Ética e vergonha na cara

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ÉTICA E VERGONHA NA CARA!

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livro de filosofia brasileira. impossível ser mais modernos com escândalos nacionais

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  • TICA E VERGONHA NA CARA!

  • MARIO SERGIO CORTEllA ClVIS dE BARROS FIlHO

    7 M A R E SP A P I R U S

    TICA E VERGONHA NA CARA!

  • Cortella, Mario Sergiotica e vergonha na cara!/Mario Sergio Cortella, Clvis de

    Barros Filho. Campinas, SP: Papirus 7 Mares, 2014. (Coleo Papirus Debates)

    ISBN 978-85-61773-48-9

    1. Corrupo 2. Dilogo 3. Educao moral 4. tica 5. tica poltica 6. Famlia 7. Valores (tica) I. Barros Filho, Clvis de. II. Ttulo. III. Srie.

    14-00436 CDD-170

    CapaCoordenao

    TranscrioEdio

    Diagramao Reviso

    1a Edio 2014 Proibida a reproduo total ou parcial da obra de acordo com a lei 9.610/98. Editora afiliada Associao Brasileira dos Direitos Reprogrficos (ABDR). DIREITOS RESERVADOS PARA A LNGUA PORTUGUESA: M.R. Cornacchia Livraria e Editora Ltda. Papirus 7 Mares R. Dr. Gabriel Penteado, 253 CEP 13041-305 Vila Joo Jorge Fone/fax: (19) 3272-4500 Campinas So Paulo Brasil E-mai l : edi [email protected] www.papirus.com.br

    Fernando CornacchiaAna Carolina FreitasNestor TsuAna Carolina Freitas e Aurea Guedes de Tullio VasconcelosDPG EditoraIsabel Petronilha Costa

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    ndice para catlogo sistemtico:

    1. tica: Filosofia: Tertlia 170

    Exceto no caso de citaes, a

    grafia deste livro est atualizada

    segundo o Acordo Ortogrfico da

    Lngua Portuguesa adotado no Brasil a partir de 2009.

  • De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustia, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mos dos

    maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.

    Rui Barbosa

  • SUMRIO

    A tica da convenincia ........................................... 9

    A iluso moral do foco no resultado ........................ 17

    Qual o resultado que torna justo o caminho? ....... 26

    tica como instruo ............................................. 37

    No h vida sem escolha, e no

    h escolha sem valor ............................................. 45

    Corrupo: Consequncia do sistema? .................. 63

    Uma questo de escolha ........................................ 71

    A corrupo e o sistema poltico ............................ 78

    A corrupo e a famlia .......................................... 84

  • N.B. Na edio do texto foram includas notas explicativas no rodap das pginas. Alm disso, as palavras em negrito integram um glossrio ao final do livro, com dados complementares sobre as pessoas citadas.

    vergonhoso no ser querido ................................ 95

    Glossrio ............................................................. 103

  • 9A tica da convenincia

    Mario Sergio Cortella impossvel, numa conversa que envolve o tema da corrupo, deixar de atrelar a ele a questo do relativismo moral, da tica da convenincia se bom para mim, tudo bem. Gostaria de iniciar este nosso bate-papo lembrando um fato que ocorreu no final de 2012, em Navarra, Espanha, e que tomou propores considerveis ao ser divulgado.

    Em uma corrida de cross-country, o queniano Abel Mutai, medalha de ouro nos trs mil metros com obstculos em londres, estava a pouca distncia da linha de chegada e, confuso com a sinalizao, parou para posar para fotos pensando que j havia cumprido a prova. logo atrs vinha outro corredor, o espanhol Ivn Fernndez Anaya. E o que fez ele? Comeou a gritar para que o queniano ficasse atento,

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    mas este no entendia que no havia ainda cruzado a linha de chegada. O espanhol, ento, o empurrou em direo vitria.

    Bom, afora o ato incrvel de fair play, h uma coisa maravilhosa que aconteceu depois. Com a imprensa inteira ali presente, um jornalista, aproximando o microfone do corredor espanhol, perguntou: Por que o senhor fez isso?. O espanhol replicou: Isso o qu?. Ele no havia entendido a pergunta e o meu sonho que um dia possamos ter um tipo de vida comunitria em que a pergunta feita pelo jornalista no seja mesmo entendida , pois no pensou que houvesse outra coisa a ser feita que no aquilo que ele fez. O jornalista insistiu: Mas por que o senhor fez isso? Por que o senhor deixou o queniano ganhar?. Eu no o deixei ganhar. Ele ia ganhar. O jornalista continuou: Mas o senhor podia ter ganho! Estava na regra, ele no notou.... Mas qual seria o mrito da minha vitria, qual seria a honra do meu ttulo se eu deixasse que ele perdesse?. E continuou, ento, dizendo a coisa mais bonita que eu li envolvendo a questo da tica do cotidiano: Se eu ganhasse desse jeito, o que ia falar para a minha me?.

    Como me matriz de vida, fonte de vida, ela a ltima pessoa que se quer envergonhar. Porque tica tem a ver com vergonha na cara, com decncia, e, repito, a ltima pessoa que se quer envergonhar a me. curioso, mas at bandido pode ser prova disso. Por exemplo, j houve situaes de assalto a banco com refns em que o sujeito, mesmo com a polcia toda em volta fazendo o cerco, no se rende. A a polcia chama a

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    me dele. Ela chega, com a bolsinha no brao, e diz: Sai da, menino!. E ele sai.

    por isso que considero essa ideia da matriz do desavergonhar uma coisa extremamente inspiradora para que jamais venhamos a adotar isso a que me referi como tica da convenincia. Voc percebe isso, Clvis?

    Clvis de Barros Filho O tempo inteiro. A lgica do resultado, da meta e do sucesso acaba se impondo de tal forma que os procedimentos e a maneira de atingir um objetivo acabam sendo sucateados e colocados como uma questo menor. Isso que voc falou, Cortella, a respeito da me me faz lembrar dO banquete, de Plato. No primeiro discurso, Fedro diz que, se existisse uma cidade de amantes, ela seria perfeita e indestrutvel, porque no h nada mais vergonhoso do que uma pessoa fugir ou praticar uma atitude indigna diante de algum que ela ama. Ento, se houvesse mais afetos e mais preocupao, digamos, em no desonrar pessoas que nos querem bem, provavelmente teramos relaes melhores e uma sociedade melhor.

    A tica tem de ser tratada por um prisma de paixes, de emoes e de sensaes. Tenho a ntida impresso de que, toda vez que estamos diante de dilemas existenciais, muito importante observarmos o duelo entre esperana e temor. Quer dizer, muitas vezes, temos a esperana de auferir bons resultados e at de minimizar custos e esforos com isso. Ento,

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    de um lado, a esperana um ganho de potncia a partir de uma situao imaginada que vantajosa, prazerosa, que boa, enfim. de outro lado, temos o temor, que justamente o contrrio, ou seja, o indivduo se apequena diante de uma situao imaginada, diante de uma consequncia nefasta que possa lhe acontecer. Muitas das atitudes indignas e desonrosas que observamos acabam sendo a vitria da esperana sobre o temor.

    Tratando diretamente da temtica da corrupo, temos o indivduo que se v diante da possibilidade de um fantstico enriquecimento mediante um esforo mnimo. claro que existe ali a possibilidade de ganho; ele imagina, num primeiro momento, todos os efeitos encantadores desse ganho, o que uma esperana esperana, repito, um ganho de potncia de vida determinado por uma situao imaginada, um contedo de conscincia. Mas, em seguida, ele vislumbra tambm a possibilidade de ser pego, de cair em desgraa, de se ver em situao muito ruim. E a se estabelece um duelo de afetos, como se fosse uma soma de vetores: de um lado a esperana de se dar bem e de outro o medo de se dar mal.

    Acredito que aqui que a questo das instituies e da sociedade se impe. Porque, se temos uma sociedade esgarada, incapaz de produzir temor sobre aqueles que pretendem auferir vantagens de situaes ilegais, indecorosas ou eticamente condenveis, acabamos, de certa maneira, estimulando um comportamento que no queremos.

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    Cortella Voc est empregando o termo esperana como fora vital, aquilo que impulsiona, aquilo que inspira. Curiosamente, do ponto de vista etimolgico, esperana, spes, significa o sopro, de onde vem tambm espirro. A origem de ambos os termos a mesma. Portanto, aquilo que impulsiona, que inspira... inclusive para o equivocado. E uma ideia de que gosto muito e que voc usou a da pessoa que, tendo o temor, se apequena.

    Os latinos usavam a expresso covarde, que acho muito forte, para caracterizar o indivduo que no vitorioso e que, em vez de se engrandecer, se apequena, se acovarda diante de uma situao. Os romanos o chamariam de pusilnime a pusilanimidade sendo um defeito de carter.

    Em grande medida, quando pensamos em apodrecimento tico, isso nada mais do que uma forma de pusilanimidade e, usando o seu raciocnio, pusilnime seria aquele em quem a esperana venceu o temor, invertendo at o que seria o bvio... e que no to bvio, por isso gostei do modo como voc colocou. Mais at do que esperana, eu chamaria de expectativa. Portanto, no se trata da esperana como virtude, mas da esperana como uma expectativa de impunidade e de sucesso que ultrapasse o risco do temor, isto , uma expectativa de que o delito compense a eventual situao da penalidade recorrendo ao Dos delitos e das penas, de Beccaria, sculo XVIII.

    curioso, porque isso marca um pouco a nossa conduta em vrias situaes do dia a dia. Na sua percepo, Clvis,

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    quando voc diz que a tica uma emoo, que um impulso, supe que isso seja algo atvico, tal como considera Freud?

    Clvis Sim, estou absolutamente convencido de que a nossa essncia , de fato, uma potncia vital.

    Cortella Um gene egosta, para brincar com o ttulo de um livro do ateu Richard Dawkins.*

    Clvis Isso. de certa maneira, essa potncia oscila. Por exemplo, quando acordo de manh, muitas vezes estou indisposto e sem nenhum teso para a vida. Eu, que moro em So Paulo, saio de casa s seis e meia da manh, um horrio sem trnsito, e gosto das coisas que vou encontrando no caminho. Gosto do meu bairro. durante todo o meu trajeto em direo Cidade Universitria, onde dou aulas, observo tudo o que me rodeia, tudo o que vai acontecendo, e sinto que melhora o meu estado vital, a minha energia vital. J na Cidade Universitria, com seus grandes espaos, com suas grandes reas, encontro-me com os alunos e comeo a aula. Por volta das dez horas da manh, estou em cima da mesa, gritando, cheio de entusiasmo (eu gosto muito do que falo, e isso no arrogncia, mas condio de bem viver. O que posso fazer se me encanto com as coisas que falo?!).

    * O gene egosta. So Paulo: Companhia das letras, 2007. (N.E.)

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    O que aconteceu entre cinco e dez da manh? Houve um evidente ganho de potncia de agir. o que Espinosa chama de alegria, passagem para um estado mais potente do prprio ser. E o mundo que encontrei foi um mundo alegrador. determinou em mim um ganho de potncia de agir. claro que as coisas nem sempre continuam dessa maneira. Pode vir uma secretria enlouquecida me dizer que eu grito muito, que estou atrapalhando os outros professores, e a minha potncia de agir despenca. A isso chamamos de tristeza. Assim vou prosseguindo, e o mundo ora me alegra, ora me entristece, dependendo de como ele faz oscilar essa minha potncia de agir.

    Mas, no caso especfico da corrupo, existem os dois outros afetos a que me referi porque, afinal, afeto essa passagem, essa oscilao, a interpretao que nosso corpo d para aquilo que o mundo impe a ele, para aquilo que acontece com ele , a esperana e o temor.

    Como Espinosa define esperana? justamente um tipo particular de alegria. No uma alegria determinada por aquilo que encontramos no mundo, mas uma alegria determinada pelo que imaginamos dele. Espinosa chama essa esperana de paixo triste. E por qu? Porque, quando nos perdemos entre a esperana e o temor, que a perda da potncia determinada por um contedo de conscincia, estamos perdendo a oportunidade de nos reconciliarmos com o real e de nos deixarmos alegrar ou

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    entristecer. Ento, de certa maneira, esse o grande problema do indivduo que no espera o mundo chegar com sua carga de alegria ou de tristeza e acaba, de um modo ou de outro, antecipando e vivendo aquilo que Espinosa chama de flutuao da alma.