foi amputado acima do cotovelo. Ou talvez uma explicação mais provável seja que os teístas relacionais estejam tão engajados na idolatria que estejam atribu­indo a Deus o comportamento que ele mesmo censura por ser amaldiçoado:

Assim diz o Senhor [ Yahweh]: Maldito o homem que confia no homem, faz da carne mortal o seu braço e aparta o seu coração do Senhor [Yahweh] (Jr 17.5).

Aqui, Yahweh é o lugar próprio para depositarmos nossa fé e nossa dependên­cia, e o homem, mesmo o melhor, é a pior aposta. A afirmação feita pelo teísmo relacional de que Deus é incapaz de realizar elementos de seu plano rebaixa a majestade de Deus e põe o Altíssimo no mesmo nível que um Buda de bronze.

Mas os teístas relacionais não somente questionam a habilidade de Deus em realizar “todas as coisas segundo o conselho de sua vontade” (Ef 1.11),27 eles também colocam em questão a onisciência de Deus a respeito do futuro. Como outros teólogos28 já mencionaram tão enfaticamente, a própria divinda­de está relacionada à sua presciência. De fato, Deus identifica a incapacidade de declarar o futuro como uma característica dos ídolos:

Apresentai a vossa demanda, diz o Senhor [Yahweh]; alegai as vossas razões, diz o Rei de Jacó. Trazei e anunciai-nos as coisas que hão de acontecer; relatai-nos as profeciais anteriores, para que atentemos para elas e saibamos se elas se cumpriram; ou fazei-nos ouvir as coisas futu­ras. Anunciai-nos as coisas que ainda hão de vir, para que saibamos que sois deuses; fazei bem ou fazei mal, para que nos assombremos, e junta­mente o veremos (Is 41.21-23).

Deus considerou a falha dos ídolos em predizer os eventos futuros como uma evidência incontestável de que eles são uma fraude. Ahabilidade de predizer o faturo (e de decretá-lo) é parte da divindade de Deus. Em outro contexto, no qual faz um paralelo entre sua glória incomparável e a vaidade dos ídolos, Yahweh diz:

Eu sou o Senhor [Yahweh], este é o meu nome; a minha glória, pois, não a darei a outrem, nem a minha honra, às imagens de escultura. Eis que as primeiras predições já se cumpriram, e novas coisas eu vos anuncio; e, antes que sucedam, eu vo-las farei ouvir (Is 42.8,9).

Deus não quer confusão entre a Divindade verdadeira e ídolos impotentes. Sua glória, como representada por seu nome, nunca será dada aos ídolos. Em

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contraste com eles, Yahweh faz uma coisa que eles não fazem - ele anuncia “novas coisas antes que sucedam”. Mas observe, agora, como os teístas relacionais dão a glória de Deus a outrem. Eles tomam seu santo nome e o atribuem a uma divindade que não conhece, e por isso não pode declarar, o futuro. Por exemplo, eventos tão importantes quanto a queda foram “totalmen­te inesperados”29 e nem mesmo a cruz foi planejada.30 Sanders sabe que está fazendo uma afirmação radical: “A noção de que a cruz não foi planejada parece­rá escandalosa alguns leitores”.31 Nesse ponto ele está certo. Sua afirmação realmente causa escândalo, pois é um ataque direto à divindade de Cristo.

Na noite em que foi traído, Jesus disse aos seus discípulos: “Desde já vos digo, antes que aconteça, para que, quando acontecer, creiais que Eu Sou” (Jo13.19). John Piper explica a importância dessa afirmação:

Com as palavras Eu Sou, Jesus reivindica a divindade nas mesmas palavras que Deus usa para se referir a si mesmo em textos como Isaías 43.10 (“Vós sois as minhas testemunhas, diz o Senhor, o meu servo a quem escolhi; para que saibais, e me creiais, e entendais que Eu Sou”). E a garantia para que os discípulos creiam que ele é divino, segundo ele mesmo, é que ele está anun­ciando aos seus discípulos eventos que ainda não aconteceram.32

Os evangelhos são tão explícitos ao demonstrar que Cristo conhecia de ante­mão o que lhe aconteceria que Sanders tem que ir a profundezas extraordinárias para explicar que realmente ele não sabia. Um exemplo é seu excruciante trata­mento da traição de Judas. Judas não está realmente traindo Jesus, mas intermediando um encontro entre Jesus e o sumo sacerdote de forma que eles pudessem “resolver suas diferenças e realizar reformas necessárias”.33 É curio­so que uma conversa tão amigável pudesse acabar na ponta de uma espada (Jo 18.3) - mas não vamos nos deter em mesquinharias. Sanders conclui que “está claro que Judas não está traindo Jesus e que Jesus não está fazendo qualquer predição de uma atividade desse tipo”.34 Claro? Claro como um copo de café.

Voltemos ao nosso ponto. A presciência de eventos futuros é uma característica da Divindade, e a ausência dessa habilidade é um atributo dos ídolos vãos. A onipo­tência é uma perfeição de Deus, e a impotência é uma característica dos ídolos. Os teístas relacionais negam a Yahweh a primeira qualidade35 e atribuem a ele a se­gunda, cultuando, dessa forma, um deus falso sob o nome do Deus verdadeiro. Isso, como eu já disse, é exatamente o que é proibido no terceiro mandamento.

Zelo por seu nome

Os pecados não são criados da mesma forma. Há uma espécie de graus de culpabilidade e juízo. Jesus nos diz, por exemplo, que Corazim e Betsaida sofre-

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rão juízo mais severo do que Sodoma, pois os sodomitas teriam se arrependido se tivessem visto os milagres que Cristo realizou (Mt 11.21).

Algumas transgressões, por causa de sua natureza pessoal, afetam menos uma pessoa do que outras, que são pecados públicos, e nós podemos imaginar que eles receberão um juízo proporcionalmente menor. Enquanto todos os peca­dos são igualmente cometidos contra Deus, alguns pecados são mais pessoal­mente dirigidos contra ele do que outros. Esses pecados, por causa do status exaltado da pessoa contra a qual são praticados, receberão um juízo mais severo. É claro que alguns pecados se encaixam nas duas categorias. Eles são ataques públicos contra a Pessoa de Deus que acarretam enormes conseqüências soci­ais. A idolatria, que sempre foi um laço, é um desses pecados, e a idolatria que representa erradamente a própria natureza de Yahweh ao seu povo talvez seja a mais sutil e devastadora forma de pecados públicos. Esse foi o pecado de Jeroboão, que redefiniu Yahweh e cujo pecado “fez pecar Israel”.36

Deus leva esse pecado muito a sério e promete recompensar o pecador de forma apropriada. Considerando tudo isso, Yahweh é zeloso de seu nome, e não permitirá que ele seja profanado ou tratado como algo comum (cf. Ez 20.9,14,22,44). O próprio Deus afirma sua distinção e transcendência - sem depreciar sua imanência - contra aqueles que borram as linhas. Isso é visto na última oração de Êxodo 20.7: “O S enhor [Yahweh] não terá por inocente aque­le que tomar seu nome em vão”. Se a Palavra de Deus é verdadeira, eu penso que nós podemos esperar ver Deus julgando essa heresia com mão firme. Nós esperamos, pela misericórdia de Deus, que isso aconteça logo.

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Epílogo

Douglas J. Wilson

A fé cristã histórica tinha uma grande história de inércia atrás de si quando chegou às praias da América. Enquanto várias formas de frutos logo cercaram a fé aqui, enquanto a erosão confessional certamente ocorria e enquanto o avivalismo e o subjetivismo prejudicavam grandemente a Igreja, a fé cristã aqui estava, para usar a frase de Chesterton, cambaleando, mas de pé.

As forças do Iluminismo e da modernidade expulsaram os exércitos de fé da Europa, provocando o que hoje vemos ali, uma hegemonia praticamente total da incredulidade. Na América, as forças da modernidade conquistaram todos os centros culturais importantes, e, metaforicamente falando, confinaram os fiéis ao interior, e, desse lugar improvável, do século passado em diante, os crentes têm reunido uma resistência vibrante, bem fundamentada, valente, que tem agido como um efetivo movimento de guerrilha - difícil de rastrear e espalhada por todo o território - ontem, hoje e para sempre. Mas, por causa de nossas deficiên­cias constrangedoras e da ampla difusão do anti-intelectualismo em nossas filei­ras, nós fomos forçados a enfrentar divisões de tanques de guerra com alguns pedaços de pau que encontramos pelo chão. Mas pelo menos nós lutamos.

Esse não é mais o caso. As antigas denominações principais agora estão moribundas, e o centro numérico tem mudado a favor dos evangélicos, que são muito mais enérgicos e ativos. Desde a Segunda Guerra Mundial, o moderno evangelicalismo foi se tomando a forma predominante de expressão religiosa na América. Essa afirmação pode ser contestada vigorosamente - e a Nova Era? - mas nós podemos mostrar fatos. A cada sete estações de rádio nesse país, uma é evangélica. Há partes do país nas quais não se pode brincar com um gato sem se topar com uma mega-igreja e nós temos nossas próprias enor­mes redes de “bugingangas evangélicas”. Apenas imagine o que aconteceria se os comunistas ou os muçulmanos tivessem o que nós temos.

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190 Eu não sei mais em quem tenho crido

Mas com esses números, o dinheiro, a influência e a respeitabilidade acadê­mica, veio a vontade de entrar no embalo de toda essa ação intelectual vibrante do Iluminismo. Há os evangélicos para você - vários séculos depois e um dólar a mais. Nós estamos descobrindo que o evangelicalismo moderno tem seguido cuidadosamente o exemplo apresentado pelos liberais na geração passada e por Israel1 há muito tempo atrás - ele inchou.

A ameaça central hoje nos é apresentada pelo movimento do teísmo relacional. A ameaça é dupla. A primeira é o problema óbvio da aceitação e crença na heresia. Se todas as implicações desse “novo modelo” fossem extraídas de arti­gos, revistas e livros e colocadas juntas em uma afirmação de fé, nós considera­ríamos essa confissão semelhante ao compromisso doutrinário das testemunhas de Jeová ou dos mórmons. Esse não é um desacordo sobre aquilo em que os cristãos podem diferir uns dos outros com boa consciência. Essa separação não é comparável às diferenças que existem entre batistas e presbiterianos. A doutri­na da relacionalidade de Deus não é uma forma reconhecível de fé cristã. Aque­les que aceitam esse ensino estão, pelo menos, em um estágio inicial de apostasia. Se eles se tomarão totalmente apóstatas ou não, é uma questão que só poderá ser respondida depois que eles rejeitarem uma ou duas admoestações fiéis.

A segunda ameaça é ainda mais insidiosa. Ela é oriunda dos crentes ortodoxos que têm se treinado, no decorrer do tempo, em se recusar a fazer distinções cuida­dosas. Eles são pessoalmente ortodoxos e não concordam que Deus não conheça o futuro, mas ao mesmo tempo eles acham que os teístas relacionais podem ser aceitos como evangélicos. Em resumo, eles entendem a diferença doutrinária no papel e podem conversar sobre ela, mas não compreendem a magnitude da dife­rença doutrinária. Eles não têm idéia do que está em jogo.

A Bíblia exige que os líderes cristãos conheçam esses temas, de forma que os pastores cristãos saibam identificar os lobos. Uma pessoa pode ser ortodoxa e, ainda assim, não ser qualificada para o ministério. Um homem pode gostar das ovelhas sem estar preparado para lutar contra os lobos.

Nesse conflito, nós encaramos falsos mestres, cuja boca deve ser calada (Tt 1.11). Isso não pode ser feito por aqueles que pensam que não há necessidade disso. Esses presbíteros não-combativos não devem ser excluídos da igreja, mas certamente são desqualificados para o ministério, pois estão sendo infiéis à in­cumbência que foi dada aos presbíteros - pastorear o rebanho de Deus que lhes foi confiado. Essa é a preocupação central do Novo Testamento.

Atendei por vós e por todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos, para pastoreardes a igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu próprio sangue. Eu sei que, depois da minha partida, entre vós penetrarão lobos vorazes, que não pouparão o rebanho. E que, dentre vós mesmos, se levantarão homens falando coisas pervertidas para ar­

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Epílogo 191

rastar os discípulos atrás deles. Portanto, vigiai, lembrando-vos de que, por três anos, noite e dia, não cessei de admoestar, com lágrimas, a cada um (At 20.28-31).

Como nós temos sido relutantes em pregar todo o conselho de Deus, chega­mos ao ponto em que não podemos nos opor efetivamente àqueles que negam todo o conselho de Deus. Como nós não temos alimentado a Igreja de Deus, nós perdemos a habilidade de lutar contra aqueles que falam perversidades e que arrastam os discípulos consigo.

Prega a Palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina. Pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de mestres segundo suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos; e se recusa­rão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas. (2Tm. 4.2-4)

O que nós mais amamos é ensinar a verdade e esquecer o erro. Nós não queremos atacar a mentira, porque temos um amor perverso em atacar menti­ras. A razão central pela qual um ministro bíblico odeia a mentira é que ela ameaça a verdade, que é tão preciosa para ele. Um homem que observa com- placentemente enquanto sua esposa é seqüestrada não ama sua esposa, mes­mo que ele prometa visitá-la no hospital. Em situações como essa, a única coisa que o amor sabe fazer é lutar. Muitos líderes cristãos tratam a verdade do evangelho da mesma forma que o levita tratou sua concubina no livro de Juizes: “Espero que você fique boa logo. Vamos, levante-se - nós temos que ir”.

Amados, quando empregava toda a diligência em escrever-vos acerca da nossa comum salvação, foi que me senti obrigado a corresponder-me convosco, exortando-vos a batalhardes, diligentemente, pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos. Pois certos indivíduos se introduzi­ram com dissimulação, os quais, desde muito, foram antecipadamente pro­nunciados para esta condenação, homens ímpios, que transformam em libertinagem a graça de nosso Deus e negam o nosso único Soberano e Senhor, Jesus Cristo. Quero, pois, lembrar-vos, embora já estejais cientes de tudo uma vez por todas, que o Senhor, tendo libertado um povo, tiran- do-o da terra do Egito, destruiu, depois, os que não creram (Jd 3-5).

Como este livro mostrou, se esse “novo modelo” teológico não é uma here­sia, então a heresia não existe. Se ele não merece ter essas severas condena­ções das Escrituras aplicadas a si mesmo, então os articulistas desse livro pre­cisam encontrar um trabalho útil, como dirigir um caminhão ou algo parecido.

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Notas

Prefácio1 Cf. Greg Boyd, The God o f the Possible (Grand Rapids: Baker, 2000), 15-17,114-118.2 Cf. Clark Pinnock, et. al., The Openness o f God (Downers Grove: Illinois: Inter Varsity Press,

1994), p. 159.3 Cf. Gregory A. Boyd, Trinity and Process: A Critical Evaluation and Reconstruction o f

Hartshom e’s Di-Polar Theism Towards a Trinitarian Metaphysics (Nova York: Peter Lang, 1992), prefácio.

4 Millard Erickson, The Evangelical Left: Countering Postconservative Evangelical Theology (Grand Rapids: Baker, 1997), p.91.

5 Donald G Bloesch, God the Almight (Downers Grove: InterVarsity, 1995), p.258.

Capítulo 11 John Sanders, The God Who Risks (Downers Grove: InterVarsity Press, 1998), contra-capa.

Ênfase minha.2 Clark Pinnock, org., The Opennes o f God (Downers Grove: InterVarsity Press, 1994), p.108.3 John Sanders, The God Who Risks (Downers Grove: InterVarsity Press, 1998), p.74.4 Albert Barnes, Barnes’ Notes/Psalms (Grand Rapids: Baker, 1987), p.17.5 John Sanders, The God Who Risks (Downers Grove: InterVarsity Press, 1998). p.69.6 C. S. Lewis, God in the Dock (Grand Rapids: Eerdmans, 1970), p. 184.7 Pinnock, Openness, p. 121.8 Clark Pinnock, org., The Openness o f God (Downers Grove: InterVarsity Press, 1994), p.122.9 Ibid., p. 118.10 Ibid., p. 124.11 Ibid., p. 119.

Capítulo 21 John Sanders, The God Who Risks: A Theology o f Providence (Downers Grove: InterVarsity

Press, 1998), p. 11.2 Ibid., p. 15.

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194 Eu não sei mais em quem tenho crido

3 Paul Ricouer, tradução de Robert Czerny, The Rule o f Metaphor (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1978), p.255.

4 Gemma Corradi Fiumara, The Metaphoric Connections Between Language and Life (Nova York: Routledge, 1995), p.11.

5 Sanders, Risks, p. 17 (itálico meu).6 Ibid.7 Kelley, David, The Art o f Reasoning, 2ed. (Nova York: W. W. Norton, 1994), p.72.8 Thomas Hobbes, Leviatã (Indianápolis: Bobis-Merril Educ. Publ., 1982 [1651]) I, IV, 38 e I, V,

50.9 John Locke, An Essay Concerning Human Understanding, ed. Nidditch, Peter (Oxford: Claredon

Press, 1991 [1689]) Bk. Ill, 34, 508.10 Sanders, Risks, p.21.11 Ibid.12 Ibid., págs.21,22.13 Ibid., p.22.14 Ibid, p.24.15 Ibid.16 Ibid.17 Ibid., p.24,25.™Ibid., p.25.19 Ibid.20 Ibid., p.30.21 Ibid., p.31.22 Ibid., p.37.23 Wittgenstein, Ludwig, Tractatus Logic Philosophicus (Londres: Routledge and Kegan Paul,

1995 [1922]) 5.6; 5.61; 6.53.24 A. J. Ayer, Language, Truth, and Logic (Nova York: Dover Publications, 1952), págs.14,15.25 Sanders, Risks, p. 3 8.26 Veja o ensaio de Peter Leithart nesse volume.27 Gregory Boyd, God o f the Possible: A Biblical Introduction to the Open View o f God (Grand

Rapids: Baker Books, 2000), págs.78,77,62,63,56.28 Ibid., p.9129 William Hasker, “A Philosophical Perspective”, in Pinnock, Clark, et. al., The Opennes o f

God:A Biblical Challenge to the Traditional Understanding o f God (Downers Grove: InterVarsity Press, 1994), p. 142.

30 William Hasker, God, Time and Knowledge (Ithaca: Cornell University Press, 1989), p. 147.31 Sanders, Risks, p.31.32 Ibid., p.25.33 Ibid., p.286.34 Ibid., p. 15, nota 283.35 Jerry Gill, Mediated Transcendence: A Postmodern Reflection (Macon: Mercer Univ. Press,

1989), p. 142.36 Boyd, Possible, p.90.37 Sanders, Risks, p.37.38 Ibid., p.22.39 Ibid., p.30.40 Haskers, God, Time, p. 181.41 Boyd, Possible, p.129.42 Ibid., p. 108.

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Notas 195

Capítulo 31 No original em inglês, o autor menciona o kudzu, uma planta trepadeira da Ásia que faz secar

a árvore que a hospeda. Uma similar brasileira seria o cipó de bruxa, planta trepadeira que faz secar a árvore que a hospeda e, naturalmente, morre com ela (N. do T.).

2 O autor não cita a referência de onde foi tirada essa citação, mas, pelo contexto, infiro tratar-se de um trecho do artigo escrito por David Basinger, em The Openness o f God. (N. do T.)

Capítulo 41 Ronald Wallace, Calvin, Geneva and the Reformation (Eugene: Wipf and Stock Publishers,

1998), p. 154.2 Francis Turretin, Institutes o f Elentic Theology (Phillipsburg: Presbyterian and Reformed

Publishing, 1992), v.2, p.208.3 John Cobb e David Griffin, Process Theology (Filadélfia: Westminster Press, 1976), p. 14.5 Charles Hartshome, Omnipotence and Other Theological Mistakes (SUNP: Albany, NY, 1984),

págs.26,27,38,39.4 O termo inglês “prehended” foi cunhado por Whitehead para a filosofia do processo e significa

um meio-termo entre compreender e aprender sem conhecer. Significa entrar em contato com algo sem, necessariamente, penetrar em todos os aspectos cognitivos do significado desse objeto, o que pode ser uma impossibilidade. Como não há correspondência para esse termo em português, usarei aqui o neologismo “preensão” e seu cognato “preender” (N. do T.).

6 Para um exemplo desse comportamento, veja a carta de Pinnock à Christianity Today, 9 de fevereiro de 1998, disponível em http://www.christianityonline.com/ct/8t2/8t2043.html.

7 Hartshome, Omnipotence, p. 1.8 Clark Pinnock, et. al., The Openness o f God (Downers Grove: Inter Varsity Press, 1994), p.59.9 Hartshome, Omnipotence, p. 12.10 Ibid., p.19.11 Ibid., p. 16.12 Ibid., págs.27,28.13 Pinnock, Openess, p. 104.14 Agostinho, The City o f God (Peabody: Hendrickson Publishers, 1995), Nicene and Post-

Nicene Fathers, vol. 2, p.91.15 Cobb e Griffin, Process, p.69.16 Ibid., págs.74,75.17 David Basinger, The Case for Freewill Theism (Downers Grove: InterVarsity Press, 1996), p.36.18 Sanders, John, The God Who Risks (Downers Grove: InterVarsity Press, 1996), p.36.19 Ibid., p.278.20 Pinnock, et. al., Openness, p. 113.21 Ibid., p.192.22 Hartshome, Openness, p.58.23 Basinger, Freewill, p.36.24 Pinnock, et. al., Penness, p. 199.25 Nash, Ronald, Process Theology (Grand Rapids: Baker Book House, 1987), p.208.26 Pinnock, et. a l, Openness, p. 112.27 Cobb e Griffin, Process, p. 13.28 Ibid., p.65.29 Hartshome, Omnipotence, p. 13. Os defensores da teologia do processo também deixam claro

esse ponto em seu diálogo com os teístas relacionais em Cobb e Pinnock, Searching fo r an Adequate God (Grand Rapids: Eerdmans, 2000), 21ss.

30 Hartshome, Openness, p. 100.

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196 Eu não sei mais em quem tenho crido

31 Ibid., p.101.32 Nash, Process, p.317.

Capítulo 51 Clark Pinnock, “Systematic Theology”, in Pinnock, et. al., The Openness o f God (Downers

Grove: InterVarsity Press, 1994), págs.121-124.2 John Sanders, The God Who Risks: A Theology o f Providence (Downers Grove: InterVarsity

Press, 1998), págs.132,133.3 Pinnock, Openness, p. 122.4 Richard Rice, “Biblical Support for a New Perspective”, in Ibid., págs.26-35.5 John Sanders, “Historical Considérations”, in ibid., págs.26-35.6 Para a relação entre a teologia relacional e o Socinianismo, veja Robert Strimple, “What Does

God Know?”, in John Armstrong, org., The Corning o f Evangelical Crisis (Chicago: Moody Press, 1996), p. 140,141, e o ensaio de Ben Merkley no presente volume. Sanders não menci­ona o Socinianismo em suas “Considerações Históricas”, Pinnock, Openness, págs.59-100.

7 Gregory Boyd, in The God o f the Possible (Grand Rapids: Baker, 2000), p. 116, diz: “Nenhum credo ecumênico da Igreja ortodoxa jamais incluiu um artigo de fé sobre a presciência divina”, implicando que todo o assunto é uma questão aberta para o Cristianismo. Se por credo “ecumênico” ele quer dizer credos como o dos apóstolos e o de Nicéia, que são aceitos por todos os ramos do Cristianismo, Boyd aqui faz uma correta observação histórica. Mas esses credos ecumênicos são muito breves. Eles não incluem artigos sobre a justificação, por exemplo. Se nós formos um pouco para a frente, para a época da Reforma, contudo, nós encontramos a Confissão de Fé de Westminster, que diz: ‘Todas as coisas estão patentes e manifestas diante dele; o seu saber é infinito, infalível e independente da criatura. De sorte que para ele nada é contingente ou incerto” (II.2), e a Confissão reforça essa posição sobre o conhecimento de Deus em sua posição sobre os decretos (III), a criação (IV), providência (V), livre-arbítrio (IX) e vocação eficaz (X). Para a tradição reformada, pelo menos, a extensão da presciência deDeus não é uma questão aberta.

8 Há, além do sentido libertarista, outros sentidos teológicos para liberdade e vontade livre. A liberdade moral, por exemplo, é a liberdade da escravidão do pecado, dada pela graça de Deus (Jo 8.32-36; Rm 6.7,18-22; 8:2). A liberdade compatibilista (assim chamada por causa de sua compatibilidade com o determinismo) é a liberdade para agir de acordo com a própria natureza e os próprios desejos. A Escritura afirma a existência de liberdade nesses dois sentidos, mas não no sentido libertarista.

9 O teólogo relacional William Hasker define a liberdade libertarista como a posição em que “um agente é livre com relação a uma dada ação em um dado tempo se nesse tempo ela está dentro das forças desse agente para realizá-la e também dentro das forças desse agente para não realizá-la”, in OG., p. 136, 137. Itálicos do próprio autor.

11 O Arminianismo tradicional tenta afirmar tanto o libertarismo quanto uma presciência divina exaustiva. Nesse ponto, a teologia relacional é mais lógica que o Arminianismo tradicional, mas paga um alto preço teológico por sua lógica superior.

12 Sanders, The God Who Risks, págs.198,199.13 Eu posso ter perdido alguma coisa, é claro, mas nos principais escritores do teísmo relacional

eu ainda não encontrei um argumento sério em favor da liberdade libertarista. Esses autores expressam muito desgosto por posições como o Calvinismo, que negam essa liberdade, e falam ardentemente do frescor, espontaneidade, criatividade, novidade, etc. que o libertarismo nos traz. Eles também mencionam algumas passagens da Escritura que eu discutirei adiante, mas há sempre um grande salto do texto para a conclusão libertarista. Eles também sugerem (veja a nota seguinte) que o libertarismo é necessário para a responsabilidade moral, mas não oferecem argumentos que comprovem essa afirmação.

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Notas 197

14 Pinnock, Openness, p. 121.15 Para uma discussão mais completa sobre o controle soberano de Deus sobre agentes livres e a

inadequação do libertarismo, veja meu livro (no prelo) The Doctrine o f God (Phillipsburg: Presbyterian and Reformed Publishing), especialmente os capítulos 4, 8 (com 15 argumentos contra o libertarismo), 14 e 16. Eu posso apenas arranhar a superfície nesse artigo, porque devo me concentrar na questão da presciência de Deus, e não na soberania de Deus em geral. Contudo, muito poderia ser acrescentado com relação à eleição, reprovação, vocação eficaz, regeneração e iluminação, pois todas essas doutrinas pressupõem a plena soberania de Deus sobre as decisões humanas. Veja também várias teologias sistemáticas sobre esses assuntos.

16 Para mais exemplos, vejaÊx 34.24; Nm 23 - 24; Jz 7.22; lRs 13.1-3; Ed 6.22; Jr 1.5; Dn 1.9. Deus também preordena as ações pecaminosas (Êx 3.9; 4.21; 7.3; Dt 2.30; Js 11.18-20; lRs 12.15; SI 105.24; Is 6.9,10; 63.17; Ap 17.17), inclusive a traição de Judas e a crucificação de Jesus (Lc 22.22; Jo 6.64,70,71; 13.18,19; 17.12; At 2.23; 4.28; 13.27). As ações humanas começam no coração (Mt 7.15-20, Lc 6.43.45), e o coração humano está nas mãos de Deus (SI 33.15; Pv 21.1). As pessoas que têm coração pecaminoso não podem agradar a Deus (Rm 8.8). Sua vontade, portanto, não é indiferente à justiça ou ao pecado. A fé, a decisão humana de crer em Cristo, é um dom de Deus (Jo 6.37,44,65; At 13.48; 16.14). Aqueles que crêem são destinados para a vida eterna” (At 13.48). A destinação realizada por Deus claramente implica que as escolhas humanas não são indiferentes.

17 A referência ao propósito de Deus indica claramente que Deus sabe o que está fazendo. Se o plano de Deus governa todas as coisas, passado, presente e futuro, então seu conhecimento tem que ter a mesma abrangência.

18 Incrivelmente, nem Sanders, The God Who Risks, nem Gregory Boyd, God ofthe Possible, relacionam Efésios 1.11 em seu índice de textos bíblicos. Boyd não relaciona Romanos 11.36 nem Lamentações 3.37,38. Sanders discute o contexto geral das passagens de Romanos e Lamentações, mas não menciona as indicações da universalidade do plano controlador de Deus.

19 Boyd, Possible, p.38.20 Como a Escritura nunca menciona a liberdade libertarista, ela obviamente não coloca sobre essa

liberdade o valor que arminianos e teístas relacionais atribuem a ela. Os teístas relacionais dão um valor tão alto à liberdade libertarista que eles estão prontos a sacrificar quase todos os outros conceitos teológicos para acomodá-la, mas nâo há justificativa para que eles atribuam um valor tão alto a um conceito que a Escritura nem sequer menciona.

21 Os calvinistas e outros anti-liberais geralmente pintam esse ponto em cores vivas. James H. Thomwell diz: “Um galo do tempo ser responsável por suas mutações sem lei é como um ser cuja vontade arbitrária e incontrolável é sua única lei”, Collected Writings II (Edimburgo: Banner of Truth, 1974), p. 180. R. E. Hobart, defendendo uma forma secular de determinismo, diz: “Na proporção em que [uma ação de uma pessoa] é indeterminada, é como se suas pernas repentinamente a levassem para onde ela nâo quer ir”, in “Free Will as Involving Determinism and Inconceivable Without It”, Mind 43 (Janeiro de 1934).

22 Para uma discussão mais completa, veja minha Doctrine ofGod, especialmente o capítulo 22.23 Se fosse, mostraria que Deus é ignorante do presente, e não do futuro. Mas os teístas relacionais

geralmente alegam que Deus conhece exaustivamente o presente.24 Se em Gênesis 3.9; 11.5; e 18.20,21 as “descobertas” de Deus pressupõem ignorância divina,

ele é ignorante sobre o presente, e não somente sobre o futuro. Os teístas relacionais não usam (de acordo com o meu conhecimento) esses textos como exemplos da ignorância divina, pois eles crêem que Deus tem conhecimento exaustivo do presente. Mas se os textos de Gênesis11.5 e 18.20,21 podem ser explicados sem a admissão da ignorância divina, o mesmo certamen­te é verdade com relação às outras passagens.

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198 Eu não sei mais em quem tenho crido

25 Douglas Wilson comenta sobre Gênesis 8.1, “Então Deus se lembrou de Noé”: “Deus coçou sua testa nesse momento? ‘Ai, minha nossa Noé!’. Ou em Êxodo 6.5: ‘Rapaz, foi por pouco’ ‘Eu quase me esqueci. A aliança!”'. Veja Wilson, “Fundamentos do Conhecimento Exaustivo”, capítulo 9 deste livro. Nem Sanders nem Boyd, nos livros citados acima, incluem Gênesis 8.1 nem Êxodo 6.5 em seu índice de textos bíblicos. Sanders (e não Boyd) descreve o arco-íris de Gênesis 9.14-16 como “o lembrete para si mesmo” de Deus, sugerindo pelo menos que Deus poderia de outra forma se esquecer de seu plano. Mas essa idéia impugna não o conhecimento que Deus tem futuro, mas o conhecimento que ele tem do passado, apesar das afirmações dos teístas relacionais de que Deus tem conhecimento exaustivo do passado.

26 Nessas passagens, ter compaixão é tipicamente o hebraico nacham, que também pode ser traduzido como “angustiou-se” ou “entristeceu-se”.

27 Além disso, é parte também do significado do nome pactuai de Deus, Yahweh. Observe como Joel 2.13 e Jonas 4.1,2 se referem à exposição do nome divino em Êxodo 34.6,7.

28 Claro, não totalmente. Algumas profecias excluem explicitamente essas condições, como Jeremias 7.15; Amós 1.3,6,9; Isaías 45.23, etc. Algumas vezes Deus garante o cumprimento incondicio­nal da profecia por juramento, como no Salmo 110.1,Isaías 14.24:54.9,etc. (compareEz5.11; 14.16, etc.). Para um excelente estudo sobre profecias condicionais feito por um erudito do Antigo Testamento, veja Richard Pratt, “Historical Contingencies and Biblical Predictions”, disponível em www.thirdmill.org.

29 Deus “responde” à criação até mesmo quando não há seres humanos por perto. Depois de criar a luz, em Gênesis 1, ele responde avaliando-a como boa e dando nome à luz e às trevas. Nós podemos ver que, em qualquer momento que Deus aja na história, na criação, ele age responsivamente. Nos atos de Deus dentro da criação, há sempre um “toma-lá-dá-cá”.

30 Rice, Openness, p.51.31 Em minha opinião, é claro, as decisões das criaturas são em si mesmas o resultado das decisões

de Deus.32 Eu estou admitindo, é claro, que a Escritura é precisa em seu registro de quando esses eventos

aconteceram. Se a Escritura é a Palavra de Deus, então nós devemos admitir essa precisão, ao contrário da abordagem usual dos críticos liberais da Bíblia.

Capítulo 61 RobertBrown, “Evangelical Megashift”, Christianity Today (19 de fevereiro de 1990),págs. 12-14.2 íbid., p. 12.3 Ibid., p. 13.4 Ibid.5 Ibid., p. 14.6 Ibid. Para uma réplica à sugestão errônea de que Deus “sofre” nas mãos de suas criaturas, veja

o capítulo escrito por Phil Johnson neste livro.7 Essa é uma versão da teoria da expiação governamental de Grotius, discutida mais adiante neste

capítulo. Veja também o Apêndice 1 (“How Are We to Understand the Atonement?”), in John MacArthur, The Freedom and Power ofForgiveness (Wheaton: Crossway, 1998), págs. 197- 203, para uma crítica mais completa da posição de Grotius sobre a expiação.

8 John Sanders, um dos principais proponentes do teísmo relacional, começa sua discussão sobre a cruz, escrevendo: “Eu entendo o pecado como sendo primariamente uma alienação, ouo rompimento de um relacionamento, e não um estado de existência ou culpa”. Com essa definição de pecado, qual a necessidade de expiação? Além disso, Sanders vai além ao caracte­rizar a cruz como uma manifestação pública do desejo de Deus “sofrer a dor, abster-se da vingança, para perseguir a reconciliação do relacionamento rompido”. Em outras palavras, o “custo do perdão” no sistema de Sanders é um sacrifício que Deus faz em função de sua própria honra e dignidade, e não um preço que ele exige de acordo com sua perfeita justiça. Assim,

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Notas 199

Sanders crê que Deus renuncia às justas alegações de sua justiça e santidade, em vez de satisfazê- las por meio do sangue expiatório de Cristo. Essa é a posição típica do teísmo relacional com relação à expiação. The God Who Risks (Downers Grove: InterVarsity, 1998), p. 15.

9 O teísta relacional David Basinger sugere que a própria livre escolha do crente - e não a expiação de Cristo - é que “liga” a “separação inicial entre Deus e os humanos”. Clark Pinnock, et. a l, The Openness o f God (Downers Grove: InterVarsity Press, 1994), p. 173-175. Basinger, além disso, descreve o abismo “entre Deus e os humanos” sem qualquer referência ao pecado, que é definido simplesmente como “uma inabilidade inicial em Deus e nos seres humanos para que possam interagir na medida do possível” [ibid.]. Ele descreve o evangelho como ‘“boas novas’ - a alegria e a excitação de estar apropriadamente relacionado com Deus” [ibid.]. Totalmente esquecida de sua discussão das ramificações evangelísticas do teísmo relacional está qualquer referência à cruz de Cristo ou ao significado da expiação. Isso não é de se espantar- pois se Basinger e outros teístas relacionais estiverem corretos, a cruz é realmente supérflua com relação ao perdão divino. A crucificação de Cristo toma-se pouco mais que uma exposição melodramática de sentimento, e não um resgate pelo que quer que seja.

10 A. A. Hodge, The Atonement (Memphis: Footstool, s. d.), p.267."Ibid., p.269.12 Philip Schaff, History o f the Christian Church (Grand Rapids: Eerdmans, 1970, reimpressão), 2:584.13 Ibid.14 A maioria dos governalistas reforça o arrependimento como uma decisão da livre vontade

humana. Charles Finney, um consciente defensor da posição de Grotius sobre a expiação, pregou uma mensagem entitulada “Fazendo um Novo Coração”, na qual ele defende que a regeneração (e particularmente a mudança de coração que envolve a remoção do coração de pedra e a implantação do coração de carne - cf. Ez 36.26) é algo que cada pecador deve realizar por si mesmo. Além disso, em sua Sistematic Theology, Finney escreveu: “[Os pecadores] estão sob a necessidade de primeiro mudar seu coração, ou sua escolha de um fim, antes que possam ter qualquer desejo de garantir qualquer outro fim que o fim de si mesmo. E isso é o que está plenamente admitido em toda a filosofia da Bíblia. Ela representa uniformemente o não- regenerado como totalmente depravado [uma condição voluntária, não uma depravação consti­tucional, de acordo com Finney], e chama-os ao arrependimento, a fazerem um novo coração para si mesmos” (Minneapolis: Bethany House, 1994), p.249 (itálico acrescentado).

15 Em seu artigo “From Augustine to Arminius: A Pilgrimate in Theology”, Clark Pinnock retra­tou sua própria mudança de uma posição de substituição penal através de um caminho que o levou de Anselmo a Grotius e a Barth. Pinnock, org., The Grace o f God, the Will ofMan: A Case fo r Arminianism (Grand Rapids: Zondervan, 1990).

16 Brow, Megashift, p. 1417 A Conferência Batista Geral acabou de recusar-se a esclarecer sua posição doutrinária e descar­

tou a posição do teísmo relacional sobre a onisciência de Deus dando clara evidência de que os modernos evangélicos são vacilantes e ambivalentes nessas questões.

18 De forma totalmente simples, o rótulo evangélico tem sido usado historicamente para identi­ficar aqueles que afirmam tanto os princípios formais quanto materiais da Reforma - sola Scriptura (a Escritura como autoridade suprema) e sola fide (justificação somente pela fé). Embora, em anos recentes, definições muito mais amplas e muito mais complexas tenham sido propostas, a história do movimento evangélico está inextricavelmente ligada à defesa resoluta desses dois princípios vitais. A verdade da expiação vicária é absolutamente necessária à doutrina da justificação pela fé, na qual a culpa do pecador é imputada a Cristo e paga, enquantoo mérito de Cristo é imputado ao crente como o único fundamento de paz com Deus. Todos aqueles que negaram a expiação substitutiva saíram da principal corrente histórica evangélica ou integraram movimentos que rapidamente abandonaram a distintividade evangélica.

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200 Eu não sei mais em quem tenho crido

19 Brow, Megashift, p. 12.20 C. S. Lewis, The Lion, the Witchand the Wardrobe (Nova York: Macmillan, 1950), p. 125.21 Ibid., p. 12322 Ibid., p. 180.23 Ibid., p. 123.

Capítulo 71 Presumivelmente, nem mesmo a maior parte dos teístas relacionais alegaria que Deus tem um

corpo físico. Recentemente, contudo, eu me correspondi com um pastor de uma igreja evangé­lica bem conhecida no Reino Unido que me disse que crê que Deus tem uma forma física. Ele cultua uma divindade corpórea, um ser não diferente dos deuses sobre os quais nós lemos na mitologia grega. E esse pastor, assim como muitos outros teístas relacionais, teve a temeridade de insistir que é o Deus do teísmo clássico que é derivado do pensamento grego!

2 Nicolas P. Wolterstorff, professor de Teologia Filosófica na Yale Di vinity School, diz que rejeitoua doutrina da impassibilidade depois da morte de seu próprio filho. Desolado pela dor, Wolterstorff concluiu que Deus não podia simplesmente ser indiferente à tragédia humana. “Eu achei esse quadro [de Deus como folgadamente impassivo diante da angústia deste mundo] impossível de ser aceito - existencialmente impossível. Eu não podia conviver com esse quadro. Eu o achei grotesco” [“Does God Suffer?”, Modem Reformation (Setembro/Outubro 1999), p.45].

3 Denis Ngien, “The God Who Suffers”, Christianity Today (3 de fevereiro de 1997), p.38. Osubtítulo do artigo destila a mensagem: “Se Deus não sofre, ele pode pelo menos amar? Um argumento em defesa das emoções de Deus”.

4 Clark Pinnock, Richard Rice, John Sanders, William Hasker, David Basinger, The Openness ofGod (Downers Grove: InterVarsity, 1994), p. 12.

5 Ibid., p.25.6 Ibid., págs.23,24.7 Ibid., p.22.8 Ibid., p.24.9 Ibid., p. 118.10 “Uma Entrevista com Clark Pinnock”, Modem Reformation (novembro/dezembro, 1998), p.37.11 Ibid.12 Em seu zelo por evitar o que eles erroneamente consideram um Deus apático, eles o substitu­

íram por um deus que é simplesmente patético.13 De acordo com Pinnock, a doutrina da impassibilidade é “o mais dúbio dos atributos divinos no

teísmo clássico” [Pinnock, et. al., The Openness ofGod, p.118], A impassibilidade tem certa­mente provado ser um alvo muito mais fácil para os teístas relacionais do que outros aspectos da imutabilidade de Deus.

14 Por exemplo, a Teologia Sistemática de Wayne Grudem rapidamente rejeita a doutrina da impassibilidade. Grudem escreve: “Eu não afirmei a doutrina da impassibilidade nesse livro... Deus, que é a origem de nossas emoções e que criou nossas emoções, certamente sente emo­ções” (Grand Rapids: Zondervan, 1994), p. 166. Grudem parece pensar que a afirmação da Confissão de Westminster que diz que Deus é “sem... paixões” retrata Deus como totalmente apático. Ele, portanto, concorda com os críticos do teísmo clássico, que alegam que a doutrina da impassibilidade toma Deus frio e insensível. O que Grudem não discute é a natureza das “emoções” de Deus e como elas diferem das paixões humanas. Toda a sua discussão da imutabilidade divina é marcada por isso, e isso até mesmo faz parecer que ele tem uma fraca posição sobre a questão de se Deus realmente muda de opinião.

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Notas 201

15 Eu tenho um grosso arquivo de correspondência da Internet proveniente de vários ultra- calvinistas que insistem em que as expressões optativas atribuídas a Deus na Escritura (veja nota 20) são totalmente sem significado porque são antropopatismos. Um homem cujo radica­lismo tem sido destacado escreveu: “Deus não tem desejos nem afeições, não tem verdadeiro prazer nem dor, e certamente nenhuma mágoa sobre qualquer coisa que venha a existir - porque sua mente é pura, soberana, e sua vontade é irresistível. Você mesmo reconhece que os versos que falam sobre as afeições divinas são antropopáticos. Por que você não consegue enxergar que essas expressões nada nos ensinam seja o que for sobre como Deus realmente pensa?”. Esse homem e os teístas relacionais têm mais coisas em comum do que o que estão dispostos a admitir. Ambos estão convencidos de que a doutrina da impassibilidade faz com que Deus seja totalmente frio e sem sentimentos. Contudo, ambos estão errados. Enquanto os antropomorfismos não devem ser considerados como verdades grosseiras, literais, eles certa­mente transmitem alguma verdade sobre a mente e o coração de Deus (como nós veremos novamente perto do fim deste capítulo).

16 Os teístas relacionais devem admitir esse ponto se forem honestos. A menos que eles desejem argumentar que Deus tem características físicas (como aquele pastor britânico que eu mencio­nei na nota 1), eles mesmos precisam reconhecer tacitamente que a linguagem figurativa é regularmente empregada através de toda a Escritura para descrever Deus. Mesmo inconscien­temente, eles insistem em uma hermenêutica que interpreta cada referência às paixões divinas de uma forma rigorosamente literal. Já que ambos os lados já entenderam que o verdadeiro conhecimento de Deus supera em muito as limitações do pensamento e da linguagem humana, simplesmente não há uma boa razão para a insistente recusa do teísmo relacional em reconhecero antropopatismo onde a Escritura trata de um assunto tão misterioso e incompreensível quanto as afeições divinas.

17 First Apology (c. 150), p.28.18 J. I. Packer, “God”, in Sinclair Ferguson e David Wright, orgs., New Dictionary o f Theology

(Downers Grove: InterVarsity Press, 1998), p.211.19 “Theism of Our Time”, in Peter T. O’Brien e David G Peterson, God Who Is Rich in Mercy

(Grand Rapids: Baker, 1986), p.16.20 A questão de se Deus pode, em algum sentido, “desejar” o que ele soberanamente não trouxe à

existência complica ainda mais toda a questão da impassibilidade divina, mas ela também será tratada nesse capítulo. É importante observar, contudo, que a Escritura geralmente atribui desejos não cumpridos a Deus (por exemplo, Dt 5.29; SI 81.13; Is 48.18; Ez 18.31,32; Mt 23.13; Lc 19.41,42). A questão do que essas expressões significam envolve exatamente os mesmos assuntos levantados no debate sobre a impassibilidade.Especificamente, nós sabemos que expressões de desejo e ânsia do coração de Deus não podem ser consideradas em um sentido simplisticamente literal sem que a soberania de Deus seja levada em conta. Afinal, a Escritura diz que Deus realiza tudo o que lhe apraz (Is 46.10); ele faz todas as coisas segundo o conselho da sua vontade (Ef 1.11). Nada pode frustrá-lo em um sentido absoluto. Portanto, o desejo ardente de Deus expresso nesses versículos tem que ser, em algum grau, antropopático. Ao mesmo tempo, nós devemos perceber que essas expressões significam alguma coisa. Elas revelam um aspecto da mente divina que é totalmente impossível de se conciliar com a posição daqueles que insistem que os decretos soberanos de Deus são iguais aos seus “desejos” em todos os sentidos. Não há sentido no qual Deus deseje ou prefira algo diferente daquilo que realmente ocorre (incluindo a queda de Adão, a condenação dos ímpios e todo o mal entre esses dois eventos)? Minha opinião - e eu penso que Dabney concordaria com ela - é a de que aqueles que se recusam a ver qualquer expressão verdadeira do coração de Deus de qualquer tipo em suas exclamações optativas abraçou o espírito do erro hiper-calvinista.

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21 “God’s Indiscriminate Proposals of Mercy”, in Discussions, 3 vols. (Edimburgo: Banner of Truth, reimpressão, 1982), 1:291.

22 Jonathan Edwards, Treatise Concerning the Religious Affections (Edimburgo: Banner of Truth, reimpressão, 1961), págs.26,27 (itálico acrescentado).

23 Uma pessoa com a qual certa vez eu me correspondi sobre esse assunto levantou a questão de se todas as afeições, inclusive as negativas, são eterna e igualmente imutáveis: “O Espírito Santo é eterna e permanentemente pesaroso?”.Uma reflexão cuidadosa revelará que o ódio santo de Deus ao pecado deve ser uma afeição imutável no mesmo sentido em que seu amor é imutável e isento de flutuação. Certamente nós não devemos imaginar que seu ódio ao pecado diminua ou fique mais forte de acordo com a época. Ele odeia o mal com ódio perfeito, e sua total aversão ao pecado é o ponto principal ao qual a Escritura se refere quando diz que o Espírito Santo está “pesaroso” por causa do nosso pecado (a expressão não significa que oTodo-Poderoso esteja literalmente sofrendo). Assim, o ódio de Deus ao pecado é uma afeição divina permanente, fixa, eterna. A manifestação desse ódio pode mudar, contudo, que é o que ocorre quando nós percebemos que o Espírito Santo está pesaroso com este ou aquele ato pecaminoso em ocasiões específicas (cf. 2Sm 11.27). Esse argumento favorece a doutrina das penas eternas. Já que a mente de Deus é eternamente imutável, as disposições que pintam sua atitude com relação ao pecado (dor, ira, ódio, etc.) devem ser tão eternas quanto seu amor invariável. A eternidade de sua ira é vista nas descrições bíblicas do inferno.

24 Dabney, “Indiscriminate”, p.293.25 Ibid., p.292.26 Wolterstorff, que rejeita a impassibilidade, admite que a negação dessa doutrina é como um fio

que, quando puxado, esclarece todo o nosso conhecimento de Deus. “Uma vez puxado o fio da impassibilidade, muitos outros fios vêm junto... Tem-se que abandonar também a imutabilidade (ausência de mudança) e a eternidade. Se Deus responde, então ele não é metafisicamente imutável, e se ele não é metafisicamente imutável, então ele também não é etemo” [“Does God Suffer?”, p.47].

Capítulo 81 John Sanders, “Historical Considerations”, in Clark Pinnock, org., The Openness ofG od: A

Biblical Challenge to the Traditional Understanding ofG od (Downers Grove: Inter Varsity Press, 1994), págs.59,60.

2 Ibid., p. 60. Veja as afirmações semelhantes de Clark Pinnock em sua entrevista a M odem Reformation (disponível em www.alliancenet.org) e o sumário de William Hasker sobre sua posição, originalmente publicado em Christian Scholar’s Review 28:1 (outono de 1998) e disponível em www.opentheism.org.

3 Sanders fomece o mais extenso panorama histórico da perspectiva do teísmo relacional, traçan­do a influência das idéias helenistas desde os Pais da Igreja até o presente. Meu exame, ao contrário, será limitado a um estreito conjunto de questões que surgem quando consideramos a teologia do período patrístico.

4 Enquanto adverte que “não há algo como a visão grega do tempo”, G E. R. Lloyd reconhece que o contraste entre um reino etemo atemporal e um reino mutável temporal é um “motivo recorrente na especulação metafísica grega sobre o tempo”. Mais especificamente, Lloyd iden­tifica Parmênides como o primeiro a distinguir claramente entre ser sem mudança e aparência mutável, encontra em Platão a primeira clara distinção entre “perpetuidade” e “eternidade” e observa que Platão antecipou Agostinho ao dizer que “o tempo e o universo criado vieram à existência juntos”. “Views on Time in Greek Thought”, in L. Gardet et al., Cultures and Time (Paris: Unesco Press, 1976), págs. 117,129,137,138,145.

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Notas 203

Sanders, “Historical Considerations”, págs.59,60.A própria palavra “evangelho” é uma dessas palavras. Veja a discussão em J. Louis Martyn, Galatians (Anchor Bible # 33A; Nova York: Doubleday, 1997), págs. 127,128.John Zizioulas, Being /4s Communion: Studies in Personhood and the Church (Crestwood, NY: St. Vladimir’s Seminary Press, 1993), págs. 27-65. Veja a avaliação similar de T. F. Torrance: “Ao fazer uso das formas de pensamento gregas, a teologia cristã radicalmente transformou-as, tomando-as veículos de doutrina e idéias fundamentais totalmente estranhas ao Helenismo” - The Trinitarian Faith (Edimburgo: T&T Clark, 1988), p. 68.Pinnock, de fato, faz da Trindade a peça principal de sua apresentação teológica sistemática do teísmo relacional (Openness o f God, págs. 107-109).Qualquer pessoa que leia Confissões perceberá que a imutabilidade é fundamental para a doutrina de Deus elaborada por Agostinho.

0 Sanders, “Historical Considerations”, págs. 80-85.1 Todas as citações do tratado de Agostinho serão extraídas da tradução de Edmund Hill (Brooklin:

New City Press, 1991).2 Tertuliano alegou, por exemplo, que, na criação, “o mundo recebe sua forma, e soa uma voz

quando Deus diz: ‘Haja luz’. Essa é a completa natividade do mundo, quando ele procede de Deus”. Embora Tertuliano não fosse um modalista, ele sugeriu que o Verbo alcançou sua completa expressão somente na economia. Em outro lugar, ele escreveu: “Nós devemos enten­der o Pai como invisível na plenitude de sua majestade, mas devemos reconhecer o Filho como visível na medida de sua derivação”. O Filho, segundo parece, não é inerentemente o Deus invisível, mas, por ser derivado e secundário, é inerentemente visível. Ambas as citações são da introdução de Hill a On the Trinity, in ibid., págs. 41-43.

3 Veja os estimulantes comentários de Karl Barth sobre as conexões entre imobilidade e morte, em Church Dogmatics (Edimburgo: T&T Clark, 1957), II/1,494.

4 Embora não esteja diretamente relacionada à Trindade, a definição clássica de eternidade de Deus, elaborada por Boetius, lança luz sobre o fato de que Deus é vida: “A eternidade é a perfeição total, simultânea e completa de vida ilimitada” (Consolation o f Philosophy, 5.6; citado em Barth, Church dogmatics, II/I, 610, 611). Barth vai além ao argumentar que esse “agora” da posse perfeita da vida é inalcançável pela instabilidade da temporalidade criada, mas, por ser vida, ela não é simplesmente um “estar”, mas também um “fluir”, e observa que as implicações da definição de Boetius nunca foram “adequadamente exploradas”.

5 Gerald Bray, The Doctrine o f God (Contours of Christian Theology; Downers Grove: Inter Varsity Press, 1993), págs. 169, 170. Veja também J. N. D. Kelly, Early Christian Doctrines, ed. rev. (San Francisco: Harper and Row, 1978), págs. 270, 271.

6 Veja a expressão estática desse conceito em Catherine Mowry LaCugna, God fo r Us: The Trinity and Christian Life (San Francisco: Harper Collins, 1973), p.354.

7 The Trinitarian Faith, págs.73,74. Da mesma forma, em sua “Third Oration”, Gregorio de Nazianzo insiste que, ao contrário dos helenistas, os cristãos não criam em uma anarquia divina nem em uma poliarquia divina, mas em uma monarquia divina. Ele se apressa em acrescentar que essa é “uma monarquia que não é limitada a uma Pessoa, pois é possível que a Unidade, na variação consigo mesma, chegue à condição de pluralidade, mas a uma pluralidade que é feita de uma igualdade de Natureza e uma União de mente, e uma identidade de movimento, e uma convergência de seus elementos à unidade - uma coisa que é impossível para a natureza criada- de forma que, embora numericamente distinta, não há diversidade de essência. Portanto, tendo a Unidade, desde toda a eternidade, chegado pelo movimento à Dualidade, encontrou seu descanso em Trindade. E isso o que nós queremos dizer por Pai, Filho e Espírito Santo” (veja Philip Schaff e Henry Wace, orgs., A Select Library ofNicene and Post-Nicene Fathers o f the Christian Church [segunda série; Grand Rapids: Eerdmans, 1983], 7.301).

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18 “On Being a Creature”, in Rowan Williams, On Christian Theology (Challenges in Contemporary Theology; Oxford: Blackwell, 2000), págs.63-78.

19 Williams brilhantemente mostra como a teologia de McFague, apesar de todas as suas manobras da última moda, ainda está presa à problemática que deve sua existência a Descartes. Se, ele argumenta,o mundo é o corpo de Deus, então nossos corpos são corpo de Deus, e isso significa que nossos corpos não são nossos. Nesse paradigma, “eu” sou um estrangeiro para o meu corpo; isso significa que o dualismo emerge no meio de um projeto teológico destinado a atacar o dualismo.

20 Logicamente, os termos espaciais “interno” e “externo” são metafóricos, e está claro que Deus está tanto dentro quanto fora, transcendente e imanente. Aqui eu uso as metáforas em um sentido mais específico: dizer que Deus está “fora” é negar que ele seja dependente de sua criação, até mesmo quando ele se move e existe “dentro” dela; dizer que Deus está “dentro” significa que Deus, em alguma medida, depende de sua criação. Eu creio, também, que isso capta a intenção com a qual Williams usou esses termos.

21 Richard Rice, “Biblical Support for a New Perspective”, in The Openness o f God.

Capítulo 91 Na tradução de Almeida, o original “intestinos” ou “entranhas” é traduzido por “coração”. Os

intestinos eram considerados a fonte dos desejos e o lugar de onde procedem as saídas da vida. No imaginário ocidental, essas atividades são realizadas pelo “coração”, daí a tradução de um órgão no original por outro em português (N. do T.).

Capítulo 101 Greg Boyd, God of the Possible (Grand Rapids: Baker, 2000), págs.8,20,89.2 Ibid., págs.103-106.3 Ibid., p.87.4 James M. Boice, Standing on the Rock, Biblical Authority in a Secular Age (Grand Rapids:

Baker Books, 1994), p.82. Robertson McQuilkin, Undestanding and Applying the Bible (Chi­cago: Inter Varsity Press, 1977), págs.68-75. Sproul destaca a necessidade de cuidado particu­lar no reconhecimento de linguagem fenomenológica na narrativa bíblica.

5 John Sanders, The God Who Risks, a Theology o f Providence (Downers Grove: Inter Varsity Press, 1998), págs.41-75.

6 Ibid., p.81.7 Ibid.8 Ibid., págs.84,85.9 Ibid., p.55.10 Ibid., p.228.11 Ibid., p .ll. Veja Boyd, God o f the Possible, págs.57,58.12 Sanders, Risks, p. 169.13 Ibid, p. 172.14 Veja, por exemplo, ibid., págs.71,72, e Boyd, God o f the Possible, págs.56,57.15 Boyd, God o f the Possible, p. 43.16 Ibid., p. 151.17 Ibid., p. 152.18 Os detalhes dessa história, da qual as citações desse parágrafo foram extraídas, podem ser

encontrados em ibid., págs.103-106.19 Ibid., p. 105.20 Sanders, Risks, págs. 100,101. Ele escreve: “Minha própria opinião é que a encarnação sempre

foi planejada por Deus, pois Deus queria trazer a nós a alegria e a glória desfrutadas pelo Deus triúno (Jo 17.22-24). O pecado humano, contudo, levantou uma barreira ao projeto divino, e o

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Notas 205

planejamento da encarnação teve que ser adaptado para que essa barreira fosse transposta”. Ibid., p. 103.

21 Boyd, God o f the possible, p.37.22 Ibid., p.38.23 Sanders, Risks, p.99.24 Ibid., págs.134-136.25 John Piper, “Why the Glory of God is at Stake in the ‘Foreknowledge’ Debate”, Modern

Reformation (setembro/outubro de 1999), p.42.26 David Basinger, “Practical Implications”, in The Openness o f God, Clark Pinnock et. al.

(Downers Grove: InterVarsity Press), p. 162. Boyd escreve: “Eu não vejo que qualquer posi­ção sobre Deus capture o poder e a urgência da oração mais adequadamente do que o teísmo relacional, e, como o coração é influenciado pela mente, eu não vejo que qualquer posição inspire a oração fervorosa e urgente de forma mais poderosa que a posição relacional” (God o f Possible, p.98).

27 Boyd, Possible, p.97; Sanders, Risks, págs.273,274.28 Boyd, God o f Possible, págs.82-85; Sanders, Risks, págs.53,54;63-66.29 Boyd, God o f the Possible, págs.96,97.30 Ibid., p.84.31 Além dos escritores aprovados pelo tempo, como João Calvino, John Gill e Mathew Henry,

muitos expositores contemporâneos têm discutido convincentemente essas questões levanta­das pelos teístas relacionais. Um dos mais cuidadosos desses expositores é John Piper, que publicou vários artigos no site da Baptist General Conference sobre esse assunto. Veja seu Answering Greg Boyd’s Openness ofGod Texts, 11 de maio de 1998, e The Enormous Ignorance o f God: When God Doesn’t Know the Future Choices o f Man, 2 de dezembro de 1997, dispo­níveis em http://www.bgc.bethel.edu/4know/pessays.htm.

32 Boyd, God o f the Possible, p.82.33 Veja Piper, Answering Greg B oyd’s Openness ofG od Texts.34 Sanders, Risks, p.271.35 C. F. Keil e C. Delitzsch, Commentary on the Old Testament, volume 3, traduzido por James

Martin (Grand Rapids: Eerdmans, 1986), p.28.36 Sanders, Risks, p. 222; cf. págs. 194,195. David Basinger tenta restringir sua visão relacional nesse

ponto. Ele admite que Deus “pode unilateralmente intervir nos assuntos humanos”, mas rapida­mente acrescenta que “um pressuposto chave no modelo relacional é que Deus valoriza tanto a integridade inerente da significativa liberdade humana - a habilidade que os indivíduos possuem de manter controle sobre aspectos importantes de sua vida - que ele, via de regra, não força suas criaturas morais a realizar ações que eles não desejariam realizar livremente e não manipula o ambiente natural de forma que sua liberdade de escolha seja destruída” (Openness, págs. 160,161, ênfase acrescentada).

37 Uma excelente fonte de comparação entre a posição relacional sobre a providência e a oração com outros modelos é encontrada em Terrance Tiessen, Providence and Prayer, How Does God Work in the World? (Downers Grove: InterVarsity Press, 2000).

38 Sanders, Risks, p.331, nota 5.39 Os teólogos estabeleceram essa distinção de várias formas no decorrer da história. Para uma

abordagem muito útil sobre esse assunto de uma perspectiva bíblico-teológica, veja John Piper, “Are There Two Wills in God? Divine Election and God’s Desire for All to Be Saved”, in The Grace ofGod, the Bondage o f Will, orgs., Thomas R. Schreiner e Bruce A. Ware (Grand Rapids: Baker, 1995), 2 vols. 1:107-131.

40 Boyd, God o f the Possible, p. 153; Tiessen, págs. 100-102. Boyd chama atenção para o reino de influência demoníaca do ponto de vista relacional em seu God at War: The Bible and Spiritual Conflict (Downers Grove: InterVarsity Press, 1997).

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41 Sanders, Risks, págs.261,262.42 Boyd, God ofthe Possible, p. 153.43 Ibid., p.99.44 Basinger, “Implications”, p. 170.45 Ibid., p. 171.46 Boyd, God ofthe Possible, p. 102.47 Piper tem um bom e breve ensaio sobre a assunto, intitulado Pastoral Implications o f Greg

B o yd ’s View in D ealing with Suffering, 8 de abril de 1998, disponível em http:// www.bgc.bethel.edu/4know/pessays.htm.

48 Boyd, God o f the Possible, p.8.49 A. W. Tozer, The Knowledge ofthe Holy (San Francisco: Harper and Row, 1961), p.l.

Capítulo 1 11 Benet’s Reader’s Encyclopedia (Nova York: Harper and Row, 1987).2 Hermann Bavinck, The doctrine of God, traduzido por William Hendriksen (Edimburgo: Banner

of Truth, 1979), p.41.3 Ibid., págs.41,42.4 Ibid., p.86.5 Ibid., págs.86,87.6 Ibid., págs.86-88.7 Ibid., p.88.8 Até mesmo hoje, Israel é a nação mais dependente das nações tecnologicamente avançadas. Sem

a ajuda do Ocidente cristão, temo que Israel desapareceria em um dia.9 Lewis Jacobs, The Jewish Religion: A Companion (Nova York: Oxford University Press, 1995), p. 186.10 Philip Bimbaum, Encyclopedia of Jewish Concepts (Nova York: Hebrew Publishing Co., 1993), p. 76.11 Citado na Encyclopedia Judaica, no verbete “Providence”.12 Rabbi Sholom Klass, Response o f Modern Judaism (Nova York: The Jewish Press, 1992-

5752), págs.499,500.13 Ibid., p.503.14 Jacobs, Jewish Religion, p.174.15 O inigualável Catecismo de Heidelberg, resposta 1.

Capítulo 121 Clark Pinnock, et. al., The Openness o f God (Downers Grove: InterVarsity Press, 1994), p.9.2 Ibid., págs.59,60. Veja o capítulo escrito por Peter Leithart neste livro para uma refutação

dessa possibilidade.3 Greg Boyd, God ofthe Possible (Grand Rapids: Baker Book House, 2000), págs.19,20.4 Ibid., p.20.5 Além de sua doutrina errada sobre Deus, a teologia relacional tem ramificações sobre a soteriologia

e a antropologia - para iniciantes. Veja a entrevista de Clark Pinnock em Modem Reformation, novembro/dezembro de 1998.

6 Veja a contribuição de John MacArthur para esse volume.7 Infelizmente, os defensores do teísmo relacional não são os únicos dispostos a cometer esse

pecado. A maioria dos cristãos tem necessidade constante de corrigir e refinar sua concepção de Deus. Veja “Why We Must Think Rightly About God”, in A. W. Tozer, The Knowledge o f Holy (Lincoln: Back to the Bible Broadcast, 1961). A diferença é que os cristãos ortodoxos cometem esse pecado intermitentemente, enquanto os teólogos relacionais o fazem intencionalmente.

8 Os anciãos de Israel, que tinham ido consultar Yahweh por meio de Ezequiel, depois de erigirem ídolos no coração.

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Notas 207

9 Ênfase minha.10 “A evidência aponta para o fato de que tomar o nome de Deus (isto é, sua reputação) ‘em vão’

certamente faz referência à profanação, como é entendida hoje, ou a praguejar no nome do Senhor, mas também inclui o uso do nome do Senhor descompromissadamente, irrefletidamen- te, ou sem o devido zelo”. “Shaw”, por Victor P. Hamilton, in Theological Wordbook o f the Old Testament, vol. 2, R. Laird Harris et.al. orgs. (Chicago: Moody Press, 1980), p.908.

11 Desde o período aquemênida, o nome pactuai de Deus, “Yahweh”, tem sido traduzido (e pronunciado) como “Senhor” (Adonai) em reverência ao seu nome. Acredito que essa seja uma aplicação equivocada do terceiro mandamento. O mandamento não proíbe o uso do tetragrama, mas o abuso dele. Como resultado, eu geralmente traduzo o nome divino entre colchetes ao longo de todo esse capítulo. Veja J. A. Motyer, “Name”, in The Nem Testament Dictionary, segunda edição, J. D. Douglas et. al., org. (Wheaton: Inter Varsity Press, 1992), p.813.

12 “O nome de Deus assume o papel dos símbolos cúlticos, tais como a arca ou uma estátua cultual, tendo ‘uma presença constante e quase material... no templo’”. B. F. Huffmon, “Name”, in The Dictionary o f Deities and Demons in the Bible, segunda edição, Karel van der Toorn, et. al., org. (Grand Rapids: William B. Eerdman’s Publishing Company, 1999), p.612.

13 Metonímia é “o uso de um nome para que um outro referente, associado ao primeiro, seja referido (isto é, ‘o Palácio do Planalto decidiu’ é uma metonímia para ‘o governo decidiu’)”. Webster’s New Universal Unabridged Dictionary (Nova York: Simon & Schuster, 1983), p. 1134.

14 “Jesus recorda que revelou Deus aos discípulos. O ‘nome’ equivale a toda a pessoa (veja Jo1.12). Manifestar o nome de Deus, então, é revelar a natureza essencial de Deus aos homens”. Leon Morris, The Gospel According St. John, in NICNT, F. F. Bruce, org. (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1971), p.723.

15 J. A. Motyer, The Revelation o f the Divine Name (Leicester: Theological Students Fellowship, 1959), págs.12,13. Veja tambéwm Charles R. Gianotti, “The Meaning of the Divine Name YHWH”, in Bibliotheca Sacra, vol. 142, Janeiro de 1985, págs.38,39.

16 Texto da contracapa de Sanders, The God Who Risks (Downers Grove: InterVarsity Press, 1998).

17 Clark Pinnock nos diz: “Eu também faço teologia contextualmente, reconhecendo que a teolo­gia refletirá a cultura na qual ela emerge” (ênfase acrescentada). Clark Pinnock, “A Pilgrim on the Way”, in Christianity Today, 9 de fevereiro de 1998.0 teísmo relacional nada reflete além dos preconceitos pós-modemos.

18 “Vaidade”, nesse contexto, tem o sentido de futilidade, frivolidade, tolice, e não o desejo acentuado de atrair atenção, homenagens e posição social (N. do T.).

19 A Hebrew and English Lexicon o f the Old Testament, Brown, Driver, Briggs, Gesenius, orgs. (Oxford: Clarendon Press, 1978), p.996.

20 Hamilton, Wordbook, p.908.21 Talvez a ironia da situação escape ao leitor. Os teólogos relacionais rejeitam, no mínimo, as

antigas veredas dos últimos dois mil anos de teologia e exegese cristã para seguir um deus que eles abertamente admitem que não pode realizar pelo menos alguns de seus propósitos. Eles chamam essse deus de “Yahweh”. Algumas coisas nunca mudam.

22 “[Os planos de Deus] não são decretos de concreto que fixam o curso dos eventos e impedem todas as variações possíveis. O fato de Deus desejar alguma coisa não faz com que sua ocorrên­cia seja inevitável. Podem surgir fatores que obstruam ou impeçam sua realização”. Richard Rice, “Biblical Support for a New Perspective”, in The Openness o f God (Downers Grove: InterVarsity Press, 1994), p.26.

23 “[A aceitação, da parte de Jesus, do sofrimento que lhe foi imposto por Deus] fundamenta a conclusão de que o cumprimento dos planos de Deus para a humanidade geralmente exigem a cooperação dos agentes humanos”. Ibid., p.44.

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208 Eu não sei mais em quem tenho crido

24 A incredulidade é minha.25 Sanders, Risks, p.273. O itálico foi acrescentado.26 Sanders, Risks, p.93. Ênfase minha.27 Novamente, a ênfase é minha. Procurei em vão por uma interpretação do teísmo relacional para

esse versículo. Não a encontrei em Boyd (2000), Pinnock et al. (1994) e Sanders (1998).28 Veja Jonathan Edwards, The Freedom o f the Will, org. por Paul Ramsey, in The Works of

Jonathan Edwards, vol. 1. (New Haven: Yale, 1957), págs.239-269; John Piper, “Why the God of Glory is at Stake in the ‘Foreknowledge’ Debate”, in Modern Reformation, setembro/ outubro de 1999, págs..39-43; e Stephen N. Williams, “What God Doesn’t Know”, in CT's Books and Culture, novembro/dezembro de 1999.

29 Sanders, Risks, p.46.™ Ibid, p.101.31 Ibid. A partir daí ele faz um esforço nada convincente para explicar o Salmo 22.16; Efésios 1.4;

IPedro 1.20; Apocalipse 13.8; 17.8.32 Piper, “God of Glory”, p.41. Veja toda a sua discussão sobre a presciência de Cristo com

relação à sua paixão.33 Sanders, Risks, p.99.34 Ibid.35 Os proponentes do teísmo relacional podem usar minúcias para dizer que realmente crêem que

Deus é onipotente (sim, isso mesmo!), mas sua explicação de que Deus permite que sua santa vontade seja ameaça por suas criaturas é, na prática, uma negação da onipotência.

36 As referências a Jeroboão, e essa frase é uma delas, são muito numerosas para que sejam relacionadas. Cabe ao leitor pesquisar os livros de Reis e Crônicas para ver a infâmia desse rei e os efeitos culturais de seu pecado.

Epílogo1 O texto em inglês diz: “... pelos liberais na geração passada e por Jeshurun há muito tempo

atrás”. Jeshurun é um nome poético usado como referência a Israel e aparece apenas quatro vezes na Escritura (Dt 32.15; 33.5, 26; Is 44.2), no original hebraico. A tradução de Almeida traduz esse termo como amado (Dt 32.15), povo amado (33.5), amado (33.26) e Jacó (Is 44.2). A Bíblia de Jerusalém traz “Jesurun” nos textos de Deuteronômio e “Jacó” no texto de Isaías (N. do T.).

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Eu não se i m ais em quem tenho crido é uma ajuda

original e proveitosa para a compreensão do crescente

debate sobre a teologia relacional. Ele contém críticas bíblica,

filosófica e teológica. Eu espero que ele seja lido por muitos.

Eu o recomendo tanto aos que estão tendo seu primeiro

contato com o teísmo relacional quanto àqueles que já estão

profundamente envolvidos nesse debate tão importante.

Infelizmente, eu tenho de concordar com a observação

da conclusão de Douglas Wilson de que "se esse'novo modelo'

de teologia não é uma heresia, então heresia não existe".

John Armstrong

D ouglas W ilso n é pastor da Christ Church, em Moscow, Idaho, editor da revista Credenda/Agenda, e membro do Conselho de Teologia e Filosofia do New St. Andrews College.

£6DITORR CUlTURfi CRISTfi

www.cep.org.br

Apologética/Doutrina