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1 Eu e a Morte, dois românticos sem vida

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Eu e a Morte, dois românticos sem vida

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Abro os olhos... Uma lágrima, morna e nua, desce a escorregar

vagarosamente pelo meu rosto inchado. Olho para a janela ainda aberta, que

indiscreta, deixa entrar a brisa leve e fria do entardecer. O quarto ainda com

cheiro de mofo, guarda a certeza de estar desarrumado a “séculos”. Roupas e

coisas amontoadas pelos cantos me trazem a nostalgia do por do sol.

Sinto meu corpo dolorido, talvez por ter dormido em má postura. Olho,

de soslaio para o espelho retangular, dependurado na parede à minha frente.

Levanto um pouco a cabeça. As olheiras profundas mostram meu olhar opaco e

meu semblante triste. Me movimento cansado e dolorido da noite mal dormida,

praticamente em claro, moldada apenas à pequenas pinceladas de sono, em

sonhos confusos e angustiantes.

A negra noite levou uma eternidade para passar. Tento levantar-me,

mas me vem um soluço me apertando a garganta... e outro... e outro. O pranto

enche meu peito de tristeza e dor. Revolvo-me novamente de um lado para o

outro procurando alento em algum lugar entre o travesseiro e meus

pensamentos, mas só encontro espaços vazios e sentimentos perdidos.

Meu peito se enche novamente de angústia e desespero e a solidão que

,outrora, assistia minhas desilusões sentada em cadeira de vime, me acolhe

rapidamente em revoada, preenchendo aqueles espaços vazios que ainda

permaneciam neutros, sem tristeza nem fantasia.

Levanto-me com dificuldade e com as pernas ainda bambas e indecisas

caminho até o banheiro. Lavo meu rosto pálido e meus olhos vermelhos. Olho

novamente no espelho tentando achar algo em mim, mas não encontro nada.

Um imenso abismo se estende através da minha imagem. Caminho de volta ao

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quarto, olho tudo novamente ao redor e saio em passos pesados em direção à

varanda. Ao passar pela sala, a garrafa de wiskie me chama para uma

refrescante dose.

Sento-me na fria cadeira de ferro da varanda e entre um gole e outro

passo levemente os olhos em revista às pessoas que transitam na rua logo

abaixo. È verão e o céu está límpido. O clima não está sufocante, um vento

fresco e suave acaricia meu rosto.

Meus pensamentos me chamam para o passado e me vejo em uma

profunda ilusão novamente. Encho outra vez meu copo e olho para a lua nova

que desponta no alto da serra. Sinto uma sensação de vazio e solidão que

devora meu peito e mente. Uma pequena faca de cozinha parece descansar

sobre a pia. Não sei explicar porque, mas ela me atraia como se fosse uma

sedutora mulher em meus tempos de adolescente. Sem perceber minha mão

direita a recolhe e a deposita ao lado do copo de bebida.

Tomo outro gole e a olho com os olhos apaixonados, em seguida fito o

horizonte distante. Uma pequena lágrima salta de meus olhos sobre a mesa.

Com a ponta dos dedos da mão esquerda eu a toco e a provo entre os

meus lábios. Estava morna e salgada como as águas do mar. Outra, então, pula

em seguida e logo após... mais outra. Minha mão direita instintivamente se

apodera daquela pequena faca e num piscar de olhos conduz sua lâmina por

sobre o pulso pulsante, fazendo jorrar o sangue vermelho, quente e “fresco” da

vida dormente e “morta”.

A dor daquele corte parecia aliviar a dor pungente que afligia meu

coração. Sentia-me leve e extasiado. Olhando a lua e sentindo o vento em meu

rosto, me deparei com uma sombra disforme que desceu em zig-zag por entre

os raios de luar, como um pássaro a esgueirar em voo rasante por sobre a relva

dos campos. Desviando-se dos poucos e finos arbustos que se elevam por

sobre o brilho das gostas de orvalho, pousou suavemente ao meu lado em

forma de mulher.

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Levo minha mão direita à testa, sinto o suor descer em gélidas gotas.

Sem que eu perceba outra mão se assenta sobre o corte e o sangue parou de

jorrar. Ao olhar ao meu lado, sentada, de pernas cruzadas, com um leve

vestido de seda lilás e branco, vejo uma linda dama a sorrir. Seu sorriso parecia

o de minha falecida mãe, mas seus cabelos eram de um brilho diferente. Eram

de um negro intenso e de aspecto perturbador. Suas mãos permaneceram a

segurar meu pulso e vagarosamente me vi voltar ao meu estado de solidão

avassaladora.

— Não fique assim! — Disse aquela voz sedosa e meiga. Virei-me com

dificuldade e olhei fixamente em sua direção, fitei seus olhos que brilhavam

como a lua. Meus lábios não conseguiam se mover.

— Não fique assim! — Disse ela novamente. O pranto roubou-me o fôlego e

explodiu em soluços.

— Quem é você? — Perguntei com lábios trêmulos.

— Como entrou em minha casa? — Completei.

— Eu sou ela!— Respondeu, com um sorriso calmo e tranquilo.

— Ela? — Perguntei novamente.

— Mas... Ela quem? — indaguei insistente.

— Ela! — À quem tu chamaste com tanto desejo! — Meus lábios tremeram,

meus soluços me fizeram gaguejar. Tentei me recompor.

— Você é a morte? — Perguntei.

— Não! — Sou Lilith! — Uma mulher que amou intensamente a vida.

— O que fazes em minha casa neste momento? — Perguntei balbuciando

palavras. Ela permanecia a segurar meu pulso enquanto minhas forças

voltavam em pequenas doses ao meu corpo.

— Vim lhe ver!

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— Você não é a morte? — Perguntei insistente.

— Não! — Respondeu ela.

— Então...! — Não foi você a quem desejei intensamente! — Deixe jorrar de

meu pulso todo o sangue do meu corpo!— Pedi em prantos.

— Desejastes a morte, porque não sabes quem sou! — Desejastes o desejo de

morte para abrandar seu sofrimento! — Desejaste o desejo da escuridão para

cegar tuas lembranças! — Respondeu Lilith ainda a segurar meu pulso

pulsante.

— Não me deixes viver! — Pois não suporto mais a dor de me ver no espelho

do meu passado. Disse à soluçar.

— Todo passado tem dor! — Respondeu Lilith.

— Se não és a morte, porque veio até mim? — Indaguei, levantando levemente

a cabeça. Ao reparar por sobre seus negros cabelos cacheados, vi a escuridão

que sugava meu destino em um redemoinho abismal. Eu olhei para ele e ele

olhou-me de volta.

— Se você não é a morte, o que é a morte?

— A morte é a escuridão que acompanha os sonhos de todos os homens.

— Então, quem é esta linda mulher a quem eu vejo?

— Eu sou a companheira de viajem a abraçar aqueles que a procuram com

fervor.

— O que fará comigo agora! — Perguntei.

— Me levará contigo em seu abraço eterno? — Completei.

— Não! — Levarei-te comigo apenas para uma viajem, mas te devolverei ao

seu mundo infame!

— Onde me levarás? — Perguntei, já sentindo meu corpo adormecer.

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—Levarei-te ao meu passado! — Lá te direi quem sou! — Respondeu ela,

beijando minha testa.

— O que tenho eu com teu passado? — Perguntei antes de apagar-me por

completo.

— Você...

Uma sensação de torpor tomou-me de súbito e senti-me a flutuar por

sobre os raios do luar. Senti meu corpo como pluma. De repente algo me

puxou para baixo como um peso em queda livre. O desespero tomou-me

novamente, mas foi cortado como navalha ao sentir o toque das mãos de Lilith

à me segurar. Novamente me senti leve e ela me elevou aos confins dos céus.

Após uma pequena eternidade, pousamos suavemente como plumas em

um oásis em meio à um grande deserto. Senti meus pés tocar a quente e fina

areia. Lindas castanheiras e paineiras se revesavam em meio às dunas, onde

flores e arbustos despontavam da areia fofa, fazendo um pequeno e sinuoso

caminho até um lago de águas límpidas e brilhantes. Confuso, percebi que não

estava sonhando.

— Onde estamos? — Perguntei

— Estamos no deserto! — Respondeu ela.

— Disso eu sei! — Exclamei sorrindo.

— Quero saber em qual deserto? — Indaguei novamente.

— Isto faz diferença? — Respondeu ela com outra pergunta.

— Na verdade, eu não sei se faz ou não, pois nunca estive em um! — Respondi

intrigado.

— Deixe-se apenas levar pelos seus sentidos! — Verás que este é o seu

deserto.

— O que faremos depois? — Perguntei mais uma vez.

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— Nós, não faremos nada! — Você fará!

Ao tocar com meu outro pé na areia, senti um vento refrescante varrer

meu rosto com pequenos e finos cristais que acariciavam meus poros e

grudavam em meus lábios. Fechei meus olhos e logo senti meu corpo aquecer

com o calor que irradiava-se do brilho daqueles cristais. A sensação era tão

prazerosa que senti um leve arrepio nas costas. Senti-me excitado e eufórico

naquela fração do tempo. Mas logo senti uma fisgada em meu corpo e tudo se

modificou. Um velho senhor cutucou-me com um graveto de acácia, cujos

espinhos enormes e afiados arranharam meu ombro. Olhei ao meu redor e não

havia mais ninguém, apenas aquele senhor maltrapilho e de rude semblante

sentado sobre uma pedra. Ele olhou-me profundamente e sorriu. Havia apenas

dois “ cacos” de dentes sob aquela enorme barba branca. Afastei-me um pouco

e ele jogou-me um pedaço de carne seca sobre os meus pés.

— Eu não estou com fome! — Respondi, com um sorriso “amarelo”, seu gesto

de caridade. Ele sorriu novamente e uma fome avassaladora tomou-me naquele

momento. Ao me abaixar para pegá-lo ele se transformou em um enorme

escorpião negro e picou minha mão. A dor foi pungente e torturante.

— Porque fizeste isto? — Perguntei àquele velho intrigante. Ele sorriu

novamente e me lançou seus velhos chinelos de couro. Indignado e enojado

daqueles calçados suados e maltrapilhos, respondi:

— Não quero seus calçados!

Aquele andarilho olhou-me novamente no fundo dos olhos e subitamente

a areia começou a queimar como fogo a sola de meus pés. Procurei

desesperado um lugar para refresca-los e me lancei sobre suas sandálias,. Ao

pisar sobre elas, elas se tornaram um feixe de espinhos. Aqueles espinhos

penetraram profundamente em meu calcanhar me fazendo gritar em

desespero.

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— Velho desgraçado e maltrapilho! — Ele novamente sorriu e levantou-se

virando me as costas e seguindo pelo trilho até a água que passava no interior

do oásis. Tentei lhe acompanhar manquitolando de uma das pernas.

— Espere! — Espere! — Gritei desesperado. Mas ele não me respondeu,

desaparecendo em meio aos arbustos. Agora estava com uma tremenda fome e

com as mãos e pés queimando de dor. Sentei-me na pedra e tentei

compreender o que se passava.

Após retirar aqueles espinhos encravados na palma de meu pé, olhei em

volta e lá estava aquele pedaço de carne seca jogado na areia. Exitei em pegá-

lo, poderia levar outra picada de escorpião. Olhei em volta, para ver se

encontrava outra alternativa, mas a fome me devorava como um dração. Aos

poucos fui me aproximando... aproximando... cutuquei-o com um graveto e

após algum tempo levei-o a boca e mastiguei com satisfação. Estava tão

saboroso que deliciei-me como se fosse um caro jantar.

Levantei-me novamente e embrenhei-me por aqueles arbustos a fim de

encontrar mais alguém. O oásis não era muito grande, após alguns minutos

andando, deparei-me com as dunas novamente. Não se via nada mais que

areia além delas, mas parecia algo belo como uma pintura ensaiada. O vento

calmo e suave novamente acariciava minha pele e a sensação de tranquilidade

que há muito não sentia, voltou novamente ao meu coração.

De repente, a noite tomou meus sentidos e a luz fugiu aos meus olhos.

Uma escuridão avassaladora me engoliu nervosa. Voltei em segundos ao meu

passado tenebroso. Vi-me sozinho e com medo, não enxergava nem um palmo

a frente de meu nariz. Olhei para o céu e havia somente estrelas. Fixei meus

olhos em um pequeno ponto brilhante e vagarosamente meus olhos

conseguiram captar as sombras e os formatos naturais ao longo do oásis. Logo,

as estrelas pareciam iluminar mais que o sol que se fora.

Senti um sopro em minha nuca. Virei-me vagarosamente e lá estava ela,

Lilith, com seu vestido lilás e seus cabelos negramente cacheados.

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— Gostaste de seu deserto? — Perguntou ela, sorrindo.

— Não é este meu deserto! — Mas sei que me trazes grande nostalgia e medo!

— Respondi tocando lhe os dedos na face. Tive curiosidade em sentí-la. Não

consegui. Se distanciara como fumaça disforme.

— O sol se foi e sobrou apenas a solidão das estrelas! — Aproveite-as, elas são

ótimas companheiras! — Disse ela se virando em direção às sombras das

palmeiras.

— Eu já conheço as noites estreladas! — Não há segredos nisto! — Indaguei

desinteressado.

— Talvez ache esta noite diferente! — Respondeu Lilith, desaparecendo na

penumbra.

Meus pés estavam dormentes, mas a fome já tinha passado, recostei-me

na relva ao pé de uma paineira e fiquei a olhar o céu. Aos poucos, fui sentindo

aquela pontada de solidão novamente, um vazio imenso começou a tocar meu

coração. De repente, um barulho no lago, lá bem no meio do oásis me tirou

toda a atenção. Senti um pouco de medo, mas a curiosidade me foi maior.

— Serei bem cauteloso, pois bem sei que nestes desertos podem haver animais

perigosos! — pensei comigo.

Adentrando àquela pequena floresta, vi lá no meio uma luz de lamparina.

Ela estava dependurada sobre o lago em uma galha de acácia branca. O reflexo

de sua luz fazia com que as pequenas ondulações da água parecessem um

pequenos arco-íris. Suas chamas amareladas balançavam com as vagas em um

balé contínuo.

A curiosidade aumentou mais.

— Quem será que estás a banhar neste lago a esta hora? — Perguntei aos

meus “ botões”. Fui me aproximando, me aproximando e...

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Sentada sobre uma pequena pedra no meio do lago, estava Marília, meu

primeiro amor. Ela estava tão linda quanto a primeira vez em que a vi. Meu

coração disparou e senti minhas pernas a tremer.

— Marília é você? — Perguntei, tentando conter tão grande emoção. Ela apenas

sorriu e continuou como uma sereia a brincar com seus cabelos enormes e

cacheados. Me aproximei até às margens do lago e novamente balbuciei

trêmulo teu nome:

— Marília é você?

— Ela olhou-me nos olhos e sorriu com um tímido olhar. Com a mão direita

apontou-me uma pequena flor que estava próxima a mim. Num impulso,

arranquei aquela delicada flor de entre as pedras e lancei-me nas águas. Queria

colocar a flor em teus cabelos, abraça-la e beijá-la sem tempo de acabar. Ao

cair nas águas me vi sem chão.

As águas eram frias e tenebrosas, profundas como meus medos. Eu subi

por várias vezes tentando não afogar, acabei por perder a flor.

Sufocado pelas águas profundas e obscuras, na angustia do afogamento,

no desespero da solidão, acordei. Era tarde e o lençol estava limpo. Estava num

quarto de hotel de beira de estrada. No canto, uma televisão e um frigobar

vermelho, o brilho da lua estava entrando pela fresta da janela e o barulho do

chuveiro ligado me chamou a atenção. Levantei-me e olhei meus pés. Estavam

mais jovens. Com curiosidade caminhei até o banheiro. Uma névoa de vapor

d’água cobriu meu rosto, com minúsculas gotas brilhantes, ao abrir a porta.

— A água está muito boa! — Não quer juntar-se a mim? — A voz ressoou em

meio a névoa. Ela não me era estranha.

— Marília é você?

— Porque meu amor? — Haveria de ser outra?

— Não! — É que...!

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— Não se preocupe! — Vem! — Entra aqui! — Vou esfregar suas costas pra

relaxar um pouquinho. Segurou-me pela mão e me envolveu em um

aconchegante abraço.

— Me perdoe Marília!

— Porque haveria de perdoá-lo?

— Eu não fiz por mal!

— Não estou entendendo! — O que você fez?

— Não queria te abandonar!

— Você está me assustando! — Como assim, me abandonar?

O choro tomou-me de repente e soluços explodiram em minha garganta.

Marília me envolveu com mais força em seus braços, enquanto beijava-me a

testa.

— Eu tenho uma surpresa para você, meu amor! — Com a mão esquerda ela

puxou minhas mãos e colocou-as sobre seu ventre. Meu coração disparou. Meu

estômago revirou. De repente seu rosto se distanciou do meu e um grito se fez

no ar em horrível sonoridade. Tentei segurá-la pela mão, mas sua imagem se

distanciava entre o vapor suspenso.

— Porque me deixaste! —Seu hipócrita, mentiroso?— Mentiroso...Mentiroso...

— Gritava aquela imagem disforme que aos poucos sucumbiu-se em

fragmentos.

— Eu te odeio! — Eu te odeio! — As últimas e dolorosas palavras ficaram

ressoando e ressoando em meus ouvidos. Em minha mente toda a história se

renovou e cai ao chão prostrado enquanto a água quente caia sobre minha

cabeça.

Via Marilia chorando por sobre a cama, seu ventre estava enorme. Já

estava em trabalho de parto. Seu rosto alvo como a neve demonstrava todo o

seu sofrimento. Seus cabelos lindos e encaracolados estavam agora

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esganiçados e disformes. Eu, sentado na sala, esperava que as parteiras lhe

ajudassem no trabalho. Ela gritava por mim. Gritava e gritava sem parar.

Em minha frente Sarah, sua mãe ainda estava de luto por Jeremias. O

coitado morreu esmagado por uma árvore que cortava sem o devido cuidado.

Um grande pé de eucalipto caíra contrariando o itinerário previsto, caindo por

sobre o pequeno acampamento. Jenivaldo seu ajudante perdera a perna

esquerda. Ele, porém teve seu crânio triturado pelos galhos.

Sarah chorava e murmurava sem me olhar nos olhos. Seguia de um lado

para o outro um ponto imaginário sobre o tablado de madeira. Na realidade

todos ali ignoravam minha presença. Maria, sua irmã conversava com Amélia, a

vizinha, logo atrás de mim.

— Sinto muita tristeza por Marília! — Ela estava tão feliz com o namoro!

— Coitada! — Ela não merecia isto!

— Ele nunca mais deu notícia?

— Não! — Nunca!

— Como pode ser tão frio!

— Pessoas assim não deveriam existir!

— Me corta o coração quando Marília fala de seus momentos felizes! — Seu

rosto chegava a brilhar quando falava seu nome.

— Ele a deixou quando soube que estava grávida?

— Não! — Ao contrário! — Se demonstrou muito feliz e até comprou um

enxoval para o bebê. Mas depois de alguns dias foi ficando cada vez mais

diferente e distante e no mês seguinte ninguém o encontrava mais na cidade.

Desapareceu.

— Talvez tenha acontecido algo de grave com ele!

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— Não! — Dois meses atrás, levei Marília ao centro da cidade para uma

consulta pré natal. O vimos caminhar pela calçada. Marília se irradiou de

alegria e emoção e tentou alcança-lo, mas se deparou com outra mulher que

chegou primeiro e o abraçou como se estivesse perdidamente apaixonada. Ela

também estava grávida. Marília entrou em profunda depressão e ainda não se

recuperou.

— Meu Deus! — Que tragédia! — Um grito ressoa por toda a casa e depois

silêncio. As parteiras abrem a porta e algumas correm daqui e dali, buscando

toalhas limpas e vasilhas de água quente. O desespero e a ansiedade tomam

conta de todos. Reunidos em ouvidos esperavam o choro da criança. Mas nada

se ouviu durante horas. O silencio foi crescendo... crescendo...

Sarah Permaneceu no lugar, balançando o corpo como num embalar de

cadeira de balanço, enquanto debulhava o terço de contas douradas em suas

mãos.

— Cafajeste! — Desgraçado! — Que o inferno te leve com todas as honras.

Disse me, Sarah, olhando-me nos olhos. Senti-me sufocado com aquele olhar.

Perdido e sem fôlego, vi-me distanciando... Distanciando...

Agarrando-me a um pequeno arbusto que havia na margem consegui

recompor meu fôlego e livrar-me do abismo. Por uma fração de tempo perdi o

foco que me levara ao mergulho.

— Marília!— Onde está você? — Gritei desesperado.

— Não me abandone Marilia, minha flor?

As lágrimas rolaram sem cessar pingando como chuva nas vagas do

lago. Os soluços embargando meu choro e o grito no peito me angustiava a

alma. Uma voz sussurrando me soprou os cabelos e um beijo doce me cingiu a

face.

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— Estou aqui meu amado menino!— Em meus braços vem deitar e dormir!—

Sentindo teu colo a me proteger e aquecer, escutava doces palavras de Marília,

que apertava-me contra o peito em sinal de perdão.

— Me perdoe Marília! — Me perdoe! — O choro era d’álma que pedia perdão.

Em posição fetal permaneci por horas, mas o colo de Marília estava apenas na

imaginação. As lágrimas faziam pequenos buracos na areia que gradativamente

secavam com a brisa do anoitecer.

— Levante-se senhor! — O que está fazendo aí? — Disse um homem de rosto

rude, barbas longas e cabelos esgrenhados como touseira de espinhos.

— Quem é você?

— Não importa quem sou! — Importa é que meus camelos precisam beber

água!

— Sairei daqui se disseres quem és.

— Sou um mercador de flautas.

— Se não queres dizer seu nome, deixe- me aqui com meus demônios!

— Não posso!

— Porque não pode?

— Estás no caminho de meus camelos e preciso hidrata-los.

— Ora, ora quanto incomodo me causas! — Me levantei devagar limpando a

poeira agarrada ao corpo. Enxuguei os olhos e sentei em um tronco de árvore

próximo ao lago. Fiquei por ali observando aquele solitário mercador de flautas

tratar cuidadosamente de seus camelos.

— Porque choras?

— Por motivos que tenho.

— E são muitos?

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— Não sei!

— O que fazes aqui, tão solitário?

— Não sei! — Acho que estou perdido!

— Talvez esteja se encontrando!

— Porque diz isto? — O que sabes que não sei?

— Nada! — Apenas faço flautas! — Este é meu ofício.

— E pra ondes está indo?

—Para o próximo vilarejo.

— Podes me levar junto?

— Não!

— Porque?

— Como você mesmo disse, devo deixar-lhe aqui com seus demônios!

— Eu não disse bem isto!

— Não tenho problemas em ouvir palavras senhor! — Sei bem o que disseste.

— A vida é como a música e nós como as flautas. Ela pode se esvair de nós em

sons ruins ou suaves, harmônicos ou desafinados. Devemos decidir qual

melodia tocar. Continuou.

— Que flauta serei eu?

— Hà um mistério maior no universo. Para construir uma boa flauta, escolho

com cuidado a madeira e o clima. Vagarosamente, com carinho moldo-a com

meu afiado canivete. Depois aqueço-a ao fogo que deve estar no calor certo,

Certeza esta que só com experiência descobrimos.

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— O que devo fazer então? — O mercador revirou uma de suas enormes

capangas dependuradas em um dos camelos. De dentro retirou uma pequenina

flauta verde musgo e me entregou nas mãos. Meu coração disparou.

— Tome esta flauta! — É um presente meu.

— Porque mereço tal presente?

— Dou-lhe o presente para satisfazer-me não à você.

— Obrigado mesmo assim. Pena que não posso lhe dar nada.

— Já me deste.

— O que?

— Me fizestes a honra de achar o dono desta flauta! — Uma sensação de

saudade me toma o peito naquele momento. Fecho os olhos e...

Chorando, sentado sobre uma enorme pedra de granito, balançava os

pezsinhos tentando alcançar a areia com o dedinho. Tinha apenas cinco anos,

meus pés estavam sujos e uma ruçada camisa de pano de saco adornava meu

franzino corpinho. Estava com medo. No bolso de minha pequena bermuda azul

e branco, encardida guardava num bolso algumas balas e no outro a dita flauta

verde escuro.

— Migueeeeel! — Um grito resvalou por entre as ramas de maracujá que

cobriam todo o portão. Era meu pai tremendamente nervoso e disposto a me

dar um imensa surra. Não sabia se corria ou se ficava imóvel esperando que ele

se acalmasse. Me encolhi o máximo que pude. Tentava fazer o tempo passar

mais não passava.

— O super homem vai me salvar agora! — Quer ver? — Exclamava dizendo a

mim mesmo, tentando convencerme de que tudo fosse mudar um dia. Mas não

mudou.. Senti o meu corpinho levitar por sobre a pedra, mas não era o super

man. Era meu pai que com os olhos vidrados olhou dentro dos meus.

— O que foi que fiz papai?

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— Eu lhe dei a gaita e não a flauta.

— Eu não quero a gaita papai!

— Você tem que querer o que lhe dou. Onde está a flauta?

— Está em meu bolso. Ele tomou-me a pequena flauta e voltou para dentro de

casa arrastando-me pelo cangote.

— Eu não vou fazer de novo papai! — Eu juro. Não me bate.

— Você é igual sua mãe, aquela vaca. Vou dar-lhe um corretivo. Eu queria

correr mas tinha medo de que me apanhasse e me surrasse com mais raiva. Ele

triou a cinta da cintura, segurou o cos das calças com a mão esquerda e

começou a me chicotear de um lado para o outro. Eram brinquedos tão

baratos.

— Você vai aprender a me respeitar, seu filho de uma rapariga!

— Mamãe! — Mamãe...chamava baixinho.

— Tire a roupa! — Gritou ele. Sabia que desta vez era pra valer. Timidamente

tirei a bluza e a bermuda e timidamente coloquei as mãos para traz para

defender a retaguarda. Imaginei que fosse este o alvo. Mas papai estava

tomado de ira. De olhos vermelhos de raiva e um semblante amedrontador,

não poupou energia. Aquela cinta cortava meu corpo onde me tocava.. A dor

era intensa e fina. Sentia meus ossos estalarem quando a fivela resvalava em

minhas juntas. O choro me vinha em soluços.

— E não chora não! — Gritava ele. O choro contido me fazia soluçar

impetuosamente.

— Mamãe me ajuda?— Falava baixinho. Dona firmina estava sempre na janela

do outro lado a observar o movimento da rua . Foi graças ao bom Deus que ela

me viu pela greta do portão. Porque de outra maneira ninguém notaria o

acontecimento. O medo do monstro que meu pai parecia ser me apavorava

mais que a dor. Dona Firmina se apavorou e correu em meu socorro. Coitada

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acabou por levar uma das investidas de meu pai contra mim. Quando me

abraçou a fivela pegou em seu rosto fazendo um enorme vergão cujas

extremidades brotaram sangue imediatamente.

— Seu Sergio, não faça isto com esta criança! — Gritou ela em minha defesa.

Senti um grande alivio.

— Saia daqui sua velha encherida

— O senhor está ficando louco! — Ele tem apenas cinco anos.

— Aquela vaca quer acabar com minha vida! — Eu vou mostrar a ela de quem

vai ser este pirralho.

Meu pai estava a descontar toda a ira que mamãe deixou em seu

coração ao deixa-lo. Papai era um homem rude que não aceitava perder. Era o

oficial de justiça da pequena cidade de Entre Rios de Minas. Era violento e

cruel. Todos na cidade tinha medo de suas ações quase sempre agressivas. Já

havia matado em briga de bar e em trabalhos da jagunçada. Ninhuém ousava

lhe contrariar. Mamãe não suportava mais toda aquela carga de violência e

agressão. Um belo dia tomou coragem e foi embora para uma fazenda distante

trabalhar como boia fria deixando todos nós para traz. Mas antes disso recorreu

Senhor Alberto, juiz da comarca e expôs toda seu problema, o que já era de

conhecimento de toda a cidade. Juiz Alberto expediu a ordem de guarda do

menorzinho em favor de Mamãe. Meus irmãos e irmãs ficariam com papai.

Mamãe sabia que não conseguiria tratar de todos. Mas eu em particular, o

menorzinho e mais indefezo, seria-lhe de grande dor deixar para traz.

Ao receber a dita ordem judicial, papai enlouqueceu. Dona firmina tentou fugir

comigo nos braços mas tomou um soco na nuca que a lançou no jardim.

Novamente puxou-me para a cozinha e começou uma nova seção de tortura.

— Socorro! — Socorro! — Alguém me ajude! — Ele vai matar a criança. José, o

padeiro estava passando neste instante. Ele conhecia meu pai, já foram

companheiros de boteco, mas lhe tinha muito medo. Ao ver o desespero de

dona Firmina correu em meu socorro sentado sobre meus joelhos não

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conseguia mais me mover. Papai não saciado foi até a sala onde tirou da

parede uma espada que usara nos tempos de tenente de cavalaria e voltou

com sangue no olhar.

— Vou te sangrar de vez, moleque! — Levantou a espada à altura do ombro e

se preparaou para a execução. José num pulo pegou-o pela cintura e Dona

Firmina salvou-me novamente, saindo em disparada comigo em seus braços.

Nã ira desmedida de meu pai feriu josé de morte e quebrou toda a casa em m

fúria. Pedro Margareth e Conceição, meus irmãos, correram pelo pasto como se

o mundo estivesse acabando.

— Socorro! — Socorro! — Me ajudem! — Me ajudem!

— As senhoras da vila correram em socorro de dona Firmina e me escondera

no celeiro da Maria do açougue. Bem atrá do curral de curtume. Lá com certeza

Papai não me procuraria. Estava completamente deformado pela chibatadas.

Dona firmina preparou uma enorme banheira com agua e sal e me assentou ali

dentro. Senti um ardor que gradativamente foi me fazendo tremer.Estava tão

fraco que não conseguia mais chorar. Maria do açougue chegou em seguida e

sepoz a chorar quando me vira todo sujo de sangue. A bacia parecia ter apenas

meu sangue, de tão vermelha.

— Meu Deus! — Porque Seu Sergio fez uma coisa destas?

— Marlene lhe deixou!

— Mais porque fez isto com a criança?

— Dizem que ela conseguiu a guarda de Miguel porque era ainda muito novo

do filho!

— E onde estão as outras crianças?

— Não sei!

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— Genilson! — O Genilson! — Vá até o quatel e vê se tem alguém lá e pede pra

vir ver se as crianças estão bem? — Este homem é um monstro. Genilson, o

empregado do açougue, veio correndo até Maria.

— Vou sim, dona Maria! — Mas eu vou falar que a senhora me ordenou! — Se

Seu Sergio achar que foi eu mesmo que tomei a dianteira ele pode querer me

passar desta pra mió.

— Não se preocupe! — Desta vez este maldito vai pagar pelos seus crimes.

A água morna descia pelo meu rosto e o sal ficava grudado na salmoura

que minava dos cortes. Tinha uma sensação que tudo aquilo era por causa da

gaita que trocara pela flauta.

— O que vamos fazer com este menino! — Ele está muito machucado!

— Vamos leva-lo ao hospital!

— E Seu Sergio.

— Vamos pela rua de tras! — Vamos despistá-lo

— Genilse! — Fique no portão observando se ele vai sair de casa!

— Ele acabou de sair! — Parece que desta vez está com medo de ser preso!

— Seu josé até agora não saiu lá de dentro!

— Meu Deus! — Seu José! — O que será que aconteceu com ele?

— Jeremias do boteco disse que ele passou a galope em seu alasão e que deu

pra ver de relance que estava todo sujo de sangue! — Retrucou Jandira, uma

das vizinhas que ajudara na fuga de dona Firmina.

— Será que ele matou seu José? — Ele estava com a espada em suas mãos

quando José se atracou com ele.

— Vá Jandira! — Peça Manuel meu filho pra ver o que houve com José?

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— Seu Sergio trancou a casa e passou a corrente no portão! — Temos que

esperar sargento Paranhos e seus soldados.

— Vamos logo Maria para o hospital senão este menino vai acabar morrendo.

— Vira esta boca pra lá, Firmina.

— Vamos...Vamos... Sairam pelo trilho da boiada atrás do curral e subiram até

o alto da serra, saindo atrá da igreja. Padre Ronaldo Já tinha sido avisado do

acontecido. Correu também em socorro daquelas senhoras apavoradoas e

foram todos em multirão até o hospital.

— Dr Romualdo veio correndo pelos corredores, cochichos e fofocas já haviam

chegado ao seu conhecimento. Ao ver-me no colo de Firmina se entristeceu e

revoltou-se.

— Quem foi o monstro que fez esta covardia! — Vou coloca-lo na cadeia.

Dr. Romualdo não sabia por onde começar a me tratar. Eram tantos

cortes que nem eu mesmo sabia onde doía.

— Eles tem que saber que não é culpa de mamãe! — A culpa foi minha por ter

trocado a flauta. Tentava dizer aquilo mas meus lábios estavam tão inchados

que não se abriam.

Alguns dias se passaram e eu permaneci inconciente. Foi como num

sonho. Ao abrir os olhos vi mamãe que debruçada sobre a cama me sorria com

os olhinhos cheios dágua.

— Mamãe! — A culpa foi minha! — Eu não queria a gaita mamãe! — Não

queria!

Sentado naquele tronco, olhando para a límpida água do lago, me vi

novamente perdido em minha s desilusões.

— A flauta! — Balbuciei. O mercador já havia partido. Estava só novamente. O

choro veio de novo a explodir da garganta e apertar meu peito.

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— Mamãe! — Quantas saudades. Meu pai nunca fora julgado pela morte de

José e nem pela surra que me dera. Meus irmãos se perderam pelo mundo.

Fiquei com dona Firmina até os doze anos. Poucas vezes visitei mamãe que

casou-se novamente com Gervázio, Pistoleiro de Gerânio que por sua vez era o

coronel da região com suas dez mil cabeças de gado na fazenda Boa

esperança. Gervázio era cruel, talvez mais que meu pai. Ultima vez que o vi foi

quando, sentado ao chão da cozinha, comia uma matula preparada por mamãe

com o resto do almoço, o vi no fundo do corredor do casebre. Ainda me bate

como um martelo na cabeça, seu passos por sobre o tablado curvo em minha

direção. Vez em quando a saudade apertava e ia ver mamãe. Gervázio não

admitia filho de outro casamento. Até mesmo os dele ele botou para fora de

casa. Mamãe sempre fazia algo pra me agradar. Desta vez porém esuqcera de

sua presença.

— Você de novo aqui moleque! — Gritou ele com a garrucha empunhada em

minha direção. Mamãe tomou um enorme susto, prevendo o pior.

— Não faça isto Gervazio! — Não mata meu filho! — Mamãe pulou em minha

frente mas ele atirou assim mesmo. O tiro feriu mamãe de raspão e quebrou a

jarra dágua sobre o tamburete. Corri feito um coelho, passando por entre a

cerca do pequeno curral após o pátio do terreiro, pegando o pasto só parando

na estrada principal. Nunca mais voltei àquele lugar. De lá peguei a estrada e

de fazenda em fazenda fui trabalhando até a guerra começar.

O soluço me incomodava e as lágrimas não paravam de correr.

Aproximei-me do lago e lavei o rosto. No reflexo da água vi meus lábios

trêmulos de tristeza. Juntei novamente as águas límpidas com as mãos e joguei

por sobre minha cabeça. Notei meus cabelos brancos que já tomavam quase

todo o coro cabeludo.

— Serei apenas eu a juntar tanta tristeza? — Pergunte ao meu reflexo.

Enquanto a água se movia em pequenas ondas fiquei a fitar meus olhos

refletidos. De repente uma pedra cai sobre o meu reflexo espirrando-me água

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dentro dos olhos. Esfreguei-os e olhei em volta de mim. De cócoras sobre uma

pedra estava ele sorrindo.

— Você novamente?

— He-he-he-he! — Sorriu, aquele velho desdentado.

— O queres de mim? — Ele jogou algumas moedas aos meus pés.

— O que farei com estas moedas meu senhor?

— Uma viagem. Desta vez não o contrariei, estava muito sensível para

questionar.

— E para onde irei? — Antes mesmo que respondesse estava eu sentado por

sobre um fardo de algodão. O barulho do trem era inconfundível.

— Pensei que não fosse acordar mais!

— Gervazinho! — É você?

— Como não seria! — Há somente duas pessoas aqui desde que entramos! —

Uma delas sou eu!

— Quanto tempo já estamos viajando? — Ele tirou de suas calças surradas um

relógio de ouro.

— Quase três horas! — levou o relógio até a boca, deu-lhe uma baforada e

limpou com sua camisa. Era a única lembrança de seu pai. Quando o velho

Gervázio lhe escurraçou de casa, não perdeu tempo.

— Aquele velho maldito! — Um dia ei de voltar e mata-lo.

— Às vezes penso nisto também!

— Um dia tudo vai mudar e ei de levar mamãe para morar comigo, Marilia e

meu pequenino em um lugar bem sossegado.

— Eu também sinto muitas saudades de mamãe! — Foi por causa daquele

maldito que ela se matou.

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— Sinto tanta saudade de Marília que ás vezes me doi o peito.

— Porque você não contou a ela aonde iria.

— Não sabemos ainda se vai dar certo! — assim que recebermos o primeiro

salário, mando lhe uma carta explicando tudo, um bom dinheiro para comprar

presentes para o pirralho e um enorme buquê de flor.

— E você! — Disse a sua namorada onde ia?

— Disse! — Mas ela não acreditou! — Acho que ela não vai me esperar! — Ela

sabe que estou com você! — Ela se espantou e disse:

— Com aquele louco!

— Ela acha que você amansa cavalo bravo porque que morrer!

— Ela me conhece?

— Sim ela já lhe viu no rodeio algumas vezes!

— Você a ama?

— Mais que a minha vida!

— Ela é bonita?

— Você não a conhece? — É a Isabela, filha do Toninho do engenho grande.

— Ah! — Sei quem é. Como conseguiu namorá-la? — O Toninho não deixa

ninguém chegar perto dela!

— A primeira vez que nos encontramos eu estava atrás de um bezerro

desgarrado lá nas terras do Coronel Odilon. Pois é, foi lá que a vi. Ela estava

com Manuela num passeio matinal. O cavalo dela disparou ladeira abaixo, acho

que assustou com serpente, ali tem muita cascavél. Eu desci a galope e

amansei o alazão. Ela me pagou a investida com um largo sorriso. Daí

passamos a encontrar naquelas paragens.

— O Toninho ainda não sabe de seu namoro?

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— Não! — Ele não permitiria Isabela namorar com um peão!

— Eu também acho, amigo!

— E você como conheceu Marília?

— Eu trabalhei com o pai dela no corte de eucalipto. Ela e a irmã iam todos os

dias levar-lhe o almoço. Entre trocas de olhares ficamos quase um ano. Perto

do natal Fiz um trabalho na cerca da fazenda onde moravam. Ela levava-me

todas as tardes um pedaço de broa e café quentinho. Nos apaixonamos

perdidamente. Trabalhava como um louco só para que o tempo passasse mais

rápido. Assim toda tarde me deliciava com sua maravilhosa presença. Eu a amo

de todo coração.

— Quando voltar vou comprar o vestido mais caro que tiver e vou levar até a

casa de Toninho. Vou olhar bem dentro de seus olhos e pedirei Isabela em

casamento.

— Vá preparado pra correr, caso ele não aceitar! — Dizem que ele tem uma

cartucheira novinha para o pretendente que não lhe agradar!

— Há-há-há-há! — Rimos os dois por algum tempo. Estávamos indo para a

CSN- Companhia Siderúrgica Nacional. Estavam recrutando jovens. Diziam ser

um trabalho profissionalizante e que os melhores sairiam como gerentes de

produção, coisa que deixava-me a sonhar.

— Gerente de Produção da Companhia siderúrgica Nacional! — Com este título

voltaria para cidade de cabeça erguida. Desposaria Marília com orgulho. Seria

respeitado em toda região.

— O trem está parando! — Temos que saltar! — Andamos mais de uma hora

sobsol escaldante. Ao chegar, centenas de jovens como nós estavam esperando

em uma longa fila. Eram jovens que vieram de todos os cantos do país a

procura de uma esperança

— Vamos logo! — Todos em fila indiana! — Gritou um soldado do exército.

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— Não é para fichar? — o que soldados do exército estão fazendo aqui?

— Talvez seja para garantir a ordem do lugar!

— Que tiver pertences, relógios, pulseiras e óculos, coloquem dentro da sacola

que será fornecidas a cada um de vocês. Sabemos que a maioria de vocês não

tem instrução escolar, então não será preciso preecher nenhuma ficha. Quem

souber escrever o nome passe para a fila da direita. Quem souber escrever

mais que o nome fique na fila central. Vamos...Vamos...

— Você sabe ler e escrever Miguel, passe para a outra fila.

— Não! — É melhor ficarmos juntos. Não sabemos como vai ser lá dentro! —

Vamos observar primeiro.

— Ao passar pelo portão, tirem os sapatos! — Vocês receberão o uniforme que

deverão usar dentro da s dependências da fábrica.

A fila andou rapidamente. Antes do por do sol já estávamos quase todos no

interior da fábrica. Passamos por um logo labirinto de cercas altas que malcabia

dois de cada vez.

— Isto parece mais uma prisão do que uma fábrica.

— Todos aos vestiários! — Tomem banho que será servido o “jantar” no

refeitório no próximo pátio. Ele dissera “jantar” com tal sarcasmo que

desconfiei da promessa de me tornar gerente de produção. Foram nos entregue

um saco com dois macacões e uma botina de couro com solado de borracha de

pneu. A água estava morna, mas a grande quantidade de rapazes entre

quatorze e desessete anos era imensa. Gritaria e alvoroço para o banho. Alguns

pareciam ter meses que não via água. Todos porém tinham planos de voltar

para suas casas com dinheiro e emprego.

— Vamos logo! — Quem não se apresentar até ás oito ficará sem jantar.

Foi uma grande correria estávamos famintos. No refeitório contei mais de

quatrocentos jovens. A todos fora servido uma pasta amarela de batata com

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carne e uma caneca d’agua. Eram caldeirões enormes e muita gente faminta.

Muitos chegaram a repetir três ou quatro vezes. Todos saciado, colocaram-nos

novamente em fila indiana e nos direcionaram para os alojamentos. Eram

centenas de camas em beliches de quatro andares. Cada uma tinha um lençol e

um pequeno cobertor que quase não chegava até a canela.

— Isto está parecendo mais uma prisão.

— Estou muito cansado para pensar nisso Miguel! — Vamos dormir um pouco,

amanhã pensamos nisso. Adormecemos quase que imediatamente. Às cinco da

manhã soa um alarme aterrorizante.

— Levantem-se todos! — Levantem-se! — Ao trabalho! — Soldados e mais

soldados foram entrando e saímos todos novamente em fila indiana através

daquele labirinto de cercas. Entramos em outro enorme pátio onde nos

juntamos a antigos trabalhadores. Era amedrontador a aparência de cada um

deles.

— Que crime cometeu? — perguntou um deles à Gervazinho.

— Crime? — Como assim, crime?

— Vocês não são condenados?

— Condenados? — Miguel, que lugar é este?

— Acalme-se Gervazinho! — Um garoto que estava próximo ouvira a conversa e

se desesperou.

— Eu não quero mais ficar aqui! — Quero ir embora! — Ao tentar caminhar em

direção à saída foi logo sendo atacado por dos soldados que desferiu-lhe um

golpe de cassetete sobre os ombros. Ele caiu imediatamente sobre os joelhos.

Ao ver aquilo alguns jovens se desesperaram e também tentaram escapar mas

desta vez as consequências foram mais desastrosas. Os dois primeiro foram

alvejados na cabeça e os outros nas pernas por tiros de fuzil. O sil~encio se fez

presente imediatamente.

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— O que vamos fazer agora Miguél?

— Vamos esperar o momento ideal para fugir!

—Ao trabalho! —Vamos logo! — Ao trabalho seus pirralhos.

Por todo o dia trabalhamos na fabricação de aço e afins. Era um jornada

incessante. O calor era quase insuportável. Ouvia-se choro por todos os lados.

Na realidade a maioria já estava acostumada com uma vida dura e pouca

alimentação. O trabalho cessou às dez da noite. Ao sair ainda víamos os rastros

de sangue dos pobres garotos.

— Marque cada centímetro de cerca! — Observe cada soldado diferente! — Não

deixe de observar nem se estão barbeados ou não!

— Para que Miguel?

— Temos que bolar um plano de fulga antes de perdermos as esperanças.

— Imaginei que fosse ganhar dinheiro e casar com Isabela! — Agora sou um

condenado! — O que vou fazer?

— Vamos sair daqui e procurar trabalho.

— Nós nunca sairemos daqui!

— Não diga isto Gervazinho! — Não diga isto.

Dia após dia trabalhamos sem cessar. Gervazinho já tinha desistido de

marcar cada pedaço da prisão. Eu continuava prestando atenção em tudo.

Alguns garotos chegavam a enlouquecer e parar por completo de trabalhar.

Nunca mais o víamos. Em uma das vezes vi que um deles fora executado antes

mesmo de sair do alcance de nossas vistas. Outros eram levados para

calabouços e trabalhos ainda mais desumanos.

Em fila indiana, todos permaneciam cada dia mais calados e

desesperançosos. Após trinta e um dias ouvi ao longe o trem se aproximar.

Uma parte da linha passava por baixo do segundo galpão. Era lá que eles eram

carregados com lingotes de aço. Marquei aquela data na cabeceira de minha

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cama. No mês seguinte a mesma história se repetiu. Alguns soldados se

revesavam em diferentes turnos para o carregamento dos vagões que eram

feitos por presos acorrentados. Porém uma falha era evidente. A cozinha do

refeitório ficava vazia neste momento. Era onde os maquinistas se alimentavam

enquanto carregavam os vagões. A contagem era sempre falha neste dia pois

muitos soldados pegavam carona de volta pra casa. Precisávamos permanecer

na cozinha nestes intervalos.

— Gervazinho! — Você ainda está com seu relógio?

— Sim porque?

— Vamos precisar dele!

— O que vai fazer com meu relógio de ouro?

— Precisamos subornar os cozinheiros para permanecermos na cozinha durante

o carregamento do trem.

— Logo o meu relógio!

— Eles não iriam aceitar os poucas pratas que tenho no bolso.

Assim fizemos. Me aproximei de Tarik na hora de servir o “jantar”.

— Tarik! — Sei que você aprecia um bom produto

— o que um pirralho como você pode me oferecer?

— Vagarosamente com uma das mãos tirei apenas a metade do relógio

mostrando a ele. Seus olhos brilharam instantaneamente.

— o que você quer em troca pirralho!

— Quero trabalhar de ajudante na cozinha! — E meu amigo sentado ali adiante.

Apontei gervazinho com os olhos.

— É só isto?

— Sim! — Só!

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— Voc~es estão tramando alguma coisa!

— Não! — apenas queremos comer um pouco mais todos os dias!

— É só pedir que lhe dou mais!

— Não queremos pedir. Vai nos ajudar ou não?

— Sim, trato feito!

Preparamos tudo e esperamos o momento certo. Na data determinada, o trem

fez o mesmo trajeto e a movimentação de troca de turno não alterou. Na hora

do lanche dos maquinistas toda a cozinha foi trancada e os quardas do lado de

fora iniciaram a troca de turno.

— Quando a porta dos fundos se abrir coloque um pequeno anteparo na

fechadura. Esta porta só abre por fora. Gervazinho se posicionou e fez o

planejado. Fiquei esperando o momento certo para agir.

— Gervazinho!

— Sim! —Conseguiu colocar o antepara?

— Consegui.

— Vá para o banheiro e me espere lá. Nos escondemos no banheiro até que os

maquinistas terminassem seu almoço. O coração BATIA FORTE. Teve

momentos que pensei em desistir. Gervazinho Tremia feito vara verde. Eu

estava com o rolo de massa nas mão e Gervazinho com uma faca de desoçar.

Estávamos alí preparados oara algo que iria nos marcar pelo resto de nossas

vidas. Esperávamos que entrassem separadamente, mas entraram juntos. Não

tinha como recuar era nossa única chance. Ao entrarem para se lavarem,

observei-os até que estivessem desprevenidos. Estávamos perdendo muito

tempo. Qundo um estava de costas o outro não estava. Tomei fôlego

— Seja o que deus quiser. Saí do pequenino sanitário e num pulo desferi uma

borduada na cabeça de um dos maquinistas mas o segundo me impediu de dar

a segunda. Gervazinho ficou em estado de choque.

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— Me ajuda, Gervazinho! — Ele não conseguia se mexer. A luta cada ves mais

violenta me deixava em maior desspero. Tentava enforca-lo mais ele era

também muito forte. Um soco me acertou o rosto e meu nariz começou a

sangrar, um segundo soco e fiquei zonzo e desfalecido. Olhei em direção a

gervazino que me olhava como se eu não estivesse ali.

— Gervazinho me ajuda! — Outro soco e não vi mais nada.

—Numa fração de segundos me percebi sobre a pia carregado por gervazinho

que me lavava o sangue tentado me acordar.

— Temos que ir! — Olhei para o chão e estava coberto de sangue.

— Este é meu sangue?

— Não, não é seu. Sentado no canto do vaso vi Aquele maquinista com a

garganta cortada. Fora Gervazinho que num momento de lucidez fora tomado

de imansa fúria que lhe fez degolar aaquele homem com um corte de orelha a

orelha.

— Como fez isto Gervazinho?

— Não sei! — Quando dei por mim, já tinha feito.

— Vamos logo! —Precisamos nos trocar. Me ajude a colocar os corpos dentro

da cabina.

— Obrigado gervazinho!

— Qundo sairmos daqui você me agradece. Mas tenho que lhe perguntar mais

uma coisa.

— Você sabe operar uma locomotiva?

— Não,exatemente.

— Como assim não exatamente?

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— Já estive dentro de uma cabine com o João maquinista, lembra dele? — Ele

era apaixonado por mamãe. Enquanto descíamos as escadas até os trilhos

conversávamos para aliviar a tensão.

— Ele te ensinou a operar a máquina?

— Não!

— Como assim, não?

— Só andei algumas vezes! — Era muito pequenino, Só fiquei observando o

que faziam.

— Pequenino? — Que idade?

— Tinha uns seis anos! —

—Seis anos? — E você se lembra de tudo?

— Não!

— Ah! Meu Deus, vamos morrer!

— Não pense nisto! —Vamos conseguir você vais ver.

Entramos dentro da cabine de comando e nos trncamos lá. Com a aba do boné

sempre tampando o rosto permanecendo esperando o sinal de partida. O trem

pelo menos já estava ligado. Eles não o desligavam enquanto a parada para o

carregamento.

— Quantas alavancas!

— São de conexão dos vagões de freio motor.

— Graça ao bom Deus você se lembra.

— Não me lembro.

— Então como sabe?

— Esta escrito logo abaixo.

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—Ah! — Vi.

— Gervazinho!

— O que foi?

— Você não frequentou a escola?

—Sim, mas eu nunca consegui aprender a ler. Meu pai me batia todos os dias.

Não conseguia ficar em casa e nem na escola. Passei a perambular pela cidade,

fingindo ir para escola. Mas depois que mamãe morreu passei a dormir nos

campos de plantação de melancia e milho, trabalhar nas lavouras e roubar

coisas no mercado.

— Gervazio, seu pai eramuito ruim.

— Sua mãe deveria ter se casado com João maquinista e não com ele. Ela vai

padecer que nem mamãe. O sinal ficou verde e o segurança da guarita deu

sinal para partir.

— Segure-se Lá vamos nós.Empurrei a alavanca de marcha pesada e soltei os

freios. Aquele enorme animal de aço começou a galopar. Pelos retrovisores

observava se ninguém vinha reclamar os corpos no banheiro. Meu rosto estava

enorme e dolorido.

— Você está estranho com este olho roxo. Parece um macaco. Em meio àquela

enorme tensão, consegui ri um pouco.

— Lá vamos nós. Fomos saindo devagar passando de portão em portão até sair

para a liberdade.

— Livres! — Gritamos. Olhei pelo retrovisor novamente e vi homens correndo

de um lado para o outro.

— Descobriram!

— Descobriram?

— Olha pelo retrovisor.

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— Eles estão vindo atrás, acelera.

— Isto não é automóvel, Gervazinho. É preciso embalar. Carros e tanques

vieram em perseguição.

— O que faremos Miguel? — O que faremos?

— Não sei ainda.

— Tive uma idéia ! — Vamos pular no rio grande.

— Podemos morrer afogado!

— Então me dê outra alternativa melhor!

— Não! — Você tem razão. Eles vão preocupar em parar o trem.

Assim fizemos. Quando nos aproximamos da ponte sobre o rio grande subimos

sobra o vagão propulsor. A sensação era impactante. Era muito alto e o rio

parecia poço sem fim. Estavamos entre a faca e a espada. Gervazinho desta

vez mostrou-se mais corajoso. Num piscar de olhos lançou-se na correnteza. No

embalo fui logo depois. Uma sensação indescritível. Mas a correnteza não me

deixava voltar a superfície. De repente a mão de Gervazinho me alcançou. Um

grnde alívio.

— Nade o mais rápido que puder. A correnteza era forte e me cobria o rosto

várias vezes me fazendo engolir água. Gervázio continuava me sustentar.

Vários homens chegaram sobre a ponte e começaram a atirar. Alguns tiros

passaram tão perto que escutávamos o zumbido seco do projétil a atingir a

água. A correnteza foi nos levando... Levando... Até que ficamos fora do

alcance de qualquer daquelas armas.

Descemos o rio até ao escurescer. Hora boiávamos, hora nadávamos de

peito. Gervazinho sempre me ajudava qundo perdia o controle. O sol começou

a esconder na colina, nadamos em direção a margem.

— Conseguimos, Gervazinho! — Conseguimos.

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— Estou muito cansado, preciso dormir um pouco. Gervazinho colocou a mão

na cintura e viu o sangue quente ainda saindo de um pequeno buraco.

— Miguel! — Acho que não vou conseguir. Olhei-o de perto e estava amarelo

como maracujá. A lua estava alta e cheia, mas não era nem de longe seu

reflexo que lhe dava um aspecto mórbido. Seus lábios sem cor me deram uma

angústia que não consigo tirar do peito.

— Pensei que iria voltar com dinheiro pelo menos para o enxoval do bebê.

Agora me vejo morrendo com os bolsos vazios. Meu pai disse em seus poucos

momentos de lucidez que quando morremos temos que pagar um barqueiro

para levar nossas almas ao paraíso. Nem para isto terei dinheiro.

— Não diga isto! — Você não vai morrer.

— Sim! — Já estou partindo. Coloquei as mãos nos bolsos e lá estavam

algumas pratinhas. Eram cinco moedas. Coloquei-as em sua mão. Ele deu um

pequeno sorriso e partiu.

— Oh, meu Deus Porque? — Porque és tão cruel com aqueles que tem tão

pouco? — A partir daquele momento não mais acreditei em Deus. Andei toda

noite e o outro dia inteiro. Tive que enterrá-lo sobre a arei da margem. Nada

no mundo foi tão doloroso como a última imagem de Gervazinho. Meu único

amigo.

— Não! — Eu nunca consegui

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Outrora me chamei Ana , Princesa de Antuérpia