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tica para os futuros mdicos

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Nedy Cerqueira Neves

tica para os futuros mdicos. possvel ensinar?

2006

tica para os futuros mdicos

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Conselho Federal de Medicina SGAS 915 Lote 72 - CEP 70390-150 - Braslia DF Telefone (61) 3445-5900 Fax (61) 3346-0231 Homepage: www.portalmedico.org.br Email: [email protected] Equipe Tcnica: Simone Ribeiro (1539 DRT-BA) Patrcia lvares (DF 03240 JP) Impresso, diagramao e reviso de texto: Estao Grfica Ltda.

2006 - Conselho Federal de MedicinaTiragem de 2000 exemplares Catalogao na fonte: Eliane Maria de Medeiros e Silva CRB 1 regio/1678

Neves, Nedy Cerqueira. tica para os futuros mdicos: possvel ensinar? / Nedy Cerqueira Neves. Braslia : Conselho Federal de Medicina, 2006. 104 p. ; 21 x 15cm.

I. Ttulo. 1. tica mdica. 2.tica mdica ensino. 3.Biotica. 4.Cdigos de tica mdica. 5. Ensino mdico. CDD 174.2

A todos os colegas mdicos que alm do comportamento tico na arte de curar, descobriram tambm o significado da arte de ensinar.tica para os futuros mdicos

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ApresentaoHistoricamente a tica Mdica sempre foi ensinada aos alunos das escolas de Medicina e aos mdicos jovens atravs do exemplo dos verdadeiros Mestres, na maneira com que se aproximavam dos pacientes, com que os abordavam e os examinavam, seja nas visitas s enfermarias ou nas consultas ambulatoriais. Na verdade, o ensino da tica Mdica como disciplina formal curricular nas escolas mdicas muito recente, havendo necessidade de buscar-se a melhor metodologia pedaggica para a obteno do melhor resultado ensino-aprendizagem. O livro da professora Nedy Cerqueira Neves, oriundo de sua dissertao de Mestrado perante a UFBA, preenche claramente esta lacuna, apontando os caminhos para a formao de mdicos no s com elevada competncia tcnica, mas tambm, com conscincia crtica e reflexiva sobre sua responsabilidade social, alm da necessria sensibilidade ao sofrimento humano, suas paixes e suas mazelas fsicas, metafricas ou no. Como conselheira do Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia, a autora pode perceber a frustrao do educador mdico na constatao de inmeras denncias contra mdicos, de todas as idades, tendo como pano de fundo a precria relao mdico-paciente, a insensibilidade aos dramas humanos e a mercantilizao da Medicina. Com exemplar disciplina e aplicao de metodologia cientfica adequada extraiu de sua pesquisa os elementos necessrios para uma proposio de um ensino mdico fundamentado e rico em cultura humanstica, absolutamente essencial na formao de um novo mdico para um novo mundo. O Conselho Federal de Medicina congratula-se com a professora Nedy pelo trabalho em prol de uma Medicina melhor e mais humana. Edson de Oliveira Andrade Presidente do Conselho Federal de Medicina

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PrefcioA leitura do livro de Nedy Cerqueira Neves, tica Para os Futuros Mdicos: Possvel Ensinar?, permite-nos conhecer a histria do ensino da disciplina tica Mdica (EM) nas escolas de medicina brasileiras e de vrios pases do Ocidente. Mais ainda: pelo fato de ter aplicado pesquisa a professores e estudantes da graduao do curso mdico, buscando elementos e crticas, a autora pde formular mudanas para o ensino da EM na formao dos mdicos brasileiros, com o objetivo de, usando suas prprias palavras, formar mdicos no s competentes tecnicamente, mas tambm sensveis e solidrios. A publicao nos surpreende ao denunciar que, apesar de a EM ter 2.500 anos de histria, s h 30 anos est includa no currculo da graduao mdica de maneira formal. Pior, revela que 14,6% das escolas mdicas no Brasil ainda no tem docentes de EM. Este descaso parece no ser privilgio do Brasil, j que nos informa que a World Medical Association precisou recomendar, em resoluo, a incluso do ensino de EM no currculo das escolas mdicas de todo mundo. O livro tambm nos d informaes para que possamos pensar e melhor entender a crise de identidade pela qual passa a medicina cientfica ocidental e quais as sadas possveis. Ressaltaria dois elementos, entre outros, que retratam esta crise: de um lado, o elevado nmero de denncias de pacientes insatisfeitos junto s justias tico-profissional e comum; o outro, a crescente procura das pessoas pelas ditas medicina ou terapias alternativas (TA). A medicina que, no passado, era simples, ineficaz e razoavelmente incua, com a revoluo tecnolgica se tornou complexa, eficaz, mas potencialmente perigosa. Publicao recente da American Hospital Association aponta o nmero de 98 mil para as mortes anuais nos EUA em conseqncia de erros cometidos na prtica mdica. Assinala que, naquele pas, morrem mais pessoas a cada ano em resultados de erros cometidos nos atos mdicos do que em acidentes rodovirios (43.458), cncer de pulmo (42.297) ou AIDS (16.516). Estes nmeros assustadores revelam que as iatrogenias e os erros profissionais do mdico podero se tornar o maior problema de sade no sculo XXI. Este cenrio trgico poder ser revertido se formarmos mdicos alm de tecnicamente competentes, que sejam portadores de slido embasamento tico-humanstico, capazes, portanto, de estabelecer uma relao mdico-paciente generosa, solidria, emptica e prudente. O desencanto expresso pela sociedade com a medicina oficial tem no consumo crescente das TA um indicador incontestvel. Pesquisas revelam que dois em cada trs franceses j utilizaram algum tipo de TA. Nos EUA, pesquisa da Universidade de Stanford indica que 69% dos norte-americanos usaram algum tipo de terapia alternativa no ano de 1997, despendendo US$ 21,2 bilhes em 629 milhes de consultas. No Brasil, tambm se verifica o crescimento destas prticas.

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sabido que a maioria dos pacientes que freqenta os ambulatrios/consultrios constituda pelos denominados pacientes funcionais ou psicossomatizados e pelos portadores de afeces crnicas. Esta clientela majoritria, pela complexidade e subjetividade dos seus sofrimentos, somente pode ser aliviada adequadamente por mdicos equipados com elevada cultura humanstica. Para a construo desta competncia humanstica essencial necessrio a incluso na grade curricular de matrias como histria da medicina, fundamentos de antropologia, filosofia, psicologia, tudo isso permeado pelo cimento da tica mdica e da biotica. Tenho convivido com Nedy Neves nos ltimos sete anos, ambos conselheiros do Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia. Nestes anos, pude testemunhar a sua impressionante dedicao, capacidade de trabalho e sabedoria no trato dos dilemas ticos. Acompanhei sua crescente paixo pelo estudo e ensino da EM nas duas escolas de medicina mais tradicionais da Bahia. Este livro, resumo de sua tese de Mestrado, brilhantemente apresentada Universidade Federal da Bahia, produto natural desta dedicao existencial. Cumpriu com excelncia seu objetivo principal, que foi o de avaliar o ensino da EM no Brasil e propor sugestes visando legitimar sua insero na grade curricular da graduao em Medicina nas escolas brasileiras. Ao findar a leitura deste trabalho, pairaram sobre a minha mente dois sentimentos. De um lado, profunda gratido a Nedy Neves pelo seu enorme esforo pessoal, conseguindo preencher importante espao para reflexo intelectual e avano concreto da luta por uma medicina sempre dedicada ao ser humano. De outro, a alegria de ver o sistema conselhal brasileiro, liderado pelo Conselho Federal de Medicina, produzindo e promovendo a EM na formao dos nossos mdicos, na busca eterna de melhor servir a sociedade no alvio e na cura dos sofrimentos e elevao da qualidade de vida.

Jec Freitas Brando Presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia

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SumrioIntroduo .............................................................................................................. 09 Captulo 1 tica Mdica ....................................................................................... 11 Captulo 2 Biotica .............................................................................................. 27 Captulo 3 Cdigos de tica ................................................................................ 37 Captulo 4 Ensino mdico no Brasil: origens ....................................................... 53 Captulo 5 O Ensino de tica Mdica .................................................................. 71 Resultados .............................................................................................................. 95 Estratgias emergentes ........................................................................................ 103

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IntroduoA proximidade com o ensino da Disciplina de tica Mdica, em duas Escolas Mdicas geograficamente localizadas na regio metropolitana de Salvador Bahia Brasil, suscitaram questionamentos a respeito do desempenho da transmisso destes ensinamentos. Surgiu ento, o desafio de aprofundar os conhecimentos deste ensino, atravs de um levantamento de suas caractersticas desde a sua criao e da anlise das alteraes introduzidas no currculo e na abordagem metodolgica deste trabalho. Pesquisas e leituras adicionais levaram a constatao que muitos conceitos precisavam ser revistos, porque a disciplina se origina e se embasa em questes filosficas, no rotineiras ao currculo da graduao em Medicina. Alm disso, o ensino de tica Mdica encontrou resistncia nas faculdades, sendo subjugado a pequenas cargas horrias e no recebendo a necessria importncia, tanto do corpo docente quanto do discente. Como matria, a tica Mdica se prope a desenvolver valores no aluno, orientando para os aspectos ticos e humansticos da profisso, propiciando a formao de preceitos morais, alm de possibilitar o conhecimento de filosofia, sociologia e direito. O Conselho Regional de Medicina da Bahia (CREMEB), recebe mensalmente entre 30 e 40 denncias contra mdicos, demonstrando que a sociedade clama por mudanas. A justificativa da escolha do tema conseqente a reflexo sobre humanizao da Medicina, que segundo Pereira (1985:185): O humanismo que capaz de fazer do mdico no um tcnico especializado na mquina humana, mas um ser que compreende a integrao perfeita entre a matria e o esprito. Desse modo, o interesse passou a ser como ocorreu o processo de criao, construo e evoluo da Disciplina de tica Mdica nas Escolas Mdicas. Atualmente a Medicina tem um cunho tcnico-cientfico muito grande, gerador de uma gama de exames e procedimentos dando um novo direcionamento Medicina cientfica ocidental contempornea. Este modelo no deve evoluir para o distanciamento da relao mdico-paciente, mas para auxiliar o diagnstico e a teraputica. Desta forma o percurso da disciplina contextualiza este significado norteado pelo aprendizado do saber-ser, saber se conduzir frente aos inmeros problemas interpostos pela atividade profissional. Este aprendizado to importante quanto o saber-fazer e o saber-saber, que estaria relacionado ao conhecimento tcnico-profissional. A disciplina, portanto, possibilita a reflexo, tirando o aluno da alienao e levando a tomada de conscincia para os aspectos sociais e das transformaes societrias. Vale a pena incentivar o desenvolvimento do pensamento crtico sobre o papel do mdico na comunidade, assim como sua atitude frente a determinados dilemas ticos e morais. Desta maneira, se conduziu o estudo que deu origem a Dissertao de Mestrado da Faculdade de Educao, da Universidade Federal da Bahia, sob a orientao do prof. dr. Robinson Tenrio e com o ttulo: Avaliao do Ensino de tica Mdica nas Escolas

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Mdicas de Salvador-Bahia: elementos contributivos para a humanizao da medicina; recomendada para publicao na forma de livro. A pesquisa bibliogrfica foi realizada atravs de textos e de artigos publicados no LILACS e MEDLINE, entre 1994 e 2004 referentes ao tema. A pesquisa de campo foi realizada atravs de um levantamento utilizando um questionrio administrado aos discentes e a avaliao qualitativa foi atravs de questionrios semi-estruturados dirigidos aos docentes da Disciplina de tica Mdica nas Escolas Mdicas pesquisadas. Foi tambm realizada uma pesquisa documental nas bibliotecas e nas atas da Congregao das Faculdades pesquisadas. O levantamento priorizou a amostra estratificada e a seleo da mesma teve como base os estudantes de Medicina que j tinham cursado a Disciplina de tica Mdica. O Captulo I, tica Mdica, mostra os embasamentos conceituais e diferenciais entre tica, moral, deontologia, diceologia e tica Mdica. No Captulo II, Biotica, est descrita sua evoluo, assim como sua contextualizao e sua gnese recente. No Captulo III, Cdigos de tica, est exposta a construo dos cdigos de conduta e dentro do contexto histrico cultural. No Captulo IV, O Ensino mdico no Brasil, est relatada a trajetria deste ensino desde a criao das primeiras EM brasileiras. No Captulo V, O ensino de tica Mdica, est descrito a importncia do mesmo atravs de sua insero, assim como seu contedo e competncias. Nos Resultados esto a apresentao e a anlise dos dados coletados na avaliao qualitativa e quantitativa a partir dos instrumentos utilizados, com o seu relativo tratamento atravs de relatrio. Nas estratgias emergentes h a discusso e avaliao dos resultados depois de agrupados por pontos de convergncia e divergncia. Espera-se que este estudo atenda aos objetivos propostos, atravs dos seus construtos descortinados nos captulos que se seguem e possibilite que outros se desenvolvam a partir dos questionamentos que possam suscitar. Consideramos que o tema instigante, envolvente e extremamente pertinente, em tempos cuja metanarrativa o sistema capitalista, distante dos interesses do sujeito (des)encantado com as conquistas da tecno-cincia.

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Captulo 1TICA MDICAAntes de conceituar tica Mdica, necessrio construir algumas referncias sobre tica, moral, deontologia e diceologia, para posteriormente conceituar tica Mdica. A dificuldade para encontrar tais elementos, ocorre a partir da percepo que estes pressupostos esto de certa forma imbricados e format-los um trabalho extremamente complexo. possvel conceituar tica? Conceituar tica no tarefa fcil, com suas mltiplas categorias e de acordo com a espacialidade, temporalidade e historicidade. No h pretenso de fazer um aprofundamento na rea filosfica, mas sim sistematizar os saberes viabilizando o entendimento dos conceitos, elencando as possibilidades de estudar os pressupostos fundamentais para a compreenso do tema. Pretende-se fazer a tessitura das relaes conceituais que so interpostas no exerccio profissional mdico atravs de sua conduta, analisando sua transdisciplinaridade, sustentabilidade e contextualidade sobre o assunto. Quando a tica comeou e como se originou? A tica propriamente dita, i.e., como estudo sistemtico sobre os conceitos relativos ao bem e ao mal, supe-se que nasceu quando o ser humano comeou a refletir como seria a melhor maneira de viver e conviver. Este estgio reflexivo, provavelmente, iniciou-se aps o desenvolvimento de algum tipo de moralidade nas sociedades humanas, na forma de padres de comportamento de conduta certa e errada. Origem etmolgica A palavra tica, do latim thicus e do grego thiks, etimologicamente o ramo de conhecimento que estuda a conduta humana, estabelecendo os conceitos do bem e do mal, numa determinada sociedade em uma determinada poca (CUNHA et al., 1986:336). De acordo com McFaden (1961:164) a palavra tica deriva do grego ethos, que significa costume ou prtica, maneira caracterstica de agir nos atos deliberados do ser humano. De acordo com o Dicionrio de Filosofia (BLACKBURN, 1997:129) tica (do gr., ethos: carter) o estudo dos conceitos envolvidos no raciocnio prtico: o bem, a ao correta, o dever, a obrigao, a virtude, a liberdade, a racionalidade, a escolha. tambm o estudo de segunda ordem das caractersticas objetivas, subjetivas, relativas ou cticas que as afirmaes feitas nesses termos possam apresentar. Pode tambm ser definida como os estudos dos juzos de apreciao que se referem conduta humana suscetvel de qualificao do ponto de vista do bem e do mal, seja de determinada sociedade numa determinada poca, seja de modo absoluto. tica hbito, arte, de fazer o bem, que torna bom aquilo que feito e quem o fez (PLATO, 428 a. C., apud ROSAS, 2004:1).

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Constata-se nesta citao que Plato s percebia tica relacionada com o bem, no integrava os dois conceitos antagnicos num pensamento nico compondo a natureza humana. J Aristteles1 (384-350 a. C.) defende o conhecimento do mundo plural. Sua tica se interpe como um ramo da histria natural dos seres humanos, revelando uma anlise sutil das complexidades da motivao humana (BLACKBURN, 1997:256). No Dicionrio do Pensamento Social no Sculo XX, Outhwaite; Bottomore (1996:278) descrevem tica como a avaliao normativa das aes e do carter de indivduos e de grupos sociais. Consubstanciam a tica utilitarista e a tica baseada em direitos. O utilitarismo2 clssico tem dois componentes: o consequencialismo3 a justeza de uma ao deve ser julgada por suas conseqncias; e o hedonismo4 a nica coisa boa seria a felicidade, concebida como prazer e ausncia de dor. J a tica baseada em direitos prioriza os princpios da justia, diferentemente do utilitarismo que trata como derivativos. H um conflito entre as perspectivas ticas utilitria e baseadas em direito, dominando o debate terico e extrapolando para as polticas de ao. Estes autores relacionam o juzo de valores com o bem e o mal, o certo e o errado com as escolhas individuais. Esta idia traz a compreenso que previamente ocorre formao dos primeiros e a partir deste fundante o sujeito da ao decide baseado em seu sistema de valores. Segundo Lopes (1980:46) tica, de modo tcnico, a cincia que estuda a moralidade dos atos humanos, exercidos luz da razo e de modo especfico: uma cincia, um sistema de conhecimentos, estabelecidos claramente e baseados em princpios comprovados; uma cincia natural, pois se norteia pela razo natural do ser humano; uma cincia prtica e normativa. Categorias da tica Zajdsznajder (1993:16-17) classifica como os espaos da tica as seguintes categorias: da atividade humana propriamente dita; da reflexo tica; das normas ou cdigos; dos conceitos ticos; das teorias ticas. Da atividade humana propriamente dita, trata-se do ato em si, ou seja, relativa a escolha. A escolha entre o bem e o mal. Este o espao de base, o plano onde se colocam a diviso interior e o sentimento. O segundo item trata da reflexo tica. Este espao um subconjunto do anterior. o espao em que examinamos as questes que esto em jogo, justificando nossas atitudes. O espao das normas ou cdigos o do discurso e das instituies sociais em que se afirmam os deveres e as expectativas. So normas que permitem o distanciamento daquelas de natureza mais universal. A quarta categoria trata dos conceitos ticos que se constituem o universo dos trs espaos assinalados anteriormente. So conceitos de natureza terica e ao mesmo tempo prtica. As teorias ticas so elaboraes filosficas que se encaminham na elucidao da natureza da situao tica, na elucidao conceitual e nos questionamentos. A terceira1 2

Aristteles (384-322 a.C.) Filsofo grego, considerado figura central no pensamento tico e metafsico (COLLINSON, 2004:42-49). Utilitarismo teoria tica proposta por Bentham et al. Que responde as questes em termos de maximizao da utilidade ou da felicidade (BLACHBURN, 1997:396). 3 Consequencialimo a idia de que o valor de uma ao provem inteiramente do valor de suas conseqncias (BLACHBURN, 1997:73). 4 Hedonismo busca do prazer prprio como um fim em si. Em tica a perspectiva de que essa busca a prpria finalidade de toda ao (BLACHBURN, 1997:178).

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categoria a que mais se aproxima do tema relacionado Disciplina de tica Mdica, porque trata da normatizao de condutas. A tica retrata o acordo entre a conscincia e os preceitos consagrados. Seria uma avaliao acerca dos costumes, podendo aceit-los ou reprov-los, de acordo com os valores da cultura que a sociedade estabeleceu como padro de comportamento. Dessa forma a tica traz em seu bojo a idia que seu aprendizado se faz juntamente com o processo de aculturao, com os valores que determinam a conduta humana (CUNHA, 1994:7). Na definio deste autor a deciso estaria relacionada a um processo racional, fazendo com que as atitudes humanas se definam de acordo com a formao individual. Rosas (2000:1) afirma que: tica o estudo do comportamento humano visando a sua valorizao, ou seja, atribui-se significados e valores aos atos, com a finalidade de se avaliar o que bom e o que mau. O ser humano nasce sem juzo e os adquire durante a vida, com os ensinamentos da famlia, nas experincias vividas na comunidade e na postura na sociedade que est inserido. Este conceito abarca os aprendizados que o indivduo traz a partir das experincias vividas. De acordo com Gomes (1996:54): tica se constitui no princpio e fim da prpria vida, no sentido que se torna o prprio sentido da existncia, a razo essencial de ser e haver, o motivo pelo qual a existncia se relaciona com o todo, pelo qual se transforma e por sua vez transforma o prprio meio agente e sujeito dessa mudana. O pensamento descrito acima, traz a rede relacional dos conceitos com a prpria vida, portanto, no existiria vida sem tica. De acordo com o autor, a tica inerente ao indivduo pensante. O conceito de tica remete a algo mais vasto, implica em uma anlise crtica dos costumes que podem ser aceitos ou questionados pelo sujeito da ao. Estes valores formam o Axiograma de cada pessoa, que seria a autodeclarao de valores e antivalores, de acordo com a teoria dos valores, Axiologia. (Fernandes, 1998: 137). Para falar de tica deve-se ter conscincia de que qualquer tentativa de construo de uma cincia de valores ter a espinhosa tarefa de romper com a poltica (BIGNOTTO, 1992:36). Assim, tica implica em juzo de valores e vem de dentro para fora do indivduo, est imbricada com o seu prprio eu e depende das opes dadas ao sujeito, portanto, precisa de liberdade. Pelo exposto, entende-se que diante de uma determinada situao, o ser humano age de uma determinada maneira, de acordo com seus valores e com as alternativas que tem no momento, fazendo portanto, suas escolhas. Alm de necessitar de liberdade, o exerccio da tica implica em responsabilidade. A tica, deste modo, convida o indivduo a tomar parte na elaborao das regras de sua conduta. Os comandos ticos engajam sempre a liberdade do sujeito, afirmando sua autonomia, condio, si ne qua non, para o dilogo da tica. Desta forma, a tica individual e crtica, implica em liberdade de escolha e responsabilidade. Neste sentido, a tica ser sempre fruto de um debate societrio, entre sujeitos conscientes e livres para definirem valores, condutas e regras concernentes ao seu futuro e ao futuro da sociedade em que vivem (Gomes, 1996:54). Desta maneira, de

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acordo com o autor impossvel o exerccio da tica na ausncia do estado de direito democrtico, quando h cerceamento de pensamento e da palavra e, por conseguinte, impossibilidade de escolhas. A tica alvo em movimento, cuja posio espao-temporal determinada por variveis sciopolticas a cada sociedade, no sendo possvel, assim, associar a tica absoluta arte mdica. Muitas intervenes mdicas estiveram fora do universo tico em algum momento histrico. Questiona-se como possvel proteger o individuo e ao mesmo tempo rejeitar preconceitos e no sucumbir ao medo (SANTOS, 2004:16-17). A edificao de preconceitos realizada de forma inconsciente e antecede a formao universitria, deste modo, refletir sobre o tema uma boa prtica para a eliminao de conjunes rgidas. A identificao dos valores permite classific-los, assim como atribuir diferentes pesos a cada um, buscando os que facilitam as inter-relaes humanas e valorizando os que trazem mais benefcios aos cidados. Segre (2000:1) diz que: tica o estudo do comportamento humano visando sua valorao. Valorar, significa atribuir valores, estabelecer o que bom e o que mau. A tica avaliando os comportamentos, distingue-se da Etiologia, que simplesmente os analisa. A busca do Bem e do Mal preocupao do homem, desde que existe. Essa busca pragmtica, visando a permitir o convvio dos indivduos dentro de uma famlia, de um cl, de uma sociedade. Este pensamento descreve a preocupao humana em reconhecer o bem e o mal, assim como defini-lo para melhor convivncia societria. Esta necessidade de respeito mtuo permite melhor inter-relao entre os indivduos. A tica seria, conseqentemente, fundamental na crena e a crena o resultado do que vai sendo inculcado na personalidade do ser humano. As regras ticas, cdigos deontolgicos, so resultado de algum consenso em relao aos dilemas mais comuns para um determinado grupo de pessoas. Assim como as religies, passadas de gerao em gerao, com seus valores intocveis, nada mais trazem em seu bojo do que cdigos de regras, supostamente destinados preservao da comunidade, mas acabam se tornando instrumentos de estagnao ou retrocesso (SEGRE, 1991:10). Nesta linha de pensamento, a tica difere da religio no sentido da possibilidade de escolha atravs de discernimento e de pensamento crtico. Esta idia traz a dimenso de mutao, de transformao da tica com a possibilidade de se adequar, sem obrigatoriamente cristalizar-se. A postura tica individual precede todas e quaisquer normatizao (COHEN, 1999:14). A tica pode ser viva, mutvel e livre acompanhando a evoluo do mundo cientfico e das diversas culturas societrias. Entretanto, necessrio estar atento aos cdigos de conduta que podem estar atrelados a uma resistncia evoluo do pensamento humano, impondo-lhe normas e impedindo o processo evolutivo. Ideologizao No existe aspecto da filosofia que seja isento de divergncias e contradies de todas as magnitudes e profundidades. Segundo S Jr (2002:69) exatamente esta situao que se

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encontra a tica, mesclada de incertezas e inquietaes. uma matria fortemente ideologizada e atravs dos tempos tem sido campo de confronto das mais diversas tendncias polticas e sociais. Este autor conceitua filosofia como cincia ideal, que tem como objeto a viso de mundo de algum que determina suas atitudes intelectuais, afetivas, psicomotoras e sociais diante das demais coisas e acontecimentos e condicionando sua conduta. Percebe-se a dificuldade do autor quando tenta significar os elementos no campo da conceituao do tema, pela pluralidade de opinies e pensamentos. Cada ser humano pode atravs de suas experincias e em plena conscincia estabelecer juzos ticos. Assim, os valores preestabelecidos seja por religies, divindades, profetas, ministros ou legisladores podem ser questionados em qualquer ocasio, por qualquer cidado livre, trazendo a questo da autonomia para o debate. [...] como no se pode permitir que cada um seja a sua tica, respeitando as suas prprias hierarquias de valores, h que se ter uma Lei, ajustada moral vigente (SEGRE, 2002:4). De acordo com a citao, apesar da liberdade de escolha individual, h necessidade de normas para regular o comportamento grupal. Este conceito remete idia de uma tica coletiva, com maior peso que a individual. Segundo Matos (2000:13) tica no uma identidade que dita regras ou as justifica, contudo, se faz da linguagem que so os sinais entre si, sintaxe, semntica. Como tal, formal e segue uma coerncia, que seria a seqncia dos fatos. Lgica dialtica, portanto, vitalizando a anttese a cada passo. tica um estado exclusivo do ser humano e o estado que provoca, sustenta e discute esse dilogo. A tica desce do altar da cincia e reduz-se dialtica profissional na inferncia da deduo e do debate. O comportamento faz o ato, a tica faz que o ser humano, por conexo, o catalogue ou no. tica seria uma reflexo terica que analisa, critica ou legitima os fundamentos e princpios que regem um determinado sistema moral, ou seja, tica seria a teoria sobre a prtica moral. Correa (2000:10) define que tica a mais alta construo da razo humana. A lgica da tica se diferencia da moral a partir da descoberta que o bem no determinado por um ser superior ou pela natureza, mas construdo a partir da cultura e reconstrudo atravs do tempo. Todas as formas concretas do bem so parte de um jogo de mltiplas determinaes, econmicas, polticas, sociais, religiosas, que a subjetividade em particular o desejo e as objetividades se entrelaam. O ser humano contemporneo sabe que o bem uma inveno dele mesmo, pela qual deve responder e cuidar. Desta maneira, nota-se que o significado das coisas para o sujeito e para o grupo, lembrando o que ressoa a partir deste conjunto, sujeito-grupo, para a sociedade. tica e liberdade Sartre5 (1905-1980) escreveu: O homem est condenado a ser livre, logo, condenado a assumir a responsabilidade de suas escolhas. No entender do autor no h limite5 Jean Paul Sartre, (1905-80) Filsofo, romancista expoente do existencialismo atesta e posteriormente desenvolveu seu prprio estilo de sociologia marxista (COLLINSON, 2004:271-280).

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para esta liberdade, exceto o de que no somos livres para deixarmos de sermos livres, porque no h qualquer plano divino que resolva o que deve acontecer, no existe determinismo. O ser humano livre. Nada o fora a fazer o que faz. Ns estamos sozinhos, sem desculpas. O homem no pode desculpar sua ao dizendo-se forado por circunstncias ou movido pela paixo (SARTRE, apud COLLINSON, 2004:278). Todo este pensamento de Sartre demonstra a responsabilidade do sujeito na determinao de seus atos, como ator e no como expectador resignado e passivo. Sartre defendeu a capacidade de cada indivduo escolher suas atitudes, objetivos, valores e formas de vida. Definiu como iluso a crena de que os valores existem objetivamente no mundo, em vez de serem criados apenas pela escolha humana. Recomendou que as escolhas individuais sejam feitas com plena conscincia de sua autenticidade e nada nem ningum as determina. Desta maneira, de acordo com as premissas de Sartre, o homem que elege devotar a vida ao extermnio dos judeus, faz esta escolha com plena conscincia, sendo assim, responsvel por seus atos e conseqncias. O nico valor fundamental e universal para o existencialismo a liberdade. Dizia Sartre: No pode haver uma justificativa objetiva para qualquer outro valor. A nica recomendao positiva que Sartre pode fazer que deveramos evitar a m f e procurar fazer escolhas autnticas (SARTRE, apud COLLINSON, 2004:277). Toda esta reflexo remete responsabilidade que cada indivduo tem perante o mundo e a sociedade, no cabendo se eximir diante delas. De acordo com estas definies, a liberdade um dos conceitos fundamentais da tica, pois sem a mesma no seria possvel seu exerccio. Esta proposio implica em repensar o conceito de liberdade. s vezes parece que ser livre, ser livre e nada mais, para nada. Como dizia Gide (1859-1951) [...] escolher perder a liberdade (GIDE, apud CORREA, 2000:11). Quando se fala em liberdade preciso compreend-la com o poder fundamental que cada ser humano tem de ser o sujeito de suas aes e experincias (CORREA, 2000:11). Isto lembra o conceito de autonomia como um dos princpios da Biotica. Outhwaite e Bottomore (1996:424) questionam se a liberdade deve ser uma noo abstrata e vazia ou se devem existir condies para o seu exerccio possibilitando que o indivduo alcance o grau mximo de auto-realizao e autocomando. Liberdade no sentido mais universal depende de um complexo de relaes sociais. Os seres humanos no nascem livres, nascem dentro de uma rede relacional preexistente na conjuntura social, numa casta ou classe, de um gnero, de uma comunidade religiosa e os limites de sua liberdade so condicionados por essas circunstncias. De acordo com esta argumentao a liberdade absoluta inexiste, ela regulada pelas relaes grupais como descrito acima e cobe os excessos que possam acometer terceiros, limitando a liberdade destes ltimos. Kierkegaard6 (1813-1855) refere-se liberdade com o termo ursprung, que seria uma auto-inveno, como um salto original, um batismo de escolha, significando que sem liberdade no h humanidade. A liberdade pois destino, enigma, trama, drama. Sem ela no possvel se falar de autonomia da pessoa, muito menos em dignidade humana. Sem liberdade no possvel construir sujeitos autnomos, senhores de sua prpria vida (KIERKEGAARD, apud BLACHBURN, 1997:216). Este autor somente cogita a6

Kierkegaard, (1813-1885). Filsofo e telogo dinamarqus, considerado o primeiro existencialista. Rejeitou o sistema hegeliano como tentativa de colocar o homem no lugar de Deus (BLACKBURN, 1997:216).

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vida com liberdade, isto , seria uma condio elementar. Depreende-se dos estudos anteriores que sem liberdade no h tica, deste modo, para haver uma vida digna, necessria a coexistncia das duas. tica universal Segundo Singer (1998:20) a tica se fundamenta num ponto de vista universal, o que no significa que um juzo tico particular deva ser universalmente aplicvel. A tica exige a extrapolao entre o eu e o voc para chegar lei universal, ao juzo universalizvel, do ponto de vista do espectador imparcial, ao observador ideal. Este autor faz uma abordagem sobre tica que passa ao largo da religio, se contrapondo a alguns testas que acreditam que tica no pode prescindir da religio (Singer, 1998:11). H necessidade de desvincular a teologia da filosofia para a iseno do trabalho. Morin (2000:17) postulou que tica no pode ser ensinada por meio de lies de moral, deve ser formada nas mentes com base na conscincia de que o humano , ao mesmo tempo, indivduo, parte da sociedade e parte da espcie. Defende que a tica est relacionada ao indivduo, sociedade e espcie e necessita do controle mtuo da sociedade pelo indivduo e do indivduo pela sociedade, convocando todos cidadania terrestre. Nesse entendimento o autor se refere ao cuidado com a parte pelo todo, assim como o compromisso do coletivo com o individual. A preocupao com o planeta trazida aqui, hoje vista como questo, si ne qua nom, para a sobrevivncia humana. Outro ponto relevante neste estudo diz respeito ao sistema econmico vigente, que tem como fundante o sistema capitalista, hegemnico e totalitrio. A tica contempornea aprendeu a preocupar-se com o julgamento do sistema econmico como um todo. O bem e o mal no existem apenas nas conscincias individuais, mas tambm nas prprias estruturas institucionalizadas de um sistema (VALLS, 1994:73). H de se ter tambm uma preocupao tica nas instituies. E por que no no poder econmico? De acordo com Vsquez (2000:216) o carter do indivduo est sob influncia do meio social em que vive e age, suas atitudes e conseqentemente suas virtudes como a sinceridade, a justia, a amizade, a modstia, a solidariedade, a camaradagem, etc. exigem condies sociais favorveis para florescerem nos indivduos. Valores Outra questo valiosa para ser discutida o elo entre tica e valores, trazido por alguns autores. A origem etimolgica da palavra valor provm do latim valere, ou seja, que tem valor, custo (CUNHA, 1986:810). O conceito de valor est freqentemente vinculado noo de preferncia ou de seleo. Rokeach (1973:198) define valor como uma crena duradoura ou em um modelo especfico de conduta ou estado de existncia que pessoalmente ou socialmente adotado, o que est embasado em uma conduta preexistente. Os valores podem expressar os anseios da vida, tornando-se muitas vezes as bases para lutas e compromissos. A cultura, a sociedade e a personalidade antecedem aos valores e as atitudes, sendo conseqentemente, os geradores do comportamento. Por conseguinte, segundo este autor, a constituio dos valores fundamental como elemento para contextualizao da tica no sentido mais amplo. Ou seja, a tica se formata a partir da inculcao dos valores nos sujeitos e na sociedade em que estes esto inseridos e a partir deste conjunto cada um prope suas aes.

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Pela dificuldade em conceituar a palavra valor, Hessen (apud ARAJO, 1993:88-89) a desdobra e a analisa em pelo menos sete teses sendo: uma corrente psicolgica; uma corrente neokantiana; uma corrente neofichteana; uma corrente fenomelgica; uma corrente derivada da escola de Remke e finalmente uma corrente neoescolstica. Deste modo: [...] valor algo que objeto de uma experincia, de uma vivncia. Para o autor quando se utiliza palavra valor, pode-se querer balizar entre trs coisas distintas: [...] a vivencia de um valor; a qualidade de valor de uma coisa, ou a prpria idia de valor em si mesma. No se pretende aprofundar na discusso sobre valores, o tema apenas foi trazido para a compreenso na gnese da tica. Segundo Cohen & Segre (1999:15) a eticidade est na apreenso dos conflitos da vida e na condio procedente a esses conflitos. Logo, a tica se fundamenta em trs princpios bsicos: conscincia, que seria, a percepo dos conflitos; autonomia, que permitiria a escolha, prescindindo de liberdade e coerncia, relacionada lgica ou a razo da escolha. Inicialmente parece ter havido omisso da emoo que perpassa pelas escolhas, no entanto, num segundo olhar nota-se que razo e emoo se imbricam, ao tempo que se contrapem. Matizes da tica A palavra tica vulgarizou-se, tornando-se amplamente utilizada em nosso meio como sinnimo de correto, certo. Entre os mdicos o termo ficou atrelado historicamente ao Cdigo de tica Mdica (CEM), criando uma linguagem prpria, universal, cmoda e de interpretao falsa, como um vcio ou dogma. Ele prprio indevidamente denominado, inicia com a expresso: contm as normas ticas (MATOS, 2000:13). A inadequao do termo deve-se ao fato dele se contrapor ao conceito da palavra tica, poderia ser traduzido como: contm as normas do bem e do mal. No entanto, pretende dizer: contem as normas de conduta ou de comportamento. Considera-se pertinente a crtica feita pelo autor no qual a denominao Cdigo de tica Mdica (CEM) no mnimo equivocada. Poder-se-ia sugerir que do CEM emanam as normas de conduta destinadas aos mdicos brasileiros durante seu exerccio profissional. Abarcar todos estes conceitos de tica trazidos pelos diversos autores e aqui avaliados implica em tecer uma teia para configurar a sua fundamentao terica. O mosaico de contribuies aqui construdos tentam interpretar os diversos elementos e categorias. A pluralidade de pensamentos e pressupostos impossibilita a formao de um conceito nico de tica absoluta. O processo de compreenso dificultado pelos questionamentos, dvidas e incertezas que permitem repensar em novas perspectivas e paradigmas. A civilizao humana pode ser compreendida a partir da tessitura de cada vida e da trama das relaes humanas em tempos diversos, que se constri e se reconstri de forma cclica, ressoando sua histria. Conseqentemente, a historicidade humana seria edificada a partir do construto de seus atores dentro de um espao relacional, num determinado lugar e numa determinada poca. Os sujeitos desta construo a fazem com o exerccio de sua prpria liberdade nas relaes entre si, fazendo suas escolhas. Esta seria a dimenso tica, mais que natureza, seria o ser humano sujeito inventor de seu prprio sentido. H dificuldade em conceituar tica dentro de um sentido nico com tantos diferentes pensamentos sobre o tema. Entretanto, possvel discernir que ela no sempre a

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mesma, sofre mutaes de acordo com a temporalidade e espacialidade, tornando-se por isto, dinmica e viva. importante fundamentar tambm os pensamentos em torno do conceito de moral. Muitas vezes tica e moral esto to juntos e imbricados, que os pensadores tm dificuldade de conceitu-los separadamente e a sociedade de um modo geral os une e os confunde. Moral Moral, do latim Moralis, que significa, ou relativo a costumes, conjunto de regras de conduta. Segundo o dicionrio etimolgico, moral o conjunto de regras de conduta consideradas como vlidas, quer de modo absoluto para qualquer tempo e lugar, quer para grupo ou pessoa determinada (CUNHA, et al., 1986:46). Conduta por sua vez seria o comportamento, procedimento, norma de uma pessoa, ou grupo ou comunidade (FERNANDES, 1998:226). Nesta conceituao h pouca ou nenhuma diferena em relao ao conceito de tica. No Dicionrio de Filosofia, Blackburn (1997:256) sugere que embora a moral das pessoas e sua tica acabem por ser a mesma coisa, h um uso do termo que restringe a moral dos sistemas kantinianos,7 baseados em noes de dever, obrigao e conduta. O imperativo categrico de Kant (1724-1804) estabeleceu como pressuposto de sua moral a condio de livre escolha, fundamentando essa escolha na razo, prope que todo indivduo deve agir somente, segundo uma mxima tal, que possa querer ao mesmo tempo que se torne lei universal. Ficando reservada a tica para a perspectiva mais aristotlica do raciocnio prtico, baseado na noo de virtude, a moral seria cristalizada na sociedade (BLACKBURN, 1997:256; COLLINSON, 2004:160). Desta maneira, moral fica entendido como alguma coisa que se impe de fora para dentro, baseada nos costumes, de um determinado grupo ou sociedade, logo, variam com o tempo e o lugar. Diz respeito a algo que se deve ou no se deve fazer em vista de determinaes emanadas de instncias exteriores ao sujeito da ao, conduzindo quase sempre formao de sentimentos de culpabilidade (CORREA, 2000). Desta forma, moral est mais ligada aos costumes do lugar e do tempo em que os sujeitos esto inseridos. Os comportamentos cobrados pelo grupo, so regras que na maioria das vezes, no esto dispostos em cdigos ou leis. Para Barton & Barton (1984:30) o estudo da filosofia moral consiste no questionamento do que certo ou errado, o que uma virtude ou uma maldade nas condutas humanas. A moralidade seria um sistema de valores, do qual resultam normas que so consideradas corretas por um determinado grupo social. A lei moral ou suas normas e cdigos tm por finalidade ordenar um conjunto de direitos e deveres do indivduo em uma determinada sociedade. Para que estas normas sejam exeqveis necessria presena de um comando, seja Deus, Juiz ou Governo, que as imponha e em caso de desobedincia, esta autoridade ter o direito de castigar o infrator. A postura moral de uma determinada comunidade no difere muito da religiosa. Na religio, entretanto, a postura tem origem divina.7

Immanuel Kant, (1724-1804). Filsofo alemo, fundador da filosofia crtica (COLLINSON, 2004:153-163).

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Normas bsicas de moral Gert (1970:12), prope cinco normas bsicas de moral: no matar; no causar dor; no inabilitar; no privar da liberdade ou de oportunidades; no privar do prazer. Assim como na maioria dos cdigos de moral, as proibies vm precedidas pelo no, explicitando que todos possuem esses desejos e que eles devem ser reprimidos e em caso contrrio, haver castigo. Esta idia traz o conceito, muito difundido na categoria mdica, de no prejudicar, no causar dano a outrem, seria um dos princpios da Biotica, a No-maleficncia. Ferrell et al. (2002:33) conceituaram as filosofias morais como idias que podem justificar ou explicar as aes humanas. Atravs destes conceitos teria diretrizes para se decidir frente a conflitos morais. No h uma filosofia moral aceita por todos, em uma determinada instituio ou sociedade, at porque, no se trata de uma cincia exata. Toda ao humana nica e inexata, portanto, repleta de mltiplas configuraes. Desta maneira, fica claro que no h codificao neste conjunto de normas e condutas demarcadas pela moral, o que no impede que sejam posteriormente legisladas. O grupo social obedece s normas emanadas por ele mesmo como um cdigo no codificado, contudo, obedecido medida que o no acatamento leva a excluso. Neste sentido, o sujeito perde o direito de escolha, podendo at violentar seus valores. Porque so clusulas pragmticas e paradigmticas norteadoras do comportamento humano, configurando-se de aceitao obrigatria. Deontologia e Diceologia De acordo com o dicionrio etimolgico, deontologia o estudo dos princpios, fundamentos e sistemas de moral. Do ingls, deontology, termo criado por volta de 1826 pelo filsofo Jeremy Bentham8 (1748 1832), que publicou o livro Deontology, em 1834, com base no grego don ontos, que traduz por dever, obrigao (CUNHA et al., 1986:247). Corra (2000:8) afirma que o termo deontologia designa a cincia moral que ensina a conhecer os deveres. Esta reflexo moral seria elaborada a partir do prisma do princpio do interesse, centrando a ateno do sujeito no que lhe til. Benthan foi considerado o pai do utilitarismo, seria o utilitarismo pragmtico. A origem semntica de deontologia grega e a raiz don define conceitos como necessidade, convenincia e dever. Assim, o saber referente ao que devido, ao que necessrio, ao que oportuno. A filosofia demonstra o parentesco da palavra deon com deo que significa medo, respeito, reverncia. So idias fortes na histria da deontologia pela sua preocupao em ditar comportamentos. Estes, por sua vez, seriam um conjunto de direitos e deveres, que exercidos e observados, resultariam numa maior reverncia social aos seus protagonistas, aumentando seu prestgio. A deontologia passou a indicar, no mbito de cada profisso, o conjunto de comportamentos teis e oportunos que devem ser praticados por todos os seus membros (CORREA, 2000:8). Sendo assim, a deontologia no decorrer da sua histria afastou-se do seu ideal de converter-se em cincia da moralidade, para a partir da observao da prtica cotidiana de suas atividades especficas, passar a codificar normas para o melhor8

Jeremy Bentham - Filsofo ingls do direito, da linguagem e da tica. Foi o fundador do utilitarismo e tornou famosa a frmula que o objetivo correto da ao consiste em produzir a maior felicidade para o maior nmero de pessoas. (BLACHBURN, 1997:40)

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desempenho profissional. Assim, cuidava de observar e preservar comportamentos que respeitassem deveres e mantivesse direitos especficos da profisso, aumentando o brilho da imagem de uma determinada categoria. Desse modo, a deontologia caminhou para um estreitamento de sua perspectiva moral, tornando-a corporativa e pragmtica. Seria a prtica do comportamento profissional, emanada por cdigos de conduta de cada profisso. Deontologia mdica A deontologia mdica evolui de maneira semelhante. Todavia, ocorreu um grande desenvolvimento, uma verdadeira revoluo nas chamadas cincias da vida, uma exploso cientfica, teraputica e biolgica que conduziu a uma mudana da perspectiva da deontologia mdica, alargando os horizontes e retornando aos grandes temas da tica aplicados s cincias biolgicas. De acordo com Correa (2000:8) a deontologia mdica traz uma perspectiva limitada sobre as aes do mdico, seria necessrio ultrapass-la para adequ-la aos saberes atuais frutos de uma constante e veloz mudana do mundo contemporneo, plural, conflitado e globalizado. Assim, no se trata apenas de conhecer os deveres e os direitos dos mdicos, mas sim transcender estas discusses luz das necessidades impostas pelo avano do conhecimento cientfico. O autor acredita que os grandes desafios da chamada revoluo biolgica ultrapassam o olhar deontolgico, sendo necessria uma reflexo mais ampla sobre os problemas resultantes da evoluo tecno-cientfica ocorrida nesta rea. No Brasil, existem instrumentos deontolgicos reguladores da conduta mdica, no exerccio da profisso e que apontam para valores ticos essenciais, para normas gerais que devem guiar o comportamento e estabelecer regras de conduta que fixam as proscries e prescries morais que devam ser atendidas por todos. O dever de um o direito do outro e vice-versa. Porque no h nem pode haver direito sem dever, nem dever sem direito (CORREA, 2000:8). De acordo com este pensamento os direitos e deveres so complementares e inseparveis, alm disso a deontologia e diceologia seguem como categorias axiolgicas dialticas. A tica deontolgica seria aquela oriunda do compromisso imposto ao individuo, aos grupos e ao sistema social pela autoridade, este tipo de determinao j aparece nos cdigos da antiguidade, como o Cdigo de Hamurabi.9 Existe quem subestime a expresso tica derivada da tica deontolgica, por julg-la desinteressante ao tratar de normas fixadas, regras de conduta impostas. Isto poderia corresponder verdade caso estas regras deontolgicas fossem ptreas, imutveis e jamais substitudas. De acordo com Camargo (1996:49) a deontologia no atende a um dos objetivos primordiais da educao, que seria o desenvolvimento de comportamento moral nos alunos dos cursos mdicos. Ela trata da questo das obrigaes morais e do dever que deve ser conhecido por todo cidado, entretanto, no dispe de recursos formativos do carter, que funo da escola, principalmente, de uma EM que recebe, em sua maioria, adolescentes e os abriga em tempo integral durante os ltimos anos de sua adolescncia, devolvendo-os adultos, para a sociedade. Deste modo, observa-se a importncia do compromisso social dos professores das EM com a formao tcnica, moral e tica dos futuros mdicos. Cabe o questionamento: que mdicos queremos formar para a sociedade.9

Cdigo de Hamurabi (2.000 a.C.) cdigo mais conhecido da Antiguidade, exposto no Museu do Louvre.

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Todos os conceitos referidos neste conjunto so relevantes para a formao de uma teia fundante e integradora do sistema de condutas profissionais, auxiliando na viso analtica do problema proposto. tica Mdica Importante referendar a interface de todos os conceitos abordados anteriormente integrando as definies de tica, moral, deontologia e diceologia para compor a unidade de tica Mdica, com uma identidade prpria e com o engajamento de todos os elementos anteriormente tratados. A combinao destes componentes, dentro de uma atividade profissional cujo eixo central o ser humano e cujo objetivo diminuir seu sofrimento, fazem o bojo dos temas que devem ser relacionados e definidos. Naturalmente os pressupostos da tica Mdica so direcionados aos mdicos no seu exerccio profissional, ou seja, durante o ato mdico. Moura F (2000:1) imagina que a Medicina nasceu com o homem. Cita que: Quando o primeiro ser humano se queixou de dor, a mo de algum se estendeu para trazer alvio. Ali ocorria o primeiro ato mdico. Assim sendo, acredita que o nascimento da Medicina tem uma ligao muito ntima com o sofrimento humano e a tentativa de minimiz-lo. A fora propulsora que gerou a atividade mdica foi o desejo de curar as doenas. Todavia, nem sempre isto possvel, e o mesmo autor orienta que a conduta mdica deve: curar quando possvel, mas aliviar sempre. Neste sentido , o foco da Medicina sai da cura e passa a ser o cuidado, buscando aliviar o sofrimento. Segre (2000:1) define tica Mdica como o conjunto dos estudos dos direitos e deveres dos mdicos. De acordo com Dutra (1992:15-6) tica Mdica uma modalidade da moral prtica e tem como funo determinar as normas necessrias, ao profissional de sade, dentro dos limites da retido e da proibio. Parece-nos que o autor une todos os conceitos anteriormente dispostos para orientar a prtica profissional. Segundo Lopes (1980:46) tica Mdica uma forma especial de tica, que se preocupa com os problemas morais da profisso mdica. Para aprimorar o exerccio profissional da Medicina, a tica Mdica traduzida em formato de Cdigo de tica Mdica (CEM), composta atravs de diversos captulos contendo artigos que devem ser adotados pelos profissionais. A tica Mdica se coloca entre os valores de conhecimento mais aprofundados e oferecidos a grupos selecionados da sociedade urbano-industrializada moderna (MEIRA, 1990:12). A partir do momento que o mdico age sobre o organismo de terceiros, surge a necessidade da regulamentao desta atividade, seja estabelecendo posturas ou colocando limites na sua atuao e assegurando seus direitos. Quais so os limites da interveno sobre o ser humano? Este questionamento nos leva a pensar que realmente necessria e fundamental a existncia de um cdigo que normatize as condutas profissionais e limite suas aes, garantindo a dignidade e a integridade do ser humano. O cuidar Cuidar do ser humano a misso maior da profisso mdica, neste sentido, Gomes (1996:53) defende que a tica Mdica vem a ser o tecido conjuntivo da Medicina, ou o plasma germinativo da conduta que oferece o sentido benemerente da ao e preenche os vazios do conhecimento, alm de resguardar o bem maior da vida, acima da prpria

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vontade humana. A Medicina, ento, ganha o contorno do cuidado com o semelhante, ampliando suas possibilidades ticas de zelo com a prpria espcie Este autor traz discusso o cuidado, o zelo, valor que tem a maior relevncia no trato do mdico com o paciente. Esta dedicao pode trazer grandes benefcios para a sade, diminuindo o sofrimento humano. Em algumas culturas o mdico adquiria um poder divino e por isto, estava a salvo de punies. A cultura grega deu destaque especial a deontologia, tirando o mdico dos braos dos deuses e cobrando responsabilidades profissionais. Cita-se como exemplo, Hipcrates,10 conhecido como o pai da Medicina e nascido em 485 a.C., que escreveu largamente sobre a matria. de sua lavra o juramento que ainda hoje proposto aos egressos, na formatura. De acordo com S Jr. (2002:71) a tica Mdica pode ser apresentada de forma reduzida a deontologia, ou mais restritamente a deontologia codificada, ou a mera tica mercantil, como instrumento moral da dimenso econmico-financeira da relao profissional, que poderia chamar-se de business ethics. Esta dimenso seria mais aplicada rea da sade, enquanto sua contraposio doutrinria seria a Biotica ocupando um espao mais amplo, imaginando a Biotica como filosofia autnoma, continente de todas as manifestaes das cogitaes ticas, profissionais ou no, que se passam nas cincias da vida. Entre o espao ontolgico limitado por estes dois extremos, podem se situar numerosas opinies intermedirias. Faz-se necessrio um momento de reflexo sobre questes verdadeiramente ticas suscitadas pela vida e as que so os reais alicerces dos cdigos morais e de conduta da rea mdica. Diferenciar conduta moral pessoal de conduta moral profissional invivel e disto tm conhecimento os profissionais que trabalham com os conceitos de pessoa, responsabilidade, respeito, verdade, conscincia, autonomia, justia entre outros, presentes no cotidiano da prtica mdica e que devero ser interiorizados, como valores, para que possam balizar o comportamento mdico. No apenas o paciente deve ser visto como pessoa na totalidade de seu ser, liberto de processos alienantes, mas tambm o mdico e o estudante de Medicina (CAMARGO, 1996:50). Fundamentos ticos da Medicina hipocrtica S Jr. (2002:71) tece algumas consideraes sobre a Medicina hipocrtica e o prprio Juramento de Hipocrtes. A Medicina hipocrtica inaugura o pensamento tico contemporneo, respeitando a autonomia do paciente e prevenindo danos. Esta abordagem permite delinear a construo da tica Mdica a partir da evoluo histrica como embasamento do aperfeioamento tecno-cientfico. Deste o Juramento de Hipcrates j ficava evidente o trplice compromisso dos mdicos: com os doentes, com os colegas e com a sociedade, dentro desta ordem hierrquica. O mdico hipocrtico contentava-se como premio de uma vida digna e eficaz, com a boa fama, com o reconhecimento dos seus colegas e com o legado que deixaria a seus descendentes de um nome honrado e digno de ser homenageado. Atualmente, o mdico se compromete com a humanidade e com o paciente. S depois com a sociedade ou com o Estado.10

Hipcrates (c.sc.V a.C.) mdico grego, contemporneo de Scrates e responsvel pelo juramento que obriga os mdicos a curar e a no fazer o mal (BLACHBURN, 1997:183).

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A filosofia hipocrtica defende que a ao do mdico deve ser realizada inicialmente em benefcio do paciente, esta postura evita a caracterizao de uma ao primariamente comercial e sim numa relao de ajuda e confiana, sendo este princpio denominado de principio da obrigao fiduciria 11 e posteriormente princpio da lealdade prioritria ao paciente, que se constitui um dos componentes essenciais da tica Mdica. Trs valores hipocrticos merecem considerao para o exerccio da profisso: a filantropia, a filosofia e a filotcnica12. O primeiro a filantropia cujo significado amor s pessoas, amor aos seres humanos, trata-se de gostar de gente. O mdico deve no mnimo gostar dos pacientes para ao menos consolar quando no consegue curar ou aliviar o sofrimento humano. Vale ressaltar que o oposto da filantropia, ou seja sua negao, seria a indiferena, que tambm pode ser relatada como a falta de indignao com atitudes descabidas, socialmente prejudiciais. J o termo filosofia significa amor ao conhecimento, seria gostar de aprender. Refere-se a uma pessoa desejosa de saber cada vez mais, de se atualizar, de descobrir, seria o prazer do conhecimento. O princpio da filotcnica refere-se ao amor a arte, no sentido de oficio, ocupao, profisso, seria gostar do seu trabalho, amor pelo que faz. Neste sentido seria dedicar-se ao trabalho com amor (S JR, 2002:80). Este conjunto de valores poderia formar o ideal de mdico como formao primria seria um arcabouo para receber posteriormente o substrato. Princpios basilares da Medicina hipocrtica A Medicina hipocrtica a origem da Medicina ocidental contempornea, de ascendncia grega, ela foi adaptada de acordo com a evoluo do conhecimento cientfico moderno. Os conceitos que se seguem clareiam o significado desta terminologia (S JR, 2002:80-81). a) b) Favorecer e no prejudicar (primo non nocere, primeiro, no fazer o mal) que significa estar escolhendo o mal menor; Abster-se de tentar procedimentos inteis (os mdicos gregos no atendiam aos moribundos e aos doentes considerados incurveis, porque o consideravam fora do alcance de sua profisso); O dever de dedicar lealdade prioritria ao paciente (fidelidade e altrusmo, colocando sempre em primeiro lugar os interesses do doente e depois, os interesses da cidade, inclusive os interesses dos demais mdicos, todos estes postos acima dos prprios interesses); Acatar, de preferncia, as causas da enfermidade (o tratamento dos efeitos sempre considerado pelos hipocrticos uma pobre alternativa teraputica etiolgica); Princpio da dignidade especial do homem, diante dos demais seres da natureza e da Medicina, diante das outras atividades humanas na sociedade, e que produziu o humanismo greco-romano;

c)

d)

e)

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FIDCIA confiana, segurana (CUNHA, 1998:457) FILOTECNIA significa amor a arte, com o sentido de ocupao ou profisso; quer dizer prazer, que o profissional deve dedicar-se ao seu trabalho com amor; o amor do mdico pela Medicina (S JR, 2000:73).12

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A tica hipocrtica essencial para o entendimento do desenvolvimento e criao dos cdigos de tica Mdicas. Ela atual no que tange ao respeito ao sigilo, mas obsoleta no respeito autonomia do paciente, se integrando ao paternalismo. O captulo sobre tica Mdica, procura abarcar os conceitos de tica, moral, deontologia e diceologia, para finalmente enfocar a questo da tica Mdica. Os conceitos de tica e moral esto muito prximos e imbricados, dificultando sua definio. A deontologia e diceologia apesar de sempre juntas so facilmente desembaraadas por terem significados que se ope. A exposio de conceitos sobre tica finalizada sem revelar uma definio sinttica e absoluta sobre o tema, no entanto, possvel percebla dinmica e mutvel de acordo com o tempo e o espao analisado. tica Mdica seria, por conseguinte, o estudo da deontologia e diceologia dos mdicos. Nesta configurao estaria implcita a moral prtica e determinante das normas da prxis profissional, formatando seus limites. Poderia-se dizer que tica Mdica seria uma dimenso especial da tica, voltada para as questes morais da Medicina. A literatura aponta para a necessidade de regulamentao da atividade, visto que a profisso interage sobre o organismo de terceiros. A repercusso destes conceitos estudados neste captulo conduz necessidade da criao de normas de condutas para que o exerccio profissional no extrapole o direito do paciente e respeite sua autodeterminao. Este contorno permite que a Medicina possa ser exercida de forma digna, atravs de doutrinamento apropriado.

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Captulo 2BIOTICAA abrangncia da Biotica como disciplina nas diversas reas do conhecimento humano, principalmente nas cincias da vida, faz com que sua discusso e insero no currculo mdico sejam quase obrigatrias. interessante a pluralidade de opinies de profissionais oriundos de diferentes campos de atuao, discutindo temas que interessam conjuntamente a todos e ao mesmo tempo ao ecosistema. As descobertas cientficas atuais e as que esto por vir podem trazer inmeras transformaes ao mundo. Nesta linha de pensamento que os grupos de discusso de bioeticistas se mantm atentos, para que o progresso das cincias, seja consciente e coerente com o benefcio da coletividade humana. Contextualizao Antes de fazer um recorte histrico, importante contextualizar o problema, para entender melhor como ocorreram os fatos. As novas tecnologias trouxeram para a rea mdica, inmeros dilemas ticos. Questes relativas engenharia gentica, fertilizao in vitro, intervenes na herana gentica, transplantes de rgos e tecidos, assistncia em unidades de terapia intensiva com equipamentos de ltima gerao para manuteno e prolongamento da vida, colocaram o mdico diante de situaes inusitadas no relatadas especificamente em tratados de condutas. Como agir em situaes de risco em que dois pacientes necessitavam de um nico aparelho ventilatrio existente na unidade? Ou como lidar com famlias que so contrrias a transfuses sanguneas por crenas religiosas? Todos estes questionamentos extrapolam a cena privada da Medicina e dizem respeito ao ser humano como um todo na cena social, transformando questes que eram do foro profissional para o mbito poltico e social, pois se trata do destino da prpria humanidade. Como sujeito e inventor, o ser humano insacivel na curiosidade de novas descobertas e conhecimentos que inexoravelmente sero utilizados. As pesquisas cientficas no campo das cincias da vida no podem, nem devem ser obstaculizadas, porque seria um cerceamento da prpria liberdade do ser criador. Deste modo, no se trata de promover um estatuto tico no campo da pesquisa, porque anularia a liberdade criadora, motor de toda pesquisa. A eticidade sem limites levaria a uma indevida maleficao do prprio conhecimento (CORREA, 2000:9). H controvrsias neste entendimento, simultaneamente sinaliza para a colocao de limites e dificulta mant-los, porque dificultaria a evoluo do conhecimento. Entretanto, mantm a liberdade com responsabilidade como soluo plausvel para contornar estas dificuldades. Buarque (1993:20-3) no texto Da modernidade tcnica modernidade tica, descreve que a mudana de direcionamento do final do sculo XX, levou a humanidade

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a preocupar-se com problemas ticos foi devido a dois sustos. O primeiro foi um susto positivo, derivado da concretizao das realizaes tcnicas atingidas nos cem ltimos anos, muito alm da expectativa. O segundo decorrente do primeiro, foi um susto negativo relativo ao fracasso da utopia das realizaes tcnicas que no corresponderam s melhoras esperadas na vida da maioria dos seres humanos. As cincias mdicas conseguiram quase que dobrar a vida das pessoas, adiando o envelhecimento, entretanto, no conseguiu fazer com que estas vidas mais longas fossem certamente mais felizes. O autor ainda reflete sobre a segregao que ocorre entre pases ricos e pobres, afirmando que os ricos dos pases ricos aceitam com naturalidade os ricos oriundos dos pases pobres. Entretanto, internamente nos pases pobres os ricos recusam aproximao com seus compatriotas pobres. Desta forma, forma-se uma nao de ricos e outra de pobres independente da localizao fsica dos Estados. H apenas dois caminhos para a sociedade atual: a explicitao de uma sociedade de apartheid ou de uma modernidade alternativa subordinada a princpios ticos (BUARQUE, 1993:33). As dvidas trazidas pelo autor so relevantes na medida em que se sabe que a tecnologia tem custo e s est disponvel para algumas camadas da sociedade. Na Medicina tambm os elevados gastos das novas tcnicas de diagnstico e teraputica trouxeram para a humanidade as mesmas dificuldades apontadas pelo autor. Ou seja, as descobertas cientficas no se transformaram na panacia esperada, tornando a Medicina cara e inacessvel para os menos favorecidos. Todos estes problemas esto interligados com a apropriao da medicina pelo capital, fazendo com que a sade, assim como a educao, faa parte da mesma categoria de bens de consumo. Origem A histria da Biotica ao mesmo tempo recente e contraditoriamente longa, devido ao mosaico de proposies e com a perspectiva de tantas reas de estudo. Ao contrrio da cincia moderna que tende a compartimentalizar o conhecimento, a Biotica abarca tudo e a todos, entretanto, dentro de um pensamento crtico e contextualizado. Segundo o Dicionrio de tica e Filosofia Moral de Canto-Sperber: Biotica uma palavra nova surgida por volta de 1970 nos Estados Unidos da Amrica, cristalizando movimentos, aspiraes, discursos e prticas que questionam e pem em causa os avanos das tcnicas biomdicas. Quer seja descrita como campo de questes, disciplina nova ou cincia das interfaces, a Biotica suscita ainda muitas discusses sobre seu estatuto, seus mtodos e seus objetivos, tanto nos Estados Unidos como na Europa (CANTO-SPERBER, 2003:165). A Biotica pode ser definida como uma cincia que une temas muitas vezes distantes e polmicos. Foi criada em 1971 pelo mdico americano Van Rensselaer Potter13 com o intuito de orientar o uso dos avanos tecno-cientficos nas reas mdicas e biolgicas, antevendo o conjunto de desafios que emergiam para a humanidade (REICH, 1994:4). Da bios representando o conhecimento biolgico e ethos o conhecimento dos valores humanos. Nasce em pocas de profundas transformaes na Medicina e agregou-se 13

Van Rensselaer Potter mdico, oncologista da Universidade de Winsconsin, Estados Unidos.

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matria de tica Mdica na tentativa de solucionar questes atuais que possam atingir direta ou indiretamente o bem-estar do ser humano (ATHANZIO et al., 2004; MUOZ et al., 2003). Ambos os autores referem-se a Biotica apenas na viso da Medicina, outras fontes demonstram que todos os conhecimentos cientficos podem estar entranhados com a Biotica e no apenas s cincias mdicas. Potter cunhou o neologismo bioethics utilizando-o em dois escritos. Primeiramente, num artigo intitulado Bioethics, science of survival (1970: 27-153) e em 1971 no livro Bioethics bridge to the future, publicao que Potter dedicou a Aldo Leopold, renomado professor na Universidade de Wisconsin, que pioneiramente comeou a discutir uma tica da terra. Na contracapa do seu livro lemos: Ar e gua poluda, exploso populacional, ecologia, conservao muitas vozes falam, muitas definies so dadas. Quem est certo? As idias se entrecruzam e existem argumentos conflitivos que confundem as questes e atrasam a ao. Qual a resposta? O homem realmente colocou em risco o seu meio ambiente? Ele no necessita aprimorar as condies que criou? A ameaa de sobrevivncia real ou trata-se de pura propaganda de tericos histricos? (POTTER apud PESSINE, 2001: 348). Atravs desta leitura percebe-se nitidamente que Potter tinha preocupaes com a sobrevivncia do ser humano no planeta. Estas questes lhe fizeram refletir e questionar sobre os avanos da cincia distantes das normas, sistematizaes e principalmente, da conscientizao. importante registrar que existe uma outra pessoa que reivindicou a paternidade do termo Biotica: Andr Hellegers14, que seis meses aps a apario do livro pioneiro de Potter, utilizou a expresso no nome do novo centro de estudos: Joseph and Rose Kennedy Institute for the Study of Human Reproduction and Bioethics. Hoje, este centro conhecido simplesmente como Bioethics Kennedy Institute. Hellegers animou um grupo de discusso de mdicos e telogos (protestantes e catlicos) que viam com preocupao crtica o progresso mdico tecnolgico que apresentava enormes e intrincados desafios aos sistemas ticos do mundo ocidental. Para Reich15 (1978, 1995) o legado de Hellegers est no fato de que ele entendeu sua misso em relao a Biotica como uma pessoa ponte entre a Medicina, a filosofia e a tica. Este legado o que acabou se impondo nos ltimos vinte e cinco anos, tornando-se um estudo revitalizador da tica Mdica. Portanto, no momento de seu nascimento, a Biotica teve uma dupla paternidade e um duplo enfoque (PESSINE, 2001:349-50). Neste tpico, nota-se que o aparecimento da Biotica foi simultneo e em lugares diferentes, por dois autores que demonstraram preocupao com as questes relativas ao desenvolvimento descontrolado e desmedido das cincias. Diego Gracia (apud PESSINE, 2001: 349-50) fala de problemas de macro-Biotica, com inspirao na perspectiva de Potter, e de problemas de micro-Biotica ou Biotica clnica, com clara inspirao no legado de Hellegers. Potter no deixou de expressar sua decepo em relao ao curso que a Biotica seguiu. Reconheceu a importncia da14 15

Andr Hellegers mdico, obstetra, fisiologista e demgrafo holands, da Universidade de Georgetown, em Washington, DC. Reich historiador e organizador da Encyclopedia of Bioethics.

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perspectiva de Georgetown, no entanto, afirmou que: minha prpria viso da Biotica exige uma viso muito mais ampla. Pretendia que a Biotica fosse uma combinao de conhecimento cientfico e filosfico, o que mais tarde chamou de Global Bioethics e que no fosse simplesmente um ramo da tica Mdica aplicada, como vinha sendo entendida em relao Medicina. Assim sendo, a Biotica foi criada para orientar o uso dos avanos cientficos e tecnolgicos na rea mdica e biolgica, enfatizando as novas tecnologias disponveis para os seres humanos, em todas as reas. Desde o seu surgimento atravs de um contedo que abrange os conhecimentos de tica Mdica e de sua caracterstica de transdisciplinaridade, traz prxis cientfica um horizonte de humanidade e a possibilidade da extino das posturas legalistas em relao prtica mdica (CORREIA, 1994:34). A contundncia dos avanos cientficos e tecnolgicos no campo da Biomedicina, somada com a longa tradio da tica Mdica, ajudou a fazer crer que a Biotica era uma nova considerao da tica Mdica. Nova, quase que apenas porque introduzia as questes ou casos trazidos pela recente tecno-cincia, os quais no estavam previstos em consideraes anteriores. Alm disso, a enorme produo cientfica nesse mbito fortalecia a idia de que realmente a Biotica era uma questo de tica biomdica (ANJOS, 1996:131-43). Este autor justifica o entendimento inicial de Biotica como disciplina exclusiva da rea mdica, apesar disso, com a evoluo e a abrangncia dos conhecimentos, percebeu-se que todos os campos cientficos poderiam abra-la, ou o inverso, ela poderia abarcar todas as reas de estudo e pesquisa. Potter fez uma crtica contundente compartimentalizao e ao distanciamento social da produo cientfica, contudo, o mais importante da proposta futurista de Potter a idia da constituio de uma tica aplicada s situaes da vida, como o nico caminho para a sobrevivncia da espcie humana (DINIZ, 2002:12). No perodo inicial de surgimento da Biotica dois acontecimentos contriburam para que ela fosse definida como um novo campo disciplinar: as denncias cada vez mais freqentes relacionadas s pesquisas cientficas com seres humanos e a abertura gradual da Medicina que de uma profisso fechada e autoritria, passou a dialogar com os que David Rothman (1991:40-2) denominou de estrangeiros em seu livro: Estrangeiros beira do leito: uma histria de como a Biotica e o direito transformaram a Medicina: Primeiro foram os filsofos, os telogos e os advogados, depois, os socilogos e os psiclogos, que passaram a opinar sobre a profisso mdica, entretanto, sob outras perspectivas profissionais. O autor refere que, de amigos e confidentes os mdicos e seus pacientes tornaram-se distantes, passando por um processo que ele denominou de estranhamento moral, que impulsionou de forma decisiva o nascimento da Biotica. Micro-histria da Biotica Diniz (2002:14-20) descreve o que ela chama de micro-histria da Biotica, quando o filsofo Albert Jonsen16 (1998) pontua trs acontecimentos que exerceram um papel importante na consolidao da disciplina. Primeiro foi a divulgao do artigo de Shana Alexander17, que contava a histria da criao de um comit de tica hospitalar em Washington, nos Estados Unidos (Comit de Admisso e Polticas do Centro16

Albet Jonsen Professor emrito de tica em Medicina, da Escola de Medicina da Universidade de Washington. ltimos livros publicados: A Short History of Medical Ethics (Oxford University Press, 1999). e The Birth of Bioethics. The New Medicine and the Old Ethics (Harvard University Press, 1990) e Responsibility in Religious Ethics (Corpus Books, 1971). 17 Shana Alexander - jornalista americana, que publicou o artigo Eles decidem quem vive, quem morre, na revista Life, em 1962 (DINIZ, 2002:15).

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Renal de Seattle), o Comit de Seattle, como se tornou conhecido, tinha como objetivo definir as prioridades para a alocao de recursos para os pacientes renais. Para Jonsen, esse, mais que qualquer outro evento, assinalou a ruptura entre a Biotica e a tradicional tica Mdica. Em 1966 ocorreu o segundo evento dessa micro-histria, quando Beecher18 compilou cinqenta artigos envolvendo seres humanos em condies de desrespeito, foram os chamados, cidados de segunda classe que eram: internos em hospitais de caridade; adultos e crianas com deficincias mentais; idosos; pacientes psiquitricos; recmnascidos; presidirios; etc., enfim, pessoas incapazes de assumir uma postura moralmente ativa diante do pesquisador e do experimento. Beecher publicou em Ethics and clinical research, vinte e dois relatos destas pesquisas realizadas com recursos provenientes de instituies governamentais e companhias de medicamentos, em que o alvo das pesquisas eram estes cidados acima citados, sem autonomia e sem direito de fazer escolhas. Alguns exemplos destes casos ficaram famosos, como o caso da retirada intencional do tratamento base de penicilina em operrios com infeces por estreptococos, para permitir o estudo de meios alternativos de prever suas complicaes (BEECHER, 1996:1354-60). O terceiro evento que Jonsen selecionou como significativo para a histria da Biotica um outro avano mdico. Em 1967, Christian Barnard, um cirurgio cardaco da frica do Sul, transplantou o corao de uma pessoa com doena cardaca terminal, porm, ainda com vida. Esta situao levou a Escola Mdica da Universidade de Harvard, em 1968, a procurar definir critrios para a morte enceflica, a fim de controlar casos semelhantes a esse (DINIZ, 2002:18). No Brasil o CFM baixou uma resoluo (CFM n1346/ 97) que define estes critrios. Diniz (2002:20) descreve que por conta dos avanos cientficos [...] a Medicina estava cada vez melhor, mas que os pacientes estavam cada vez piores. Foi deste modo que ocorreu a ruptura com o padro da tica beira do leito, permitindo o surgimento da Biotica como uma instncia mediadora e democrtica para os conflitos morais. Todos estes episdios precipitaram o nascimento da Biotica, fazendo uma distino bem clara entre tica Mdica e Biotica. A tica Mdica restrita aos profissionais mdicos, j a Biotica sem impor limites participao de diversos profissionais interessados em seu estudo e em suas discusses. Vale ressaltar que se abria para a humanidade naquele momento, outro ambiente de vida com novas perspectivas. Este novo espao, cada vez mais se tornaria o resultado de aes humanas que interferem nos processos biolgicos em geral. Talvez seja til lembrar a descoberta do DNA na dcada de 50 como um dos importantes elos da cadeia de evolues cientficas que constituiu a revoluo biolgica subseqente. Os transplantes, a reproduo assistida, a biogentica foram avanando gradativamente nas pesquisas e aplicaes cientficas e tecnolgicas, descortinando inmeras dificuldades na sua utilizao. Hellegers assumiu o termo Biotica como campo de estudo e como movimento social. Via as questes que ali se levantavam como um desafio pertinente aos mundos da academia, das cincias biomdicas, do governo e da mdia. O trajeto que a Biotica seguiu no foi a imaginada por Hellegers. A proposta de Potter que evoluiu definindo o entendimento atual sobre o assunto.18

Beecher - mdico anestesiologista, colecionador de relatos de pesquisas cientficas publicadas em peridicos internacionais, como: New England Journal of Medicine; Journal of Clinical Investigation; Journal of American Medical Association; (DINIZ, 2002:15).

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Em ambas as percepes e nfases ficam evidenciadas uma abrangncia global do termo Biotica para alm das aes biomdicas. Potter e Hellegers embora no empreguem o termo de globalidade, entendem a Biotica como global em trs sentidos: a) enquanto diz respeito a toda a terra; uma tica referente ao bem de todo o mundo; b) enquanto conjunto includente de todos os temas ticos nas cincias da vida e cuidados de sade, temas clssicos da tica do meio-ambiente e da Biomedicina; c) enquanto viso abrangente dos mtodos de aproximao desses temas, incorporando todos os valores relevantes, conceitos, modos de pensar e disciplinas (REICH, 1994:24). Esta concepo abrangente de Biotica intua a necessidade de se pensar a vida incluindo a tica ecolgica e ambiental, as questes ticas das cincias ligadas vida e as prprias concepes e fatores que fundam os valores ticos. Os anos seguintes, isto , as dcadas de 80 e 90, ampliaram ainda mais a percepo da implicao dos campos aludidos por Potter e Hellegers, para a construo de uma sobrevivncia digna e de qualidade. interessante notar em um ambiente norte-americano, onde a polarizao em torno da tica biomdica tem sido to grande, a valorizao de perspectivas mais globais para a Biotica: Sem uma pauta global para a Biotica, a Biotica concebida mais estreitamente, orientada para a Medicina, mais facilmente se torna uma restrita lista de assuntos desconexos e de argumentos sobre tais assuntos; tende a medicalizar todo o campo da Biotica, caracterizando questes e percepes segundo a cultura mdica americana dominante. Uma orientao mdica excessiva tem tambm levado a marginalizar a tica do cuidado, outros profissionais da sade e especialmente as ticas no-profissionais do doente e do povo simples, suas famlias, amigos e comunidades que deles cuidam (REICH, 1994:28). Esta citao traduz a preocupao do autor em que o assunto no ficasse restrito aos meios mdicos e de outros profissionais da sade, impossibilitando a participao dos envolvidos no caso, como o prprio paciente e seus familiares. A busca pela autonomia do paciente necessita sobretudo do esclarecimento sobre o caso, permitindo sua preferncia. A pauta global referida pelo autor pertinente aos temas relacionados com a Medicina e uma viso muito contextualizada do modos vivendi, da populao e dos mdicos estadunidenses. Mais claramente ainda se apontam as ingerncias polticas e ideolgicas que se introduziriam na Biotica para que a mesma tivesse abertura e abrangncia suficientes para detectar os condicionamentos culturais e polticos com que a vida tratada. Sintetizando esses conceitos, Reich (1994:28-9) afirma que: A Biotica concebida mais estreitamente corre o perigo de se caracterizar moral e intelectualmente pelo meio que estimula seu desenvolvimento. Sua invadente preocupao com a sobrevivncia do indivduo humano em momentos crticos de cuidados (mdicos) drena as energias morais da Biotica dos temas mais amplos da sobrevivncia hu-

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mana e qualidade de vida e sade em perspectivas demogrficas e ambientais. Alm disso, sem a perspectiva global quanto sade e s cincias da vida, o trabalho dos bioeticistas mais facilmente se torna definido por instituies mdicas. O autor defende a inexistncia de regras para a Biotica, propondo muitos caminhos e possibilidades. H tambm uma clara preocupao para que a Biotica no seja exclusividade do meio mdico. Esta inquietao parece demasiada, demonstrando seu receio com a tentativa da limitao da interferncia de no mdicos em assuntos mdicos, por parte dos ltimos. Ou seja, o autor acredita que possvel pessoas de fora da rea mdica opinarem e discutirem temas mdicos. Quanto a este entendimento h controvrsias, nas diversas situaes e cada uma tem uma singularidade prpria. Em algumas circunstncias possvel ampliar os debates com profissionais de fora da rea, outras vezes torna-se difcil pelas obrigaes impostas pelo prprio sigilo profissional e tambm por questes de conhecimento tcnico. Princpios Em 1974, formou-se nos Estados Unidos, a Comisso Nacional para a Proteo de Sujeitos Humanos na Pesquisa Biomdica e Comportamental, responsvel pela tica das pesquisas relacionadas s cincias do comportamento e Biomedicina. Aps quatro anos, o resultado do trabalho da comisso ficou conhecido como Relatrio BELMONT,19 um documento que ainda hoje um marco histrico e normativo para a Biotica. Por meio desse relatrio foi possvel identificar a proposta da comisso: articular os princpios ticos, supostamente universais, que promoveriam as bases conceituais para a formulao, a crtica e a interpretao de dilemas morais envolvendo a pesquisa cientfica (REICH, 1995: 2767-73). Os participantes do Relatrio Belmont justificaram a eleio de trs princpios ticos, dentre um universo de possibilidades, argumentando que a escolha baseava-se em uma estrutura profunda do pensamento moral. Para eles, os princpios ticos escolhidos pertenciam histria das tradies morais do ocidente, havendo uma relao de dependncia mtua entre eles, fato que garantiria sua harmonia quando aplicados, Foram, portanto, escolhidos os seguintes princpios: a) Autonomia: Respeito pelas pessoas; este princpio carrega consigo pelo menos outros pressupostos ticos: os indivduos devem ser tratados como agentes autnomos e as pessoas com autonomia diminuda (os socialmente vulnerveis) devem ser protegidas de qualquer forma de abuso. Do ponto de vista prtico, isso significa que a vontade deve ser um pr-requisito fundamental para a participao na pesquisa cientfica, fazendo com que a concesso do consentimento somente tenha validade aps a informao e a compreenso sobre a totalidade da pesquisa a ser realizada; b) Beneficncia e No-Maleficncia: dentre os trs princpios escolhidos, esse o que maior referncia faz histria da deontologia mdica no ocidente. A beneficncia deve ser vista como um compromisso do pesquisador na pesquisa cientfica para assegurar o bem-estar das pessoas envolvidas direta ou19

National Commission for the Protecton of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research. The Belmont Report: ethical principles and guidelines for the protection of the human subjects of research.

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indiretamente com o experimento. A No-Maleficncia - remete ao princpio hipocrtico primo non nocere, ou seja, primeiro no se deve causar dano. Na prtica, estes princpios propem uma avaliao sistemtica e contnua da relao risco-benefcio para as pessoas envolvidas; Justia: esse princpio o que mais intimamente est relacionado s teorias c) da filosofia moral em vigor nos Estados Unidos por ocasio da elaborao do relatrio. Eqidade social, entendida como o filsofo John Rawls20 (1999) vinha propondo, isto , como o princpio do reconhecimento de necessidades diferentes para a defesa de interesses iguais, era uma das grandes novidades apresentadas pelos membros da comisso. (DINIZ, 2002:21-3). Vale resgatar que o significado de eqidade no o mesmo de igualdade. A igualdade, tal como proposta pela revoluo francesa e incorporada s estruturas simblicas do Ocidente h mais de 200 anos, no pode continuar sendo o ponto de partida ideolgico para a construo de relaes ticas. A igualdade ignora as desigualdades concretas e aviltantes que marcam hoje a vida da maior parte das populaes do mundo (GARRAFA, 2002:3). Neste sentido a justia social no pode ficar horizontalizada, para ser autntica teria que tratar desiguais de diferentes formas. Conseqentemente, dando mais a quem precisa mais e menos a quem precisa menos. Seria o reconhecimento da cidadania atravs da promoo dos direitos humanos mais elementares. A teoria principialista, como ficou conhecida esta teoria baseada nos princpios, ocorreu a partir da publicao dos Princpios da tica e Biotica, da autoria do filsofo Tom Beauchamp e do telogo James Childress, em 1979. Foi quando a Biotica consolidou sua fora terica, especialmente nas universidades estadunidenses. Este livro foi a primeira tentativa de instrumentalizar os dilemas relacionados s opes morais das pessoas no campo da sade e da doena ou, nas palavras dos autores, [...] este livro oferece uma anlise sistemtica dos princpios morais que devem ser aplicados biomedicina [...]. A proposta terica de Beauchamp e Childress seguia a trilha aberta pelo Relatrio Belmont alguns anos antes, defendendo a idia de que os conflitos morais poderiam ser mediados pela referncia a algumas ferramentas morais, os chamados princpios ticos (DINIZ, 2002:25). A teoria principialista tornou-se hegemnica e somente ao final da dcada de setenta que apareceram as primeiras crticas, combatendo arduamente a viso limitada e normativa do principialismo. Estes princpios no esto de acordo com o esprito original da disciplina, de gerar uma nova perspectiva filosfica e prtica sobre o conflito moral (DINIZ, 2002:34-5). As tendncias atuais da Biotica se formataram a partir das crticas contra a teoria principialista. Esta nova abordagem ampla e abriga muitos conceitos. Foi construda a partir da tessitura da cultura e da contra-cultura contempornea e contempla a diversidade humana. Tendncias atuais Como ficou documentado a Biotica no ficou restrita a teoria principialista, evoluindo atravs do contexto histrico de seus 35 anos de criao. Atualmente, estes princpios esto sendo criticados por autores contemporneos, pelo fato de terem sido importados dos pases hegemnicos, sem considerar o contexto scio-cultural e econmico do pas receptor.20

John Rawls - filsofo que defende em A Theory of