etnoarqueologia da caÇa entre os wasusu … · tatu canastra priodontes maximus tatu galinha...

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1 ETNOARQUEOLOGIA DA CAÇA ENTRE OS WASUSU (NAMBIKWARA) 1 Rafael Lemos de Souza UFMS/MS Maria Aurora da Silva SESAI/GO O presente trabalho tem o propósito de apresentar dados de pesquisas etnoarqueológicas realizadas entre os Wasusu, povo Nambikwara que vive no vale do rio Guaporé. Os trabalhos foram realizados em janeiro de 2013 nas aldeias Central e Anunsu, localizadas entre os municípios de Nova Lacerda e Comodoro, no sudoeste do estado de Mato Grosso, Brasil. O objetivo dos estudos foi compreender a materialidade de relações sociais e os processos históricos ligados às escolhas e uso dos espaços ocupados pelo grupo para habitações, roças e áreas de caça. Para tanto, foram observadas duas caçadas feitas por homens adultos, durante as quais foram registradas e analisadas técnicas de caça, abatimento da presa, esquartejamento do animal caçado e o papel dos homens, mulheres e de crianças na divisão do animal abatido. Palavra chave: Etnologia; Caça; Wasusu. Introdução Os indígenas do grupo Wasusu são falantes da língua Nambiquara do Sul, e até os dias de hoje se encontra inserida no tronco Nambiquara, considerado um tronco linguístico isolado. Segundo Silva (2010) este grupo tem em seu nome o significado de povo da flauta, denominação dada por outros indígenas falantes desse mesmo idioma. Os Wasusu são divididos em várias aldeias segmentares. Cada aldeia pertence a um chefe de família, ou liderança com parentesco do homem mais idoso do grupo, sendo que os grupos agregam elementos de outras aldeias por conta das alianças formadas por casamentos. A área territorial deste grupo de acordo com Silva, está incluso na Terra Indígena (TI), Vale do Guaporé no sudoeste do Estado do Mato Grosso, com 242.593, hectares, e encontra-se demarcada e homologada desde 1985 pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Conforme a autora (2010) esta TI ficava anteriormente no município de Vila Bela da Santíssima Trindade, mas com a construção do novo traçado da BR 364, atualmente a BR 174 e o aproveitamento de seu antigo traçado, milhares de imigrantes oriundos de várias partes dos pais a formarem vários vilarejos e se consolidaram as 1 "Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN".

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1

ETNOARQUEOLOGIA DA CAÇA ENTRE OS WASUSU (NAMBIKWARA)1

Rafael Lemos de Souza

UFMS/MS

Maria Aurora da Silva

SESAI/GO

O presente trabalho tem o propósito de apresentar dados de pesquisas etnoarqueológicas

realizadas entre os Wasusu, povo Nambikwara que vive no vale do rio Guaporé. Os

trabalhos foram realizados em janeiro de 2013 nas aldeias Central e Anunsu, localizadas

entre os municípios de Nova Lacerda e Comodoro, no sudoeste do estado de Mato

Grosso, Brasil. O objetivo dos estudos foi compreender a materialidade de relações

sociais e os processos históricos ligados às escolhas e uso dos espaços ocupados pelo

grupo para habitações, roças e áreas de caça. Para tanto, foram observadas duas caçadas

feitas por homens adultos, durante as quais foram registradas e analisadas técnicas de

caça, abatimento da presa, esquartejamento do animal caçado e o papel dos homens,

mulheres e de crianças na divisão do animal abatido.

Palavra chave: Etnologia; Caça; Wasusu.

Introdução

Os indígenas do grupo Wasusu são falantes da língua Nambiquara do Sul, e até

os dias de hoje se encontra inserida no tronco Nambiquara, considerado um tronco

linguístico isolado. Segundo Silva (2010) este grupo tem em seu nome o significado de

povo da flauta, denominação dada por outros indígenas falantes desse mesmo idioma.

Os Wasusu são divididos em várias aldeias segmentares. Cada aldeia pertence a

um chefe de família, ou liderança com parentesco do homem mais idoso do grupo,

sendo que os grupos agregam elementos de outras aldeias por conta das alianças

formadas por casamentos. A área territorial deste grupo de acordo com Silva, está

incluso na Terra Indígena (TI), Vale do Guaporé no sudoeste do Estado do Mato Grosso,

com 242.593, hectares, e encontra-se demarcada e homologada desde 1985 pela

Fundação Nacional do Índio (FUNAI).

Conforme a autora (2010) esta TI ficava anteriormente no município de Vila

Bela da Santíssima Trindade, mas com a construção do novo traçado da BR 364,

atualmente a BR 174 e o aproveitamento de seu antigo traçado, milhares de imigrantes

oriundos de várias partes dos pais a formarem vários vilarejos e se consolidaram as 1 "Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN".

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margens destas rodovias se tornando futuramente cidades sendo elas: Nova Conquista,

Nova Lacerda e Comodoro na região da TI do vale do Guaporé e Nambikwara.

A caça segundo Melatti (2007), pode parecer para muitas pessoas da sociedade

nacional como uma diversão, entretanto para a maioria das sociedades indígenas ela é

de extrema importância, pois a maioria destes grupos tem na caça a busca para

alimentos rico em proteínas. Ainda seguindo o raciocínio do autor supracitado, "um de

nós pode ir caçar se quiser, se gostar, se tiver tempo para isso; mais o índio tem de

caçar, pois é o único meio de se obter carne" (2007, p: 95).

Cabe resaltar que os Wasusu assim como seus vizinhos na TI Vale do Guaporé,

são considerados Nambikwaras da florestas, justamente por morarem neste bioma se

adaptarem bem a ele. Essas diferenças adaptativas apresentam algumas diferenças no

que se refere à alimentação.

Setz (1983) em sua dissertação de mestrado intitulada Ecologia alimentar em um

grupo indígena: Comparação entre aldeias Nambiquara de floresta e de cerrado, informa

que no caso dos Juina, grupo do cerrado, apesar deles terem uma diversidade maior de

itens em sua dieta, utilizam áreas maiores e gastam mais tempo em suas atividades, pois

sua área tem menos abundancia em recursos alimentares que os Alantesu, grupo da

floresta.

Com relação à caça, a abundancia na floresta é maior, provavelmente pela

pobreza do solo do cerrado e a densidade das florestas do vale. Setz (1983), Price

(1981) e Silva (2010), discorrem que não há relatos de caça de longa duração entre os

Nambikwaras. Entretanto, Silva informa que esta é uma pratica diária na aldeia, salvo

quando se abate uma caça de grande porte que pode sustentar uma aldeia de 30 pessoas

por 3 dias. Como a maioria das aldeia do vale não possuem geladeira as carnes para

este caso são moqueadas.

Quando um grupo sai para caçar, Oberg (1953) discorre que entre os

Nambikwaras quando vão para capturar uma caça pequena o caçador costuma ir só, no

entanto, quando estão a busca de uma caça grande que pode sustentar a aldeia por

alguns dia como uma onça ou anta os indígenas saem em grupo constituído por

membros da família.

Os Nambiquara se orgulham de serem capazes de sobreviverem na mata com

uma cultura material mínima, no lugar de artefatos, eles usam o conhecimento (Price,

1981).

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Entendemos que a partir do contato mais intenso com órgãos governamentais e

atualmente com ajudas de programas assistências é possível ver que vários grupos

podem conseguir carne não apenas pela caça, mais por base de troca e compra,

entretanto no passado os grupo do vale tinha uma resistência muito grande em comer

carne de gado, algo que vem diminuindo gradativamente.

A caça pode-se dizer que entre os Wasusu é uma atividade masculina. Porem

algumas vezes as esposas dos caçadores pode acompanha-los em parte da caçada para

buscar o animal abatido e reparti-lo.

Atualmente uma das táticas dos Wasusu é a de caçarem nas reservas legais das

fazendas, pois a densidade dessas matas é menor do que a de suas florestas que são

muito densas. Nessas reservas fica mais fácil de visualizar os rastros e a própria presa

que será abatida, alem da facilidade de locomoção que suas áreas não proporcionam.

Acompanhei as caças com indígenas jovens adultos com idade aproximada de 35

anos, sendo que estes homens nasceram em uma época que os latifundiários estavam se

instalando na região. É importante salientar que antes de um contato intenso com a

sociedade envolvente as florestas fechadas ocupavam quase que totalmente seus

territórios devido a ausência de fazendas que foram se instalando com frequência maior

na década de 1970. Os tipo de equipamentos utilizados pelos indígenas para a pratica de

caça são variados e alguns são específicos para o tipo de caça que será feita.

Os Nambiquara se orgulham de serem capazes de sobreviverem na mata com

uma cultura material mínima, no lugar de artefatos, eles usam o conhecimento (Price,

1981).

Tabus

É proibido o abate de animais de estimação, esse só é feito por outros integrantes

do grupo. Durante as caças, pode ocorrer de encontrarem alguns filhotes de animais,

como no caso dos quatis: os quatis quando pequenos algumas vezes são adotados,

conforme vão crescendo e se tornando perigoso para as crianças, (mordidas) eles são

sacrificados, entretanto é vetada o consumo de sua carne, pois como era de estimação

ele fez parte da família que o adotou.

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Os indígenas também ressaltaram que se comerem animais de estimação as

crianças podem adoecem, entretanto outra família pode consumir este animal. Outro

tabu alimentar é referente às parturientes. As mulheres com recém-nascidos não podem

comer animais que sangram muito, pois isso pode trazer complicações no pós-parto.

Elas podem comer animais como: jabuti, aves e larvas de insetos.

Tabela: Animais mais caçados pelos grupos indígenas do vale do Guaporé

Nome Popular Nome Cientifico

Anta Tapirus terrestris

Cateto Tayassu tajacu

Queixada ou Porco do Mato Tayassu pecari

Quati Nasua nasua

Paca Agouti paca

Cotia Dasyprocta SP

Jabuti Geochelone denticulata

Macaco bugio Alouatta SP

Macaco barrigudo Lagothrix lagotricha

Macaco quatá ou Macaco aranha Ateles paniscus

Macaco Prego Sapajus

Tatu canastra Priodontes maximus

Tatu galinha Dasypus novemcinctus

Ema Rhea americana

Mutum Cracidae

Jacutinga Pipile jacutinga

Veado campeiro Ozotoceros bezoarticus

Veado mateiro Mazama americana

Tamanduá bandeira Myrmecophaga tridactyla

Tamanduá mirim Tamandua tetradactyla

Quando um chefe de família sai para buscar carne pra sua família, ele vai só. Sua

esposa lhe prepara bebida, chicha de milho, banana ou cará. Ele come o que tiver

disponível dentro de casa, alimentos preparados por sua esposa. Ele examina novamente

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o fio da faca, as pontas das flechas e as penas que dão equilíbrio as flechas. Levanta-se

do chão, onde estivera sentado, examina seus objetos de caça e sai. Em tempos antigos

eles saiam completamente nus porque qualquer vestimenta o atrapalharia a perseguir

sua presa.

Eles costumam sair com um pequeno alforje pendurado nas costas onde carrega

sua faca, fumo e folhas de mamoneira para o cigarro item importante na sua caçada.

Carrega também seu arco e suas flechas. O caçador leva o mínimo de coisas possível

para sua caçada, pois ele precisa estar com o corpo livre para se mover com agilidade, e

os braços livres de qualquer peso que possam atrapalhar o esticar o arco e disparar a

flecha.

Costumam ir caminhando sem presa, sabe que está indo caçar e precisa ter

cuidado, pois em uma caça, principalmente solitária, o caçador pode ser surpreendido

por uma cobra (Itisu) ou pelo Atasu2. Existe vários perigos na floresta um homem

sozinho precisa ter atenção redobrada. Um homem quando saí para caçar sozinho

precisa voltar para casa no mesmo dia, mesmo que seja tarde da noite.

Ao ver o rastro de um animal, como o jabuti, o índio caçador segue o rastro. O

jabuti é um animal lento, por isso logo ele o encontra com certa facilidade, por isso a

preferência por matas mais abertas, pois fica mais fácil de visualizar sua caça,

principalmente se o animal for baixo. O animal é pego e virado de costas para que não

fuja. O caçador enrola e acende um cigarro de folha de mamoneira do campo, da

algumas baforadas, puxa de novo a fumaça para o peito, e assopra a fumaça sobre o

casco do jabuti, perguntando onde estão as caças daquela região, o jabuti sabe, porque

ele é lento, e muitos animais passam perto dele.

Para o lado que a fumaça seguir é o lado onde estão os animais de maior porte

que passam fazendo muito barulho, como a anta, o veado os porcos, e a onça que tem

uma pisada leve, difícil de ouvir, por isso ela usa o fator surpresa para abater uma caça.

Então o caçador observa satisfeito o rumo que a fumaça segue. Ele arranca com sua faca

embiras de uma árvore, prepara um tipo de suporte de embiras, para transportar o jabuti

ainda vivo para casa, caso não encontre outro animal, o jantar vai estar garantido com o

saboroso fígado de jabuti.

2 Atasú (diabo), segundo Silva (2010), trata-se de um personagem mítico que sempre está à espreita

tentando enganá-los, com intuito de trazer morte e destruição para as aldeias, e transformar espíritos

insepultos em ynhaukitesu - espíritos, sombra ou fantasmas que podem vir a aldeia trazer doenças, ou

mesmo se apresentar ao caçador como homem, dando informações falsas, fazendo com que ele se perca

ou morra na floresta.

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Foto 1: Jabuti capturado com suporte de embira

Fonte: Rafael Lemos de Souza.

Durante uma etapa de campo em janeiro de 2013, Rafael participou de uma

caçada de jabutis com três indígenas adultos da Anunsu. Antes da caçada ainda na

aldeia, começaram os preparativos, todos, amolavam facas e preparavam seus alforjes

colocando fumo e as folhas de mamoneira enquanto suas esposas preparavam seus

mantimentos como água, meio pacote de açúcar e chicha. Nenhum deles levava arco e

flechas, pois eles tinham decidido um dia antes que iriam caçar jabuti, Entretanto um

deles foi com uma espingarda; pois acontecesse de cruzarem intencionalmente com

outro animal eles teriam como abater a presa.

Fui com esses indígenas até a entrada de uma fazenda que ficava

aproximadamente a 8 km da aldeia, no limite de seu território. Adentramos na fazenda e

partimos para reserva legal da propriedade. Perguntei para eles se não haveria

problemas por entrarmos em terra particular, mais eles falaram que o fazendeiro não se

importava.

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Ao entrarmos na mata andamos para fazer um reconhecimento do local. Os

indígenas se dispersaram, e eu fiquei acompanhando um deles na caçada. Após 10

minutos examinando a área escolhida o indígena pede que eu fique parado (acredito que

estava fazendo muito barulho com meu caminhado sem jeito na mata) e avança mata a

dentro, cerca de 5 minutos ele volta com um jabuti. Então o caçador coloca o jabuti

virado no chão, pega sua faca e retira um pedaço de embira da arvore e faz como

suporte (foto acima) para carregar e/ou manter o jabuti sobre seu controle.

Depois de ter pego o jabuti o caçador para um pouco para descansar, abre um

pote que contem açúcar e mistura com água para beber. Depois de uns 15 minutos,

levantamos e fomos procurar outro lugar para encontrar mais jabuti. Depois de

escolhida a área novamente o indígena pede para que eu espere e ele vai procurar sua

presa, ele volta depois de meia hora e não encontra nada. Ele sugere que procuremos

outro lugar para procurar o jabuti, andamos por mais um tempo até que ele elege o lugar

onde vai vistoriar com mais precisão. Novamente me é solicitado que espere no lugar

enquanto que procura por cada canto da área que ele elegeu. Depois de 30 minutos ele

aparece com outro jabuti e refazemos todo o processo anterior.

Por volta da 16 horas, encontramos com o caçador que estava com a espingarda,

ele capturou apenas um jabuti. Voltamos para a estrada e mais a frente encontramos o

terceiro caçador, ele estava com dois jabutis bem grandes. Essa caça garantiria comida

por um dia na aldeia, que possui em torno de 50 moradores. Ao chegar à aldeia, cada

um vai com seu jabuti para a casa, mais quando o processo de preparação da carne é

feito começa a distribuição. O primeiro pedaço o caçador da para líder familiar do grupo

sendo ele: pai ou sogro, isto foi o que aconteceu nesta aldeia, os dois indígenas que não

são naturais daquela aldeia, foram em seus respectivos sogros e lhes deram uma

generosa parte da caça. Entretanto esta liderança reparte o que recebeu entre seus outros

filhos, netos e aos seus próximos. Ninguém na aldeia fica sem carne, mesmo que não

tenha participado da caça.

Ninguém fica fora da distribuição da carne. Às vezes a família do caçador fica

com a menor parte. Alguém generoso que sabe repartir o que tem, detém maior prestígio

e poder junto ao grupo. A Caça é repartida da seguinte maneira, a sogra fica com a

maior parte da caça. Uma estratégia do caçador, caso ele fique sem carne seus filhos vão

ter onde comer, Depois o restante da caça é distribuído entre os cunhados que recebem

um bom pedaço, finalmente chega a vez dos parentes mais distantes, ou mesmo taxados

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de preguiçosos, que tem preguiça de sair em busca de caça. Esses ganham um pedaço

menor.

Caça coletiva

Esta caça que descreveremos, aconteceu um dia após a caçada dos jabutis. Era

uma manhã bem cedo, uma mulher chegou correndo na escola onde estávamos

hospedados, ela trazia a noticia de que havia tatu canastra (Priodontes maximus)

próximo à aldeia. Todos ficaram atentos porque este animal é uma iguaria escassa,

difícil de se encontrar e devido a isso começou uma grande movimentação na aldeia que

animou até mesmo o velho Assegu com a possibilidade de comer o animal. Saímos

todos da casa seguindo a mulher que nos guiava aos rastros do animal. Logo alguém

gritou avisando ter encontrado o buraco do tatu e nos dirigimos para lá onde havia dois

buracos que o tatu havia feito. Nem eu e Aurora até então havíamos presenciado uma

caça ao tatu canastra, nem imaginava que fosse necessário o envolvimento de tantas

pessoas.

Maria Aurora relatou-me que uma vez foi ao local onde um casal Nambikwara

arrancaram um tatu canastra da terra, mas eles, levaram dois dias para vencer a sua

presa. Neste caso a caça ao tatu que estávamos presenciando, continha muitas pessoas

para cavar. Os indígenas cavavam em um lugar, mas o tatu ao perceber a aproximação

mudava sua direção, aí começava tudo de novo. Ao todo foram cavados quatro buracos

para pegar o animal e abatê-lo.

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Foto 2: Abertura de buraco para caça do tatu

Foto: Rafael Lemos de Souza (2013)

Como o local era próximo da aldeia a movimentação era constante, uns vinham

olhavam e voltavam para a aldeia. Algumas mulheres vinham observar os homens

tentando pegar o animal e acabavam trazendo ferramentas, chicha e água. A água que

estava sendo consumida estava em um vasilhame que antes fora utilizado originalmente

como recipiente de agrotóxico. Falamos do perigo daquele recipiente, mas os indígenas

disseram que ele foi bem lavado com sabão e que havia ficado de molho por dois dias.

Também falaram que fazia um bom tempo que usavam estes galões e ninguém ficou

doente. Entretanto resolvi experimentar um pouco da água e na mesma hora senti um

gosto forte provavelmente do produto químico deste recipiente.

Com relação a cultura material utilizada para esta caça, foram utilizados:

enxadas e enxadões para limpar a área e iniciarem as escavações dos

buracos.

Pás para retirada da terra dos buracos.

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Facões para cortar pedaços de galhos das arvores.

Faca, que foi utilizada para ferir a presa e descarna-lo.

Corda para amarar a cauda do jabuti no buraco para puxa-lo.

Galões de água para beber.

Chicha para se manter alimentados e assim permanecem no local durante

todo o processo.

Facões com a ponta quebrada para abrir tuneis nas paredes dos buracos.

Cavadeiras para aprofundar os buracos.

Machado que foi utilizado principalmente para abater o tatu e para o

descarne inicial do animal citado.

Foto 3: Reutilização de vasilhame de agrotóxico

Foto: Rafael Lemos de Souza (2013)

Penso ser importante abordar sobre os agrotóxicos, pois alem destes recipientes

usados por eles, os indígenas do vale do Guaporé sofreram na década de 1970 e 1980

com o uso por parte dos fazendeiros do "agente laranja" Tordon 155 br da fabricante

Dow Chemical que os latifundiários jogaram em cima de suas aldeias e roças de avião

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alem de "presentearem" os indígenas com os recipientes destes produtos para o

armazenamento de água.

Sabemos que desde 2002 é proibido o descarte destes recipientes:

[...] a3 devolução das embalagens de agrotóxicos pelo produtor rural, passou a

ser obrigatória desde o dia 1º de junho de 2002, quando entrou em vigor a lei

federal nº 9.974, uma versão "aprimorada" da lei de Agrotóxicos de 1989,

que regulamenta o uso, a produção e fiscalização de produtos químicos. O

objetivo é diminuir o risco de contaminação ao meio ambiente e das pessoas

que têm contato com os produtos.

Ainda neste sitio eletrônico é apresentado as recomendações para o descarte de

tais embalagens:

A lei determina que o produtor tem o prazo de 1 ano, a partir da data de

compra do defensivo, para devolver a embalagem tríplice lavada para a

unidade de recebimento credenciada. Para tanto, o agricultor deve:

Guardar a nota fiscal de compra do defensivo e a receita agronômica;

Manter temporariamente as embalagens desconta minadas na propriedade. O

local deve ser coberto, ventilado, ao abrigo de chuva ou no próprio local onde

são guardadas as embalagens cheias.

Devolver as embalagens vazias na unidade de recebimento indicada pelo

revendedor.

Houve um revezamento nas escavações os buracos feito pelos índios era de

aproximadamente 1 metros de diâmetro e aproximadamente 1,40 de profundidade, nele

tinha que caber um jovem que se arrastava dentro do buraco tirando terra na tentativa de

pegar o rabo do tatu e puxar para feri-lo com uma faca para enfraquecer o animal.

Os jovens de 18 a 30 anos eram os que mais trabalhavam cavando novos buracos

no sentido de cercar o animal, vários assuntos eram tratados na língua, mais sempre

tentavam falar em português para que entende-se o que eles estavam falando. Até

Waioko segundo índio mais velho da aldeia ajudou a cavar o buraco, queria mostrar sua

força para os mais jovens e Assegu o ancião da aldeia, ficou por volta de 40 minutos

observando os índios mais jovens cobertos de terra cavando e procurando o animal, ele

trouxe um facão, e fumo na área, acredito que era sua colaboração na caça. Quando não

havia mulheres na área da caçada principalmente Aurora, os homens ficam mais a

vontade para conversar alguns assuntos comigo e dependendo da resposta que eu dava a

eles era gargalhada na certa. Eles queriam saber principalmente porque eu não era

casado, porque eu não tinha filhos etc.

3 3 http://www.gruposinagro.com.br/descarte-de-embalagens.php

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No início da abertura do terceiro buraco começou a sair alguns objetos como

restos de lanternas e algumas pequenas estruturas metálicas. Quis entender o porque

daquele material, ai um indígena me falou que aquela área onde estávamos caçando era

a antiga aldeia deles e que provavelmente estaríamos na área dos fundos de uma antiga

maloca, pois a 5 metros dali era uma antiga roça. Até então não tinha percebido que

naquela área as arvores eram menores e mais finas que as arvores do entorno e então

pude perceber que aquilo se tratava de um ecofato, pois se tratava de um espaço que já

tinha sido modificado pelo homem e estava se reestruturando.

Foto 4: Resto de cultura material (lanterna)

Foto: Rafael Lemos de Souza.

Neste meio tempo eles me contaram a trajetória da aldeia, pois em 1985 a

Fundação Nacional do Índio (FUNAI), ajudaram eles a se estabelecem naquela área,

que fazia parte do território dos Haihantesu4. Inicialmente eles foram deslocados para

área onde atualmente mora a liderança da aldeia, separada da grande aldeia

4 Informação sobre o que ocasionou a saída deles de seu território tradicional pode ser vista em Silva

(2010)

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aproximadamente 1 km. Está área em época de chuva alagava muito, principalmente na

entrada da aldeia.

Em menos de um eles transferiram para á área onde estávamos cavando os

buracos para pegar o animal. Pouco depois um chefe de posto da Funai, não queria

morar muito próximo aos indígenas então construiu sua casa á 150 metros daquele

ponto, entretanto o grupo resolveu se mudarem dali para mais próximo ao agente

indigenista.

Já estavam no quarto buraco, quando perceberam ter vencido o animal pelo

cansaço, um jovem adulto Hahaitesu que reside na Anunsu com os dois filhos, era o

mais esforçado, enfiou se no buraco com toda sua destreza, ficando só um pedaço de

suas pernas e pés de fora. ele com a voz abafada pediu uma faca que lhe foi entregue,

enfim ele conseguiu ferir o animal, assim ele foi puxando o bicho que resistia, parece

não lembro bem se uma corda foi entregue para amarrar e puxar.

O tatu era muito forte, e foi difícil de ser retirado do buraco, foi preciso três

homens dentro do buraco para começar a puxar a presa enquanto havia mais três

homens fora do buraco. O tatu foi retirado do buraco, os indígenas que mais trabalharam

estavam visivelmente cansados, ficou um bom saldo de buracos no solo da aldeia

antiga. o tatu morto foi colocado nas costas de um jovem que levou o animal para o

pátio da aldeia, era umas 3 da tarde, ali sob um balaio de meio porte e depois de

esquartejado suas partes foram colocadas sob folhas de bananeira e o animal foi

distribuído. Sua carne durou apenas um dia, pois esta aldeia comporta por volta de 50

moradores.

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Foto 5: Tatu canastra pronto para ser esquartejado.

Foto: Rafael Lemos de Souza.

Referencias Bibliográficas

MELATTI, Julio César. (2007) Índios do Brasil. São Paulo: Edusp.

OBERG, Kalervo. (1953) Indians tribes of Mato Grosso, Brazil. Whashington, DC:

Institute of Social Anthropology, Publ. 15.

PRICE, Paul David. (1981) What lands should be reserved? Cult. Surv. Occ. Paper,

6:59-63.

SETZ, Eleonore Zulnara Freire. (1983). Ecologia alimentar em um grupo indígena:

comparação entre aldeias Nambikwara de Floresta e de Cerrado. Dissertação (Mestrado

em Biologia). UNESP, Campinas.

SILVA, Maria Aurora da. (2010) O povo da flauta: Etnografia do povo Wasusu (MT)

Através de um olhar indigenista (1976-2010). Monografia (Graduação em

Antropologia). Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO).