Ética - o indivíduo abraão

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O indivíduo Abraão: Nos limites entre a ética e a fé Por, Igor Lago Caribé Resumo Partindo-se do livro Temor e Tremor (1847) do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard (1813-1855), cuja autoria do livro é assinada por seu pseudonímo Johhanes de Silentio - personagem com características psicológicas próprias que devem ser lavadas em consideração permanentemente na leitura do livro, que é narrativo em primeira pessoa -, o objetivo a ser comprido aqui será a compreensão do que é o indíviduo para o autor, única instância por quem a fé é efetivamente possível, tal que o próprio Kierkegaard traça severas críticas à Igreja Estatal Dinamarquesa de seu tempo, em diversas ocasiões ao longo da história de seu pensamento, como distanciada do verdadeiro cristianismo, causa pela qual Kierkegaard muito trabalhou em esclarecer. A fé, que para Johhanes é a concretização do indíviduo no encontro de si em Deus, e seu posterior regresso à finitude terrena, aparece portanto como um absurdo, um paradoxo incompreensível e por isto de fé, que sobrepujaria portanto até mesmo a ética e seus valores universais. 1.

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Ensaio realizado para a disciplina Ética, do departamento de Filosofia. Trata sobre a leitura Kierkegaardiana do acontecimento bíblico retratado em Gênesis 22, quando Abraão foi posto a prova por Deus, que lhe ordenou que leva-se seu filho Isaac em holocausto para provar sua fé. Abraão, um individuo, passa por momentos de aflição e angústia, mas vai até o fim, quando então há a providência divína...

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O indivíduo Abraão:

Nos limites entre a ética e a fé

Por, Igor Lago Caribé

Resumo

Partindo-se do livro Temor e Tremor (1847) do filósofo dinamarquês Søren

Kierkegaard (1813-1855), cuja autoria do livro é assinada por seu pseudonímo Johhanes

de Silentio - personagem com características psicológicas próprias que devem ser

lavadas em consideração permanentemente na leitura do livro, que é narrativo em

primeira pessoa -, o objetivo a ser comprido aqui será a compreensão do que é o

indíviduo para o autor, única instância por quem a fé é efetivamente possível, tal que o

próprio Kierkegaard traça severas críticas à Igreja Estatal Dinamarquesa de seu tempo,

em diversas ocasiões ao longo da história de seu pensamento, como distanciada do

verdadeiro cristianismo, causa pela qual Kierkegaard muito trabalhou em esclarecer. A

fé, que para Johhanes é a concretização do indíviduo no encontro de si em Deus, e seu

posterior regresso à finitude terrena, aparece portanto como um absurdo, um paradoxo

incompreensível e por isto de fé, que sobrepujaria portanto até mesmo a ética e seus

valores universais.

1.

A história de que Johannes de Silentio faz uso para ilustrar seu pensamento a

cerca do que é a fé, e quais suas possibilidades, é a história de Abraão (Gênesis 22).

Comecemos por descrevê-la. Abraão tinha uma relação direta com a divindade, pode-se

dizer que com Deus conversava em linguagem “privada”. Ele tinha como mulher Sara,

com a qual fizessem o que fosse, nunca conseguia prover herdeiro à Abraão. Deus tinha

em Abraão o símbolo da fé, onde se essa fosse possível, se amar a Deus fosse possível

acima de tudo, seria Abraão quem iria, por testemunho, demonstrar. Era seu destino ser

para sempre e além de sua existência considerado daquela forma o pai da fé. Seria,

como nos diz Johhanes, um cavaleiro da fé! Assim, Abraão e Sara passaram a vida em

testemunho de Deus. Muito a eles foi prometido, como fruto de suas crenças, por

exemplo gerações inteiras como descendência, além de riquezas em vida na terra.

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Entretanto, tais promessas nunca se realizavam, mas não por isso deixavam,

principalmente como nos ressalta a história, Abraão, de ter fé sequer por um instante. O

que mais queriam era um filho, e talvez o maior milagre seja justamente esse, a

conservação da mocidade de quem quer ser pai, e mãe, já em adiantada idade. Somente

a paixão mantêm jovem uma alma. Acontece um dia que Sara engravida, e nasce o

pequeno Isaac. Era o milagre. Deve ser ressaltado que esse dia Sara já tardava seus

setenta anos, mas de almas jovens conservadas pela fé, amariam-o como fossem recém

namorados. Filho feito, cultivaram uma vida na terrinha que lhes havia sido concedida

por Deus e, em família, nada parecia mais agradável e gratificante.

Mas se a desgraça (para nós sem fé) da espera pela vida toda já nos atormenta,

tal tornar-se-ia maior. O filho de que tanto amavam era requisitado em holocausto por

Deus à Abraão; um sacrifício, como prova da fé deste homem. Ô indivíduo desgraçado,

esse tipo de pacto mais parece demoníaco! Deveria pois levar Isaac às terras de Morijá,

onde lá, Deus indicaria um monte, em que no seu topo, após construir um púlpito,

sacaria uma faca e assassínaria o próprio sucessor consanguínio, para então queimá-lo

em holocausto. Acontece que Abraão jamais duvidou de Deus e, sem hesitar, acorda

cedo pela manhã seguinte à ordem divína, sela seu jumento e levando Isaac consigo,

além de dois serventes, percorre olhos no chão por três dias o caminho até o monte,

tendo levantado-os apenas ao fim do terceiro dia, quando enfim avistou de longe a

chegada dos montes malditos. Porém, sem dizer palavra, mantinha segredo sobre o fim

secreto à espera do rapaz consigo, e somente veio a falar alguma coisa quando Isaac lhe

perguntára onde estaria o ovídeo para o sacrifício que fariam, já que com eles tinham a

lenha e o fogo, mas não o que queimar, no qual Abraão responderia, sem dizer com isso

nada, como que numa irônia socráctica, que “Deus trataria de providenciar”. Pobre

menino, para ter um pai abençoado, era ele quem pagaria a cabra (pra não dizer o pato).

Abraão, em verdade, nada sabia sobre providência nenhuma, em verdade, levava apenas

o saber da responsabilidade da morte do filho pelas mãos de seu próprio pai. Que aflição

e angústia não sofreu esse homem! Ou será que talvez desimporta-se, tal que mais vale

seu amor à Deus, e a consequênte loucura na terra, do que, até mesmo, seu filho amado.

Mas Abraão nunca duvidou de Deus, embora também nunca tenha tido porque acreditar.

Afinal, setenta anos tiveram de passar, para enfim conhecer um pouco do que se

chamava alegria, e desta não colheria mais nada além das lágrimas pelas lembranças.

Colheria, talvez também, a alegria por estar junto ao Senhor, pois como disse Johhanes,

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de todos os homens que foram grandes, nenhum é mais que aquele que amou a Deus.

Entre heróis e poetas, aquém de seus feitos líricos e virtuosos, não houve nenhum que

pudesse ser da grandeza de Abraão. Ele o sabia, e por isso, Abraão nunca duvidou de

Deus, tinha fé absoluta no absoluto, carregava seu espírito com fé na existência, nessa a

que vivia, e sabia que cedo ou tarde vingariam-se os votos prometidos. Abandonou-se

com fé nessa existência no manto celestial, bom e misericordioso, mas também esperava

o retorno para essa existência. O salto para a fé era o passo a passo de Abraão. Vivia o

salto. Aquilo, era apenas uma prova, uma tentação, da qual tinha que comprir sem

hesitar, apenas mais um passo, o qual deveria fortemente pretender realizá-lo, ainda que

não se comprisse como predestinado, por qualquer razão divina que fosse. Tinha fé no

Absurdo. Acompanhavam-os no caminho, como dito, dois de seus serventes, com os

quais Abraão também não trocou palavras, exceto à hora de deixá-los à base do morro,

informando-os que de lá em diante subiria com seu filho, para logo retornarem. Como

dizer tal coisa, que logo retornariam, sem acreditar piamente no abusrudo! Sabia que

subia o monte como um assassino, então, estaria a mentir? Não, apenas tinha fé no

abrsurdo. É preciso dizer que sequer Sara sabia do destino de seu bem amado

desmamado. Abraão silenciou-se, não para salvar alguém, como o prescreveria uma

atitude estética, mas para salvar sua própria relação com Deus, da qual não tinha

palavras para explicar-se. Se tão pouco foi esteta, menos o foi ético, tal que a ética

prescrever-lhe-ia manifestar-se sempre, tendo como acalento a própria ética e seus

princípios universais, pois somente é ético aquele que fala sempre, que não se oculta,

aquele que se manifesta. Abraão guarda a fé com o silêncio, e somente isso trouxe a fé

como possibilidade para o indíviduo moderno, tal que foi seu silêncio que o tornou o pai

da fé. Abraão tornou-se referência do que é ser um homem de fé, pois viveu o absurdo

de frente, não para mostrar a ninguém, não para ser visto como um herói, mas poruqe a

ele foi destinado tal infortúnio, que carregava sem lástimas. Abraão nunca praguejou,

nunca esperou que Deus mudasse de idéia, de súbito que fosse, ou pelos pedidos que

poderia ter feito para que o todo poderoso poupasse-os de tal caminho. Nunca Abraão

desejou uma bifurcação adiante, manteve reto como deve um coodeiro em seu rebanho.

Como poderia um homem hoje guardar silêncio a respeito do absurdo? Se tiver fé. O

silêncio de Abraão pode ser contemplado, quiça compreendido, se olharmos-o como um

paradoxo, mas jamais será igualado. É por isso que a fé é esse paradoxo, do qual o

homem moderno não atinje além do primeiro estágio, o da resignação, pois permanece

valorando supramente a ética e a sociedade. Bem, ao chegar no monte, prontamente

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edificou um altar para o sacrifício, construido com as toras de madeira que levára

cortadas em seu jumento. Amarrou seu filho, sacou a faca e, quando Isaac já tremia...

veio um anjo enviado por Deus para intervir. Falou-lhe que sua fé já estava provada, tal

que esteve a um ato de encerrar a cena. É a chamada providência divína. Abraão pode

mesmo ver-se o inquisitor ordenado por Deus, já projetava o que dizer a Sara, quando

enfim surgia um carneiro, como oferenda válida, e tendo-o sacrificado, desceram de

volta para casa, tendo Isaac presenciado tudo, e tendo Abraão morrido em sua angústia.

Aquele que vê a própria morte deixa de ser humano, e Abraão morreu de angústia.

Nunca mais palavra seria dita sobre o ocorrido, apesar que nunca mais palavras

deixaram de ocorrer. Mentes corroidas pela fé de Abraão. O que dizer sobre tal

absurdo? Que nele reina o paradoxo da fé!

2.

Abraão era antes de tudo, como todos, um homem. Que ele era um homem de fé,

parece não haver dúvidas, mas o que é isso a que se chama fé? Johhanes de Silentio nos

ajuda a compreender tal inclaustro a partir de sua primeira e fundamental característica,

ser individual. A fé é portanto uma relação direta para com Deus, sem que no entanto,

hajam razões em sentido lato para tal. Essa relação direta é o que chamamos de

indivíduo pleno, aquele que encontra a totalidade no instante eterno do tempo, e que

nela se deleita retornando à sua finitude, mas agora enquanto homem de fé. Em síntese,

a fé é uma paixão, na qual se entrega à verdade eterna do instante. Para o autor, o

indivíduo, ser psíquico, imediato e sensível, é aquele para o qual a fé é possível, não

como abnegação de si, mas como encontro a si mesmo com Deus. Está em erro quem

compreende que é preciso esquecer de si para se ter fé, tal que os movimentos para tal

são outros, a saber, a resignação infinita, ou desapego à realidade finita beneficiando o

infinito, e o posterior retorno ao finito, onde esse retorno ao finito é justamente a

religiosidade (entendida como B). A individualidade é assim entendida como o oculto

que deve ser manifestado, que em seus vários estágios possíveis, encerra a existência de

cada pessoa em uma fase própria, seja ela a estética, a ética ou a religiosa. Em verdade,

Johannes não explana muito sobre tais estágios em Temor e Tremor, mas podemos

sobre tais disocorer, para melhor compreendermos o estágio existêncial em que se

encontrava Abraão.

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O indivíduo estético vive em prol dos prazeres sensíveis, da aparência em sua

imediatez. Abraão portanto poderia parecer-nos um esteta, tal que conservou o silêncio,

permanecendo assim oculto em seus temores. Mas não haviam prazeres sensíveis, pois

se houvessem, seu não dizer deveria trazer um bem àqueles que ama, ou mesmo que

fosse a si, mas nem um nem outro concretizar-se-ia nesse silêncio. Ele calou, pois era o

único homem da terra em relação com Deus. Não havia à época, como hoje e nos

tempos de Johhanes, uma igreja estatal ou um sacerdote a quem buscar apoio em seus

afazeres sagrados. Se houvesse uma igreja, poderia declarar que fazia em nome da

instituição. Haveria respaldo social, pois todos que pertencem a tal coligação acreditam

serem homens de fé e, portanto, o compreenderiam, agiria pela fé compartilhada por

todos. Mas sequer bíblia havia, nenhum texto a que se reportar, nada! Se Abraão, o

signo da fé, para obter suas riquezas em terra e seus filhos no mundo, deveria manter-se

fiel a Deus, então quando recebeu a ordem de comprir a provação, havia de fazê-lo em

silêncio, e isso por diversas razões. A começar, Abraão não podia ter dúvidas de sua fé,

ao mesmo tempo que não tinha razões externas que levasse-o a ter certezas. É

justamente por não ter certeza que agia por fé, caso contrário, estaria em posse da razão.

A fé não tem justificativas, e por isso mesmo é a mais difícil das provações. Abraão já

era um homem de fé, já vivia em provação. Já quando Deus disse-lhe para abandonar

sua terra natal, onde tinha vínculos etc., Abraão não hesitou, e partiu deixando o

entendimento, levando consigo sua fé, sempre acima de tudo. Quando Deus ordenou

que levasse seu filho, o único, aquele a quem amava, para queimá-lo no monte, estava

testando sua fé, tal que a todo momento pode um homem recair em tentações adversas,

a todo momento pode-se perder a fé. A todo momento, Abraão poderia ter repensado

suas escolhas, e dessa forma voltado atrás; cada passo era mais uma chance de redimir-

se na esfera ética. E se fosse isso o que esperava Deus da parte dele? Mas se assim o

fizesse, ou qualquer ato que incorresse em dúvidas de sua parte, estaria em crise

religiosa, e não seria mais Abraão. Abraão sendo capaz de oferecer o sangue de seu

sangue, era definitivamente fiel a Deus. Mas quem poderia entendê-lo? Ningém na terra

tinha as mesmas experiências que ele, era o escolhido de Deus, e como tal era o único, e

sendo assim, suas palavras seriam incompreensíveis e demasiado absurdas a quem quer

que as pudesse ouvir. Não haviam mediações entre ele e Deus, sua ligação era direta.

Recebeu a graça, pois era de alma demasiado elevada, tinha a sabedoria do futuro e a fé

no destino. Como poder explicar que subiria ao monte para oferecer de suas mãos

aquele que Sara e ele tanto esperaram? Se por um lado poderia estar blasfemando a

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vontade divina, muito pelo contrário, acatou-a como necessária. Bem em verdade, era

mesmo, pois se não o fizesse, se renuncia-se aos planos por Deus traçados, não seria

mais Abraão, o pai da fé. Era como se Deus zombasse da cara deles, fazendo-os esperar

tanto para tão rapidamente esvaziar-lhes tudo que tinham. Ainda assim creu e creu nessa

existência. Agiu em virtude do absurdo, entenda-se, pela força deste!

Johannes, alterando a história um pocuo, como de costume, a fim de explicitar

melhor as hipóteses, a fim de compreender a verdadeira derradeira, propõe uma saída a

Abraão. Poderia, por exemplo, ao chegar no monte, virár a Deus e gritar “Perceba o que

faço, e garanta que Isaac não se recorde de meu feito!”, para em seguida, ao invés de

sequer cogitar o sacrifício do jovem mancebo, apunhalar-se como prova de seu valor

ético, como prova de ser um bom pai, e de que nunca desdenharia da graça divína que

propiciou tal feito. A humanidade poderia lembrar-se de Abraão como o símbolo da

paternindade, de quem sabe o valor de genes jovens face aos de um homem senil como

si. Teria sido um ético, mas e Isaac? Talvez nunca mais tivesse fé. Teria em Deus o

símbolo do Diabo, e fugiria dele como o oposto da cruz. Mas não era essa a meta de

Abraão, pois não era essa e meta de Deus, tal que Deus é amor. Assim, estava

compenetrado em trabalhar para aquele que lhe trouxe à vida, tal como deve fazer um

homem de fé. Isaac, por sua vez, talvez não se interessa-se em ser o ovídeo. A ética não

pede que um filho dê-se pelo genitor, mas sim o contrário. E ele não tinha ainda a fé,

necessária para compreender o ato do pai, portanto, sua melhor conduta era a ética.

Para compreender a fé de Abraão, é preciso justificar uma suspenção teleológica

da moralidade. Caso contrário, Abraão quis matar seu filho, e não sacrificá-lo. Todo

indivíduo que tenha na moralidade um estado superior, a se inclinar como servidor,

sendo assim um indivíduo ético, não compreenderia o desejo de Abraão, tal que foi

movido por amor a si mesmo e amor a Deus. Sua relação era direta, não sustentavase

em nenhuma instituição religiosa ou coisas do tipo, e isso ultrapassava o dever para com

o geral. Não foi preciso mediação entre Abraão e Deus, e a ética, se entendida como a

divindade, requer que faça-se uma escala na moralidade para atingir a Deus. O

indíviduo que age moralmente, entregando-se ao geral (os valores sociais),

compreendendo que o geral é a própria divindade, jamais entenderia que a divindade

está acima da moralidade, mas de tal forma, que não a recusa, apenas a torna

indiferente, no sentido do valor do ato de Abraão. A moral está no geral, e de certa

forma, todo individuo deveria entregar-se ao geral, manifestar-se éticamente, sendo que

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em veradade, o ético segue preceitos universais, e ai daquele que lutar contra a ética,

pois possui respostas primeiras! Mas as respostas ulteriores são dadas pela fé. As

respostas verdadeiras, não elocubrativas como as do filósofo, mas a verdade divina e

única. A Filosofia é, aliás, vista por Johannes como tal elocubração, e por tanto, este não

considera-se um filósofo. Não quer ser um pensador de sistemas totalizantes, como o do

tão criticado ao longo do livro Temor eTremor, Hegel. A verdade tão pouco está na

ética, tal que seus princípios identificam-se com suas respostas, como por exemplo, o de

que todo pai deve amar a seu filho acima de tudo. Como poderia Abraão ser um ético,

se firmemente subiu o morijá com finalidades aniquilatórias! Entretanto, Abraão não

deixou jamais de amar Isaac, tinha nele tudo que importava, e ainda assim entregou-se à

vontade contraditória. Era portanto, em alguma medida, ainda um homem ético. Mas

pode a ética ser sobrepujada por algo? pois se não, Abraão e sua contuda terão sido

desprovidas de sentido: sua personalidade, suas escolhas e seu silêncio.

Mas não era a ética que estava em jogo naquela cena, e sim a fé. A existência

estava em outro patamar, o religioso. Creu no absurdo nesta existência, deixando de

lado tanto estética quanto ética, pois acima de tudo deve vir a fé, que elevou sua

existência acima de qualquer dúvida. Fez, pois assim era para ser, tal que não era ele

qualquer homem, a quem cabe o julgo de livremente escolher, a quem as

responsabilidades tornam a vida interessante ou não. Haviam determinações outras,

imperativas, tratava-se do escolhido do dedo de Deus. Não era como Sócrates, que de

todos, de acordo com Johannes, foi o que teve a vida mais interessante. Abraão era o

símbolo de uma existência transcendente. Se conversasse-mos a respeito do mundo

exterior, a terra em que pisamos, onde reina a imperfeição, onde aquele que pouco

trabalha ganha além dos limites da imaginação de um esforçado e compenetrado

obreiro, então talvez Abraão pudesse ter dito para Deus aquela frase que nos propõe

Johannes, poupando-se da missão e agindo livremente em direção à sua vontade, e

assim, a aparência de justiça imperaria em sua mente. Entretanto, no mundo do espírito,

a lei maior é a justiça e ordem eterna, aquela em que se Deus lhe tenta, devés responder

à altura da ordem, pois setenta anos foram pouco para testar o homem; deveria perder

Isaac recém ganhado, para então recebê-lo de novo. Precisava dar para receber. Isaac

ressurgira à Abraão como prova de sua fé. Se a fé de Abraão não santifica seu ato, esse

torna-se um assassino. Pela fé, faria um sacrifício, e não um assassinato, como o seria

pela interpretação ética. Mas para fazer tal martírio, deveria enclausurar-se nele, em

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silêncio. Deveria padecer da angústia, como prova da fé. Atenta-se, não se trata de

irracionalismo, tal que a fé não é um oposto da razão, mas sim outra esfera existencial.

Ela inicia onde a razão termina. Mantem-se a consciência da impossibilidade de que

Deus volte a trás, mas ainda assim crê no amor divino. Selava o jumento, já acreditando

que retornaria com Isaac, mesmo sabendo ser tal crença um absurdo. É importante que

entendamos que o absurdo é Deus voltar a trás, e não a crença. A crença é crível, por ser

de um homem de fé. Esse é o paradoxo que torna o indivíduo Abraão é um cavaleiro da

fé, e não um herói trágico.

Um cavaleiro da fé está permanentemente integrado ao finito na infinitude. Vive

esta existência, mas como infinitude dentro de si. É a renúncia à autonomia do

individuo, frente à heteronomia divina. O mais interessante é que nada que se veja nele

pode induzir a crença de ser tal como é, pois aparenta uma firme monada finita, mas em

verdade, seu interior é a pura luz do infinito, que por nenhuma brecha escapa deste

homem. Sua existência é para o finito, mas sempre imersa na infinitude da resignação,

que é temporalmente um instante eterno. Por si só, a resignação infinita não tráz a fé,

mas é o que a permite. Deve ser entendida como um movimento, rumo à fé, mas que em

si mesmo não garante nada além disso, e que portanto, pode parar antes dela. Da mesma

forma, a fé é um segundo movimento, sendo que tal passagem de um para o outro é o

que constitui o salto existêncial. Ser um homem amante a Deus, não é o mesmo de ter fé

em Deus. Pode-se amar a Deus sem ter fé, pois para tê-la, é preciso muito, é preciso

temer a Deus sem tremer diante dele, pois nele é preciso ter confiança. A dialética da fé

é seu aburdo, uma dialética qualitativa, da impossibilidade como pólo determinante.

Pode-se passar a vida inteira amando a Deus sem nele ter fé, no sentido de entender que

só a fé fez com que Abraão intencioná-se sacrificar Isaac. O cavaleiro da fé, como o foi

Abraão, é aquele que realiza o salto para a existência religiosa. Mas não pense que é

assim tão simples. Este tem de ser natural. Toda sua ação é em função do absurdo.

Johannes mesmo considera-se anterior à fé, repetindo diversas vezes ser um homem

sem coragem suficiente para isso. Considera-se, no máximo, um herói trágico. A

coragem deve ser entendida como a entrega de si à uma vida em que o paradoxo do

absurdo seja aceito e inteiramente vivido, de forma a não duvidar jamais, tal que

incorreria em crise, tendo de retomar o movimento perdido; é a renúncia à tudo, e com

isso esquecimento ou abandono da razão. Filiação com o próprio Deus, de forma a não

deixar de saber ser impossível o que se espera, mas por outro lado, ter de forma

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imânente ciência da onipotência de Deus. É ter com Deus uma lingua comum. Poucos a

tem, em gêral, o homem não dialóga com Deus, são de linguas distintas. Não há provas

de Deus. Exceto ao cavaleiro da fé, ele sim tem provas, mas carrega-as consigo em

silêncio aboluto. Diferente dos homens comuns, Abraão com Deus tinha amizade.

Mesmo sabendo ser impossível que ele Abraão retornasse do monte com Isaac,

permanecia crente nessa possibilidade. É na possibilidade que tudo está em jogo. É na

crença de que Deus não lhe exigiria Isaac, que quando absurdo corroborado,

reencontraria Abraão alegira enternecida. O Absurdo era acreditar que Deus desdaria

sua vontade. Não há cálculo racional que o acreditasse, por isso é absurdo tal crença. A

razão só alcansa até certo limite, e para além deste, está o paradoxo. Iludi-se aquele que

espera dela todas as resoluções, e em contraposição, a melhor desfruta quem do

compreende tais entraves. Pois o cavaleiro da fé vive assim. Mesmo que o amor de

Abraão por Isaac, que é frisado por nosso autor como o mais alto e aprazivel amor já

ouvido falar pelo homem, de forma que tanto amor assustaria os que sobre ele

ouvissem, tal que não entenderiam que Abraão só foi capaz de intencionar-se a

sacrificar Isaac devido o amar acima de tudo, tal amor reside nos entraves da razão. Só

de ouvirem e tiverem de pensar em sacrificar seus filhos, homens comuns tremeriam

diante da ordem divina, e prefeririam uma conduta ética, desviante da fé, dever maior e

sagrado, mas facilmente abandonado. Se Deus lhe quizesse mesmo tirar Isaac, Abraão

ainda assim creria no amor de Deus, e no absurdo de que pudesse ainda assim reinterar-

se de seu primogenito. Deus poderia reviver o menino morto, se assim o quizesse. Pois

pela fé se alcansa a existência nesse mundo.

Tudo que seja desejado para além da consciência eterna, fruto da resignação

infinita, só é possível tendo-se fé. Ela portanto é o que me trará tudo quanto for finito

pelo olhar do absurdo. É por esses motivos pincelados que ser de fé constitui paradoxo.

Pela fé, a coisa alguma renuncio, ao contrário, tudo recebo. A princesa com a espada

sobre a cabeça não me apavorará, tal que tenho fé no absurdo a todo instante, pois sou

um cavaleiro da fé. Esse é nosso herói superior ao herói trágico! Pensar que tem tanta fé

para ser feliz com ela, para nunca desprender-se do fio em ligação com Deus, e nessa

corda bambíssima com uma princesa poder passear, sempre com uma espada sobre sua

cabeça. Se perco a fé, a espada corta-lhe, mas não há espaço para tal em meus instantes.

A fé é esse movimento ao absurdo. Não pode perder-se do mundo finito, ao contrário,

deve ganhá-lo sempre. Se a resignação infinita tirou-me tudo, agora que tenho fé tudo

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receberei. Já sofri as provações, já sacrifiquei a mim, Isaac e o ovídeo, devo agora ter

paz e riquezas, sabedoria divina e nações ao meu mandar. Irrompe em Abraão um novo

mundo após tudo ocorrido, e tudo graças a sua fé. Mas que custas não!

Bibliografia

Livros:

KIERKEGAARD, Sören. Temor e Tremor. Tradução Torrieri Guimarães. São

Paulo:Editora Hemus, 2008.

GOUVÊA, Ricardo Quadros. Paixão pelo Paradoxo; uma introdução à

Kierkegaard. São Paulo: Novo Século, 2000.

Artigo

PAULA, Marcio Gimenes de. O Silêncio de Abraão: os desafios para a ética;

Em Temor e Tremor de Kierkegaard. 2008