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1 EU DIGO SEMPRE VARGEM GRANDE ESTÁ AGONIZANDO: reflexões teóricas e metodológicas a respeito da narrativa biográfica. Rafaela Paula da Silva* 1 I. Introdução Tudo isto é o real, isto é, o fragmentário, o fugaz, o inútil, tão acidental mesmo e tão particular que todo acontecimento ali aparece, a todo instante, como gratuito, e toda existência, afinal, como privada da menor significação unificadora. (Robbe- Grillet, 1984 apud BOUDIEU, 2006, p.185, grifo nosso) Esta é a terceira nota de rodapé do texto A Ilusão Biográfica escrito por Pierre Bourdieu. Em que, o autor discute a biografia, ou de modo mais restrito, a narrativa biográfica em entrevistas de História Oral. O cerne de sua reflexão é organização narrativa que dota os eventos de sentidos determinados, já que, em princípio não possuem necessariamente relação entre si e nem tampouco significado intrínseco. O fragmentário neste caso são os próprios eventos que se sucedem de forma acidental ou tão particular e específica, que não poderiam servir para uma generalização. Para ele a tendência de buscar fatos representativos conferir-lhes sentido, construir relações coerentes de causa e efeito, entre outras coisas, corresponde a aceitação do “...sentido da existência narrada. Que por sua vez configura o projeto, um conjunto de intenções objetivas e subjetivas direcionadas, enunciadas em expressões como “desde sempre”, “desde então”, “desde pequeno”. O projeto, conforme o autor expõe é mais uma construção discursiva, evidenciada mais por estes termos, do que propriamente um processo biográfico. (BOUDIEU, 2006, p.184) A noção de projeto permite uma articulação profícua entre memória e identidade. Porque a memória formatada dentro de uma lógica processual impar forjaria a apreensão constitutiva de uma identidade social, fornecendo uma narrativa coesa repleta de subsídios que a fortalecem. Gilberto Velho associa isso ao indivíduo, como aquele que faz projetos, centrando na valorização de sua personalidade e trajetória. Deste modo, não apenas significa o passado * 1 Bacharela em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), cursa atualmente Licenciatura em História na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), é pesquisadora associada ao Núcleo de Pesquisa em Ambiente, Territórios e Sistemas Agroalimentares (NEATS/UFRRJ). E-mail: [email protected].

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EU DIGO SEMPRE VARGEM GRANDE ESTÁ AGONIZANDO: reflexões teóricas e

metodológicas a respeito da narrativa biográfica.

Rafaela Paula da Silva*1

I. Introdução

Tudo isto é o real, isto é, o fragmentário, o fugaz, o inútil, tão acidental mesmo e

tão particular que todo acontecimento ali aparece, a todo instante, como gratuito, e

toda existência, afinal, como privada da menor significação unificadora. (Robbe-

Grillet, 1984 apud BOUDIEU, 2006, p.185, grifo nosso)

Esta é a terceira nota de rodapé do texto A Ilusão Biográfica escrito por Pierre Bourdieu.

Em que, o autor discute a biografia, ou de modo mais restrito, a narrativa biográfica em

entrevistas de História Oral. O cerne de sua reflexão é organização narrativa que dota os eventos

de sentidos determinados, já que, em princípio não possuem necessariamente relação entre si e

nem tampouco significado intrínseco. O fragmentário neste caso são os próprios eventos que se

sucedem de forma acidental ou tão particular e específica, que não poderiam servir para uma

generalização.

Para ele a tendência de buscar fatos representativos conferir-lhes sentido, construir

relações coerentes de causa e efeito, entre outras coisas, corresponde a aceitação do “...sentido

da existência narrada”. Que por sua vez configura o projeto, um conjunto de intenções

objetivas e subjetivas direcionadas, enunciadas em expressões como “desde sempre”, “desde

então”, “desde pequeno”. O projeto, conforme o autor expõe é mais uma construção discursiva,

evidenciada mais por estes termos, do que propriamente um processo biográfico. (BOUDIEU,

2006, p.184)

A noção de projeto permite uma articulação profícua entre memória e identidade.

Porque a memória formatada dentro de uma lógica processual impar forjaria a apreensão

constitutiva de uma identidade social, fornecendo uma narrativa coesa repleta de subsídios que

a fortalecem. Gilberto Velho associa isso ao indivíduo, como aquele que faz projetos, centrando

na valorização de sua personalidade e trajetória. Deste modo, não apenas significa o passado

*1 Bacharela em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), cursa atualmente Licenciatura em

História na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), é pesquisadora associada ao Núcleo de Pesquisa em

Ambiente, Territórios e Sistemas Agroalimentares (NEATS/UFRRJ). E-mail: [email protected].

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no presente subjetivamente, mas também e principalmente entreve e propõe metas para o futuro.

(VELHO, 2013, p. 64-65)

Outro aspecto frisado pelo antropólogo é que da organização dos fragmentos

memorialísticos e suas descontinuidades, depende em grande parte o sentido da identidade

social. E apesar disso, não é apenas algo feito subjetivamente, e sim intersubjetivamente.

Pressupondo a existência de outras pessoas com quem o sujeito interage e nos próprios termos

que enuncia essa interação. Na maneira como planeja suas ações, nos objetivos, como uma

forma de comunicação com o outro, se trata de negociar com a realidade conscientemente, no

contato com as circunstâncias do campo de possibilidades que o sujeito está inserido,

limitações, constrangimentos. Disto resulta a identidade social, que numa sociedade mais e mais

complexa tende a multiplicar-se em projetos, ao mesmo tempo que aumenta a possibilidade

contradições e conflitos. O dinamismo é uma característica do projeto, que permite sua

adequação ou reformatação, consequentemente a biografia valorizada está sujeita a constantes

revisões e reinterpretações. (VELHO, 2013, p. 67)

II. Memória biográfica, identidade social e memória histórica

Em sua conferência intitulada Memória e Identidade Social, Michel Pollack faz algumas

considerações sobre os elementos formadores da identidade social por meio da memória, são

eles:

Esses três critérios, acontecimentos, personagens e lugares, conhecidos direta ou

indiretamente, podem obviamente dizer respeito a acontecimentos, personagens e

lugares reais, empiricamente fundados em fatos concretos. Mas pode se tratar também

da projeção de outros eventos. (POLLACK, 1992, p.202)

Um dos aspectos interessantes de sua colocação é que a apreensão de todos estes

elementos não se dá apenas de forma direta, mas também indiretamente. O que significa,

conforme Pollack desenvolve ao longo do texto, a possibilidade de vivenciar situações,

conhecer personagens e lugares através de mecanismos diferentes, por exemplo, relatos,

imagens, textos. E de alguma maneira interiorizar estes elementos em sua narrativa individual,

de tal maneira que pode ser até difícil determinar se o indivíduo participou ou não diretamente

do evento. Não se trata exatamente de hierarquizar memórias, entre as mais ou menos reais, e

sim reconhecer outras referências, além da experiência empírica, como elementos formadores

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da narrativa da história de vida, a possibilidade de “uma memória quase que herdada”.

(POLLACK, 1992, p.201)

Os acontecimentos, Pollack categoriza entre aqueles vividos objetivamente e outros que

foram vividos “por tabela” pela coletividade de que o sujeito participa, ou no extremo que

ocorreram contemporaneamente sem vínculos formais com o sujeito ou com seu grupo,

distantes espacialmente, por exemplo, uma ditadura ou guerra. Então, por algum aspecto da

socialização o sujeito ou grupo, pode sentir identificação com isso, tornar um marco de memória

pessoal e inclusive transmiti-lo ao longo do tempo.

Halbwachs que é um dos referenciais utilizados por Pollack para discutir a memória,

parece por outro lado desenvolver um tipo de categorização interna para pensar a memória de

eventos não vividos, principalmente os que possuem alguma importância histórica. Bem como

as formas aumentar, desenvolver essas lembranças dos fatos históricos...

Quando eu os evoco, sou obrigado a confiar inteiramente na memória dos outros, que

não vem aqui completar ou fortalecer a minha, mas que é a única fonte daquilo que

eu quero repetir. Muitas vezes não os conheço melhor, nem de outro modo, do que os

acontecimentos antigos que ocorreram antes de meu nascimento. Carrego comigo uma

bagagem de lembranças históricas, que posso ampliar pela conversação ou pela

leitura. (HALBWACHS, 1990. p. 54)

E os lugares? São aqueles que possuem um forte vínculo com a memória, não

necessariamente expressos por uma cronologia exata. Podem ter sido cenário de algum fato

pelo qual a pessoa nutra apreço, monumentos de comemoração e memória pública ou

longínquos no espaço-tempo que servem como referencial identitário, como no caso de

descendentes de imigrantes que guardam tradições e memória dos países de origem.

As pessoas ou personagens por sua vez podem ter sido um envolvimento direto familiar,

uma vivência compartilhada ou serem personalidades contemporâneas com quem se

desenvolve algum tipo de identificação. Podem ser também personagens de outro tempo, como

personagens históricos ou de um romance. A memória social é principalmente fruto destas

interações, mais ou menos complexas, próximas, distantes que formam o caráter individual a

identidade social. Absorvendo e produzindo cultura:

A transmissão cultural entre as gerações é tão antiga quanto a humanidade, nascida

que é da condição humana fundamental. Nossas vidas constituem uma fusão entre

natureza e cultura; no entanto, natureza e cultura estão em contradição. Sendo a

cultura a essência daquilo que converte indivíduos humanos em grupos (o núcleo da

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identidade social humana), sua continuidade é vital. Todavia, em contraste com as

pretensões da cultura e representar a tradição através dos séculos, as chamadas

verdades eternas a crua brevidade da vida humana. Daí a necessidade universal de

transmissão da cultura entre as gerações. (THOMPSON, 1993, p.9)

A transmissão da cultura é forma de continuidade, contra a morte. De modo que, a

resposta a brevidade individual é a continuidade da cultura coletiva mantida pela memória.

Thompson em seu texto, como Pollack, parte do pressuposto que a memória é sempre coletiva

(HALBWACHS,1990, p.26). O sujeito transita para ele, entre grupos diferentes e cumula

lembranças que formam se aparato cultural. Embora claramente exista uma preponderância na

cultura familiar para formação individual é disso que se trata a memória individual.

Seria o caso, então, de distinguir duas memórias, que chamaríamos, se o quisermos, a

uma interior ou interna, a outra exterior; ou então a uma memória pessoal, a outra

memória social. Diríamos mais exatamente ainda: memória autobiográfica e memória

histórica. A primeira se apoiaria· na segunda, pois toda história de nossa vida faz parte

da história em geral. Mas a segunda seria, naturalmente, bem mais ampla do que a

primeira. Por outra parte, ela não nos representaria o passado senão sob uma forma

resumida e esquemática, enquanto que a memória de nossa vida nos apresentaria um

quadro bem mais contínuo e mais denso. (HALBWACHS,1990, p. 55)

A memória do país ou da cidade em que o sujeito vive é maior, porque se refere a mais

pessoas, um espaço mais amplo e não está presa ou ciclo vital dos membros, antes se desenvolve

e permanece abarcando outras vidas gerações. A memória da própria vivencia seria mais densa,

embora menor, disso resulta a importância do núcleo familiar para a transmissão de valores, da

cultura, o aprendizado da linguagem, habilidades domésticas modelo de comportamento, visão

de mundo. (THOMPSON, 1993. p. 10)

A primeira coletividade em que sujeito se insere é a família, em suas pesquisas

Thompson percebeu que a tradição, ou uma família estruturada e segura não era

necessariamente garantia de ascensão social podendo inclusive corroborar para permanência no

mesmo nível. A transmissão de um conhecimento familiar não se refere ao conhecimento

remoto, mas recua no máximo até os bisavôs. O grupo familiar “...é um sistema estruturado de

relações interpessoais mantido a base de certos pressupostos (geralmente não declarados) ”

(THOMPSON, 1993. p. 12-13)

III. História de vida e enunciação narrativa do eu nas entrevistas de História Oral

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Pierre Bourdieu usa o termo ilusão retórica ao se referir ao “...relato coerente de uma

sequência de acontecimentos com significado e direção...” (BOURDIEU, 2006, p. 185). Nesse

sentido a narração da vida não existe previamente formulada, é algo construído de maneira

conjunta, por meio do contato entre o entrevistador e o entrevistado. E, se por um lado o

entrevistado se preocupa em contar as coisas da melhor maneira possível dando sentido e

significado a sua trajetória, o entrevistador tende a receber e aceitar essa construção pela própria

maneira como se dá a entrevista. Uma situação artificial em que dois seres interagem mediados

por uma máquina de escrever, um gravador, um bloco de anotações, um arsenal teórico e

metodológico. (PORTELLI, 2010, p.20)

No texto História Oral como gênero Alessandro Portelli demonstra que a História Oral

assim como um relato completo não existe naturalmente. Porque as coisas no cotidiano são

contadas de forma fragmentada, quando surge a ocasião em pedaços, episódios, por vezes

repetidos, que apesar disso, não se encontram contextualizados dentro de uma lógica biográfica.

Trata-se, portanto de um discurso dialógico em que, a própria presença física do entrevistador

e a forma como ele apresenta a si mesmo e sua pesquisa interferem ativamente no resultado.

(PORTELLI, 2001, p. 10-11)

Assim “A entrevista, implicitamente, realça a autoridade e a autoconsciência do

narrador e pode levantar questões sobre aspectos da experiência do relator a respeito dos quais

ele nunca falou ou pensou seriamente. ” (PORTELLI, 2001, p. 12) Nesse processo, segundo

ele, também o esforço de narrar é expresso pela linguagem ou “linguística socializada” que

incluirá elementos da comunicação social, formas que locutor conhece o sentido e tenta aplicar

em sua performance visando, por exemplo, o efeito dramático ou a empatia.

Em seu texto Portelli discute principalmente a especificidade da História Oral como

gênero discursivo que entrelaça o oral e o escrito para comunicarem-se mutuamente a respeito

do passado. Em que, se evidencia a consciência da historicidade do indivíduo e seu papel na

história da sociedade, isso talvez inclusive faça com que a História Oral alcance sua proposta

de maneira mais intensa quando lida com pessoas comuns e não necessariamente

personalidades da vida pública. (PORTELLI, 2001, p. 13-14) Porque estaria efetivamente

construindo um novo discurso de forma dialógica, a respeito da sociedade a partir de uma

pessoa que até então não tido essa oportunidade e não apenas lidando com uma formulação

experimentada diversas vezes.

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Suponho, então que o grande problema seja até que ponto é possível entrar em contato

com o outro e compreender sua realidade. Sempre existe uma barreira: A arte multivocal da

História Oral é um ensaio que formula esse estranhamento causado pelos limites da

compreensão. Em princípio, discorda de que apenas o locutor está sendo analisado, se trata de

uma entrevista, portanto, um entre olhar, ambos estão a mercê da observação. (PORTELLI,

2010, p. 20) Isso significa que o discurso do entrevistado, em alguma medida irá se ajustar as

referências que percebe vidas de quem o questiona. O autor cita o exemplo de um sindicalista

que foi entrevistar e antes de começar a contar sua vida lhe perguntou se ele era filiado ao

sindicato, após ouvir que sim inicia seu relato.

A esposa do entrevistado conta seu relato em outra ocasião e em determinado momento

chega ao tema conflitos raciais. Em sua colocação demarca uma linha, ela descreve que ao

longo de sua vida ouviu e viu histórias de violências cometidas por brancos contra negros. Então

mesmo que nada tenha ocorrido diretamente com ela, reconhece essa distância, esse perigo e se

sente desconfiada. A conclusão do autor é basicamente “Sempre existe uma linha, sempre existe

uma barreira, diz a Sr. Cowan – e a boa-vontade e as boas maneiras não são suficientes para

ultrapassá-la. ” (PORTELLI, 2010, p. 33) Outra conclusão indireta é que o entrevistado que

determina até onde se permitirá ser invadido, e que oralmente essa barreira vai ser mais ou

menos definida dependendo do testemunho os limites naturalmente vão se diluir ou adensar.

Porém na escrita histórica essa linha vai se tornar um muro definido, tomando o controle

daquele que enunciou para conferir uma lógica textual. (p.35)

Talvez nos ocorra então, que a forma mais “verdadeira” de alcançar o discurso seria,

portanto, minimizar as interferências do entrevistador, anulá-lo por assim dizer. Segundo

Portelli essa é uma estratégia que só serve para captar o superficial que prontamente será

exposto a qualquer um. Enquanto um ouvinte respeitoso, mesmo que antagonista pode

alimentar uma boa narração. (PORTELLI, 2001, p. 22) E também como a entrevista é uma troca

de confiança, esperar que outro fale de si enquanto o próprio entrevistador tenta se esquivar é

um paradoxo.

IV. Análise de história de vida em entrevista de História Oral

Minha pesquisa investiga a culinária e os dispositivos sociais que propiciam sua

patrimonialização numa determinada comunidade quilombola, a Comunidade Cafundá

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Astrogilda, localizada no Parque Estadual da Pedra Branca (PEPB – RJ). Compreendendo

patrimônio como uma possibilidade analítica, uma noção que comparativamente pode ser útil

para o entendimento de um grupo específico, por meio da análise de um elemento social que

adquire importância para o grupo. (GONÇALVES, 2003, pp. 22-23)

Para tanto, me utilizo de uma metodologia de pesquisa qualitativa construída em etapas

subsequentes e por vezes concomitantes: pesquisa bibliográfica, trabalho de campo com

observação participante, entrevistas e análise de dados (BONI; QUARESMA, 2005, p.70)

A pesquisa bibliográfica versou inicialmente sobre patrimônio cultural, memória

social, identidade, História Oral. Bem como, textos sobre comidas patrimonializadas,

objetivando compreender que mecanismos sociais tornavam possível e desejável este

reconhecimento nacional. Dois trabalhos importantes para esta reflexão foram o de Nina Bitar

(2011) e o Debora Simões de Souza Mendel (2014), que pesquisam a patrimonialização do

ofício das baianas do acarajé. Ambas tratam da comida como um aspecto material de um

sistema, um elemento social que possibilita reflexões mais amplas.

Torna-se, portanto, relevante pensar a valorização local disto dentro de uma reflexão

mais ampla, que englobe a discussão da patrimonialização de elementos da cultura afro-

brasileira pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). E a

consequente possibilidade de tornar elementos potencialmente “patrimonializáveis”

ferramentas políticas para pautar demandas sociais de grupos ou comunidades. Mendel

relaciona este processo a “de lutas do movimento negro, abertura política, valorização da

herança da África, cujo próprio conceito de patrimônio sofreu alterações...” (MENDEL, 2014,

p.135)

A noção de patrimônio cultural, imaterial e/ou intangível, neste caso, confere valor

legalmente a culinária, como também a outras práticas culturais afro-brasileiras. Após o decreto

3.551 de 4 de agosto de 2000 que instituiu o registro de bens culturais de natureza imaterial,

várias manifestações culturais têm sido registradas, a arte kusiwa, o ofício das paneleiras de

Goiabeiras, o círio de Nossa Senhora de Nazaré, o ofício das baianas de acarajé, a viola-de-

cocho e o samba de roda do Recôncavo Baiano, o jongo. Quando Martha Abreu publicou seu

Cultura Imaterial e patrimônio histórico nacional sobre esta temática em 2007, mais de vinte

manifestações culturais estavam sendo inventariadas para registro. (ABREU, 2007, p.235)

O Parque Estadual da Pedra Branca (PEPB) foi ocupado, juntamente com seu entorno,

principalmente a Baixada de Jacarepaguá, no período colonial pelos grandes engenhos de

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açúcar. Associados a outros elementos importantes que proporcionassem condições de cultivo

e produção: plantio de capim para alimentar os animais responsáveis pelo transporte, uma

numerosa população escrava para plantar, colher, extrair madeira das matas, construir cercas,

caixas para o transporte do açúcar, carros de bois, construções e reformas em geral. Além de

seus mandiocais. (FERNANDEZ, 2009, pp.213-214)

No século XIX, com a decadência do mercado açucareiro, as grandes propriedades

esmaeceram, dando lugar a sítios e chácaras com uma produção doméstica. Voltada para

negociações locais e coexistindo com as grandes propriedades. Mais tarde as regiões serviram

ao de café, fazendas em que muitas vezes o dono não vivia. Neste contexto as relações com a

Corte, ou regiões centrais do Rio de Janeiro, propiciaram mudanças significativas, uma quebra

do isolamento. Proprietários puderam negociar seu numeroso excedente, construir casas

luxuosas, e cumular escravos. Apenas em fins do século XIX, com o fim da escravidão e o

declínio no comércio cafeeiro. Acompanhados de outras transformações socioeconômicas,

disseminação de doenças (febre amarela e malária). (FERNANDEZ, 2009, p. 214)

Fizeram com que a região, dentro da visão sanitarista em alta no início do século XX

passasse a representar decadência e estagnação. A derrocada dos altos ganhos seria evidenciada

pelo fracionamento das grandes propriedades, vendidas ou cedida a pequenos agricultores da

região, para cultivo em pequena escala. Neste contexto a Comunidade Cafundá Astrogilda é

um grupo que vive dentro do PEPB. O mito evocado para explicar o início da comunidade

remonta a compras de pequenos lotes de terra, de um grande proprietário, ou a doações destes

lotes.

Os grupos familiares que passaram a ocupar o território, plantando em pequenas

quantidades de vários alimentos, além de produzir carvão e criar animais. Escravos libertos

pelos grandes proprietários e outros trabalhadores. Alguns se referem a isso como o princípio

da comunidade hoje dividida em núcleos familiares, embora seja uma preocupação delimitar

ao redor do território destes núcleos, estão cientes de sua propriedade particular.

Numa tarde quente de agosto entrevistei a moradora Maria Isabel da Silva Santos que

foi casada com Jorge dos Santos filho mais novo da matriarca Astrogilda da Rosa Mesquita.

Em sua casa ela me recebeu para falar dos doces que havia preparado para a comemoração que

acontecia naquele dia e seriam distribuídos gratuitamente aos participantes, e relatar um pouco

de sua trajetória.

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Ahhh minha família, a minha família toda não, por parte de pai e mãe estão todos

mortos, a parte materna não conheci. Que dizer, eu vivi mais a vida da minha sogra,

mas a minha família é toda daqui. Minha mãe morreu com trinta e poucos anos, a

minha vó de parto, teve ela, teve um outro filho e morreu. E foi assim, praticamente

não conheci, eu sei, por exemplo que meu avô nasceu lá no topo que era sitiante, por

parte de pai. Depois virou ferreiro ali no largo, acho que foi o primeiro ferreiro daqui.

Eu lembro que eu era menina e vinham aquelas tropas imensas de burro serem

vendidas para os sitiantes daqui. Tudo era levado para Vargem Grande no Lombo de

Burro... e foi, eu cresci vendo tudo isso, e foi se acabando. Porque todo mundo foi

embora e isso foi ficando para trás, os mais velhos morrendo. Um tio avô dele (aponta

vagamente para o filho que está ao lado da cozinha na sala) morreu com 103 anos.

Deixou uma grande propriedade no Sacarrão que ficou com a família. Alguns mais

novos ficaram lá encima na propriedade como o pai dele, outros que estão morando

lá também. (Maria Isabel, agos. 2014.)

Ao longo da entrevista Maria Isabel com frequência se refere a sogra, invariavelmente

mesmo tratando de assuntos distintos, a senhora Astrogilda parece ser seu referencial familiar,

o que em parte se justifica pela perda de seus próprios familiares, mas também demonstra ao

mesmo tempo que reconhece a importância da sogra e se vale dela para referendar o próprio

testemunho, embora possivelmente isto não se conscientemente. Outro tema recorrente é o

esvaziamento das propriedades locais e o consequente deslocamento para outros lugares dos

moradores. A partilha das grandes propriedades é também comentada diversas vezes, seja

porque estas propriedades foram vendidas pelos moradores que deixaram o parque e

indiretamente acabaram propiciando a construção de condomínios e casas, seja porque foram

divididas entre os descendentes que as ocupam.

Nesse sentido, seus laços com os moradores que ainda habitam a localidade se

enfraquecem a ponto de que ela não saiba determinar com exatidão para onde foram e de que

maneira eles vêm lidando com a própria memória familiar. Numa dessas casas da parte alta

residia a senhora Astrogilda e atualmente mora seu filho mais novo.

O lugar ter que vir de uma comunidade, importante, importante por causa da partilha,

partilhar uma festa. Não se vive muito isso, acho que trazer de volta seria bom.

Antigamente, eu me lembro, mês de junho [...] as pessoas se reuniam, um criava um

porco, aquele criava outra coisa, tinha uma festa de Santo Antônio ali se reuniam todo

mundo, pobre ou rico era indiferente. Tinha uma festa na casa de D. Mocinha todo

mundo ia para lá, era uma propriedade grande agora já foi dividida. Ia com os archotes

sabe aquela lanterna de bambu, aqui se chamava archote não sei como é outro nome,

como uma tocha com querosene no fundo, chegava lá apagava, na volta acendia e

vinha. Todo mundo andava, quer dizer era divertido e acabou tudo isso, digo sempre

que Vargem Grande está agonizando. [...]

São coisas que vem desde lá das pessoas que viveram essa cultura, foi se acabando,

se acabando porque todo mundo foi indo embora, os mais velhos foram morrendo

levando isso com eles, e assim foi. Eu passei isso para os dois filhos, muitas pessoas

foram embora, as tias deles mesmo, todo mundo indo embora, tem gente em Nilópolis,

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em todos os lugares. Todo mundo foi indo embora e a cultura foi ficando para trás...Eu

não sei como eles tiveram essa preocupação de passar para os filhos[...] Como minha

sogra contava para gente, sentava na beira do fogão para contar toda a história da

família. (Maria Isabel, agos. 2014.)

Muitas das proposições que discutimos anteriormente se expressam em seu relato. Por

exemplo, sua projeção de se mesma se dá entre duas margens a comunidade e a família, a

comunidade normalmente é expressa pelo “todo mundo” ou “todos”, como se os moradores

formatassem uma totalidade. E o passado aparece apenas do ponto de vista positivo, hoje a casa

de Maria Isabel conta com luz elétrica, água encanada, mais ao referir-se ao período em que

não usufruía destas comodidades o define como divertido, uma época em que as pessoas se

reuniam para festejar independentemente de sua condição financeira todos ajudavam como

podiam.

Além disso, minha condição completamente externa ao campo tendeu a deixar Maria

Isabel mais livre para expressar suas opiniões, na ocasião o filho dela estava em casa no cômodo

ao lado na segunda parte da entrevista. E em suas interferências algumas vezes relativizou

alguns enunciados da mãe a respeito de algumas informações, me deixando com a impressão

de que alguns aspectos eram enfatizados para obter efeito dramático. Quando cita a cultura

Maria Isabel de forma inconsciente está tratando da transmissão cultural geracional, conforme

aborda Thompson, como apreendeu que sua vida deveria ser e ao mesmo tempo fazendo as

próprias escolhas dentro do campo de possibilidades, o que engloba inclusive as dispersões do

território como uma escolha possível. (THOMPSON, 1993, p.15)

A fala de efeito sobre Vargem Grande estar agonizando na verdade parece um pouco

com dar uma relevância maior ao que acontece no Parque, inserir suas vivências no que ela

compreende como um contexto de decadência, e ao mesmo tempo está relacionando isso as

mudanças negativas causadas no bairro pela especulação imobiliária como a falta de água. Ela

se vê como parte desse projeto de integração comunal, afirma algumas vezes que seria

importante retomar as coisas como eram antes.

V. Considerações finais:

Minha intenção neste trabalho foi relacionar algumas proposições teóricas e

metodológicas que auxiliam na compreensão da história de vida de Maria Isabel. E, ao mesmo

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tempo possibilitam algumas reflexões sobre a própria História Oral. Me parece que o primordial

reconhecer que o relato com início, meio e fim não existe antes da entrevista, e provavelmente

se modificaria em outras circunstâncias.

Por exemplo, ter entrevistado Maria Isabel durante uma festa da comunidade

possivelmente interferiu no fio condutor de sua narrativa, fazendo com que ela conferisse

importância a comemorações que ocorriam anteriormente, e desse detalhes a respeito delas.

Quando questionada sobre família falou diretamente sobre a figura da sogra e os parentes

próximos a ela, sem tentar implicar em seu relato parentes de seu pai ou de sua mãe. A história

contada ao lado do fogão, é sobre a família do marido, embora ela também evite cautelosamente

falar dele.

Eu me senti num lugar meio ambíguo porque ela abriu a porta me recebeu gentilmente,

me ofereceu seus doces saborosos, falou de sua vida pregressa. Mas não contou nada sobre os

dois filhos, e nem sobre o casamento ou a separação, nem mesmo expressou qualquer juízo a

respeito do marido morar na casa que pertenceu a sogra na parte alta e ela ali embaixo com um

dos filhos, ou mesmo sobre o outro filho Sandro da Silva Santos ser uma das lideranças locais

da comunidade.

Havia uma linha bastante clara que ela podia romper ou esfumaçar a qualquer momento

com um gesto e não eu. Embora tenha tentado tornar a entrevista mais pessoal em certo

momento percebi claramente que ela não estava disposta a isso, não naquele dia pelo menos. E

isso não é uma crítica, e sim uma reflexão sobre os limites da aproximação em determinado

momento, e eticamente reconheço que a gentileza, os doces e mais tudo que ela desejou me

contar foi uma concessão generosa.

VI. Referências bibliográficas

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VII. Entrevista:

SANTOS, Maria Isabel da S. A culinária na Comunidade Cafundá Astrogilda [16 de agos.

2014] Entrevistador: autor. Rio de Janeiro: UERJ, 2014. Mp3. Entrevista concedida durante a

festa de certificação do Quilombo Cafundá Astrogilda.