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“ Eu já ouvi falar sobre isso, mas não sei explicar”: o (des)conhecimento de
professoras de educação infantil acerca dos processos de letramento e alfabetização
EIXO 3 - Identidades e formação docente
Maria Angélica Olivo Francisco Lucas
Resumo
Neste relato de pesquisa apresentamos reflexões a respeito do (des)conhecimento demonstrado por professoras de educação infantil sobre letramento e alfabetização. Tais reflexões foram motivadas pela necessidade de entender a dificuldade encontrada pelas professoras em justificar, teórica e metodologicamente, as práticas de letramento e alfabetização desenvolvidas. Com base na compreensão de que alfabetização diz respeito a aprendizagem de habilidades necessárias aos atos de ler e escrever e letramento ao estado do sujeito que incorpora práticas sociais de leitura e escrita, analisamos as respostas das professoras quando indagadas a respeito do conhecimento adquirido por meio de estudos ou leituras acerca dos processos de letramento e alfabetização em cursos de formação. A inconsistência das respostas desnudou o quadro trágico da formação de professores em nosso país, mas revelou o potencial a ser mobilizado para o crescimento profissional em prol de uma educação infantil de qualidade.
Palavras-chave: educação infantil, letramento, alfabetização, formação de professores
Introdução
“Eu já ouvi falar sobre isso, mas não sei explicar”. Esta foi uma das respostas
dada por uma professora de educação infantil ao ser indagada a respeito de suas leituras
e estudos sobre alfabetização e letramento, revelando a fragilidade e ineficiência da
formação docente, inicial e continuada. Esta pergunta fez parte de uma pesquisa que
objetivou verificar como os professores de educação infantil compreendiam as
orientações teórico-metodológicas acerca dos processos de alfabetização e letramento
presentes na produção bibliográfica voltada para esse nível de ensino (LUCAS, 2008).
Tal estudo foi motivado pela necessidade de entender a dificuldade encontrada
por professores do referido nível de ensino em justificar, teórica e metodologicamente,
as práticas de alfabetização e letramento por elas desenvolvidas. Ele se justifica pela
necessidade de orientar a elaboração de planejamentos, acompanhar e avaliar as práticas
pedagógicas implementadas por acadêmicos-estagiários do curso de Pedagogia em
instituições públicas de educação infantil e pela inclusão de um novo conceito –
letramento, designando algo que ultrapassa o processo de alfabetização, dele derivando
a compreensão de que paralelo ao ensino da leitura e da escrita, precisamos ensinar as
crianças a utilizar tais habilidades em diferentes situações impostas pela vida cotidiana.
Para tanto, salientamos que entendemos a educação como condição universal
para o desenvolvimento humano. Isso quer dizer que não podemos pensar o processo de
humanização sem estabelecer uma relação imediata com a forma pela qual ocorre a
transmissão cultural em uma dada sociedade. Na nossa, o caminho encontrado para tal
tarefa foi via escola, instituição responsável por possibilitar a apropriação pelos alunos
dos bens culturais produzidos pela humanidade.
Acreditamos que esse processo de apropriação da cultura não ocorre de forma
direta, pois depende, fundamentalmente, de uma organização regida sob a
responsabilidade do professor. Por isso, concebemos a mediação pedagógica como
condição maior do trabalho docente, inclusive dos profissionais que atuam na educação
infantil. Nessas condições, a prática pedagógica requer intencionalidade, no sentido de
ter como referência o produto final de sua ação perante as crianças, e sistematicidade,
compreendida como organização e sequenciação necessárias para que os objetivos
traçados sejam alcançados. Dessa forma, cabe ao professor ampliar e qualificar aquilo
que foi iniciado pelas crianças para garantir que elas se apropriem das máximas
capacidades humanas de um dado momento da história.
Logo, para a consecução da análise ora proposta, consideramos a ideia de
intencionalidade e sistematicidade do trabalho desenvolvido dentro de instituições de
educação infantil – garantindo as especificidades de cada faixa etária – como forma de
nos opor ao trabalho pautado no espontaneismo e no assistencialismo, característicos do
atendimento historicamente proposto à educação das crianças pequenas em nosso país.
Em conformidade com o objeto de análise deste artigo – produção bibliográfica acerca
dos processos de alfabetização e letramento estudadas na formação inicial e continuada
do professor de educação infantil –, a intencionalidade e a sistematicidade mostram-se,
indiscutivelmente, necessárias. Isto porque os processos de alfabetização e letramento
dizem respeito ao domínio de habilidades que não podem ser naturalmente
conquistadas, uma vez que, por envolverem conteúdos complexos e resultantes de
convenções socialmente estabelecidas, exigem a ação de um mediador competente.
Com base nos esclarecimentos acima expostos, explicaremos, primeiramente, as
proposições teóricas acerca da relação entre alfabetização e letramento que nortearam
este estudo. Em seguida, anunciaremos alguns princípios metodológicos aos quais
recorremos para a sua consecução e por fim apresentaremos nossas reflexões sobre o
(des)conhecimento demonstrado por professoras de educação infantil acerca da
produção bibliográfica sobre alfabetização e letramento.
Adiantamos que as professoras entrevistadas ao revelarem o conhecimento que
possuem (ou não) sobre o tema em questão, indicaram a necessidade de revermos a
formação docente, seja inicial ou continuada, e revelaram o potencial que pode ser
mobilizado para o seu crescimento profissional e em prol de uma educação infantil que
respeite os direitos da criança e promova seu desenvolvimento.
Alfabetização e letramento
Partimos da concepção de que alfabetização é um processo de aprendizagem de
habilidades necessárias para os atos de ler e escrever e letramento é o estado ou a
condição do sujeito que incorpora práticas sociais de leitura e escrita (SOARES, 1998).
Nessa ótica, os termos alfabetização e letramento não são sinônimos. Trata-se de dois
processos distintos que, contudo, ocorrem de forma indissociável e interdependente.
[...] a alfabetização se desenvolve no contexto de e por meio de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de letramento, e este, por sua vez, só pode desenvolver-se no contexto da e por meio da aprendizagem das relações fonema-grafema, isto é, em dependência da alfabetização (SOARES, 2004, p. 14).
É a natureza distinta desses dois processos que torna complexa a relação entre
ambos e, justamente por isso, há a necessidade de diferenciá-los. No Brasil, tenta-se
(re)conceituar esses dois processos desde a década de 1980, quando o foco da discussão
era o problema da evasão escolar e da repetência, principalmente da 1ª para a 2ª série.
Todavia, segundo Soares (2004), os censos demográficos, a mídia e a produção
acadêmica brasileira sobre alfabetização provocaram uma tendência em aproximar tais
conceitos, a ponto de diluir a especificidade do processo de alfabetização.
No entender da autora citada, a causa maior para tal perda foi “[...] a mudança
conceitual a respeito da aprendizagem da língua escrita que se difundiu no Brasil a
partir de meados dos anos 1980” (SOARES, 2004, p. 9). Ela está referindo-se à
implantação em grande parte de nossas escolas, mesmo que em nível de ideário, da
perspectiva construtivista, baseada nas pesquisas realizadas por Emília Ferreiro e
colaboradores. Essa perspectiva, ao criticar a forma como a escrita era apresentada à
criança, enfatizando-se a associação entre letras e sons, e, desse modo, transformando-a
em um recurso meramente escolar, rompeu com as teorias subjacentes aos chamados
“métodos tradicionais de alfabetização” e alterou profundamente a concepção de
alfabetização, que passou a ser vista como um processo de construção da representação
da língua escrita pela criança, cujo início ocorre antes de ela ingressar na escola, desde
que esteja exposta a manifestações de leitura e escrita (FERREIRO, 1988).
Concordamos com Soares (2004) quando afirma que não se pode negar as
contribuições que a perspectiva construtivista trouxe para a compreensão do processo de
alfabetização. No entanto, equívocos e falsas inferências dela decorrentes fizeram com
que o processo de alfabetização fosse, de certa forma, ofuscado pelo de letramento, ou
seja, ao se conceituar o processo de alfabetização de forma ampla, incorporando os usos
sociais da linguagem escrita, priorizou-se o processo de letramento em detrimento do de
alfabetização, que acabou obscurecido.
Essa situação gerou, na atualidade, uma inusitada forma de fracasso escolar: a
existência de muitos alunos não alfabetizados ou semi-alfabetizados matriculados em
todas as séries/anos do ensino fundamental. Diante das críticas a essa situação iniciou-se
um movimento, que busca recuperar a especificidade do processo de alfabetização. Para
Soares (2003, 2004), trata-se do movimento de reinvenção da alfabetização, o qual
salienta a necessidade de orientar as crianças de forma sistemática na aprendizagem do
sistema de escrita.
Contudo, a autora alerta para os riscos que advém desse movimento. Ele pode
ser um retrocesso se o processo de alfabetização for tratado de forma dissociada do
processo de letramento. Por isso, não negamos a necessidade de recuperar a
especificidade da alfabetização, desde que se reconheça a relação de indissociabilidade
e interdependência existente entre tais processos. Essa forma de compreendê-los é
importante, uma vez que cada um desses processos tem diferentes facetas cujas distintas
naturezas requerem metodologias de ensino diferentes, afirma Soares (2004).
É por isso que defendemos a necessidade de haver, na prática pedagógica que
visa à aprendizagem inicial da linguagem escrita, uma relação de equilíbrio e
complementaridade entre os processos de alfabetização e letramento. Reproduzimos
neste texto alguns dos resultados obtidos em uma investigação que teve como base esse
entendimento a respeito da relação entre alfabetização e letramento, cuja metodologia
empregada e resultados alcançados, a seguir apresentamos.
Procedimentos metodológicos
Conforme as orientações fornecidas por Triviños (1987) a respeito da realização
de pesquisas qualitativas, para colher os dados necessários à consecução deste estudo,
recorremos a dois instrumentos: questionário e entrevistas semi-estruturadas.
Por meio do questionário obtivemos informações sobre o perfil dos sujeitos da
pesquisa - 14 professoras de educação infantil, pertencentes à rede pública de ensino de
um município do noroeste do Paraná–BR que, no ano letivo de 2007, atuaram em
diferentes centros municipais de educação infantil. Tais sujeitos, em síntese, têm um
perfil diferenciado da maioria dos profissionais que atuam na educação infantil pelo
Brasil afora. São professoras cuja idade varia entre 23 e 52 anos, que possuem nível
superior de ensino e pós-graduação (lato sensu), com considerável experiência
profissional no campo da educação e, em especial, na educação infantil, que adquiriram
estabilidade no emprego por meio de concurso público e se dedicam exclusivamente ao
magistério.
As entrevistas, realizadas individualmente, permitiram conhecer:
- as concepções de alfabetização e letramento dos sujeitos da pesquisa;
- algumas práticas pedagógicas que visam os processos de alfabetização e letramento
implementadas pelos sujeitos da pesquisa;
- o (des)conhecimento que os sujeitos da pesquisa possuem acerca da produção
bibliográfica sobre alfabetização e letramento.
Dedicamo-nos, neste artigo, a apresentação e reflexão dos dados referentes a este
último ponto.
O (des)conhecimento de professoras de educação infantil acerca da produção
bibliográfica sobre alfabetização e letramento
As professoras entrevistadas, quando indagadas a respeito dos processos de
alfabetização e letramento e ao relatar práticas pedagógicas por elas implementadas por
meio das quais acreditavam estar promovendo tais processos, demonstraram falta de
clareza para conceituar esses processos e, por vezes, confusão entre tais conceitos.
Poderíamos dizer que essa dificuldade em conceituar alfabetização e letramento
e distinguir um processo do outro é consequência da falta de oportunidade de ler,
estudar e refletir sobre esses temas. Porém, a maioria delas, talvez em função do nível
de escolaridade, ao ser indagada se havia lido ou estudado algum texto sobre a temática
desta investigação, respondeu afirmativamente. Das 14 professoras entrevistadas,
apenas uma afirmou não ter estudado ou lido algum texto que falasse sobre
alfabetização e letramento; duas não se recordaram se leram ou estudaram sobre o
assunto; uma reconheceu que leu pouco sobre tal temática. As demais confirmaram que
já tiveram oportunidade de estudar ou ler sobre o tema em questão.
Os depoimentos das professoras entrevistadas, que a seguir transcrevemos,
indicam que elas tiveram acesso a discussões que retratam os processos de alfabetização
e letramento, principalmente, por meio de textos avulsos ou em forma de apostilas
enviados aos Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs) ou distribuídos em
cursos e sessões de estudo promovidos pela Secretaria Municipal de Educação. Para
exemplificar, trazemos as respostas da PE-1 (professora entrevistada 1)1, PE-2 e PE-8:
São muitos textos, você não faz idéia de quantos. Eu guardo todos numa pasta, até os dos cursos oferecidos pela prefeitura. A gente faz muitos cursos, tem muita gente de fora que vêm dar cursos, textos para a gente. Alguns destes textos eram sobre alfabetização e letramento. (PE-1)
Eu acho que eu já li uma apostila que foi mandada para o centro, mas eu não lembro bem. Eu acho que o assunto era esse. Eu acho que eu até tenho ela por aqui, mas eu não lembro porque já faz tempo. (PE-2)
Livros eu não me lembro. Eu sei que têm muitos. Geralmente as apostilas dos nossos estudos eram tiradas de algum livro, mas eu não tenho essa memória de gravar capítulo tal do livro tal. (PE-8)
Podemos questionar essa prática comum nos cursos de formação inicial e, de
formação continuada de distribuir aos participantes apostilas contendo pequenos textos
ou excertos cujo objetivo é muito mais conduzir o pensamento do expositor do que de
promover reflexões sobre determinada temática a ponto de os participantes se
apropriarem de algum conceito. O que resta dessa prática é o que as professoras
inconscientemente denunciaram: elas sabem que fizeram cursos, que leram algo e que
1 Optamos por trabalhar com excertos das respostas das professoras entrevistadas com o objetivo de evidenciar as análises realizadas. Tais respostas são apresentadas evitando identificação pessoal. Em função da quantidade de sujeitos que participaram deste estudo, ao invés de criar pseudônimos para cada um, optamos por numerá-los. A primeira professora entrevista foi chamada de PE-1 (professora entrevistada nº 1), a segunda de PE-2 (professora entrevistada nº 2), e assim sucessivamente.
têm muitos textos ou apostilas sobre o assunto, os quais estão inclusive guardados em
uma pasta, mas não se recordam do que leram.
Algumas professoras não recordaram dos títulos dos textos sobre alfabetização e
letramento que haviam lido; lembraram, porém, do veículo de comunicação/informação
aos quais pertenciam. Trata-se de textos oriundos de periódicos de circulação nacional
adquiridos em bancas de revista ou por meio de assinaturas anuais, tais como Veja e
Nova Escola.
Saiu uma vez na Veja, sobre isso [alfabetização]. Nós trouxemos a reportagem para o centro, fizemos um cartaz porque era importante aquilo, era importante saber como que a gente deveria agir com a criança. Tinha até a expressão que a gente usa há tanto tempo que tem gente que força a criança ao que ela não tem condições, que a gente precisa saber o momento certo, o que aquela criança tem condições. Eu já li alguma coisa, mas não me lembro muito. (PE-3)
Eu vi isto na revista Nova Escola. A gente assinava e sempre vinham artigos bons relacionados à educação infantil e alfabetização. Uma das revistas que a gente mais usava na educação infantil era a Nova Escola. (PE-11)
O ano passado foi discutido muito sobre letramento e alfabetização. Aqui no centro nós tivemos duas reuniões pedagógicas voltadas para essa questão. Eu também li texto da Nova Escola sobre o assunto. Mas textos científicos eu não conheço. (PE-9)
Eu li mais a revista Nova Escola. Eu assinava e ela tinha um caderno especial da educação infantil e trazia alguns artigos. (PE-10)
Há que se destacar que tais veículos de informação são formadores de opinião e
estão presentes no cotidiano dos professores. A revista Nova Escola é a única
publicação pedagógica destinada ao grande público docente com tiragens expressivas
(700.000 exemplares mensais) que circula em todo o país desde março de 1986. É
distribuída gratuitamente para escolas públicas e vendida, segundo seus editores, a
preço de custo. Por seguir o modelo das demais revistas de entretenimento, suas
matérias são breves, geralmente produzidas por jornalistas e não por pesquisadores ou
estudiosos do assunto. Em função disso, questionamo-nos a respeito da superficialidade
com que muitos temas educacionais são por elas discutidos e popularizados.
A revista Criança também foi citada:
Eu leio sempre a revista Criança porque eu a recebo. Eu não tenho lido outros materiais não. (PE-7)
Trata-se de um periódico em circulação há 25 anos, editado e publicado pela
Coordenação Geral de Educação Infantil da Secretaria de Educação Básica do MEC. É
um instrumento de disseminação da política nacional de educação infantil e de formação
de professores. Sua tiragem é de 200 mil exemplares, os quais são distribuídos às
instituições de educação infantil públicas, instituições privadas sem fins lucrativos
conveniadas com o poder público e Secretarias Municipais e Estaduais de Educação.
Também foram citados o jornal Nosso Rumo e a revista Maringá Ensina, ambos
publicados pela Secretaria Municipal de Educação.
Já estudei alguns [artigos], li e fiz trabalhos, mas não me vem à memória o nome, o artigo. Nós recebemos a revista da prefeitura [Maringá Ensina]. Na gestão anterior tinha o jornalzinho Nosso Rumo que trazia algumas coisas sobre alfabetização. (PE-12)
A publicação do jornal Nosso Rumo teve início em julho de 1984, atravessando
algumas administrações e deixando de ser publicado por outras. No início, era
produzido de forma artesanal, com poucas páginas, datilografado, reproduzido em papel
sulfite, com número reduzido de exemplares e distribuído mensalmente às escolas
municipais. Com o passar do tempo, houve uma sofisticação tanto na produção das
matérias publicadas, quanto na estrutura do jornal, cuja reprodução passou a ser feita em
gráfica, com corpo editorial e ilustrações coloridas. Este jornal era divulgado aos
professores das escolas municipais, às famílias dos alunos dos centros municipais de
educação infantil e das escolas municipais, às escolas estaduais, universidades e
faculdades da região.
A revista Maringá Ensina é um projeto permanente da Secretaria Municipal de
Educação de Maringá. Foi lançada em fevereiro de 2006 e é distribuída aos professores
que pertencem à rede pública municipal de ensino, visando à formação continuada dos
mesmos. Sua tiragem é de cinco mil exemplares e sua periodicidade é trimestral.
Vale aqui salientar que não estamos criticando o fato de as professoras lerem tais
revistas; apenas consideramos o fato problemático, pois se lembraram apenas delas e
não de textos ou livros aos quais tiveram contato na formação inicial e em serviço.
Creditaríamos mérito à leitura de tais revistas se as professoras se sentissem instigadas a
buscar em outras fontes mais informações a respeito da temática nelas lida, ou seja, se
elas apenas fossem um ponto de partida para a formação de tais professoras.
A análise das respostas para a pergunta a respeito dos textos que as professoras
haviam lido sobre alfabetização e letramento, anteriormente transcritas, nos remete a
suposição inicial de que as professoras de educação infantil teriam tido acesso a
informações sobre os processos de alfabetização e letramento por meio da produção
bibliográfica voltada para esse nível de ensino. Embora em seus relatos elas façam
referências às leituras realizadas sobre a temática em questão, as fontes citadas como
apontamos acima, não correspondem nem aos documentos oficiais, nem a produção
bibliográfica sobre alfabetização e letramento voltada para a educação infantil.
Em relação aos autores e títulos dos livros ou artigos que afirmaram terem lido, a
maioria das professoras entrevistadas não se recordou deles. Apenas quatro delas
lembraram de nomes de alguns autores que discorrem sobre alfabetização e letramento
ou sobre outros temas relacionados à educação infantil, como veremos abaixo.
A Emília Ferreiro fala sobre isto. Agora eu não saberia te explicar muito bem. Para ela, não existe essa cobrança de alfabetização. É mais discutir sobre o contato com a língua escrita, a leitura e tudo mais, mas sem existir essa cobrança. (PE-4)
Parece que quem fala a respeito disso é a Sonia Kramer, se eu não estiver enganada. É o material que eu lembro de ter estudado. Agora se você quiser saber quem falou sobre o que, eu não me recordo. Eu estudei a Sonia Kramer, a Zilma, o Ariés. Só que o foco maior, o meu interesse nesse material era a história da educação infantil: desde quando as criaturas eram cuidadas, que o Áries fala sobre isto. Não era especificamente sobre a alfabetização ou letramento. Pode até ser que eu tenha lido, mas eu, sinceramente, não me lembro. (PE-5)
A Ana Teberosky fala um pouco mais disso. Esses livros mais divulgados, mais conhecidos eu não conheço. Eu fiz um estágio numa escola o ano passado e eles tinham uma coleção de livros – eu não lembro o autor – que era muito legal. Tinha um livrinho que falava só sobre escrita para a criança de educação infantil e mostrava como a criança fazia quando estava naquele nível, quais as atividades podia trabalhar com aquela criança. (PE-10)
A Prefeitura há alguns anos atrás, pegou alguns textos do Vigotski para estudar. Ele é um autor muito conhecido e eu acho que ele fala sobre isso. (PE-12)
Quando indagadas sobre o conteúdo das leituras e dos estudos que fizeram sobre
alfabetização e letramento, as respostas foram vagas, sugerindo à pesquisadora que o
tema desta investigação está ainda distante do domínio das professoras de educação
infantil. A superficialidade das respostas sugere a existência de muitas dúvidas na forma
de organizar e encaminhar metodologicamente a prática docente no que diz respeito aos
processos de alfabetização e letramento, a qual, provavelmente, está sendo realizada de
forma assistemática e sem intencionalidade. Contudo, algumas respostas apontam, além
da necessidade, a possibilidade de investir na formação continuada dessas professoras.
É o caso da PE-1 e da PE-4, cujas respostas transcrevemos abaixo:
Eu não sei se é porque eu li pouco sobre este assunto e tenho ainda muita dúvida quanto a isso. Agora que você me perguntou, despertou minha curiosidade: saber o que determinado autor fala sobre alfabetização e letramento, se traz exemplos, bate em cima desse conceito de que não se deve ou se deve, de que forma, em que medida. (PE-4)
Quando a gente pega um texto falando sobre este assunto acaba abrindo mais a cabeça, acaba trazendo alguma novidade, alguma coisa que você tem vontade de fazer para ver se vai dar resultado. Às vezes, a gente fica só falando, falando e acaba não fazendo nada. Quando a gente faz com as crianças, acaba vendo resultado. (PE-1)
Em uma rápida interlocução com a pesquisadora, a PE-4 expôs dúvidas e
reconheceu que seu conhecimento sobre alfabetização e letramento é limitado, em
função da quantidade reduzida de leituras por ela realizadas. Contudo, diante da
pergunta, manifestou desejo de buscar novas referências que tragam elementos teóricos
que a auxiliem a responder suas indagações, dêem orientações metodológicas e
indiquem procedimentos. Do mesmo modo, podemos afirmar que o depoimento da PE-
1 denota quão importante é uma formação continuada em serviço, se realizada de forma
sistemática, para que seja possível rever o encaminhamento da prática pedagógica a
partir do que foi estudado.
Considerações finais
Apesar do crescimento significativo da produção bibliográfica sobre os
processos de alfabetização e letramento nas últimas três décadas (SOARES; MACIEL,
2000), diante das diferentes posições teóricas e das muitas orientações metodológicas,
as professoras de educação infantil continuam sem direção e inseguras, ao
encaminharem e justificarem suas práticas pedagógicas. Quando questionadas a
respeito do que haviam estudado ou lido sobre o tema, por não se lembrarem nem dos
títulos dos artigos ou livros, nem de seus autores, elas denunciaram, não obstante a
formação pedagógica que obtiveram em cursos de formação inicial e em serviço, o não
acesso a essa produção bibliográfica em franco processo de expansão .
Se os sujeitos da pesquisa fossem profissionais sem formação pedagógica inicial,
não tivessem acesso à formação em serviço, fossem inexperientes, concluiríamos esta
investigação, reafirmando a importância da formação pedagógica em nível médio e
superior, conforme preconiza a legislação sobre educação infantil. Porém, o perfil das
professoras é outro, revelando a gravidade da situação: quase todas possuem curso
superior (Pedagogia ou outra licenciatura) ou estão cursando Normal Superior na
modalidade à distância e que mais da metade dessas professoras cursou uma
especialização na área de educação. Isto nos leva a concluir que não é necessário apenas
continuar insistindo na importância da formação inicial, nem investindo na formação
continuada desses profissionais, mas, sobretudo, encontrar um outro modelo de
formação.
Em suas respostas são muitos os indícios de uma formação docente deficitária:
uso excessivo de jargões tais como, “Alfabetizar é tudo” e “tudo envolve a
alfabetização” – frases utilizadas pelas professoras entrevistadas que revelam ausência
de conteúdo que lhes permita elaborar definições mais precisas. Da mesma forma,
“trabalhar o processo”, “trabalhar os caminhos”, “forçar” e “cobrar” – expressões por
elas demasiadamente utilizadas – não oferecem indicadores para a sistematização que
tanto a alfabetização, como o letramento requerem.
Em outras respostas, encontramos indícios da ineficiência da formação
pedagógica à qual as professoras envolvidas nesta investigação tiveram acesso. Em uma
delas, chamamos de “tradutor” o sujeito que, por ter estudado determinado tema,
assistido a uma palestra ou participado de um curso, transmite aos seus pares, de acordo
com a sua interpretação e compreensão, o conteúdo ao qual teve acesso. Esta é uma
estratégia bastante comum, principalmente na formação em serviço, pautada na idéia de
multiplicadores de conhecimento. Os dados empíricos aqui apresentados externaram e
denunciaram o esgotamento desse modelo de formação.
Como se vê, a análise dos pronunciamentos das professoras entrevistadas
transportou-nos para uma outra temática – formação de professores. As professoras
que se disponibilizaram a participar desta pesquisa revelaram seus acertos, dificuldades
e dúvidas, indicando um espaço de atuação efetiva na continuidade de sua formação e
de futuros professores. Durante as situações de entrevistas, em momentos nos quais as
perguntas retornavam ao pesquisador, era possível perceber um pedido de ajuda, de
esclarecimento sobre uma questão que, há pelo menos três décadas, constitui-se no
nosso país, em um nó, apesar de a produção bibliográfica já ter indicado algumas
formas de desatá-lo.
Ao participarem da presente pesquisa, as professoras entrevistadas
demonstraram o (des)conhecimento que possuem sobre o tema em questão, revelaram o
potencial que pode ser mobilizado para o seu crescimento profissional e em prol de uma
educação infantil que respeite os direitos da criança e promova seu desenvolvimento.
Nesse sentido, ao repensar a formação de professores, temos que considerar que esse
potencial não pode se expressar e se tornar realidade por meio de uma formação
mecânica, fragmentada e superficial, pautada na transmissão de informações, na qual se
espera que os alunos – futuros professores – ou as professoras em exercício se
convençam de que o dito nessas situações é a mais atual proposta de trabalho ou a
melhor solução para os seus problemas em sala de aula. Urge encontrarmos um outro
modelo de formação inicial e em serviço. Sem dúvida, outras pesquisas serão
necessárias para dar conta de tamanha tarefa.
Referências bibliográficas
FERREIRO, Emília. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez, Autores Associados, 1988.
LUCAS, Maria Angélica Olivo Francisco. Os processos de alfabetização e letramento na educação infantil: contribuições teóricas e concepções de professores. Tese. 2008, 322f. (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, 2009.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte, CEALE/Autêntica, 1998.
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