Ética e política num estado democrático de direito

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Capa: Domingos Barbosa da Silva

Ilustrações: Paulo Sérgio da Silva Monteiro

©. Copy Right O autor e ALPHA BETA SIGMA - Suécia 2013 ISBN 91 9711 20-6-2 E-mail : [email protected]

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António Barbosa da Silva

Ética e Política num Estado Democrático de Direito

Uma contribuição para a democracia em Cabo Verde, com especial ênfase na Ética

humanista, Ética cristã e Ética do senso comum

1990 -2012

ALPHA BETA SIGMA - Suécia

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Ética e Política num Estado Democrático de Direito

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Dedicatória Primeira dedicatória Aos emigrantes e a todos os cabo-verdianos que têm a consciência de que Cabo Verde pertence a todos nós. E também, a todos os amantes da liberdade e democracia, onde quer que estejam.

O grito do poeta como sinal de liberdade O poeta gritou para além do tempo e do espaço O poeta gritou na expectativa De ouvir um transcendente eco de esperança O poeta chorou mágoas de todos os ultrajados Esquecendo-se só do aliviar da sua própria dor. O poeta ouviu e viu coisas Que ninguém imaginara: Viu os cumes das grandes montanhas a resvalarem-se Os leitos dos rios a elevarem-se, Os vales e as ribeiras ‘a subir sumâ cuscus’ As colinas e outeiros aplanando-se E os homens cantando a liberdade! Então voltou o poeta a gritar novamente, Agora no tempo e no espaço, Pois, já há, ente os vivos do Telos, Lugares suficientes para todos os homens E até para a alma inquietante e destemida do poeta. (António Barbosa da Silva)

Segunda dedicatória Ao jornal cristão Terra Nova, o tão chamado jornalzinho da oposição, mas que na realidade é um jornal de liberdade, esperança, de promoção humana e da justiça social, pela sua inestimável e inesquecível contribuição para nascimento e desenvolvimento de um estado democrático de direito em Cabo Verde. Como o conteúdo deste livro foi publicado no Terra Nova entre 1993 e 2012, a melhor maneira de qualificar esta dedicatória é re-dedicar ao Terra Nova – do período já referido – o seguinte poema que me tinha sido dedicado, enquanto polemizava sobre princípios e valores éticos e espirituais com alguns autocognominados de melhores filhos de Cabo Verde, na década de 80, no seculo passado. O poema exprime humilde e fervorosamente o ideal ético e o valor espiritual que o Terra Nova tem vindo a transmitir ao povo cabo-verdiano.

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Um poema diferente? Para António Barbosa da Silva – Uppsala, Suécia – QUISERA ESCREVER UM POEMA DIFERENTE: Para se ler no Cabo Verde das Ilhas no Cabo Verde pelos rincões do Mundo no Cabo Verde do fundo de cada coração sensível porque poeta... capaz portanto de se alinhar com expressões que brotam da alma qual água borbulhante de uma nascente. QUISERA ESCREVER UM POEMA DIFERENTE: mas ele ficaria salpicado de lágrimas condensadas num céu de desventura... lágrimas pingando no deserto à espera que nasça ventura! E eis que se ouvem gargalhadas a escarnecer os termos da inocência porque a «palavra branda» que enaltece a ternura «evoluiu» para incoerência na tentativa de criar o enlevo de exaltar o Ideal, o Belo e Delicado: elementos expulsos como "Estrangeiros" «Personas non Gratas» sem lugar ao sol nos domínios do «Modernismo»! QUISERA ESCREVER UM POEMA DIFERENTE: que servisse de consolo aos «filhos do meu povo» todavia... no tumultuar de ideias contraditórias Achei-me qual Jeremias, o Profeta, a desejar... «que minha cabeça se tornasse em tanque para chorar» copiosamente:

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a secura da alma sufocada pelos ventos da estiagem: Produzindo abrolhos e germinando agruras ao invés de doçuras de uvas... ...e morangos: Inversão de valores trocando o perfume das flores pelo cheiro da Terra ferida que se tornou corrompida. QUISERA ESCREVER UM POEMA DIFERENTE: ao perceber a busca de harmonia na desarmonia a tentativa de concertos em desacertos... e que a música saudosista e bela expressão íntima e suave dos Ilhéus vai sendo atropelada pelos ruídos do inferno da droga... ...e assim... não faz vibrar as cordas do violão nem ressoar as notas do violino na maviosa orquestra - a sinfonia da vida! QUISERA ESCREVER UM POEMA DIFERENTE: e por vezes desejei levantar a voz para trautear uma canção Porém... ao me lembrar de Israel junto aos rios da Babilónia, sentindo destoar as notas dos meus instrumentos pendurei a minha harpa nos salgueiros da desilusão a suspirar pelas terras de Sião! Contudo, meu Irmão: podemos escrever um Poema Diferente nas folhas do Silêncio Criativo nas pedras do coração confiante percorrendo o nosso caminho. Podemos interpretar o Poema falando ao irmão que ficou à margem à criança abandonada ao velho desprezado e à mulher vilipendiada.

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Buscando a solidão e a calma traremos o Poema esculpido no rosto - «o espelho da alma". E de olhos no Horizonte – no azul do infinito esperemos que o Poema Diferente deixe perceber na nuvem distante ainda que débil, promessa da Mudança mas não se desvaneça no torvelinho do tempo! Antes se façam gotas refrescantes a penetrar no íntimo de cada conterrâneo. E que as mesmas gotas produzem frutos... frutos de Mudança Verdadeira Numa Vida Diferente! (António Monteiro Barbosa1)

1 António Monteiro Barbosa foi professor do Seminário Nazareno, em S. Vicente e é primo de António Barbosa da Silva.

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Índice

Parte I: Prefácio e introdução geral Prefácio ............................................................................................................... 14 Introdução geral .................................................................................................. 16

Parte II: O valor e a dignidade da pessoa humana, verdade,

justiça e democracia 1. Que diferença existe entre um corvo e o ser humano? ........... 1Erro! Marcador não definido. 2.O anti-semitismo tornou-se mais agressivo depois das elições ..…………………………… ................................................................................. 23 3. Graças a Deus, os descendentes de judeus estão bem acompanhados ............... 29 4. O povo e a sua necessidade – entre a realidade da vida e o estratagema da ideologia política ................................................................................................. 33 5. A dureza da vida e o dilema do pobre ................................................................ 36 6. Deste lado a verdade é completamente diferente .............................................. 38 7. A responsabilidade do cidadão numa democracia em gestação ......................... 42 8. Cabo Verde precisa de uma terceira força política ............................................. 47 9. Ainda sobre a nossa democracia – mais vale um pássaro na mão do que mil a voar .................................................................................................................... 51 10. Votar livremente de consciência limpa ........................................................... 54 11. Como vai a justiça em Cabo Verde? ................................................................ 60

Parte III: Relacionamento humano, liderança e temas éticos 12. O relacionamento humano autêntico e o desenvolvimento integral ............... 71 13. O Conceito da Ética, o conceito do homem, o conceito da realidade e as suas

inter-relações. ..................................................................................................... 77 14. Relação entre os conceitos de moral, Ética e cultura ...................................... 84 15. Ética normativa – quatro teorias fundamentais .............................................. 94 16. Ética analítica, Meta-Ética ou metafísica da Ética ...........................................122 17. A situação paradoxal do homem pós-moderno .............................................135

Parte IV: Problemas existenciais ou antropológicos e universais 18. Qual é o valor e o sentido da vida humana? ..................................................139

Parte V: Língua, cultura e identidade cabo-verdianas

19. A relação entre o crioulo e o português .........................................................146

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20. Crioulo contra português – será ditadura contra democracia? ........................150 21. Português, uma língua oficial para quem? .....................................................153 22. A ‘esquizofrenia’ doe ex-colonizados em relação à Europa ............................156 23. Cabo Verde no triângulo África, Europa e as Américas ...................................160 24. Turismo: vantagens económicas, neocolonialismo ou Apartheid? ..................166 25. Ensino, competência e pedagogia – quo vadis Africa? ....................................170 Epílogo ...............................................................................................................173 O Curriculum Vitae do Autor ...............................................................................177 Bibliografia .........................................................................................................187

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Summary

This book is a collection of some of my articles written in the monthly Catholic journal Terra Nova from 1991 to 2012. I have two purposes for writing this book. First, I want to create a retrospection of what has happened since the introduction of democracy in Cape Verde on January 13, 1991, when for the first time free elections were held on our islands, resulting in party pluralism that now constitutes the base of our democracy.2 Secondly, I desire to share with all Cape Verdeans certain fundamental aspects of what I have written during the past two decades about various topics relating to the challenges facing us in the development of Cape Verde. These topics include the issues of health, social justice and democracy, the implementation of which should be based on a humanistic Christian ethic that is essential in promoting the dignity of and respect for all Cape Verdeans. My reflections have always had as their main focus the issue of development in Cape Verde, particularly on the issues of public health and human rights, specifically the rights to life, personal security, liberty and freedom of speech. My articles published in Terra Nova before January 1991 were compiled in the anthology A Odisseia Crioula (The Creole Odyssey), edited jointly by my brother Domingos Barbosa da Silva and myself.3 These articles were written at different times and consist of disparate themes, addressed to various audiences depending on the socioeconomic and political environments in which they were written. In this book I have attempted to group the texts in a way that builds a coherent narrative—simplifying, clarifying and developing certain passages, which for various reasons I was unable to do at the time of their publication. In light of these goals, I do not give preference to the chronology of the selected articles, but rather to their content. I have had to modify some of the articles in an attempt to re-contextualize them into a new context, after they have circulated in different contexts for decades. Because of this the content of these articles will appear more general than specific, the value of them more or less permanent and non-contingent.

What the selected articles have in common

The themes contained in this book, though varied, are all viewed from the perspective of

normative ethics. Normative ethics deals with what is considered good and evil, just and

unjust, acceptable and unacceptable. I apply these ethical standards to the issues of

human dignity, the fundamental rights and duties of every human individual—without

distinctions made on the grounds of race, sex, socioeconomic status, color, politics or

religion. From this ethical viewpoint I then look at the Cape Verdean context – particularly

to the areas of immigration, public health, democracy, education and tourism. I

demonstrate the value of these issues in light of principles, norms and ethical values that

are regarded as immutable and universally valid – applicable to all human beings –

especially the principles and values of Christian ethics, because we as Cape Verdeans are

2 By “democracy” I refer to the democratic state of law, meaning, inter alia, a state in which no individual is above the law, serving to protect the rights and freedoms of citizens by prescribing their fundamental legal and moral rights and duties. 3 Oslo: Alpha Beta Sigma, Norway, 1993.

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(mostly culturally) Judeo-Christians.

This book is addressed to all Cape Verdeans, especially those who long to write articles and books on these subjects but for various reasons do not do so. I hope therefore that a number of the Cape Verdeans who read this book are open to identifying themselves with what I describe as common values, ideals, and aspirations of all the people of Cape Verde. However, I recognize that everyone has the right to have and show his or her own opinion about the widely varying themes in this book. I highly recommend that, whether reacting positively or negatively to what I write, that the reader should communicate his or her reactions to the rest of us Cape Verdeans. Finally, to those of you who ask what on earth prompted me to write these articles, I will rely on a quote by Eduardo Lourenço as my response: "The instinct that drives and nurtures all writing is a crazy person’s dream."4

4 Namora, F. 1983, p. 9.

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Parte I

Prefácio e introdução geral

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Prefácio

Quando se fala de intelectuais cabo-verdianos e suas obras, encontra-se inserido entre eles um que merece ser intitulado de Crisóstomo5 cabo-verdiano, um homem que coabita com a realidade da Terra-mãe, lado a lado com a da diáspora cabo-verdiana. Ele pega das comezinhas realidades do quotidiano, da região setentrional da Europa, onde habita, e tem soluções para os problemas que torturam o homem, transformando-se num lutador por excelência, um pragmático de gema. A ascendência de ABS é bastante modesta. É filho primogénito de Teresa Barros da Silva (vulgo Didi di Dóia) e de Manuel Vieira Barbosa da Silva (vulgo Ireno). Neto paterno de Sebastião Barbosa da Silva (vulgo Tchocthón de Lili) e materno de Clara Vieira de Andrade (vulgo nha-Tchubinha di Nhonton-mamá). Neto materno de Izidora de Barros e de António Sabino Baptista (vulgo Nhontoninho Nhosabino). Nascido a 17 de Janeiro de 1944, no sítio de Monte Tabor, na Ilha do Fogo, Cabo Verde, num ambiente relativamente humilde e tacanho, foi grandemente influenciado pelo comerciante e intelectual Sr. António José do Rosário, compadre e amigo do pai, e foi iluminado pelos lampejos divinos, tendo prestado atenção e ouvido à voz das brisas, ao rugir da tempestade, ao silêncio e à ausência das chuvas, ao eco repetido das secas. Concentrava em si mesmo esses ecos pelos quais devia afinar as suas ambições e suas orientações futuras. Bebia das fontes puras da natureza, uma educação que lhe elevou o espírito a um rumo guiado pelo árido campo da instrução secundária. Muito cedo revelou-se como um aluno excepcional, graças ao esforço próprio, à inspiração própria e à ajuda de amigos dos pais. Apesar da modesta economia da família, foi para a capital onde iniciou os estudos liceais. No tempo de ‘azáguas’ regressava sempre para o Fogo para os trabalhos da enxada. Foi também muito cedo, em 1962, recrutado para o serviço militar – Força Aérea Portuguesa – tendo aproveitado esse período para continuar os estudos liceais, e tirar o curso de rádio, televisão e electrónica. Prestou serviços em várias bases aéreas portuguesas durante três anos. Depois foi enviado para guerra em Angola, onde permaneceu dois anos nas bases aéreas de: Negage, Santa Eulália e Toto – uma vida que detestava – por ter sido obrigado a combater os próprios irmãos africanos, apontados como seus inimigos. Terminou o serviço militar em 1967. Estudou psicologia aplicada durante um ano – 1967-1968 – no Instituto Superior de Psicologia Aplicada que era parte integral da Universidade Católica de Lisboa. Viveu em Lisboa numa época perigosíssima. Perseguido pelos agentes da PIDE, fugiu para a Escandinávia onde os pais e irmãos, mais tarde, se lhe juntaram. Na Noruega matriculou-se na Universidade de Oslo onde estudou filosofia e psicologia e mais tarde integrou-se, primeiro no Instituto Bíblico Bétel e depois na Universidade de Uppsala – Suécia onde se doutorou na filosofia e teologia (filosofia da religião) e com muito êxito defendeu a sua tese de doutoramento, conservando, no entanto, a sua humanidade e modéstia naturais. Não é de admirar que nos trabalhos a que ABS acomete, se depare com um manancial de ideias e opiniões cujas teses, às vezes, abandonam o teor filosófico e teológico para abraçarem o moral, o político e o trans-religioso, bem como a defesa dos menos privilegiados.

5 Cf. São João Crisóstomo (em grego: Ιωάννης ο Χρυσόστομος; Antioquia da Síria, actual Antakya, 349 — 14 de Setembro de 407) foi um teólogo e escritor cristão, arcebispo de Constantinopla no fim do século IV e início do V. Sua deposição em 404 produziu uma crise entre a Santa Sé e a Sé Patriarcal. Pela sua inflamada retórica, ficou conhecido como Crisóstomo (que em grego significa «boca de ouro.

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Nele se espelha fielmente a época e o lugar das suas vivências, apegado a uma nação de democracia transparente e a uma outra cada vez mais vulnerável, quer às arremetidas dos adversários, quer às próprias tensões internas. ABS é um patriota de olhar atento aos problemas da Mãe-terra, da emigração e principalmente aos que afectam os mais necessitados, onde quer que se encontrem. Ele é pastor, filósofo e professor catedrático que prega e ensina. Um homem de acção. Diz e faz, pois, acções, para ele, são a própria vida. As obras são o sinal ‘mais’ com que se transforma o mundo e de que o mundo bem precisa! Noruega, 10 de Janeiro de 2013 Domingos Barbosa da Silva

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Introdução geral Este livro é uma colectânea de artigos escritos por mim no jornal Terra Nova, desde 1991 até à presente data (2012). O propósito desta obra é, em primeiro lugar, fazer uma retrospecção do que tem acontecido desde a introdução do regime democrático em Cabo Verde, isto é, a partir de 13 de Janeiro de 1991, data em que, pela primeira vez, houve eleições livres nas nossas ilhas, das quais resultou o pluralismo partidário, base da nossa presente democracia.6 Em segundo lugar, o propósito deste livro é compartilhar com todos os cabo-verdianos certos aspectos fundamentais do que tenho escrito durante cerca de 19 anos (desde 1993 até 20127), acerca de vários temas, todos relacionados com o problema do desenvolvimento integral de Cabo Verde, o qual engloba o problema de saúde, de justiça social e de democracia como factores necessários ao referido desenvolvimento, para o qual recomendo a implementação de uma Ética humanística cristã, cujo ideal é a promoção do respeito pela dignidade de todos os seres humanos, e portanto, de todos os cabo-verdianos. Daí as minhas reflexões efectuadas ao longo dos últimos 19 anos acerca das mais variadas temáticas, que tiveram sempre como tónica principal a questão do desenvolvimento cabo-verdiano; no que concerne à problemática da saúde pública e direitos humanos, dos quais os mais fundamentais são: o direito à vida, o direito à segurança pessoal, à liberdade pessoal e à liberdade de expressão, etc. Os meus artigos publicados no jornal Terra Nova antes de Janeiro de 1991, já foram compilados na antologia A Odisseia Crioula, editada conjuntamente por Domingos Barbosa da Silva e por mim próprio. Na composição deste livro, constituído por artigos com temas díspares, escritos em datas diferentes, e por vezes dirigidos a leitores diferentes – consoante o conteúdo de cada artigo e à realidade actual, assim como à relevância do assunto ou tema discutido numa determinada situação sociopolítica, procuro agrupar os textos para que no seu conjunto construam uma narrativa coerente. Também procuro simplificar, esclarecer e desenvolver certas passagens dos diversos artigos seleccionados, que na altura da sua publicação, por várias razões, não me foi possível fazer. À luz dessas aspirações, não dou preferência à cronologia dos artigos, mas antes aos seus conteúdos. Por isso, tenho de modificar certas passagens dos mesmos para tentar re-contextualizá-los, depois de décadas da sua existência em contextos diferentes. Isto implica uma selecção de artigos cujos conteúdos são gerais e de valor, mais ou menos, permanente e não contingente, específico ou casual.

O que os referidos artigos têm em comum Os temas deste livro, embora muito diversos, são todos tratados aqui sob o ponto de vista ético que visa: o bem e o mal, o justo e o injusto, o aceitável e o inaceitável, o respeito pela dignidade da pessoa humana e pelos direitos fundamentais e deveres de cada indivíduo humano, sem distinção de raça, sexo, posição socioeconómica, cor política, religião e características afins. Por outras palavras, ao considerar aqui vários assuntos, tais como os que têm a ver com a emigração, a saúde pública, a democracia, a ensino, a

6 Por um Estado Democrático de Direito entende-se, inter alia, um estado em que nenhum indivíduo está acima da lei e esta serve para proteger os direitos e as liberdades dos cidadãos e prescrever os seus deveres fundamentais, jurídicos e morais. 7 Os meus artigos publicados no jornal Terra Nova até 1993 foram, integrados no livro editado por mim e

o meu irmão Domingos Barbosa da Silva no livro a Odisseia Crioula. Oslo: Alpha, Beta Sigma, 1993.

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turismo em Cabo Verde, etc., sob o ponto de vista ético, quero apenas demonstrar o valor e o significado desses fenómenos à luz dos princípios ou normas e valores éticos, imutáveis, perduráveis e universalmente válidos – aplicáveis a todos os seres humanos – sobretudo os princípios e valores da ética cristã, em virtude de nós, os cabo-verdianos, sermos, na maioria, culturalmente – judaico-cristãos. Este livro dirige-se a todos os cabo-verdianos, principalmente aos que gostariam de escrever artigos ou livros sobre os assuntos desenvolvidos nele, mas que, por várias razões, o não fazem. Esperemos, portanto, que como leitores desta obra, estejam mentalmente preparados a identificarem-se com o autor, no sentido de sentirem que gostariam de dizer ou escrever algo sobre que o livro contém. Por outras palavras, que os leitores se identifiquem com o autor e com as perspectivas apresentadas. Sabemos, no entanto, que cada um tem o direito de ter e mostrar a sua própria opinião sobre os variadíssimos temas deste livro. É por isso que se respeita este direito e se recomenda aos leitores que reajam, positiva ou negativamente, ao que escrevemos, e que façam a sua reacção chegar até nós, de uma ou de outra forma. Finalmente, se alguém nos perguntar por que queremos escrever este livro – esta colectânea – podemos responder como Eduardo Lourenço, que "a pulsão que comanda e nutre toda a escrita é um sonho de louco".8

Agradecimento

Algumas pessoas estiveram envolvidas na execução deste livro, contribuindo assim para que o mesmo conseguisse ter a forma, o conteúdo e a qualidade que tem. Enquanto redigia o manuscrito, recebi valiosas sugestões de amigos e parentes, que se interessaram sinceramente pelo meu esforço em escrever um livro a ser publicado na Internet, numa altura em que este meio de comunicação se encontra ao alcance de muita gente. Por tais sugestões, estou muitíssimo grato ao Sr. Dr. Bruno Miguel dos Reis, Professor Auxiliar na Universidade Autónoma de Lisboa e professor de Ciências Sociais na Universidade de Cabo Verde, ao Sr. padre António Fidalgo de Barros, ex-director do jornal Terra Nova e da Rádio Nova, ao Senhor Paulo Sérgio da Silva Monteiro, especialista em computador, pela sua ajuda no aperfeiçoamento gráfico das figuras ilustrativas e ao Sr. Domingos Barbosa da Silva, Farmacêutico e coautor do livro A Odisseia Crioula, por terem contribuído consideravelmente pelo aperfeiçoamento deste livro.

António Barbosa da Silva Dezembro de 2012

8 Namora, F. 1983, p. 9.

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Parte II

O valor e a dignidade da pessoa humana,

verdade, justiça e democracia

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1. Que diferença existe entre um corvo e um ser humano?

Antes de tentar responder à pergunta: que diferença existe entre um corvo e um ser humano, devo descrever um acontecimento que me inspirou a escrever este capítulo9 cujo título, à primeira vista, possa parecer provocativo ao leitor. Em Agosto de 2004 vi, na televisão Norueguesa, um corvo ferido, no topo de uma árvore, a ser salvo por bombeiros, usando helicópteros. Li também no jornal norueguês, diário de Stavanger (Stavanger Aftenbladet) que bombeiros, com helicópteros e outros meios de transportes, tentaram salvar a vida de um corvo ferido. Pensei logo num comentário que um aluno meu, de mestrado em teologia, vindo do Sul do Sudão, tinha feito 5 anos, antes deste acontecimento, ao ver na televisão Norueguesa uma cobra que veio à Noruega escondida em bananas importadas, o que chamou a atenção dos mass mídia. O comentário dele foi: “francamente esta gente não tem assunto importante com que preencher o noticiário. Tantas pessoas a morrer de fome, sede e doenças em África, sobretudo na minha terra, mas não ouço nenhuma palavra sobre o sofrimento delas e como aliviá-lo. Mas uma pequena cobra, que tem muito pouco valor quando comparado com o valor infinito do ser humano, é objecto de tanta atenção. Que Deus perdoe esta gente, pois não sabe o que faz”! Antes de fazermos um juízo de valor, sobre o acontecido em relação a um corvo, digo que o acontecimento demonstra que os ricos vivem num mundo completamente diferente do, e muito indiferente, ao mundo dos pobres, mesmo quando vivem lado a lado como no Rio de Janeiro, em Lisboa, na Praia, no Mindelo, em Oslo, na Noruega, etc. Isto sempre foi, e parece-me que sempre será, até ao segundo advento do nosso senhor Jesus Cristo, para criar “novos céus e uma nova terra, em que habita a justiça” (2 Pedro 3,13). O acontecimento sobre o corvo ferido supracitado pode ser interpretado tanto negativa como positivamente.

Uma interpretação negativa baseada nos direitos humanos A minha primeira reacção de indignação ao referido acontecimento obrigou-me a interpretá-lo negativamente, pois pensei logo nas milhões crianças – e não só – que naquele momento, estavam a morrer de fome, por exemplo, no sul do Sudão, onde o terror e a fome proliferavam (e proliferam ainda em 2011), enquanto os noruegueses se esforçavam por salvar um corvo – que, por exemplo, no Fogo, Cabo Verde, tem pouco valor, além de ser considerado, pelo povo, como um animal amaldiçoado e ladrão das nossas sementeiras – uma ave que no tempo de “azáguas” (o tempo de as-águas é o mesmo que a época de chuvas) engendra tantos sofrimentos aos meninos e jovens que são obrigados a “tadjâ côrbo na padjigal” (a espantar os corvos nos campos semeados).10

Uma interpretação positiva baseada nos direitos dos animais

O referido acontecimento fez-me também perguntar a mim mesmo se devia escrever um

9 Este capítulo baseia-se, quase no seu todo, num artigo publicado no jornal Terra Nova, em agosto de 2004. 10 Nesta perspectiva, é compreensível a atitude negativa de uma criança camponesa em relação aos corvos. Ela não dá valor aos corvos, e tem toda a razão, por estes serem uma causa de sofrimento no tempo das sementeiras.

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artigo não só no jornal Terra Nova, para informar à nossa gente sobre o ‘estranho’ acontecimento que ocorreu no estrangeiro, mas também um artigo no jornal “o diário de Stavanger”, Noruega para protestar contra a prioridade que se deu a um corvo em relação a todos os paupérrimos e deserdados do globo. Mas a minha intuição, imediatamente, me preveniu de fazê-lo, pelas seguintes razões. Primeiro, o meu protesto não iria transformar a mentalidade11 dessa gente, nem o seu amor aos corvos e outros animais como, por exemplo, cães e gatos (que, nesta parte do mundo, são postos em hotéis de animais durante as férias dos seus donos, o que custa muito dinheiro, que podia salvar a vida ou restaurar a saúde de muitos pobres). Segundo, o meu protesto não iria modificar a atitude dos ricos, caracterizada pela parcial ou total indiferença, para com os pobres da Terra, principalmente os da África. Mas o que poderia acontecer, e de que receava com razão, é que alguém pudesse responder ao meu artigo acusando-me de falta de sensibilidade pelo sofrimento dos animais e de ignorante quanto aos direitos fundamentais e universais destes. Sendo professor de ética cristã, não queria expor-me a esta tentação e à sua possível consequência indesejável. Por isso, resolvi escrever sobre os direitos dos animais em relação aos direitos humanos, a fim de ver o que têm em comum, em que se diferenciam e como justificar moralmente tal diferença.12

Uma Ética global num mundo pós-moderno e globalizante Uma Ética global ou universal consiste em valores e normas (regras e princípios) éticos coerentemente inter-relacionados, constituindo uma teoria ética de aplicação universal, isto é, transcultural ou trans-histórica, tendo em conta todos os seres humanos. Por exemplo, tanto a Ética cristã como a Ética humanístico-cristã do filósofo alemão Emanuel Kant se impõem como universais. Hoje há filósofos e teólogos moralistas que, com uma certa razão, acusam os sistemas de Ética ocidentais de antropocêntricos, isto é, a sua aplicação se restringe aos seres humanos ocidentais e exclusivamente aos existentes, sem incluir nela a geração humana futura. Pelo contrário, os filósofos Peter Singer, Michael Tooley e o teólogo Jürgen Moltmann13 querem estender a aplicação de certos direitos humanos – como o direito à vida, à segurança e ao bem-estar – a todos os animais, porquanto estes também têm a capacidade de sofrer, assim como os seres humanos. Aqui, por falta de espaço, vou apenas apresentar os argumentos do teólogo Moltmann com o qual simpatizo muito, porquanto ele, de uma maneira simples, bem ilustrativo e convincente, tenta demonstrar a relevância do evangelho para o presente. E, ao contrário de Singer e Tooley, ele vê não só o que os animais irracionais têm em comum como os seres humanos mas também a grande diferença entre eles.14 Esta diferença tem consequência importante para o fundamento de uma ética universal.

O valor humano é superior ao das outras criaturas

Aqui vou apresentar algumas razões por que se deve dar prioridade ao ser humano no que concerne ao respeito pelo seu valor inerente ou intrínseco e pelos seus direitos 11 A mentalidade de um povo não se modifica ou transforma a curto prazo. Pois está sementada em tradições, costumes e hábitos acumulados durante um período de tempo relativamente longo. 12 Assim pode-se ver o que constitui a justificação de uma interpretação positiva do acontecimento supra referido e outros de igual teor. 13 Cf. Moltmann, J. (1999), p. 152f. 14 A epressão ”animal irracional” é usado aqui para distinguir o homem (animal racional) dos outros animais.

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inalienáveis assentes neste valor, quando comparado com outras criaturas, particularmente, os animais irracionais. Com expressão “dar prioridade ao ser humano” quero dizer que se tivermos de escolher entre aliviar o sofrimento humano e o dos animais inferiores ao ser humano (por exemplo, um corvo), devemos dar prioridade ao aliviar do sofrimento humano, se não podemos aliviar o sofrimento de ambos ao mesmo tempo. Segundo a antropologia e a Ética judeo-cristãs o ser humano é único entre os seres criados. A Bíblia afirma que Deus criou o homem e a mulher à sua imagem e semelhança, portanto, o ser humano traz inerente ao seu ser a imagem de Deus (lat. Imago Dei) seu Criador. Este facto, fundamental da Ética judeo-cristã, concede santidade e dignidade – isto é, um valor inestimável – à vida humana. Baseado no conceito de santidade da vida humana, o grande filósofo humanista alemão Emanuel Kant, afirma que todas as coisas deste mundo têm um preço, mas o ser humano não tem preço mas sim dignidade, o quer dizer que tem um valor infinito, o que o faz inestimável. Por isso, diz Kant, a atitude adequada perante o ser humano deve ser a de respeito e reverência.15 O princípio fundamental da Ética deontológica de Kant, isto é, Ética do dever, chama-se imperativo categórico, que afirma o seguinte: Devemos sempre tratar o ser humano como um fim em si mesmo e nunca apenas como um meio para qualquer outro fim. A expressão “fim em si” significa “valor intrínseco”, enquanto o que pode servir apenas de “meio” para um certo fim não possui um valor intrínseco, mas sim um valor extrínseco, instrumental ou utilitário. Como veremos no capítulo sobre a Ética normativa, mais adiante, o que tem um valor intrínseco não perde o seu valor, enquanto o que tem apenas um valor extrínseco (por assim dizer, um valor “emprestado” do fim para o qual é um meio adequado) pode perder o seu valor. Por exemplo, um medicamento só tem valor extrínseco em relação à saúde que tem valor intrínseco. Pois usamos medicamentos com o fim de obter saúde. Quando um medicamento perde a sua potencialidade de promover a saúde, perde, automaticamente, o seu valor extrínseco ou instrumental e deve ser deitado fora. Também as roupas que usamos têm apenas um valor extrínseco durante algum tempo, depois perdem-no. Mas a vida humana, pelo contrário, tem um valor intrínseco pela sua dignidade, um valor imutável e imperdível.16 Porém, só o conhecimento da verdade que todos os seres humanos são imagens de Deus, e portanto que a vida humana é santa e tem um valor infinito e inestimável, não é suficiente para motivar uma pessoa a amar a outras pessoas, isto é, para amar o seu próximo como a si mesma. Por exemplo, sei neste momento que mais de 15.000 crianças, no mundo, morrem de fome todos os dias. Mas este conhecimento – que é apenas intelectual e abstracto – é insuficiente para me motivar a fazer algo bom em prol das crianças famintas, já que não é o conhecimento de por si só, que existem misérias neste mundo, que comove os ricos do primeiro mundo a amarem as pessoas do terceiro mundo – por exemplo, a valorizá-los mais do que valorizam os seus corvos, gatos, cães, etc. Além do conhecimento de factos relevantes e dos nossos deveres morais, precisamos também de virtudes morais como: simpatia, empatia, benevolência, compaixão, caridade cristã, humidade, solidariedade e fraternidade, para podermos amar o nosso próximo (em princípio, qualquer ser humano que necessita de nós) como a nós mesmo. O conhecimento dos factos relevantes, das normas morais e a posse das virtudes morais capacitam-nos a identificar-nos com os outros – principalmente os que sofrem. As virtudes morais dão-nos a motivação necessária e suficiente para escolhermos as acções

15 Kant, I. (1981), p. 40f. 16 É bom enfatizar aqui que uma pessoa mesmo depois da morte conserva o seu valor intrínseco, isto é, a sua dignidade. Por isso deve ter um funeral condigno.

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apropriadas a praticar nas diversas situações da nossa vida. (Veja o valor e a função das virtudes morais no capítulo onde abordamos a questão da Ética.

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2. O anti-semitismo tornou-se mais agressivo depois das eleições

Tanto durante as duas campanhas eleitorais como depois das eleições de Janeiro e Fevereiro de 2006 tinham circulado algumas cartas electrónicas na Internet de conteúdo fascista e anti-semita.17 Parece-me que a intenção dos autores dessas cartas é, acima de tudo, de denegrir a pessoa e a integridade moral do Sr. Dr. Carlos W. Veiga, chamando-lhe, entre outros, de judeu porco, de explorador económico do povo cabo-verdiano, etc., negando-lhe tanto o direito de ser cabo-verdiano como o de ser nosso futuro presidente, incitando, ao mesmo tempo, os cabo-verdianos a desprezá-lo e a odiá-lo. Os autores das referidas cartas pensam que estão a agir de acordo com a liberdade de expressão, e portanto moralmente correcto. Mas isto é uma falsa interpretação e abuso do conceito de liberdade de expressão.

O direito à liberdade de expressão não é absoluto A declaração universal dos direitos humanos (ora avante DUDH) é considerada hoje, no mundo Ocidental, como uma religião18 com monopólio sobre; direitos e deveres, a justiça, a verdade e outros valores intrínsecos e fundamentais.19 No mundo pós-moderno,20 em

17 É curioso notar que também em Portugal, durante as eleições autárquicas, costuma florescer o anti-semitismo. Assim podemos ler na Internet o seguinte: “Apesar de ser um tema pouco comentado em Portugal, neste País existem diversos grupos cujo anti-semitismo é continuadamente praticado. Desde encontros, artigos escritos publicados na imprensa diária, informação tendenciosa, etc., existe uma mais actual forma de

a usar – na campanha para as eleições autárquicas. Este novo fenómeno apareceu na localidade de Mangualde sendo o protagonista dessa mensagem, o actual presidente da Câmara Municipal, o Sr. Soares Marques. Num seu discurso de campanha fez a seguinte afirmação ‘Vamos ganhar as eleições...contra os cristãos novos do PS’. […] O cidadão Soares Marques é um irresponsável verbal nesta triste afirmação. Porquê? Muito simples, a ‘incitação’ promove o ódio, o medo e a violência. Esta arma é muito utilizada por pessoas com princípios dictatoriais. […] Temos de denunciar publicamente estas pessoas, que por vezes se escondem na pele do cordeiro.” http://comunidadeshemaisrael.blogspot.no/2009/07/anti-semitismo-em-portugal.html;Cf.

http://omocho.info/mocho3/ e http://pt.wikipedia.org/wiki/Aristides_de_Sousa_Mendes 18 Roth, H. I. (2012). (http://bolstad.dk/Manskliga%20rattigheter%20vansterns%20nya%20religion.htm 17.10.2012 19 Cf. Barbosa da Silva, A. (2009). 20 A expressão “pós-moderno” usa-se tanto no sentido “depois da época moderna” como no sentido “contra a época moderna”. A primeira começou com o filósofo francês René Descartes (1600 D.C), enquanto a segunda começou depois da Segunda Guerra Mundial e pode ser caracterizada como se segue: ‘Si l’on en croit Lipovetsky, la naissance du postmodernisme, au milieu du XXe siècle, a ouvert la voie à un âge sans devoir, où la notion de devoir absolu s’est trouvée éliminée du champ de l’éthique et où s’est développée une éthique proclamant le droit de l’individu à l’autonomie, au bonheur et à l’accomplissement personnel. Le postmodernisme est un âge post-moral, puisqu’il rejette toute valeur inconditionnelle supérieure, telle que le service d’autrui et l’abnégation.’ […]. A l’origine de l’éthique postmoderne se trouve une crise d’autorité qui implique les institutions traditionnelles (famille, école, Église, État, justice, police) à l’aide desquelles le modernisme tentait d’organiser une société rationnelle et progressiste. […].Or, une pareille évolution aboutit à une morale pleine d’ambiguïté. On a, d’un côté, un individualisme sans loi, qui se manifeste par l’exclusion sociale, l’endettement familial, les familles sans parents et les parents sans famille, l’analphabétisme, les sans-logis, les ghettos, les réfugiés, les marginaux, la drogue, la violence, la délinquance, l’exploitation, la criminalité en col blanc, la corruption politique et économique, la lutte sans scrupule pour le pouvoir, les modifications génétiques artificielles, les expériences sur des cobayes humains, etc. D’un autre côté, la société est nimbée d’un esprit de vigilance hyper-moraliste, prêt à dénoncer toute forme d’atteinte à la liberté individuelle et au droit de chaque personne à l’autonomie : préoccupation éthique pour les droits de l’homme, pardon demandé pour les erreurs du passé, écologie, campagnes de lutte contre la drogue, le tabagisme, la pornographie, l’avortement, le harcèlement sexuel, la corruption et la discrimination, tribunaux éthiques, manifestations silencieuses, lutte contre les sévices sexuels infligés aux enfants, mouvements de secours pour

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que vivemos, o direito à liberdade de expressão está a ser avaliado e usado como se fosse o mais fundamental de todos os direitos humanos. Com isto quero dizer que, por vezes, a liberdade de expressão usa-se de tal maneira que violenta e esvazia de conteúdo moral outros direitos humanos mais fundamentais, como o direito ao respeito pela dignidade e o direito à segurança pessoal (expressos no artigo no.1 e no.3 da DUDH (sobre a dignidade e igualdade), respectivamente, enquanto o direito à liberdade de expressão aparece no artigo 19 da DUDH. Pelo dito, é óbvio que na minha interpretação da DUDH são os artigos 1 e 3 que servem de fundamento e impõem limites e restrições ao artigo 19 (sobre a liberdade de expressão) e não o contrário, o que implica que nenhum cidadão tem o direito de usar a sua liberdade de expressão de tal maneira que possa pôr em perigo de vida outros cidadãos, ou que incite à violência, à calúnia e ao desprezo pelos direitos inalienáveis dos outros, direitos baseados na dignidade da pessoa humana que é igual para todos os seres humanos. Também ninguém deve usar o direito de liberdade de expressão para derrubar um governo constitucional, ou melhor, democrático, ou para promover a licenciosidade, obscenidade, subversão, violência, o racismo, etc.).21 Os direitos humanos são interdependentes e, em certas situações, podem colidir uns com os outros criando dilemas éticos. Uma pessoa confronta-se com um dilema ético, quanto se encontra numa situação em que tem de escolher entre duas ou mais acções que deve praticar ao mesmo tempo, mas nenhuma escolha é eticamente justa, e independentemente da acção que escolher e praticar, actua moralmente injusto. Por exemplo, se achamos que é nosso dever de “falar sempre a verdade” e de “ajudar sempre uma pessoa com necessidades”, ao mesmo tempo ou na mesma situação, podemos experimentar o seguinte dilema. Um indivíduo, chamemos-lhe João, que está a ser inocentemente perseguido pela polícia, com o intuito de o aprisionar e torturar, bate à nossa porta, pedindo exilo. Depois de termos dado abrigo ao João, vem um polícia à nossa casa e pergunta-nos se vimos o João. Se queremos realmente ajudar o João – um inocente que está com necessidade da nossa ajuda – teremos de mentir à polícia, dizendo-lhe que não o vimos. Mas, neste caso, não cumprimos ao mesmo tempo o nosso dever de “sempre falar a verdade”, pois os dois deveres, o de “sempre falar a verdade” e o de “sempre ajudar as pessoas em apuros”, por vezes, como neste caso, não podem ser cumpridos simultaneamente. Se tentarmos cumpri-los, ao mesmo tempo, somos confrontados com um dilema ético. Para “resolver” o dilema – como neste caso em apreço –, temos de escolher entre os dois deveres: mentir à polícia para salvar a vida do João, ou então falar a verdade à polícia e assim abstemo-nos de salvar a vida do João. A “solução” de um dilema ético consiste em escolher o dever – a acção – que nos possa levar a praticar o menor dos dois males implicados no dilema. Neste caso, salvar a vida do João pode ser avaliado como tendo um valor moral maior do que “falar a verdade” acerca de onde o João está escondido. Segundo esta avaliação, é moralmente justo ou correcto mentir para salvar a vida e não o contrário. Por outras palavras, quando confrontado com um dilema

les réfugiés, les pauvres, le tiers monde, etc. En ce contexte, la morale néo hédoniste de la vie postmoderne se traduit en exigences contradictoires. D’une part, nous avons des normes : tu dois manger sainement, garder la forme, lutter contre les rides, rester mince, apprécier le spirituel, te détendre, pratiquer le sport, réussir, exceller, contrôler tes pulsions violentes, etc. D’autre part, il y a la promotion du plaisir et de la vie facile, l’exonération de toute responsabilité morale, l’exaltation des dépenses de consommation et de l’image, la survalorisation du corps aux dépens de la spiritualité. Le résultat : dépression, vide intérieur, solitude, stress, corruption, violence, négligences, cynisme, etc. L’éthique à l’époque postmoderne. » In: Dialogue. Revue internationale de foi, de pensée et d’action. http://dialogue. adventist.org/articles/

14_2_kerbs_f.htm 21 Segundo José Bouquinhas, o direito da expressão é: “uma dádiva que recebemos de Deus, da Primeira Causa, do Uno Todo-poderoso, da Inteligência Suprema! Esse dom, não nos foi dado por nenhum partido ou homem político. Nasceu connosco! É por isso que gente néscia, que recorre à baixeza e ao racismo para sujar o nome de qualquer indivíduo qualquer que seja o seu credo, religião ou convicção político-filosófica, tem que ser combatida.” (http://joseboucas.blogspot.no/2006/10/eu-sou-judeu.html)

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ético, deve-se escolher 'o menor de entre os dois males' expressos pelo dilema. Porém, isto não é resolver um dilema, mas sim uma maneira mais razoável de livrar-se dele.

Conflictos de deveres numa democracia Para resolver (livrar-se de) qualquer tipo de dilema ético numa democracia, há que fazer uma hierarquização dos dois conflituantes deveres, quando ambos não possam ser cumpridos ao mesmo tempo. Por exemplo, quando a liberdade de expressão é usada para pôr em perigo a vida, violar a dignidade dos outros e camuflar ou distorcer a verdade, a justiça e os supremos interesses da sociedade ou para desmoronar um Estado Democrático de Direito, a liberdade de expressão deve ser restringida.22 Pois a liberdade, ou qualquer outro direito tido como absoluto, pode engendrar intolerância. Mas desde que ela não impeça a implementação dos valores e ideais democráticos, ela funciona como uma condição sine qua non da democracia, quando usada prudente e responsavelmente. Porém, se a liberdade de expressão for considerada como um valor e um direito absolutos, conflitua, por exemplo, com os valores: da cooperação, da solidariedade, da tolerância, da paz social, do diálogo e do compromisso, valores necessários para um consenso democrático, em certas circunstâncias. Como um direito absoluto, a liberdade pode exprimir intolerância.23 E como Mahatma Gandhi disse, “a intolerância é em si uma forma de violência e um obstáculo ao desenvolvimento do verdadeiro espírito democrático”. Por outras palavras, a liberdade de expressão “construída sobre uma base de justiça, tolerância, dignidade e respeito – independentemente da etnia, religião, convicção política ou classe social – permite às pessoas buscarem estes direitos fundamentais” que um governo democrático tem o dever de defender, proteger e promover para o bem-estar de todos os cidadãos. Só assim podemos viver livres do racismo, dos conflitos étnicos, do fascismo e anti-semitismo. Resumindo e concluindo, os autores das referidas cartas abusam do seu direito à liberdade de expressão para conspurcar a dignidade e o bom nome dos outros, o que, numa democracia e num estado de direito é moralmente inaceitável e condenável. Os autores mencionados usam um direito humano (para defender os seus próprios interesses) contra outros direitos humanos (que protegem os interesses de todas as pessoas). Devemos, por isso, estar atentos a todos os actos e todas as omissões usados para criar divisão no seio do nosso povo unido e pacífico, de forma a poder dominá-lo ditatorialmente.

Meios ilícitos usados nas eleições presidenciais de 2006 Como já indicámos, as referidas cartas electrónicas difundidas na Internet2124incitam os cabo-verdianos a negar ao Sr. Dr. Carlos Veiga tanto o direito de ser cabo-verdiano como

22 Pinto, José R. C. (1990). 23 Arsénio de Pina escreve o seguinte sobre o limite da liberdade: “Embora não haja limites legais à liberdade de expressão, há que aceitar a existência de limites cívicos. Em todas as sociedades, os cidadãos estão conscientes de que o abuso da liberdade de expressão pode ferir susceptibilidades, particularmente das sociedades multiculturais existentes no mundo actual. […]. Não pode haver liberdade absoluta por a [minha] liberdade estar intimamente limitada pela do próximo e ligada à responsabilidade, sendo a provocação gratuita a pior forma de comunicação” (Terra Nova, Fevereiro de 2006, p. 2 e 6). 24 Anti-Semitism subsidized by U.S.? Aid flows to Cape Verde regime that attacks Jews. © 2005 G2 Bulletin (Publishing date 25.02.2006, 21:54).

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o de ser nosso presidente, incitando, ao mesmo tempo, os cabo-verdianos a desprezá-lo e odiá-lo, com base nos seguintes argumentos:

Os seus ascendentes ou ancestrais vieram como emigrantes para Cabo Verde, e portanto não são autóctones.

Os pais dele e ele são judeus e todos os judeus são amaldiçoados por terem crucificado o nosso senhor Jesus Cristo.25

Os judeus são terroristas e responsáveis por todo o mal que os palestinos árabes estão a sofrer hoje, etc.

Estes falsos e irrelevantes argumentos servem para pôr em causa a candidatura do Sr. Dr. Carlos Veiga à presidência da república. Por isso, quero perguntar: é este ataque ao Dr. Carlos Veiga, uma tentativa de semear o fascismo ou uma prova de que o mesmo já está consumado entre nós? Independentemente de como cada leitor responde a esta pergunta pertinente, o conteúdo das referidas cartas, de propaganda fascista e racista, não prejudica apenas o Sr. Dr. Carlos Veiga, embora ele seja o visado directo. Outros descendentes de judeus, quer sejam cabo-verdianos ou não, estão a ser, implicitamente, atacados nessas cartas. As referidas cartas têm também outras intenções. Como já apontámos, e sublinhamos, o conteúdo anti-semítico e fascista das referidas cartas propagandistas serve, acima de tudo, para prejudica o Sr. Dr. Carlos Veiga, tanto como pessoa e como cidadão cabo-verdiano e político. Este estratagema é racista e diabólico pelas seguintes razões. Em primeiro lugar, a intenção dessas cartas é de criar suspeita entre e de dividir os cabo-verdianos em dois grupos totalmente diferentes: os considerados verdadeiros ou autênticos e os não verdadeiros ou inautênticos ou impostores (cf. os tais chamados “melhores filhos” de Cabo Verde no tempo do partido único). Em segundo lugar, o conteúdo das referidas cartas é racista anti-semítico e discriminatório, porquanto aconselha e exorta indirectamente os presumíveis verdadeiros cabo-verdianos a desprezar, odiar e perseguir os cabo-verdianos de origem judaica, sendo o Sr. Dr. Carlos Veiga apontado como o arquétipo destes últimos, no entender dos referidos autores. Mas também, indirectamente, as ditas cartas exprimem um desprezo, uma discriminação, um ódio e uma perseguição dirigidos a todos os judeus, por que segundo os racistas anti-semíticos de todos os tempos ou contextos histórico-culturais, se um judeu é criminoso, ou se alguns judeus são criminosos ou desprezíveis, todos os judeus os são necessariamente, e não só, mas são também avaliados como seres subsumamos e párias sem valor e dignidade humanos. (cf. O fascismo Hitleriano).26 Este

25 Este é parte do conteúdo de ma outra carta na Internet onde se podia ler o seguinte: “Meus Caros, // O Sr. Carlos Veiga, não merece e nem reúne as qualidades para ser Presidente da Republica, e por isso, não devemos dá-lo o nosso voto. // Não vamos colocar na Presidência da Republica, um Anticristo, um homem com o coração cheio de ódio, rancoroso e arrogante, que só é bom e competente para os seus lacaios. Todos se lembrarão do hediondo crime cometido pelos Judeus: - o assassinato de Jesus Cristo, acontecimento responsável até hoje, pela ausência de paz e estabilidade no Médio Oriente-Palestina. // O Sr. Carlos Veiga, para além de ser um Judeu porco, é também um grande mentiroso e aldrabão, um camaleão social, que há muito vem enganando e roubando juntamente com os demais membros da sua família, o povo cabo-verdiano. // Temos de uma vez por todas, acabar com o fantasma Carlos Veiga, porque ele não representa nada neste país, a não ser, enriquecer-se a custa do suor e sangue dos verdadeiros Homens desta Terra, e tentar perpetuar o seu Clã que desde 1991, tenta apoderar-se de tudo o que é rentável nestas Ilhas. // É chegado a hora de dizermos basta a este homem! Não queremos instabilidade e caos no nosso país, mas sim paz, harmonia e desenvolvimento. // Conto convosco para fazer chegar ao maior número possível de pessoas, este pequeno texto.// Um abraço, B. Viegas” (Janeiro e Fevereiro de 2006.) Cf. http://www.liberal-caboverde.com/Agosto/2006 26 Na estatística o uso deste tipo de falsa cenarização, é uma maneira de enganar as pessoas. Pois as características de um elemento ou de poucos elementos de uma população não permitem uma generalização aplicável à população inteira.

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tipo de raciocínio exprime uma falsa generalização, isto é, consta-se que “alguns Xs são Ys”, e daí tira-se a conclusão que “todos os Xs são Ys”. Mas esta conclusão é logicamente falsa por basear-se numa penalização falsa.27 Em terceiro lugar e à luz do acima exposto e da longa e horrenda história do anti-semitismo, ao maltratar e espezinhar o Dr. Carlos Wahnon Veiga, do modo inumano e imoral como fazem, só por ser descendentes de judeus – algo inexorável – portanto um facto pelo qual ele não é responsável, os impostores e anónimos autores das ditas cartas estão, consciente ou inconscientemente, a maltratar e espezinhar também muitos outros cabo-verdianos descendentes de judeus. Brincado com a vida, a dignidade e os direitos inalienáveis dos outros, só para ganhar eleições, o que tais autores não sabem ou fingem não saber, por que lhes é oportuno, é que o número dos judeus cabo-verdianos não se restringe às descendências dos Wahnons, dos quais o Sr. Dr. Carlos Veiga é parte integrante. Podemos também falar dos judeus cabo-verdianos descendentes dos Cohens, dos Brighams, dos Pereiras, dos Rodrigues Pereiras, dos Pinheiros, Figueiras, Nogueiras, Oliveiras, dos Pinas, dos Anahorys, dos Santos Silvas, dos Carvalhos, dos Coelhos, dos Bentos Levys, dos Levis, dos Brignas, dos Medinas, dos Benoleis, dos Benróis, dos Betencouts e outros. Pelo que sei, com muita certeza, há (e já houve) muitos mais descendentes de judeus em Cabo Verde, principalmente em Santo Antão, Boa Vista, Santiago, Maio, Fogo e Brava.28 Os judeus cujos nomes aparecem aqui são os que estão conscientes da sua descendência judaica e cultivam a mesma sem complexo de inferioridade. Por conseguinte, os predicados difamatórios que os autores anti-semitas atribuem ao Sr. Dr. Carlos Veiga, aplicam-se, lógica e necessariamente a todos os outros cabo-verdianos descendentes de judeus, muitos dos quais não têm conhecimento da sua origem judaica. A razão desta ignorância pode estar associada ao forte sentimento crioulo que até agora nos tem unido, apesar de algumas diferenças entre nós. Mas se a ideologia fascista e anti-semítica se implantar e cimentar na mente dos dirigentes de um presumível governo antidemocrático em Cabo Verde, muitos cabo-verdianos poderão vir a sofrer o que os judeus sofreram na Segunda Guerra Mundial, nos campos de concentração nazis29, que em conjunto destruíram 6.000.000 de judeus e muitos outros grupos étnicos não alemãs, bem assim doentes mentais e aleijados alemãs e outros indivíduos espezinhados e desumanizados, vindos dos países ocupados pelo Hitler, que viviam em paz em diferentes partes da Europa Ocidental e do Leste.30 Apesar dos autores desta propaganda fascista e antisemítica e seus coadjuvantes serem, por assim dizer, ignorantes eruditos, não têm o mínimo de carácter moral. Pois, deviam saber que ninguém é responsável de ter nascido preto, branco ou mulato, judeu ou grego, europeu ou asiático, etc. Nota bene, que foi depois de Hitler ter sido escolhido democraticamente, como chefe do estado alemão, que começou a sua política despótica, fascista e anti-semítica, que culminou com o holocausto de 6.000.000 de judeus, sacrificados inocentemente. Mas convém notar que foi o mesmo povo que elegeu Hitler que também lhe preparou o seu caminho para o fascismo, ao atribuir aos judeus da Alemanha e da Europa inteira toda a culpa pelos males económicos e outros que a sociedade alemã, de então, estava a experimentar, imediatamente antes do começo da Segunda Guerra Mundial.

27 Cf. ”Alguns cabo-verdianos tocam violão”, por isso, “todos cabo-verdianos tacam violão”. 28 Castiel, C. (1995), p.5. 29 Os campos de concentração Nazis mais conhecidos são: Auschwitz-Birkanau, Buchenwald, Belsec, Maidenik, Sobibor, Treblinka e Majdanek. 30 Cf. Barbosa da Silva, António e Domingos,1093.

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Que tipos de gente são os autores das supracitadas cartas? Os autores das referidas cartas parecem ser idóneos e não idiotas, mas mesmo assim militantes fascistas. Ninguém de bom senso me pode convencer de que quem escreveu as ditas cartas é ignorante ou néscio. Porque? Por elas serem escritas num português correcto e descrever correcta e sucintamente a longa história do cruel sofrimento causado aos judeus, tendo uma grande parte da qual ocorrido durante estes últimos 2.000 anos. É um sofrimento causado, sobretudo, pelos povos ocidentais, perpetrando horríveis homicídios, progromos contra e holocausto dos judeus. Fundamentar o anti-semitismo no conceito de deicida (assassino de Deus), como as referidas cartas fazem, com respeito aos judeus, é anacrónico, imoral, falso e, por isso, vergonhoso. Foi um argumento usado no passado, no Ocidente, sem fundamento na Bíblia, como os anti-semitas pressupõem. Pelo contrário, tanto S. Lucas como S. Paulo, há dois mil anos, refutaram o fundamento de tal argumento insustentável e falso. S. Lucas fá-lo nos Actos dos Apóstolos (Actos 3,17) e S. Paulo na Epístola aos Romanos capítulos 9,10 e 11. À luz desta história horrenda do anti-semitismo, estou convencido que os autores das referidas cartas são indivíduos bem doutrinados pela ideologia fascista e anti-semita, explicita no tão chamado “Protocolo dos sábios de Sião” (ideologia que estaria por detrás do holocausto e do genocídio dos judeus na Segunda Guerra Mundial). Devemos, portanto, estar sempre vigilantes para que ninguém use o seu legítimo direito à liberdade de expressão e outros para negar aos outros os seus inalienáveis direitos humanos, por exemplo, o de ser respeitado pela sua dignidade humana e de usufruir da segurança pessoal e da protecção contra difamação, como o caso em questão ilustra.31

3. Graças a Deus, os descendentes de judeus estão bem acompanhados

31 Veja P., J.R. C. (S.J), 1990.Veja também Anti-Defamation League: http://www.adl.org/2011.07.21.

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Depois de ter escrito o artigo “o anti-semitismo tornou-se mais agressivo depois das eleições”32, que é parte integrante to capítulo anterior, esforcei-me por me abster de escrever sobre este tema, lutando com e prometendo a mim mesmo não escrever mais um artigo do género, usando os seguintes argumentos:

Já escrevi um artigo relativamente longo usando os melhores argumentos que pude conceber.

Há muitos cabo-verdianos de descendência judaica, quer em Cabo Verde, quer na diáspora, e é natural que estejam a escrever sobre o tema para defenderem a sua integridade, identidade e os seus direitos inalienáveis.

Se diversas pessoas escreverem sobre o tema, mesmo que usem o mesmo tipo de argumento, o efeito positivo poderá ser maior do que se só uma pessoa (neste caso o autor deste livro) escrever vários artigos, mesmo que use argumentos diferentes, sustentáveis e convincentes, etc.

Porém, inesperadamente, recebi, de um primo meu, uma cópia de um artigo de conteúdo anti-semítico (sobre o aluguer de casa a judeus). Nele pude ler, entre outras coisas, o seguinte:

“E onde nasceu Jesus? Em Belém! Eu sei que foi em Belém! Eu tô falando do local, a casa! Não era uma casa! Era uma manjedoura. ... E por que, numa manjedoura? Porque naquela época, já existia filho da mãe que nem você, que não alugava casa para judeu!” (Fernando Brandão).33

Ao ler isto, que me chamou a atenção para o crescente anti-semitismo na Europa (Noruega, Suécia, França, Alemanha, Holanda, etc.34), senti-me como o salmista a ponderar o fado dos judeus no cativeiro da Babilónia (Salmo 137). Pensei também num dos nossos poetas “desconhecidos”, que num dos seus poemas escreveu:

No tumultuar de ideias contraditórias Achei-me qual Jeremias, o Profeta, A desejar... ‘que minha cabeça se tornasse em tanque Para chorar’ Copiosamente”… (António Monteiro Barbosa)35.

Por isso, capitulei-me em relação à minha resoluta promessa a mim mesmo, de abster-me de me envolver em polémica desse género, porquanto não posso recusar de fazer o que posso para combater o racismo e a tendência desumana de desprezar grupos étnicos e pessoas estereotipadamente classificados de fracos, impuros ou subsumamos, como é o caso dos judeus, árabes, ciganos, negros, entre outros. Nota bene: na Europa o racismo costuma começar com os judeus para depois incluir todos os marginalizados, principalmente os africanos.

32 Terra Nova,, Ano XXXI, n.o 348, Fevereiro de 2006, p. 2. Veja também “The Anti-Semitism has reached the

end of the world: Cape Verde Islands”, publicado na Internet em Agosto de 2006. 33 [<www. netvisao.pt>;To:<Undisclosed-Recipient:;>] 34 No ‘jornal da tarde’ da Noruega (Aftenposten de 15.03.06) podia-se ler que o primeiro ministro da Suécia disse que o aumento do anti-semitismo no país dele é uma vergonha. No Aftenposten de 27.05.06, disse o Sr. Tore W. Tveit, conhecido pelo ‘profeta de Odin’ (Osin é o deus pagão da mitologia Nórdica) que ele quer “limpar os judeus da Noruega = “renske Norge for jøder”). 35 Em: Novo Jornal Caboverde, 1994. Veja o Prefacio deste livro.

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Também ao ler o artigo intitulado “A odisseia dos judeus portugueses”, escrito pelo Dr. Manuel Luciano da Silva, conceptuado medico português de descendência judaica, não pude continuar a resistir à tentação de não escrever mais um artigo contra o anti-semitismo.36 O motivo da minha capitulação reforçou-se, porquanto o artigo do Dr. Luciano da Silva me convenceu de que, afinal de contas, os cabo-verdianos de origem judaica, estão muito bem acompanhados, graças a Deus. Vou tentar demonstrar isso. O Dr. Luciano da Silva traçou, sucintamente, a longa história da odisseia dos judeus em Portugal, descrevendo o desenvolvimento da mesma até hoje. O conteúdo do artigo é uma palestra proferida pelo Dr. Luciano em 21 de Fevereiro de 1999, na aula magna do edifício da Faculdade de Economia da Universidade de Roger Williams, em Bristol, Rhode Island, E.U.A. A palestra fez parte integrante de uma sessão sobre o mesmo tema, iniciada pelo Sr. Steven Gorban, Director do Grupo chamado “Saudades – Projecto Sefárdico”.37 Sr. Gorban iniciou a sessão com as seguintes palavras reconciliatórias:

"Há quinhentos anos […] os Judeus Sefárdicos Portugueses têm andado separados dos outros portugueses. Chegou a hora de iniciarmos um novo período chamado 'Os Próximos 500 anos' e empregarmos as nossas energias a fomentar a amizade e o respeito mútuo entre todos os portugueses, judeus sefárdicos, católicos ou muçulmanos".38

O conferencista começou por demonstrar que o adjectivo Ibérica (de Iberos) – na expressão “Península Ibérica – que compreende a Espanha e Portugal” e que significa “mais ocidental” ou “pôr-do-sol”, é sinónimo de “sefárdicos” (hebraico), Algarve (árabe), “Lusitânia” (nome dado pelos romanos à Península Ibérica, que quer dizer terra de luz); “finis terra” (latim). Portanto, quando se fala de judeus sefárdicos, refere-se aos de Espanha e de Portugal. Para demonstrar que sempre houve judeus em Portugal e que muitos deles desempenharam papel preponderante na história da nação, o Dr. Luciano da Silva deu exemplos de proeminentes judeus portugueses. Por falta de espaço, temos de reduzir aqui os exemplos dele. O Dr. Luciano da Silva esclareceu que o conselheiro do primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques, que foi Egas Moniz, era judeu, e cujo descendente directo foi o Professor catedrático em medicina, Egas Moniz, que em 1949 ganhou “o primeiro Prémio Nobel da Medicina para Portugal, por ter sido o primeiro a utilizar a lobotomia e a angiografia” no tratamento de doentes mentais.39 Outros “médicos sefárdicos portugueses que foram médicos pessoais dos vários reis de Portugal” são, por exemplo: Abraão Zacuto, médico do rei D. João II. Dr. Zacuto era “também astrónomo e foi ele que, como matemático, escreveu o ‘Almanach Perpetuum’ e fez também as Tábuas de Navegação que mais tarde foram usadas por outro judeu sefárdico português de nome Cristóvão Cólon [Colombo] quando fez a viagem às Carábias, em 1492, e também pelo navegador Vasco da Gama”. Isaac Abravanel foi médico do Conde de Bragança. Com a sentença de morte deste, Abravanel fugiu para a Turquia onde foi médico do Sultão Mahmud II.40 Dr. Luciano afirma que “até a Inquisição (1497) TODOS

36 Este tema é actual. Assim podemos ler em 2012 o seguinte texto: “SEGUNDA-FEIRA, 23 DE JANEIRO DE 2012: Portugal entre os países mais anti-semitas da Europa, revela relatório alemão. Um relatório elaborado por um grupo de especialistas alemães nomeados pelo Bundestag (câmara baixa do parlamento alemão), e apresentado esta Segunda-feira, concluiu que na Alemanha se assiste à propagação de um forte sentimento anti-semita, uma realidade que atinge níveis ainda mais elevados em países como a Polónia, a Hungria e, surpreendentemente, Portugal” (http://odiplomata.blogs. sapo.pt/360654.html). 37 Sefárdico refere-se ao judeu da Península Ibérica (Espanha e Portugal). 38Todas as referências vêm do artigo supra citado, cuja fonte é www.Google.com/judeus em Portugal. 39 A lobotomia já não se usa hoje por causar danos ao cérebro. Mas no tempo do Dr. Egas Moniz, a lobotomia foi considerada um método revolucionário. Por isso, o Dr. Moniz foi laureado com o Prémio Nobel. 40 Veja também: “ Baltazar (Isaac) Oróbio de Castro é um dos vultos mais notáveis do judaísmo do século XVII. Nasceu em Bragança em Portugal, no ano de 1620, filho duma família judaica-marana” a sua principal obra é “Memórias da Literatura Sagrada dos Judeus Portugueses no século XVII.” (http://5l-henrique.blogspot.no/2010/09/os-judeus-em-tras-os-montes.html). Nasceu em Bragança em Portugal, no

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os reis de Portugal foram tratados por médicos sefárdicos portugueses! Duma maneira geral, todos os reis de Portugal trataram bem os judeus sefárdicos portugueses, porque lhes reconheciam muita capacidade Professional, não só no campo da medicina e da cirurgia, mas também na matemática, nas finanças, como banqueiros e no artesanato”. Dr. Luciano continua:

“Portugal perdeu muito com a Inquisição, mas as outras nações ganharam com a inteligência e qualidades profissionais dos judeus sefárdicos portugueses. É depois da Inquisição que passamos a ver nomes famosos de médicos sefárdicos portugueses em todos os países da Europa, não só como professores das faculdades de medicina, mas até médicos privados dos chefes do governo, reis e rainhas. Assim vemos nomes de médicos portugueses em lugares de destaque, tais como Costa, Da Costa, Bueno, Cardoso, De Castro, Da Silva, Fonseca e Nunez”.

Além destes famosos judeus temos também, continua o Dr. Luciano, os seguintes:

“João Rodrigues Castelo Branco (Amatus Lisitanus) 'além de bom médico foi botanista em Antuérpia […] professor de medicina em Ferrare […]' e o médico que tratou o Papa Julius III. Daniel Fonseca foi médico do Príncipe de Budapeste. Judah Abravanel foi para Nápoles, Génova e Veneza tornando-se médico famoso […] Jacob Mantinho […] professor de medicina na Universidade de Roma e médico do Papa Paulo III. Rodrigues da Fonseca foi professor de Medicina em Pisa e Pádua. Fabrício de Agua Pendente foi professor de anatomia em Bolonha e foi ele que descobriu as válvulas nas veias profundas das nossas pernas e coxas. Rodrigo de Castro foi para Hamburgo, na Alemanha, chegando depois a tratar da Rainha da Suécia […] Os judeus sefárdicos portugueses foram para o norte da África, para a Turquia, Holanda, Itália, França, Alemanha e Inglaterra […] emigraram também para os Açores, Madeira, Cabo Verde, Guiné e Brasil, envolvendo-se na indústria do açúcar e nas outras profissões incluindo medicina. [...] 'Foi em Newport, Rhode Island que os judeus sefarditas construíram a Sinagoga Touro, a mais antiga dos Estados Unidos […] que é uma cópia, em ponto pequeno, da grande sinagoga de Amesterdão, na Holanda. Notar que o nome Touro à portuguesa e não Toro à espanhola. [...] Foi nesta sinagoga de Newport que o Dr. Mário Soares, como Presidente da República Portuguesa, há dez anos, pediu desculpas aos judeus sefárdicos portugueses', pelas atrocidades e perseguições de que os seus antepassados foram vítimas, devido à terrível Inquisição em Portugal. É de salientar ainda que 'Muitos judeus sefárdicos portugueses tornaram-se famosos na América: Bernard Mannes Baruch, conselheiro de oito presidentes americanos, Moisés Seixas fundador do Banco de Rhode Island … Moses Michael Hays foi fundador do Banco de Boston e muitos outros' ”.

Cerca de sessenta por cento da população portuguesa tem sangue judaico Ainda segundo o Dr. Luciano da Silva, “Há investigadores que dizem que cerca de sessenta por cento da população portuguesa tem sangue judaico. Pois os judeus já viviam em terras lusitanas há cerca de dois mil anos antes de Cristo nascer!”.41 É um facto bem conhecido que, por exemplo, os nomes portugueses baseados em vegetais, árvores, rios e montanhas são derivados de nomes judaicos!

ano de 1620, filho duma família judaica. 41 O que a frase “há cerca de dois mil anos antes de Cristo” quer dizer é que os judeus já viviam na parte

da Península Ibérica que veio pertencer a Portugal, muito antes do nascimento do que hoje é conhecido como a nação portuguesa, isto é, antes de D. Afonso Henriques.

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O Dr. Luciano também informou à audiência que o presidente da República Portuguesa, “Dr. Jorge Sampaio […] é descendente de judeus sefárdicos portugueses”. Como o mesmo sublinhou, deve-se “juntar à lista dos famosos judeus sefárdicos portugueses, Pedro Nunes, grande matemático e inventor do nónio, assim como Baruch Spinoza, eminente filósofo do século XVII, emigrado na Holanda. Podemos juntar ainda os nomes de Gil Vicente, poeta, Fernão Mendes Pinto, viajador até à China e autor da ‘Peregrinação’ assim como o grande poeta Luís Vaz de Camões, autor de ‘Os Lusíadas’, porque os pais dele emigraram de Espanha para Portugal, sugerindo também ser judeus sefárdicos.” (Ibid.) Além disso, não devemos esquecer que Dr. Henry Kissinger, ministro dos negócios estrangeiros dos EUA (1962-1977), conselheiro especial do presidente Nixon, laureado com o Prémio Nobel da Paz (197342), era de origem judaica. É relevante também mencionar aqui o facto de a maioria dos laureados com o Prémio Nobel serem de descendentes judaicas.43 Convêm notar aqui que Dr.ª., professora catedrática, Madeleine Korbelová Albright, de descendente judáica, foi a primeira mulher com o cargo de Secretária do Estado dos Estados Unidos da América do Norte., onde foi ministra dos negócios estrangeiros do presidente Bil Clinton.

À luz do acima exposto, tenho toda a razão de afirmar que afinal os nossos Wahnon Veigas, Benoleis, Levys, Pinheiros, Carvalhos, Brighams, Rochas, Santos Silvas, Silvas, Nogueiras, Figueiras, Pereiras, etc., etc., estão em muito boa companhia. Não têm nada de se envergonharem da sua origem judaica. Pelo contrário, têm toda a razão e todo o orgulho de pertencerem ao povo judeu, e podem, de boa consciência e bem descontraídos dizer que têm prazer de serem cabo-verdianos e orgulho de serem descendentes de judeus.

4. O povo e a sua necessidade – entre a realidade da vida e o estratagema da ideologia política

O artigo "Nho lobo na tempu di P.A.I" (o senhor lobo no tempo de PAI44), no jornal Terra Nova de Março 2001, ilustra claramente que o povo, muitas vezes, vota num partido

42 Kissinger compartilhou o Prémio Nobel com o Vietnameses Lê dù Tho, e é ainda conselheiro internacional de algumas empresas (Bra Böckers Lexikon, Höganäs,Suécia, 2000, p. 352). 43 Segundo a Enciclopédia Britânica. Xina menino cusa quêl ca sábe! 44 Nho Lobo em crioulo refere-se a uma personagem de fábulas para as crianças. Esta personagem aparece quase sempre num conflito com o seu sobrinho (em crioulo “chubinho ou chibinho). Este último desempenha o papel de uma pessoa inteligente que engana sempre o seu tio lobo que desempenha um papel de um idiota comilão.

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político, ou se adere ao mesmo, não especificamente porque, de facto, simpatiza com a ideologia de tal partido, a qual talvez lhe seja incompreensível – em parte ou na sua totalidade –, mas vota, antes, por que a árdua realidade da vida o obriga, pois como dizemos em Cabo Verde “miséria não tem vergonha” (em crioulo do Fogo: miséria ca tem brigonha). O pobre não luta por ideias nas cabeças dos políticos, mas sim pelo pão dos seus filhos para não os ver, com pena, a chorarem e morrerem de fome, como disse Amílcar Cabral! Por isso, nós que debatemos assuntos políticos, devemos distinguir claramente entre a opção política do 'coitado' (pobre) e a do oportunista e/ou traidor da pátria, ou do antidemocrata que, muitas vezes, defende cegamente uma ideologia política, embora saiba que a mesma não é coerente com uma boa consciência moral e com os supremos interesses da nação no seu todo. Pelo contrário, é prejudicial a tais interesses. Antes de apresentar argumentos para esta afirmação é conveniente responder à seguinte pergunta:

O que é uma ideologia política e qual é a sua função? O termo "ideologia" foi usado "pela primeira vez no sentido político mais amplo [pelo filósofo e sociólogo alemão] Karl Marx, há pouco mais de 100 anos". Mas a realidade ontológica, epistemológica e axiológica a que se refere já existia desde os primórdios da civilização, isto é, desde que o ser humano começou a viver como ser político (social) no sentido etimológico grego desta palavra. Depois de Marx, o termo adquiriu mais conotações, tornando-se multivalente e ambíguo. Vou definir o conceito de ideologia num sentido lato que inclui uma das suas duas dimensões políticas entendidas por Marx, e outras dimensões, tais como existenciais, éticas e económicas, etc. Assim concebida, uma ideologia política é um sistema de ideias constituído por:

(a) Uma teoria ou conceito geral da Natureza, da Realidade ou do Universo (uma cosmovisão45), (b) uma teoria, um conceito do ser humano ou da vida humana, (c) uma teoria, em termo da qual se diagnostica a condição humana hoc et nunc, e, ao mesmo tempo, (d) se prescreve como o ser humano se libertará do seu estado precário aqui e agora para atingir o seu estado ideal (gr. telos ou lat. summum bonum) no futuro, próximo ou longínquo.46

A função da ideologia política é, em suma, diagnosticar as "causas" dos problemas e das condições existenciais negativas dum grupo de pessoas, duma sociedade, nação ou da humanidade em geral [cf. b) e c)], de prescrever um "tratamento" adequado da condição humana que engendra tais problemas e de prognosticar o futuro do Homem ou da humanidade [cf. (d)] em termos: de liberdade, bem-estar, justiça social, ordem, segurança, paz e progresso, etc. Por uma ideologia se basear em certos conceitos; do Homem, da Sociedade do Universo ou da Realidade [cf. (a), (b) e (c) acima], estes mesmos conceitos exprimem um ideal e os meios adequados a atingir tal ideal ou fim, isto é; implementá-lo ou materializá-lo em termos de bem-estar e qualidade de vida para os que acreditam e defendem os princípios normativos básicos de tal ideologia. Porém, em campanhas eleitorais, os benefícios prometidos pelos representantes de um partido, fundamentada numa certa ideologia, são universalizados, estendendo-se a todas os

45 Este componente é, na maioria dos casos, implícito na ideologia. 46 Cf. Stevensson, L. (1974).

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humanos, no presente e no futuro. Assim a ideologia adquire uma dimensão universal e utópica.

Para o oportunista e ateísta os fins justificam os meios Se analisarmos os estatutos e programas de cada partido político, descobriremos que contêm os quatro componentes ideológicos (a) - (d) supra referidos. Por exemplo, a ideologia de um partido político que é essencialmente marxista-leninista e ateu (como o PAIGC, o MPLA, O FRELIMO e outros partidos comunistas-ateístas) interpreta e aplica os quatro elementos (a) - (d) em termos pragmático-utilitaristas. Por exemplo, todos que defendem a ideologia marxista-leninista defendem a ética utilitarista, ética de consequência, segundo a qual "os fins justificam quaisquer meios" (veja o capítulo sobre a Ética normativa). Em termos concretos, por exemplo, o meu colega sueco, professor catedrático, doutor Torbjörn Tännsjö, marxista-leninista e ateu, defende este tipo de ética no seu livro Ética médica (em sueco Medicisnk etik) quando afirma, segundo o utilitarismo ético – ao contrário da Ética deontológica (Ética do dever ou da obrigação moral) –, que uma acção é boa e justa se, e apenas se, as suas consequências forem boas, isto é, se as suas consequências podem fazer muitas pessoas felizes (e quanto maior número de pessoas a beneficiar-se dela, tanto melhor).47 É, portanto na opinião de Tännsjö, aceitável, desejável e justo, se um médico ou hospital agir da seguinte maneira para com os doentes. Suponhamos que 10 doentes, sofrendo cada um de doenças diferentes e para recuperarem a saúde, precisam de ser submetidos a uma transplantação orgânica. É moralmente justo e desejável, afirma Tännsjö, pegar numa pessoa sã, com ou sem o consentimento dela, tirar vários órgãos (rins, coração, pulmão, olhos, etc.) para transplante nos 10 doentes com necessidades diferentes. A consequência desta acção utilitarista é boa – diz Tännsjö, pois a saúde e com ela, a felicidade destes 10 doentes compensam e justificam a infelicidade, a dor, o sofrimento e a morte de uma só pessoa.48 Implícito neste raciocínio macabro e utilitarista, descobrimos uma Ética inumana e relativista, segundo a qual para quem defende o princípio "os fins justificam os meios" não existe normas morais (ou outras) imutáveis e absolutas como as regras deontológicas: "não matarás um inocente", "não levantarás falso testemunho contra o teu próximo", "não adulterarás", "não furtarás", etc.49 Sendo tais pessoas não só utilitaristas mas também agnósticas ou ateístas, nem Deus, nem a sua própria consciência moral, nem tão pouco a opinião pública ou o senso comum pode impedi-las de irresponsavelmente infringir, bem estabelecidas, normas morais, jurídicas e outras. Para elas, tanto a mentira como a verdade têm apenas um valor extrínseco, instrumental, relativista e utilitário. Para tais agnósticos ou ateus e relativistas, a pessoa humana não tem dignidade objectiva alguma, isto é, não tem um valor intrínseco, objectivo, constante ou imutável, imperdível absoluto e, consequentemente, não possui nenhum direito inalienável como os preconizados na Declaração Universal dos Direitos do Homem. Por isso, se opõem à liberdade de expressão como direito constitucional de todos os cidadãos de um Estado Democrático de Direito, por sua vez, imprescindível à preservação de uma autêntica democracia.50 Por isso, manipulam as pessoas à la Tännsjö, segundo a ilustração no

47 Estas duas teorias Éticas e outras serão analisadas no capítulo intitulado Ética normativa. 48 Minha tradução livre. Veja os livros e artigos do professor Tännsjö i http://people.su.se/~tanns/ (17 Julho 2011). 49 Para os deontológicos, ao contrário de utilitaristas (consequencialistas e proporcionalistas), desobedecer estas normas é practicar uma acção moralmente má ou ilícita em si (latim: mala in se). 50 Cf. Kant (1981), p.40f. Convém distinguir aqui entre dignidade objectiva (que é igual para todos, segundo Kant) e dignidade subjectiva (que pode variar de indivíduo para indivíduo). Os direitos humanos baseiam-se na dignidade objectiva.

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parágrafo anterior. Pois, como disse Fjodor Dostoiévski, se Deus não existe, tudo é permitido!51 E os ateístas afirmam e propagam que Deus não existe.

5. A dureza da vida e o dilema do pobre Os pobres que, por causa da dura realidade da vida, podem por vezes e por algum tempo, "vender" a sua consciência moral, dignidade e honestidade (isto é, prostituírem-se), para salvarem as suas vidas e/ou as dos seus filhos, não seguindo, consciente e necessariamente, o princípio: "os fins justificam os meios", mas perante um dilema ético sentem-se forçados a escolher 'o menor de entre dois males'. No livro de Job 2,4, na Sagrada Escritura, lemos: "Então o Satanás respondeu ao Senhor, e disse: Pele por pele, e tudo quanto o homem tem dará pela sua vida". É nesta ordem de ideias que o 'coitado', como o 'Nho lobo na Merca, na Tempu de P.A.I.', no artigo já mencionado (cf. capítulo 4

51 Se Deus não existe ou para quem não acredita em Deus, tudo é permitido. Cf. o artigo de Teófilo Santos Silva no jornal Terra Nova, Abril 2001.

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acima), sente-se obrigado a aderir-se a um partido político, sem primeiro reflectir seriamente sobre a possível implicação perniciosa da sua adesão, vendo isto apenas como uma, ou a única oportunidade de sobreviver a sua situação existencial dilemática. Pelo contrário, os que intencionalmente, isto é, depois de uma reflexão inteligente e sem remorso de consciência, seguem o princípio: "os fins justificam os meios", são todos quantos fazem da mentira, da concupiscência e de outros vícios imorais uma virtude ou seja 'prostituem-se' seguindo a regra: fazer o mal pela causa do mal (latim: concupistientia gatia concupistientiae). Estes maus 'pastores', falsos guias e autocognominados de “luz e guia do nosso povo” são, por isso, fatal e impreterivelmente afectados pelos infaustos efeitos das admoestações dos profetas Isaías e Jeremias: "ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem mal; que fazem da escuridade luz, e da luz escuridade; e fazem do amargo doce, e doce do amargo! Ai dos que são sábios a seus próprios olhos, e prudentes diante de si mesmos! … [Ai] dos que justificam o ímpio por presentes, e ao justo negam justiça." (Isaías 5,20-23). Cf. Jer. 22,13, cf. Ezequiel 34 e João 10). À Luz do acima exposto, penso que é mais frutífero discutir a moralidade e humanidade (ou a falta das mesmas) implícitas nas ideologias políticas dos vários partidos políticos, do que atacar, por vezes exageradamente, os políticos, seus defensores ou simpatizantes, porquanto um partido pode ter um bom programa, mas ter, ao mesmo tempo, militantes desonestos ou vice-versa. E é psicologicamente possível simpatizar com uma pessoa sem aceitar a ideologia que ela defende! O contrário pode também ser verdadeiro. Nos debates durante as campanhas eleitorais, principalmente a última deste ano (2006), houve muita agressão dirigida a pessoas, em vez de uma análise cuidadosa, sucinta e objectiva das ideologias ou dos discursos pomposos que constituem motivos de muitas promessas falsas, sem cabimento e suporte substancial. Mas há excepções, como alguns disputantes têm demonstrado, no fim e depois das campanhas ao começarem a discutir problemas ideológicos. Foi pena que discussão civilizada, deste género, isto é, sem ataques a pessoas, não tivesse começado muito antes do início das campanhas eleitorais, a fim de chamar a atenção do eleitoral pelo que podia acontecer! Espero, porém, que muitos sigam, agora, os exemplos destes bons disputantes ou contrincantes políticos. É relevante ter in mente que ataques às pessoas podem ser contraproducentes! E quem os prefere à crítica ideológica, prefere, por vezes, engolir elefantes a peneirar (espantar, coar ou matar) mosquitos. Outra razão de preferir um debate crítico e autêntico sobre ideologias, e não sobre pessoas, é que se um partido tiver um programa democrático, propício ao desenvolvimento integral da nação no seu todo para o bem-estar dos cidadãos, e se for defensor dos direitos inalienáveis destes últimos, pode-se apelar ao programa para afastar ou punir os que o interpretam mal ou abusam da sua ideologia política e do seu pressuposto. Mas se tanto o programa como os que o implementam – os militantes do partido a que o programa pertence – forem sobremaneira perniciosos e execráveis, então será necessário combater tanto o programa como os seus defensores e propagadores. Neste caso, apenas discussões sobre políticos e/ou as suas ideologias não são suficientes. É preciso também uma força política ou autoridade justa e forte, fora de tal partido (ou melhor suprapartidária), para abolir, modificar ou reformar o programa para, deste modo, libertar a sociedade ou o sistema político reinante do programa antidemocrático e dos seus defensores ferrenhos ou fanáticos. Também na política, quem luta pela verdade, pela justiça e pelo bem, tem de estar disposto a deambular num caminho estreito, isto é, tem de estar disposto a defender ou pagar, mesmo que seja com o próprio sangue, pelo que afirma publicamente. Summa summarum, penso que seremos mais frutífero e efectivos, se escrutinarmos e construtivamente criticarmos as ideologias políticas dos vários partidos políticos, em vez de atacar os políticos que dizem defendê-las, mesmo que os defensores sejam desprovidos de integridade moral, enganadores, manipuladores e imbuídos de mil

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artimanhas. E se têm todos estes defeitos – que também devem ser criticados – mostram que não são capazes de exercer a função que querem exercer. Mas se o conteúdo ético das ideologias que pretendem defender não contradiz mas defende e promove a dignidade do homem e os seus direitos inalienáveis que daí advêm, podem estas mesmas ideologias servir de argumentos para politicamente se libertarem de tais políticos impostores, imorais e traidores do povo e da sua pátria.52 Portanto, é necessário e frutífero distinguir entre uma ideologia política e o seu verdadeiro defensor. É também necessário distinguir entre o que o pobre faz por necessidade de sobreviver e o que o oportunista faz por conveniência pessoal, mesmo que lhe custe a sua dignidade e a sua consciência moral.

6. Deste lado a verdade é completamente diferente

O diálogo está na ordem do dia, pelo menos nos países nórdicos e nos democráticos. Fala-se do valor e da função do diálogo, por exemplo, na pedagogia, na pregação do evangelho, na política (nacional e internacional), na psicoterapia, na relação matrimonial, entre médico/enfermeiro e paciente, na atitude do vendedor perante o comprador, entre o Cristianismo e as outras religiões em contextos ecuménicos, etc. Nestes diferentes contextos, o termo “diálogo” é usado em sentido positivo para contrabalançar o sentido pejorativo que a designação de, por exemplo, determinado tipo de pedagogia, pregação, discussão política e gestão empresarial, ética médica ou de tratamento, incorpora, o que se pode chamar um método autoritário, impregnado de atitude paternalista.53 Assim, o

52 Noruega, 8 de Maio de 2001. 53 A palavra “paternalista” vem do grego patér (latim pater) que significa pai. Uma atitude paternalista designa

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diálogo está na moda e tornou-se uma varinha mágica ou a presumível panaceia para todas as enfermidades verbais dos logopatas. Apesar do optimismo expresso no conceito de diálogo, e para que a exortação ao diálogo não seja apercebida como um flautus vocis, é bom perguntar, não retoricamente, o que se entende por diálogo, mas quais são algumas das condições necessárias ao diálogo e porque recomendar o diálogo como método eficiente e moralmente preferível de comunicação verbal e atitudinal ou metalinguística? Embora em certos meios políticos (no Norte e no Sul, no Leste e no Ocidente) o apelo ao diálogo possa ser apenas uma maneira sugestiva ou também persuasiva, de dar às pessoas a sensação de que não estão a ser enganadas pelos seus 'legítimos' escolhidos ou representantes políticos, para os lúcidos, no entanto, um tal apelo pode ser apenas uma infracção das condições indispensáveis a um diálogo autêntico (veja definição deste termo abaixo). Por outras palavras, falar do diálogo sem o definir, pode ser um abuso de linguagem, um modo 'bonito' e eufemista, e uma maneira civilizada e sofisticada de enganar a massa popular. Lembremos que a sugestão ou persuasão, por meio de palavras bonitas, foi sempre e é, ainda, algo proeminente em campanhas eleitorais, publicidade comercial e propaganda ideológico-política. Por não ter a pretensão de exaurir a descrição quer das condições necessárias, quer das suficientes ao diálogo autêntico, vamos considerar apenas quatro das condições necessárias que nos parecem ser as mais relevantes neste contexto.54

Quatro condições necessárias a um diálogo autêntico Antes de mais, é necessário precisar o ambíguo termo "diálogo". Este termo pode, primeiro, referir-se a uma atitude positiva, tolerante e de respeito que se deve ter para com uma ou várias pessoas ou grupo de pessoas, especialmente numa discussão. Segundo, “diálogo” pode referir-se a uma discussão impregnada de tolerância, abertura, imparcialidade, esforço de compreensão, desejo de aprender e respeito mútuo entre duas ou mais pessoas, dois ou mais grupos. Este significado pode ser visto como uma qualificação do sentido etimológico da palavra “diálogo” (do grego dia+logein) que significa, simplesmente, troca de palavras entre dois ou mais interlocutores. É bom acentuar que num diálogo autêntico os dialogantes devem estar dispostos a aprenderem algo um do outro (cf. o conceito de diálogo, segundo o WCC’s Guidelines on dialogue). No que se segue restringir-nos-emos ao segundo significado do termo "diálogo", ou melhor, “diálogo autêntico” (cf. o parágrafo anterior). O que tencionamos fazer aqui, repetimos, é enumerar quatro condições necessárias (mas nem sempre suficientes, dependendo de contextos) a um diálogo autêntico. A primeira condição necessária a um diálogo autêntico é sobre a compreensão, definição ou interpretação do assunto a ser discutido (o tema ou a tese a ser dialogada, discutida ou debatida, defendida ou refutada). Num diálogo autêntico devemos admitir tanto a) interpretações e/ou juízos de valor divergentes como b) interpretações e/ou juízos de valor comuns (convergentes). Antes de justificar esta afirmação, damos um exemplo ilustrativo: se duas pessoas, chamemos-lhes de A e B, quiserem dialogar sobre

uma atitude que caracteriza a relação entre pai e filho ou filhos, em que o pai é responsável pelos filhos menores de menos de 18 anos. É conveniente distinguir entre paternalismo genuíno e não genuíno. O primeiro, ao contrário do segundo, designa uma relação entre pais e filhos, segundo a qual os pais cuidam dos verdadeiros interesses dos filhos. O paternalismo genuíno é recomendável. 54 São as condições oferecidas pelos partidos políticos já existentes em Cabo Verde e os em gestação, segundo o jornal Terra Nova de Fevereiro de 1994, página 8. Cf. As dez condições necessárias ao diálogo entre o Cristianismo e as outras religiões, segundo o Conselho Mundial das Igrejas (WCC’s Guidelines on Dialogue …, 1979, p.16ff.).

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assuntos controversos, por exemplo; o aborto provocado, a eutanásia, a fertilização in vitro, a ordem, a segurança e a unidade nacional, só poderá haver um diálogo autêntico entre elas, se o conceito do Homem ou da dignidade da pessoa humana, no qual A fundamenta os seus argumentos prós ou contra o aborto, a eutanásia ou a fertilização in vitro, etc., for apenas em parte diferente do conceito do Homem ou da dignidade da pessoa sobre o qual B fundamenta os seus argumentos. A existência de uma diferença real entre A e B, no que diz respeito à tese, ao conceito ou assunto em discussão, à interpretação e opinião, aos argumentos, etc., usados numa discussão, fazem com que o diálogo seja praticamente (mas não teoricamente) necessário. Mas tal diferença não deve ser de 100 %. Se assim for, não pode haver um diálogo. Daí a necessidade de, pelo menos, um "denominador comum" entre A e B com respeito às suas respectivas interpretações do tema em diálogo, aos seus respectivos conceitos, argumentos a serem usados numa possível discussão. Este denominador comum (inglês: shared beliefs ou common ground) possibilita um entendimento entre A e B ou uma compreensão mútua, pelo menos intelectualmente falando. Por outras palavras, entre A e B tem de haver possibilidades tanto de acordo como de desacordo. Se houver só uma destas alternativas, não haverá um diálogo autêntico. Por exemplo, onde não existe possibilidade tanto de acordo como de desacordo, é supérfluo falar de tolerância e respeito mútuo, condições indispensáveis ao diálogo autêntico! Uma segunda condição sine qua non do diálogo autêntico é: se duas pessoas, A e B pretenderem entrar num diálogo autêntico devem estar dispostas a respeitar; a autonomia, a opinião, a identidade pessoal e a dignidade de uma e outra e de terceiros. Esta condição é importante, indispensável e relevante sobretudo no Terceiro Mundo, onde as pessoas tendem antes a insultar e provocar os seus interlocutores em "discussões aparentemente sérias", em vez de discutirem factos, opiniões, pareceres, teses e argumentos. A distinção, entre facto e pessoa, é importante, se se quiser evitar o uso de argumentum ad hominem (dirigido ao homem), e desde que se queira ser tão claro, objectivo e imparcial quanto possível. Por outras palavras, o tipo de argumentum ad hominem consiste essencialmente em atacar a pessoa ou dignidade do interlocutor ou dialogante – a fim de obrigá-lo a desviar a sua atenção to assunto em discussão –, em vez de examinar ou analisar criticamente e de forma construtiva a tese e os argumentos dele. A segunda condição necessária ao diálogo autêntico não é apenas uma condição psicológica universal, mas é também, em princípio, uma condição moral e ética aceitável em todos os estados democráticos de direito. Psicologicamente falando, cada ser humano tem necessidade e desejo de ser respeitado e reconhecido pelo que é (sua identidade), sentindo, ao mesmo tempo, receio de ser alienado, estigmatizado ou aviltado. Por isso, pode-se aceitar a perda de autonomia e o direito de ter razão, só em caso de compromisso, o que pressupõe uma certa perda e um certo ganho de prestígio de ambos os lados (isto é, entre interlocutores ou dialogantes participando num diálogo autêntico). Portanto, o diálogo é algo benéfico ao ser humano em si, por ser um meio de respeitar e manter a dignidade pessoal e de defender o orgulho, a auto-estima natural ou prestígio, ambos necessários à preservação da identidade psicológica e social, factores sem os quais o indivíduo corre o risco de perder a sua saúde mental, sociabilidade e a sua capacidade de comportamento normal; a nível ético, económico, político, etc. Uma terceira condição necessária para que se dê o diálogo autêntico é: as partes que queiram entrar num diálogo autêntico não devem partir do princípio que possuem toda a verdade, que são infalíveis e cognitivamente incorrigíveis no que afirmam. Pelo contrário, elas devem mostrar generosidade e humildade suficientes para poderem reconhecer os limites dos seus próprios conhecimentos, aceitando, ao mesmo tempo, a responsabilidade moral que daí advém. Pois, a pessoa que afirma possuir toda a verdade não sente a necessidade de entrar num diálogo autêntico – onde pode ser corrigida. Pelo

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contrário, sentir-se-á, muitas vezes, indisposta em respeitar o direito que os outros têm de fazer uma igual afirmação exclusivista quanto à posse da verdade, nua e crua. Esta atitude é prejudicial, porquanto quem entra numa discussão com sentimento e convicção de autossuficiência e espírito de incorrigibilidade cognitiva, portanto de infalibilidade – um exclusivista e absolutista – tenderá a ensinar ou antes, a pregar a "verdade" (declaramos: a sua verdade) em vez de escutar cuidadosamente e reagir, cautelosa e simpaticamente, respondendo, com contra argumentos construtivos e relevantes, com a humildade, a imparcialidade e o respeito necessários, com o desejo e a intenção de aprender algo novo ou de ser corrigido, em vários aspectos, pelo seu interlocutor. A atitude exclusivista e absolutista – é o contrário das seguintes atitudes propícias ao diálogo autêntico:

Uma atitude pluralista e de tolerância no que se refere ao direito que os outros têm de sustentarem e defenderem opiniões diferentes.

Uma atitude de humildade com que se deva aceitar o facto de que ninguém tem a capacidade de conhecer toda a verdade.

Uma atitude exclusivista, tem a tendência de evocar nos outros uma atitude semelhante, isto é; exclusivista e intolerante, portanto, inaceitável ao interlocutor com quem se pretende dialogar, o que impossibilita um diálogo autêntico. Nota bene, que nem a atitude pluralista nem a de humildade, por si sóis, implicam que a verdade é relativa. O que implicam é o facto do conhecimento humano ser relativo por causa de vários condicionalismos que impedem um indivíduo de conhecer toda a verdade – a verdade absoluta (cf. 1 Cor.13, 13). Tais condicionalismos podem ser internos ao indivíduo como: ignorância do assunto em questão, esquecimento, doenças, cansaço, ou condicionalismos externos ao indivíduo: o facto dos outros poderem dominar o assunto em discussão, melhor do que nós, ou o ambiente e o contexto da discussão podem ser impróprios a certo tipo de interlocutor, tema em discussão, etc. A quarta condição necessária ao diálogo autêntico é: quem pretenda iniciar um diálogo autêntico deve estar disposto não só a "dar”, mas também a “receber", isto é, disposto tanto a “ensinar” como a “aprender” durante o diálogo.55 Também deve estar mentalmente preparado tanto para perder como para ganhar, ou então para atingir um compromisso. Por outras palavras, quem pretenda um diálogo autêntico deve estar disposto a sofrer uma transformação cognitiva e emotiva, o que implica, inter alia, aprender algo sobre os limites dos seus próprios conhecimentos ou os do seu interlocutor ou antagonista, ou os de ambos. Isto pode ser possível desde que os parceiros em diálogo tenham um propósito comum, baseado em interesses comuns, como por exemplo, estabelecer a democracia, a paz numa comunidade ou nação e no mundo ou a criar ou manter ordem e segurança num país. Pensemos, por exemplo, nas várias tentativas de diálogo entre J. Savimbi e o Governo de Luanda, entre N. Mandela e de Clerk, e entre os israelitas e os palestinianos! É natural que algumas destas tentativas tenham falhado por uma ou ambas as partes não terem cumprido algumas das condições necessárias ao diálogo autêntico que enumeramos aqui. Estas quatro condições são, quer tomadas individualmente, quer em conjunto, apenas necessárias (conditio sine qua non) portanto insuficientes ao diálogo, porquanto o diálogo autêntico requer mais condições necessárias. Que são necessárias, significa que se não forem cumpridas não haverá um diálogo autêntico. As suas justificações últimas – para as pessoas de espírito democrático – é o respeito pela dignidade da pessoa humana e pela liberdade de expressão, constituindo o primeiro conceito a justificação moral da Declaração Universal dos direitos do Homem, enquanto o segundo – a liberdade de

55 O teólogo católico, Bernhard Häring apresenta quatro regras (condições necessárias) ao diálogo ecuménico. A terceira regra é: “O diálogo, para ser fecundo, exige que estejamos dispostos a aprender

alguma coisa dos outros”. Häring, B. (1968), p. 178.

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expressão – é apenas um desses direitos fundamentais e inalienáveis. Tanto o direito ao respeito pela dignidade humana como o respeito pela liberdade de expressão estão implícitos ou explícitos nas leis básicas e nas Constituições das nações democráticas contemporâneas Summa summarum, podemos concluir, afirmando que um diálogo autêntico é o meio mais pacífico e, por conseguinte, humano de resolver problemas resultantes de conflitos de interesses de ordem vária. O diálogo é também a via mais apropriada de educar os cidadãos no espírito democrático e de implementar ideias democráticas ou princípios democráticos. Daí o seu inigualável, insubstituível e inestimável valor pedagógico no ensino e em toda e qualquer forma de comunicação social, cujo fim último é informar e formar os seres humanos. Por isso, partindo do princípio que tanto o diálogo autêntico como a democracia pressupõem a tolerância, a transparência, o respeito pela pluralidade de valores, normas, interesses, ideologias e dignidade da pessoa humana, só um antidemocrata ferrenho ou um anarquista empedernido estará interessado em negar o valor instrumental do diálogo como meio mais propício de comunicação verbal e atitudinal.56

7. A responsabilidade do cidadão numa democracia em gestação Ao pensar no modo como o nosso povo é sacudido pelas multiformes ventanias políticas, na época de campanhas eleitorais, como uma galinha morta pendurada numa árvore e agitada incompassívelmente pelo vento, me vem automaticamente à mente o poema "Povo" do poeta “foguense”, Viriato Gonçalves:

"Luta-se pelo Povo Imola-se pelo Povo Porém, nada modifica A situação do Povo."57

56 Barbosa da Silva A. (1994). Deste lado a Verdade é completamente diferente (Gotemburgo, Suécia ao 23 de Março de 1994, The Nordic School of Públic Health). Terra Nova, Abril de 1994, p.2 e 6. 57 Viriato Gonçalves, Poema Grito 1987, p.70-71.

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Parece-me que alguns políticos só se interessam seriamente pelo povo em épocas eleitorais, quando saem pelas ruas e avistam-se em lugares públicos, cumprimentam o povo com reverência e devoção, exibindo gestos que, aparentemente, exprimem boa educação, respeito pelos outros, amabilidade sincera e simpatia autêntica, numa palavra 'morabeza'. Infelizmente, tanto a experiência do dia-a-dia como os factos sociológicos têm mostrado que no fundo, o comportamento aparentemente amigável de tais políticos, nas épocas eleitorais, é motivado pelo valor apenas instrumental ou utilitário que atribuem ao povo, convertendo-o num simples meio para atingir os seus próprios fins egoísticos, que é o de subir "ao poleiro" ou à Tribuna do Poder, esquecendo logo depois das eleições, que o povo foi o "trampolim" que os elevou às "alturas da grandeza". O senhor Gonçalves descreve a "conversão", e instrumentalização e redução do Povo em trampolim, nos seguintes termos:

“Quem libertará o Povo? Quem salvará o Povo? Ninguém. Porque o Povo É Povo. O Povo é a constante Que a todo o instante Serve de trampolim Para o outro subir Um outro subir Um outro ainda subir Indefinidamente...”58

À luz deste poema, todos que, com expectativa e ouvidos refinados e uma certa desilusão e/ou desconfiança, esperam pelas próximas campanhas eleitorais têm toda a razão de perguntar: Porque é que todos os cidadãos de um país democrático, como Cabo Verde deve, impreterivelmente, ir às urnas, nos dias das eleições, depor o seu indispensável e valioso voto? No que se segue vou dar três razões por que todos que têm o direito e o dever de votar, devem fazê-lo, com convicção e sem hesitação.

O cidadão democrático vota para defender o fundamento da democracia O fundamento moral ou ético das democracias contemporâneas é o valor intrínseco e a dignidade da pessoa humana, isto é, o valor moral de cada ser humano, sem atender a "distinção alguma, nomeadamente de; raça, género, idioma, religião, opinião política e outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação".59 A expressão "dignidade da pessoa humana" é muito usada, por exemplo, em contextos éticos, jurídicos e político-democráticos, mas poucas vezes é esclarecido o seu verdadeiro significado. Quem a introduziu na teologia moral foi São Tomás de Aquino (1224-1274).60

58 Ibid. 59 Cf. A declaração Universal dos Direitos do Homem de 10.12.1948, art.º 2. 60 São Tomás, influenciado por Aristóteles, concebeu a pessoa humana como uma unidade integral de corpo

I alma. Os filósofos ctólicos Jacques Maritain, Emmanuel Mounnier, Ettiènne Gilson, conhecidos como filósofos personalista, desenvolveram o pensamento de São Tomás (veja:

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E quem explicou o seu sentido moral foi o filósofo racionalista, humanista e iluminista Emanuel Kant (1724-1770).61 Ao relacionar o conceito de dignidade com o conceito de autonomia (liberdade interior), Kant fez de ambos a base da ética humanística que é uma condição imprescindível tanto à democracia moderna e contemporânea como aos direitos humanos.62 A fim de distinguir claramente o valor humano de outros valores, Kant "faz a distinção entre a posse de valor e a de dignidade". Assim diz: "O que quer que tenha valor pode ser substituído por qualquer coisa de valor equivalente; o que, por outro lado, se encontra acima de qualquer valor e por conseguinte não admite equivalente (por exemplo, o ser humano), possui uma dignidade."63 Por outras palavras, falar da dignidade do ser humano é afirmar e enfatizar que o valor do ser humano é tão grande que não admite equivalente visto ser incalculável, isto é, o homem não pode ser e, por isso, não deve ser medido em escalas de valores, o que o faz um ser inestimável. O ser humano vale mais que o mundo inteiro, como Jesus deixou bem claro (cf. Mat. 16, 26; Mc. 8,36: “Pois que aproveitaria ao homem ganhar todo o mundo e perder a sua alma?”). A Bíblia expõe ainda esta mesma ideia ao falar do Homem como ser criado à imagem e semelhança de Deus (Imago Dei). Esta ideia implica ainda que, por causa da dignidade da pessoa humana, cada ser humano é insubstituível, irrepetível, singular e único. Este 'facto' ontológico e essencialmente moral (ou axiológico) estabelece uma igualdade fundamental entre todos os seres humanos e dá-lhes os mesmos direitos inalienáveis, principalmente os descritos nos 31 artigos da DUDH. Esses direitos estão incorporados e garantidos nas constituições dos países democráticos, membros das Nações Unidas (cf. a Constituição actual da República de Cabo Verde). A dignidade e os direitos básicos de cada um constituem condições necessárias e suficientes à existência do dever ou da obrigação moral de todos os indivíduos humanos, nas suas inter-relações, em especial, dos cidadãos de uma democracia.64 Por todos os seres humanos serem iguais em dignidade e direitos básicos, mas cada um é único (quanto à sua integridade genética), devemos tolerar e respeitar certas desigualdades importantes entre indivíduos, por exemplo, o facto de cada um ter a sua própria identidade, baseada numa fisionomia própria, raça, cor, aparência, modo de ser, expressar e de agir, e o direito de ter gostos e opiniões diferentes, etc.

O cidadão democrático vota para defender os seus próprios direitos inalienáveis Os direitos mais fundamentais baseados na dignidade humana são: "o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal" (artigo 2 da DUDH). Nestes baseiam-se outros direitos como o direito à liberdade do pensamento, de consciência e de religião; liberdade de opinião e de expressão, o direito ao trabalho e ao salário igual por trabalho igual, direito à instrução primária e à aos cuidados da saúde, etc. (cf. o artigo 25 da DUDH). Tanto a

http://www.comshalom.org/blog/antoniomarcos/?p=928). 61 Kant, I. (1981), p. 40ff). 62 Os padres da Igreja já consideraram o conceito de pessoa sob o ponto de vista da teologia. Também "ficou célebre a definição de Boécio (século VI): 'substância individual de natureza raciona' (naturae rationalis individua substantia) definição" que S. Tomás veio refinar. 63 Kant, I. (ibid.) p.40ff). 64 Não obstante, convém salientar aqui que os direitos humanos são direitos que os cidadãos têm em relação ao estado. Se o estado a que um individuo pertence já ratificou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, então os direitos humanos são para tal indivíduo tanto direitos jurídicos como morais ou éticos. Para os estados que ainda não ratificaram os direitos humanos, estes são apenas direitos morais ou éticos para os cidadãos destes estados.

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dignidade humana como os direitos fundamentais, que daí advêm, são inalienáveis. Isto significa que não são transferíveis. A dignidade de cada pessoa é algo que cada ser humano possui incondicionalmente, baseado apenas no facto de ter nascido como ser humano. E por ser assim, a dignidade é algo que a pessoa não perde nem mesmo depois da morte, porquanto é inerente e indestrutível. É, por isso, que os mortos devem ter um funeral respeitável e condigno. A dignidade é inviolável não no sentido literal do termo (isto é, que não pode ser violada) mas no sentido moral e ético, nomeadamente que ela não deve ser violada. A dignidade é constante por não variar com o crescimento do indivíduo nem com a sua condição de saúde, estado civil, carácter moral, actos e omissões, etc., o que significa que os idosos, os doentes, os presos, os mendigos, os marginalizados, etc., têm a mesma dignidade e os mesmos direitos inalienáveis que todos os outros seres humanos considerados como “normais”. Um país democrático deve garantir isso. Portanto, o cidadão democrático deve procurar aprofundar os seus conhecimentos sobre os seus direitos e deveres e sobre os mecanismos democráticos que prescrevem e garantem o cumprimento dos mesmos. O seu dever de sempre ir votar em eleições livres, com firmeza, convicção, consciência limpa e boa vontade é o meio, mais adequado, pelo qual, em conjunto com os seus concidadãos, defende a dignidade humana e o fundamento ou os alicerces da democracia, sendo esta última o instrumento político mais justo e eficiente de garantir e salvaguardar os direitos inalienáveis, como os supra mencionados. Assim, através do voto, o cidadão responsável contribui para o desenvolvimento e fortalecimento da democracia, o que é uma maneira civilizada e ética de combater e prevenir a ditadura ou tirania ou, o que é ainda pior, a anarquia.

O cidadão democrata deve votar motivado pela sua integridade moral O cidadão democrata deve sempre votar motivado pela sua integridade moral. De uma maneira geral, podemos dizer que todas as pessoas têm integridade moral. Mas a integridade moral, como qualidade do carácter moral, pode variar de pessoa para pessoa. Para o bom funcionamento da sociedade e da humanidade inteira, é desejável que todas as pessoas tenham ou lutem por uma grande integridade moral. Uma pessoa de grande integridade moral tem, entre outras, as seguintes características:

Ela é coerente na sua obediência de princípios e valores éticos.

Não deixa os seus próprios interesses pesar mais do que os do seu próximo.

Está sempre preparada a sofrer as consequências dos seus actos e suas omissões.

Por possuir estas características, os outros podem confiar nela. Portanto um cidadão que aprecia e cultiva a sua integridade moral não cruza os braços irresponsavelmente, nos dias das eleições, como quem espera que os outros façam o dever dele. Mas deve estar sempre preparado a criticar os que, sem razões suficientes, não cumprem os seus deveres, por exemplo, o de votar em eleições livres. Um cidadão livre e responsável não se sente confortável em apenas usufruir do trabalho e dos esforços dos outros, sem dar a sua devida contribuição. Pelo contrário, procura cumprir os seus deveres e mostrar-se solidário para com os seus concidadãos, em particular, e o seu próximo, em geral. Este último pode ser um estrangeiro, visto que o nosso próximo é qualquer indivíduo humano que precisa de nós. É por isso que o cidadão responsável sempre vai às urnas quando há eleições livres, audacioso, convicto e orgulhoso da sua liberdade de escolha e não hesitante, por saber que, ao agir deste modo, cumpre um dever categórico, pois contribui assim para a implementação dos valores imprescindíveis à vida, que um Estado

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Democrático de Direito defende, protege e cultiva valores tais como: a justiça, a prosperidade ou o bem comum, o bem-estar geral, a paz, a ordem social, a segurança nacional e os benefícios proporcionados pelas liberdades fundamentais. Ao agir responsavelmente, o cidadão democrata contribui directa ou indirectamente (no seu modo de ser e agir) na formação do carácter moral das crianças e dos jovens, estimulando o cultivo de certas virtudes morais indispensáveis à manutenção e ao desenvolvimento do espírito democrático. Exemplos de tais virtudes morais são, a honestidade, a modéstia, a humildade, o sentimento de justiça, de solidariedade e de compaixão, de veracidade ou respeito pela verdade "sã e crua", o respeito pelo bem, o belo, o sublime e sacrossanto, pela dignidade e pelo bom nome de cada um. Afinal, como disse Henri Bergson, no ideal democrático do dictum da revolução Francesa (1848): liberdade, fraternidade e igualdade (fr. liberté, fraternité et egalité), fraternidade é o conceito mais fundamental e no parecer de Bergson, este dictum é uma maneira de traduzir o Evangelho em prática, isto é, num ideal político.65 Infelizmente, os ideais democráticos, acima referidos, estão longe de serem realizados em Cabo Verde. Embora o conteúdo deste capítulo tenha sido escrito num artigo no jornal Terra Nova em 2001, é relevante mas deprimente constatar que, ainda hoje em 2012, a situação política não melhorou consideravelmente em Cabo Verde.66 Pelo contrário, as fraudes eleitorais recentemente ocorridas em Julho, por exemplo, na Ilha do Fogo e na Ilha do S. Tiago (Santa Catarina), constituem razões suficientes para duvidarmos se Cabo Verde é realmente um Estado Democrático de Direito, como a nosso Constituição e a propaganda política afirmam. Por isso, podemos perguntar ao actual governo: quo vadis a independência política de Cabo Verde? A resposta parece ser: vai de mal a pior! Contudo, espero que a hipótese do/da Sr./Sra. @ANT seja falsa, quando ele/ela escreve, no jornal Terra Nova de Julho de 2012, página 8: “Julho poderá vir a ser, […], o mês da vergonha para todos os amantes da democracia e do estado de Direito”. Resumindo e concluindo, apesar de muitas controvérsias e muita incivilidade nas campanhas eleitorais, se as pessoas com direito de votar não votarem, contribuirão deste modo, para reduzir a percentagem de participação na eleição, o que pode tornar os resultados menos democráticos. A não participação pode ter como consequência o desequilíbrio de interesses e ideologias na estrutura democrática e no processo democrático, o que pode afectar perniciosamente o fundamento da democracia que é a garantia do bem-estar da nação inteira. Devemos portanto, tomar a sério a nossa obrigação moral de votar democraticamente, evitando assim, de mais tarde, termos de projectar nos outros a nossa própria culpa pelo fracasso da democracia cabo-verdiana, que é muito jovem e que ainda está, por assim dizer, em ‘gestação’, portanto a precisar constantemente de alimento apropriado para não se definhar e morrer prematuramente.67 Este alimento é sobretudo a participação de todos cabo-verdianos nos vários processos democráticos e nas várias actividades democráticas, por exemplo, votar livremente, protestar contra a injustiça e o crime, e lutar pela ordem e segurança, saúde e o bem-estar de todos em Cabo Vede, sem discriminação de ninguém. Lembremos também que, apesar da euforia das campanhas eleitorais, não devemos ofender a ninguém, por este ter uma opinião diferente. Pois somos interdependentes e, portanto, precisamos uns dos outros, antes durante e, sobretudo, depois da campanhas eleitorais.68

65Veja Bergson, H. (1956), p. 282. 66 Veja Barbosa da Silva, A. (2001). O que se deve esperar do novo Governo do PAICV e da oposição do MPD e ADM? Terra Nova, Janeiro de 2001, p. 2. 67Veja o número do jornal Terra Nova de Novembro de 2000. 68 Stavanger, Noruega, 24 de Novembro do ano 2000. Artigo publicado pelo jornal Terra Nova em Dezembro de 2000.

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8. Cabo Verde precisa de uma terceira força política A tese que quero defender no que se segue é: Cabo Verde precisa de uma terceira força política forte para contrabalançar as possíveis deficiências e extravagâncias tanto do PAICV como do MPD. Sem uma terceira força política forte, muitos cabo-verdianos poderão sentir-se desnorteados como muitos americanos que não podem votar nem nos políticos democráticos nem nos republicanos (conservadores), por encontrarem em ambos problemas ideológicos que contradizem alguns dos seus ideais e valores fundamentas. Exemplos destes problemas são o aborto provocado, o casamento entre pares homossexuais (defendidos pelos democráticos mas rejeitados pelos republicanos), a defesa da pena de morte e o desmoronamento da justiça social e wellfare para todos os cidadãos americanos como o direito aos recursos necessários à manutenção ou recuperação da saúde para todos americanos (defendidos pelos republicanos e rejeitados pelos democratas). À luz desta controvérsia, certos cidadãos americanos não podem

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confiar 100% em nenhum dos dois partidos reconhecidos pela Constituição Americana. Porém, não são apenas os cidadãos que não votam, por estas e outras razões afins, que perdem com a omissão dos seus votos, mas também, e acima de tudo, a própria democracia é que perde, necessária e grandemente.

O dilema ético de muitos americanos durante as campanhas eleitorais Muitos americanos não votam nem nos democratas nem nos republicanos por confrontarem, pelo menos, com três dilemas éticos. Dilema no.1: Se estes cidadãos são contra o aborto provocado por o considerarem um homicídio e se são contra a pena de morte (os dois fenómenos estão eticamente interligados e ambos são condenados pela Ética cristã) não devem votar nem nos democratas – que defendem o aborto provocado –, nem nos republicanos que defendem a pena de morte. Dilema no.2: por um lado, se tais cidadãos são religiosos (judeus crentes, cristãos, muçulmanos, etc.) e acreditam que o matrimónio, segundo a Ética cristã, deve ser contraído entre um homem e uma mulher (isto é, entre pessoas de sexos diferentes), o que em princípio, lhes põe na posição de rejeitar o casamento de homossexuais e lesbianas, devem votar nos republicanos que defendem o casamento apenas entre sexos diferentes. Mesmo que os republicanos verbalmente defendem o conceito cristão do matrimónio, os que são confrontados com o dilema no 1, se são lógica e eticamente coerentes na aplicação dos seus valores morais, não devem votar nos republicanos. Como não existe uma terceira força política – como alternativa –, capaz de preencher o vazio criado pela incompatibilidade das ideologias dos dois partidos únicos já referidos, quem não quer defender nenhum deles, no seu todo, fica sem possibilidade de votar. Assim têm de forçosamente confrontar um terceiro dilema: a) votar em cumprimento do seu dever de cidadão mesmo estando consciente de que vota contra a sua própria convicção moral e/ou espiritual, ou b) não votar a fim de seguir a sua convicção, com consciência limpa, embora estejam conscientes de que o partido que vencer irá implementar certos ideais e valores que contradizem os seus valores pessoais e interesses fundamentais.

O dilema ético de muitos cabo-verdianos durante as campanhas eleitorais

Mutatatis mutandis, isto é, raciocinando analogicamente, como acima, pode-se dizer que muitos cabo-verdianos correm o risco de enfrentar semelhantes tipos de dilema que os americanos enfrentam. Isto pode acontecer, visto que Cabo Verde, na prática, só tem dois partidos políticos fortes que alternadamente substitui um ao outro, conforme o cansaço experimentado pelo, ou engendrado nos cabo-verdianos, pela desgovernação do partido em poder durante 5 anos, talvez por contingências históricas e não pela real vontade do povo, durante a última governação do MPD, ouvi pessoas lúcidas no campo político, pessoas não aderentes ao PAICV, dizer que haviam de votar no PAICV só para tentar diminuir ‘o poder e a altivez do MPD’. Se assim fizeram, estão agora a ver quem ganhou com isto. É muito natural que essas pessoas e também muitas outras aderentes ao PAI, estejam agora a raciocinar no sentido contrário, ao ver que afinal o MPD perdeu o poder,

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mas quem ganhou o poder não está a pôr em prática a política democrata desejada ou prometida durante as campanhas eleitorais, em termos de justiça social e defesa dos direitos humanos inalienáveis e dos direitos dos cidadãos cabo-verdianos, o que em termos éticos e político-pragmáticos, significa abusar do poder que o povo lhe confiou. Continuar a alternar entre o PAI e o MPD ou a abster-se de votar, por que se descobriu que, afinal de conta, não vale a pena votar em nenhum destes partidos, porquanto o pobre continua a ser pobre, os desempregados continuam sem trabalho, os doentes continuam sem cuidados de saúde, etc. (um modo peculiar de encarar a política), é pernicioso e perigoso para Cabo Verde, em termos de democracia e desenvolvimento integral do país. Cabo Verde precisa, portanto, de uma terceira força política forte, como alternativa à política dos dois referidos partidos. Mas temos de estar conscientes de que qualquer partido democrático enfrenta um dilema quando está no governo, o que não acontece com um partido não democrático pelas razões descritas abaixo.

O dilema de um partido democrático no governo

Um partido democrático no governo (mas não em oposição) pode sofrer o seguinte dilema. Depois de ganhar legalmente uma eleição, não deve, por exemplo, substituir funcionários públicos por elementos que ideologicamente suportam a sua política. Se o fizer, deixa de ser democrático e cria assim um chicote para as suas próprias costas, a longo prazo! Pelo contrário, um partido não democrático, se fizer tal tipo de substituição, embora infrinja tanto a constituição política do país como as práticas democratas do mundo inteiro, não infringe a sua própria ideologia política que é antidemocrata. Por isso, não deve ser criticado por aqueles que o levaram ao poder. Pois, em geral, os aderentes de um partido tendem e comprometem a não ver os erros do seu partido. Portanto, ao proceder antidemocraticamente, tal partido está a ser coerente para consigo mesmo, embora imoralmente. Vou dar um exemplo concreto para ilustrar o dilema em questão. Num artigo no jornal Terra Nova do mês de Outubro de 2004, lemos que o governo vai distribuir, nos vários municípios de Cabo Verde, 40 médicos recém-formados em Cuba. O leitor atento pode perguntar porque é que estes médicos foram como bolseiros, no tempo do regime do MPD, para Cuba, um país comunista e, portanto, anti-democrático. Uma outra pergunta é: se o MPD presumisse que dentro de poucos anos iria ser sucedido pelo PAICV, teria então enviado tais bolseiros para a Cuba? Uma resposta positiva à primeira pergunta pode ser defendida com o seguinte argumento. Estando Cabo Verde com falta de médicos e sendo Cuba o único doador deste tipo de bolsas de estudos (uma hipótese nossa e não necessariamente do MPD), seria melhor enviar tais bolseiros para lá do que fazer o contrário. Além disso, o MPD podia argumentar, que, provavelmente, depois da sua formação, os bolseiros voltariam para Cabo Verde, um país democrático, e adaptar-se-iam à realidade democrática e acabariam por esquecer o comunismo militante, agressivo e ateísta aprendido na Cuba. Se a resposta do MPD for negativa, o mesmo podia ser acusado de não proceder justamente para com os bolseiros e a necessidade do povo. Parece-me que o MPD respondeu positivamente, ao mandar os bolseiros para a Cuba. Estes voltaram para Cabo Verde, mas estão agora a ser usados pelo PAICV, talvez de maneira a consolidar a ideologia deste partido. Porém, os cabo-verdianos que, por algumas razões, não suportam nem o MPD nem o PAICV, mas lutam pelo bem-estar do povo, podem ver deficiências no procedimento de ambos os partidos para com tais bolseiros – agora médicos – e/ou os supremos interesses do país.

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O dilema ético dos que não suportam nem o MPD nem o PAICV Estes cidadãos cabo-verdianos – de modo análogo aos americanos – também são confrontados com um 3.0 dilema ético: (i) deixar de votar nos dois partidos, ou (ii) votar por vezes num deles só para manter o equilíbrio do Poder político. Não importa qual destas alternativas escolherem, votam com muita incerteza e insatisfação. Uma terceira alternativa política, capaz de prevenir e combater os três dilemas supra referidos, ainda não existe. (Nota bene que até hoje, depois de 33 anos de actividade política, a UCID não tem sido uma alternativa política forte, excepto em S, Vicente). Por isso, digo que Cabo Verde precisa de uma terceira força política forte, capaz de enfrentar e confrontar tanto o MPD como o PAICV. É possível que o UCID possa vir a ser a necessária terceira forca política. Os defensores de uma terceira alternativa devem ter sempre in mente que, por enquanto o sangue vingativo esteja a correr nas nossas “veias” políticas cabo-verdianas e por enquanto as vinganças institucionais continuem imbuídas no ambiente político cabo-verdiano, existirá certamente um travão forte ao desenvolvimento da mentalidade democrática nas nossas ilhas.69

Os Dez Mandamentos do Eleitor No Jornal Terra Nova, em Dezembro de 2005, foi publicado um texto intitulado “Os Dez Mandamentos do Eleitor”. Por serem muito relevantes neste contexto, são legalmente reproduzidos aqui.70 1.– Não vote em branco, não anule o voto, pois, fazendo isso, você estará jogando fora uma oportunidade de escolher os melhores e acaba ajudando a quem você não queria apoiar e eleger. Voto nulo ou em branco é um engano e favorece quem você não quer. 2.– Vote segundo a consciência e a liberdade bem informadas; não se deixe corromper. Voto não é mercadoria. Quem compra ou vende o voto fere a dignidade da consciência. 3.– Vote no candidato que em seu entender vai garantir o bom uso das verbas políticas para educação e saúde, habitação, agricultura. Vote no candidato que seja amigo da justiça social e inimigo da corrupção, trabalhe pelo povo e crie condições de trabalho. 4.– Evite a omissão, o pessimismo, a neutralidade dizendo: “Não adianta votar, ninguém presta, melhor é ficar fora, política é coisa suja, eleição não resolve nada”. Não pense assim porque o voto é uma arma poderosa. É hora da grande decisão. 5.– Não se deixe enganar, pensando que bom candidato é quem diz ter dó do povo, distribuindo comida, cimento, ferro ou dinheiro. Quem faz isso é um péssimo candidato. No fundo é um contrabandista. 6.– Não vote em alguém que não dá valor ao valor da vida, da fé, da religião ou só aparece na Igreja para angariar votos dos crentes. 7.– Não basta votar em pessoas. É preciso olhar o partido e seus objectivos, valores e compromissos. Os partidos e candidatos não são iguais. É preciso conhecer seu passado, suas capacidades. 8.– Lembre-se que não é somente eleição que resolve nossos problemas, mas a organização do povo, o exercício da cidadania, a educação e a cultura, a consciencialização e a participação.

69 Barbosa da Silva, A. (2004). Cabo Verde precisa de uma força política como alternativa ao MPD e PAI. Terra Nova, Dezembro de 2004, p. 4. 70 “Os Dez Mandamentos do Eleito”, Terra Nova, Dezembro de 2005”, p.5.

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9.– Depois das eleições, é preciso fiscalizar o trabalho dos eleitos, e exigir o cumprimento das promessas feitas nos comícios, nos jornais, nas rádios e na televisão. 10.– Procure falar com os indecisos ou com os que desejam votar. Explique-lhes o valor do voto, da participação, da cidadania, do mal que virá da abstenção [de votar].

9. Ainda sobre a nossa democracia – mais vale um pássaro na mão do que mil a voar

Caros articulistas anónimos, presumivelmente meus conterrâneos e parentes. O que tendes escrito até agora no www.forcv.com, se for verdade, é muito importante como informação para o povo de Cabo Verde, principalmente para os jovens que não experimentaram a opressão colonial e a “segunda independência” de Cabo Verde desde 13 de Janeiro de 1991.71 Contudo, duvido que o escrever anonimamente, como fazeis caros articulistas, possa contribuir para o desenvolvimento da democracia e de um Estado de Direito e para a preservação ou o “cultivar” da nossa inestimável morabeza. Esta minha afirmação assenta-se na seguinte hipótese, que constituem razões indispensáveis à minha afirmação ou tese supra formulada, nomeadamente; mais vale um pássaro na mão do que mil a voar.

As razões da minha afirmação

Em primeiro lugar, presumo que quem escreve anonimamente parece não estar ainda

71 O começo de um estado democrático e de direito baseado no, multipartidarismo político-ideológico.

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convencido de que realmente reina a democracia e a liberdade de expressão em Cabo Verde. Pois, na democracia as pessoas têm liberdade de expressão e o que dizem, sem medo de represálias, serve por vezes, para corrigir ou ensinar os que estão parcialmente ou completamente errados. Porém, como Aristóteles disse, há dois mil e quatrocentos anos, um argumento não convence ao adversário só pelo facto de exprimir a verdade (logos). Para que um argumento possa convencer é preciso que o mesmo tenha também um carácter ético (ethos) e exprima um bom sentimento ou uma boa emoção (pathos). Pelo que sei, a opinião de Aristóteles neste assunto é ainda actual e relevante. Para Aristóteles isto implica que quem quer proferir e usar um argumento sustentável e convincente tem de cumprir três condições indispensáveis: deve escrever ou falar a verdade, deve possuir um bom carácter moral ou uma boa personalidade e deve ser motivado por um bom sentimento ou uma boa disposição da alma, acompanhada de uma boa intenção de comunicar a verdade.

Ora, quem escreve anonimamente pode, consciente ou inconscientemente, exprimir a verdade, o que é uma das condições necessárias indispensáveis para convencer o leitor, mas não é suficiente. O leitor idóneo necessita também de saber de que fontes provêm tal verdade, isto é, se a verdade proferida vem de uma pessoa com um bom carácter moral, um bom sentimento ou uma boa disposição mental e uma boa intenção de comunicar a verdade. Se assim for, pode a crítica e contra crítica ensinar e corrigir os ignorantes ou os que são sabichões aos seus próprios olhos. Há mais a dizer sobre as características indispensáveis de uma boa argumentação, mas por ora, penso ser suficiente o que já disse sobre o assunto. Em segundo lugar, quem escreve anonimamente com o propósito de atacar certos partidos políticos ou os seus adeptos, parece estar indeciso quanto à sua adesão tanto ao partido que pretende defender como ao que ataca anonimamente, o que vejo como um indício de que ele/ela está disposto/a a mudar a sua ideologia política, conforme as conveniências circunstanciais. Por outras palavras, quem usa tal anonimato pode ser uma pessoa oportunista, irresoluta, instável e irresponsável, que é capaz de voltar a capa conforme o vento. Além disso, um ataque cujo autor é anónimo deixa o leitor sem saber se está a lidar com um inimigo camuflado, um amigo de onça, um irmão, um parente, um amigo infiel, um antigo condiscípulo desiludido – agora transformado em inimigo e camaleão desorientado – um mau vizinho, etc., que pode atacar o adversário às escuras, portanto sem lhe dar a possibilidade de se defender. Ou será que os articulistas anónimos, acima referidos, não possuem nenhum desses atributos, mas que são apenas simples cobardes que têm medo não só dos seus adversários, mas também dos seus próprios actos e as suas próprias omissões, sem coragem de assumir responsabilidade pelo que dizem e fazem ou deixam de fazer? Escrever anonimamente, para irresponsavelmente e à vontade poder caluniar, injuriar e difamar os outros, irreflectida e constantemente, sem ter que sentir vergonha ou assumir responsabilidade pelo que faz ou sem ter de enfrentar um provável processo no Tribunal, porquanto a Polícia é incapaz de identificar um incógnito senhor X ou uma incógnita senhora Y, não é só imoral mas também sinal de “pouca vergonha” e covardia e pode até ser um acto criminoso. Proceder, assim, desavergonhadamente, é, no entanto, paradoxal, atendendo ao facto que um motivo de alguém se esconder dos outros (como é o caso do anonimato) é o facto de ter vergonha ou medo deles! Em suma, podemos dizer que o modus vivendi et operandi dos escritores ou articulistas anónimos – quando atacam os seus supostos adversários – é vergonhoso, imoral, antidemocrático e contra os direitos humanos. Aqui quero sublinhar tanto a liberdade de expressão e o direito de ser respeitado na sua autonomia, identidade, dignidade humana e integridade moral e nos seus direitos básicos. Em terceiro lugar, parece-me que os líderes dos partidos políticos que esses escritores anónimos estão a defender, ficariam mais contentes e seguros quanto ao apoio

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anonimamente expresso, se soubessem os nomes, o carácter moral, o sentimento, a educação literária, e talvez a “raça” desses escritores e simpatizantes anónimos.72 Este terceiro ponto, que está a ser a considerado aqui, é importante, visto que um partido pode necessitar de soldados para a sua armada ou de ministros para o seu governo. Neste caso, os apoiantes anónimos não teriam oportunidade alguma de serem escolhidos nem como soldados para lutarem por um partido, nem como ministros para governarem e promoverem a ideologia do partido que defendem. O que é ainda mais importante mas desencorajante, é que um partido político não consegue planear o futuro, se a maioria de seus adeptos são anónimos, como se fossem amantes de um amor proibido! Por conseguinte, é adequado, ilustrativo e relevante dizer aqui que para um partido político: mais vale um pássaro na mão do que mil a voar.

Três articulistas exemplares neste contexto

À luz do acima exposto, valorizo os três articulistas no referido debate do www.forcv.com, já referido, nomeadamente o Sr. Manuel da Luz Gonçalves, o Sr. José Fidalgo Barros e o Sr. Manuel Delgado, como articulistas e apoiantes exemplares de partidos diferentes. No que lhes diz respeito, o leitor pode investigar se o que dizem é verdade ou falsidade, podem escrutinar se eles têm um bom carácter moral, bom sentimento ou uma boa disposição mental ao escrever o que escrevem (isto é, se cumprem as três condições indispensáveis à boa argumentação, segundo Aristóteles). Com isto quero também dizer que estes três, e outros de igual procedimento, ao se identificarem quando escrevem na Internet, parecem estar dispostos a provar e assumir responsabilidade pelo que afirmam, portanto sem necessidade de se esconderem na escuridão do anonimato no seu ataque ao adversário. Neste caso o Sr. Lourenço Varela fez bem ao incluir no seu artigo anti-semítico, tanto o seu nome como a sua fotografia (o que necessariamente desmorona os argumentos de Manuel da Luz Gonçalves quando defende o seu partido político na Internet).73 Contudo, se os escritos do Sr. Varela e do Sr. Gonçalves e os dos outros autores acima referidos são apenas produtos fantasmagóricos que não resistem ao escrutínio científico ou à crítica filosófica, não podem de modo algum, contribuir para o desenvolvimento democrático da nossa terra, apesar da sua pretensão contrária.74

72 A questão raça tornou muitíssimo relevante, entre nós hoje em dia, quando aparecem artigos na Internet a conspurcar a dignidade dos judeus cabo-verdianos. 73 Estes exemplos mostram que todos os partidos podem ter gente honesta e gente desonesta, responsável e irresponsável, etc. 74 Barbosa da Silva, A. (2006). “Mais vale um Pássaro na mão do que mil a voar”. Terra Nova, 11 de Abril de 2006, p.8.

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10. Votar livremente de consciência limpa Foi com grande esperança que desejávamos o alvorecer do dia 22.01.2006, em que ocorreram eleições legislativas em Cabo Verde.75 Uma pergunta pertinente e muito relevante neste contexto é: Vamos mais uma vez brincar às eleições, ou haverá uma genuína eleição na qual todos os cabo-verdianos, de facto, terão a oportunidade de usar o seu direito inalienável de votar livremente? Se assim fizerem, poderão contribuir para uma mudança socioeconómica e política em Cabo Verde, para o bem-estar de todo o nosso povo, e não só de alguns de nós (crioulo: di nós pôco). Por isso, digo, não brinquemos às eleições.

Temos óptimos objectivos mas faltam-nos meios e motivação adequados Os objectivos a atingir numa mudança política do país estão já idealmente descritos na nossa Constituição política, nas lindas promessas do actual governo, nos programas dos vários partidos na oposição, nas críticas construtivas directa ou indirectamente proferidas por compatriotas, em contextos diferentes. Portanto, o que nos faltam não são objectivos

75 O conteúdo deste capítulo baseia-se num artigo redigido antes de 22-01.2006, publicado no jornal Terra Nova, em Janeiro de 2006. O artigo funcionou como uma profecia verdadeira. Pois, o previsto nele aconteceu na verdade.

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específicos, mas antes meios e a motivação adequados para implementar ou materializar os belos e inestimáveis objectivos que já temos. Um dos meios necessários que temos e devemos utilizar bem é o nosso direito de votar em eleições livres, transparentes e democráticas. Se o actual governo cumprir o seu dever de fazer o indispensável para facilitar uma eleição autêntica, isto é, do género caracterizado aqui, será mais fácil para nós cumprirmos o nosso dever de votar. Mas um voto sincero ou genuíno, em que cada voto de cada cidadão vivo conta uma vez só e exerce a sua força política em prol de uma mudança para o bem comum de todos os cabo-verdianos, exige do cidadão mais do que o simples acto de votar para um determinado partido. Por exemplo, o partido que a gente ama por capricho, interesse egoísta e ignorância ou falta de melhor esclarecimento. No que diz respeito a este assunto, é bom ter bem claro na mente as diferenças do que podem fazer os cidadãos que estão dentro do país em relação aos que estão fora (os emigrados).

Que podem fazer os cidadãos que estão dentro do país? Embora a máquina propagandista fale incessante e incansavelmente de eleições livres, há vários factores que dificultam ou impedem o cidadão de exercer a sua liberdade de votar livremente. Sem envolver-me num labirinto semântico-filosófico e ético, defino a liberdade da seguinte maneira: o senhor X ou a senhora Y é livre para praticar um acto ou uma acção A (aqui: votar numa eleição), se X, ou Y cumprir as seguintes condições necessárias: 1) X, ou Y é capaz de conscientemente e sem coacção, ver a diferença e escolher entre o acto A (votar) e o contrário de A (não votar) e sentir-se responsável pela sua escolha (livre arbítrio). 2) X, ou Y, de facto, escolhe ou pode escolher um destes actos (i.e., uma destas alternativas diferentes) (liberdade de escolha). 3) X, ou Y, no momento de escolher A, ou o seu contrário, tem o poder, isto é, os recursos intelectuais, emocionais, materiais, etc., suficientes para agir ou para deixar de agir de acordo com a sua escolha consciente e responsável de A, ou a do seu contrário (neste caso de votar ou de deixar de votar). O que significa a possibilidade real de, de facto, realizar a sua escolha livre (liberdade de acção). Portanto, um cidadão ou uma cidadã não vota livremente se for forçado/a a votar ou se não vai votar por que está a ser impedido/a de o fazer.76 Os cidadãos que estão em Cabo Verde podem ser forçados a votar, por um determinado partido, não primariamente através de armas, mas pelas forças das circunstâncias e pelo modo como certos partidos as usam. Por outras palavras, a miséria, a fome, a necessidade de garantir a catchupa (isto é, o pão de cada dia) à família, o medo pela represália e marginalização ou pelo isolamento social, o dissabor ou descontentamento, a resignação, a ignorância, vergonha, etc., podem obrigar um cidadão ou uma cidadã a votar num partido em que não devia votar, se tivesse outro ‘remédio’, isto é, outra maneira de alimentar a família. Isto chamamos de voto coercivo, porquanto é votar irresponsavelmente, por ser feito involuntariamente e com má consciência moral, embora que, intelectual e pragmaticamente, possa tal acto ser justificado, apelando-se a um egoísmo prudente ou calculado. Por outras palavras, uma pessoa pode votar num partido para conseguir o pão de cada dia para sua família. É neste aspecto que os cidadãos “de dentro” podem diferenciar dos “de fora” (os

76 Sem liberdade não há responsabilidade. Mas é conveniente distinguir aqui três dimensões ou formas de liberdade: 1) liberdade de vontade ou livre arbítrio (em inglês: free will, freedom ou autonomia propriamente falando), 2) liberdade de escolha (liberty of choice) e 3) liberdade de acção (liberty of action).Uma pessoa é verdadeiramente livre se possui todas estas formas de liberdades.

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emigrantes que têm outras possibilidades, como veremos abaixo). Porém, quem vota somente para garantir a sua própria catchupa – o seu pão de cada dia, hoje e no futuro – sem pensar na catchupa e segurança alheias pode, consciente ou inconscientemente, contribuir para a existência de um futuro governo corrupto, que é capaz de negar a catchupa a muitas bocas, a saúde, a segurança e a própria vida a muitos daqueles que, responsavelmente usam a sua liberdade e consciência moral para dizer não a qualquer ideologia política antidemocrática. Uma ideologia que obriga as pessoas a vender a sua consciência moral, é eticamente inaceitável, venha ela de onde vier, tenha ela o lindo nome que tiver, faça ela que promessas gloriosas que fizer, use os meios de repressão que entender (usando presentes ou a coerção), etc. O povo deve estar sempre atento para desmascarar e dizer não à tal ideologia, falsa propaganda e corrupção. Mas esta atitude crítica exige coragem o que, infelizmente, o pobre, muitas vezes, não tem! Consequentemente, devemos ser cautelosos, prudentes e sinceros perante as eleições, quanto ao que se deva prometer e exigir a um pai de família, que não quer ver os seus filhos a chorar ou morrer de fome.

Compra e venda de consciência durante as eleições Durante as campanhas eleitorais fala-se muito de venda de consciência nas acusações e contra-acusações dos contrincantes políticos, cada um, irresponsavelmente, puxando brasa para a sua sardinha. No que se segue não vou escrutinar este problema para atribuir culpa a ninguém, o que seria praticamente impossível. Vou antes defender a tese: venda de consciência é moralmente inaceitável. Por venda de consciência entende-se aqui o acto de aceitar uma oferta qualquer em troca de um favor, em que tanto quem faz a oferta como quem paga o favor transgridem princípios morais fundamentais. Em campanhas eleitorais, a venda de consciência, da parte do eleitorado, consiste em aceitar dinheiro, uma posição privilegiada na sociedade ou qualquer ajuda material (por exemplo, cimento e outros materiais de construção) em troca de um voto para um determinado partido ou candidato. Para que haja quem esteja disposto a vender a sua consciência, tem de haver quem esteja disposto a comprar consciências, por exemplo, os políticos.

O dilema do pobre: vender consciência, ou mendigar Do ponto de vista psicológico, quem mendiga pode preservar a sua consciência limpa, se realmente a sua situação o obriga a tal e se não houver uma alternativa para sobreviver. Pelo contrário, quem vende a sua consciência, não por necessidade de sobreviver, principalmente se tiver uma alternativa, perde a sua integridade moral, o seu sentimento de solidariedade e de justiça social, bem assim a sua capacidade de assumir responsabilidade. Isto pode acontecer também ao comprador de consciências. Este pode-se tornar um tirano e político corrupto, se conseguir poder e dinheiro. Pode também tornar-se um ladrão, com ou sem dinheiro e poder. E, quando se tornar poderoso, tirano e ladrão, pode torna-se também uma encarnação do próprio maligno. Quem mendiga pode, subjectivamente, perder a sua dignidade de pessoa humana e pode ser desprezado pelos seus semelhantes ou pela sociedade, mas quem lhe dá uma esmola pode sentir pena dele, pois a esmola pode ser um sinal de compaixão e solidariedade humana. Pelo contrário, quem vende ou compra consciência, além de poder perder a sua integridade moral, pode, a longo prazo, vir a perder a confiança dos

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outros e a credibilidade do público e pode vir a ser odiado pelos que o conhecem como pessoa falsa, corrupta e impostora. Infelizmente não são apenas indivíduos em necessidade que vendem as suas consciências. Representantes e empregados de governos e organizações diversas podem vender as suas consciências em troca de poder, prestígios, dinheiro, etc. Na minha opinião, a venda de consciência é um acto pior do que mendigar, porque a consciência é o ponto de contacto do homem com Deus e a “bússola” de orientação moral e ética de cada indivíduo humano. É a consciência que nos capacita a tomar responsabilidade pelos nossos actos e omissões, é através dela que descobrimos o sentido da vida e do sofrimento, e é ela que nos alerta para a injustiça praticada a vários níveis da sociedade e nos dá, ao mesmo tempo, a coragem de protestar e lutar contra injustiças. Por isso, uma nação democrata e de direito deve ser constituída por cidadãos livres, de grande integridade moral e responsáveis, isto, é cidadãos que se abstêm de, e combatem a venda e compra de consciência.

Que podem fazer os cidadãos que estão fora de Cabo Verde? Nós (emigrantes) que estamos fora da mãe-pátria, vivendo em países mais ricos e mais democráticos que Cabo Verde, devemos usar o conhecimento e a experiência que temos da convivência democrática, onde rege o pluripartidarismo político e o pluralismo religioso, ético, estético, etc., quer para votar no país anfitrião, quer para votar na nossa terra natal.77 Contudo, votar motivados por capricho ou orgulho de ter sempre pertencido a um certo partido, sem outros argumentos relevantes, sustentáveis e convincentes, poderá até ser um acto criminoso. Digo e exemplifico. Durante as campanhas eleitorais presidenciais nos EUA, o presidente George Walter Bush prometeu aos americanos mundos e fundos, mas o que ele, na verdade, lhes deu, depois das eleições, não é o prometido, mas caixões de finados cheios de seus próprios filhos, netos, maridos, irmãos, etc., mortos no Iraque e Afeganistão, numa guerra que até muitos republicanos (e não só democráticos), agora, consideram injusta. Muitos americanos já acordaram do seu sono hibernal e egoísta, mas tarde demais. Só acordaram depois de terem sentido a dor e o sofrimento humanos nas suas próprias peles. Antes votaram em Bush egoisticamente. Hoje, talvez estejam a aprender a regra de ouro, básica na ética cristã: “Fazer aos outros o que desejaríeis que eles vos fizessem”(Mt. 7,12). Ou na sua forma negativa – como o judaísmo popularmente a exprime: Não faças aos outros o que não queres que eles te façam a ti”. Inverter este preceito para atingir fins egoísticos, é viver injustamente, quer a nível individual, quer a nível colectivo: nacional e internacionalmente. Quem adopta o egoísmo como modus vivendi, no nosso mundo globalizante, acabará, mais tarde ou mais cedo, por ser punido de uma forma ou de outra. Quem avisa, amigo é! Com o acima exposto, como plano de fundo, apelo a todos os emigrantes a pensar bem, antes de votarem nas eleições em Cabo Verde. Nós, os emigrantes, graças a Deus, já temos a nossa catchupa garantida. Por isso, a mudança que venha a ocorrer em Cabo Verde depois das eleições,78 pouco ou nada, nos influenciará no que concerne ao nosso pão de cada dia, à nossa segurança pessoal, à possibilidade de usarmos bons cuidados de saúde, onde estamos a viver bem, ao acesso à boa escolaridade ou formação profissional dos nossos filhos, em relação a garantia do nosso emprego e da nossa pensão de reforma,

77 Não usar este conhecimento e esta experiência para responsavelmente votar em Cabo Verde, seria uma expressão de deslealdade e falta de solidariedade para com os nossos concidadãos residentes em Cabo Verde. 78 No meu artigo no jornal Terra Nova em 23 de Dezembro de 2005, abordei as eleições legislativas ocorridas

em 22 de Janeiro de 2006.

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do nosso lazer, das nossas férias, do nosso funeral, etc. Mas o nosso voto, bem ou mal dado, irá imediatamente influenciar as vidas dos nossos compatriotas (residentes em Cabo Vede) e seus filhos em todos os domínios acima referidos, para melhor ou para pior. Portanto, se queremos uma mudança positiva na nossa terra, o nosso motivo de votar deve ser a justiça e a solidariedade, expressas na regra de ouro na sua forma negativa. Devemos lembrar sempre que os nossos compatriotas pobres, ao votarem livremente em Cabo Verde, não nos prejudicam de maneira alguma. Nós, pelo contrário, podemos prejudica-los directamente com os nossos votos e indirectamente podemos prejudicamo-los, por exemplo, nas nossas ferias em Cabo Verde, ao exibirmos e demonstrarmos ali um maior poder de compra do que eles, concorrendo com e arruinando alguns, contribuindo assim para o aumento de preços que torna o pobre cada vez mais pobre e o rico cada vez mais rico! Para evitar isto votemos todos, de dentro ou de fora, com convicção e consciência limpa, para um governo democrático de direito e de justiça!79

O que deve motivar o cidadão a votar nas eleições livres Numa nação democrática e num Estado de Direito o cidadão não deve votar com o sentimento ou pelo motivo de que quem vota faz um favor a um determinado político ou partido no qual vota. Pelo contrário, o cidadão ou a cidadã deve votar para cumprir o seu dever ou a sua obrigação moral de cidadão ou cidadã, o dever de contribuir para um desenvolvimento integral do seu país. Infelizmente, muitas pessoas, no terceiro mundo, principalmente em países pobres, votam num partido mas sem uma reflexão ideológica para, a longo prazo, proteger os seus direitos humanos e os dos seus concidadãos, direitos inalienáveis e invioláveis, direitos indispensáveis a uma vida humanamente digna. Infelizmente, muitos votam numa pessoa ou num partido, por capricho ou para ajudar as pessoas, em quem votam, a segurarem uma posição privilegiada, muitas vezes, em detrimento dos próprios interesses, a longo prazo, ou em prejuízo do supremo interesse do povo ou da nação, isto é, do bem comum que todos os cidadãos devem defender.

O exemplo do povo americano, com o qual devemos aprender Considerando o conceito de democracia, a democracia dos Estados Unidos da América do Norte, em teoria, não é uma das melhores do mundo, simplesmente pelo facto de a constituição americana só permitir dois partidos políticos: o republicano e o democrático. O americano deve escolher um dos dois ou deixar de votar, um meio-termo não existe (tertium non datur).80 Como a democracia implica diversidade, portanto quanto maior número de partidos (até um certo limite) numa certa nação ou num certo estado, melhores condições democráticas haverá nessa nação ou nesse estado. Nesta perspectiva, as democracias da Europa Ocidental são, teoricamente falando, melhor que a americana. Mas na prática, a democracia americana parece funcionar exemplarmente, ou como deve uma democracia genuína. Vejamos dois exemplos ilustrativos. Quando o presidente Nixon se implicou no crime de Watergate, o povo americano usou a sua liberdade e os seus direitos democráticos e expulsaram-no (destronizaram-no) do cargo de presidente, assim que o tribunal provou que era criminoso. Assim, numa manhã de um certo dia, Nixon era a sua excelência, o presidente do primeiro super-power,

79As três primeiras páginas deste capítulo foram escritas na Noruega, Kristiansand, ao 23 de Dezembro de 2005. Mas publicado no jornal Terra Nova i Januário 2006. 80 Esta expressão latina exprime uma lei da lógica clássica, segundo a qual uma proposição ou é 100% verdadeira ou 100% falsa. Uma terceira alternativa não existe, não é dada (tertium non datur).

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portanto o homem mais poderoso do mundo, enquanto às 12h00 do mesmo dia, a sua excelência Nixon foi reduzida apenas ao Sr. (Mr.) Nixon. Isto é um caso único que evidencia o poder, a força democrática e bom funcionamento da democracia dos Estados Unidos da América do Norte. Este exemplo devia ser paradigmático para todas as democracias, no mundo inteiro. Infelizmente, este exemplo não é seguido, principalmente pelos países do terceiro mundo, onde os presidentes são donos dos países e povos que governam. Basta pensarmos, por exemplo, no presidente Mugabe, nos ditadores do Congo Brazzaville e no Khadafi (ou: al-Gaddafi) na Líbia. Um outro exemplo bem ilustrativo foi a eleição de Barack Obama para presidente. Durante e depois das eleições presidenciais, muitos podiam ter incorrido no erro de pensar que os que deram a sua voz ao Sr. Obama fizeram-lhe um favor, ou votavam para se vingar do presidente Bush. Nas eleições de Novembro de 2011, o povo americano – na sua maioria – mostrou a sua autonomia e o seu pensar democrático. Para os americanos, o que está em causa, nas eleições, não é a personagem deste ou daquele político, nem a sua verborreia eloquente e nem tão pouco a sua alta integridade moral – do qual Obama é um caso imparcial. Antes, a verdadeira causa de votar no partido democrático, ou no republicano são os verdadeiros interesses do povo e da nação. Assim, quando um político desgoverna (no caso do Nixon e de Bush) o povo usa o seu direito e a sua obrigação para retirar-lhes o poder que lhe foi dado, ou emprestado, por quatro anos para servirem o povo e a nação e não os seus próprios interesses. Nas eleições de Novembro de 2012, o povo americano, demonstrou mais uma vez a sua liberdade de escolha e de acção, ao escolher o presidente Obama para um segundo mandato. E quando um político não cumpre as suas promessas eleitorais, ele tem de pagar caro por esse facto. No caso de Obama, apesar dos pesares, muitos americanos queriam dar-lhe uma lição de sobriedade, precaução e prudência nas eleições de 2012. Portanto, promessas e afirmações exageradas numa democracia autêntica são sempre contraproducentes. Por outras palavras, quando a esmola é grande (as muitas e grandes promessas eleitorais) o pobre desconfia. Mas é preciso um certo grau de integridade moral e audácia para que o “pobre” possa actuar em liberdade de escolha e de acção. Pois, a pobreza é um factor importante que influencia negativamente a liberdade de acção de um indivíduo. Por isso a estrutura da sociedade, as normas e atitudes presentes no terceiro mundo, enfraquecem e ameaçam todos que queiram actuar livre, destemidamente e com integridade moral. Por exemplo, muitas pessoas são forçadas a serem “leais” a certos políticos ou partidos por medo de represálias, traduzidas em termos, por exemplo, de perda de trabalho e outros direitos básicos ou humanos. À luz da pobreza e da miséria, é mais fácil compreender o que significa “querer é poder” (inglês: ought implies can).

A peculiaridade da democracia cabo-verdiana A democracia cabo-verdiana está mais próxima da europeia, atendendo ao facto de em Cabo Verde existirem mais do que dois partidos e não é proibido a existência de mais do que dois partidos, como é o caso dos Estados Unidos da América do Norte. Na obstante, os cabo-verdianos têm muito que aprender da democracia americana no que esta tem de: verdadeiro, bom, justo e pragmático. É preciso coragem e prudência na escolha dos nossos governantes quer a nível; presidencial, legislativo, quer autárquico. É por isso actual e relevante fazer a seguinte pergunta. Se emigramos para os Estados Unidos à procura da fortuna e conseguimos alguma coisa, porque não procuramos aprender

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também algo político, democrático, cultural, moral, espiritual com os americanos? São só dólares e valores materiais que nos interessam trazer para Cabo Verde?81

11. Como vai a justiça em Cabo Verde? No que se segue vou comparar a justiça com o motor ou a vela de um barco, e este último comparado com um Estado Democrático de Direito. Se a justiça não funcionar como deve, o barco pára o seu curso, ou corre em sentido contrário como o caranguejo, o que é indesejável. Esta comparação vem a propósito de como certos casos têm sido tratados pelos tão chamados “feitores e defensores da justiça” em Cabo Verde. Refiro aqui ao Tribunal da Comarca de S. Nicolau (TJCSN) e ao Supremo Tribunal da Justiça (STJ). Concernente ao TJCSN, acontece que no ano 2005, o juiz deste tribunal deu uma ordem ao chefe da Polícia do Tarrafal de S. Nicolau, a ser executada em relação a uma senhora divorciada do ex-marido, com o qual estava em litígio (respeitante à partilha dos bens seus comuns em Cabo Verde). Para cumprir a ordem do juiz, concernente à referida partilha, o chefe da Polícia enviou um dos seus subalternos, que, ao encontrar resistência na execução da ordem em questão, deixou de cumprir o seu dever em relação à ordem do juiz. Isto aconteceu em 2005.82

Há juízes e JUÍZES em Cabo Verde Passado um ano, portanto em 2006, um outro juiz, em ofício no mesmo Tribunal, escreveu ao Sr. Chefe da Polícia atrás referido, desta vez a favor do ex-marido da senhora supra referida, Clara da Silva Lopes. Desta vez o chefe da polícia cumpriu, diligentemente e com celeridade, o que o juiz determinou. É de admirar – o que também causa revolta –,

81 Ilha do Fogo, 15 de Dezembro de 2010/2011. 82 Veja o jornal Terra Nova de Março de 2006. A propósito deste caso, que foi nomeado na Rádio Nova, o director do jornal Terra Nova (que também era director da Rádio Nova) foi então entrevistada pelo telefone. Ouça também a entrevista dada pela senhora Clara da Silva Lopes à Rádio Nova em 25 de Agosto de 2005.

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verificar que o chefe da Polícia negligenciou a ordem do juiz em ofício em 2005, enquanto cumpriu pronta e imediatamente a ordem de um outro em ofício em 2006. Mas o que torna a parcialidade do agir do chefe da Polícia ainda mais incompreensível, indigno e portanto moralmente inaceitável, é o seguinte: Em primeiro lugar, a carta que contém a ordem do primeiro juiz (em 2005), é relativamente longa (constituída por 21 linhas) em relação à do segundo juiz (em 2006, constituída por apenas 7 linhas). Em segundo lugar, o primeiro juiz explicou sucintamente a razão de ser e a urgência da sua ordem ao chefe da Polícia, pediu-lhe uma boa cooperação no cumprimento da ordem e salientou a seriedade e urgência do caso em questão. Mesmo assim, o chefe da Polícia não cumpriu a sua obrigação, isto é, a referida ordem. Pelo contrário, a carta do segundo Juiz é lacónica e escrita em termos mais autoritários do que a do primeiro. Mas, pelo que sei até agora, tudo indica que não foi a imperatividade e o laconismo da mesma que obrigou ou motivou o chefe da Polícia a agir com celeridade e pessoalmente como fez. Por isso, se a minha descrição do acontecido é correcta, não posso senão constatar que há juízes e JUÍZES em Cabo Verde! Tenho as minhas hipóteses acerca desse agir, mas o que me interessa agora é saber as respostas do chefe da Polícia, ou de quem de direito, às seguintes perguntas:

Porque o chefe da Polícia não cumpriu a ordem do primeiro juiz, especificada na carta do Tribunal datada de 29 de Julho de 2005?

Porque o chefe da Polícia agiu imediata e pessoalmente, cumprindo a ordem do segundo juiz (cf. carta de 7 de Março de 2006)?

Quais são os interesses que o chefe da Polícia e seus coadjuvantes defendem ou intentam defender, ex-officio, ao tratarem casos semelhantes diferentemente?

Quanto ao STJ, verifica-se que a senhora mencionada nas duas cartas acima referidas, Clara da Silva Lopes, através do seu advogado, entregou um requerimento em 2003, relacionado com o caso em processo, no TJCSN, mas só em Janeiro de 2006 lhe foi exigido, pelo STJ, a completar o requerimento com documentos relevantes. Ora, se o completar um requerimento demora três anos, o processo que leva ao seu deferimento ou indeferimento (apreciação) pode levar, pelo menos, mais três anos, ou quem sabe lá se não vai levar mais 30 anos? Mas o senso comum nos diz que quem põe um caso no tribunal, espera ver o resultado antes de morrer! Será portanto demais dizer que os tribunais e os feitores da justiça em Cabo Verde estão a navegar no “mar” da democracia e de um Estado de direito como um navio sem vela, sem motor, sem rumo e sem direcção? Ou, usando uma outra metáfora, será que estão a andar como um caranguejo à procura do porto da justiça dos primórdios do tempo colonial? Ou é a justiça de mouro que reina na nossa terra? Estou apenas a perguntar, suponho com direito e razão, e espero que quem de direito venha a dar ao leitor atento, uma resposta adequada e convincente.

O que falta em Cabo Verde é a justiça como virtude moral Não quero criticar a competência formal nem a posição hierarquia dos feitores da justiça na nossa terra. Estou apenas a tentar demonstrar que há falta de verdadeira justiça em Cabo Verde. Com a palavra “justiça” quero designar não só o conceito do princípio da justiça, mas também a virtude da justiça ou justiça como virtude moral. Com o princípio da justiça quero dizer equidade que reconhece e prescreve igualmente o direito de cada um, no sentido de dar a cada um o que é seu ou o que ele/ela merece (lat. Suum cuique distribuere).83 Isto implica que casos iguais devem ser tratados com equidade, enquanto

83Justiça neste sentido significa imparcialidade numa deliberação, num julgamento (numa apreciação) e numa

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casos desiguais devem ser tratados com “in-equidade” (isto é diferentemente). Por conseguinte, a imparcialidade é uma sine qua non do princípio da justiça. Vamos agora analisar o conceito de justiça como virtude moral e depois relacioná-lo com o conceito de justiça como princípio. Uma virtude moral é uma boa propriedade ou um bom atributo do carácter do agente moral (de uma pessoa) que o possibilita, faculta ou facilita a prática dos princípios morais, como o da equidade, imparcialidade, honestidade e da verdade. Assim, a justiça como virtude é uma boa disposição permanente ou capacidade, boa vontade e fidelidade de, sempre e com boa consciência, aplicar o princípio da justiça em casos ou situações concretas. A relação entre o princípio da justiça e a justiça como virtude moral pode ser descrita como: possuir a virtude da justiça é uma condição indispensável à boa aplicação do princípio da justiça (isto é, da aplicação da equidade e imparcialidade). Há uma complementaridade entre o princípio da justiça e a virtude da justiça. O primeiro prescreve ou preceitua o que se deve fazer (um dever ou uma obrigação), enquanto o último engendra ou infunde motivação, boa vontade e alegria no agente moral (neste caso o feitor da justiça) de aplicar bem os preceitos do princípio da justiça. O princípio de justiça aprende-se através de livros e ensinamentos verbais (de costume na faculdade de direito), a virtude de justiça, pelo contrário, como todas as outras virtudes, aprende-se através da imitação de pessoas com alta integridade moral como; a Mãe Teresa de Calcutá, Martin Luther King, Nelson Mandela e acima de tudo, Jesus e os seus apóstolos, tendo em conta a nossa cultura que é essencialmente cristã, no que diz respeito às suas normas fundamentais.84

Cabo Verde consiste em três mundos completamente diferentes A entrevista dada pela senhora Clara da Silva Lopes à Rádio Nova em 25 de Agosto de 2005, se o seu conteúdo contiver pelo menos 50% de verdade, será mais do que o suficiente para demonstrar, para além de qualquer dúvida, que o Cabo Verde de hoje, do ponto de vista democrático, é constituído por três mundos completamente diferentes: 1) O mundo dos mandões, dos iluminados e privilegiados; 2) o mundo dos executores de ordens recebidas ou inventadas e 3) o mundo dos obedientes que vivem da obediência, do sofrimento e paciência, o mundo de sim senhor do Zé- e da Maria-ninguém, pertencentes ao povinho. Cada um destes mundos tem o seu modus vivendi, a sua própria linguagem e cultura e o seu modo peculiar de comunicar com os outros dois mundos. Quanto à comunicação, o mundo 1) comunica com os outros dois através de actos como: “determino e mando cumprir”.85 O mundo 2) comunica com o mundo 3) através de: “dou ordens e tens de cumpri-las, senão…! E o mundo 3) comunica com os outros dois através da humilde atitude: “sim senhores, estou sempre às suas ordens, sempre farto, satisfeito e contente na sua presença”. Deus é grande e misericordioso e é preciso paciência e esperança para sobreviver nestas ilhas, nesta via dolorosa, nestes vales de lágrimas, ou seja nas veredas labirínticas do sistema burocrático, político e jurídico cabo-verdiano! Segundo a constituição política e democrática do Cabo Verde, da segunda independência ou segunda república aprovada em 1992, Cabo Verde é teoricamente um Estado de regime democrático de direito, onde o poder legislativo do Estado e da Nação tem a obrigação moral de elaborar leis moralmente aceitáveis e coerentes com as leis

decisão jurídica (sentença) que reconhece e prescreve igualmente o direito de cada um. 84 Noruega ao 20 de Março de 2006-03-19. Artigo publicado no jornal Terra Nova em Marco de 2006. 85 Subentendido temos o pensamento dos poderosos: e faço-o, isto é, descrevo os meus comandos, em português vernáculo (que poucos cabo-verdianos compreendem).

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fundamentais da Constituição, leis que (em coerência com o conteúdo da Declaração Universal dos Direitos Humanos) defendem os interesses, direitos e deveres de todos os cabo-verdianos inclusive os do Zé- e da Maria-ninguém. A presente Constituição confere aos detentores do poder executivo do Estado, autoridade, cargo e deveres de executar as leis, bem como o governo e a administração da coisa pública, para a segurança e o bem-estar de todos os cidadãos, inclusive as do Zé- e da Maria-ninguém. A constituição também investe os detentores do poder judiciário de autoridade e obrigação moral para “determinar e assegurar a aplicação das leis [feitas pelo poder legislativo] que garantem os direitos individuais” inclusive do Zé- e da Maria-ninguém.

Graças a Deus há um tribunal do povo e não o defunto tribunal popular do regime do partido único Muitas vezes, porém, alguns dos três poderes constitucionais abusam da sua autoridade e não cumprem o seu dever para com os cidadãos, especialmente para com o Zé- e a Maria-ninguém. Já que estes são vistos como órfãos, sem padrinhos nem madrinhas e ‘habituados’ ao mundo dos mandões 1), ou ao mundo dos executores de ordens (nomeadamente se atendermos ao mundo 2). Pois, o Zé- e a Maria-ninguém são, muitas vezes, pessoas abandonadas, desprezadas e marginalizadas (em crioulo: “guente sem praquenha”). Mesmo assim, procuram sempre respeitar os detentores do poder dos outros dois mundos e procuram recuperar os seus direitos individuais inalienáveis, quando perdidos, recorrendo à justiça, e não à violência, isto é, implorando ao Poder Judicial, que pode resolver o problema deles, desde que os detentores deste poder constitucional não sejam corruptos. Porém, se os detentores de todos os três poderes constitucionais se corromperem, o Zé- e a Maria-ninguém, quando necessitam que justiça lhes seja feita, não têm outra coisa a fazer senão recorrerem aos mass-mídias para informar ao povinho do estado das coisas (status quo) da governação do país e de como vai a justiça na nossa querida terra, que devia ser do nosso povo, e não só “de nós pôco”.86 Os mass-mídias funcionam, em todos países democráticos, como um quarto poder, independente, que opera paralelamente aos três clássicos poderes constitucionais, e que não usam os mesmos instrumentos, mas antes usam o senso comum e os princípios da Ética universal (lex naturalis) que estão acima de toda e qualquer lei nacional e ideologias partidárias, para julgar as eventuais injustiças e abusos cometidos pelos detentores dos três poderes constitucionais87. É claro que se o Zé- e a Maria-ninguém conseguirem um bom advogado, o que é dificílimo, principalmente por razões económicas, este tentará usar todos os possíveis meios ou instrumentos jurídicos antes de deixar o Zé- e a Maria-ninguém expor os seus problemas aos mass-mídias, quer dizer, ao tribunal do povo. Por isso, é necessário que haja rádios e jornais livres e imparciais em relação a partidos e ideologias políticos, como a Rádio Nova e o jornal Terra Nova, respectivamente.

O último socorro da senhora Clara da Silva Lopes foi a Rádio Nova A senhora Clara da Silva Lopes, depois de 5 anos a tentar resolver os seus problemas, utilizando todos os instrumentos jurídicos de Cabo Verde, ao seu alcance, usando sempre

86 A expressão “de nós pôco” e não do nosso povo, é constituída por uma parte crioula, nomeadamente “nós pôco” e “não do nosso povo”, deve ser traduzida para o português como”: “pertence a alguns de nós e não ao nosso povo”. 87 Cf. O Tribunal da Nuremberga que em 1945, usou princípios éticos (e não jurídicos) para julgar os alemães

responsáveis pela ocorrência do Holocausto e outras calamidades do regime fascista do Hitler.

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as suas férias para tal, quando, por fim descobriu, que estava a ser tratada como uma Maria-ninguém, e que estava a labutar com um sistema que lhe pareceu corrupto, cujo guardiões não têm respeito nem pelos que fazem a justiça (por exemplo, o juiz de direito) nem pelas pessoas pertencentes ao povinho, que procuram a justiça, por exemplo, a senhora da Silva Lopes, principalmente se tais pessoas são mulheres e/ou emigrantes, tendo sido estes últimos grupos de cabo-verdianos, na década de 80, cognominados de estrangeirados pelo então primeiro-ministro, Pedro Pires, sendo tratados como tais pelos correligionários de quem inventou tamanha “besteira”, (suma ta fra na Djabraba88), que exprime um inefável sentimento de ingratidão para com os seus conterrâneos, (irmãos de luta e sofrimento), que apesar dos pesares, diariamente, enchem Cabo Verde de valutas estrangeiras para os salários dos habitantes dos dois primeiros mundos supra referido, digo, a senhora da Silva Lopes procurou o seu último socorro na Rádio Nova. Ora, os que escutaram a entrevista da senhora da Silva Lopes, ouviram certamente o que ela disse acerca do chefe da Polícia do Tarrafal de S. Nicolau, isto é, que este negou-se peremptoriamente a cumprir as ordens do Juiz em relação à senhora da Silva Lopes, alegando razões que não chegamos a entender. Isso mais do que uma vez. Ora, quando um subalterno não cumpre as ordens do seu superior, não se deve esperar que fará a justiça aos que, a seus próprios olhos e critérios subjectivos, lhe são inferiores e desprezíveis. Ao descobrir esta falta de respeito do chefe da Polícia e seus coadjuvantes, quer para com o senhor juiz, quer para com ela e outros em condições semelhantes, no que se assemelha a uma república de bananas, a senhora Clara Lopes decidiu contactar a Rádio Nova pedindo uma entrevista. Ao proceder assim, ela fez o que muitos em Cabo Verde e no estrangeiro desejariam fazer, mas não têm a coragem de fazer, por terem medo das represálias que se deve esperar sempre de todas as autoridades corruptas, onde cada um é por si e Deus é por todos. Não esqueçamos que muitas pessoas oprimidas, no seu desespero, tentam fazer a justiça com as suas próprias mãos. Mas tendo vivido na Noruega desde 1978, tendo adquirida a nacionalidade norueguesa, e tendo aprendido os bons hábitos e costumes de um país democrático não só no papel, e super civilizado, a senhora Clara da Silva Lopes aprendeu também que quando a via legal e o labirinto jurídico não dão resultados positivos, a única via moralmente aconselhável, que lhe resta, é recorrer às rádios, aos jornais e às televisões livres, aos quais cabe a obrigação moral de desvendar, escrutinar e criticar, sem condescendência e complacência, o modo como os detentores dos três poderes constitucionais usam a sua situação privilegiada, com toda prepotência e todo exibicionismo para maltratar, explorar, espezinhar, emporcalhar, vingar ou aniquilar a vida, dos que não compartilham de nenhum desses poderes e não usufruem dos “privilégios” que deles advém.

O que o povinho e os emigrantes cabo-verdianos estão à espera de ver Nós que escutamos a Rádio Nova, quer em Cabo Verde, quer nas partes mais setentrionais da Europa, das Américas, etc., e todas as pessoas que, em Cabo Verde, aconselharam a senhora da Silva Lopes a contactar a Rádio Nova, apoiando-a desde modo e moralmente depois da difusão da entrevista, estamos a seguir de perto, o desenrolar deste incrível, portanto inaceitável, acontecimento para ver se o Governo de Cabo Verde – que é de todo o povo cabo-verdiano, e não “de nós pôco” – ou quem de direito, nomeará uma comissão de peritos (experts) para fazer uma investigação minuciosa e imparcial do ocorrido, em

88 Esta expressão crioula pode ser traduzida como: palermices (com se diz na Ilha Brava, Cabo Verde).

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que todas as partes envolvidas nos problemas da senhora Clara da Silva Lopes devem ser ouvidas. Pois, ninguém deve ser juiz em causa própria. Pela referida entrevista ficamos a saber que as partes principais no caso em questão são, inter alia, a senhora da Silva Lopes e seu ex-marido, os inquilinos habitando os anexos ao restaurante pertencente à da Silva Lopes e seu ex-marido, sem licença e sem pagar a renda desde 2001; o chefe de polícia e seus subordinados e os senhores Juízes de direito, que, em vão, tentaram fazer justiça à senhora Lopes da Silva (cf. a carta do juiz ao chefe da polícia do Tarrafal de S. Nicolau). Uma investigação imparcial é importante e relevante, pelo menos por duas razões: Primeiro, por que talvez alguns dos que escutaram a “história” da senhora da Silva Lopes, e que não tenham experimentado as mesmas artimanhas, estratagemas e trafulhices desses autoproclamados donos de Cabo Verde, que ainda sustentam a ideia de que “nós terra ê de nós pôco” (nossa terra pertence só a alguns de nós), tenham pensado que tais histórias são simplesmente produtos da fantasia indomável dessa senhora. Segundo, para sanear o que está de errado na administração pública e para prevenir que casos semelhantes à da senhora da Silva Lopes continuem a acontecer diária e frequentemente, sem que alguém de direito tenha conhecimento dos mesmos, enquanto os prejudicados sofrem e praguejam, com abrenúncios, este governo que devia ter aprendido, reprovado, e abstido da psicologia da fome e da pedagogia da opressão que os fascistas colonialistas implementaram nos ex-colónias em 500 anos, mas que infelizmente continuam, efectivamente, a exercer a sua força destrutiva entre nós ad libitum e sem dia de terminar, se não acordamos do sono colonial profundo que nos cega completamente. Esperamos também que os servidores do Estado e do povo não representem os seus partidos, enquanto – Ex ofício – exercem a sua função pública. Finalmente, em terceiro lugar, esperamos que os chefes da Polícia não permaneçam muito tempo na mesma região, evitando assim que caiam na tentação da corrupção, esquecendo-se que ganham o seu salário diário para fazer a justiça e não a injustiça, para servir o povo e não os amigos e respectivos partidos políticos, summa summarum para governar e não para desgovernar.89

Cabo Verde precisa de juristas que não tenham medo da justiça, mas da injustiça Numa entrevista televisiva nos fins de Dezembro de 2008 o Sr. Dr. Carlos Veiga disse, entre outras coisas importantes, actuais e interessantes, que vai trabalhar para melhorar a justiça em Cabo Verde. Esta é uma postura louvável que muitos deviam adoptar em prol da paz, democracia e dos direitos humanos. Tenho a impressão que o Sr. Dr. C. Veiga sinceramente pensa em melhorar a justiça hoje e no futuro, uma promessa bem-vinda. Oxalá que a realização da mesma comece já, antes que seja tarde demais. No que se segue, vou falar da falta de justiça em Cabo Verde retrospectivamente, para defender a tese de que o melhoramento da justiça requer, inter alia, uma justiça compensatória em relação aos prejudicados pelas injustiças herdadas do imperialismo colonial e também pelas injustiças criadas depois da nossa independência política em 1975. Pensando nesses casos de injustiças, antes de ter lido o artigo “A inconstitucionalidade da Lei sobre justificação administrativa de domínio”, escrito pelo advogado Dr. Geraldo da Cruz Almeida, no A Nação No 69, de 25 a 31 de Dezembro de 2008, sentia-me sozinho como o profeta Elias, que perante a idolatria do povo Israelita,

89 Kristiansand, Noruega, 06 de Setembro do Anno Domini 2005.

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fez a seguinte lamentável oração a Deus; “Tenho sido muito zeloso pelo Senhor, Deus dos Exércitos, porque os filhos de Israel deixaram o teu concerto, derribaram os teus altares e mataram os teus profetas à espada, e eu fiquei só, e buscam a minha vida para ma tirarem.” (I Reis 19,10 e 14). A resposta de Deus a Elias foi: “Também eu fiz ficar em Israel sete mil: todos os joelhos que se não dobraram a Baal e toda a boca que o não beijou” (Ibid., versículo 18). Depois de ter lido esta passagem bíblica, que mostra que até os profetas podem errar (errare humanus est) – e também ter lido o referido artigo do Dr. Almeida compreendi que há muitos compatriotas preocupados de como vai a justiça na nossa terra. Como o profeta Elias, fiquei a saber que não estou sozinho a lutar pela causa do bem, da paz, da segurança e da justiça em Cabo Verde.

A essência do artigo do Dr. Geraldo da Cruz Almeida O Dr. Almeida interroga-se sobre o modo “inconstitucional e ilegal” como o actual Governo está a adquirir certas “extensões de terrenos”, no Sal, S. Vicente, Boa Vista e Maio. O que o Dr. Almeida põe em causa são: Alteração de leis no sentido de facilitar ao Estado adquirir “extensões de terrenos” supostamente por vias legais. E exigência de provas do direito de propriedade aos presumíveis donos de tais terrenos, embora o ónus de prova deva ser dos que duvidam da existência de tal direito, neste caso o Estado. Quanto às alterações de leis, o senhor Dr. Almeida escreve:

“A Direcção geral do Património do Estado tem vindo a proceder à publicação de vários anúncios nos jornais com a pretensão de justificar o domínio administrativo do Estado sobre várias extensões de terrenos em grande parte do território nacional. […]. O modelo escolhido pelo estado é o seguinte: delimita uma ampla zona que representa num mapa com as respectivas coordenadas hectométricas e superfície e declara-se dono desses terrenos. Posteriormente convida os eventuais interessados a apresentarem reclamações, com indicação precisa das confrontações, acompanhadas do levantamento topográfico, sob pena de a reclamação não ser atendida. Nalguns anúncios vai mesmo ameaçando que as falsas declarações constituem crime, portanto, o reclamante que tome cuidado porque pode incorrer em processo-crime. Essas justificações administrativas de domínio sobre a propriedade vêm na sequência das alterações introduzidas no Decreto-lei no 21/97, de Janeiro, pelo Decreto-lei no 35/2008, de 25 de Agosto que, no essencial, visou a dispensa matricial para efeitos de justificação administrativa do domínio sobre a propriedade. Na verdade, anteriormente a essa alteração exigia a lei que, antes de proceder à justificação administrativa de domínio sobre uma propriedade, o Estado devia certificar que a mesma se encontrava inscrita no registo matricial.” (A ênfase é nossa).

Ora, como país de emigração, os Decretos-lei 21/97 e 35/08 não defendem os direitos do povo no seu todo. Não estando os emigrantes constantemente informados do que se passa na terra, o Estado aproveita este status quo para usurpar os bens imóveis do Zé- e da Maria ninguém. Duas perguntas pertinentes se actualizam. Primeiro, quando é que o governo começará a contactar os verdadeiros donos de terrenos, estimulando-os e ajudando-os a defender a sua propriedade, em vez de pregar anúncios públicos acessíveis apenas a uma dezena de letrados, isto é, aos que podem defender a sua propriedade? Segundo, não é o dever legal do Estado conservar em registos matriciais as informações necessárias e suficientes à identificação dos legítimos donos dos bens imóveis? Como os instrumentos jurídicos estão baralhados hoje, em Cabo Verde, o emigrante não tem a

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informação suficiente nem a necessária força legal para readquirir uma propriedade suposta “perdida”, pois, quando quer reagir já é tarde demais! No concernente a exigências de provas do direito de propriedade, o Dr. Almeida salienta o seguinte:

“O modelo escolhido é assim o seguinte: o Estado declara-se dono e legítimo possuidor de uma facção delimitada de terreno, […]. Posteriormente dá aos interessados um prazo para apresentarem a sua reclamação. Se ninguém reclamar, o terreno é inscrito na Conservatória do Registo Predial em nome do Estado. Se alguém reclamar, abre-se um processo de prova, podendo a reclamação não ser atendida se restarem dúvida se o prédio objecto da reclamação se situa no interior da fracção do terreno justificado pelo Estado. Isto significa que, em caso de dúvida, o Estado regista o imóvel em seu exclusivo nome. […] Portanto, se o Estado reclama que é proprietário de um terreno já registado, a lei civil diz que é o Estado que tem que fazer a prova de que a pessoa em cujo nome o terreno se encontra registado não é proprietária. Prova difícil porque se trata de provar um facto negativo. Ora, a lei, sobre justificação administrativa de domínio vem inverter a inversão do ónus da prova de que beneficiem todos os proprietários com registo.” (A ênfase é nossa).

As palavras do Dr. Almeida “falam” por si sós, e portanto não precisam de comentários da nossa parte. Elas demonstram a existência de confusão e injustiça num sector dos direitos de propriedade privada, como um direito humano que um Estado Democrático de Direito tem a obrigação moral e o dever jurídico-constitucional de respeitar, defender, proteger e promover em nome da justiça e dos inalienáveis direitos humanos. O direito à propriedade está intimamente ligado ao direito à vida, o direito aos recursos indispensáveis à manutenção da saúde e à satisfação das necessidades fundamentais da pessoa humana. Quando o povo se torna proprietário de um imóvel, o Estado transforma-se num eterno cobrador de receitas, mas quando o proprietário é o próprio Estado, ele não cobra receitas a si próprio. O respeito pelo valor humano é a base Ética da, e necessária à democracia. E isto está implícito na Regra de Ouro – não faças aos outros o que não queres que os outros te façam a ti, o que pressupõe que todos os seres humanos têm igual dignidade e iguais direitos básicos. A dignidade da pessoa humana é também o fundamento ético da Declaração dos Direitos Humanos (veja DUDH, artigos 1,2 e 3). Uma verdadeira democracia não deve violar as normas desta Declaração. E uma Ética humanista e/ou cristão não deve transgredir a regra de Ouro. A presente Constituição de Cabo Verde pressupõe os princípios éticos da DUDH.

Injustiças contemporâneas perpetuadas sobre injustiças herdadas Se as declarações do Dr. Almeida são correctas e justas, o leitor atento tem toda a razão em pronunciar-se sobre o seguinte: Os que lutaram pela independência de Cabo Verde, procederam em nome da democracia e de um Estado Democrático de Direito, os quais, durante a guerra colonial, ainda não existiam em Portugal, quanto mais nas suas colónias. Portanto, o governo do partido único (PAIGC) tomou posse de Cabo Verde na pretensão e promessa de combater as injustiças herdadas e de estabelecer a justiça autêntica. Mas onde está a justiça autêntica depois de mais de três décadas de independência?90 Umas das grandes injustiças no tempo colonial estavam relacionadas com o modo como

90 Quando este capítulo foi escrito em forma de artigo no jornal Terra Nova (em 2006) perguntámos “onde está a justiça depois de mais de duas décadas?” Hoje, em 2012, depois das eleições de 1 de Julho em Cabo Verde e 22 de Julho em Santa Catarina da Ilha do Santigo, podemos ir mais longe e perguntar: onde está a justiça depois de quase quatro décadas? O liberal online descreve como o Supremo Tribunal da Justiça estava implicado nas fraudes eleitorais de 23.07.2012 (veja: http://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=64&id=36550&idSeccao=549&Action=noticia).

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grandes “extensões de terrenos” (ou latifúndios) eram possuídas. Os grandes senhores de então possuíam latifúndios, enquanto o povinho possuía nenhuma, uma, ou poucas “quartas” de terrenos. Depois da independência, muitos através da Reforma Agrária, foram expropriados em nome do povo. Mas quem, na realidade ficou mais prejudicado? Foi o povinho, que sempre viveu do cultivo do seu naco de terreno, quando havia chuva. Se a chuva não viesse, o povinho ou morria de fome, ou tinha de emigrar como escravo para S. Tomé e Príncipe para matar a sua fome e sobreviver, miseravelmente, debaixo de enorme sofrimento contínuo. Como o Dr. Almeida afirma, só em 2005 é que foi promulgada uma lei sobre a “restituição ou compensação aos proprietários que foram desapossados dos seus bens patrimoniais […] por motivos exclusivamente políticos, no período compreendido entre Julho de 1975 e Dezembro de 1980”.91 Mas esta lei beneficia sobretudo os proprietários que durante o regime colonial eram comparativamente ricos em relação ao povinho e tinham conhecimentos e possibilidades económicas de registar as suas propriedades imóveis na Fazenda e na Conservatória do Registo Predial. Pelo contrário, quanto ao povinho, se um/a coitado/a, por ventura, tivesse legalizado o seu imóvel (por exemplo, um pedaço de terreno) no tempo colonial, confronta-se hoje com o seguinte dilema. Primeiro, não consegue encontrar os recibos e outros documentos comprovativos de que realmente era ou é legítimo proprietário/a do imóvel em causa, porque ele/a nunca soube que devia guardar tais documentos e recibos de liquidação de sisa e do pagamento de décimas num lugar seguro (que nunca teve), onde a traça não os destrói. Pois, a administração colonial nunca sentiu o dever jurídico nem a obrigação moral de ajudar o povinho neste aspecto, isto é, de proteger os seus direitos e legítimos interesses. Ajudava sim os colonizados “assimilados” (e indoutrinados a identificarem-se com o poder opressor) que eram injusta e hipocritamente usados, em relação aos seus irmãos de sangue e sofrimento (o povinho), na defesa dos verdadeiros interesses do governo colonial, interesses completamente diferentes dos do povinho. Segundo, por exemplo, a gente do Fogo (e talvez da Praia e arredores) costuma dizer que nunca foi à justiça e nem tão pouco deu testemunha na sua vida. Para indivíduos que

pensam assim, a palavra “justiça” adquiriu – durante o tempo colonial – conotações

negativas, o que lhes impedem de procurar a justiça, mesmo quando estejam a ser prejudicados, principalmente se quem os prejudica é o Estado. O coitado que encara a justiça como algo positivo e desejável, não tem dinheiro para pagar um bom advogado para defender os seus legítimos direitos. A situação dilemática do povinho pode ser resumida assim: independentemente do seu conceito de justiça e do seu reconhecimento de que devia lutar por uma causa justa, a) se não fizer nada, fica prejudicado, mas b) se fizer, poderá ficar em condição pior. Pois, a propriedade que procura recuperar (ou re-legalizar) pode não ter o valor que tem de pagar a um bom advogado para lhe ajudar a recuperar a mesma. Antes, por prudência gentium, fica caladinho para poder sobreviver, embora debaixo de enorme miséria e de sofrimento contínuo. Por estas razões, lutar pela justiça em Cabo Verde, inclui lutar também pelo ‘desbravamento’ da nossa mente, cheia de preconceitos coloniais, que nos impedem de reivindicar os nossos legítimos direitos, de assumir de boa-fé e firmemente, a responsabilidade de cidadãos e de obrigar a quem

de direito – que tem os deveres correlativos a tais direitos – a ajudar ou recompensar aos

que, juridicamente, reivindicam tais direitos. Precisamos, por isso, uma justiça compensatória.

91 Boletim Oficial, 1478 I SERIE - No 52 ”B. O.” Da República de Cabo verde - 26 de Dezembro de 2005.

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O coitado precisa de um Ombudsman com poderes jurídicos e outros À luz das injustiças acima expostas, agravadas pelas injustiças provocadas pela reforma agrária, e por outras que o Dr. Almeida tem desvendado, temos toda a razão de desejar bem-vindos a intrépidos juristas como o Dr. C. Veiga e Dr. G. Almeida que declaram publicamente estarem dispostos a lutar pelo melhoramento da justiça em Cabo Verde, porque, contrariamente à gente do Fogo, parece-me que eles só têm medo de injustiça e não de justiça. Esses experimentados juristas, e outros corajosos juristas (e não só) de igual integridade moral, devem trabalhar pela criação da instituição de Ombudsman (Provedor de Justiça) como um “funcionário do governo que investiga as queixas dos cidadãos contra órgãos da administração política”.92 Deve possuir poderes jurídicos independentes para a defesa, a fiscalização de injustiças e para o atendimento aos cidadãos mais “coitados”, emaranhados ou “labirintados” nas teias morosas e injustas da burocracia e do abuso do poder.93 Um tal funcionário poderia suplementar ou até substituir o Ministério Público, quando este funcionar mal. Ele/ela deve ser pago/a pelo Estado e não pelo coitado que necessita de ajuda jurídica (catém câ tâ dâ e djangôtódo câ tâ pô na ragaz94). Pois, a sua função é a defesa e protecção jurídica dos indivíduos contra possíveis injustiças perpetradas pelo Estado. Assim, como promotor da justiça, iria para além da denúncia de injustiças ao intervir e construir práticas jurídicas inovadoras e promissoras.95 Deste modo contribuiria para o desenvolvimento da nossa prematura democracia. Espero, por isso, que haja mais artigos sobre a justiça, nos vários jornais de Cabo Verde, capazes de estimular o povo em geral, e os especialistas em Direito, em particular, a lutarem para abrir os olhos dos governantes em defesa dos interesses supremos do povo, sem pretensões de colherem dividendos político-partidários. E espero, acima de tudo, que muitos juristas sigam intrepidamente o exemplo do Dr. Almeida em desvendar injustiças, mesmo que tenham de pagar caro por isso, o que em si só pode constituir uma prova suficiente de que são motivados pelo amor à justiça, como virtude moral, guardiã do direito, e não por interesses egoístas.96

92 O Provedor de Justiça de Angola estipula o seguinte: “Fiel ao nosso pórtico de conduta, segundo o qual é o Provedor de Justiça que tem de ir ao encontro do cidadão e não o cidadão [a] procurar o Provedor de Justiça obedecendo, afinal ao que estabelece o Código Genético da figura Ombudsman”. (http://www.provedor-jus.co.ao/). 93Anjos, M. dos et al. (1986), 1222. Em Portugal, segundo estatuto, artigos 1 e 2, de Provedor de Justiça, o Provedor tem os seguintes direitos: 1 - O provedor de Justiça é, nos termos da Constituição, um órgão do Estado eleito pela Assembleia da República, que tem por função principal a defesa e promoção dos direitos, liberdades, garantias e interesses legítimos dos cidadãos, assegurando, através de meios informais, a justiça e a legalidade do exercício dos poderes públicos; 2 - O provedor de Justiça goza de total independência no exercício das suas funções. Veja: (http://portolegal.jurispro.net/provjustica.htm). 94 Quem não possui nada, nada nos pode dar e quem está de cócoras não pode pôr ninguém no seu regaço. 95Nota bene que depois de 60 anos de existência da Declaração Universal dos Direitos Humanos, os direitos menos reconhecidos e os menos protegidos são: “os direitos económicos e os sociais e culturais, como o trabalho, a saúde, a habitação, a educação, a segurança social, o lazer ou o direito à cultura.”Paula Escarameia ao PÚBLICO, em 10.12.2008. Sra. Escarameia, é membro – e única mulher – da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas. 96 Kristiansand, Noruega, 15 de Fevereiro de 2009. Artigo publicado no jornal Terra Nova, Fevereiro de 2009.

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Parte III

Relacionamento humano, liderança e temas éticos

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12. Relacionamento humano autêntico e desenvolvimento integral

Quando se fala de desenvolvimento de um país, refere-se, muitas vezes, ao seu nível económico. Mas o desenvolvimento é um conceito bastante complexo, isto é, rico de conteúdo. Nele deve-se incluir não só o progresso económico, em geral, mas também a distribuição equitativa dos bens e serviços disponíveis (em termos de justiça social); o grau de implementação da saúde – tanto pessoal como pública –, a alfabetização e educação literária da população; o número dos indivíduos empregados em relação aos desempregados; o grau de participação dos cidadãos no comércio, na indústria e, sobretudo, na política, em fim, o bem-estar (económico, social, psicológico, moral e espiritual) de todos, como prova de uma efectiva implementação da justiça social e dos direitos e liberdades fundamentais e inalienáveis de todos os cidadãos. Todos estes aspectos constituem, conjuntamente o sinal, critério ou indicador do desenvolvimento integral de um país. A minha tese aqui é que um relacionamento humano autêntico, em todas as suas variadíssimas expressões: na família, na escola, nas repartições públicas, nos lugares públicos, nos transportes colectivos como autocarros, barcos e aviões; nos locais de trabalho, e noutros sectores da vida pública, é uma condição necessária ao desenvolvimento integral e progresso de Cabo Verde a nível económico, tecnológico, político, cultural, educacional, moral e espiritual. Convém distinguir aqui entre um relacionamento humano autêntico e um relacionamento humano inautêntico. Por relacionamento humano entendemos, grosso modo, a relação de comunicação interpessoal e entre grupos e engloba comunicação verbal, atitudinal, comportamental que inclui a tão chamada "linguagem do corpo" como mímica, expressões da face, por exemplo, o sorriso, movimentos dos braços ou do corpo inteiro, os quais exprimem uma certa atitude, que pode ser positiva, negativa ou indiferente. Tudo isso exprime claramente, literal ou simbolicamente, uma certa valori-zação, da nossa parte, da pessoa com quem comunicamos e vice-versa. Por relacionamento humano ou diálogo autêntico – ao nível individual – designo aqui uma comunicação, entre dois indivíduos que respeitam a dignidade, identidade e direitos básicos um do outro. Ao nível social e político, um relacionamento autêntico significa um relacionamento democrático entre indivíduos e grupos, entre diferentes grupos, e entre governados e governantes. Este último tipo de relacionamento será descrito mais à

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frente. No que segue, vamos, primeiro, apresentar três modalidades diferentes de relacionamento humano e depois argumentar em favor de uma delas – a que chamamos relacionamento democrático. Tencionamos, por conseguinte, analisar os pressupostos e as consequências de cada uma das três modalidades de relacionamento humano descritas abaixo. Estamos interessados, acima de tudo, no seguinte tipo de problemas: Porque é que um ou vários membros de um grupo é oprimido, sofre de apatia, mostra indisciplina, passividade ou agressividade, improdutividade ou se torna conformista? Qual é o efeito disso para o desenvolvimento pessoal, da sociedade e da nação no seu todo? Que conceito do Homem e da Ética são indispensáveis ao desenvolvimento de uma sociedade mais justa e mais humana, isto é, onde a ordem e a segurança, a paz e a justiça social permanecem ou perduram? As modalidades de liderança e relacionamento que vão ser apresentadas, nos parágrafos seguintes, baseiam-se em investigações experimentais feitas no domínio da psicologia social pelo psicólogo gestaltista Kurt Lewin e seus colaboradores. O propósito principal de tais investigações psicossociais era de determinar a relação entre certos factores humanos, isto é, como tais factores influenciam uns aos outros, determinando o comportamento dos indivíduos em grupos possuindo estruturas socioeconómicas e graus de desenvolvimento democrático diferentes. Os factores principais são: agressividade, competência, comunicação, disciplina, cooperação e produtividade. Aqui vamos focalizar o factor comunicação e os seus pressupostos. As estruturas que formam as três modalidades diferentes de relacionamento humano são: a estrutura autocrática, a permissiva (laissez-faire, laissez-passer) e a democrática. Intimamente relacionado com estas estruturas está o conceito de liderança.

Três formas de liderança e de relacionamento humano As palavras “liderança” e “chefia” podem, por vezes, ser usadas como sinónimas, mas não têm o mesmo significado, estritamente falando. A diferença principal entre elas pode ser descrita assim:

“Uma das fortes diferenças que percebo de cara entre chefe e líder é que o chefe busca quase o tempo todo surpreender o funcionário fazendo alguma coisa errada. Ao passo que o líder tenta surpreender o colaborador fazendo alguma coisa correcta. E aí ele aproveita para elevar a auto-estima da pessoa dando parabéns de público. Percebo ainda que serve para fazer com quê o indivíduo melhore sua criatividade. […]. Isso é motivar. Líderes conseguem praticar com inteligência levantar a auto-estima dos seus pares hierarquicamente inferiores”.97

Tendo in mente esta diferença entre o conceito de chefe e o de líder, vamos agora apresentar três diferentes modelos de relacionamento humano.

A estrutura de liderança autocrática como modalidade de relacionamento humano Um grupo de indivíduos com estrutura de liderança autocrática possui um chefe que toma todas as decisões; que dita os métodos e as fases das várias actividades ou acções do grupo "sem o grupo tomar conhecimento do plano de conjunto, permanecendo

97 http://www.rhportal.com.br/artigos/wmview.php?idc_cad=6wnhby8f0/20.06.2011

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indeterminada a sequência das fases futuras".98 O chefe "dominador distribui elogios e críticas ao trabalho de cada membro de maneira pessoal, sem dar para isso, razões objectivas; abstém-se de qualquer participação efectiva na actividade do grupo, excepto a título de demonstração. Reveste um 'ar' amigável ou impessoal, mais do que aber-tamente hostil".99

A estrutura de liderança permissiva como modalidade de relacionamento humano Num grupo com estrutura de liderança permissiva, o “chefe” (que na realidade não funciona nem como chefe, nem como líder (como definido acima), não intervém na tomada de decisão. Cada um dos membros do grupo é totalmente livre. O “chefe” fornece informações e recursos, se lhe forem pedidas, "mas não toma parte na discussão do plano de actividades".100 O chefe "só faz comentários sobre as actividades do grupo quando para isso é solicitado; não faz nenhuma tentativa para participar ou para interferir no curso"101 das actividades ou do trabalho que o grupo tem o dever de fazer.

A estrutura de liderança democrática como modalidade de relacionamento humano Num grupo com estrutura de liderança democrática, todos os membros do grupo participam na discussão e tomada de decisão. O papel do chefe ou líder consiste em encorajar e aconselhar, mas não em dar ordens, como acontece no grupo com estrutura de liderança autocrática, nem está o chefe/líder completamente ausente como acontece no grupo com estrutura de liderança permissiva. Os membros do grupo com liderança democrática procuram em colaboração, implementar o plano discutido pelo grupo. Caso surja qualquer problema, o chefe pode dar sugestões que podem ou não ser seguidas pelo grupo. Portanto, no grupo com estrutura democrática o chefe/líder respeita a liberdade de escolha, de decisão e de realização da acção escolhida por cada membro do grupo. O chefe "é 'objectivo' ou 'realista' nos seus elogios e nas suas críticas e tenta ser, de facto, um membro regular do grupo, sem realizar todavia um grande número de tarefas".102 Portanto, podemos dizer que na estrutura democrática o chefe/líder procura respeitar a liberdade, a competência e o agir dos subordinados. Por outras palavras, o líder respeita a dignidade, a identidade e os direitos básicos dos seus subordinados ou subalternos. Resumidamente, podemos dizer que existe no primeiro grupo (com estrutura autocrática) uma submissão hierárquica, no segundo (com estrutura permissiva) uma con-corrência desenfreada, enquanto no terceiro (com uma estrutura democrática) existe um diálogo ou respeito mútuo, no qual participa também o chefe/líder apesar da existência de várias diferenças no grupo, por exemplo; de idade, sexo e competência.

98 Biblos, 1977, p. 180. 99 Ibid. 100 Ibid. 101 Ibid. 102 Ibid.

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Relacionamento humano autêntico versus inautêntico Tendo o acima exposto como pano de fundo, a expressão "relacionamento humano autêntico", que usamos na formulação da tese supra referida, deve ser entendida da seguinte maneira. Ela refere-se a um relacionamento interpessoal positivo em que, por exemplo, os factores humanos, já mencionados, influenciam uns aos outros de maneira a permitir uma conduta democrática em geral, isto é, a todos os níveis da sociedade; e uma chefia democrática nos casos em que os membros de um grupo tenham de obedecer a uma hierarquia preestabelecida, como é o caso, por exemplo, dos ministérios, das esco-las, dos hospitais e das instituições militares. No que se segue, para simplificar a exposição, falaremos de relacionamento humano autocrático, permissivo e democrático, respectivamente. O primeiro é autêntico, enquanto os outros dois são inautênticos. Geralmente falando, o relacionamento autocrático (baseado no relacionamento inautêntico) ao nível sociopolítico, dominou em Cabo Vede durante o regime colonial e durante os 15 anos do regime de partido único. Por isso, o relacionamento democrático (baseado no relacionamento humano autêntico) cujos alicerces foram lançados em 1991, está ainda no estado embrional na nossa terra, por razões óbvias. São sobretudo estas duas modalidades de relacionamento humano (e não a modalidade implícita na estrutura permissiva) que são relevantes e actuais no que diz respeito tanto à nossa situação no passado, como a nossa situação presente, de estado com democracia prematura ou extemporânea, como à situação ideal futura, isto é, a que desejamos ver implementada com o rápido evoluir da democracia parlamentar e pluripartidária na nossa terra. Como ficará esclarecido no que se segue, a estrutura permissiva parece ocupar um lugar intermediário entre a estrutura autocrata e a democrata. A estrutura permissiva é baseada no relacionamento humano indiferente – portanto inautêntico – que exprime, sobretudo, a falta de interesse pelo bem-estar ou mal-estar do próximo. Antes de analisarmos a nossa situação actual, comecemos por ilustrar as modalidades de relacionamento humano autárquico (autêntico) e a do relacionamento democrático (inautêntico).

Dois tipos incompatíveis de relacionamento humano

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Figura 1. Ilustra a diferença entre o relacionamento autocrático (RA) e o democrático (RD)

No relacionamento autocrático (daqui em diante RA) entre duas pessoas, chamemos-lhes Sr. Manuel e Joãozinho respectivamente, o Sr. Manuel considera a sua própria pessoa como sujeito, enquanto olha para o Joãozinho como um objecto ou coisa, moralmente falando, isto é, o Sr. Manuel acha que tem o direito de atribuir pouco ou nenhum valor ao Joãozinho. Por isso, o Sr. Manuel fala e age em relação ao Joãozinho como agente, e portanto, é activo na sua relação com o Joãozinho; considera-se superior a este último e espera que este o trate como senhor, embora o Joãozinho seja apenas objecto da acção do Sr. Manuel. O Sr. Manuel não fala “com” o Joãozinho, mas sim "para" o Joãozinho. Por outras palavras, não há reciprocidade no relacionamento, ou respeito mútuo, dinamismo, simpatia, humanidade e diálogo autêntico na comunicação entre o Sr. Manuel e o Joãozinho. Existe antes, uma relação análoga à relação entre um transmissor e um receptor de rádio.103 É, por conseguinte, uma relação assimétrica. O Sr. Manuel comporta-se autoritariamente em relação ao Joãozinho, e fá-lo imbuído de atitude e espírito superior. Com esta sua atitude “superior” – um complexo de superioridade – o Sr. Manuel infringe e viola a dignidade e os direitos inalienáveis do Joãozinho. Pelo contrário, no relacionamento democrático (abreviado como RD) entre duas pessoas, por exemplo, Pedro e Paulo, ambos são agentes das suas acções e inter-relações, tratam um ao outro como pessoa, portanto como sujeito ou agente, possuindo igual digni-dade e valor, e por isso, respeitam um ao outro. Tratam-se por "tu" (cf. a palavra francês: tutoier) ou por "Sr." um ao outro, o que significa que respeitam-se mutuamente. Podemos dizer que entre o Pedro e o Paulo existe uma atitude de diálogo autêntico, há uma avaliação e apreciação positiva mútua, e consideram um ao outro como tendo iguais direitos e deveres fundamentais, sendo estes baseados no valor intrínseco do ser humano, isto é, na dignidade da pessoa humana, embora, como indivíduos tenham identidades diferentes, e possam ter interesses, desejos, aspirações, opiniões, profissões, conhecimentos, experiencias, competências, virtudes, etc., diferentes. Podemos dizer que neste tipo de relacionamento existe simetria ou reciprocidade de valor, atitude

103 Com o Radar é diferente! O radar envia e recebe mensagem.

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positiva e respeito mútuo no tratamento, enquanto no relacionamento autocrático, como já vimos, reina dissimetria nestes aspectos morais. No relacionamento RA, ao contrário do RD, existe também dissimetria na distribuição e no uso de poder, o qual pode ser político, físico, psicólogo, cultural, etc. Um exemplo de assimetria cultural e social é o domínio de uma língua. Em Cabo Verde, muitos que dominam o português, é-lhes atribuído ou assumem uma posição cultural e social de destaque em relação aos que não falam ou falam mal o português. Segundo o RA o sujeito da acção, para poder impor a sua hegemonia e atitude paternalista inautêntica sobre os outros, que ele ou ela reifica, usa entre outros, os seguintes símbolos: a língua vernácula (no nosso caso o português, “bem falado”, contrastado com o crioulo – a tão chamada "língua de palha", no dizer preconceituoso do colonialista, etnocêntrico e imperialista e opressor – que mal ou bem falado, foi conside-rado, pelo colonialista, como um meio inadequado de comunicar e transmitir informações, pensamentos, sentimentos e emoções). Pelo contrário, a língua portuguesa, que no tempo colonial era considerada a língua autêntica – par excellence et perference – servia tanto para comunicar como para impor não só o respeito mas também para induzir medo no subordinado (lê-se aqui, colonizado), segundo a pedagogia da opressão, da qual falámos num outro contexto.104 O sujeito da acção, segundo RA, para se impor, usa certos símbolos como o fato e a gravata, anéis, o uniforme, divisas e emblemas, a barba e o bigode, a voz altiva, o falar grandiloquente, o orgulho e tudo que a fantasia vaidosa e prepotente possa imaginar, como o modelo de carro, tipo de habitação e de telefone móvel, etc. Tudo isso serve para marcar a distância social, isto é, a posição de cada um na hierarquia social, na escala de valores, poderes e direitos, a vários níveis: socioeconómico, político, intelectual, religioso, militar, etc. Nesta perspectiva autocrata e no contexto cabo-verdiano, a cultura, o conhecimento, o saber, a etiqueta, os bons costumes, o civismo, a moralidade, a prática da religião, etc., não são considerados como fins (grego: telos) ou valores em si, mas, antes, apenas como meios ou instrumentos usados pelos agentes ou sujeitos de acções, sendo estes agentes ou sujeitos, os autocognominados de "melhores filhos da terra" – o povão ou a elite, a intelligentsia – para impor a sua presumível ou auto inventada superioridade, prepotên-cia, arrogância e vanglória, sobre o povinho, que nasceu como povo, vive como povo e morre apenas como povo, embora ele seja o trampolim que continuamente transforma os oportunistas e traiçoeiros em povão. Quem vive e labuta neste clima psicológico, discriminatório, estigmatizante e desumano, estuda e instrui-se apenas para "ser senhor", quer dizer, para ganhar prestígio, mérito e posição e poder na hierarquia socioeconómica e na posição social, o que contribui para preservar o status quo expresso no RA. Por outras palavras, uma pessoa, nesse clima psicológico e sociopolítico, não estuda nem se instrui para se amadurecer como ser humano, ou melhor, para humanizar os instintos anima-lescos inerentes ao ser humano e para combater a injustiça social na sociedade, em que vive, ou no mundo inteiro, como sinal de altruísmo, generosidade e solidariedade humana. Pelo contrário, uma pessoa estuda para dominar e subjugar os outros. E como sabemos, para que haja senhores, têm de haver escravos, e em abundância! Escravos são, infelizmente, o povinho, em geral, e os marginalizados, em particular, dentro do povinho. Que devemos fazer para transformar o RA em RD? Temos de nos consciencializar do espírito RA, implícito e latente em vários sectores da sociedade cabo-verdiana contemporânea, temos de tentar explicita-lo e combatê-los, e temos de nos esforçar para viver autenticamente, tendo sempre, na mente, o relacionamento humano autêntico, os ideais de paz, justiça, verdade e solidariedade humana.

104 Veja Barbosa da Silva, António e Domingos (1993), p. 91f.

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13. O Conceito da Ética, o conceito do homem, o conceito da realidade e as suas inter-relações

O propósito deste capítulo, baseado numa série de palestras sobre a Ética em Cabo Verde105, é de oferecer aos leitores uma inspiração para poderem fazer uma reflexão mais profunda sobre a Ética. Penso que, deste modo, poderão ficar mais aptos para compreenderem e resolverem os vários tipos de problema moral, existentes em todo o mundo, inclusive em Cabo Verde. Existe uma íntima relação entre o conceito da Ética e moral, o conceito do Homem e o conceito da Realidade ou cosmovisão. Pode-se observar a diferença e a relação entre estes três conceitos desde a seguinte perspectiva:

105 Lições proferidas no Seminário Nazareno, em S. Vicente no ano 2000.

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Figura 2. Ilustra a relação entre os conceitos da Ética/Moral, do Homem e da Realidade ou cosmovisão. As setas verticais lêem-se “é justificado com referência a”. A área 1 representa o conceito de cosmovisão, 2 representa o conceito do Homem e 3 representa o conceito da Ética e Moral.

A razão do uso do modelo ilustrado pela figura 2 pode ser formulada como se segue. Em primeiro lugar, creio que o modelo ilustrado na figura 2 é pedagogicamente frutífero por visualizar as relações entre os três conceitos ilustrados pela figura 2. Em segundo lugar, uma imagem diz mais que mil palavras. E em terceiro lugar, é mais fácil recordar uma imagem ou um modelo do que a descrição do que o modelo ilustra, neste caso a relação entre o conceito da Ética e moral, o conceito do homem e o conceito da realidade ou do mundo e a relação entre eles.106

A diferença e a relação entre o conceito de Ética e o conceito de moral Comecemos por definir o que entendemos por Ética ou Moral. A palavra "Ética" é etimologicamente derivada da palavra grega ethos que corresponde à palavra latina “moral” (derivada de mos, moris = costumes) que significa tratado sobre os costumes. Etimologicamente falando, ambas significam usos e costumes. Portanto, como as palavras ethos e moral eram usados nas culturas clássicas: grega e latina, respectivamente, tinham o mesmo significado e eram usadas para responder às perguntas: o que é o bem, o que é o mal e o que faz uma acção boa ou má? Porém, através da história da civilização ocidental, desde a antiguidade grega e romana até aos nossos dias, a palavra “moral” tem adquirido conotações negativas (em certas culturas), enquanto a palavra “Ética” tem adquirido conotações positivas. Assim, no contexto do ensino e da aprendizagem, falamos do estudo da Ética e não da moral.

Hoje nos Estados Unidos da América do Norte e na Inglaterra, estes dois termos são ainda usados quase no mesmo sentido. Noutras culturas, como na Escandinávia, "moral" e "Ética" (como substantivos) usam-se em sentidos diferentes. Mas como adjectivo a palavra “ética” (masculino ético) pode ser usada como sinónimo do adjectivo “moral”, por exemplo, podemos falar de conflitos, problemas ou dilemas éticos ou morais, normas éticas ou morais e afirmações éticas ou morais. De uma maneira geral, filósofos modernos distinguem entre os substantivos moral e Ética da seguinte maneira: enquanto moral é parte integrante de uma determinada cultura, Ética tem a tendência de ser transcultural, isto é, universal, mesmo que tenha tido a sua origem numa certa cultura.107 Além disso, a palavra "ética" é usada academicamente como sinonimo da filosofia moral (isto é, reflexão sobre a moral). Apesar desta distinção, ética ou moral, em sentido lato da palavra, pode ser vista como um conjunto de normas, regras ou princípios que prescrevem: como os seres humanos devem viver juntos, como o ser humano deve relacionar-se com a natureza, na sua relação com os animais e com o meio ambiente.108 Hoje na Europa, quando, em contextos académicos, se fala da Ética, entende-se uma reflexão filosófica sobre a moral com a intenção de melhorá-la, aprofundá-la ou corrigi-

106 Com isto de recordar uma imagem, quero consolar o leitor: se não se lembrar de tudo que vou escrever neste capítulo, espero que há-de se lembrar, pelo menos, deste modelo. 107 Na Escandinávia (Suécia, Noruega e Dinamarca), por exemplo, é aceitável dizer: "frequento um curso de Ética" mas não é aceitável dizer: "frequento um curso de moral". 108 Em certos contextos, a Ética é concebida como o tratado sobre o ”bom”, enquanto moral tem a ver com o ”justo”. A relação que o ser humano deve ter com a natureza é estudada pela Ética ecológica ou ambiental.

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la. Sendo Ética (ou filosofia moral) uma reflexão filosófica sobre moral, podemos dizer que toda a gente tem uma moral, mas nem toda a gente tem uma Ética, ou melhor, muito poucas pessoas têm feita uma reflexão sobre a moral e têm formulado uma teoria ética. Assim, podemos falar da teoria ética de: Platão, Aristóteles, São Tomás de Aquino, David Hume, Emanuel Kant, Baruch Spinoza, Georg W.F. Hegel, John Rawls, Robert Nozick, etc. No resto deste capítulo, vamos falar essencialmente da Ética como filosofia moral.109

Estudo ético sob três perspectivas: descritiva, normativa e meta-Ética Há vários tipos de Ética, de acordo com as suas funções e do modo como são estudados e ensinados. Assim podemos falar de: a) Ética Descritiva, b) Ética Normativa e c) Meta-Ética ou Ética Analítica. Esta divisão da Ética em três tipos parte do princípio de que existe três distintos estudos académicos da Ética com três objectivos diferentes. Podemos estudar a Ética ou moral apenas com o interesse de saber como os costumes aparecem (a sua origem), se desenvolvem e se desvanecem, ou então com o interesse de conhecer os diferentes pensamentos e as diversas normas éticas ou morais de vários povos, tanto contemporâneos como do passado. Este tipo de estudo chama-se estudo descritivo da moral ou Ética, e é feito por diversos especialistas tais como antropólogos, historiadores, fenomenólogos das religiões, etnólogos e sociólogos. Intimamente ligado ao estudo descritivo da Ética, está o estudo normativo que tem como resultado a Ética normativa. Este tipo de Ética faz o estudo das regras e normas de conduta humana e prescreve como elas devem ser usadas e funcionam em situações concretas na vida dos indivíduos e grupos. Eis alguns exemplos de regras ou normas de conduta ética:

Devemos falar a verdade

Devemos cumprir as nossas promessas

Não devemos usar a violência ou a mentira para resolver conflitos

Devemos ajudar aos necessitados

Devemos amar o nosso próximo como a nós mesmos.

Como veremos mais à frente, há várias teorias da Ética normativa e todas elas prescrevem o

uso de normas morais ou éticas.110 Um terceiro tipo de estudo da Ética consiste na análise filosófica dos termos e conceitos éticos tais como: o bem e o mal, o bom e o mau, a justiça e a injustiça, o dever ou a obrigação moral, o direito, a responsabilidade moral, a liberdade moral, a culpa, o aceitável ou inaceitável, o permitido, o proibido, etc. Dá-se a este tipo de estudo o nome de Ética analítica

ou meta-Ética (da palavra grega meta que significa para além da Ética).111 É um estudo filosófico (meta-ético) por ser uma análise crítica e filosófica dos conceitos fundamentais da Ética. Por outras palavras, a meta-Ética consiste num estudo semântico, epistemológico e ontológico dos conceitos éticos. Vamos tentar explicar a diferença entre o estudo meta-ético e o estudo normativo da Ética.

109 Para mais informação sobre as obras destes pensadores, veja: Mora, J. F. (1974 e 1991). Groethuysen, B. (1982). 110Deve-se distinguir as normas morais ou éticas das normas jurídicas, estéticas e metodológicas ou científicas. 111 Assim como a metafísica significa para além da física (do grego meta = para além).

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Voltaremos a estes três tipos de estudo da meta-Ética, no capítulo 16, depois de termos analisado o conceito da Ética normativa.

Diferentes definições do conceito de Ética normativa ou filosofia moral A Ética normativa, de uma maneira geral, estuda o conjunto de normas que servem para regular ou nortear condutas humanas. É relevante aqui distinguir entre valores e normas morais. Exemplos de valores éticos ou morais são: a vida humana, a verdade, a justiça, o bem e o mal, o amor, a fraternidade a compaixão, a fidelidade e a solidariedade. Exemplos de normas éticas ou morais são: “Não matarás”, “não mentirás”, “não furtarás”, “amarás o teu próximo como a ti mesmo” ou” “Não faças aos outros aquilo que não gostarias que te fizessem a ti”, “devemos respeitar a autonomia, a dignidade, e a integridade do paciente/doente/cliente”. Normas éticas ou morais estão intimamente ligadas a valores éticos ou morais. Por exemplo, a norma “não matarás um ser humano”, contém implicitamente o valor “a vida humana”, e a norma: “devemos respeitar a autonomia, a dignidade, e a integridade do paciente/doente/cliente”, contém explicitamente os valores morais ou éticos da autonomia, dignidade e integridade. Considerando esta relação íntima entre valores e normas, podemos dizer que as normas morais contêm sempre, implícita ou explicitamente, valores morais. Por consequente, não existem normas sem valores. Mas o contrário não é verdadeiro, isto é, podemos ter valores sem normas, valores não formulados em normas (regras e princípios). É bom notar também que os valores morais servem para fundamentar ou justificar as normas morais. Justificar aqui significa mostrar que uma norma moral é válida ou aceitável sob certas condições. O conceito da Ética normativa pode ser definido em vários modos, dependendo do propósito da definição. Uma primeira definição da Ética normativa pode ser formulada como: um conjunto de normas (regras, princípios e teorias) sobre o bem e o mal, o justo e o injusto, o lícito e o ilícito, o desejável e o indesejável, o permitido e o proibido, etc. Normas morais servem como critério ou padrão tanto para regular ou guiar como para avaliar as acções ou condutas humanas. Portanto, sem um critério ou padrão de avaliação (normas morais) não é possível determinar ou decidir correctamente se uma acção humana é justa ou injusta, permitida ou proibida, ou se as suas consequências são boas ou más. Uma segunda, e simples, definição da Ética normativa é a seguinte: Ela é a arte de viver bem. Esta definição pressupõe que haja um padrão de vida que é óptimo ou desejável, em contraste com um modo de viver que não é desejável. Desde os filósofos clássicos (por exemplo, Sócrates, Platão e Aristóteles), da antiguidade até hoje, o viver bem, isto é, a boa vida humana, moralmente falando, foi definida como sendo uma vida que tem por meta, ideal ou fim, a felicidade (grego: eudaimonia, inglês happiness) do ser humano.112 Mas é preciso frisar que existem diferentes concepções filosóficas e teológicas do fenómeno da felicidade, dependente de diferentes conceitos da realidade, do ser humano e da ética.113Voltaremos a este tema na secção onde analisaremos os termos básicos da Ética normativa teleológica. Uma pergunta importante neste contexto é: Qual é a vantagem e a desvantagem desta segunda definição da Ética como a arte de viver bem? Vantagens da segunda definição: a segunda definição parece fácil de ser compreendida ou aceite por quase todas as pessoas, uma vez que a maior parte das pessoas querem 112 Eudaimonia pode significar boa fortuna, riqueza ou felicidade (http://www.google.no/eudaimonia). 113 Veja a relação entre estes três conceitos, ilustrada na figura 2.

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viver bem. É também uma definição fácil de se recordar, por ser curta. Desvantagens da segunda definição: Definir a Ética como "arte de viver bem" é dar uma definição geral e abstracta. A definição não fornece um guia concreto em como viver bem. Além disso, a definição não esclarece, mas pressupõe que todos sabem o que significa "viver bem". O que não é o caso, pois há várias opiniões sobre em que consiste "viver moralmente bem". Logo, uma pergunta pertinente aqui é: qual é o critério ou padrão para se viver bem? Há várias respostas a esta pergunta, dependente de diferentes conceitos da realidade, do ser humano e da Ética normativa.114 As duas definições podem completar uma à outra. A primeira não tem as mesmas desvantagens que a segunda e pode funcionar como explicação e especificação de como viver moralmente bem. Assim pode completar a segunda. Na primeira definição aparecem termos fundamentais da “moral” e da “Ética”, como o "bem" e o "mal" o "justo" e o "injusto", o “lícito” e o “ilícito”, o “desejável” e o “indesejável”, etc. Estes termos são indispensáveis aos meios adequados à boa vida humana, isto é, de como viver bem. Uma terceira definição para Ética normativa é: o conjunto de regras, princípios e teorias morais que servem para resolver conflitos de interesses entre indivíduos, grupos, povos e nações. Esta definição – que é uma modificação da primeira – enfatiza uma outra função importante da Ética (além de servir de guia de conduta), nomeadamente: a resolução de conflitos de interesses, o que indica que estamos a definir a Ética social que pressupõe a relação entre, pelo menos, dois ou mais indivíduos, ou grupos, cujos interesses podem colidir. Segundo esta definição, é cumprindo ou seguindo uma norma moral que podemos saber se uma acção é justa ou injusta e se as suas consequências são moralmente boas ou más, portanto desejáveis ou indesejáveis. Voltaremos a esta função da norma moral, no capítulo sobre a Ética, onde analisaremos as diferentes teorias da Ética normativa, depois de termos esclarecidos alguns aspectos fundamentais dos valores éticos, aspectos relevantes à compreensão do resto deste capítulo. Uma quarta definição da Ética normativa faz menção ao ”domínio da filosofia que procura determinar a finalidade da vida humana e os meios de a alcançar". Aqui podemos falar da Ética teleológica clássica de Aristóteles e São Tomás de Aquino, que trata do fim último da vida humana (felicidade, e beatitude, respectivamente) e os meios adequados para alcançar este fim. Há uma certa relação entre esta definição da Ética normativa e a segunda definição formulada acima. Ambas falam do bom fim da vida humana. A diferença entre elas consiste no facto de tanto Aristóteles como São Tomás especificam o conteúdo do bom fim da vida humana. Ainda uma quinta, e muito abstracta, definição da Ética normativa, pode ser formulada como a: "ciência que tem por objecto o juízo de apreciação com vista à distinção entre o bem e o mal".115

Estas duas últimas definições sublinham três termos básicos ou fundamentais da Ética, a “finalidade" ou “propósito” da vida humana, "o bem" e "o mal". Estes termos estão intimamente interligados da seguinte maneira: a finalidade ou o fim último da vida humana deve ser algo bom, isto é, algo relacionado com o bem. Daí segue logicamente que a finalidade da vida humana deve ser algo moralmente bom e não mau. Isto pressupõe, ainda que hipoteticamente, que a finalidade da vida humana, em si, tem um valor intrínseco e positivo. (Cf. o capítulo sobre o valor e sentido da vida humana). Depois do esclarecimento dos termos “valores morais” e “normas morais, e de ter apresentado cinco definições da Ética normativa, convém agora responder à seguinte pergunta.

114 Podemos falar do conceito humanístico do homem, do conceito cristão, do budista, do ateísta, do materialista, etc. Cada conceito do ser humano está intimamente ligado com um determinado conceito de “viver moralmente bem” 115 Mora, J. F. (1994), p.780.

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De onde vêm as normas e os valores morais?

Sob o ponto de vista individual as normas e os valores morais são aprendidos durante toda a vida, através da educação (que pode ser caseira, escolar, profana ou religiosa) e durante o desenvolvimento e a socialização individual. Sob o ponto de vista cultural e religioso, as normas e os valores morais são partes integrantes da cultura e da religião. Por exemplo, para os cristãos e pessoas educadas ou aculturadas nas civilizações ditas cristãs, as normas morais e os valores fundamentais são revelados e contidos na Sagrada Escritura ou seja na Bíblia. Por outro lado, para os ateístas ou indivíduos com uma ideologia política ou uma religião não cristã, as suas normas e os seus valores morais têm o seu fundamento: a) ontológico e b) epistemológico ou gnosiológico na ideologia ou religião professada. a) Por fundamento ontológico entende-se aqui; o modo como as normas está relacionado com a realidade, isto é, se valores e normas morais existem objectivamente na realidade exterior ao ser humano e inerente à natureza humana, ou se são, meramente, criados pelo ser humano. Se este último caso for verdadeiro, então são puramente subjectivos.116 Porém, se valores e normas morais existem objectivamente, então o ser humano pode perceber a sua presença na realidade, conhecer e descrever a sua essência. Neste caso, dizemos que valores éticos existem ontologicamente objectivo. Isto implica que, se todos os seres humanos morressem, valores éticos continuariam a existir, por serem inerentes à realidade. b) Epistemologia ou gnosiologia é a parte da filosofia que estuda o problema do conhecimento e que procura responder às seguintes perguntas:

O que é o conhecimento?

Quais são os métodos do conhecimento?

O que é que o ser humano pode conhecer?

Qual é o limite do conhecimento humano?

Pode o ser humano ter a certeza que conhece algo?

Qual é a relação entre realidade, verdade e conhecimento?

Aplicado ao campo moral e ético, o fundamento epistemológico da Ética e da moral refere-se à resposta à pergunta: (i) é possível ter conhecimento do bem e do mal, do justo e do injusto, do legítimo e do ilegítimo, do aceitável e do proibido, etc.? Se a resposta for positiva, uma outra pergunta relevante se actualiza: (ii) como justificar este conhecimento? Diferentes filósofos, psicólogos e teólogos têm dado diferente respostas a estas perguntas, dependendo da sua cosmovisão (isto é, da sua fé religiosa, do seu ateísmo, agnosticismo, cepticismo, etc.,). Por exemplo, para os filósofos Platão, Aristóteles, São Tomás de Aquino e Kant, a razão humana tem a capacidade de discernir entre o bem e o mal e de conhecer as normas e os valores morais básicos, imutáveis e universais e são inerentes à realidade e à razão humana. Há, no entanto, certas diferenças entre estes filósofos, mas não é necessário aprofundá-las aqui. Para os cristãos a diferença entre o bem e o mal é dado na Bíblia sagrada que contém a revelação das normas morais fundamentais. Para os filósofos posmodernos, valores e normas são partes constituintes de uma cultura, mas podem ser modificados pelos indivíduos dentro de cada cultura. São

116 A escola jusnaturalista diz que eles são inerentes à natureza humana. Veja:http://br.answers. yahoo.com/question/index?qid=20080518120643AAt0gTr). Também a moral cristã afirma que as normas morais básicas estão escritas na consciência humana. Veja a Epístula aos Romanos 2, 14f; Hof, H. Lex in cordibus scripta et conscientia. (eansaio sobre a Ética, não publicado).….

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relativos e particulares e não objectivos, imutáveis e universais (cf. o acto-deontologismo e o acto-utilitarismo, no próximo capítulo). Deve-se distinguir as normas morais das normas jurídicas, estéticas e metodológicas ou científicas. As normas metodológicas e científicas têm a pretensão de serem universais, no sentido de serem, em princípio, válidas no mundo inteiro. As normas jurídicas, que muitas vezes pressupõem normas morais, variam de nação para nação e dentro de uma mesma nação podem variar em diferentes períodos da história. Por conseguinte, normas jurídicas são gerais (aplicam-se a muitos indivíduos nas mesmas circunstancias), mas não são universais e são nacionais e convencionais.117 Dum modo geral, normas éticas, pelo contrário, são universais e não resultam de convenções, como veremos, mais adiante, ao tratarmos das várias teorias da Ética normativa. Contudo, todas as espécies de valores e normas estão intimamente relacionados com a cultura, pelo menos histórica e sociologicamente falando.

117 Há, pelo menos, duas teorias sobre a ontologia e a universalidade das normas jurídicas e a sua relação lógica com as normas éticas ou morais: Teoria do direito natural contra teoria do direito positivo. Veja Moncada L., C. de (1965), 1965, p. 20-22,111f e 298; Barbosa da Silva, A. (2009). p. 13-52, p. 41-44.

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14. Relação entre os conceitos de moral, Ética e cultura

A palavra "cultura" é muito ambígua. Há mais de 200 definições de cultura. De uma maneira geral, e tendo em conta o propósito principal deste capítulo, podemos definir cultura como os efeitos ou as consequências positivas da luta do Homem com a Natureza para sobreviver. Esta luta procura amenizar as árduas condições existenciais que o ser humano tem de enfrentar na história da humanidade. Por exemplo, a descoberta do fogo

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foi um grande passo na adaptação do Homem ao seu ambiente físico, com efeito positivo para a sua sobrevivência. Na sua luta contínua para sobreviver, o ser humano tem feito muitas outras descobertas, e continua a fazer mais descobertas úteis ao seu progresso. Essas descobertas são feitas com o intuito de melhorar a condição existencial da vida humana. Exemplos de descobertas e invenções úteis são, além do fogo: a agricultura, o modo de preparar os alimentos e de construir abrigo contra intempéries, as evoluções tecnológicas e científicas, a formulação de leis – normas jurídicas – e normas morais, que constituem elementos culturais que têm várias funções importantes e relevantes para a sobrevivência humana, como a segurança e a vivência e convivência pacífica. Por outras palavras, todas as funções, que os vários elementos culturais têm, servem para satisfazer várias necessidades, especialmente as fundamentais, da vida humana. Exemplos de necessidades fundamentais são, a necessidade de comida, bebida, descanso, vida em comunidade e segurança, “de encontrar sentido para a sua própria existência”, etc.118 Infelizmente, nem sempre o ser humano consegue usar as suas descobertas e invenções para melhorar as condições existenciais da humanidade. Muitas descobertas têm sido usadas para fins maus. A da energia nuclear e a invenção de armas nucleares são usadas para fins perniciosos. Basta lembrarmos a destruição das cidades Hiroxima e Nagasaki, bombardeadas pelos americanos com a bomba atómica em 6 e 9 de Agosto 1945. A cultura humana é constituída por vários elementos como vários tipos de conhecimento, leis, costumes, crenças religiosas, ritos, música, dança. Podemos classificar os elementos ou componentes culturais em quatro categorias: conceito do Homem, conceito da Realidade, conceito da Sociedade e conceito da Moral e Ética. Todos os elementos ou componentes da cultura estão interligados como ilustrado na figura abaixo.

118 Sampaio, F. (2009), p.123f.

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Figura 3. Ilustra a relação entre os elementos principais da cultura. A area 1 representa a cosmovisão implícita numa cultura, 2 representa o conceito da realidade, 4 representa o conceito da sociedade, 8 representa o conceito do ser humano, 6 que é a intercessão dos três conceitos representa o conceito da Ética e Moral, 3 representa a relação entre o conceito da realidade e da sociedade, 5 representa a relação entre o conceito da realidade e o conceito do ser humano e 7 representa a relação entre o conceito do ser humano e o da sociedade.

A justificação última de um certo conceito de Ética normativa é o conceito da realidade implícita na cultura ou religião, da qual a referida Ética normativa é logicamente dependente. Por exemplo, para os cristãos e judeus crentes, a realidade tem duas dimensões: uma material e outra espiritual (Deus). Assim, segundo o conceito bíblico do ser humano, este é também constituído por esta duas dimensões diferentes mas intimamente interligadas: corpo (matéria) e alma (espírito).119 Tal conceito de realidade funciona como uma cosmovisão (alemão: Weltanschauung; inglês. Worldview ou View of life) que serve, por exemplo, de conceito estrutural ou quadro de referência na interpretação do que acontece na natureza, na história, na sociedade e na vida de um indivíduo pertencente a uma determinada cultura. A cosmovisão é também a justificação última da compreensão do valor e sentido da vida e do sofrimento humano.120 O conceito de realidade ou a cosmovisão reinante numa cultura e num certo período de tempo pode ser teísta, agnóstico ou ateísta. No que se segue vamos ilustrar a relação entre cultura e normas éticas ou morais.

Relativismo cultural, relativismo ético e a universalidade das normas éticas

Um problema que tem preocupado todos os grandes filósofos e estudiosos da Ética, através dos tempos, é a questão sobre a particularidade, ou universalidade das normas éticas ou morais. Sob este ponto de vista, podemos falar de duas correntes de pensamento sobre este problema da Ética: Uma corrente particularista e relativista e uma universalista. A corrente relativista (o relativismo ético) afirma que as normas e os valores morais são relativos à determinada cultura. Há, porém, duas formas de relativismo ético: uma forma descritiva e uma normativa. Ambas são opostas à corrente universalista da Ética normativa. O relativismo descritivo ético (ou a Ética relativista descritiva), descreve como os indivíduos, grupos e povos do mundo, de facto, se comportam moralmente nos seus

119 Um conceito ateísta-materialista da realidade tem como consequência lógica um conceito materialista e ateísta do ser humano. Segundo este conceito, o psíquico e o espírito humanos e/ou a alma humana são explicados, exclusivamente, em termos biológicos e fisiológicos. A doença é definida como uma disfunção ou lesão no corpo, enquanto a saúde é definida como ausência de doenças. Para um materialista como S. Freud, a religião é uma forma de neurose. Para os materialistas e ateístas Marx, Estaline e Lenine, a religião é uma falsa ideologia, baseada na alienação ou falsa perceção da realidade. 120 Por exemplo, em certas culturas certas doenças são consideradas como sendo o resultado de uma sanção

divina ou de certos espíritos – como os espíritos dos anciãos (cf. África i Japão).

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respectivos contextos histórico-culturais. 121 A Ética relativista descritiva, cujo objectivo é também descrever o sistema de normas e valores existentes em várias culturas, afirma que nas diferentes culturas as pessoas, de facto, têm normas e valores diferentes. O relativismo ético normativo, pelo contrário, afirma que cada povo ou nação tem o dever de seguir a sua própria Ética. Esta é uma tese normativa, isto é, pertencente à Ética normativa que prescreve como devemos conduzir – e não como, de facto, conduzimos – a nossa vida, isto é, obedecendo certas normas morais. Como já apontámos, a Ética Normativa é um tipo de reflexão filosófica sobre as nossas obrigações, os nossos deveres e ideais morais. Tal reflexão tem como fim último melhorar a moral existente numa certa cultura ou numa certa época da história da humanidade. É a Ética Normativa, e não a descritiva, que faz afirmações sobre o Bem e o Mal em termos gerais e universais como: “é proibido, por ser injusto, matar uma pessoa inocente, seja quem for e em que cultura for”. Esta é uma afirmação universal pertencente à ética normativa. Segundo Emanuel Kant, seguir a ética normativa pressupõe o desejo ou a vontade de estar disposto a universalizar as regras ou normas que aceitamos como padrão que norteiam as nossas condutas ou acções e os nosso comportamentos. Universalizar regras ou normas é o mesmo que desejar que as normas que aceitamos como guia da nossa conduta sejam aplicadas a todas as pessoas que possam encontrar-se nas mesmas situações em que nós nos encontramos. Uma objecção forte contra o relativismo normativo ético é que se este tipo de relativismo ético for verdadeiro, os povos pertencentes a culturas diferentes não devem interferir nas boas ou más acções uns dos outros. Por exemplo, segundo o relativismo ético normativo, quando o estado chinês esmaga estudantes que lutam pelos direitos humanos, em Pequim, usando tanques de guerra, outros povos e nações não devem intervir.122 Isto é, os não chineses não têm o direito nem o dever ou a obrigação moral de intervir, condenando um tal acto, visto que cada cultura tem as suas próprias normas morais. Mas este raciocínio parece contradizer, claramente, o senso comum. Um outro aspecto do relativismo ético (o relativismo meta-ético), aplicado a este caso, afirma que só os chineses têm a capacidade cognitiva de saber se têm ou não o direito de matar estudantes chineses numa situação determinada. Por outras palavras, só os chineses podem (têm a capacidade cognitiva e o direito de) avaliar se as suas normas são aceitáveis ou não dentro da cultura chinesa. Mutatis mutandis, só os representantes de uma certa cultura conhecem e podem avaliar as normas morais aplicáveis à sua cultura. Um outro argumento contra o relativismo ético normativo é o seguinte: uma vez que a natureza humana é a mesma em todo o mundo, uma vez que todos os seres humanos têm certas necessidades básicas comuns, há certas normas éticas universais que permitem povos de culturas diferentes avaliar, aceitar ou condenar certos tipos de acção, onde quer que ocorram.123 Exemplos de tipos de acção que, em princípio, são universalmente condenáveis, são: "matar", "roubar", "cometer adultério", "mentir" e "prejudicar os outros no que diz respeito à sua integridade e direitos fundamentais e inalienáveis". Em resumo, podemos dizer que normas éticas universais (do tipo não matar e não roubar) são a base da solidariedade internacional e transcultural. A diplomacia, as relações comerciais internacionais, as leis internacionais, a aplicação global dos direitos humanos, a comunicação intercultural, os congressos científicos internacionais, a cooperação internacional, etc., pressupõem a existência de normas morais e jurídicas universais, isto é, normas aplicáveis a toda gente e, em princípio, aceites por toda a gente, no mundo inteiro. São normas que promovem e defendem os interesses e direitos

121 Disciplinas ou ramos da ciência que descrevem e explica como, de facto, vivemos como humanos são, por exemplo: a psicologia, a sociologia, a antropologia a história das religiões e a fenomenologia. 122 Referimos aqui o protesto na Praça da Paz Celestial em Pequim, em 1989, que resultou no massacre de Tian'anmen. 123 Cf. Kekes, J. 1985, p. 234f.

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inalienáveis de todos os seres humanos. Portanto, o relativismo normativo ético parece ser uma teoria normativa falsa. O status de uma teoria normativa universal da Ética difere essencialmente do status do relativismo ético normativo. Vamos ver esta diferença no que se segue.

Ética global e existência de normas universais É bom sublinhar aqui que os valores constituem a base ou a justificação das normas. As normas, por sua vez, servem para realizar valores. À luz desta afirmação existem três pertinentes formulações:

1). São as normas morais particulares, gerais ou universais? Por outras palavras, diferem os valores e as normas morais de cultura para cultura, ou são aplicáveis a todos os seres humanos independentemente das suas diversas culturas? 2). Se as normas morais são particulares, como se consegue evitar o relativismo ético normativo, por exemplo, em questões globais, como: "o respeito pelo valor intrínseco e pela integridade do ser humano", "o direito à liberdade de expressão", "o problema moral actualizado pelo aborto provocado, pela eutanásia", “a mudança climática global”, “pelo efeito estufa”, pelo “problema do terrorismo internacional”, “narcotráfico”, “combate a SIDA”, “problema da justiça social num mundo onde os ricos são cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres?”, etc. 3). Se as normas morais são universais, em que sentidos o são? E como são justificadas epistemologicamente?

Respostas às perguntas 2) e 3) pressupõem respostas à pergunta 1). Quanto à pergunta, 1), podemos distinguir quatro sentidos ou definições da expressão “normas éticas universais”:

1).a. Universais: aplicáveis em todos os contextos culturais.

1).b. Universais: aceitáveis, em princípio, por todos os seres humanos, que tenham a capacidade de discernir o seu conteúdo cognitivo e normativo.124 1).c. Universais: aceites, de facto, por todos os serem humanos. 1).d. Universais: presentes, isto é, ocorrem, em todos os contextos histórico-culturais.

A efectividade das normas morais ou éticas na resolução de conflitos de interesses locais, regionais, nacionais ou internacionais acresce, se estas normas são universais nos sentidos: 1).a e 1.b). Como conflitos de interesses podem ocorrer entre indivíduos, grupos, povos e nações, e partindo do princípio que as normas morais ou éticas servem para resolver conflitos de interesses, é preciso saber se as normas morais são universais ou particulares, isto é, se variam de cultura para cultura e na mesma cultura se sofrem modificações ao longo do tempo. Se são particulares, só servem para resolver conflitos de interesses num lugar particular, isto é, numa determinada comunidade onde todos os indivíduos (ou a maioria deles) aceitam as mesmas normas. Se são gerais, neste caso são aplicáveis a certos tipos de acções numa determinada região ou nação, sem tomar em conta situações concretas. Se as normas morais são universais, são então aplicáveis a tipos de acções que ocorrem, isto é, que podem ser executadas em todo o mundo. (veja a definição 1).d acima). Se as normas morais são particulares, então podemos falar do relativismo ético

124 A qualificação, em princípio, deve ser entendida da seguinte maneira. Por exemplo, a norma “não matarás” é aceite, em princípio, por todas as pessoas que compreendem o seu sentido e estão bem informadas acerca das consequências do homicídio.

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normativo. No que se segue vamos argumentar a favor de uma ética normativa universal, portanto a favor da existência the normas universais, no sentido especificado em 1.a, acima.

Diversas interpretações da expressão “normas universais” Como já vimos há pelo menos quatro sentidos em que uma norma ética pode ser universal: 1).a, 1).b, 1).c e 1.d acima. Para que uma norma universal possa ser aplicada numa situação concreta é preciso interpretá-la ou contextualiza-la. Primeira interpretação da expressão “normas éticas universais”: normas universais são normas aplicáveis a todos os seres humanos em todos os contextos histórico-culturais, nas mesmas circunstâncias ou circunstâncias análogas (cf. definição 2).a acima). A maioria dos filósofos e estudiosos da Ética normativa, de todos os tempos, afirmam que as normas e os valores morais são universais, isto é, que por exemplo, normas como "devemos falar a verdade", “devemos cumprir as nossas promessas", "não devemos matar”, isto é, “não devemos cometer homicídio", etc., são universais. Com isto querem esses filósofos afirmar que são normas aplicáveis a todos os seres humanos, em todas as culturas, em todos os tempos e lugares. Contudo, o facto de certas normas serem universais, no sentido de serem aplicáveis a todos os seres humanos, sem excepção, não permite uma conclusão lógica de que também são universais no sentido de serem, de facto, aceites por todos ou a maioria dos seres humanos, vivendo em culturas diferentes (veja definição 1).c acima) . Por exemplo, os direitos humanos especificados nos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, feita pelas Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1948, parecem ser aplicáveis a todos os seres humanos em todas as culturas. Mas não são, de facto, aceites por todos. Por exemplo, os países árabes e os países ex-comunistas nunca aceitaram a Declaração dos Direitos Humanos, no seu todo, vendo o conteúdo moral da referida Declaração como um produto da civilização cristã. Portanto, convém esclarecer em que sentido se afirma que uma norma moral é universal, se no sentido de ser aplicável a todos os seres humanos 2).b ou nos outros três sentidos já definidos, 1).a; 1).c e 1).d, acima. Segunda Interpretação da expressão “normas éticas universais”: normas universais são normas que são aceites, em princípio, por todos os seres humanos. (Veja a definição e 1.b acima.) Normas que, em princípio, são aceites universalmente são, por exemplos, os direitos humanos (e a regra de ouro.) Os direitos humanos são, de facto, aceites pela maioria das nações que são membros das Nações Unidas. Mas presumivelmente são, em princípio, aceitáveis por todas as nações, quando compreenderem o seu valor em relação aos melhores interesses, às necessidades fundamentais e as legítimas aspirações de cada indivíduo humano. Porém, o facto de a maioria aceitar uma norma – moral ou outra qualquer – (como é o caso dos direitos humanos, via as Nações Unidas) não é nem uma condição necessária, nem suficiente para a sua validade ou universal normatividade. Não é necessária, por que os grandes revolucionários e profetas do passado proclamaram normas universais mas que poucas pessoas aceitaram.125 Não é suficiente, por que, como aconteceu na Segunda Guerra Mundial, a maioria do povo alemão aceitou, defendeu e promoveu as normas (etnocêntricas, relativistas e opressoras) que Hitler estabeleceu contra os povos das outras nações, principalmente contra judeus e ciganos. Mas logo depois da Guerra, essas normas fascistas foram condenadas pelas Nações Unidas e pelo tribunal de Nuremberga (em 1945) como moralmente injustas e racistas. E no processo de Nuremberga foram

125 Cf. Hick, J. (1963), p.34f.

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experimentados e atestados os princípios éticos que, mais tarde em 10 de Dezembro de 1948, vieram servir de base aos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, pelas Nações Unidas. Terceira interpretação da expressão: normas éticas universais: aceites, de facto, por todos os serem humanos. Segundo muitos antropólogos e estudiosos da ética, religião e cultura, não há normas que, de facto, são universalmente aceites. Parece impossível encontrar e demonstrar que existem normas universais no sentido de normas que são, de facto, aceites pela maioria das, ou todas, as pessoas em todas as culturas de todos os tempos. É practicamente impossível demonstrar cientificamente a verdade de proposições universais como “todos os x são y”, por exemplo, “todos os corvos são pretos”. Para demonstrar empiricamente a verdade desta proposição é preciso investigar a cor de todos os corvos que existiram no passado, que existem hoje e todos que hão-de existir no futuro, o que é impossível. Mas, segundo Karl Popper, é muito mais fácil demonstrar a verdade da negação de uma proposição universal como “todos os corvos não são pretos” do que a sua forma positiva “todos os corvos são pretos”.126 Para demonstrar que esta proposição é falsa, basta descobrir um corvo que não é preto. Aplicado à nossa quarta interpretação da expressão “normas morais universais”, basta encontrar uma cultura onde não existe nenhuma norma universal, ou exemplos de normas universais que até agora são conhecidos, por exemplo, “não matarás”, para verificar a proposição “todos os corvos não são pretos”. Segundo muitos antropólogos as normas variam de cultura para cultura. O teólogo F. Böckle afirma que o único princípio ético que é universal é o primeiro princípio da lei natural formulado por São Tomás de Aquino como: deve-se “fazer o bem e evitar o mal”.127 Mas este princípio, por ser abstracto e muito geral, não consegue guiar o agente moral numa situação concreta numa cultura determinada. Pois, os termos “bem” e “mal” têm conteúdos diferentes nas diversas culturas. Em certas culturas, é um “bom” costume abandonar os pais, quando velhos, numa floresta, onde morrem num curto espaço de tempo – por ser bom para eles –, enquanto nas culturas impregnadas de normas cristãs, o direito moral dos velhos viverem perto dos filhos, que cuidam deles, é defendido como algo bom, recomendável e louvável.128 Quarta Interpretação da expressão “normas éticas universais”: normas universais são normas que ocorrem em todos os contextos histórico-culturais, embora nem todas as pessoas estejam conscientes disto (cf. definição 1).d ). Parece impossível encontrar normas universais no sentido de normas que existem ou ocorrem em todas as culturas de todos os tempos. Mesmas as normas que são apontados como universais, segundo esta quarta interpretação, como "falar a verdade", "ser honesto" e "mostrar solidariedade a todos os seres humanos", se existem em várias

126 Popper, que era filósofo das ciências, usa o exemplo: “todos os cisnes são brancos”. 127 Este é o princípio fundamental que regula “toda a vida moral; e pode ser formulado de maneira simples e de fácil compreensão: é necessário fazer o bem e evitar o mal. São Tomás defende este princípio da seguinte maneira: Assim como o ente é o primeiro que decai na apreensão de modo absoluto, assim o bem é o primeiro que cai na apreensão da razão prática, que se ordena à obra: todo agente, com efeito, age por causa de um fim, que tem a razão de bem. E assim o primeiro princípio na razão prática é o que se funda sobre a razão de bem que é: “Bem é aquilo que todas as coisas desejam”. Este é, pois, o primeiro princípio da lei, que o bem deve ser feito e procurado, e o mal, evitado. E sobre isso se fundam todos os outros preceitos da lei da natureza, como, por exemplo, todas aquelas coisas que devem ser feitas ou evitadas pertencem aos preceitos da lei de natureza, que a razão prática naturalmente aprende serem bens humanos. […] São basicamente quatro os princípios que informam a lei natural, a saber: conservação da existência; a reprodução; o conhecimento da verdade e necessidade da vida em sociedade. A partir desses princípios, um conjunto de normas deles deflui, que deve ser codificado pelas leis positivas, sem contrariar a lei natural. (AQUINO, 2005, Vol. IV: 562) ”. Leopoldo Werner, EP: http://presbiteros.arautos.org/tag/faz-o-bem-evita-o-mal/; cf. Holte, R, et al. Etiska problem. Älvsjö: Verbum Håkan Ohlssons, p.142; Böckle, F. (1966). Das naturrecht im Disput. Alemanha. 128 Brandt, R., (1959).

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culturas, são universais só no sentido formal e não material (cf. o primeiro princípio da lei natural é: deve-se “fazer o bem e evitar o mal”). Vamos ilustrar isto. Por exemplo, o doutor da lei descrito na parábola do bom samaritano, Lucas 10: 25-37) aceitava formalmente "que devia amar o seu próximo como a si mesmo" (uma norma formal e abstracta). Mas a sua interpretação concreta deste princípio ético é consideravelmente diferente da interpretação de Jesus. O doutor da lei interpretou a expressão "amar ao próximo" como “amar aos que pertenciam ao seu povo”, o povo judeu, principalmente os doutores da lei como ele (cf. Lucas 14:12-14). Jesus, pelo contrário, interpretou a expressão "amar ao próximo" como "amar, em princípio, a todos os seres humanos incluindo os inimigos", principalmente os em necessidade. Na parábola do bom samaritano a norma: "devemos amar ao nosso próximo como a nós mesmos" foi interpretada particularmente pelo doutor da lei, enquanto Jesus o interpretou universalmente. A causa destas interpretações, diametralmente diferentes, é o facto de cada um deles ter definido o conceito de "meu próximo" segundo o seu conceito do Homem, da sociedade e da realidade (cosmovisão). Como sabemos, judeus e samaritanos eram inimigos uns dos outros no tempo de Jesus. O doutor da lei – como judeu – seguiu os costumes judaicos, enquanto Jesus, como revolucionário e cosmopolita seguiu a Ética universal, que é aplicável tanto aos judeus como aos samaritanos e ao resto da humanidade. Convém sublinhar que a referida parábola descreve o amor ou a caridade de um samaritano para com um judeu em necessidade (a sofrer por causa de um assalto feito por um ladrão entre Jerusalém e Jerico). Muitos antropólogos afirmam que as normas morais são relativos e não universais. Para eles uma norma moral é universal, só se ela ocorrer em todos as culturas, e se for, de facto, aceite pela maioria ou todas as pessoas que pertencem a cada cultura. Mas, infelizmente, isto não acontece com as normas. Mesmo que as normas fossem universais neste sentido, de serem, de facto, aceites pela maioria das pessoas no mundo, como já observamos, o argumento baseado no consenso da maioria não é nem necessária e nem suficiente para provar a verdade de uma tese ou afirmação.

A regra de ouro como exemplo de norma universal Alguns filósofos e estudiosos da Ética normativa afirmam existir, pelo menos, uma norma ou um princípio universal – a regra de ouro –, segundo a quarta interpretação da expressão “normas universais”, apresentada acima. Isto significa que a regra de ouro que prescreve: "Faz aos outros aquilo que queres que façam a ti", ocorre em todas as culturas e religiões históricas. Ou: “tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós, porque esta é a lei e os profetas” (Mt. 7,12). Na forma negativa: “Ninguém deve fazer a outrem o que, em iguais circunstâncias, não desejaria que lhe fizessem”. A expressão “em iguais circunstâncias” é muito importante aqui porque pessoas, em circunstâncias diferentes, podem ter necessidades, interesses, deveres, sentimentos, motivos, intenções e atitudes diferentes, que determinam o que querem, desejam e preferem. Não obstante, certos filósofos e estudiosos da Ética cristã não aceitam a afirmação que a regra de ouro ocorre em todas as culturas e nas grandes religiões, pelas seguintes razões: Em primeiro lugar, investigações empíricas indicam que a regra de ouro não existe em todas as culturas ou religiões. Ela existe apenas em certas religiões como o judaísmo, o

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cristianismo, o islão e o budismo. Além disso, mesmo nas religiões onde a regra de ouro existe, ela é interpretada diferentemente, como vamos exemplificar no próximo parágrafo. Na sua forma positiva, a regra de ouro existe no budismo e cristianismo, enquanto na sua forma negativa existe no judaísmo e outras religiões.129 Em Segundo lugar, mesmo se a regra de ouro existisse em todas a culturas e religiões, ela teria pouco valor prático, uma vez que é um princípio abstracto, o que requer que o mesmo seja interpretado, em relação a um determinado contexto cultural, para poder obter um conteúdo concreto, capaz de guiar acções e comportamentos humanos em situações concretas. Só assim um princípio ou uma regra moral pode ser aplicável, efectivamente, a situações concretas da vida. (cf. a interpretação da regra de ouro na já referida parábola: o bom samaritano e o primeiro princípio da lei natural: “é necessário fazer o bem e evitar o mal”). Portanto, as várias interpretações de uma norma geral, como a regra de ouro, feitas em situações concretas, mas em culturas diferentes, podem ser consideravelmente diferentes umas das outras. Por exemplo, a expressão “os outros” na regra de ouro ("Faz aos outros aquilo que queres que façam a ti") na cultura judaica, há dois mil anos, significava “o meu próximo”. Este, por seu lado, significava os que pertencem ao “meu povo”, neste caso, ao povo israelita. Mas para Jesus e os seus discípulos, embora estivessem a viver na mesma época e na mesma cultura, “os outros” significavam “o meu próximo” referindo, em princípio a qualquer indivíduo humano, principalmente ao indivíduo que precisa de “mim”. (cf. Lucas 10: 25-37, a parábola do bom samaritano). Sendo assim, não temos a razão ou base suficiente para afirmar que a regra de ouro é um princípio universal existente e aceite em todas as culturas, independentemente de possíveis diferenças entre elas. Mas pode ser universal no sentido de ser aplicável a todos os seres humanos no mundo inteiro (cf. definição 1).a acima). Em terceiro lugar, no cristianismo a regra de ouro é universal no sentido de a mesma ser aplicável às acções humanas em todas as culturas. Mas, como norma ou princípio fundamental da moral cristã, a regra do ouro, adquire o seu conteúdo e a sua universalidade à luz da fé cristã, isto é, no facto dos cristãos acreditarem que Deus é Criador e Pai de todos os homens e que o Nosso Senhor Jesus Cristo é o Salvador do mundo (de todo os homens).130 Com esta base ou este fundamento, compreendemos a interpretação que Jesus deu à segunda parte do grande e duplo mandamento do amor: devemos amar a Deus sobre todas as coisas e ao nosso próximo como a nós mesmos (Lucas 10:27). Como já indicamos, para o Novo Testamento, ao contrário do Antigo Testamento, o nosso próximo é, em princípio, toda a gente ou cada indivíduo humano que cruza o nosso caminho, visto que segundo a Bíblia, todos os seres humanos foram criados à imagem e semelhança de Deus, o que quer dizer que todos são filhos ou criaturas de Deus, isto é, todos os seres humanos são irmãos, portanto, são, religiosa e moralmente, obrigados a amarem-se. Em quarto lugar, como já vimos, a regra de ouro pode ser interpretada de dois modos diferentes pelos teólogos e filósofos cristãos: Uma interpretação positiva e uma outra negativa. Na sua interpretação positiva, a regra de ouro prescreve que “tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós, porque esta é a lei e os profetas” (cf. Mt. 7:12.). A interpretação negativa diz que: “Aquilo que não queremos que os outros nos façam a nós, não devemos fazer-lho”. Notemos que é mais fácil cumprir a regra de ouro na sua interpretação negativa do que na sua interpretação positiva. Pois, para cumprir a regra de ouro na sua interpretação negativa não precisamos de fazer nada concreto. Por exemplo, não desejo ser morto por

129 Spooner, W. A. 6:310-312. Cf. Barbosa da Silva, A. 1998/1999:115-153, p. 128. 130 Cf. Marcel, G. (1963) p. 128-135.

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ninguém, por isso abstenho-me de matar qualquer pessoa, não desejo ser prejudicado por ninguém, por isso, abstenho-me de prejudicar qualquer pessoa, etc. A interpretação positiva, pelo contrário, requer de nós que façamos algo bom para o nosso próximo. Não mato, não furto, não contribuo activa e voluntariamente para a miséria de ninguém, mas, mesmo assim, sou moralmente obrigado a fazer algo positivo para aliviar o sofrimento dos outros, pois eu gostaria de receber o benefício dos outros, se eu estivesse a sofrer, por exemplo, se eu estivesse a ser perseguido, estivesse a viver na miséria, estivesse a ser enganado, estivesse doente, torturado, etc. Se a regra de ouro é aplicável a todos os seres humanos, o é apenas na sua interpretação negativa, afirmam alguns teólogos.131 Além disso, pode-se aplicar a interpretação negativa colectivamente, isto é, podemos aplicá-la a todos os seres humanos ao mesmo tempo. Por exemplo, posso abster-me de matar, perseguir, ou prejudicar todos os seres humanos ao mesmo tempo. Deste modo passivo, é garantida a universalidade da regra de ouro na sua forma negativa. A interpretação positiva da regra de ouro, pelo contrário, será eficaz só se for aplicada distributivamente, isto é, podemos obedecê-la ou aplicá-la eficientemente, se uma ou algumas (mas poucas) pessoas precisam de nossa ajuda, numa situação concreta. Por exemplo, posso carregar pelas costas um doente que precisa de minha assistência (uma acção positiva), mas não posso carregar pelas costas dois ou muitos doentes ao mesmo tempo. Mesmo que eu vendesse tudo que tenho para distribuir aos pobres, só conseguiria ajudar, positivamente falando, algumas poucas pessoas. Mas se me abstenho de, por exemplo, roubar – o que é uma acção negativa – contribuo para o bem-estar de todos os seres humanos, isto é, não prejudico a ninguém, o que significa que muitos (ou a humanidade inteira) podem beneficiar com isto. Estes exemplos permitem-nos dizer que, afirmar que a regra de ouro, formulada de uma forma ou de outra, existe em todas as culturas, ou nas grandes religiões, não é suficiente para fazer da presumível regra de ouro de cada cultura, uma norma universal, isto é, aplicável a todos os seres humanos. Portanto, dizer que uma norma ética é universal, atendendo apenas ao seu carácter formal e abstracto, não adianta nada com respeito à sua aplicação a acções concretas, uma vez que em situações concretas tais normas têm de ser contextualizadas e adaptadas para poderem ser úteis, isto é, normativas. Sintetizando, podemos dizer que, uma norma pode ser universal, formalmente falando, mas sem o ser, materialmente falando, ao mesmo tempo.

131 Rabbi Hilell formula a regra de ouro negativamente como: "What is hateful to yourself, do not do to your fellow man. That is the whole of the Torah and the rest is but commentary. Go and learn it" (Bloch 1984:200).

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15. Ética normativa – quatro teorias fundamentais Os grandes pensadores da história da humanidade, por exemplo, filósofos e como Sócrates, Platão, Aristóteles, Espinosa, Kant e Sartre, teólogos como São Paulo, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, e o próprio nosso senhor Jesus Cristo – o Salvador do mundo – fizeram uma reflexão filosófica sobre a moral do seu tempo e da sua cultura para responder aos seguintes tipos de perguntas gerais da Ética normativa:

Como deve o indivíduo humano viver a sua vida?

Qual é a melhor maneira de um indivíduo viver a sua vida e ao mesmo tempo respeitar a dignidade e os direitos fundamentais dos outros, local, regional, nacional e internacionalmente falando?

Respostas diferentes a estas duas perguntas são dadas por diferentes teorias da Ética Normativa. Com a expressão “Ética normativa ”pode-se entender: “a ciência das leis ideais que dirigem as acções humanas, e a arte de as aplicar correctamente às diversas

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situações da vida”.132 Uma teoria da Ética Normativa consiste num conjunto ou sistema de regras e princípios coerentemente relacionados uns com os outros formando um todo integrado. Neste capítulo analisamos a Ética normativa como um conjunto das teorias ou sistemas de normas de conduta que servem para guiar, avaliar e justificar as acções humanas, como expressões da vontade livre do indivíduo humano. Como há vários sistemas de normas de conduta, dependentes da existência de diferentes conceitos do Homem, da Sociedade e da Realidade, temos, por isso, vários tipos de éticas normativas, como por exemplo, a Ética cristã, a judaica, a muçulmana, a existencialista, a marxista, a humanista, a evolucionista, a budista, etc. O propósito principal deste capítulo é esboçar uma base de comparação entre vários tipos de Ética normativa, para mostrar o que as aproximam e o que as distanciam. Para melhor compreendermos uma tal comparação, temos de colocar os vários sistemas de Ética normativa num contexto mais amplo, o que significa considerá-los não só em relação comparada, mas também em relação a sistemas de normas ou princípios morais com pretensão de validade universal. É por isso que damos uma visão geral sobre a filosofia moral para orientar o leitor estudioso e inquiridor, e também para lhe abrir o apetite e despertar-lhe a curiosidade para um inquérito pessoal e mais profundo acerca dos problemas morais em geral. Pois, é bom saber que há vários sistemas de Ética normativa e que a Ética ou o problema moral não é algo novo. Isto significa que todos os povos, através dos tempos, têm pensado em temas morais. Por questão de simplicidade, definimos a Ética normativa, no que se segue, como um conjunto de normas, regras ou princípios, segundo os quais o indivíduo humano ou grupo de indivíduos humanos deve agir ou comportar-se. O termo 'deve', nesta definição, significa o mesmo que “tem a obrigação moral de”, o que em inglês deve ser traduzido por ought to (e não por should).133 Uma teoria da Ética normativa procura responder às seguintes perguntas básicas:

O que faz uma acção ser justa ou injusta, boa ou má, legítima ou ilegítima?

O que faz que algo seja moralmente bom ou mau?

O que faz que uma accão seja moralmente aceitável ou inaceitável, permitida ou proibida, etc.?134

Existem vários tipos de teorias normativas. Aqui apresentamos as quatro grandes divisões ou tipos de teorias da Ética normativa mas actuais que são: A) a Ética de consequência ou a teoria consequencialista, B) a teoria teleológica clássica, C) a teoria deontológica ou Ética do dever ou deontológica e D) a Ética de virtude ou de carácter moral. Tanto a teoria A) como C) admite subdivisões como veremos no que se segue, onde analisamos estas quatro teorias. Mas antes de falarmos delas, vamos procurar definir estes termos, um pouco estranhos aos ouvidos do leitor não treinado em teorias éticas ou morais.

Utilitarismo como teoria da Ética normativa de consequência

132 Lahr, C. (1968),p. 459. 133 Portanto, no contexto ético ou moral, a palavra “deve”, ou melhor, a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo “dever” desempenha um papel importantíssimo, um papel normativo. 134 As respostas a estas perguntas podem também ser segundo regras ou normas de conduta ou mandamentos, como por exemplo, no caso dos Dez mandamentos da Lei de Deus ou o Decálogo (Êxodos 20, 1-26). Mas regras ou normas de conduta, antes de serem aplicadas a situações concretas ou tipos de situação, devem ser interpretadas por uma ou mais teorias da Ética normativa, aos quais recorremos em situações concretas, ao decidirmos o que devemos ou não fazer.

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A teoria normativa de consequência pode ser dividida em duas teorias normativas da Ética; o utilitarismo e o egoísmo ético. Tanto o utilitarista como o egoísta se colocam a seguinte questão: Que bom fim ou propósito (Gr. telos), efeito ou boa consequência tem (ou melhor poderá ter) esta acção que quero praticar? Mas o utilitarista, ao contrário do egoísta, recomenda ao agente moral a praticar acções cujas máximas consequências possam beneficiar não só a si próprio, mas também a outros indivíduos, ou melhor, as boas consequências de uma accão devem beneficiar a maioria das pessoas, e se possível a humanidade inteira. Quanto maior número de indivíduos forem beneficiados pela acção practicada, tanto melhor é a própria acção. O utilitarista procura agir segundo a virtude da benevolência e o princípio da beneficência, os quais constituem o fundamento e a justificação última do princípio da utilidade, que é uma norma geral e fundamental, segundo a qual uma acção é justa, boa ou digna de ser praticada, desde que possa ter como resultado uma boa consequência para a maioria dos indivíduos de uma sociedade, nação ou a humanidade em geral como afirmou John Stuart Mill. Por exemplo, o governo inglês ao declarar guerra a Hitler, em 3 de Setembro 1939, parece ter agido de acordo com os princípios da Ética normativa utilitarista (como uma forma de Ética de consequência). Se agiu utilitariamente, governo inglês então pensou que lutar contra Hitler – um racista, fascista e nazista – seria evitar que todo o mundo civilizado fosse dominado pela ideologia fascista e nazista. Por conseguinte, a acção do governo inglês (a declaração de guerra a Hitler) teria – como consequência (ou como almejava) algo bom, isto é, um bom fim que consistia em salvar a soberania das nações e libertar a humanidade da ideologia fascista. Foi um bom fim ou propósito não só para a Inglaterra, mas também para a maior parte das nações ou povos do mundo, como na verdade se verificou.

Regra-utilitarismo versus acto-utilitarismo Convém distinguir aqui entre duas formas de utilitarismo: a) regra- ou normo-utilitarismo e b) acto-utilitarismo.135

a). A regra-utilitarista ou normo-utilitarismo A regra utilitarismo é uma teoria normativa de consequência que afirma; que ao deliberarmos antes de escolhermos uma acção a ser praticada, devemos perguntar que tipo de acção que temos pela frente, isto é, que devemos practicar. Todas as acções do mesmo tipo seguem a mesma regra. Por exemplo, em princípio, todos os doentes de sexo masculino com a idade de 50 anos, sofrendo de tensão arterial – mutatis mutandis – devem ser tratados com o mesmo tipo de medicina. Esta é uma regra justa e não discriminatória. Mas suponhamos que um certo médico ou hospital estipula uma outra regra de tratamento para doentes deste tipo, mas tomando em consideração, por exemplo, a diferença de sexo e de posição socioeconómica? Ora essa regra seria

135 Se Frankena, W. K. (1981). A terminologia usada aqui é: acto-deontológico (do inglês act-deontology), normo-deontológico (do inglês rule deotology), acto-utilitarismo (act-utilitarianism) e normo-utilitarismo (rule-utilitarianism).

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interpretada como discriminatória, isto é, injusta, por não respeitar o princípio de equidade que é fundamental em todas as teorias da Ética normativa, excepto o egoísmo ético, como veremos mais à frente.136

b) Acto-utilitarismo – Ética situacionista de consequências Quem defende a teoria normativa chamada acto-utilitarismo, não pergunta que regra deve seguir para praticar um certo tipo de acção. Ele ou ela pergunta, se praticar uma determinada acção numa situação concreta pode resultar numa boa ou má consequência. O acto-utilitarista não compara uma acção com nenhuma outra, por que segundo o acto-utilitarista, cada pessoa é única, cada situação é única, portanto incomparável com qualquer outra. Consequentemente, em cada situação concreta, quem defende o acto utilitarismo deve pensar sempre em como agir ou comportar-se em conformidade com uma possível boa consequência da acção que deseja praticar. O critério para avaliar a moralidade de uma acção é o uso do princípio de utilidade, de acordo com a intuição do agente moral. Aqui define-se a intuição como o sexto sentido, ou seja a capacidade de sentir (saber) automaticamente o que devemos fazer, sem raciocínio prévio. Assim cada acção é única por causa da unicidade de cada situação e de cada pessoa que está em transformação contínua (Sartre).

Egoísmo ético como Ética normativa de consequência Ao contrário do utilitarismo, o princípio fundamental do egoísmo ético afirma o seguinte: cada indivíduo deve sempre agir de tal maneira que a consequência das suas acções (ou omissões) seja, tanto a curto como a longo prazo, boa para si próprio e não para outros, isto é, a boas consequências de uma acção deve beneficiar só o agente – a pessoa – que practica a acção. O egoísmo ético diz ainda mais, que em caso de duas ou mais acções diferentes, se deve escolher aquela que é capaz de resultar mais proveitosa para o agente que pratica a acção.137 Portanto, o egoísmo ético e o utilitarismo são teorias éticas normativas de consequência. São normativas porque estabelecem as normas que devem ser seguidas e obedecidas na prática de condutas humanas. São consequentes porque tomam sempre em consideração o bom ou mau desfecho das acções, sendo que por boa consequência se entende, o fim ou propósito das acções praticadas pelo agente moral. Qualquer indivíduo que queira ser egoísta ou utilitarista tem de, em cada situação concreta, ou tipo de situação, pensar sempre em como pensar, agir ou comportar-se de modo a poder atingir uma possível boa consequência da acção que deseja praticar.

A teoria teleológica da Ética normativa Antes de analisarmos a teoria teleológica da ética normativa, convém sublinhar que não devemos confundir a palavra “teleológica” com a palavra “teológica”. São etimologicamente derivadas das palavras gregas telos e theos, respectivamente. A primeira significa finalidade, propósito, tendência ou direcção para uma meta, um fim,

136 Um profissional de saúde que é utilitarista deve perguntar qual das duas regras é que, quando tomada como guia da acção, terá como consequência o máximo benefício para todos os indivíduos envolvidos, isto é, os que têm o mesmo tipo de doença e necessita do mesmo tipo de medicina. 137 O utilitarismo é uma Ética altruísta de consequência contrária ao egoísmo ético.

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propósito ou ideal. A segunda – teologia de theos = Deus + logia significa estudo, descrição – designa estudo ou descrição de Deus. Neste capítulo, estamos a falar de teleologia (e não teologia). A teoria teleológica clássica da Ética normativa, segundo, por exemplo, Aristóteles, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, afirma que o agente moral deve agir com o propósito de realizar ou atingir o fim que é bom para o ser humano. Para Aristóteles o fim a ser atingido é a felicidade (grego eudaimonia), enquanto para Santo Agostinho e Santo Thomas o fim último da vida humana é beatitude ou bem-aventurança, como resultado da comunhão com Deus. Aristóteles ensina que todos os seres humanos, por sua natureza comum, procuram a felicidade.138 Portanto, segundo a teleologia clássica, uma acção é boa se for capaz de conduzir à felicidade humana e não à felicidade como algo subjectivamente concebido por cada indivíduo, como é o caso no mundo contemporâneo ou pós-moderno. Hoje em dia, a teoria teleológica usa-se, por vezes, como sinónimo de teoria de consequência da Ética normativa. Mas este uso não é recomendável pelas razões seguintes.139 Devemos distinguir a teleologia clássica de Aristóteles e São Tomás de Aquino da teoria Ética de consequência. Têm pontos comuns, uma vez que segundo ambas o agente moral deve agir com o propósito de realizar ou atingir um fim bom. A Ética normativa de consequência, recomenda acções que tenham bons resultados. Há duas variantes desta Ética: o utilitarismo e o egoísmo ético. Tanto a Ética teleológica como a de consequência (na suas duas formas) contam com um meio para atingir o fim ou ideal almejado. Mas diferem-se da seguinte maneira; para a teleologia clássica, tanto o fim a ser realizado ou atingido como o meio a ser usado na realização do fim devem ser bons. Assim para Aristóteles as acções que servem de meios para o bom fim a felicidade humana devem ser practicadas de acordo com as virtudes morais. Uma virtude moral […] “é uma qualidade boa, que aperfeiçoa de modo habitual as potências, inclinando o ser humano a fazer o bem”.140 Exemplos de virtudes morais são: prudência, coragem, justiça, moderação ou temperança.141 As virtudes morais têm, segundo Aristóteles, um valor intrínseco, isto é, as virtudes morais são boas em si mesmas. Por isso podem motivar boas acções cujos meios e fins são bons em si. Pelo contrário, para a Ética de consequência (ou ‘teleologia’ contemporânea), os fins justificam os meios, o que significa que se o fim a ser atingido é considerado bom, o meio poder ser bom ou mau. A título de exemplo, podemos nomear o filósofo moral sueco Torbjörn Tännsjö142, que defende a teoria de consequência da Ética normativa chamada utilitarismo e advoga como lícito o transplante de órgãos de um individuo vivo para outros como licita.143 Porém, este procedimento é inaceitável segundo a teleologia clássica defendida por Aristóteles e São Tomás de Aquino. Pois tirar órgãos de uma pessoa viva e sã, para transplantes é violar a dignidade humana dela, portanto um acto condenável (eticamente falando). Proceder assim é usar um meio eticamente inadequado, por ser mau, para atingir um fim eticamente bom.144 Como veremos na secção sobre a teoria deontológica da Ética […] “é errado matar um inocente mesmo se tal impedir que morram

138 Veja Aristóteles (2007). 139 Cf. Asheim 1994, p. 103. A palavra “teleologia” é também usada em biologia referindo-se à finalidade evolutiva dos seres vivos (cf. o conceito de entelekeia segundo Aristóteles) Mas aqui abstemo-nos deste significado. 140 http://www.saojorgemartir.com.br/curso/catecismo40.php 141 Estas virtudes designam-se por virtudes naturais em contra distinção das virtudes sobrenaturais ou teológicas básicas: fé, esperança e caridade, segundo Santo Agostinho e Santo Tomas de Aquino. 142 Se http://people.su.se/~tanns/ (17 Julho 2011). 143 Para ser mais preciso, ele afirma que pode-se tirar órgãos de uma pessoa sã para fazer transplantação em dez indivíduos doentes, cada um dos quais precisa de um certo órgão. 144 Este exemplo mostra que o utilitarista não respeita os direitos inalienáveis da minoria, o que implica o direito que a maioria tem de sacrificar os interesses da minoria para atingir o seu fim que pode ser mau.

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cinco outros inocentes, uma vez que fazê-lo viola uma restrição moral contra o acto de matar; do mesmo modo, pode ainda incluir restrições contra o acto de mentir ou de quebrar uma promessa e outras”.145 Uma outra diferença substancial entre a teleologia clássica e o consequencialismo é que para a teleologia clássica o fim é dado pela natureza humana (Aristóteles) e as leis da moral natural inerente à esta natureza (São Tomás). Estas leis são conhecidas pela razão humana.146 Pelo contrário, para a teoria de consequência, tanto o fim como os meios são concebidos por indivíduos, grupos ou uma pessoa de autoridade, por exemplo, o parlamento, um rei, um presidente da república, um profissional de saúde, um chefe, etc. Assim para o consequencialismo os fins – bons ou maus – podem justificar os meios, como acontece nas ditaduras, quando os críticos do regime são castigados sem culpa formada e sem um julgamento adequado. Fechá-los num manicómio ou torturá-los é um meio mau para atingir “um bom” fim estipulado pelo ditador, por exemplo, a presumível segurança da nação. Portanto é bom sublinhar aqui que a teoria teleológica clássica não é consequencialista.147 Para a teleologia clássica (assim como para a ética cristã) certos tipos de accão são sempre proibidos por serem absolutamente más.

A teoria normativa deontológica ou a Ética do dever

A palavra “deontologia” é também uma palavra grega, composta pelas palavras gregas déon, deontos = dever' e ‘logia ' = tratado, descrição, estudo, etc. Portanto, deontologia significa tratado sobre o dever ou a obrigação moral. Mas o que é o dever? Segundo Mora (1991, p. 102).148 “O dever expressa aquilo que é forçoso; o que deve ser e não pode ser de outra maneira”. Em relação ao que é “forçoso” o dever “é a expressão do mandato, exercido sobre a consciência moral por certo números de valores” (Ibid.). O mandato por ter a sua origem ou autoridade na Natureza (segundo o estoicismo), na razão humana (Kant), no bem supremo (Deus) (ibid.), etc. Enquanto o egoísta e o utilitarista, antes de praticar uma acção em concreto pergunta-se; qual é a boa ou má consequência da acção para “mim” (egoísmo), e para a maioria das pessoas envolvidas (utilitarismo)? Por sua vez, o deontologista pergunta: qual é o meu dever nesta situação concreta ou na práctica deste tipo de situação? A Ética deontológica afirma que uma acção para ser considerada boa, justa ou digna de ser praticada, tem de ter outras características importantes, além de uma possível boa consequência. Parte, por isso, do pressuposto que não é necessária a existência desta última característica, isto é, a de resultar numa boa consequência. Quer dizer, segundo a Ética deontológica, o agente que vai praticar uma acção deve contar com a boa consequência da acção em questão, mas que esta boa consequência não basta e não é necessária. Posta ainda a questão de modo mais radical: a boa consequência não é nem uma condição necessária, nem suficiente para a prática de uma acção boa, mas é desejável. Por exemplo, quem seguisse a Ética do dever (deontologia) durante a Segunda Guerra Mundial, poderia concordar com o governo inglês no seu acto de declarar a guerra a Hitler, mas poderia discordar quanto ao modo de justificar tal declararão e quanto aos meios de conduzir a guerra. O governo inglês tinha um motivo principal: uma possível ou provável boa consequência da guerra. Sob este ponto de vista, actuou de acordo com o utilitarismo.

145 ( http://criticanarede.com/teleologicas.html ); Rachels, J. (2004). 146 É bom sublinhar que para a moral cristã, na sua unicidade, os preceitos morais são revelados na Bíblia – por exemplo, a segunda tábua do Decálogo. Cf. Pelino, M. & Marto, A. (1990), p. 91f e 191f. 147 Cf. MacIntyre, A. (1984), p.150. 148 Mora, J. F. (1991).

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Quem segue a deontologia – (a Ética do dever) – não pensa em termos de consequências e de probabilidades. Mas sente-se, antes, compelido pela força da consciência moral ou imperativo categórico (cf. Kant) agindo pela causa do bem em si, seguindo o dever, somente por amor ao dever e nada mais (lat. ars gratia artis). Kant, – um grande defensor da Ética deontológica – distingue entre o imperativo hipotético e o imperativo categórico. O imperativo hipotético é condicional e prescreve: “Faz isto … se queres obter este bem e realizar este ideal”.149 O imperativo categórico, pelo contrário, não toma em consideração nenhuma condição na sua prescrição: “procede de tal sorte que trates sempre a Humanidade em ti e nos outros como fim e nunca apenas como meio”.150 Enquanto o imperativo hipotático pressupõe um motivo egoísta, o imperativo categórico baseia-se, em parte, no altruísmo, na imparcialidade e universalidade das normas morais ou éticas e, em parte, na igualdade de todos os seres humanos com respeito à sua igual dignidade.

Duas formas diferentes de Ética deontológica Convém salientar que há duas formas diferentes de Ética deontológica, regra- ou normo-deontologismo e acto-deontológico. Cada uma delas usa critério diferente de avaliação.

a). Regra- ou normo-deontologismo Como já dissemos, quem segue a deontologia ou a Ética do dever não pensa em termos de consequências e de probabilidades. Mas sente-se, antes, compelido pela força da consciência moral ou do imperativo categórico (cf. I. Kant), a agir pela causa do bem em si. Como já vimos o imperativo hipotético é condicional.151 O imperativo categórico, pelo contrário, prescreve incondicionalmente.152 O defensor da regra deontologia afirma que seguir, estritamente, as regras morais ou éticas, em si mesmo, garante o cumprimento do dever ou da obrigação moral. Por conseguinte, deve-se seguir regras, sem ter em conta as consequências de segui-las. Regras (ou normas) deontológicas, como “devemos falar a verdade”, “devemos cumprir as nossas promessas”, devem ser interpretadas como” devemos sempre – em todas as situações – falar a verdade e cumprir as nossas promessas. Portanto, segundo a regra- ou normo-deontologismo o critério de avaliar se uma acção é justa ou lícita é a própria regra ou norma que prescreve tal acção.

b). Acto-deontologismo: Ética deontológica situacional Quem defende a teoria chamada acto deontológico, também afirma que devemos cumprir sempre os nossos deveres. Mas os deveres não são descritos ou expressos em regras. O que temos de fazer é, em cada situação concreta, ao praticar uma acção concreta, perguntar se devemos cumprir o nosso dever nesta situação? Só a intuição de cada pessoa pode assegurar se a pessoa numa determinada situação está ou não a

149 Lahr, 1968, p. 549. 150 Ibid., p. 550. Uma outra variante do imperativo categórico é: “Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal”. 151 Lahr, 1968, p. 5.49. 152 Ibid., p. 550.

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cumprir o seu dever. Aqui também define-se a intuição como o sexto sentido, ou seja a capacidade de sentir ou conhecer automaticamente o que devemos fazer, sem raciocínio prévio. Portanto, para quem segue o acto-deontologismo, o critério de avaliar se uma acção é justa ou lícita, é a intuição do agente moral, que deve ser aplicado ao sentimento do dever em situações concretas.

Diferenças entre a Ética normativa de consequência e a Ética deontológica ou do dever Como já vimos, segundo as Éticas normativas de consequência; egoísmo ético e utilitarismo, os fins justificam os meios. Desde que os fins sejam considerados bons devemos, segundo estas teorias éticas, procurar atingi-los, não importa por que meios. Para a Ética de consequência, o que interessa ao agente moral é a boa consequência de uma acção. Por outras palavras, se a prática de uma acção resultar em boa consequência, o agente moral deve fazer uso de qualquer meio (bom ou mau) para atingir o fim (a presumível boa consequência da acção). Assim, na perspectiva da Ética utilitarista, usando ainda o nosso já conhecido exemplo, o governo inglês, antes de declarar a guerra a Hitler, parece ter pensado tanto na possível boa consequência da guerra como nos meios necessários para levar a cabo as suas “boas” acções. A boa consequência desejada e esperada, pelo governo inglês, foi a vitória sobre Hitler. Mesmo que os meios usados para a persecução da vitória gerassem danos colaterais: como a perca da vida de muitos soldados e civis, incalculáveis perdas económicas, enorme sofrimento causado pela destruição de vidas e outros valores importantes, etc., ninguém de bom senso, pensa que estes meios são bons meios em si. São maus em si, por dar origem a sofrimentos e mortes de inocentes. Foram, porém, todos considerados antes da declaração da guerra. Mas como a desejada vitória tinha, maior valor do que todos os efeitos secundários, o fim (a vitória sobre Hitler) justificou os meios. Por outro lado, é difícil saber como balançar as boas consequências da guerra contra as más, tanto a curto como a longo prazo, quer quantitativa quer qualitativamente. Voltemos agora à Ética deontológica ou Ética do dever e comparemo-la com a Ética utilitarista. Ao contrário da Ética utilitarista (Ética de consequência), a Ética deontológica, segundo Kant, tem como princípio fundamental ou supremo o cumprimento do dever – sem ter em conta a consequência dos actos. Para Kant o dever “é a necessidade de actuar por puro respeito à lei” moral.153 Deve-se distinguir entre dever assim definido e consciência do dever. Esta última – que é um sentimento - “é a expressão do mandato, exercido sobre a consciência moral por certo número de valores”.154 A Ética deontológica requer que tanto os meios como os fins de uma acção sejam julgados ou considerados bons, para que qualquer acção boa possa ser praticada. Esta é também uma característica fundamental da Ética teleológica clássica. A deontologia, como Ética normativa, exige que a essência, natureza ou qualidade da própria acção ou norma, que a determina ou prescreve, seja boa. Portanto, a deontologia pressupõe de antemão, que certas acções (e certos actos ou comportamentos) sejam sempre boas ou más em si e não apenas pelas suas consequências. Por exemplo, falar a verdade, respeitar a dignidade da pessoa humana, ajudar uma pessoa em necessidade, etc., são actos sempre bons em si. E de uma maneira geral; mentir, matar, praticar a injustiça, não cumprir promessas, adulterar, levantar falso testemunho, etc., são, segundo a deontologia, actos maus em si mesmos. O que significa que estes actos não devem ser praticados, mesmo que as suas consequências possam ser

153 Mora, J. F. 1991, p. 103. 154 Ibid.

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boas para quem os pratique ou para terceiros. Por conseguinte, quem segue a deontologia, isto é, quem a toma como sua Ética ou teoria normativa de conduta, não pensa na boa consequência das suas acções, mas sim, em certas regras e princípios imutáveis e universais que exprimem um dever categórico.155 Convém notar que o utilitarista e o deontologista podem aceitar a mesma norma, por exemplo, “devemos falar a verdade”. No entanto, diferem na interpretação e aplicação da mesma. Enquanto o utilitarista afirma “devemos falar a verdade em certas circunstâncias” (quando falar a verdade possa ter uma boa consequência), o defensor da regra deontologia afirma que “devemos sempre falar a verdade”, sem termos em conta uma possível má ou boa consequência de proceder assim.

Acto-deontologismo contra acto-utilitarismo: Éticas situacionais Há duas formas de Ética normativa situacionistas, nomeadamente acto-utilitarismo e acto-deontologismo.156 Apesar do acto-utilitarismo ser uma Ética de consequência, e o acto-deontologismo ser uma Ética do dever, têm pontos semelhantes. Também há diferenças entre eles. Quanto aos pontos semelhantes podemos apontar que ambas teorias éticas são formas da Ética situacional, por afirmarem que cada situação é única, e que cada indivíduo é único, o que implica que o agente moral tem de considerar as características peculiares de cada situação concreta, caso queira fazer justiça a cada situação e a cada ser ou indivíduo humano. Um outro aspecto comum entre estas teorias éticas é o facto de ambas usarem a intuição do agente como critério de avaliar a moralidade de uma acção. Este aspecto faz com que nenhuma delas possa funcionar como uma Ética social. Pois, a aplicação da Ética social (assim como a implementação da justiça social que é um aspecto da Ética social) requer um critério objectivo, isto é, intersubjectivamente válido (ou público) de avaliação da moralidade de uma acção e não um critério subjectivo como a intuição de cada um, que varia de pessoa para pessoa. Quanto à diferença entre acto-utilitarismo e acto-deontologismo, representam, como já vimos, duas Éticas normativas diferentes: a de consequência e a do dever, respectivamente. Ainda mais, enquanto o acto utilitarismo usa o princípio da utilidade na realização e aviação de uma acção, o acto-deontologismo usa o princípio do dever: “devemos cumprir os nossos deveres”.

A relação lógica entre a Ética deontológica e a utilitarista A deontologia Kantiana prescreve o cumprimento de regras sem excepção. Isto pode dar origem a dilemas éticos, por exemplo, pode dar origem a um conflito entre o dever de sempre falar a verdade e o dever de sempre ajudar uma pessoa em necessidade. Ambos os deveres não podem ser cumpridos ao mesmo tempo. Por isso, em situações de conflito entre os dois deveres, o agente moral tem de escolher um deles. Mas uma escolha aqui pressupõe um critério de prioridade. Porém, o uso de um tal critério pode pôr o agente moral fora do domínio da Ética deontológica – como a Kantiana que não admite

155 Por exemplo: falar a verdade, cumprir promessas, praticar a justiça e beneficência, respeitar a dignidade e integridade e os direitos inalienáveis do nosso próximo, etc., como princípios éticos que devem ser obedecidos em todas as circunstâncias, por todas as pessoas, independentemente das boas ou más consequências que de tal obediência possam advir. 156 Jeremy Bentham (1780) representa o acto-utilitarismo. O acto-deontologismo pode ser existencialista-cristão (cf. Joseph Fletcher) e acto-deontologismo ateísta (cf. J.-P. Sartre).

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excepções às regras, nem a priorização dos deveres – e pode pô-lo no domínio da Ética de consequência, onde a hierarquização ou priorização dos deveres são necessários. Por exemplo, se decidirmos mentir para pudermos salvar uma pessoa em perigo de morte, é porque achamos que salvar a vida de uma pessoa tem mais valor que falar a verdade. A Ética de consequência permite esta hierarquização, enquanto a deontologia não permite. No que segue vamos ilustrar como se avalia filosoficamente uma teoria ética.

Três perguntas-testes como critérios de avaliar teorias éticas Existem três perguntas-testes que devem ser feitas a qualquer teoria normativa ética que tenha a pretensão de ser uma teoria correcta ou verdadeira. Uma teoria ética correcta é uma adequada (que faz justiça) a certos aspectos fundamentais da natureza humana e que, portanto, deve ser adoptada como Ética normativa. Chamemos-lhes perguntas-testes. São as seguintes perguntas: (a). Está a teoria Ética a ser avaliada de acordo com o que as pessoas, intuitiva e geralmente falando, entendem por justo e recto (acção boa)? (b). Existem fortes argumentos a favor de tal teoria? (c). Existem fortes argumentos contra a teoria?157

Estas perguntas têm a sua raiz primária em outras tantas perguntas básicas acerca dos valores gerais da Ética como:

O que é o Bem?

O que é o mal?

O que é a justiça?

No que se segue vamos aplicar as perguntas-testes às várias teorias de Ética normativa.

Aplicação das perguntas-testes ao egoísmo ético Como já vimos, o egoísmo ético tem como princípio fundamental o dever de cada um de, em toda e qualquer situação, agir de tal maneira que o seu próprio interesse seja satisfeito ou o que pensar ou imaginar ser ou estar no seu próprio interesse. À luz das três perguntas-testes vamos agora examinar os argumentos a favor e os contra o egoísmo ético, a fim de concluirmos porque é que o egoísmo ético não deve ser adoptado como uma teoria normativa de conduta e ordem social.

(a). Está o egoísmo ético de acordo com o que as pessoas, intuitiva e geralmente falando, entendem por justo e recto (acção boa)? Os que defendem o egoísmo ético (ou “a Ética do amor-próprio”158) fazem-no usando um argumento psicológico (o egoísmo psicológico, Frankena, 1963/1981, p. 31-38), que diz o seguinte: a natureza humana é constituída de tal maneira que cada indivíduo humano, de facto, procura sempre o que está, ou pensa estar, no seu próprio interesse. Isto significa que o Homem é, por natureza, um ser essencialmente egoísta!159

157 Cf. Holte et al., 1977, p. 20f. 158 Frankena, 1981, p. 33. 159 Esta é a opinião do filósofo inglês Thomas Hobbes no seu livro Leviathan (1651).

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A resposta à pergunta teste (a) acima, é não, pela seguinte razão: Um argumento contra o egoísmo ético é, por exemplo, o facto de muitas pessoas que deixam de pagar impostos se sentirem culpadas. Aceitam que, genericamente, o pagamento de impostos é algo justo e correcto, moral e legalmente falando. Isto demonstra que o egoísmo ético é uma teoria falsa, por não corresponder à realidade dos factos sociais. De contrário, isto é, se o egoísmo ético fosse uma teoria ética verdadeira, as pessoas que deixassem de pagar impostos não sentiriam remorsos ou qualquer espécie de dilema ético."160 Por conseguinte, o egoísmo psicológico, como argumento favorável, par excelence et préferénce, na defesa do egoísmo ético parece não estar de acordo com os factos. Na verdade, muitos moralistas têm descoberto factos que contradizem tal argumento. Veja, no próximo parágrafo, a refutação do egoísmo psicológico e do egoísmo ético feita por Joseph Butler.

(b). Existem fortes argumentos a favor do egoísmo ético? Existe, pelo menos, um argumento que, no passado, tinha sido considerado como forte a favor do egoísmo ético, que tem sido usado como motivação e justificação última do egoísmo ético, nomeadamente o egoísmo psicológico (cf. Thomas Hobbes, 1588 -1679). Como já indicámos, o egoísmo ético afirma que o interesse próprio é o princípio moral fundamental. Para justificar esta afirmação, o defensor do egoísmo ético apela ao egoísmo psicológico, segundo o qual o ser humano procura sempre satisfazer as suas próprias necessidades. O egoísta interpreta, por exemplo, a regra de ouro da seguinte maneira; “ajuda os outros para que eles te ajudem a prosseguir o teu próprio interesse”, e nunca por qualquer outra razão.161 Um dos grandes oponentes do egoísmo ético e do seu fundamento – o egoísmo psicológico – foi o bispo inglês do século XVII, Joseph Butler. Este conseguiu demonstrar que o argumento psicológico, usado na defesa do egoísmo ético, não corresponde à realidade humana. Por outras palavras, é um argumento falso porquanto o ser humano não é necessariamente egoísta. Butler afirma que nem sempre somos egoístas, que além do amor-próprio, temos também impulsos altruístas. Butler demonstrou esta verdade com um argumento bem convincente, que desde o século XVII tem servido como refutação definitiva do egoísmo psicológico, usado como motivação e justificação última do egoísmo ético. O raciocínio de Butler radica no seguinte; suponhamos que levamos uma pessoa à praia para esta se distrair, divertir e recrear. O egoísta pensa que agimos assim somente por que tal procedimento está de acordo com o nosso próprio interesse, por causa do irresistível egoísmo humano. Butler, ao contrário do egoísta, e em resposta a este, pensa da seguinte maneira: é natural e desejável que sintamos satisfação se a pessoa que levamos connosco, à praia, sentir alegria e prazer pelo passeio. Assim regozijamos com ela, mostrando a nossa simpatia, o que é natural e aceitável. Porém, se ela não gostar do passeio e ficar aborrecida, então podemos experimentar tristeza e frustração. Mas a tristeza e frustração não eram o propósito que tínhamos associado à acção desencadeada. Experimentamos frustração, acrescenta Butler, porque o nosso propósito era o de contribuir para a satisfação e não insatisfação do sujeito. A nossa frustração exprime também uma simpatia

160 Portanto, por esta e outras razões em desfavor do egoísmo ético, esta teoria da Ética normativa não serve de guia ou norma de conduta no caso de pagamento de impostos. Que é justo pagar imposto, podemos compreender intuitivamente por sabermos que sem impostos não pode existir uma sociedade economicamente justa e, consequentemente, democrática e livre. 161 http://webphilos.wordpress.com/2011/02/15/egoismo-etico/2011.07.05, kl 23.30; La Follette, H. (2000), 2000, p. 129-130.

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natural, que é a propensão ou tendência natural de sofrer com os que sofrem e de regozijar com os que se regozijam (cf. Rom. 12,15). O egoísta ao usar o egoísmo psicológico para defender o seu modus vivendi e agendi), mostra que confunde o propósito do nosso desejo e agir (de proporcionar bem estar a terceiros) com a satisfação que indirectamente se obtém (efeito colateral ou secundário) quando atingimos o nosso propósito, afirma Butler. Para que o egoísta tivesse razão em afirmar "que sempre procuramos o nosso prazer" seria necessário que sentíssemos prazer, independentmente da satisfação que a pessoa que nos acompanha na ida à praia sinta ou não. Se o leitor não achar este exemplo convincente, pense então numa situação em que encontramos uma criança atirada ao chão, a chorar, desamparadamente. Levantámo-la para a consolar somente por causa do nosso próprio interesse? Se o egoísta o faz, apenas para satisfazer a si próprio, há, no entanto, muitas pessoas que a consolam não por causa do interesse próprio, mas por causa do interesse da criança, por sentir compaixão dela. Este facto falsifica a afirmação do egoísta, que em todos os nossos actos e as nossas omissões procuramos sempre satisfazer os nossos próprios interesses. Às vezes, por causa de compaixão, esquecemos os nossos próprios interesses e ajudamos altruisticamente as pessoas necessitadas. (Veja a parábola do bom samaritano no próximo parágrafo).

(c). Existem fortes argumentos contra o egoísmo ético? Além do egoísmo ético parece ter sido refutado, uma vez para sempre, por Butler, que desmoronou o seu fundamento, nomeadamente o egoísmo psicológico162, temos, no que se segue, a seguinte resposta à pergunta teste (c), que pode ser considerada um argumento forte contra o egoísmo ético. No evangelho de São Lucas, Jesus ensina a um doutor da Lei o que é um verdadeiro amor ou compaixão, ou seja, uma verdadeira acção altruísta. Assim lemos:

"Eis que certo homem, intérprete da Lei (doutor da Lei) se levantou com o intuito de pôr Jesus à prova e disse-lhe: Mestre, que farei para herdar a vida eterna? Então Jesus lhe perguntou: que está escrito na Lei? Como interpretas? A isso, ele respondeu: amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento e amarás o teu próximo como a ti mesmo. Então Jesus lhe disse: Respondeste correctamente. Faz isso e viverás. Porém, o doutor da Lei querendo justificar-se perguntou a Jesus: ‘Quem é o meu próximo?’ Jesus prosseguiu, dizendo: ‘Certo homem descia de Jerusalém para Jerico e caiu nas mãos dos salteadores [ladrões] os quais o despojaram, e espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto. E ocasionalmente, descia pelo mesmo caminho certo sacerdote; e, vendo-o, passou de largo. E de igual modo, também um levita chegando àquele lugar, e vendo-o passou de largo. Mas, um samaritano que ia de viagem, chegou ao pé dele, e, vendo-o, moveu-se de íntima compaixão; e, aproximando-se, atou-lhe as feridas deitando-lhes azeite e vinho; e, pondo-o sobre a sua cavalgadura levou-o para uma estalagem e cuidou dele; e partindo ao outro dia, tirou dois dinheiros e deu-os ao hospedeiro, e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que de mais gastares, pagar-te-ei, quando voltar. Qual, pois, destes três, te parece que foi o próximo daquele que caiu nas mãos dos salteadores? E ele disse: O que usou de misericórdia para com ele. Disse, pois, Jesus: Vai, e faz da mesma maneira’." (S. Lucas 10:25-37).

Esta parábola mostra-nos uma acção completamente altruísta. Parece que o homem que caiu nas mãos dos ladrões era judeu, enquanto o que teve compaixão dele era

162 O egoísmo psicológico foi defendido principalmente pelo filósofo inglês Thomas Hobbes no seu Liviathan.

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samaritano. Os judeus e samaritanos eram, naquele tempo, inimigos uns dos outros, por causa de tradição religiosa e de preconceito rácico. Os primeiros pertenciam à raça branca (autodefinida como “pura”), enquanto os segundos pertenciam a uma raça misturada (definida pelos judeus como “impura”). Por conseguinte, seria muito natural – se o egoísmo psicológico fosse verdadeiro – que o sacerdote e o levita tivessem pena do pobre homem, porquanto este era judeu como eles. O egoísmo seria passar de lado, por exemplo, com medo de ser assaltado – o que exprime uma preocupação total como a segurança própria. Note-se que o doutor da Lei não nomeou "com a sua boca" a palavra "samaritano", uma palavra que designava uma coisa suja ou impura (o ser um samaritano) para uma pessoa pertencente a uma raça pura, a um povo santo, o povo judeu, o povo eleito, o povo de Deus! A parábola em questão mostra que mesmo entre representantes de povos diferentes, hostis uns aos outros, podem existir acções altruístas. Este facto contradiz tanto o egoísmo psicológico, como o egoísmo ético. Geralmente falando, podemos afirmar que o egoísmo psicológico – como fundamento do egoísmo ético – colide com factos sociológicos e antropológicos, segundo os quais o ser humano não é essencialmente egoísta. O egoísmo e o altruísmo, de maneira análoga às capacidades de fazer o bem e de fazer o mal, respectivamente, são aspectos essenciais do ser humano. Passemos agora à análise crítica do utilitarismo.

Aplicação das perguntas-testes ao utilitarismo ético

(a). Está o utilitarismo de acordo com o que as pessoas, intuitiva e geralmente falando, entendem por justo e recto (acção boa)? Resposta a esta pergunta é não, pelas seguintes razões. O problema que se levanta, quando tencionamos calcular a consequência de uma acção, é o facto de não sabermos, de antemão, se a acção que tencionamos praticar, de facto, resultará numa boa ou má consequência. Antes de mais nada, tenhamos presente uma distinção importante. Algo é subjectivamente justo desde que eu (ou o agente moral), tomando como ponto de partida ou critério de avaliação “o meu dever”, julgue este algo como justo. Por outras palavras, uma acção é subjectivamente justa e digna de ser praticada por mim (pelo agente moral) desde que eu (o agente) sinta um dever moral de praticá-la. Mas o subjectivamente justo ou legítimo não é necessariamente objectivamente justo ou legítimo. É este último conceito de justo que precisamos para podermos ser justos, isto é, imparciais e equitativos no que concerne aos direitos e interesses dos outros, no contexto da Ética ou justiça social. Vamos ilustrar o problema que se impõe quando a rectidão de uma acção tem de ser avaliada segundo as suas consequências. Suponhamos que uma pessoa, por exemplo, o Manuel, indo de carro de Assomada para Praia, vê no caminho a senhora Maria, de 60 anos de idade, indo a pé para Praia. É natural que o Manuel sinta o dever de oferecer à senhora Maria um lugar no seu carro, facilitando-lhe a jornada. É claro que o Manuel, ao ver a senhora Maria, sente intuitivamente163 que é justo e bom ajudá-la, oferecendo-lhe um lugar no seu carro. Mas, suponhamos, ainda, que a caminho da Praia tiveram um acidente e a senhora Maria ficou gravemente ferida e fisicamente inválida. Ora, um juiz utilitarista pode condenar o Manuel só pelo facto de este não ter pensado na consequência da sua acção – a de levar no seu carro uma pessoa de idade, sem ter pensado na possibilidade de um acidente. Este juiz pode condenar o Manuel como tendo

163 Isto é, espontaneamente, sem discutir consigo próprio e sem raciocinar acerca do caso com ninguém e sem duvidar.

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agido injustamente (do ponto de vista da moral utilitarista) para com a senhora Maria. Porém, se o juiz não proceder assim, os parentes da senhora Maria podem reprovar a acção do Manuel em termos utilitaristas. No acto do Manuel temos, pelo menos, dois juízos ou avaliações diferentes. O juízo do Manuel, de acordo com o seu dever moral, é subjectivamente justo e recto. Pois, ele pensa que dar uma boleia à senhora Maria, é um acto justo, lícito e louvável, pelo menos do ponto de vista da Ética deontológica. Mas dizemos que juízo do juiz, que condena o Manuel, é objectivamente justo, isto é, baseado não no sentimento do dever mas sim em factos, nomeadamente a consequência negativa do acto do Manuel. E contra factos não há argumentos. O juiz utilitarista avalia a consequência do acto do Manuel (um facto consumado) e não a boa (ou má) intenção deste. Talvez se o Manuel não fosse aderente à Ética deontológica, não teria oferecido uma boleia à senhora Maria – como expressão de um dever – e, por conseguinte, não teria praticado uma acção cuja consequência poderia derivar ou resultar numa acção penalizadora para terceiros. Para que um utilitarista possa saber, se uma acção é justa ou injusta, terá de saber se tal acção é objectivamente justa ou injusta, isto é, quais serão as suas verdadeiras (e não supostas) consequências. Mas só um profeta, telepático ou adivinhador é capaz de saber de antemão, se uma acção, de facto, terá uma boa ou má consequência. Nós que não somos nem profetas, nem adivinhadores, pensamos em termos de probabilidades. Por isso, é mais fácil concordarmos com a correcção dos juízos subjectivos do dever – segundo a Ética deontológica – do que com os juízos objectivos de consequências. Neste aspecto a deontologia tem vantagem sobre o utilitarismo ético. Em conclusão, podemos dizer que o utilitarismo não está de acordo com o que, de uma maneira geral, se entende por justo ou lícito, moralmente falando. O utilitarismo parece, por isso, ser contraintuitivo e exige do agente moral o impossível, nomeadamente o saber de antemão se uma accão a ser practicada resultará numa boa ou má consequência.

(b). Existem fortes argumentos a favor do utilitarismo? Para responder a esta pergunta, é preciso comparar o utilitarismo com o egoísmo ético. Já vimos que o egoísmo ético, defendido pelo argumento chamado egoísmo psicológico (um argumento psicológico ou antropológico), é uma teoria normativa falsa. Esta teoria não pode ser adoptada como Ética social, por ser contra a própria natureza e essência da Ética.164 Pelo contrário, o utilitarismo é baseado no altruísmo humano ou na virtude da benevolência e no princípio da beneficência. O utilitarismo é uma teoria normativa melhor que o egoísmo, porque toma em consideração o interesse não só do agente que pratica a acção, mas também, daqueles que sofrem as consequências da acção. Podemos dizer que estes factos constituem fortes argumentos a favor do utilitarismo. Não obstante, este aspecto positivo, o utilitarismo deve ser completado com certos princípios ou regras deontológicas, como o princípio da justiça, da verdade, igualdade e da imparcialidade. Sem tal complemento, o princípio fundamental de utilidade (que é a base do utilitarismo ético) não é suficiente para nos guiar na prática de acções moralmente justas ou boas. Pois, se o agente moral adoptar apenas o princípio fundamental do utilitarismo – o princípio da utilidade – nunca saberá se uma acção, numa situação concreta, é justa ou digna de ser praticada.

164 O homem é um ser social, o que implica interdependência entre indivíduos humanos. Para que esta interdependência possa funcionar em paz é preciso normas que todos devem cumprir, nomas que especificam os deveres e direitos de cada indivíduo, portanto normas que promovem tanto os interesses individuais como os colectivos ou o bem comum. O egoísmo ético não é capaz de nos fornecer tais indispensáveis normas que, por natureza, devem ser altruísticas.

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(c). Existem fortes argumentos contra utilitarismo? Como já referido, um argumento forte contra o utilitarismo é que esta teoria exige o impossível do agente moral, isto é, que o agente moral saiba, de antemão, se a consequência da acção a ser practicada é objectivamente boa.165 Um exemplo ilustrativo da deficiência do princípio utilitarista, nas questões morais, é o caso já referido da Segunda grande Guerra. O governo inglês estava consciente do poderio e fanatismo de Hitler e de uma possível derrota inglesa. Mas o governo inglês pensou que se Hitler continuasse a guerra, sem que qualquer nação forte se lhe opusesse, existiria uma grande probabilidade, que fossem destruídas todas as nações e culturas de então e que fosse implantada uma ideologia inumana, racista e fascista em toda a Europa e outras partes do mundo. Para evitar uma tal catástrofe, o governo inglês chegou à conclusão que era justo (claro, subjectivamente falando) declarar guerra a Hitler, o que fez em 1939. Mas, obviamente, o governo inglês actuou sob risco. Pois, só mais tarde é que o governo inglês veio a constatar que a sua participação em tal guerra foi objectivamente justa, segundo a Ética utilitarista (e a deontológica). Se tivesse de saber isso antes de começar a guerra, nunca declararia guerra a Hitler, porquanto seria impossível ter este conhecimento que supõe a previsão do futuro, o que é impossível. O utilitarista podia também sustentar que se a Inglaterra não tivesse declarado guerra a Hitler, mesmo que este continuasse a dominar e destruir outras nações, a Inglaterra ao abster-se da guerra não podia ser julgada como moralmente culpada. Por outras palavras, a Inglaterra não teria causado por meio da guerra, nenhum mal no mundo nem contribuído para isso. Pois, pouparia pelo menos, a vida dos seus soldados. Mas declarar a guerra e perdê-la é contribuir para o aumento do mal no mundo, o que é diametralmente oposto ao princípio fundamental do utilitarismo e de qualquer Ética de consequência, egoísta ou altruísta. Contra este argumento pode-se opor que somos responsáveis, não só pelo que fazemos, mas também pelas nossas omissões. Se a Inglaterra pudesse diminuir o poderio do Hitler, declarando-lhe guerra, mesmo que ela viesse perder a guerra teria no entanto evitado que Hitler multiplicasse o mal no mundo. Assim, a não participação da Inglaterra na guerra, podia ser julgada como moralmente inaceitável mesmo sob o ponto de vista utilitarista. Podemos assim demonstrar que os argumentos utilitaristas parecem exibir dois gumes: por um lado podem ser usados a favor de uma acção (declarar ou engajar numa guerra), mas por outro lado, podem ser usados contra a mesma acção (abster-se de declarar ou engajar na guerra). Isto pode criar um dilema ético que por sua vez pode engendrar apatia. Sob o ponto de vista deontológico, a declaração da guerra a Hitler por parte da Inglaterra e dos aliados, pode ser julgada como justa, se invocado o princípio da autodefesa que exprime um dever moral, segundo a Ética deontológica. E sob ponto de vista da Ética de virtudes, do carácter moral e do ideal, a declaração da guerra ao nacional-socialismo alemão por Inglaterra, pode ser julgada como justa, motivada por uma boa intenção e um bom ideal (o de atingir o bom fim), nomeadamente a paz no mundo (veja o último paragrafo deste capítulo sobre a moral ou Ética de virtudes). Note-se que se o utilitarista apelar ao dever ou à boa intenção, ele/ela deixa de ser 100% utilitarista. Deixa de ser absolutamente dependente do princípio de utilidade que conta

165 Por outras palavras, como já vimos acima, o princípio de utilidade afirma e defende que uma acção é justa e digna de ser praticada desde que a sua consequência seja boa para a maioria das pessoas ou para a humanidade em geral. Porém, como já apontado e sublinhamos agora, a boa consequência que uma acção poderá ter é um bom ideal ético que ninguém pode conhecer de antemão.

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unicamente com a máxima boa consequência de uma acção, independentemente do meio usado para obter tal resultado ou fim e independentemente do sentimento de dever, de uma boa intenção e boa consciência moral ou de um bom ideal ético.

d). Um outro argumento forte contra o utilitarismo O princípio fundamental do utilitarismo, utilidade, colide com o princípio da verdade e da justiça. O filósofo americano John Hospers apresenta no seu livro Human Conduct (Conduta Humana) um interessante diálogo entre um aluno do liceu e um professor utilitarista. O diálogo é interessante porque mostra como é que um utilitarista não consegue adoptar consistentemente o ponto de vista utilitarista. No que se segue vou apenas resumir os pontos fundamentais do diálogo. Um determinado aluno do liceu obteve, numa das disciplinas básicas, uma nota relativamente fraca, um C, sendo esta a nota mais baixa nesse liceu. A nota mais alta nesse liceu é A. Entre A e C temos logicamente a nota B. Mas como ele pretendia entrar na Faculdade de Medicina, precisava de uma nota A, necessária para poder ingressar no curso de Medicina. Por isso, foi falar com o professor utilitarista (que lhe tinha atribuído a nota C), pedindo-lhe que lhe subisse a nota para A. O professor efectuou a revisão da prova e isso ainda o deixou mais convencido da justeza da sua classificação. Mas o aluno insistiu, dizendo-lhe:

“Sei que não mereço uma nota melhor da que obtive, mas sem uma nota melhor do que C não posso entrar na Faculdade de Medicina. Isto é de grande valor, não só para mim, mas também para os meus futuros pacientes. Com isto quero dizer que estudar medicina terá uma boa consequência tanto para mim como para outras pessoas. O professor elucidou-lhe, mais uma vez, que as notas são dadas de acordo com o mérito ou prestação dos alunos e não de acordo com os projectos futuros de cada aluno, o que implica imparcialidade e justiça em relação a todos os alunos”.

Este, sem ceder, defendeu-se dizendo: “sei que é imoral alterar as notas e atribuir uma classificação elevada quando o aluno não a merece, mas, peço-lhe, não pode fazer uma excepção?” Antes de o professor formular a sua resposta, o aluno acrescentou: “Peço-lhe, como um utilitarista que é, que faça uma excepção." E continuou o seu forte e convincente argumento, dizendo:

“O seu ideal, como utilitarista, é pois, a máxima felicidade para a maioria dos homens. Se o senhor me der a nota que mereço (um C) quem ficará mais feliz? Talvez o senhor fique mais feliz, por um momento, mas como tem centenas de alunos, há-de se esquecer disso dentro de pouco tempo. Mas eu, tornar-me-ia infinitamente mais feliz, ao entrar numa Faculdade onde sempre desejei estudar para obter uma profissão de que sempre gostei. É verdade que não estudei muito para a sua disciplina, mas reconheceria o meu erro e sei que não utilizaria mais tempo em vão. O senhor deveria olhar para o futuro e não para o passado, nos seus juízos morais. Estou certo que o senhor ia ser a causa de muita felicidade se me desse uma nota mais elevada, mesmo que eu tenha de reconhecer abertamente, e com vergonha, que não mereço tal nota”.166

Como utilitarista, o professor ficou convencido de que era seu dever mudar a nota para melhor. Pois, provavelmente esta acção iria ter uma boa consequência para o benefício de muita gente. Na verdade, o professor pensou que seria muito provável que um tal procedimento de sua parte viesse a causar muita felicidade ao aluno. O professor

166 Holte e tal 1977, p. 32-33. A tradução é nossa.

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reconheceu também, que se mudasse a nota deste aluno para melhor e não dissesse nada a ninguém, não estaria a praticar uma acção moralmente injusta. Mas, depois de reflectir sobre o assunto, durante alguns minutos, chegou à prudente conclusão: "Se é um mal agir injustamente na presença dos outros é menos mal agir injustamente em segredo? Certamente que não!". Concluiu.167 Por isso, não mudou a nota do aluno. Se este professor quisesse seguir consistentemente o princípio de utilidade entraria em conflito com dois princípios morais universalmente aceites:

O princípio da justiça segundo o qual devemos: a) dar a cada um o que merece e b) devemos tratar de forma similar, questões similares.

O princípio da verdade segundo o qual não devemos desvirtuar a natureza dos factos (como seria o caso de falsificar as notas).

Se esse aluno fosse meu, dar-lhe-ia a nota A, não por ele merecer nem com intuito de encorajá-lo a estudar medicina, mas para poder persuadi-lo a estudar advocacia ou filosofia. Pois, se um aluno como este não conseguisse ser médico, poderia aprender algo importantíssimo para a vida; a arte de pensar logicamente bem. E ele já tem meio caminho andado.

As perguntas-testes aplicadas à Ética deontológica

(a). Está a ética deontológica de acordo com o que as pessoas, intuitiva e geralmente falando, entendem por justo e recto (acção boa)?

A Ética deontológica, especialmente a regra-deontologia, está de acordo com o que as pessoas de uma maneira geral entendem por justo e recto, moralmente falando. Além disso, todas as Éticas ou todos os códigos profissionais tem um carácter deontológico, isto é, exprimem os deveres que os profissionais devem cumprir. De todas a teorias da Ética normativa, é a Ética deontológica que é menos criticada neste ponto, especialmente na sua forma chamada regra-deontologismo.

(b). Existem fortes argumentos a favor da ética deontológica?

É mais fácil cumprir um dever seguindo as regras deontológicas do que seguir as regras utilitaristas. Por exemplo, quem quer cumprir o dever de “sempre falar a verdade” deve, em todas as situações, obedecer a regra “deve-se sempre falar a verdade”. Regras deontológicas dizem-nos que tipos de acção são justos ou lícitos, isto é, que tipos de acção devem ser practicados. Alguns argumentos a favor da Ética deontológica são as seguintes. Princípios e regras deontológicas servem para promover equidade, imparcialidade (justiça), respeito pela dignidade da pessoa humana e pelos direitos inalienáveis do homem. Tanto a razão como o senso comum consideram certas regras deontológicas como autoevidentes, por exemplo: “devemos sempre falar a verdade”, “não devemos nunca matar uma pessoa inocente”, “devemos sempre cumprir as nossas promessas” e “não devemos nunca roubar”. Regras deontológicas deste tipo são fáceis de utilizar por exprimirem os nossos deveres. E são necessárias, como fundamento ético ou moral, à existência de uma comunidade, justa, pacífica, segura e estável.

167 Ibid. A tradução é nossa do texto em sueco.

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O acto-deontologismo torna-nos conscientes da unicidade de cada pessoa e do aspecto único que cada situação pode ostentar. Por exemplo, tanto na execução da justiça social como na distribuição dos recursos necessários à manutenção ou recuperação da saúde, é por vezes, necessário ter em consideração as necessidades especiais e o grau de vulnerabilidade dos indivíduos. Isto será possível, se, por exemplo, os responsáveis pela justiça e segurança e pelos cuidados de saúde considerarem não só certas regras-deontológicas mas também o acto-deontologismo.

(c). Existem fortes argumentos contra a Ética deontológica?

Regras deontológicas, quando interpretadas segundo Kant, isto é, no sentido absoluto e sem excepção, podem dar origem ao dilema ético, isto é, a colisão entre dois deveres imperativos. Como atrás referimos, se queremos cumprir dois ou mais deveres ao mesmo tempo, por exemplo, “falar sempre a verdade”, e “ajudar sempre uma pessoa em necessidade”, quando é possível cumprir apenas um destes deveres. Em situação de um dilema ético, temos de escolher o dever que deve ser priorizado. Para fazermos uma escolha entre deveres conflituantes, temos de deixar o domínio da Ética deontológica e usar, por exemplo, o princípio de utilidade que pertence à ética utilitarista, como Ética de consequência. Além de nos incorrer em dilemas, em certas situações, regras e princípios, interpretados rigorosamente, isto é, sem excepção, à la Kant, têm a tendência de transformar os profissionais em burocratas rudes e autoritários, que, nas suas atitudes para com os outros e nas suas decisões concernentes aos direitos ou interesses dos outros, não tomem em consideração casos específicos ou necessidades especiais. No caso da deontologia médica ou o código da ética para enfermeiros, os profissionais de saúde podem pensar que tratar sempre todos os pacientes equitativamente é um tratamento justo, correcto e louvável em relação a cada paciente. Mas nem sempre é assim, porque os pacientes podem ter necessidades diferentes, e quem tem maior necessidade ou é mais vulnerável deve receber mais tratamentos, o que implica o uso de mais recursos para tal tipo de paciente. Um burocrata pode comportar-se indiferente e passivamente perante os sofrimentos dos outros, desde que possa declarar que está a cumprir regras e que todos têm de ser tratados segundo tais regras. Assim procederam os carrascos dos campos de concentração Nazis que, durante a Segunda Guerra Mundial, justificaram as suas práticas injustas, para com judeus e outros grupos étnicos, apelando ao cumprimento do seu dever. Um outro argumento contra o uso rigoroso de regras é o seguinte. Parece contra intuitivo que, em certas circunstâncias, o agente moral é expressamente proibido de “adoptar o que C. D. Broad (1971) chamou "altruísmo auto-referencial", que diz que, apesar de as pessoas deverem dar algum peso ao bem de todos, deveriam importar-se mais com o daqueles que lhes estão próximos, por exemplo, a família e os amigos.”168 Regras deontológicas, quando usadas absolutamente e sem excepção, proíbem este tipo de altruísmo que parece ser autoevidente no mundo inteiro. Até o Novo Testamento recomenda os cristãos a cuidar dos seus entes queridos e a amarem-se uns aos outros antes de estenderam o seu amor aos que se encontram fora da comunidade cristã (1Tim.5,4; 1 Pedro 1, 22 e 2 Pedro 1, 3-8). Por exemplo na primeira Epístola do apóstolo Paulo a Timóteo capítulo 5, versículo 4 podemos ler: “Honra as viúvas que verdadeiramente são viúvas; mas, se alguma viúva tiver filhos, ou netos, aprendam primeiro a exercer piedade para com a sua própria família, e a recompensar seus pais, porque isto é bom e agradável diante de Deus.”

168 Thomas Hurka (http://criticanarede.com/teleologicas.html).

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Alguns argumentos fortes contra o acto-deontologismo são os seguintes. Situações humanas não são tão únicas que não têm aspectos em comum. O uso da intuição recomendado pelo acto-deontologismo, sem ajuda de outros critérios, que cada indivíduo (agente moral) deve fazer ou inventar para determinar ou avaliar se uma acção é justa ou não, é um método ou procedimento muito problemático, por que a intuição pode variar de indivíduo para indivíduo. Portanto, ela não é um critério ou padrão objectivo, recto e imparcial para avaliar correctamente a moralidade de uma acção.

A relação lógica entre regras, princípios e teorias da Ética normativa Podem-se classificar os termos fundamentais da Ética em três grupos: 1) termos que se referem a normas que são constituídas por regras e princípios éticos, 2) termos que se referem a valores morais e 3) termos que se referem a teorias éticas. Normas e valores estão, contudo, intimamente relacionados. A relação lógica entre normas e valores morais pode ser esclarecida da seguinte maneira. Por exemplo, a expressão “devemos falar a verdade” é uma norma moral e contém um valor moral, nomeadamente verdade. Como norma moral prescreve o nosso dever ou a nossa obrigação moral. Neste caso, “devemos falar a verdade”. E esta norma defende um valor moral – verdade – que, por sua vez, justifica a norma, por ser o fundamento dela, a razão de ser dela. Outras normas morais são: "devemos respeitar a dignidade do ser humano"; "devemos ser tolerantes"; "devemos ser honestos e justos"; "devemos cumprir as nossas promessas", "devemos ajudar as pessoas necessitadas", etc. Temos, em cada uma destas normas, a presença de valores como verdade, dignidade, tolerância, honestidade, justiça e promessa, etc. Outros exemplos de valores morais são: humanidade, bondade, generosidade, amabilidade, solidariedade, sabedoria, humildade, compaixão, fraternidade, imparcialidade, justiça, etc. Normas são formuladas em regras e princípios que, quando coerentemente relacionados constituem uma teoria normativa ética. Contudo, muitos filósofos rejeitam a distinção entre regras éticas e princípios éticos.169 A distinção entre princípios e regras é, portanto, controversa. Porém, para os que a aceitam, regras morais ou éticas (e jurídicas) são encaradas ou vistas como sendo mais simples e concretas que princípios. Uma segunda diferença entre regras e princípios éticos é que de um só princípio ético pode-se deduzir várias regras éticas. Por exemplo, do princípio "devemos respeitar a dignidade do ser humano" pode-se deduzir as regras: "não matarás", "não levantarás falso testemunho", "não furtarás", "não devemos difamar as pessoas", etc. Uma terceira diferença entre regras e princípios, é que as regras éticas são epistemologicamente justificadas com apelo a princípios éticos. Estes, por sua vez, são justificados com apelo a uma teoria normativa ética (veja a figura abaixo). Dizer que regras são mais concretas que princípios significa que regras são aplicadas em situações concretas, enquanto princípios são mais abstractos (estão, por assim dizer, mais longe da realidade) que as regras éticas. Por exemplo, a regra “não matarás” é mais concreta que o princípio “devemos respeitar a dignidade da pessoa humana”. Matar uma pessoa é uma das várias formas de desrespeitar a sua dignidade humana. É também com apelo ao respeito pela dignidade da pessoa humana que justificamos o uso de regras como “não matarás”.170 Embora haja filósofos da moral e da jurisprudência que não fazem esta distinção entre regras e princípios morais, de qualquer modo, esta distinção tem um

169 Hart, H.L.A. (1977), p. 21ff. 170 Justificar significa aqui argumentar por que não devemos matar.

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3 - Princípios morais: Exemplo: "A dignidade e a autonomia humanas humano devem ser sempre respeitados"

valor pedagógico e prático, embora o seu valor lógico ou epistemológico seja quase nulo.171 A relação lógica entre regras éticas ou morais, princípios éticos e teorias da Ética normativas, pode ser ilustrada como se segue.

Figura 4. Relação entre regras, princípios e teorias da Ética normativa.172

A Ética normativa social, seja ela geral ou específica, é incompleta se não contar com ideais éticos e virtudes morais como partes integrantes do seu conteúdo normativo. Um aspecto importante da Ética social é a função que o ideal ético e a virtude moral têm na vida moral dos indivíduos e na reflexão ética. No que se segue vamos ver em que consiste um ideal ético e uma virtude moral.

O ideal ético, o dever ou a obrigação moral

A Ética normativa faz uma distinção entre dever ou obrigação moral e ideal ético. A primeira diferença entre dever e ideal que quero realçar, é o facto de que quando uma pessoa cumpre o seu dever, faz o que é esperado que faça, e por isso, não merece nem deve esperar qualquer elogio ou recompensa. Pelo contrário, quem pratica uma acção boa, segundo um ideal ético, faz mais do que deve fazer. Por exemplo, quando Jesus recomenda aos seus discípulos a irem duas milhas, se alguém os obrigar a ir uma milha (Mt. 5:41). Quando os discípulos fazem isto conscientemente seguem um ideal ético que ultrapassa o seu dever moral. O ideal é Jesus Cristo como supremo padrão ou modelo moral que deve ser imitado. A segunda diferença entre dever e ideal ético está entre o praticar um dever versus um ideal ético. Como já vimos, quem pratica um dever (o seu dever) não merece e nem deve esperar um elogio, mas quem pratica um ideal ético merece, pode e deve ser elogiado,

171 Kramer, M. H. (2008).

172 Cf. Barbosa da Silva 2006/2010/2011, p. 45.

4 - Teorias normativas. Exemplo: A regra-deontológica de Emanuel Kant; tratar sempre uma pessoa como fim em si e nunca apenas como meio" (o imperativo categórico)

2 - Regras morais. Exemplo: "Não matarás" e “ama o teu próximo como a ti mesmo”

1 - Situações concretas. Exemplo: Uma pessoa recusa praticar o aborto ou a eutanásia, ou a participar na execução de pena de morte.

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embora não espere louvor algum. Quem deixa de praticar o seu dever ou a sua obrigação moral deve sofrer uma sanção moral, por exemplo uma reprimenda, mas isto não deve acontecer com aquele que deixa de praticar um ideal ético. Os moralistas da Igreja Católica Romana chamam um acto praticado segundo um ideal ético, um acto super-rogatório. De uma maneira geral, são os santos que praticam este tipo de actos ou acções. Uma terceira diferença, que é relevante aqui, entre cumprir um dever e seguir ou realizar um ideal ético, é que de uma maneira geral, as pessoas que praticam actos super-rogatórios, costumam servir de modelos éticos para outras pessoas. Pois a moral aprende-se mais facilmente através da imitação de bons exemplos praticados por pessoas, que têm grande integridade moral, do que através de estudos teóricos. Uma pessoa que possui grande ou alta integridade moral, é uma pessoa cuja personalidade é integrada, isto é, o seu intelecto, a sua vontade e emoções não se opõem uns aos outros (não colidem), por exemplo, durante deliberações, decisões e a realização dos seus actos morais. Além disso, uma pessoa que possui grande integridade moral é uma pessoa cujos actos e comportamentos sociais podem ser previstos ou "determinados" de antemão, porquanto ela mostra ser coerente no seu dizer e fazer. Por outras palavras, ela não prega princípios éticos aos outros, mas vive coerentemente segundo tais princípios. Por isso, pode-se acreditar e confiar firmemente numa tal pessoa. Ela é uma pessoa de palavra e para ela a expressão, "a minha palavra de honra" tem um valor literal. Este aspecto do agente moral é muito relevante para Éticas profissionais, como a Ética médica, a Ética dos enfermeiros, dos sacerdotes, dos juízes, dos professores, Ética da investigação científica, etc. Exemplos de pessoas com elevada integridade moral são Sócrates, Jesus Cristo, Madre Teresa de Calcutá, Mahatma Gandhi, Martin Luther King Júnior, Nelson Mandela.

Ética de virtudes ou carácter moral e Ética de regras e princípios Na antiguidade clássica, os filósofos Sócrates, Platão e Aristóteles conceberam a moral e a Ética como sendo compostas de regras, princípios, teorias, ideais éticos e virtudes morais. Virtudes morais definem-se como boas qualidades do carácter humano. Exemplos de virtudes são: a sabedoria ou o saber prático (grego phronesis, latim prudentia) que não deve ser confundido nem com o saber teórico = sophia, nem com o conhecimento científico (grego epistime, do qual vem a palavra epistemologia). Outras virtudes fundamentais são: coragem, temperança e justiça. Estas quatro virtudes são designadas como virtudes cardeais e naturais. Delas derivam, segundo Aristóteles, outras virtudes como; paciência, humildade, amabilidade, lealdade, honestidade, fidelidade, amizade, solidariedade, etc. Os teólogos Santo Agostinho e São Tomás de Aquino falam também de virtudes teológicas ou sobrenaturais: Fé, Esperança e Caridade (lat. Caritas ou grego Agape = o Amor cristão ou divino que é generoso, espontâneo e desinteressado: 1 Cor.13:1-13; Gal. 5:22). Enquanto as virtudes naturais são adquiridas naturalmente através da educação, da socialização (graças ao exercício ou treino, à imitação e hábitos adquiridos), as virtudes sobrenaturais, ao contrário das naturais, são infundidas na alma dos cristãos, como dons divinos, afirmam santo Agostinho e São Tomás de Aquino.173 Segundo Aristóteles, a sabedoria é a virtude das virtudes, isto é, em linguagem popular ela é a “mãe” de todas as virtudes, no sentido de que sem ela não se podem praticar as

173 Hof, H. (1985).

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outras virtudes. Por exemplo, para que um agente moral possa praticar a justiça ele/ela necessita de sabedoria para poder agir justa e corajosamente no momento adequado. Por exemplo, para que um soldado possa ser corajoso, ele tem de possuir sabedoria. Se um profissional de saúde não possuir uma certa sabedoria ou prudência, não saberá proceder justamente no tratamento de pacientes, não saberá como distribuir ou partilhar equitativamente os recursos à sua disposição, não saberá evitar demasiada simpatia ou demasiada antipatia em relação a um certo doente com determinada doença. Para Aristóteles, viver segundo uma virtude é viver de tal maneira que se possa evitar situações extremas. É a sabedoria que capacita o agente moral – quem pratica uma acção – a “evitar situações extremas”. Por exemplo, um soldado corajoso é um soldado que não é nem medroso nem desafiador do perigo sem a necessária prudência. Ele defende-se ou ataca o inimigo no momento apropriado. Isto equivale, no dizer de Aristóteles, a fazer a coisa certa no momento certo, para o fim adequado, o que pressupõe prudência ou sabedoria prática. Com a seguinte figura podemos ilustrar o que acabamos de dizer:

Figura 5. O "meio áureo”– corajoso: 2 (implica aproximar o centro e evitar os extremos: (cobarde: 1 e imprudente: 3. Tanto cobardia como imprudência são opostas à coragem como virtude moral, segundo Aristóteles).

A diferença entre a Ética de regras e princípios, e a Ética de virtudes é a seguinte: a primeira põe o saber ou conhecimento de regras e princípios no centro da deliberação, reflexão e decisão éticas, enquanto a segunda põe o ser humano (as virtudes pessoais) no centro da deliberação, reflexão e decisão éticas. Para os éticos, filósofos moralistas, intelectuais e racionalistas (que definem o Homem como sendo essencialmente racional) a pergunta fundamental da Ética normativa é: o que devemos saber ou conhecer para podermos praticar o Bem e evitar o Mal? Esta é a pergunta moral socrática por excelência. A resposta dos éticos racionalistas à pergunta socrática é: devemos conhecer as regras e os princípios éticos. Este conhecimento é no parecer deles, a condição necessária e suficiente para a vida moral, o que constitui todo o conteúdo da Ética normativa. Pois como Sócrates, defendem a ideia de que “quem conhece o bem não pode deixar de praticar o bem”. A Ética de virtudes faz também a mesma pergunta socrática, mas dá-lhe uma resposta diferente: além do conhecimento das regras e princípios morais devemos também possuir virtudes, por que elas nos fazem pessoas boas, uma vez que elas são boas qualidades do carácter humano. Nesta resposta está implícita o dictum "árvores boas produzem bons frutos" como ensinamento bíblico (cf. Mt. 12, 33). Um outro ensinamento bíblico relevante neste contexto está expresso nas palavras do apóstolo Paulo: "… não faço o bem que quero, mas o mal que não quero" (Rom.7,19). Estas palavras exprimem o facto que só o conhecimento do bem – através de regras e princípios – não é suficiente para pudermos fazer o bem, como Sócrates erradamente afirma. Precisamos também de virtudes morais que nos motivam a fazer o bem, segundo Aristóteles. Na Epistola aos Romanos (7, 23), o apóstolo S. Paulo esclarece a relação entre o entendimento (intelecto) humano e a inaptidão humana para fazer o Bem. O entendimento humano aceita os deveres impostos pela lei Divina (cf. Rom. 2, 14f), que incorpora princípios e valores éticos, mas o homem pecador não consegue praticar o bem que através do seu intelecto ou entendimento sabe ser obrigatório. O cumprimento da

1 -------------- > 2 <---------------- 3

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lei divina pelo homem exige que este seja transformado ou nasça de novo (da água e do Espírito, S. João 3,5f; Romanos 12, 1f).

As perguntas-testes aplicadas à Ética de virtudes Argumentos a favor da ética de virtudes: Sem virtudes morais o agente moral não será motivado a practicar o bem e evitar o mal. Como Hans Küng afirma, nem a ciência nem a lógica pode demonstrar que o bem é melhor que o mal, que a paz é melhor que a guerra ou que odiar é melhor que amar, principalmente se é vantajoso odiar do que amar.174 Portanto, as virtudes morais são necessárias para completar as normas (regras e princípios) morais. Estas prescrevem o que devemos fazer e as virtudes nos dão a motivação (força e desejo) de cumprir os nossos deveres. Também virtudes como a prudência e compaixão predispõem o agente moral a ver o que é único em cada indivíduo, por exemplo, no tratamento de doentes. Além disso, elas nos permitem ver o que é a real necessidade dos outros e agir adequadamente para lhes prestar a nossa ajuda. Argumentos contra virtudes morais: Uma ética baseada apenas em virtudes pode exibir os seguintes defeitos. Virtudes, como a simpatia e a empatia, podem fazer com que o agente moral se simpatize com certas pessoas e negligencie outras. Isto pode acontecer no tratamento dos doentes ou na ajuda aos necessitados, em geral. Quem for objecto de muita simpatia e/ou empatia pode ser beneficiado em detrimento dos que forem objectos de antipatia ou indiferença. Assim, se estas virtudes não forem completadas com o princípio da justiça – que requer equidade e imparcialidade no tratamento de todos –, nas mesmas circunstâncias, o agente moral pode cometer injustiça. Simpatia e compaixão podem engendrar, no agente moral, o sentimento de fracasso, quanto as pessoas necessitadas são muitas e os recursos, a serem utilizados na ajuda aos necessitados, são escassos. Estas virtudes – simpatia e antipatia – podem tornar as pessoas, com quem simpatizamos, dependentes de nós. E quanto maior for o número de pessoas dependentes de nós, tanto menos podemos fazer por elas, devido à escassez de recursos humanos e materiais. Um outro argumento contra a virtude da simpatia é que ela pode levar o simpatizante a confundir as suas experiências pessoas com as da pessoa em necessidade, o que pode destruir “o valor da relação de ajuda”.175

Uma combinação dos aspectos positivos das várias teorias da Ética normativa Como já vimos, todas as teorias éticas, atrás analisadas, têm vantagens e desvantagens, se tomarmos em conta a complexidade do ser humano e das situações em que tem de agir. Uma só teoria ética é insuficiente como guia para as diversas situações em que somos obrigados a agir moralmente bem, correcto ou justo. É portanto necessário combinar os aspectos positivos ou as vantagens das diversas teorias éticas, se queremos resolver os vários problemas, conflitos e dilemas éticos. A relação entre Ética de regras e princípios e a Ética das virtudes morais, têm sido concebidas diferentemente em distintas épocas da história da filosofia moral. Nos períodos dominados pelo conceito racionalista do Homem (isto é, o ser humano como

174 Küng 1978, p. 539-541. 175 Queiroz, 2004, p.39.

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essencialmente racional), a Ética de virtudes tem sido negligenciada. Hoje temos um renascimento da Ética de virtudes, desde a década de 1980.176 Para evitar uma dicotomia ou um dualismo entre Ética de regras e princípios por um lado, e Ética de virtudes por outro, tendo em conta um conceito integral do Homem, deve-se ver os dois tipos de teorias de Ética normativa como sendo complementares. Nesta perspectiva, as regras e os princípios são necessários, mas não são suficientes para a vida moral. São necessários por que mostram ao ser humano o que ele deve praticar, enquanto as virtudes também são necessárias porquanto dão ao ser humano (ao agente moral) a força ou a motivação necessária para efectuar ou realizar os deveres impostos pela Ética de regras e princípios. Além disso, como já vimos, para Aristóteles uma acção é moralmente boa, se quem a pratica sente alegria quando decide praticá-la, enquanto a pratica e depois de a ter praticado.177 Uma tal alegria só é possível se o agente praticar a accão sem o sentimento de coesão. Para que tal possa acontecer o agente deve ser motivado pela virtude moral. Para aproveitar as vantagens e evitar as desvantagens das diferentes teorias normativas da Ética, devemos combinar aspectos positivos de cada uma delas e abster-nos dos seus aspectos negativos. Pois é logicamente possível ter em conta, em simultâneo, as boas consequências (utilitarismo) de uma acção praticada segundo o nosso dever (deontologia) e agir com uma boa intenção (virtude e carácter moral).178 Em resumo, podemos concluir afirmando que há necessidade de combinar a Ética das regras e princípios, com a Ética das virtudes, por que às vezes sabemos o que devemos fazer mas não o fazemos, porquanto não queremos ou não podemos. Às vezes sabemos que devemos e podemos fazer o bem (por exemplo dar uma esmola) mas não queremos, por nos faltar a compaixão como virtude moral. Portanto, além do conhecimento de regras e princípios éticos (que prescrevem o que devemos fazer) devemos também possuir virtudes morais, por que elas nos fazem pessoas moralmente boas, uma vez que elas são boas qualidades do carácter humano. As virtudes servem de motivação e criam o desejo de praticar o bem pela causa do bem em si.179

A Ética dos cuidados de saúde como exemplo de Ética aplicada A Ética dos cuidados de saúde é uma aplicação da Ética de regras e princípios e Ética de virtudes na área de saúde. Mas a área de saúde tem vários aspectos ou sectores sujeitos à reflexão ética. Assim podemos falar, por exemplo, da Ética do diagnóstico, do tratamento ou da cura e da reabilitação, a Ética profissional dos médicos e a dos enfermeiros, a bioética, a Ética da saúde pública, a Ética de pesquisas no campo da saúde individual e da saúde pública, etc. A bioética impõe deveres e obrigações morais não só a médicos e enfermeiros mas também a outros profissionais de saúde como psicólogos, biólogos e todos quantos usam animais na experimentação e pesquisa. Os aspectos relevantes a serem considerados aqui compreendem a Ética de diagnóstico e de tratamento, a Ética médica e a da enfermagem.180 No que se segue vamos apenas esclarecer alguns aspectos da Ética de saúde – como Ética aplicada – em relação às teorias supra descritas.181

176 Cf. MacIntyre 1984. 177 Lübcke, P. (1983/1988/1994), p. 42. 178 Cf. Barbosa da Silva 2006/2010/2011/2012, p. 164, nota de rodapé 79 (Nystedt). Cf. João Paulo II (1993), p. 127. 179 O ponto de vista aristotélico, segundo Lübcke, ibid., p. 43. 180 Queirós, A. A. (2004). 181 Para um aprofundamento no assunto recomendamos artigos e livros científicos, actuais e relevantes. Veja: Frankena, (Ibid.); Queirós, (Ibid.) Rachels J. (2004).

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Em primeiro lugar, é bom notar que na Ética dos cuidados de saúde predomina hoje a aplicação de seis princípios éticos, principalmente nos Estados Unidos da América do Norte e na Europa Ocidental. Esses princípios são: 1) autonomia, 2) paternalismo genuíno, 3) não-maleficência, 4) justiça, 5) vulnerabilidade e 6) beneficência.1) Quanto ao princípio de autonomia, aplicado aos cuidados de saúde, costuma-se distinguir entre direito a autodomínio ou autodeterminação e direito a codeterminação.182 Autodeterminação dá ao doente o direito de decidir sobre o que lhe diz respeito, o que está nos seus próprios interesses. Daí a necessidade de pedir ao doente o seu consentimento livre e informado. Nos casos em que tanto os profissionais de saúde como o doente têm de participar numa decisão concernente ao doente, este só tem o direito de codeterminação. Por exemplo, se o doente quiser rejeitar um certo tratamento, pode usar o seu direito de autodeterminação para dizer não ao tratamento. Mas se por exemplo, o doente exigir um tratamento muito dispendioso e complicado, então ele/ela tem apenas o direito de codeterminação. Se tanto o doente como os profissionais de saúde respeitarem estes dois tipos de direito, podem então respeitar a autonomia e os interesses básicos um do outro. Esta é uma condição necessária ao bom entendimento e à boa comunicação entre profissional de saúde e pacientes. Ainda sobre o princípio da autonomia convém esclarecer o seguinte. Como já referimos antes, no contexto clínico, o uso de que o doente faz da sua autonomia – autodeterminação – é qualificado como consentimento informado. Isto requer que o doente seja bem informado e seja competente, isto é, esteja em condições de usar as suas capacidades cognitivas, emocionais e outras faculdades na interpretação de informação recebida e na tomada de decisão (por exemplo, se deve ou não submeter-se a um determinado tratamento). A palavra “paternalismo” vem do grego patér (que corresponde ao latim pater) que significa pai. Segundo o juramento médico, na sua formulação inicial (Hipócrates 400 A.C), o médico deve tratar bem o seu paciente, assim como um bom pai trata bem os seus filhos. Quanto ao princípio de paternalismo, costuma-se distinguir entre duas formas de paternalismo. Hoje em dia, fala-se do paternalismo genuíno ou autêntico quanto os profissionais dos cuidados de saúde tratam bem os doentes, de acordo com os melhores interesses destes. Quando isto não acontece, isto é, quando os profissionais dos cuidados de saúde pretendem saber o que está nos melhores interesses dos doentes, sem realmente saberem, estamos na presença de um paternalismo não genuíno ou inautêntico. Em termos de princípios básicos da Ética dos cuidados de saúde, o paternalismo autêntico é definido aqui como se segue: Uma accão está de acordo com o paternalismo autêntico, se o seu propósito principal é de promover os melhores interesses do paciente, e para atingir este propósito a accão deve ser executada de acordo com os princípios de dignidade e integridade da pessoa humana, ou de acordo com estes princípios e o princípio de autonomia. O princípio do paternalismo genuíno pode ser visto como exprimindo o mesmo ideal ético que o princípio da beneficência e a virtude da benevolência.183 A relação entre os princípios de humanidade ou dignidade, autonomia e paternalismo autêntico pode der ilustrada como se segue.

182 Tranøy, K. E. (1995). p. 38f. 183 Cf. Beauchamp & Childress (2009). Aqui, falam as enfermeiras, na Noruega no princípio da compaixão (barmhjertighet).

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Figura 6. Ilustra a relação entre os conceitos de dignidade/integridade, autonomia e paternalismo. As áreas relevantes são as em branco (1.2.4 e 5).

A área 1 na figura 6 contém classes de acção que podem ser defendidas apenas com apelo ao princípio de dignidade ou integridade da pessoa humana. Área 2 contém classes de acção que podem ser defendidas com apelo tanto ao princípio de autonomia como ao princípio de integridade ou dignidade da pessoa humana. Área 4 contém classes de acção que podem ser defendidas com apelo tanto ao princípio da dignidade humana como do paternalismo forte. Por exemplo um profissional dos serviços de saúde segue o paternalismo forte quando age de tal maneira que proteja os interesses do paciente, obedecendo o princípio da dignidade ou integridade, mas não o de autonomia, caso o paciente não for autónomo, ou se estiver num estado em que não pode agir livremente, como em coma ou se estiver anestesiado.184 O paternalismo fraco toma em consideração os princípios de dignidade ou integridade, de autonomia e de paternalismo. Aqui consideramos tanto o paternalismo forte como o fraco, como formas de paternalismo autêntico, por respeitarem a dignidade ou integridade humana. Área 5 contém classes de acção que podem ser defendidas com apelo tanto ao princípio da dignidade e integridade como aos princípios da autonomia e do paternalismo fraco. Acções pertencentes às áreas 3, 6 e 7 são logicamente incompatíveis com o princípio da dignidade ou integridade humana. Portanto são inaceitáveis. Acções que pertencem às áreas 6 e 7, se foram praticadas só podem ser defendidas com apelo ao paternalismo inautêntico.185 Acções dos profissionais de saúde que pertencem à área 3 pertencem ao paternalismo inautêntico, quando o paciente exerce a sua autonomia contra a sua própria dignidade e integridade, portanto contra os seus melhores interesses. A relação entre o princípio de autonomia e os de dignidade e integridade pode ser ilustrada como se segue. Dignidade/integridade

Autonomia

184 Veja a área 4 na figura 6. A área 6 na figura ilustra o caso em que o paciente é autónomo (livre) mas em que os profissionais dos cuidados de saúde não toma em consideração a dignidade ou integridade do paciente. Neste caso temos também um exemplo de paternalismo inautêntico. 185 O paternalismo inautêntico representa acções que os profissionais dos cuidados de saúde podem practicar com pretensão de serem de acordo com os melhores interesses do paciente, mas não são, por não respeitarem a dignidade e integridade, ou estes princípios em combinação com o princípio de autonomia do paciente.

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Figura 7. Mostra que a dignidade e integridade são constantes, enquanto a autonomia pode aumentar ou diminuir, consoante as condições em que um indivíduo humano pode encontrar-se.186

Quando os princípios de dignidade e integridade colidem com o de autonomia deve-se dar prioridade aos primeiros, pelo menos por três razões, principalmente no campo dos cuidados de saúde. Primeiro, a autonomia pode variar de situação para situação, por exemplo, sob a influência de drogas, anestesia, cansaço, doenças e velhice. Segundo, nem sempre uma pessoa usa a sua autonomia ou liberdade para defender e promover os seus melhores interesses. E terceiro, quando uma pessoa procura a ajuda dos profissionais dos cuidados de saúde, ela confia nesses profissionais, isto é, que os mesmos, sempre, hão-de de respeitar o paciente e agir de acordo com os melhores interesses deste. Isto implica que o paciente, voluntária ou involuntariamente, aceitou a autoridade e os bons conhecimentos dos profissionais dos cuidados de saúde, no concernente às necessidades dele. Nos países nórdicos usam-se outros suplementares princípios básicos, como os princípios: de humanidade, dignidade, integridade, solidariedade e necessidade, principalmente na justa distribuição dos recursos relevantes à recuperação da saúde.187 Os princípios aqui mencionados são reforçados com os direitos humanos, o Código de Nuremberga, a Declaração Médica de Helsínquia e outros instrumentos jurídicos e éticos relevantes aos cuidados de saúde dos vários países.188 Os princípios de dignidade e integridade, combinados com os princípios de necessidade e vulnerabilidade afirmam que os doentes mais vulneráveis e com mais necessidade devem obter mais cuidados. O princípio de justiça serve para garantir uma distribuição equitativa dos recursos necessários à recuperação da saúde durante o tratamento médico. O princípio de não-maleficência, que é oposto do princípio da beneficência, prescreve que os profissionais de saúde, acima de tudo, não devem causar dano algum aos doentes (em latim: primum non nocere). Em segundo lugar, para aplicação destes princípios éticos em situações concretas, é necessário interpretá-los, usando as teorias da Ética normativa já descritas. Muitos estudiosos da Ética dos cuidados de saúde, como Edmund Pellegrino189, Beauchamp & Childress190, Katie Eriksson191 enfatizam a necessidade de ver as quatro teorias da Ética normativa como complementares e não como concorrentes. Pois, como já indicamos, nenhuma dessas teorias é completa em si. Cada teoria tem aspectos positivos e aspectos negativos. Por isso, pode-se combinar aspectos positivos delas todas, como já explicamos. Quando devemos fazer esta combinação, determina-se na situação em que tenhamos a necessidade de uma combinação, isto é, quando uma teoria só for insuficiente para resolver problemas éticos ou morais. Isto requer que tenhamos um certo conhecimento da Ética e um certo treino no modo de raciocino ético. É também preciso conhecer os factos relevantes, as leis do país que regula os cuidados médicos, sem perder de vista A Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Declaração de Helsínquia.

Questões para reflexão

186 Para mais pormenores sobre esta figura, veja Barbosa da Silva, 2009, p. 36. 187 Em caso se conflicto entre estes princípios, o princípio de necessidade deve ter prioridade. 188 Ibid., p.113 (Anexos). 189 Pellegrino, D.P. (1996). 190 Beauchamp, T. L. & Childress, J. F. (2009) distinguem entre “justified” e “non-justified paternalism”. Correspondem ao genuíno e não genuíno paternalismo, respectivamente. 191 Eriksson, E. (2003), p. 21f.

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Qual é diferença entre Ética e moral? Qual é a diferença entre o egoísmo ético e utilitarismo? Qual é o argumento clássico em favor do egoísmo ético? Qual é o argumento clássico contra o egoísmo ético? Qual é a relação entre egoísmo psicológico e egoísmo ético? Seria possível viver numa sociedade onde todos os indivíduos resolvessem ser egoístas? Justifique a sua resposta. Qual é a crítica principal contra o utilitarismo? Qual é a crítica principal contra a Ética deontológica? Porque é que é bom falar a verdade e cumprir ou seguir a justiça sem olhar a consequências? Tente dar uma definição dos conceitos de verdade, justiça e dever ou obrigação moral. Que relação existe entre o domínio da filosofia moral e o da filosofia sociopolítica? Qual é a diferença e a relação entre Ética normativa teórica e Ética normativa aplicada?

16. Ética analítica, Meta-Ética ou metafísica da Ética Ética analítica, meta-ética ou metafísica da Ética, corresponde à área da filosofia moral que faz um estudo analítico e muito crítico dos conceitos fundamentais da Ética e das várias teorias da Ética normativa. A meta-Ética faz também uma análise crítica dos conceitos éticos em relação à realidade externa ao ser humano. A meta-ética põe os seguintes tipos de questões: 1). O que significam os termos fundamentais da Ética, tais como o "bem" e o "mal", o "justo" e "injusto", o "lícito" e o "ilícito", o "desejável" e o "indesejável", etc.? (Esta é uma questão semântica, isto é, relacionada com o aspecto semântico ou linguístico da meta-ética). 2). Existe alguma propriedade ou algum fenómeno – exterior ao ser humano – a que se referem, ontologicamente, os termos éticos antes mencionados? Esta é uma questão ontológica, isto é, que diz respeito à existência objectiva de valores e normas morais192 3). Como determinar ou saber se os juízos morais são verdadeiros ou falsos (uma questão metodológica) e como justificá-los? (Esta uma questão epistemológica).193 4). Será possível argumentar objectiva e racionalmente acerca dos juízos de valores, dos conceitos e das teorias da Ética normativa? (o problema da razoabilidade da Ética)

192 Uma questão respeitante à essência e real existência das coisas ou entes. Por exemplo, a ontologia pergunta: Quando dizemos, por exemplo, que a montanha existe, a dor existe, o número 5 existe e pensamento existe, os valores morais existem, usamos o verbo “existir” no mesmo sentido, isto é, com o mesmo significado? 193 A epistemologia ou gnosiologia é o domínio da filosofia que estuda o conhecimento (do grego epistime). Ela responde às seguintes perguntas: O que é o conhecimento? Qual a diferença entre fé e conhecimento? Qual é diferença entre saber e conhecer? Quantas formas de conhecimento existem? Qual é o limite do conhecimento humano, isto é, o que podemos conhecer? Por exemplo, podemos conhecer a existência de Deus e o pensamento dele?

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1). O problema meta-ético semântico O estudo meta-ético semântico (ou linguístico) consiste no estudo linguístico dos significados dos termos éticos. O problema meta-ético semântico põe a pergunta: qual é o significado e referência dos termos fundamentais da Ética? Para ilustrar o problema semântico ou linguístico da meta-ética, vamos partir do termo "bom", alternativa "boa" (a forma feminina de bom). Quanto a este termo podemos distinguir, pelo menos, dois sentidos diferentes em que podem ser usados: sentido não ético e sentido ético. Em relação ao primeiro sentido, podemos falar de, por exemplo, um aparelho bom, de uma faca boa. Aqui o termo "bom" e o termo "boa" qualificam algo como sendo adequado como meio para atingir um fim. Quando este meio deixa de funcionar bem, dizemos que não está bom ou que está estragado, o que equivale a dizer que perdeu o seu valor instrumental. Uma boa faca – uma que corta bem – é boa no sentido não ético, mas pode ser má no sentido ético, se for usada para ferir ou matar alguém. O valor instrumental é um valor adquirido e não intrínseco ou inerente. É um valor que um determinado meio adquire em relação ao fim para o qual foi concebido como meio. Vejamos, um certo remédio tem um valor instrumental em relação à sua potencialidade de restabelecer a saúde, isto é, se consegue combater uma doença, por exemplo, se consegue atenuar mal-estar. À luz do acima exposto, podemos concluir que enquanto a saúde (também a vida, a liberdade, a segurança, a amizade, a felicidade, etc.) tem um valor intrínseco, isto é são coisas moralmente boas em si, o dinheiro, a comida, casas, carros e vários aparelhos que usamos diariamente em situações diferentes para atingirmos certos fins, têm apenas um valor instrumental ou extrínseco. Isto é, não são coisas moralmente boas em si. Tudo o que tem um valor intrínseco pode servir de meta, fim ou propósito para as nossas acções, enquanto tudo que tem apenas um valor instrumental serve apenas como meio para certos fins que desejamos ou devemos atingir ou realizar. Por exemplo, lutamos pela vida, pela liberdade, pela segurança e pelos nossos direitos. Consideramos a vida, a liberdade, etc., como tendo um valor intrínseco, um fim em si, pelo qual devemos lutar. Os meios que usamos nesta luta têm um valor instrumental ou extrínseco. Devemos contudo, observar que há certas coisas, instrumentos ou fenómenos que têm tanto um valor intrínseco como um extrínseco ou instrumental, dependendo do ponto de vista sob o qual forem avaliados ou considerados. A liberdade de expressão, por exemplo, tem em si um valor intrínseco, mas em relação à paz, à segurança e ao bem-estar individual e colectivo pode funcionar como meio e não como fim em si. A paz e a segurança têm um valor intrínseco, mas em relação à vida humana e à sobrevivência da humanidade funcionam como meio e não como fins em si mesmos. Por outras palavras, a paz e a segurança são feitas para o homem e não o contrário. Portanto, podemos falar aqui de uma hierarquia de valores intrínsecos.194 É também importante notar que o problema do valor intrínseco e do valor extrínseco é controverso. Por exemplo, os filósofos hedonistas (do grego hedonê = prazer) afirmam que só o prazer tem valor intrínseco, tudo mais tem valor instrumental. Para o racionalista Platão só a sabedoria, o conhecimento e o bem (a ideia do Bem) têm supremo valor intrínseco, enquanto para teólogos e filósofos como Santo Agostinho e São Tomás de

194 Exemplo de uma hierarquia de meios e fins é o seguinte: estudamos (um meio) para ter boas notas nos exames (um fim); os exames são por sua vez um meio para obtermos um bom trabalho (um fim); um bom trabalho por sua vez um meio para ganhar dinheiro (um fim), que por sua vez é um meio para conseguir viver bem (um fim).

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Aquino só a beatitude – que é uma característica divina – tem supremo valor moral intrínseco, etc.

2). O problema meta-ético ontológico O estudo meta-ético ontológico, como parte da meta-Ética, pretende responder às seguintes perguntas: existe tradução real para os termos éticos como “bem” e “mal”, “justo” e injusto”?195 Ou melhor: referem estes termos, de modo análogo que os termos empíricos referem a fenómenos reais, por exemplo, a palavra ou o termo “livro” refere-se à qualquer livro, a palavra “pedra” refere-se a pedras, a palavra “árvore” refere-se a árvores. Por outras palavras, ao falarmos de livro, de pedra e de árvore, etc., referimos a certas coisas ou a certos fenómenos na realidade, isto é, no mundo fora do nosso pensamento, da nossa percepção e da língua que usamos.196 Acontece o mesmo quando falamos do “bem”, do “bom”, do “justo”, do “mal”, do “injusto” ou “ilícito”? O problema meta-ética ontológico está relacionado com a questão: existe alguma característica ou algum fenómeno a que se referem ontologicamente os termos éticos antes mencionados? Esta pergunta reflecte a natureza controversa dos conceitos éticos. Alguns filósofos afirmam que os termos éticos ou morais como “o bem” e “o mal”, “o justo” e “o injusto” referem-se apenas às emoções, preferências, experiências subjectivas e atitudes humanas e a nada mais.197 Com isto querem dizer que a moral e a Ética não têm nada a ver com a realidade externa e objectiva ao ser humano. Por outras palavras, afirmam que os valores e as normas éticas não são inerentes à realidade exterior ao ser humano. Pelo contrário, a moral ou Ética é vista por esses filósofos como algo que existe, apenas porque o Homem existe e por assim dizer, é uma "invenção", "criação" ou uma experiencia puramente subjectiva humana e não uma descoberta sua de algo objectivamente existente na realidade. Isto equivale a dizer que se todos os seres humanos morrerem, desaparecerá a moral e a Ética sobre a face da Terra. Filósofos que defendem este ponto de vista quanto à natureza dos valores morais, são por exemplo, existencialistas ateístas (como J. P. Sartre e Albert Camus, Ayer e Marx), empírico-positivistas, marxistas, behavioristas, naturalistas e materialistas. Todos eles são niilistas. Por niilista entende-se “[… ] quem não acredita que existem valores, sejam eles morais, epistemológicos ou existenciais”.198 A palavra “niilista” vem do latim nihil que significa nada. Portanto, os niilistas afirmam que termos éticos ou morais referem-se a nada, o que quer dizer que são termos puramente subjectivas. Esta posição meta-ética ontológica, é tanto niilista como, é subjectivista. Filósofos em oposição ao niilismo ético defendem uma teoria ontológico-objectivista dos valores morais, ao afirmarem que existe algo real (isto é inerente à realidade externa) a que os termos éticos se referem e descrevem. Uns pensam que esse algo existe na própria estrutura da realidade como característica imanente, enquanto outros pensam que esse algo existe numa realidade transcendente, por exemplo, Deus. Para eles os valores e as normas morais ou éticos são descobertos ou revelados e não inventados pelo ser humano. O problema ontológico está intimamente ligado ao problema epistemológico, como vamos ver na alínea que se segue. Este problema só pode ser resolvido depois do

195 O adjectivo ”ontológico” vem de ontologia que é a parte da metafísica que estudo a existência e essência das coisas. (Cf. Mora, 1991, p. 289). 196 Funcionam os termos éticos como “bem”, “mal”, “responsabilidade”, “dever” “obrigação” da mesma maneira que, por exemplo, termos empíricos? Ou são termos éticos puramente subjectivos como, por exemplo, o gosto que cada um tem do café em açúcar, da aguardente, do vinho, do alho, etc? 197 Veja Ayer, A. J. (1949), p. 171-184; Stevensson, C. L. (1950), p. 291-304. 198 Veja o n.º 385 do jornal Terra Nova Junho, 2009.

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escrutino da relação entre a fé religiosa e a razão humana. Este assunto pertence à filosofia da religião e à moral teológica.

A relação entre o problema meta-ético semântico e o problema meta-ético ontológico Para precisar o que se entende por referência ontológica de termos éticos e assim mostrar a relação entre o problema meta-ético semântico e o problema meta-ético ontológico, é conveniente fazer as seguintes distinções ilustradas pela figura 7. 1 Os conceitos do bom e do justo Os termos “bom” e “justo” 2 3 Os fenómenos do bom e do justo na

realidade Figura 8. Triângulo semântico que ilustra a relação entre a língua e a realidade que a língua descreve.

A diferença entre os termos “bom” e “justo”, os conceitos de bom e justos e os fenómenos do bom e do justo é o seguinte. Os termos são escritos (b+o+m e j+u+s+t+o), por exemplo num papel e são pronunciados pela boca. Os conceitos, que são os significados dos termos, estão, por assim dizer, na nossa mente, isto é, o que pensamos quando ouvimos alguém pronunciar os referidos termos ou quando os vimos escritos. O bom e o justo como fenómenos (assim como livros, casas, arvores etc., são fenómenos) estão fora tanto da boca como da mente, isto é, existem na realidade externa ao ser humano. Quando se fala das referências (ontológicas) dos termos, sejam estes éticos ou empíricos, a gente pensa nos fenómenos que são descritos pelos termos e não nos termos. Enquanto os termos podem ser escritos diferentemente em línguas diferentes, os conceitos e fenómenos (as referências dos termos) são os mesmos. Por exemplo, o termo “bom”, em português, chama-se “good” em inglês. Mas o conceito do bom e do “good” é o mesmo. Também o fenómeno a que estes termos se referem é o mesmo. Por exemplo N. Mandela é um bom homem (inglês: N. Mandela is a good person).

3). O problema meta-ético epistemológico O estudo meta-ético epistemológico é o estudo que procura respostas às perguntas: como adquirimos conhecimento no campo da Ética, por exemplo, do bem e do mal? Pode o conhecimento dos vários aspectos da Ética (por exemplo, é justo ajudar uma pessoa em necessidade) ser um conhecimento verdadeiro, assim como o conhecimento de factos através da observação e experimentação na pesquisa científica? Pode-se argumentar, através do exclusivo uso da razão, sobre assuntos éticos (conflitos éticos, problemas éticas, dilemas éticos, etc.)? O problema meta-ético epistemológico diz respeito também a como determinar ou saber se os juízos morais são verdadeiros ou falsos e como justificá-los? Filósofos niilistas defendem a teoria meta-ética designada por teoria emotivista ou subjectivista e não-cognitivista ou não-objectivista (cf. J P Sartre, Afred Ayer, Axel Hägerström, C. L. Stevesson, etc.). Para eles, asserções ou afirmações sobre valores e normas morais não

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têm um conteúdo cognitivo, isto é, não exprimem conhecimento algum. Exprimem, antes, emoções, atitudes e preferências individuais ou colectivas, segundo esta corrente interpretativa da Ética. São, por exemplo, para Sartre e Camus puramente subjectivas. Há, porém, filósofos que defendem a teoria cognitiva dos valores morais. Para eles os valores morais existem na realidade, o que implica que os termos éticos referem a, e descrevem algo real e objectivo. Também afirmam que termos éticos têm um conteúdo cognitivo, isto é, exprimem um conhecimento válido (com o mesmo grau de validade que o conhecimento científico). Isto é, para os objectivistas, o conhecimento ético adquire-se, verifica-se e justifica-se de maneira análoga ao conhecimento científico. Existem objectivistas naturalistas, intuicionistas e transcendentalistas. Os objectivistas naturalistas afirmam que termos morais referem-se a características naturais que podem ser conhecidas como qualquer outra propriedade natural. Para os objectivistas intuicionistas, os termos éticos ou morais referem-se a propriedades reais, mas elas são não-empíricas e são conhecidas apenas pela intuição, de modo análogo que se tem o conhecimento números, através da intuição no campo da matemática (cf. G. Moore). Para os evolucionistas e naturalistas (mas não para emergentistas199 à la Karl Popper) o que é bom para o Homem é o que contribui para a sua sobrevivência e evolução. Esta é uma teoria naturalista, evolucionista e pragmatista da Meta-Ética. Para o pragmatista o verdadeiro, o justo e o lícito significa o útil. Para um intuicionista como George Moore, é através da faculdade de intuição que sabemos se os juízos de valores são falsos ou verdadeiros, se são justificáveis (se a sua validade por ser demonstrada) ou não.200 Uma crítica contra o intuicionismo ético é que a faculdade de intuição parece funcionar diferentemente de indivíduo para indivíduo. Por isso, não se pode contar com um consenso no campo dos juízos morais ou éticos, se o único meio de conhecimento ético for a intuição. Esta presuntiva deficiência cognitiva dificulta ou impossibilita tanto a justificação dos juízos morais ou éticos como uma argumentação objectiva, razoável e sustentável em matéria ética. Uma crítica contra a teoria meta-ética evolucionista e pragmatista é que ela reduz (ontologicamente) os termos éticos a termos evolucionistas e naturais. Portanto, esta teoria não pode ser aceite porque não faz a distinção entre facto e valor. Factos pertencem ao domínio das ciências naturais, enquanto valores pertencem às ciências humanas. Os que defendem o ponto de vista "transcendentalista" definem o Bem como o que está de acordo com a vontade de Deus e definem o mal como o que está em desacordo com a vontade de Deus. Para os teólogos clássicos como Santo Agostinho, São Tomás, Luther e Calvino, o ser humano conhece a diferença entre o bem e mal, o justo e o injusto através da razão. Mas este conhecimento aperfeiçoa-se através da revelação divina contida na Bíblia Sagrada. E o que é revelado aceita-se apenas pela fé. Para alguns transcendentalistas – os designados por fundamentalistas (aqui estão incluídos alguns crentes das diversas religiões) o ser humano conhece o bem e o mal só através da revelação divina (cf. A Encíclica Fé e Razão de João Paulo II, Cap. IV201). Exemplos destes éticos são: K. Barth, Axel Valen-Sendstad e muitos evangélicos. Uma crítica contra esta posição ou teoria da meta-ética é que há vários conceitos de revelação consoante os conceitos de Deus e revelação existentes nas distintas religiões.

199 “La emergencia o surgimiento hace referencia a aquellas propiedades o procesos de un sistema no reducibles a las propiedades o procesos de sus partes constituyentes. El concepto de emergencia se relaciona estrechamente con los conceptos de autoorganización y superveniencia y se define en oposición a los conceptos de reduccionismo y dualismo.” (http://es.wikipedia.org/wiki/Emergencia_ (filosof%C3%ADa). 200 É relevante notar aqui que a teoria epistemológica intuicionista é também usada na filosofia da matemática. (cf. Edgington, D. (1995), p.415f). 201 Cf. A Encíclica Fé e Razão de João Paulo II, Cap. IV.

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Além disso, numa mesma religião diferem os conceitos e as interpretações do fenómeno da revelação, dependendo das várias correntes que proclamam exegeses diferenciadas. A diferença existe tanto entre os teólogos de uma certa época como os de épocas diferentes, quer dentro de uma mesma religião, quer dentro de religiões diferentes. Uma outra objecção à teoria transcendente da meta-ética é que ela pressupõe a crença em Deus, o que impossibilita um diálogo sobre temas éticos entre crentes e não crentes. Contudo, segundo Agostinho e São Tomás de Aquino, a Bíblia ensina que há uma Ética natural que não pressupõe a crença religiosa, isto é, que pode ser conhecida e usada por todos os seres humanos (cf. Rom. 2.14ff). Mas estes teólogos ensinam que a Ética natural deve ser aperfeiçoada e completada pela Ética sobrenatural revelada na Bíblia, visto que a razão humana, por causa do pecado original, não pode conhecer bem a lei divina reflectida nas normas da moral ou lei natural que é uma forma imperfeita da lei divina ou eterna.

4). Problema metodológico meta-ético Este problema pode ser formulado como: será possível argumentar racionalmente acerca dos juízos de valores e das teorias da Ética normativa? Esta é uma questão metodológica. Ao nível da vida quotidiana discutimos e argumentamos em termos normativos diariamente. Fazemos juízos de valores, aprovamos e reprovamos comportamentos, atitudes, acções e omissões nossos e os dos nossos próximos. Também fazemos juízos de valores quando aconselhamos alguém e quando condenamos ou declaramos certas pessoas como inocentes. Argumentar em matéria ética segue parcialmente outras regras do que argumentar sobre assuntos científicos baseados em factos, como na ciência física, química, botânica, etc. Pois, a vida humana e o fenómeno social – sobre os quais fazemos juízos de valores, são muito mais complexos que factos brutos da natureza, que podem ser quantitativa e objectivamente estudados pelas ciências naturais. A nível histórico, todos os filósofos, políticos e teólogos têm argumentado, através dos tempos, sobre a Ética e a vida moral. Eles são a prova suficiente de que se pode argumentar global e racionalmente acerca dos juízos e valores morais, tanto teorética como praticamente. Por global entende-se aqui internacional e inter- ou transcultural. Convém sublinhar que sem juízos de valores e sem argumentação ética é praticamente impossível viver numa sociedade civilizada, onde reine a paz, a segurança e a interacção social necessária e frutífera para uma vida digna e humana. Aqui é relevante repetir as palavras do filósofo Hobbes, que afirma, que sem Ética social (ou uma autoridade política) que impõe direitos e deveres aos cidadãos a vida seria desagradável, brutal e curta.202

O relativismo meta-ético contra o relativismo normativo ético

À luz da análise feita na secção 3) acima, do problema meta-ético ontológico, pode-se definir o relativismo meta-ético como se segue: “Geralmente, declaramos ‘que niilista é quem não acredita que existem valores, sejam eles morais, epistemológicos ou existenciais”.203 Nota bene, o niilista não afirma que ninguém acredita na existência de valores ou pronuncia juízos de valor. O que afirma é que no mundo, na realidade ou no universo, fora do pensamento humano, não existe valores imutáveis, absolutos e

202 Cf. Hobbes, T. Leviathan segundo: Edwards, A. (2002). Hobbes, T. (1998 [1642]). 203 Citado no n.º 385 do jornal Terra Nova (Junho, 2009).

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universais, tais como a verdade, o bem e o mal, o justo e o injusto, o certo e o errado, o bonito e o feio, etc., objectivamente falando. Do ponto de vista do relativismo meta-ético, se por exemplo, o João disser que “N. Mandela é um homem bom”, o João não contradiz ao Jaime, se este afirmar o contrário, isto é, que: “N. Mandela é um homem mau e não bom”. O João também não contradiz à Maria, se esta afirmar que, para certas pessoas, e em situações diferentes, “N. Mandela pode mostrar-se ser bom, ser mau ou indiferente, isto é, nem bom nem mau”. O niilista classifica estes três juízos de valor como sendo subjectivos e relativos, isto é, variando de indivíduo para indivíduo. O niilista justifica esta variação, afirmando que não existe nenhuma propriedade objectiva, objectivamente mensurável e inerente à pessoa de N. Mandela, capaz de confirmar (verificar) ou desconfirmar (falsificar) o que o João, o Jaime e a Maria afirmam. Sendo assim, juízos de valores – assevera o niilista – são completamente diferentes de juízos empíricos ou factuais, como as proposições: “Mandela tem pelo menos 1,65m de altura” e ”Mandela foi presidente da África do Sul”. Estas afirmações podem ser confirmadas (verificadas) ou desconfirmadas (falsificadas) com referência a factos, independentes das opiniões das pessoas que as fazem.

Duas formas de relativismo meta-ético contra o relativismo normativo ético O relativismo meta-ético, fundamentado no niilismo, chama-se relativismo axiológico-ontológico. A axiologia é o tratado ou estudo de valores, enquanto a ontologia – a parte mais abstracta da filosofia – estuda a realidade como tal, a sua existência, características fundamentais e modalidades. Sendo a Ética ou filosofia moral parte integral da axiologia, é relevante distinguirmos aqui entre duas formas de relativismo meta-ético: Primeiro, existe o relativismo meta-ético ontológico que pode ser definido em termos niilista, como supra apresentado. Esta forma de relativismo meta-ético afirma que valores e normas morais ou éticos não existem na realidade exterior ao ser humano mas que são criados pelos seres humanos e podem ser diferentes de cultura para cultura. Uma segunda forma de relativismo meta-ético chama-se relativismo metodológico que pode ser definido como: “(…) no que se refere a juízos éticos ou de valor que tenham carácter básico, não há meio ou método racional objectivamente válido, de preferir este àquele; consequentemente, dois juízos de valor básicos conflituantes podem ser igualmente válidos”.204 As duas formas de relativismo meta-ético devem ser distinguidas do relativismo normativo ético definido como: “o que é bom ou justo para um indivíduo ou sociedade não o é [nem pode, nem deve ser] para outros indivíduos ou [outras] sociedades.”205 Como já apontámos, este tipo de relativismo nega a existência de valores éticos e normas éticas eternas, invioláveis, imutáveis e universais, isto é, com validade global e transcultural, o que equivaleria a dizer que, por exemplo, as normas exprimidas pelos Dez Mandamentos e as implícitas na Declaração Universal dos Direitos do Homem, não são normativamente aplicáveis a todos os indivíduos humanos, independentemente de raça,

204 Frankena, K. W. (1973), p. 116f. Temos também o relativismo descritivo ético que afirma “que são diferentes e mesmo conflituantes as crenças éticas básicas e os juízos de valor básicos sancionados por diferentes sociedades ou culturas e diferentes pessoas” (Ibid.). Esta forma de relativismo ético é equivalente ao conceito de relativismo cultural e exprime uma verdade sociológica (veja a secção: normas universais e relativismo ético. 205 Ibid.

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religião, cultura, ideologia política, sexo, posição social, económica, etc. Portanto, segundo o relativismo normativo ético, seria um acto de imperialismo e etnocentrismo aplicar normas morais, pertencentes a uma determinada cultura, a indivíduos pertencentes a culturas diferentes. O relativismo ético normativo não deve ser confundido com o relativismo descritivo ético. Como já vimos, esta forma de ética descritiva, que é parte integral do relativismo cultural, descreve como os indivíduos, grupos e povos do mundo, de facto, se comportam moralmente nos seus respectivos contextos histórico-culturais, isto é, de acordo com os seus próprios valores éticos e normas éticas ou morais.206 Infelizmente, o mundo contemporâneo está a ser impregnado por estas quatro formas diferentes de relativismo ético, graças à tão chamada pós-modernidade ou pós-modernismo. Estes termos podem designar tanto “depois do modernismo” e “contra ou para além do modernismo”. O modernismo ou a época moderna começou no século XVI com o pensamento do filósofo francês, René Descartes. Geralmente falando, o pós-modernismo – como corrente filosófico – começou a existir na Europa depois da Segunda Guerra Mundial, baseado nos pensamentos de filósofos niilistas e ateístas como Friedrich Nietzsche, Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Jean François Leotard e Jacques Derrida. Todos eles estavam, mais ou menos, interessados em fornecer aos europeus uma resposta confortante para a sua perda do sentido da vida e do sofrimento, depois da horrenda catástrofe que foi a Segunda Guerra Mundial. O “conforto” que Sartre oferece à humanidade é: Deus não existe e valores básicos não existem ontologicamente objectivo (quem os criariam, se Deus não existe?) Pergunta Sartre.) (cf. a análise do conceito do problema “meta-ético ontológico” acima). Por isso, continua Sartre, o Homem está abandonado, a vida não tem um sentido ontologicamente objectivo, é absurdo viver, porquanto a vida e o sofrimento não têm um valor e um sentido objectivos e o homem está necessariamente condenado a ser livre, autónomo.207 De todas as formas de relativismo ético a mais prejudicial para a ética social é o relativismo normativo ético, se for verdadeiro.

Algumas consequências negativas do relativismo normativo ético

Uma consequência da cosmovisão ateísta, niilista e relativista é: ninguém tem o direito ou dever de criticar o próximo, cada um deve viver a sua vida como bem entender e respeitar o modo como os outros vivem a sua. A tolerância e o respeito pela autonomia individual são os únicos valores supremos e indiscutíveis, defendidos pela filosofia moral ou (Ética) pós-moderna, baseada, sobretudo, no relativismo normativo ético. O indivíduo que tenta viver segundo o relativismo normativo ético, procura sempre defender os seus interesses, em termos de direitos e não de deveres. Esta atitude individualista tem a tendência de ser egoísta. Na Europa e a nalguns estados nos E.U.A., a liberdade (autonomia) individual tornou-se o valor mais fundamental e normativo da política, da Ética social, da Ética médica e dos cuidados de saúde. Ao nível individual e na sua forma extrema, muitos reivindicam o direito ao suicídio assistido; à eutanásia e à distanásia. Pois, segundo a Ética posmoderna ninguém tem o direito de reprovar a escolha dos outros. A palavra “eutanásia (uma palavra de origem grega) significa ‘morte boa, morte suave’. ‘Na linguagem médica indicou sempre a assistência afável que o médico prestava ao

206 Como já notámos disciplinas que fazem um estudo descritivo da Ética descritiva são, por exemplo, a psicologia, a sociologia, a antropologia, a história das religiões e a fenomenologia. 207 Veja Sartre, J.-P. (1946).

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doente moribundo, para lhe aliviar o sofrimento e lhe diminuir a dor e a angústia’ “.208 Hoje fala-se da eutanásia activa e da passiva. A activa consiste em assistir ou ajudar uma pessoa a morrer. Como é difícil na prática distinguir uma acção activa duma passiva, definimos aqui a eutanásia, no sentido lato, como ”uma acção ou omissão que por sua natureza ou nas intenções, provoca a morte a fim de eliminar toda a dor”.209 Nesta definição o termo “acção” implica “eutanásia activa”, enquanto o termo “omissão” implica eutanásia passiva. Por outras palavras, esta definição engloba tanto a eutanásia activa como a passiva. O contrário da eutanásia é a distanásia. A palavra “distanásia” – também de origem grega – significa o prolongamento indefinido da vida humana com meios médico-tecnológicos e terapêuticos a qualquer custo. A justificação do suicídio assistido, da eutanásia e da distanásia, baseia-se na avaliação subjectiva que um indivíduo faz da sua vida como sendo pertencente só a ele/ela, que tem o direito e a liberdade soberanos de dispor da sua vida como quiser, portanto, de prolongá-la artificialmente, ou terminá-la quando sente que a sua vida perdeu o seu sentido ou que a qualidade da sua vida é precária. Mas se sente que a vida tem sentido e uma boa qualidade, então luta para o seu prolongamento a todo o custo. Hoje existe uma clínica em Zurique (Suíça) onde indivíduos – de toda a Europa – podem submeter-se à eutanásia voluntária.210 Esta cultura da morte é um sinal, uma expressão ou o resultado daquilo que o distinto psiquiatra existencialista Victor Frankl designa por “neurose noogénica” (do grego nous = sentido, razão e espírito + génesis = origem, causa). Frankl usa este termo na sua logoterapia para descrever a vida do “homem hodierno” pertencente à civilização ocidental. Frankl escreve que hoje o indivíduo no Ocidente:

“Vive a alarmante experiência do tédio, da náusea, do não-sentido, da ausência de valores e de finalidade da vida, do vazio existencial. Ao mesmo tempo, debate-se com a angustiante experiência da incompreensão perante a morte. Esta apresenta-se-lhe como destino implacável de absurdo, naufrágio definitivo das suas esperanças, barreira intransponível contra a qual esbarram os seus sonhos e aspirações, nadificação [cf. niilismo e aniquilação] do seu ‘eu’ ”.211 (A ênfase é nossa)

Portanto, sem experimentar o sentido último (ontologicamente objectivo, imago Dei impresso nele) e sem “esperança última”, por exemplo, que a vida não termina na sepultura, uma pessoa pode ficar reduzida “ ‘a paixão inútil’, sem porquê nem para quê”.212 Esta é uma situação angustiante do indivíduo pós-moderno.

O indivíduo posmoderno quer ter direitos mas não deveres Uma outra consequência negativa social do relativismo normativo ético é pensar egoística e socialmente “irresponsável”, o que quer dizer que o indivíduo pós-moderno está sempre pronto para exigir os seus direitos, mas esquece-se que também tem deveres para com os seus semelhantes, a sociedade em que vive e a humanidade de que é parte integrante. Para com os seus semelhantes tem, por exemplo, o dever de respeitar os seus direitos

208 Pinto, J. R. da Costa (1090), p.162 209 Ibid. (definição formulada pela Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, em 5 de Maio de 1980) 210 Esta cultura da morte é completamente diferente daquela que na Idade Média era designada por ars moriendi que era uma preparação espiritual para aceitar a morte ou morrer bem (eutanásia). Cf. Tractatus (or Speculum) artis bene moriendi was composed in 1415 by an anonymous Dominican friar, probably at the request of the Council of Constance (1414–1418, Germany). 211 Ibid., p. 154. 212 Ibid.

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fundamentais e a sua dignidade humana. Para com a comunidade ou sociedade em que vive tem o dever de cumprir as leis, pagar impostos, de prestar o serviço militar, etc. O que esquecem os relativistas éticos ou os pós-modernos é que quando uma pessoa tem um direito, isto implica a existência de, pelo menos, uma outra pessoa que tem o dever jurídico ou a obrigação moral de ajudar o detentor do direito a satisfazer, realizar, usufruir ou implementar o seu direito, porquanto o direito e o dever são conceitos correlativos No caso do direito ao suicídio assistido ou à eutanásia activa, cabe, juridicamente, aos profissionais dos cuidados de saúde assistir aos candidatos ao suicídio ou à eutanásia activa. Mas suponhamos que nenhum profissional dos cuidados de saúde se sente moralmente motivado a contribuir para a morte de quem quer que seja.213 Em que princípio estaria ele ou ela obrigado/a a engajar-se na ou efectuar a eutanásia activa? Se cada um tem a sua moral e o direito de conduzir a sua vida conforme quiser – como o relativismo ético normativo prescreve – então o único fundamento para normas ou preceitos que regulam os actos colectivos e as omissões colectivas, é uma lei arbitrária, isto é, não fundada num valor moral objectivamente valido para a Sociedade ou Humanidade, mas sim decretada por uma autoridade que pode ser ditatorial, discricionária e egoísta. Isto demonstra que o relativismo ético normativo, se for verdadeiro, tem como última consequência a anarquia e o caos social no campo da moral, da Ética e da justiça social. Portanto, é bom enfatizar que o relativismo ético normativo, por exemplo, à lá Sartre, serve apenas para uma Ética situacional, segundo a qual, cada indivíduo é único e cada situação é única, de tal maneira que o mesmo indivíduo, em situações diferentes tem de seguir normas diferentes, não previamente existentes, mas que concebe in loco com a ajuda da sua intuição no momento actual. Isto impossibilita uma Ética social, que exige que haja normas de conduta comuns, que todos, nas mesmas circunstâncias, devem seguir para que uma sociedade possa funcionar justa e seguramente.214 Numa verdadeira comunidade todos têm tanto direitos como deveres, por estes conceitos éticos serem interdependentes.

Ética cristã contra a Ética relativista normativa Como a maioria da população cabo-verdiana é ainda considerada cristã (cerca de 95%) – e a cultural cabo-verdiana está impregnada de muitos valores cristãos –, é relevante dizer aqui, embora sucintamente, algo acerca da moral ou ética cristã. No que se segue vamos responder resumidamente a seis perguntas relevantes com a intenção de apontar algumas características fundamentais da Ética ou filosofia moral cristã. É importante e relevante enfatizar aqui tanto o que a Ética cristã tem em comum com outras Éticas normativas já referidas, como o que ela tem de específico ou exclusivo.

1). Existe uma Ética específica cristã?

213 Se os princípios éticos são relativos, é pertinente perguntar: em que princípio ético estaria ele ou ela obrigado/a a engajar-se na ou efectuar a eutanásia activa? A resposta é: numa lei injusta/imoral. 214À luz do relativismo normativo ético e da ética situacional que implica, pense, por exemplo, nas seguintes situações: se ao tomar um autocarro, o condutor resolveu ir dormir, porque é o acto justo no momento e de acordo com os seus melhores interesses, segundo sua intuição momentânea; se no aeroporto acontecer o mesmo, não há voos, porque os pilotos acham conveniente e moralmente justo ir descansar; se nas repartições públicas cada funcionário chegar à conclusão que deve fechar o expediente, quando quiser, de acordo com os seus próprios interesses, etc. A consequência de tudo isso seria um caos social, uma anarquia que podia desencadear uma guerra de todos contra todos o que tornaria a vida desagradável, brutal e curta (cf. Thomas Hobbes, Leviathan). Quem ganharia com este tipo de regime político e status quo? Ninguém, nem os próprios niilistas e relativistas! Veja o jornal Terra Nova, Agosto de 2009.

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A resposta a esta pergunta é sim. A Ética cristã tem um aspecto ou componente natural (humanista) e um aspecto ou componente sobrenatural (espiritual). O aspecto natural compreende-se pela razão humana. O aspecto sobrenatural compreende-se só através fé cristã (tanto no sentido de fides qua creditur como no de fides quae creditur). Por exemplo, a fé cristã nos ensina que devemos amar os nossos inimigos e que além das virtudes naturais como a sabedoria práctica (prudência), a justiça, a coragem e a moderação, o cristão tem de seguir as virtudes sobrenaturais: fé, esperança e caridade (lat. caritas, gr. agape). O aspecto natural da ética cristã possibilita um diálogo sobre assuntos morais, sociais, económicos políticos, entre cristãos e todos os homens de boa vontade, quer sejam religiosos, humanistas, agnósticos ou ateístas. Um tal diálogo é necessário porque também os cristãos vivem debaixo das mesmas condições existenciais que o resto da Humanidade. Todos têm a responsabilidade de lutar por uma sociedade pacífica, justa e segura para todos e inclusive a geração vindoura. Nesta luta pelo bem-estar de todos, é desejável que haja um diálogo autêntico e uma interacção pacífica e colaborativa entre todas as pessoas que vivem nas mesmas situações ou sob as mesmas condições existenciais. O que é especificamente cristão é descrito no Sermão da Montanha (S. Mateus capítulos 5-7) e em S. João 13, 14- 17). Nestas passagens bíblicas destacam-se sobretudo a perfeição, a alegria de pertencer a Cristo, o amor ao inimigo e o ideal cristão ou a meta inatingível nesta vida (veja também Fil. 3, 13-15). Um outro aspecto específico da ética cristã pode ser resumido da seguinte maneira. Para o cristão o dever “não se refere apenas às ações visíveis, mas também às intenções invisíveis, […] a ser julgadas eticamente. Eis porque um cristão, quando se confessa, obriga-se a confessar pecados cometidos por atos, palavras e intenções. Sua alma, invisível, tem o testemunho do olhar de Deus, que a julga”.215

2). Em que é que a Ética cristã difere de outras Éticas? A Ética normativa cristã difere das outras Éticas normativas, principalmente da humanista, no que ela tem de específico ou único, como exemplificado na alínea 1) acima. Também é bom sublinhar aqui, que seguir a Ética Cristã, ou viver de acordo com ela, implica e requer das pessoas mais do que seguir um manual de conselhos ou uma receita. É, antes de tudo, seguir a Cristo (lat. imitatio Christi), o que implica viver numa boa relação pessoal com Deus, conforme a mesma é especificada através da vida, do ensinamento, da morte e da ressurreição do nosso Sr. Jesus Cristo. Assim, seguir a ética cristã é parte integrante de obedecer ou seguir a Jesus Cristo, de viver a vida da fé cristã, que deve produzir frutos de amor ou caridade cristã, no viver quotidiano. Uma outra diferença entre a Ética cristã e a humanístico-profana é a seguinte. Ambas atribuem dignidade à pessoa humana. Mas justificam o fundamento da dignidade de maneira diferente. O humanismo profano justifica a dignidade humana em termos puramente humanos, enquanto o cristianismo justifica-a em termos de criação e redempção divinas. A Bíblia ensina que o homem foi criador à imagem e semelhança de Deus, o que constitui o fundamento da dignidade humana. Além disso, o evangelho contribuiu para a consciencializar os povos ocidentais sobre o valor inestimável da dignidade da pessoa humana. Assim escreve Ana Paula de Barcellos:

“Essa noção de dignidade da pessoa humana, como valor atributivo do homem, passou a ser mais evidente e mais aceita com a vinda de Jesus Cristo a Terra como filho do Senhor Deus e como salvação de todos os homens. Como Jesus veio a Terra em carne e osso,

215 Em: http://portalveritas.blogspot.no/2009/10/cristianismo-o-problema-moral.html

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semelhante aos homens, estes perceberam o valor existente no interior de cada ser e, assim, surgiu um respeito mútuo entre os semelhantes.”216

3). É a Ética cristã deontológica, teleológica, consequencial ou Ética de carácter, virtudes e ideais? A Ética cristã contém aspectos de todas estas Éticas, principalmente da Ética teleológica clássica. Por exemplo, os dez mandamentos da lei de Deus podem ser interpretados como regrar deontológicas (segundo São Tomás de Aquino) ou como regras utilitaristas (segundo Martin Lutero).217 O sermão da montanha pode ser interpretado tanto segundo regra-deontologismo como segundo a ética de virtudes e ideais. Estas duas últimas interpretações interpenetram e não se contradizem.218 No sermão da montanha, as virtudes sobrenaturais (expressas nos termos “ser perfeito como o nosso pai celestial”, “dar a outra face quando além nos bate numa face”, amor ou caridade, paz, mansidão, benignidade, justiça, bondade, fé, temperança, paciência, piedade, etc.), aparecem como frutos de uma vida nova com Cristo (imitatio Christi). Ao proceder assim, o cristão está a seguir os exemplos de Jesus Cristo. Nas epístolas encontramos, igualmente, as virtudes cristãs principais (cf. Rom. 12, 1-21; 1Cor. 13, 1-13; Gálatas 5, 22; 1Tim. 3; 2 Pet. 1, 5-7). Também aspectos da Ética utilitarista, podemos encontrar em passagens bíblicas como: “o sábado foi feito por causa do homem e não o homem por causa do sábado” (Marcos 2,27). Por outras palavras, seguir o sábado não é um fim em si, mas um meio que pode conduzir a um fim bom em si. De todas as teorias da Ética normativa, as mais parecidas com a Ética cristã são: a teleologia clássica, a deontologia e a Ética de virtude e ideal moral. A menos parecida é a Ética de consequência (egoísmo e utilitarismo). O egoísmo ético é a mais criticada de todas teorias éticas, por não constituir, propriamente, uma teoria Ética. Para ser mais preciso, sublinhamos que a Ética cristã tem elementos da teleologia clássica, elementos deontológicos, elementos ou aspectos utilitaristas e elementos da Ética de virtudes morais. Os aspectos da Ética cristã, que mais se assemelham com aspectos da ética teleológica clássica, na concepção de São Tomás de Aquino e da Igreja Católica Romana, podem ser descritos, resumidamente, como se segue:

“A moralidade dos actos é definida pela relação da liberdade do homem com o bem autêntico. Um tal bem é estabelecido como lei eterna pela Sabedoria de Deus, que ordena cada ser para o seu fim: esta lei eterna é conhecida tanto pela razão natural do homem (e assim é ‘lei natural’), como – de modo integral e perfeito – através da revelação sobrenatural de Deus (sendo assim chamada ‘lei divina’). O agir é moralmente bom quando as escolhas da liberdade são conformes ao verdadeiro bem do homem e exprimem, deste modo, a ordenação voluntária da pessoa para o seu fim último, isto é, o próprio Deus: o bem supremo, no qual o homem encontra a sua felicidade plena e perfeita. A pergunta inicial da conversa do jovem com Jesus: ‘Que devo fazer de bom para alcançar a vida eterna?’ (Mt 19, 16), põe imediatamente em evidência o nexo essencial entre o valor moral de um acto e o fim último do homem. Na sua resposta, Jesus confirma a convicção do seu interlocutor: a realização de actos bons, mandados por Aquele que ‘é o único Bom’, constitui a condição indispensável e o caminho para a bem-aventurança eterna: ‘Se queres entrar na vida eterna, cumpre os mandamentos’ (Mt 19, 17). A resposta

216 Paula de Barcellos, A. (2008), p. 122. 217 Veja Holte et al. (1977), p. 117f. 218 A combinação de aspectos de deontologia com aspectos de utilitarismo e aspectos de Ética de virtude moral é possível pela seguinte razão: “Afirmar que uma acção é motivada pela virtude moral (por exemplo a compaixão ou o amor), que ela é em si boa e que ela resulta numa boa consequência não implica nenhuma inconsistência ou incoerência (Veja Barbosa da Silva, A. 2011/2012, p. 164.

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de Jesus com o apelo aos mandamentos manifesta também que o caminho, para o fim último, está assinalado pelo respeito das leis divinas que tutelam o bem humano. Só o acto conforme ao bem pode ser caminho que conduz à vida”.219 (A ênfase é nossa.)

Os pontos principais que a Ética cristã tem em comum com a Ética teleológica clássica é, primeiro, o facto de que ambas enfatizam que o fim último ou a felicidade humana é algo estabelecido por Deus, e não algo, subjectivamente, concebido por cada indivíduo ou grupo humano, como a ética de consequência afirma (veja egoísmo ético e utilitarismo). Segundo, para ambas as teorias éticas, o fim não justifica os meios. Por outras palavras, para ambas tanto os fins como os meios devem ser moralmente bons, o que não acontece com o egoísmo ético e o utilitarismo. Embora tanto Aristóteles como São Tomás de Aquino defendam a teleologia clássica, há, porém, uma grande diferença entre eles: para Aristóteles, a razão humana é necessária e suficiente para determinar tanto o bom fim como o meio adequado no agir humano. Para São Tomás, a razão é necessária mas não suficiente. Esta tem de ser completada e aperfeiçoada com a revelação divina, como referido acima. Uma outra diferença relevante aqui é o facto que para Aristóteles a felicidade humana (que, segundo ele, todos os seres humanos naturalmente procuram) é dada na natureza humana, assim como a razão humana a pode discernir, enquanto para São Tomás – e a Igreja Católica Romana – a felicidade ou o fim último do homem não é a felicidade terrena (no sentido em que Aristóteles a concebe) mas a felicidade eterna ou a bem-aventurança ou beatitude (em grego macarios). Esta forma de felicidade é revelada e dada ao homem por Deus.

4). Ética cristã ou Éticas cristãs? Se atendermos ao facto de que existem várias confissões religiosas cristãs, é mais apropriado falar de éticas cristãs do que da ética cristã. Embora existam muitas confissões cristãs, elas têm muito em comum, principalmente com respeito aos aspectos básicos dos seus ensinamentos éticos. Podemos dizer que, de uma maneira geral, as confissões cristãs em matéria da Ética, estão mais perto umas das outras do que cada uma delas em relação às outras religiões não cristãs. Também é bom sublinhar neste contexto que a Igreja Católica Romana parece ter desenvolvido a Ética social mais que as Igrejas Protestantes e Ortodoxas têm feito. (Veja as várias Encíclicas papais sobre o problema social).

5). É a Ética cristã universal ou particular?

A Ética cristã é universal no sentido se ser aplicável a todos os seres humanos de todos os tempos e lugares no mundo. O que faz com que a Ética cristã seja universal é o facto de todos os seres humanos serem criados por Deus, o facto do nosso Senhor Jesus Cristo ser o Salvador de todos os seres humanos, o facto de todos os seres humanos serem pecadores e o facto do amor cristã ou a caridade cristã ser algo intrinsecamente bom para todos os humanos. Além disso, a Bíblia ensina que todos os seres humanos devem “comparecer perante o tribunal de Cristo para que cada um receba segundo o que tiver feito por meio do seu corpo, ou bem, ou mal.” (2 Cor. 5, 10; cf. Rom.2, 14f).

6). Existe um princípio máximo ou absoluto da Ética cristã?

219 João Paulo II, O esplendor da Verdade, 1993, 121f.

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A Ética cristã tem vários princípios absolutos; o amor ou a caridade (gr. Agape), o princípio da verdade e o princípio de respeito pela dignidade da pessoa humana. Quando o quinto mandamento da lei de Deus categoricamente proíbe o homicida, é esta proibição uma expressão deste respeito. Pois, Deus criou o ser humano segundo a sua imagem e semelhança (Génesis 9,6). Como Deus é Amor e a Bíblia nos ensina que devemos amar a Deus sobre todas as coisas e ao nosso próximo como a nós mesmos, o amor pode ser considerado o princípio mais fundamental da Ética cristã.

17. A situação paradoxal do Homem posmoderno

O homem posmoderno aceita220, consciente ou inconscientemente, o firme fundamento dos seus direitos humanos inalienáveis, nomeadamente os direitos civis, políticos, económicos, sociais e culturais promulgados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (daqui por diante DUDH) feita pelas Nações Unidas (daqui por diante UN) ao 10 de Dezembro de 1948.221 O fundamento destes direitos é a dignidade da pessoa humana, segundo o artigo n.º 1 da DUDH. A dignidade humana é inerente a todos os seres humanos. 222 Mas o homem pós-moderno – ao defender o relativismo ético normativo e o niilismo inerente ao mesmo – rejeita tal fundamento, quando for obrigado a reconhecê-lo também como o fundamento e a justificação epistemológica última dos deveres ou das imperativas obrigações morais de todos os seres humanos, deveres deduzíveis necessariamente, segundo a lógica deontológica, dos direitos inalienáveis, isto é, os tipos supra referidos (cf. DUDH).

A Ética moderna num mundo posmoderno

O fundamento firme dos direitos humanos a que nos referimos, consiste no conceito da pessoa humana implícita na Ética humanístico-cristã, que é pressuposto nos 30 artigos da DUDH. Resumidamente falando, é uma combinação do humanismo clássico –

220 O conteúdo deste artigo é o mesmo de um artigo com o mesmo título, publicado no jornal Terra Nova, em Novembro de 2004. 221 Estes direitos foram promulgados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), feita pelas Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1948 e também em várias Convenções (tratados internacionais) sobre adicionais direitos humanos posteriores mas baseadas na DUDH. Por exemplo a Convenção de Genebra de 1949 estipular como crime conta a Humanidade o seguinte: “Extermínio, escravização, e outros atos desumanos antes e durante uma guerra”; “Perseguições por motivos políticos, raciais ou religiosos”. (http://mundoestranho.abril.com.br/materia/o-que-e-a-convencao-de-genebra-e-o-que-sao-crimes-de-guerra) 222 Só assim se pode falar de direitos inalienáveis universais.

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desenvolvido pelos filósofos da Renascença (por exemplo, Pico da Girândola) e do Iluminismo (por exemplo, Emanuel Kant) – com o conceito bíblico do Homem, como ser criado à imagem e semelhança de Deus (imago Dei).223 O humanismo sublinha, sobretudo a racionalidade e a liberdade do ser humano, enquanto a Bíblia, embora reconheça a liberdade e racionalidade humanas, enfatiza o valor infinito (a dignidade) do ser humano, por este possuir uma dimensão espiritual com características divinas (sacrossantas) (cf. Salmo 8). Este conceito do homem é rejeitado hoje como sendo arcaico, antiquado e irrelevante, pertencente ao tempo ou à época moderna, ao período histórico que começou no século XVI com o filósofo francês René Descartes, com o astrónomo Nicolau Copérnico e com os físicos Isaac Newton e Galei Galileo, entre outros. Quem rejeita o modernismo, como o pós-modernista faz, rejeita ao mesmo tempo tudo o que o modernismo defende; a existência de uma verdade universal e de valores éticas ou morais, jurídicas, estéticas, religiosas, etc., universais e nega que a razão humana e o conhecimento científico são universais. Assim, todas afirmações de conteúdo universais, defendidas pelos sábios e filósofos modernistas são rejeitadas pelos pensadores, moralistas e cientistas da época pós-moderna, em que vivemos,224 e que começou depois da Segunda Guerra Mundial, como indicamos atrás. O que o posmoderno ainda não rejeitou e defende ferrenhamente é que ele tem direitos humanos inalienáveis que o põem na posição de reclamar e exigir peremptoriamente certos comportamentos e serviços do Estado, da sociedade e do seu próximo, sem ao mesmo tempo reconhecer que ter direito implica ter certos deveres, uns positivos que nos obriga a fazer algo a favor do nosso próximo, da sociedade e do Estado, como respeitar as leis e ajudar os necessitados, outros negativos, que nos obrigam a abster-nos de certos actos e comportamentos como: não matar, não furtar, não adulterar, não conspurcar o bom nome e a integridade moral do nosso próximo. Em resumo, o pensamento do indivíduo pós-moderno é paradoxal. Pois ele nega aos outros o fundamento ético dos seus direitos básicos (a igualdade, a universalidade da dignidade humana) e os direitos inalienáveis que daí advém, o que ele pensa ter o legítimo direito de exigir.

O indivíduo pós-moderno é hedonista e ‘alérgico’ à autoridade

O indivíduo pós-moderno quer viver a vida como um ‘Don Juan’ (um boémio, isto é, um indivíduo que procura sempre o prazer a curto prazo, sem assumir a devida responsabilidade), rejeitando toda e qualquer autoridade, a não ser que esta última se imponha com o exclusivo propósito de defender os seus direitos inalienáveis. No campo da Ética, pretende ser niilista e, pelo menos verbalmente, rejeita até os princípios éticos que criam as condições necessárias à sua própria segurança e ao seu próprio bem-estar. Enche, por isso, o seu espírito de ‘valores’225 eclécticos e incoerentes uns com os outros, valores imbuídos de noções aprendidos numa sociedade mediática que promove o desejo desenfreado do poder, do sexo, do dinheiro e da violência. Aceita esses valores só pelo facto de os mesmos lhe darem prazer efémero, sem contar com as negativas implicações futuras, para si e o seu próximo, para a sua sociedade ou para a humanidade em geral. O paradoxo, que o modus vivendi do pós-moderno engendra, não teria uma

223 Cf. Groethuysen, B. (1982)., p. 140-146. 224 A época pós-moderna, em que vivemos, começou depois da Segunda Guerra Mundial, como indicamos

atrás. 225 Muitos desses valores são absorvidos de novelas, músicas quase cacofónicas, cinemas, etc., sem serem criticados e moralmente avaliados e que são aceites por estarem em moda e por serem fontes de prazer momentâneo.

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consequência catastrófica para a sociedade, a comunidade e a humanidade inteira, se cada indivíduo humano tivesse a possibilidade de viver completamente independente de todos os outros seres humanos. Porém, por força da natureza social do homem e dos condicionalismos físicos e socioculturais, os indivíduos humanos são todos dependentes uns dos outros – tanto para o bem como para o mal –, quer estejam consciente disto, quer não. Mas para pudermos viver juntos, em paz e segurança, temos de reconhecer que temos não só direitos inalienáveis, mas também deveres ou obrigações morais peremptórias, os quais se interpenetram e são correlativos. Por outras palavras, para que um determinado indivíduo possa usufruir dos seus direitos, é necessário que alguns outros indivíduos façam ou deixem de efectuar determinadas práticas (em termos de actos e emissões). Assim, o meu direito exige certos deveres ou obrigações da parte dos outros e daí a nossa dependência do respeito e da boa vontade ou do altruísmo dos outros! Por exemplo, o nosso direito à saúde pressupõe os dever dos profissionais de saúde de nos prestar os melhores cuidados necessários à manutenção e/ou recuperação de saúde ou prevenção de doenças.

Diagnosticar sem remediar pode ser pernicioso para o paciente

Ao chamar a atenção do leitor para considerar o paradoxo em questão e a correlação que há entre direitos e deveres morais, quero, com isto, dizer que não basta diagnosticarmos o status quo da nossa actual situação moral, com possíveis consequências negativas nas relações sociais.226 É preciso também explicar a causa deste status quo, indicar como sair do referido paradoxo e sugerir o caminho a seguir. Os responsáveis pelo bem-estar moral e espiritual do povo precisam proclamar bem claro, embora metaforicamente, como fez o profeta Jeremias: “ [...] o meu povo fez duas maldades: deixaram-me a Mim que sou o manancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rotas, que não retêm as águas” (Jer. 2,13). Mas Jeremias não admoestou só o povo, mas também, e sobretudo, os responsáveis pelo bem-estar do povo. A metáfora “o manancial de águas vivas” simboliza, inter alia, valores morais imutáveis e universais criados por Deus. Com estas palavras bíblicas voltamos a advertir o fundamento firme da Ética implícita nas democracias hodiernas e nos nossos direitos e deveres fundamentais.227

226 Convém enfatizar que a situação moral, principalmente no campo da sexualidade e da ganância de ganhar dinheiro por que meio for, pode corromper o ganancioso, com possíveis consequências desastrosas tanto para si como para os outros. 227 Sobre a situação paradoxal do Homem pós-moderno, veja João Paulo II (1993). Esplendor veritatis, p.125-135.

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Parte IV

Problemas existenciais ou antropológicos e universais

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18. Qual é o valor e o sentido da vida humana?

Perguntar se a vida tem sentido e valor é perguntar, inter alia, se estamos satisfeitos com a nossa vida, se tudo está a correr, mais ou menos, conforme desejamos, se temos uma atitude positiva em relação ao nosso futuro e se os acontecimentos na nossa vida estão de acordo com os nossos desejos e as nossas esperanças. Este tipo de pergunta caracteriza-se como uma pergunta existencial. Perguntas de igual teor são, por exemplo: Porque existo? Existirá vida para além da morte? Tem o ser humano uma vontade livre, o que o faz responsável pelos seus actos e omissões? Existe um Juízo final e perfeitamente justo, onde prestarei contas pelo modo com vivi a minha vida e tratei os outros? 228 Estas perguntas são existenciais ou antropológicas por serem sobre a existência e o destino do ser humano. São também universais – interculturais e intemporais – isto é, podem ser feitas em qualquer contexto cultural e histórico.229 Exemplos clássicos de pergunta de tom existencialista encontram-se nos livros de Job e Eclesiastes no Antigo Testamento. O primeiro – Job – ilustra a perda do sentido do sofrimento, quando se procura compreender tudo apenas à luz da razão humana, enquanto o segundo – Eclesiastes – ilustra como se perde o sentido da vida, quando Deus é substituído pelos prazeres terrenos e valores materiais. Job, por causa de muito sofrer, amaldiçoou o dia do seu nascimento (Job: 3,8). Eclesiástico (o rei Salomão) caracteriza e deplora a vida sem Deus como um vácuo existencial, expresso em termos de: vaidade das vaidades e tudo é vaidade (lat. vanitas vanitatum et omnia vanitas, Ecles.1,1:2). Só Deus pode libertar o Homem deste vácuo existencial, desta perda total de sentido da vida (Ecles.12,1). A

228 Este capítulo é um resumo de um capítulo no manuscrito The Second Generation of immigrants in Search of na Identity [A segunda Geração dos emigrantes À Procura da Sua Identidade] por Barbosa da Silva, António & Domingos, Oslo: Alpha Beta Sigma (ainda não publicado).

229 Um indivíduo faz estas perguntas não quando se sente bem e feliz, por assim dizer, não no dia do seu casamento, mas quando sofre, por exemplo, no dia do enterro de um ente querido ou quando apanha uma doença perigosa ou acidente que ameaça a sua vida.

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experiência do vácuo existencial cresce com o ateísmo, materialismo e secularismo, característicos dos nossos dias ou melhor da época pós-moderna.

Respostas diferentes a perguntas existenciais Muitos dos considerados grandes filósofos ocidentais têm-se preocupado tanto com o problema da salvação como com o do sentido da vida humana. O que todos compartilham não é uma resposta ou solução comum a ambos os problemas, mas o facto de cada filósofo tentar resolver estes problemas a partir de um determinado conceito da vida humana e do lugar do Homem no mundo, isto é, sob o ponto de vista de uma cosmovisão, a qual pode ser teísta, ateísta ou agnóstica. No que se segue vamos ilustrar como três correntes filosóficas, contendo cosmovisões diferentes, tentam responder à pergunta: tem a vida humana um determinado valor e sentido? Comecemos por precisar a ambígua e multivalente expressão “o sentido da vida humana". Dizer que a vida de uma pessoa, por exemplo, a de Marino, tem sentido pode significar o seguinte: 1) O Marino avalia sua vida como tendo valor e que ele está a viver conforme deve viver, segundo um plano (sentido subjectivo da vida).230 2) A vida do Marino tem valor puramente utilitário, no sentido que um grupo de pessoas (a família ou a nação dele ou a maioria dos povos ou mesmo a humanidade inteira) avalia a vida dele como útil e significante, independentemente de como Marino avalia a sua vida (valor sociologicamente objectivo da vida). Isto pode acontecer se o Marino, por exemplo, ganhar o Prémio Nobel. 3) A vida de Marino – como qualquer outra vida humana – tem um valor intrínseco ou inerente, independentemente de como o Marino ou outras pessoas a avaliam (valor ontologicamente objectivo). Se a vida de Marino ou de qualquer outra pessoa tem este sentido objectivo é porque a vida humana como tal tem este sentido dado pela natureza ou por Deus, independentemente da nossa experiência ou ausência de experiência deste sentido. A relação lógica entre os sentidos da vida 1), 2) e 3) é o seguinte: Marino pode sentir que (i) a sua vida tem valor ou sentido, enquanto, por exemplo, todo o mundo ou a maioria das pessoas que o conhece, avalia a vida dele como sem valor e sem sentido (cf. a vida de Hitler, Mussolini, Estaline e Polpot). O contrário é também verdadeiro: Marino pode sentir que (ii) a sua vida não tem valor ou sentido, enquanto todo o mundo ou a maioria das pessoas que o conhece ou mesmo a humanidade inteira afirma que a vida dele tem valor e sentido [utilitário, 2) acima, por exemplo, a vida de Churchill, Einstein, Tolstoi, Sartre e N. Mandela].231 O sentido 3) é coerente tanto com a explicação (i) como com (ii). Por outras palavras, a vida do Marino (ou de outra pessoa qualquer) pode ter um valor ou sentido ontologicamente objectivo que nem ele, nem pessoa alguma conhece. Mas é bom salientar aqui que, se o Marino conhecer esse valor ou sentido ontologicamente objectivo, este conhecimento pode ajudá-lo a planear a sua vida de maneira a dar-lhe um sentido – aqui e agora ou a curto prazo –, de acordo com o valor ou sentido ontologicamente dela (cf. Frankl 1986).

230 Há filósofos que distinguem entre ‘o valor da vida’ e ‘o sentido da vida’. E afirmam que se a vida não tem valor, ela não tem sentido. Portanto, para esses filósofos, ‘o valor da vida’ é uma condição necessária (mas não suficiente) para ‘o sentido da vida’. Aqui consideramos o valor da vida como sinónimo de sentido da vida. (Cf. Ofstad, H. (1970), p. 95f; Frankl, V. E. (1986), Tepe, Dom Valfredo (1997). 231 Por exemplo, porque ele faz muitas boas obras pelos seus próximos, pela sociedade e pela humanidade em geral. (cf. Churchill que, segundo se dize, sentia por vezes que a sua vida não tinha sentido).

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O sentido da vida segundo filósofos ateístas

Filósofos ateístas como Nietzsche, Sartre e Camus admitem que a vida pode ter (ou ser dado) valor subjectivo e/ou sociologicamente objectivo [cf. 1) e 2) acima]. Mas negam peremptoriamente o sentido ontologicamente objectivo da vida [3)]. O argumento deles contra [3)] é o seguinte: Deus não existe. Por isso não existe valor objectivo e intrínseco (nada que tem valor inerente ou intrínseco). Se algo é visto como tendo valor, é um valor atribuído pelo ser humano, um valor extrínseco ou instrumental e relativo. Dizer que a vida de um certo indivíduo, Marino, tem valor e portanto tem sentido, é segundo estes filósofos, afirmar que alguém (o próprio indivíduo ou outros indivíduos) atribuiu (atribuíram) tal valor a Marino. Filósofos que negam a existência de valor intrínseco e ontologicamente objectivo chamam-se filósofos niilistas (do latim nihil = nada, o que quer dizer que a palavra “valor” refere-se a nada, a algo não existente). Como já vimos, geralmente, declaramos “que niilista é quem não acredita que existem valores, sejam eles morais, epistemológicos ou existenciais”.232 Filósofos niilistas e ateístas aplicam consequentemente a afirmação de Dostoiévski: “se Deus não existe tudo é permitido”. Só que convertem a afirmação condicional ou hipotética de Dostoiévski: “se Deus não existe …”, numa afirmação categórica e negativa “Deus não existe”. Da qual concluem: “por isso, tudo é permitido”. E por que não existem normas e valores morais, é absurdo viver, porquanto a vida não tem sentido, o homem está abandonado, ele mesmo tem de criar os seus valores (Sartre).

O sentido da vida segundo filósofos teístas Filósofos e pensadores teístas, como São Tomás de Aquino, I. Kant, G. Marcel, M. Buber, V. Frankl, ao contrário dos ateístas, afirmam que a vida humana tem o sentido ontologicamente objectivo [3)] porque todos os seres humanos são criados à imagem e semelhança de Deus. Todos têm um valor objectivo, intrínseco ou inerente, inalienável, constante, inestimável ou infinito, perdurável e imperdível em virtude da imagem do Criador - Deus -, inerente ao seu ser (lat. Imago Dei). Para filósofos teístas, teólogos e cristãos em geral, a vida humana tem um determinado valor e sentido – o ontologicamente objectivo – independentemente de como cada indivíduo humano, subjectivamente, experimenta a sua vida, ou como esta é avaliada por outros indivíduos. Ao tomar conhecimento do seu valor intrínseco, o indivíduo pode viver as diversas situações da sua vida com sentido, mesmo debaixo de insuportável sofrimento (cf. Job). O apóstolo S. Paulo, pensando no valor supremo, o ontologicamente objectivo da vida, em relação ao sofrimento humano, escreve: “quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, ou a angústia, ou a perseguição, ou a fome, ou a nudez, ou o perigo, ou a espada? [...]. Mas, em todas estas coisas, somos mais do que vencedores, por aquele que nos amou”. (Rom. 8, 35 e 37 cf. Rom. 5, 3-6). Esta é uma maneira bíblica de descrever o sentido ontologicamente objectivo da vida.

O sentido da vida a longo prazo versus a curto prazo É perante grandes sofrimentos que uma pessoa se interroga acerca do sentido da sua

232 (http://www.google.no/sentido da vida, <27.05.2009>).

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vida.233 O grande escritor russo Dostoiévski (cristão e existencialista), escreveu sobre o problema do sentido da vida. Num dos seus livros tenta dar resposta à pergunta se o sofrimento humano tem valor, sentido (ou propósito) ontologicamente objectivo. A sua resposta é positiva. Porém, para certos filósofos e pensadores, principalmente os ateístas, sentido é contraditório perguntar se a vida humana ou o sofrimento humano tem valor ou sentido ontologicamente objectivo. No entanto, é necessário precisar a resposta deles para evitar imprecisões e equívocos que podem causar mal-entendidos. Para ser mais preciso, chamemos o valor da vida em geral, um valor ontologicamente objectivo e constante, e chamemos o sentido da vida em geral, um sentido a longo prazo, visto do ponto de vista do indivíduo que acredita na existência de tal sentido que será alcançado um dia. Como a valor da vida é uma condição indispensável ao seu sentido, vamos usar aqui a expressão “valor ontologicamente objectivo da vida” como sinónimo de “sentido ontologicamente objectivo da vida”. Com a expressão “sentido da vida a longo prazo” queremos exprimir o seguinte: a vida humana, positivamente falando, desenvolve-se em direcção a uma meta ou um fim que é bom e que significa um estado feliz, perfeito e perpétuo da vida. Por exemplo, a vida no Paraíso (segundo as religiões monoteístas) ou o gozo ou regozijo da glória do Nirvana (Budismo), etc. Negativamente falando, o sentido (ou fim último) ontologicamente objectivo da vida, e a longo prazo, é a vida no inferno ou algo correspondente. Como já ilustrámos, ateístas não acreditam que haja um sentido ontologicamente objectivo da vida a longo prazo. Tendo uma cosmovisão materialista, pensam que a vida humana não tem um sentido fixo, ontologicamente objectivo e inalterável (por exemplo, a vida eterna), mas que a vida termina na sepultura. S. Paulo criticamente alude a pessoas com tal visão da vida, quando escreve: “se, como homem, combati em Éfeso contra as feras, que me aproveita isso, se os mortos não ressuscitam? Comamos e bebamos, que amanhã morreremos”, 1 Cor. 15,32. Os ateístas, apesar de negarem que a vida não tem um sentido ontologicamente objectivo, admitem que cada indivíduo humano pode dar um certo sentido – subjectivo – à sua vida a curto prazo (durante a vida cá na Terra). (cf. o sentido subjectivo e o sentido sociologicamente objectivo, já explicado). Pessoas religiosas, pelo contrário, afirmam que a vida humana tem um valor e sentido objectivo e a longo prazo (a vida não termina na sepultura) e que cada indivíduo pode dar um sentido à sua vida a curto prazo, mas de modo diferente de como os ateístas explicam que se deve dar um sentido à vida a curto prazo.

A relação entre sentido da vida a longo prazo e a curto prazo Teístas ou pessoas religiosas, afirmam que há uma relação íntima e dinâmica entre o autêntico ou verdadeiro sentido da vida a curto prazo e o sentido da vida a longo prazo, relação que pode ser explicada como se segue. Para os crentes (cf. Judeus religiosos, cristãos e muçulmanos) a experiência do sentido da vida a longo prazo é uma condição necessária (mas não suficiente) à experiência do autêntico sentido da vida a curto prazo. Para esta afirmação argumentam que se a vida não tem um valor intrínseco e um sentido a longo prazo (um bom e perdurável fim), não há nenhuma maneira de lhe dar um autêntico valor extrínseco (ou instrumental) e um verdadeiro sentido a curto prazo (aqui e agora). Este último é afectado (positiva ou negativamente) quando um indivíduo sabe ou acredita que a vida tem um valor e um sentido ontologicamente objectivos e a longo

233 Este artigo é um resumo de um capítulo no manuscrito The Second Generation of immigrants in Seach of an Identity. Por Barbosa da Silva & António e Domingos, Oslo: Alpha Beta Sigma (a ser publicado, provavelmente, no próximo ano).

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prazo, por exemplo, como afirma o apóstolo S. Paulo: a vida não termina na sepultura (2 Cor.15). Para ateístas, para os quais a vida não tem um valor ontologicamente nem um sentido a longo prazo, é absurdo e irrelevante considerar a relação entre o sentido da vida a curto prazo e o sentido da vida a longo prazo. Como já afirmámos, segundo os ateístas, qualquer pessoa pode dar um sentido à sua vida a curto prazo. Mas, segundo um crente religioso, este sentido não ajuda as pessoas quando são abrangidas por determinado tipo de sofrimento, como o tipo de sofrimento que o apóstolo Paulo descreve nos Romanos 8: 35f (tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, etc.). Victor E. Frankl, conceptuado psiquiatra existencialista, fenomenólogo e humanista, pertencente à religião judaica, que passou dois anos e meio no campo de concertação alemão de Auschwitz, durante a Segunda Guerra Mundial, chama o sentido ontologicamente objectivo da vida “Super-sentido” (super meaning).234 Uma pessoa que acredita em Deus como Criador, Providente, Salvador, Omnipotente, Omnisciente e Juízo Supremo, acredita também que a vida tem um valor fixo e que ela segue um curso com um fim determinado (sentido a longo prazo). Tal pessoa dá um sentido à sua vida, diariamente, (a curto prazo), em relação ao valor ontologicamente objectivo e ao sentido da vida a longo prazo (ao fim último, por exemplo, beatitude), revelado na Bíblia. Pois, um crente religioso vive a sua vida como sendo uma tarefa, vocação ou um dom dado por Deus, perante quem é, em última análise, responsável.235 Por isso, sente-se responsável pela sua relação quadridimensional: relação com Deus, consigo próprio, com o seu próximo e com a Natureza (os animais e o meio ambiente, principalmente o meio ecológico). Para Frankl, um indivíduo torna-se consciente do Super-sentido da vida, que é algo transcendente e que é o fundamento do valor ontologicamente objectivo da vida, através da sua consciência moral. Ela funciona como um órgão através do qual o indivíduo ouve a voz divina, chamando-o/a para se responsabilizar pela sua vida, pelos seus feitos e pelas suas omissões, relativo à sua relação quadridimensional. Nesta conformidade, Frankl, argumentando contra Freud, afirma que o princípio fundamental da vida humana não é o princípio do prazer (libido) como Freud afirma. E argumentando contra Nietzsche e Adler, contesta o princípio da vontade de poder, afirmando, pelo contrário, que o que é relevante e mais importante é o princípio de vontade do sentido que é o mais fundamental impulsionador da vida humana. Por outras palavras, Frankl declara que o ser humano é motivado, acima de tudo, pela vontade de descobrir o sentido da vida, e não pela vontade do prazer (Freud) e nem pela vontade de (adquirir) poder e dominar (F. Nietzsche e A. Adler). Frankl afirma que a vontade do sentido manifesta-se através do que ele chama autotranscendência, isto é a capacidade humana de ultrapassar o egocentrismo e a autosuficiência:

“A autotranscendência assinala o fato antropológico fundamental de que a existência do

homem sempre se refere a alguma coisa que não ela mesma – a algo ou a alguém, isto é,

a um objetivo a ser alcançado ou à existência de outra pessoa que ele encontre. Na verdade, o homem só se torna homem e só é completamente ele mesmo quando fica absorvido pela dedicação a uma tarefa, quando se esquece de si mesmo no serviço a uma

234 Frankl, V. E. (1974), p. 187f; Frankl, V. E. (1985); Frankl, V. E. (1993). 235 Aqui a parábola dos dez talentos em S. Mateus 25, 14-30, pode ilustrar a vida humana como uma tarefa a ser realizado. Cada indivíduo humano tem recebido algum dom de Deus (algum talento). A tarefa ou vocação de cada um pode ser vista como o dever, de cada um, de administrar o talento (dom) recebido do Criador. Ao executarmos esta tarefa, sentimos que a nossa vida tem um sentido, quer a curto, quer a longo prazo (cf. Salmo 139).

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causa, ou no amor a uma outra pessoa. É como o olho, que só pode cumprir sua função de ver o mundo enquanto não vê a si próprio”.236

Assim, partindo do princípio que a vida humana tem um sentido ontologicamente objectivo (constante, imutável, permanente e indestrutível) a ser atingido ou experimentado a longo prazo, ancorado no Super-sentido, Frankl prescreve três modos de dar ou descobrir um sentido à vida, a curto prazo: (i) realizar valores através de tarefas adequadas, (ii) usufruir valores fundamentais através da experiência do Bem, da Verdade e da Beleza, ou quando se não pode fazer nem (i) nem (ii), então pode-se, pelo menos, (iii) sofrer por alguém, o que requer a assunção de uma atitude corajosa perante o sofrimento inevitável.237 Frankl esclarece que uma pessoa pode sentir que o seu sofrimento tem sentido só se sentir que sua vida tem sentido. Portanto, o experimentar que a vida tem sentido é uma condição necessária (mas não suficiente) para se sentir ou experimentar que o sofrimento tem sentido. O que significa que podemos sentir que a vida tem valor e sentido e ao mesmo tempo sentir que o sofrimento não tem valor nem sentido. Mas se sentimos que o nosso sofrimento tem valor e sentido é porque já também sentimos que a vida tem valor e sentido. Que o sentido da vida é uma condição necessária ao sentido do sofrimento significa também que quando a vida perde o seu sentido, o sofrimento perde automaticamente o seu sentido. Por outras palavras, o sofrimento só pode ter sentido em relação ao sentido da vida. Portanto, se a vida perder o seu sentido (a curto ou a longo prazo), então o sofrimento perderá automaticamente o seu sentido, tanto a curto como a longo prazo. Mas quando experimentamos que o sofrimento tem um sentido, experimentamos ao mesmo tempo, que a vida tem um sentido. E se o sofrimento perder o seu sentido, a vida pode continuar a preservar o seu sentido. Pois, só podemos experimentar e compreender o sentido ou falta do sentido do sofrimento à luz do sentido da vida. Esta relação subjectiva, entre o sentido do sofrimento e o da vida, pode ser descrita sucintamente da seguinte maneira: o sentido subjectivo do sofrimento é uma condição suficiente do sentido subjectivo da vida. Com isto quer-se dizer que a experiência do sofrimento como tendo valor e sentido é um sinal suficiente ou uma evidência que a vida também tem valor e sentido.

Fiódor Dostoiévski, por seu lado, afirma que sentimos que nossa vida tem um sentido, ao tomarmos consciência de que temos uma tarefa na vida.238 Embora ele não tenha especificado o conteúdo de tal tarefa, podemos interpretá-la em termos dos três modos de dar à vida um sentido a curto prazo, segundo Frankl, nomeadamente criar valores, usufruir valores e sofrer pelo nosso próximo. Leon Tolstoi, um outro grande escritor russo e cristão místico, formula o sentido ontologicamente objectivo da vida, a ser experimentado a longo prazo, nos seguintes termos: “qual será o resultado do que faço hoje, do que faço amanhã? Qual será o resultado da minha vida inteira? Expresso por outras palavras: porque devo viver, porque devo desejar algo, porque devo fazer algo? A pergunta pode também ser feita de outro modo: Tem a minha vida um determinado sentido, que não será aniquilado pela morte, que indubitavelmente me espera?”239 A resposta a esta última pergunta, capaz de satisfazer Tolstoi, seria que a vida tem um sentido ontologicamente objectivo, a ser experimentado um sentido a longo prazo, isto é, depois da morte. É natural que, como cristão, Tolstoi tivesse na mente as seguintes palavras do Apocalipse 14,13: “e ouvi uma voz do céu, que me dizia: Escreve: Bem-

236 Frankl, V. E. (1991), p. 18. 237 Frankl, V. E. (1973), p.12. 238 Dostoyevsky, F. (1936), p. 179

239 Leon Tolstoi, Minha confissão, citado por Ingmar Pörn (1983). Cf. Tepe, Dom Valfredo (1977/1997).

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aventurados os mortos que, desde agora, morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem dos seus trabalhos, e as suas obras os sigam”. (Ênfase nossa.) Portanto, à luz da Sagrada Escritura, tanto a nossa vida, no seu todo, como as nossas tarefas do dia-a-dia, tem um sentido (a curto prazo). O sentido da vida no seu todo é ontologicamente objectivo, e experimentado a longo prazo (Apo.13, 13). Resumindo e concluindo, as perguntas existenciais não são, para cristãos, problemas a serem resolvidos. Falando sobre o problema existencial do sofrimento, em relação ao do sem-sentido da vida, no contexto do acompanhamento espiritual e religioso dos doentes, Fernando Sampaio afirma: “Não se trata, portanto, de resolver o problema do sofrimento, pois este não é um problema – pertence ao mistério da vida. Trata-se, pelo contrário, de poder expressar a emoção e a incompreensão a ele associadas no contexto de uma relação empática e compreensiva”.240 O mesmo se pode dizer sobre o sem-sentido da vida.

Parte V

Língua, cultura e identidade cabo-verdianas

240 Sampaio, F. (2009).

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19. A relação entre o crioulo e o português

Depois da reforma ortográfica do crioulo, ocorrida posteriormente à nossa independência política em 1975 (veja ALUPEC), tenho estado a perguntar, a mim mesmo, qual foi o propósito e la raison d’être desta reforma. Uma hipótese plausível que possa explicar a causa e/ou o propósito da reforma poderá ser a seguinte: o frenesi originado pela independência inspirou e motivou os escritores, cultivadores e defensores do nosso crioulo, a sentir a necessidade de distinguir bem claro o crioulo da língua portuguesa. Tal propósito seria o de marcar e defender a nossa identidade cultural, distanciando-a da influência da cultura colonial fascista, na qual a língua portuguesa desempenhava um papel preponderante, durante 500 anos de opressão, na assimilação e ‘civilização’ dos indígenas colonizados. Tendo esta hipótese in mente, o artigo do Dr. H. Teixeira de Sousa, “A ortografia dos Nossos Falares”241, encorajou-me a expor agora o meu ponto de vista sobre a reforma supra referida. Não pretendo aqui rejeitar totalmente as recomendações do ALUPEC, nem tão pouco a liberdade individual, de quem quer que seja, escrevendo cada um o crioulo a seu bel-prazer. Quero, antes, continuar com o debate salutar iniciado pelo Sr. Dr. Teixeira de Sousa, a fim de tornar pública a maneira de sentir e de pensar de um povo – a sua psicologia –, um debate em que todos os amigos das letras e do povo cabo-verdiano podem dar a sua contribuição. Para isso, parece ser suficiente o conhecimento dos mais rudimentares princípios da linguística e do método científico de investigação nestes domínios.

Um argumento pragmático

241 Veja Terra Nova, n.º 327, Março 2004, p. 3.

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Embora as observações do Sr. Dr. Teixeira de Sousa sejam actuais, importantíssimas e relevantes, em relação ao que vou dizer aqui, não vou seguir a linha da sua argumentação. Vou, antes, começar onde o Sr. Dr. Teixeira de Sousa terminou, usando um argumento pragmático e não histórico-linguístico como o dele.242 A meu ver, enquanto for necessário ao cabo-verdiano aprender o português, é-lhe conveniente e propício usar os recursos linguísticos já existentes na sua própria língua crioula, na aprendizagem do português. Diga-se de passagem, que o cabo-verdiano tem muita facilidade de aprender línguas estrangeiras por o crioulo falado conter sons semelhantes ou idênticos a sons contidos em várias outras línguas. Por exemplo, o som da palavra crioula Chéché (nome próprio e masculino usado na ilha do Fogo) é semelhante ou idêntico ao da palavra chinesa com o mesmo som, uma palavra que significa obrigado/a. Portanto, se um chinês ouvir um crioulo dizer Chéché, pode pensar no termo obrigado/a em chinês.243 Se restringirmos a nossa comparação aos elementos comuns ou semelhantes entre o crioulo e o português podemos realçar o seguinte no que se segue.

A velha ortografia crioula é mais útil do que a nova

Exemplos de argumentos relevantes na defesa da tese que “a velha ortografia crioula é mais útil do que a nova”, essencialmente para os cabo-verdianos interessados em aprender o português, “são os seguintes: Em primeiro lugar, é pragmaticamente conveniente escrever ‘cumpadre’ em vez de ‘Kumpadre’, ‘cumó’ em vez de ‘kumó’, ‘cabalo’ em vez de ‘kabalo’, ‘cadela’ em vez de ‘kadela’, vaca’ em vez de ‘vaka’, ‘Chia’ em vez de ‘Xia’, sintâ, em vez de xínta, etc., (segundo ALUPEC), por que o aluno crioulo, que vai aprender o português, teria meio caminho andado, pela proximidade da representação ortográfica e fonética, se, por exemplo, tiver de andar de “cabalo” em vez de “kabalo” (a nova ortografia) até chegar ao “cavalo” português. Mutatis mutandis, podemos dizer o mesmo acerca dos outros exemplos mencionados de palavras cuja ortografia nova se distanciam do português, de uma maneira desnecessária. Na minha opinião, tenho razões suficientes para dizer que as observações do meu conterrâneo, Dr. Teixeira de Sousa, são valiosas não só quando se analisa a história da evolução do crioulo – uma análise diacrónica no seu entender – mas também quando a análise for sincrónica.244 São valiosas também, atendendo ao propósito deste meu ensaio, quando a análise diacrónica for prospectivamente feita, isto é, tendo em vista as dificuldades que o aluno crioulo possa encontrar em aprender a ortografia do português, enquanto ele continua a falar o crioulo em casa ou fora da escola. Com isto não quero dizer que todas as palavras crioulas devem ser escritas de acordo com as suas originais lusitanas ou portuguesas. Por exemplo, a palavra crioula “cuscus” é de origem árabe e pronuncia-se da mesma maneira que a palavra que a ‘corresponde’ em árabe, embora tenha denotação (referência ontológica) diferente da palavra com o mesmo som em árabe. Por outras palavras, são palavras homófonas (e não homógrafas) e tem

242 Veja: de Sousa, Teixeira (2004), p. 3. Cf. Lima, Adriano M. (2005), p. 5. Um argumento pragmático não se baseia na verdade das proposições, mas sim na eficiência, utilidade e no valor instrumental das coisas, neste caso o crioulo. 243 Podemos também pensar nas palavras de origem estrangeira como: “tchintchirote”, “du stára”, “Djone”, “cúscús”, “tchao”; “náfo tcheque”, “sana bagana”, “sana babitche”, “breca” e “godeme”. 244 Para o propósito deste meu artigo [artigo no jornal Terra Nova, no qual este capítulo está baseado] – uma análise sincrónica do crioulo deve ser prospectivamente feita, tendo em vista as dificuldades que o aluno crioulo possa encontrar em aprender a ortografia do português, enquanto ele continua a falar o crioulo em casa ou fora da escola.

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significados diferentes: designam dois tipos de comida com uma certa semelhança. Para quem cultiva a etimologia das palavras, como uma virtude em si (lat. ars gratia artis), a palavra “cuscus” não deve ser escrita segunda a nova ortografia crioula (kuskus), mas segundo a sua origem (etimologia), o que implica a necessidade de uma investigação diacrónica da sua etimologia árabe. Mas uma tal investigação é importante apenas para linguistas e talvez para outros investigadores com interesse na matéria. Para a nação cabo-verdiana, em geral, tem pouca importância.245 Pois, quando palavras estrangeiras se tornam parte integral de uma língua, como o caso de cuscus e chéché, “du stára”, “Djóni”, “santaimo”, “tchau”, “cubérbum cado fatuzés”, “akadi-ré”, “náfo Tcheque”, “laite”, “thcau”, “sana bagana”, sana babítche”, “brêca”, “godeme”, etc., desempenham um papel autónomo no seu novo contexto, podendo ser bem usadas e compreendidas sem referência alguma à sua origem estrangeira e sem o conhecimento de tal origem.246 Em segundo lugar, seguir a ortografia crioula pré-independência aumenta o círculo dos leitores da nossa língua, fora do contexto cabo-verdiano, onde se fala o português, espanhol, italiano ou o francês. Como tanto Eugénio Tavares como Pedro Cardoso confirmam, o crioulo tem a mesma raiz que o português. O desenvolvimento do crioulo processou-se a partir do português, exceptuando escassas palavras, numa tendência constante devido à simplicidade fonética, morfológica e sintáxica (cf. a lei linguística de menor esforço). Apesar disso, o crioulo mantém o cordão umbilical preso ao léxico português, o que lhe garante, do ponto de vista etimológico e até prosódico, o parentesco próximo e inegável ao português. Sendo assim, a escrita “antiga”, pré-independente, mantém intacta tanto a integridade como a peculiaridade do crioulo, embora a sua semântica e sintaxe se aproximem às do português. Assim, embora os seus léxicos sejam diferentes, o crioulo e o português mantêm entre si uma semelhança de estrutura, de tal forma que o crioulo se torne de fácil compreensão a pessoas iniciadas no português falado no Brasil, em Portugal, em Angola ou Moçambique (nos PALOP). Afirmar o contrário é também verdadeiro, isto é, quem aprende o crioulo segundo a ortografia antiga pode aprender o português com mais facilidade de quem aprende o crioulo segundo as recomendações do ALUPEC. Embora as duas línguas divirjam em alguns aspectos, a ortografia recomendada pelo ALUPEC – que veio aumentar esta divergência – dificulta a comunicação escrita entre cabo-verdianos e os povos já mencionados. Um terceiro argumento plausível na defesa dos aspectos comuns das duas línguas deve basear-se na etimologia, visto os étimos do crioulo serem, em parte, de origem latina e africana. Pelo contrário, a letra “k”, por exemplo, que floresce exuberantemente na ortografia nova, não se usa muito nas línguas latinas, enquanto nas germânicas (principalmente no alemão, dinamarquês, sueco e norueguês) ocorre com frequência.247 Com excepções de algumas palavras, parece-me que a maioria das palavras crioulas nos faz lembrar palavras semelhantes ou idênticas em português, embora por vezes, tenham significados diferente, como é o caso das palavras “perigoso”, “rapariga” (moça no Brasil), “cara”, negócio”, “pequena”, “ignorante”, “loiro”, etc. Perguntamos, por isso, aos promotores do ALUPEC/K:

Se se pode simplificar as coisas, por que complicá-las?

245 O povinho está interessado em saber o significado das palavras e como usá-las, hoje, em contextos adequados e não as suas origens remotas. 246 Geralmente falando, a aquisição de vocabulários estrangeiros é um enriquecimento, com o qual ninguém se preocupa, por a gente não estar consciente da sua proveniência, e portanto do seu sentido “original”, por ser irrelevante no contexto da comunicação actual. 247 Falta ainda uma investigação científica das origens africanas do crioulo. Cabe talvez aos autores e promotores do ALUPEC fazer tal investigação.

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Se até 1975 o escrever o crioulo estava mais perto da ortografia da língua portuguesa e se ainda é obrigatório ao cabo-verdiano aprender o português na escola248, então qual é a razão de, agora, querer distanciar o crioulo do português? Adivinhemos duas respostas alternativas; (1) se for para marcar a nossa identidade cultural, então temos de confessar que pensamos que, na realidade, o cabo-verdiano quando usa o português deixa de ser autêntico cabo-verdiano. Ou (2) devemos admitir que o cabo-verdiano que domina o português – muitas vezes melhor que muitos portugueses, brasileiros, etc., – tem duas identidades diferentes, “deambulando” entre as duas línguas que são elementos integrais de duas culturas bastante diferentes uma da outra; a cabo-verdiana e a portuguesa. Quem defende a primeira alternativa (1) faz do cabo-verdiano não só um macaco imitador, mas também portador de uma identidade esquizofrénica. Contra os defensores da alternativa (1) pode-se argumentar que não é lógica nem psicologicamente impossível, não é constitucionalmente proibido, e nem tão pouco é moralmente inaceitável escolher a alternativa (2) que parece ser mais realística e útil. Se alguém por capricho preferir a alternativa (1), então tem de nos dizer que medidas biogenéticas que devemos tomar em relação à percentagem de sangue português que temos nas nossas veias.249 Para terminar é relevante sublinhar as seguintes palavras, ainda actuais, do senhor Dr. H. Teixeira de Sousa que, na sua defesa do status presens das duas línguas, afirma: “Não deixo todavia de entender a intenção, qual a de privilegiar a fala local, um dos elementos da nossa identidade cultural. Mas o português, língua oficial, e não só, afectará essa mesma identidade? Claro que não. […]. O português é o nosso sermo eruditus e o crioulo o nosso sermo vulgaris. Continuemos, pois, como estamos que estamos bem”.250 Assim, o Sr. Dr. Teixeira de Sousa a alternativa (2) acima.

248 Mas como sabemos, não é obrigatório a aprendizagem do crioulo – o que é paradoxal e incompreensível, à luz da ideologia implícita na nova reforma ortográfica crioula. 249 Stavanger, Noruega, 17 de Abril do ano 2004. 250 Teixeira de Sousa, H. (2004), p.3.

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20. Crioulo contra português – será ditadura contra democracia?

A tese que quero defender, a questão do crioulo contra o português, é um problema político-democrático e não só um problema histórico-cultural e linguístico. Nalguns artigos já publicados no jornal Terra Nova têm sido considerada, alvo de possíveis consequências negativas para Cabo Verde, a substituição do português pelo crioulo, quer a nível cultural em geral, quer a nível educacional e comunicacional, em particular. Sob este ponto de vista, acho a argumentação dos artigos referidos bem equilibrada e os seus vários argumentos sustentáveis, relevantes e convincentes.251 O propósito deste capítulo, é de analisar o aspecto político da presumível reforma sobre a relação entre o crioulo e o português, porquanto ela implica ou reflecte importantes problemas políticos. Não vou considerar aqui se o português irá desaparecer ou se continuará sendo a nossa segunda língua oficial. Por exemplo, na Noruega há duas línguas oficiais e na Suíça há três. Mas este luxo ou necessidade custa dinheiro e recursos humanos! Temos o último, mas onde vamos buscar o primeiro? O que vou enfatizar é a consequência da brusca transição do português para o crioulo como a primeira ou única língua escrita e falada, a ser usada pelo povo e pelos funcionários do Estado (pelos que representam os poderes legislativos, executivos e judiciais).

Vantagens e desvantagens das duas línguas A grande vantagem do crioulo, é que todos os cabo-verdianos podem usá-lo oralmente, e é o mais fácil e efectivo meio de comunicação entre eles. A grande desvantagem do crioulo refere-se ao facto que poucos são os que o sabem escrever e ler com facilidade. Por outro lado, uma grande vantagem do português é o facto que todos os documentos oficiais e a própria constituição jurídica do país, as diversas leis estão escritas em português e não é fácil traduzir esses tipos de documento para o crioulo sem usar palavras

251 Refiro-me a artigos, sobre o crioulo contra o português, publicados no jornal terra Nova até 12.03-

2005.

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híbridas ou a maioria de palavras portuguesas (principalmente termos técnicos) e regras da língua portuguesa. Outras vantagens do português baseiam-se no facto de os mass-mídias – principalmente os jornais – até agora – são escritos em português; o português é o único meio de comunicação escrita e oral com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e a maioria da literatura cabo-verdiana está escrita em português. Promulgar o crioulo como a única língua oficial e esperar que dentro dos próximos 5 a 10 anos o governo possa traduzir todos esses valiosos documentos para o crioulo, parece-nos altamente improvável. Para um bom entendedor meia palavra basta! As desvantagens do português residem essencialmente nos cerca de 80% dos cabo-verdianos que não dominam o português. Também aprender a escrever e falar bem o português requer muito tempo e recursos diversos, em comparação com o aprender o crioulo.

Um país dividido pelo português, mas unido Maquiavelicamente pelo crioulo? Os artigos sobre o crioulo como nossa futura (primeira ou única) língua oficial, até agora publicados no jornal Terra Nova, são bem elucidativos da problemática político-democrática que o tema crioulo contra o português actualiza. Este assunto é de grande interesse não só para todos nós cabo-verdianos contemporâneos, onde quer que estejamos, mas também – ou sobretudo – para a futura geração, pela qual somos responsáveis, moral, económica, cultural, ecológica e espiritualmente falando. À luz do acima exposto, uma forma de explicitar esta problemática é declarar que, no fim de contas, elevar o crioulo à primeira língua oficial escrita, através de um decreto-lei (um fiat parlamentar) é, acima de tudo, um problema político e democrático de grande envergadura e de consequências imprevisíveis e inefáveis. Por isso, o problema precisa ser ponderado com muita responsabilidade da parte do governo, dos partidos políticos e outros responsáveis relevantes, em estreita comunicação com o povo a todos os níveis da sociedade. Parece-me que nenhum governo democrático tem a legitimidade de obrigar a todos os cabo-verdianos a falar e escrever um dos crioulos de Cabo Verde, a partir de uma certa data previsível, por imposição legal. Proceder assim seria uma demonstração despótica e maquiavélica. E, na prática, seria ir contra ao senso comum e à moral, para os quais é evidente que ‘o dever fazer algo’ implica ‘o poder fazê-lo’. Por outras palavras, obrigar, por exemplo, os foguenses a falar o crioulo de Santo Antão (ou vice-versa), pressupõe que podem fazê-lo, isto é, que sabem falar tal crioulo. De outro modo, seria imoral obrigá-los a fazer o que não podem. Além disso, seria contraproducente exigir que todos usassem o mesmo crioulo, se a maioria o não pode usar como o meio mais efectivo de comunicação verbal (oral e escrita).252

Mais vale prevenir do que remediar Em consequência do acima exposto, espero que o governo, os partidos políticos, os escritores e, acima de tudo, os habitantes de cada ilha, se consciencializem sobre este

252 E também como a língua exprime a identidade, obrigar que todos usem um certo crioulo, por exemplo o da ilha do Santiago, iria desvirtuar a identidade das gentes das outras ilhas.

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problema que deve ser resolvido democraticamente e não ditatorialmente. Se for necessário, o povo deve ir às urnas e decidir o que devemos fazer do português e do crioulo. Pois, ambos fazem parte da nossa identidade cultural e psicológica. O português é parte integrante da nossa cultura assim como a percentagem do sangue português ou europeu que corre nas nossas veias é parte integrante da nossa biologia humana e da nossa integridade genética. Quem cairia na loucura de obrigar os cabo-verdianos a fazerem uma transfusão de sangue a fim de africaniza-lo? Ou seria também possível um transplante de genes para africanizar os cabo-verdianos? E quem sabe se depois da solução do ‘construído’ conflito entre o português e o crioulo, algum partido ou governo não cairia na tentação de querer mudar os nossos nomes europeus para nomes africanos? De querer mudar os nomes das nossas cidades para nomes africanos, assim como, por exemplo, o que fizeram com a cidade de Lourenço Marques, cujo nome foi mudado parra cidade de Maputo e a Rodésia que foi convertida em Zimbabwe. E quem sabe, se um dia o nosso governo chegará ao ponto de mudar o próprio nome Cabo Verde para um nome africano qualquer, o escudo cabo-verdiano para kuanza, e palavra “cabo-verdiano” para talemundo, etc. Seria este novo modus vivendi dos cabo-verdianos e do seu governo um modo pacífico, moralmente recomendável e cosmopolita de estar num mundo globalizante? A minha resposta é um categórico não. No que concerne à mudança para o negativo, a imaginação criadora dos políticos parece ser um manancial inesgotável! Tendo in mente todas estas hipóteses, não quereria a mesma ditadura mudar: a arquitectura europeia dos nossos edifícios em arquitectura africana? A nossa religião cristã em religiões africanas não cristãs? Os nossos costumes em costumes puramente africanos? Se isto chegasse a acontecer (abrenúncio) teríamos, por exemplo, a circuncisão de meninas em Cabo Verde, a poligamia machista legalizadas e aceites religiosa e eticamente e o costume de comer macaco, etc.253 Qual é o/a cabo-verdiano/a que consente que os seus filhos, netos, bisnetos, venham a habitar num Cabo Verde com as características aqui descritas? Mas não é impossível que isto venha a acontecer. Vejamos o que o ditador Mugabe está a fazer no Zimbabwe! Para que o mesmo não aconteça no nosso país temos de fazer algo agora para evitar que Cabo Verde venha a ser uma república das bananas! Companheiros de luta e sofrimento: é melhor prevenir do que remediar! E quem avisa, amigo é! Pois, tudo isso não passa de um nacionalismo bacoco.254 Resumindo e concluindo, posso comprender que, na euforia da independência, os revolucionários patriotas tivessem rasgado livros escritos em português, mudado os nomes de algumas cidades e ruas, derrubando estátuas como o do Serpa Pinto no Presídio, em S. Filipe da Ilha do Fogo, e comessasem a usar trajos africanos como, por exemplo o Neriere, presidente de Tansania, fazia. Mas depois de mais de três decadas de independência e depois de termos o tempo suficiente de aprender com as outras ex-colónias que, depois da sua independência, adoptaram como língua oficial a dos seus ex-colonizadores, por razões pragmáticas, custa-me acreditar que Cabo Verde esteja ainda a perguntar, sinceramente, se deve usar o português, ou o crioulo como língua oficial. Porque não usar ambas?

253 Como sabemos, é permitido ao homem estar casado com três a quatro mulheres ao mesmo tempo, segundo a religião islâmica. Esta prática é contra a moral cristã que prescreve a monogamia como expressão de igualdade entre homens e mulheres, criados à imagem e semelhança de Deus. 254 Barbosa da Silva, A. (2005), p.3.

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21. Português, uma língua oficial para quem?

Nos dois capítulos anteriores, sobre a relação entre o crioulo e o português, baseados essencialmente em dois dos meus artigos publicados no jornal Terra Nova, sobre o português como língua oficial de Cabo Verde, escrevi sobre a diferença entre o português e o crioulo e acerca das desvantagens e vantagens de um sobre o outro.255 Neste capítulo, baseado num outro artigo, também publicado no jornal Terra Nova256, quero, primeiro, enfatizar a função ou o papel do português em Cabo Verde. Segundo, quero analisar o problema dos filhos dos emigrantes nos países fora das regiões dos PALOP, quando confrontados com o ler, o falar e o escrever o português. Este artigo vem a propósito do V. Congresso dos Quadros cabo-verdianos ocorrido em S. Vicente, em Abril de 2011. No referido congresso foi posto em causa a exclusiva comunicação em português entre os participantes procedentes de vários países de emigração cabo-verdiana. A ministra das Comunidades, Fernanda Fernandes, tomou a crítica ad notam e fez o seu discurso de encerramento do congresso em crioulo, o que é de louvar.

A função ou o papel do português em Cabo Verde Não há dúvida alguma que a língua de comunicação verbal, por excelência e par préférence, entre todos os cabo-verdianos, quer em Cabo Verde, quer na diáspora, é o crioulo. Sob este ponto de vista, o português desempenha, hoje, um papel secundário entre nós. Mas o português tem uma outra função importante em Cabo Verde, uma função que o crioulo ainda não tem (cf. os dois capítulos anteriores), mas que pode vir a ter no futuro, caso não venha a perder o seu valor actual, ou por outras palavras, se não deixar de “… ser o principal signo identitário e, por isso mesmo, ainda que em alguns casos somente em potência, o principal elo de ligação, de identificação e de comunicação entre os caboverdianos (sic.) de todos os tempos e lugares …”.257 Porém, o português

255 Em Maio de 2004 e Abril de 2005. 256 Barbosa da Silva, A. (2011), p. 2. 257 José L. Hopffer. Almada, Expresso da Ilhas, 27.04.2011, p. 33.

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desempenha um papel preponderante noutros aspectos fundamentais da vida e cultura crioulas. Segundo José Luís Hopffer Almada:

“[…]o português tem sido […] língua depositária de grande parte (talvez da esmagadora) da nossa literatura e da nossa cultura erudita bem como dos arquivos escritos da nossa memória histórica, política, jurídica, social, económica, cultural, técnica, científica, jornalística, etc., acrescendo ainda em seu favor a sua condição de língua seladora da nossa pertença à comunidade dos países de língua oficial portuguesa bem como a sua função de mais importante instrumento linguístico de comunicação oficial do nosso povo soberano e dos representantes do nosso estado independente com a comunidade internacional das nações soberanas independentes e com as suas inúmeras organizações intergovernamentais e supranacionais.”258

Portanto cada uma das duas línguas, mas de maneira diferente, desempenha um papel imprescindível tanto em Cabo Verde como na diáspora cabo-verdiana. Por isso, precisamos de ambas.

Os descendentes dos emigrantes e o português como língua oficial Para os descendentes dos emigrantes, o português, como língua oficial de Cabo Verde, privilegia uns e desprivilegia outros. Reflectindo sobre a problemática dos Quadros e Técnicos cabo-verdianos da diáspora, problemática abordada no V. Congresso acima referido, relevantes ao desenvolvimento integral de Cabo Verde, os descendentes de emigrantes cabo-verdianos, em países de língua oficial portuguesa, têm muitas vantagens em relação aos descendentes de emigrantes cabo-verdianos nascidos e educados em países com outras línguas oficiais, como o espanhol, o francês, o italiano, o holandês, o sueco, o norueguês, o inglês, etc. Pois, se tiverem de concorrer com os primeiros, a um trabalho qualificado em Cabo Verde, os descendentes de cabo-verdianos que não sabem o português, estarão em desvantagem em relação aos que dominam esta língua. Podemos imaginar um bom médico, engenheiro ou professor cabo-verdiano que fale mal o crioulo e não saiba o português – como é o caso de muitos descendentes de cabo-verdianos na diáspora, mas que domina outras línguas e queira trabalhar em Cabo Verde. É claro que não pode fazê-lo, por lhe faltar um instrumento indispensável ao desempenho da sua profissão, nomeadamente a língua portuguesa. Como apontamos atrás, no campo da ciência, da jurisprudência, da política, do jornalismo, da comunicação social, da diplomacia com os países de língua oficial portuguesa, etc., predomina o uso do português em Cabo Verde e nas Embaixadas cabo-verdianas pelo mundo.

Precisamos de dominar tanto o crioulo como o português Precisamos do crioulo para podermos comunicar com os nossos familiares e o povo cabo-verdiano, em geral, mantendo assim vivo um elemento básico da nossa cultura e uma das bases essenciais da nossa identidade crioula. Precisamos também do português para podermos compreender e defender os nossos direitos e reconhecer os nossos deveres de cabo-verdianos. Falando dos nossos direitos e deveres, podemos perguntar, por exemplo, como é possível votar livremente, durante as campanhas eleitorais, se a constituição do nosso país está escrita num português vernáculo, que a maioria da nossa gente não

258 Ibid.

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compreende bem?259 Como votar num determinado partido político, se o programa de cada partido está descrito num português de estilo jurídico, difícil de entender, mesmo para os que tenham um conhecimento razoável do português? Que informação captamos quando a comunicação social, os mass mídia e os vários panfletos partidários nos informam das ideologias, das promessas e dos argumentos dos candidatos a serem eleitos (para deputado, presidente da república, etc.), se as informações relevantes, na sua maioria, são expressas em português que a maioria do povo cabo-verdiano não entende? Convém sublinhar aqui que o domínio de uma língua investe o usuário de poder (inglês, empower). Quando uma pessoa fala ou escreve tão complicado que a maioria do povo não entende, ela está a abusar do poder que o domínio da língua lhe dá para, consciente ou inconscientemente, enganar, marginalizar ou oprimir a maioria do povo. Quem, sem necessidade, usa uma linguagem complicada não é um verdadeiro democrata, mesmo que seja o mais alto representante, ou um simples simpatizante.

Os descendentes dos emigrantes devem aprender o português Se queremos preservar a nossa identidade crioula, se desejamos realmente participar, consciente e activamente, no processo democrático a todos os níveis do exercício do poder político (poder legislativo, jurídico e executivo), num estado democrático de direito – em vez de ficar de braços cruzados a aplaudir discursos bonitos que não (ou mal) compreendemos –, já é tempo dos cabo-verdianos da segunda e terceira geração de emigrantes começarem a aprender bem tanto o crioulo como o português. Pelo menos, na Europa Ocidental, todas as crianças têm o direito de aprender, na escola, a sua língua materna. É um direito humano, e como tal, o estado tem o dever jurídico e a obrigação moral de prover às crianças, inclusive às crianças descendentes de emigrantes, seja de onde quer que venham, os recursos humanos e materiais didácticos necessários a realizar este ideal bem humano. Nós também, como pais ou encarregados de educação, devemos reivindicar e contribuir para a promoção deste direito humano.260

259 Um português que poucos cabo-verdianos entendem, apesar do facto da Constituição da República de Cabo Verde defender os nossos direitos fundamentais. 260 Barbosa da Silva, A. (2011), Terra Nova, p.2.

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22. A ‘esquizofrenia’ dos ex-colonizados em relação à Europa Há um fenómeno muito peculiar que une os povos ex-colonizados não para os fazer irmãos mas sim protestantes contra o que acham ser autenticamente propriedade dos seus antigos senhores – os colonialistas. Por questão de espaço, restringir-me-ei, aqui, a analisar e comparar a atitude dos cabo-verdianos e angolanos quanto ao uso oficial do português em Cabo Verde e Angola. A palavra “esquizofrenia” significa mente dividida, e é usada neste sentido, sem identificar a causa de tal divisão, evitando assim de fazer um juízo de valor (diagnosticar), quanto à saúde dos que, numa confrontação cultural, exibem uma mente dividida, o que não está em questão aqui. Por outras palavras, ‘esquizofrenia’ não designa aqui uma patologia mental específica, mas antes ao uso ambíguo e contraditório de certos valores herdados do colonialismo, uso expresso numa arbitrariedade de tomada de certas atitudes e na exibição de certos actos e comportamentos, com os quais um indivíduo desempenha papéis diferentes, como se o mesmo tivesse duas identidades culturais completamente opostas. Podemos também dizer que tal indivíduo tem uma personalidade dividida, como ilustrarei no que se segue.

O português como língua oficial em Cabo Verde e Angola Nestes últimos três anos tenho descoberto que não são só os cabo-verdianos que se preocupam com o uso do português como sua língua oficial. O mesmo acontece, por exemplo, em Angola. Parece-me, contudo, que em Angola já chegaram mais longe na luta de substituir o português por outras línguas autóctones, ou de simplificar o português, fazendo dele uma língua essencialmente angolana (assim como aconteceu com o português no Brasil), desprovida de algumas das suas características autenticamente “portuguesa” ou europeia. Assim escreve o escritor angolano de pseudónimo Wa-Zani no Jornal de Angola de 06.04.2010:

“… o argumento da liberdade estética das palavras em função de cada povo, faz-me, de repente, lembrar uma crónica do nosso escritor Manuel Rui sobre a ’maka do k’. […]. Na realidade, há uma irreverência angolana da pós-independência, que – fora do contexto de qualquer lógica etimológica (já que as línguas africanas de origem bantu são ágrafas) e sem esperar pelo Acordo Ortográfico – introduziu, revolucionariamente, a letra “k”, onde achou, que o deveria fazer. De repente, passámos a escrever: Kabinda em vez de

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Cabinda; Kunene em vez de Cunene; Kuando Kubando (ou K.K.) em vez de Cuando Cubango; Kwanza em vez de Cuanza; kandengue em vez de candengue; bakongo em vez de bacongo... enfim: tudo o que é nosso – mangolé – e não saiba a ’tuga’ ou a ‘brazuca’, passou a ser escrito com a letra “k” e não há hoje quem, em Angola, consiga dizer que há erro e não uma dupla grafia. Só por isto, valerá a pena ratificar o Acordo Ortográfico e terminar com a ‘maka’ da pressão que brasileiros e portugueses (estes de forma inexplicável, pelo passado de resistência ao próprio Acordo Ortográfico) passaram a exercer sobre nós.” (A ênfase é nossa.)

Não foi apenas em Angola que os literatos e revolucionários se apaixonaram pelo uso do “k” e outros consoantes ad libitum. Como já vimos, o novo estilo de escrever o crioulo – segundo as recomendações do ALUPEC – exige que, por exemplo, as palavras crioulas: cabalo, cumpadre, vaca, câmara, chia, m’sentí, sintâ, etc., sejam escritos como: kabalo, kumpadre, vaka, xia, m’xinti, xínta, etc. Como argumentei num artigo no jornal Terra Nova 17 de Abril 2004, este novo estilo não é pragmático, eficiente e útil, pedagogicamente falando (cf. capítulo 19 acima). Pois, a criança crioula que tenha de aprender o português, é obrigada a percorrer um ‘longo caminho’ entre o “cavalo” português e o “kabalo” crioulo para poder sentir-se em casa em Portugal e em kasa em Cabo Verde. E, como já vimos, esta paixão febril pela letra “K” e outras, não é peculiar para os cabo-verdianos amantes dos decretos do ALUPEC/K. Em Angola também o “k” está a servir de instrumento de africanização de palavras topográficas e outras parecidas com palavras portuguesas ou aportuguesadas.

A resistência portuguesa ao acordo ortográfico aceite pela CPLP

Convém salientar que os cabo-verdianos e angolanos não são os únicos cidadãos das Comunidades dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que mostram resistência à aprendizagem do português como tal (nos seus respectivos países) ou à aprendizagem do mesmo segundo o novo Acordo Ortográfico de 2008. Por exemplo, o poeta português Manuel Alegre diz o seguinte sobre o seu desacordo em relação ao referido Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, apresentando como exemplo o facto de, para ele, ser já muito tarde ter de “ ‘escrever facto sem a letra c’ ”, isto é, fato como se escreve no Brasil. A resposta do angolano, Dr. Filipe Zau, a este desacordo ou protesto, inter alia, é:

“…o nosso poeta parece ignorar a existência de uma dupla grafia que, no novo Acordo Ortográfico, resguarda a forma como os diferentes povos pronunciam as palavras em Língua Portuguesa. Assim sendo, as variantes do idioma estão respeitadas e o poeta Manuel Alegre pode, sem crise, continuar, no seu país, a “escrever facto com a letra c”, tal como qualquer brasileiro “fato sem a letra c”. Mas há ainda outras duplas grafias, tais como: académico/acadêmico, amazónia/amazônia, anatómico/anatômico, António/Antônio, bebé/bebê, bidé/bidê, blasfémia/blasfêmia, canapé/canapê, caraté/caratê, cénico/cênico, cocó/cocô, cómodo/cômodo, croché/crochê, efémero/efêmero, fenómeno/fenômeno, gémeo/gêmeo, género/gênero, génio/gênio, guiché/guichê, judo/judô, matiné/matinê, metro/metrô, ouro/oiro; puré/purê, quota/cota; ténue/tênue, tónico/tónico; secção/seção... “.261

Há mais argumentos tanto contra os conservadores, como o poeta M. Alegre, como contra os ultrarrevolucionários dos países pertencentes a CPLP (que usam a letra “K” como um dos critérios fundamentais para distinguir as sua línguas nativas da língua

261 Jornal de Angola de 28.03.2010.

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portuguesa), mas os exemplos acima chegam para o nosso propósito que, acima de tudo, é de ilustrar o status quo, ou status presens da língua portuguesa em Cabo Verde e Angola.

Afinal de contas o português é de origem cosmopolita

A maioria dos vocabulários portugueses é de origem neolatina. Mas a língua portuguesa (europeia) também contém numerosas palavras, gregas, árabes, judaicas, africanas, asiáticas e “brasileiras”. Parece-me que ninguém, que conheça bem o português, e a história de Portugal, duvide que este idioma contenha palavras gregas, árabes e judaicas. Por isso, não vou exemplificar estes tipos de palavras. Mas é natural que haja, principalmente em Portugal, quem não acredite que o português contenha muitas palavras africanas. O Dr. Filipe Zau nos dá o seguinte esclarecimento a este respeito:

“De entre vários, José Ramos Tinhorão, na sua obra Os Negros em Portugal – Uma presença Silenciosa, apresenta os seguintes exemplos: bunda (nádegas), do quimbundo mbunda; cachimbo, do quimbundo kixima, escavação aberta numa superfície formando um oco ou buraco; cabaço (no sentido popular de virgindade feminina; hímen), do quimbundo kabasu; cambada, do quimbundu dikamba, amigo, parceiro, camarada; careca, do quimbundo makorica, calvície; cochilar, do quimbundo kochila, dormitar, o que deu origem também a cochilo; carimbar do quimbundo kirimbu, marca, com as formas verbais Kuta-kirimbu e kubaka-kirimbu, marcar; encafuado, metido em lugar ermo e escuro, do quimbundo ka-nfundu, moradia em lugar distante e ermo; minhoca, do quimbundo nhoca, cobra, tendo aglutinado o prefixo locativo mu (em, dentro de), o que configura a ideia de anelídeo encontrado no interior da terra; quezília, do quimbundo kijila; tanga, do quimbundo ntanga, pano com que se cobre o corpo todo ou parte do mesmo…”. (Ibid.)

Adoramos muitas coisas europeias até mais do que as nossas Mas porquê embirrar com o uso do português, nas ex-colónias portuguesas, se há outras coisas – outros costumes – herdadas que não nos causam nenhuma reacção negativa. Pelo contrário, esses costumes são venerados e cultivados com esmero e muito orgulho, como se tivessem sido sempre nossos. Por exemplo, os vestuários usados em Cabo Verde são, na sua maioria, de origem europeia ou americana, o costume de desfrisar o cabelo, que as mulheres praticam para poderem assemelhar às europeias. O uso da faca e do garfo às refeições, o ouso de vários tipos de vestuários, por exemplo, o fato e a gravata, etc. Os nomes e apelidos cabo-verdianos são quase todos europeus. Se somos obrigados a trocar o português com outras línguas, em Cabo Verde ou em Angola, que faremos dos outros instrumentos de comunicação e de usos e costumes? Pelo que sei, as leis dos países ex-colonizados, a formação de magistrados e juristas são todos, mais ou menos, “importados”, principalmente de Portugal e do Brasil. Onde é que vamos parar com mudanças? Por estas e outras razões, estou de acordo com a autora (Lds-Italia) do artigo “O crioulo língua oficial? Que loucura”, no jornal Terra Nova de Fevereiro de 2010, quando ela afirma: “A meu ver a língua de Camões é talvez a única herança positiva que a época portuguesa nos deixou”. Parece-me que (Lds-Itália) tem razão. E para deixar a alma de Camões em paz, sublinho que “o único proprietário de uma língua é apenas o falante dessa mesma língua” (Zau, F., ibid.).262

262 Um livro que nos pode ajudar a compreender a nossa atitude ambígua para com tudo que é europeu é

Casa Grande & Senzala por Gilberto Freye 1936.

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Portanto, resumindo e concluindo, o desejo revolucionário de mudar o que é europeu para o africano tem de ser repensado criteriosamente. Por exemplo, em Moçambique mudaram o nome da antiga capital que era Lourenço Marques, para Maputo. Mudança do género ocorreu também nas outras ex-colónias portuguesas, e Cabo Verde não é uma excepção. Assim houve mudanças dos nomes dos liceus e dalgumas ruas. Que o leitor venha com mais exemplos! Ao oscilarmos entre os costumes e valores europeus adoptados e os repudiados, não estamos a demonstrar uma personalidade dividida? Mas qual é o critério que usamos para escolher de entre os vários costumes e valores europeus? Lembremos que da pessoa africana só os dentes e o trabalho de escravo têm valor para o europeu! 263 Os dentes por serem brancos e os escravos africanos por causa da sua força muscular!

263 Barbosa da Silva, A. (2004). Terra Nova Maio de 2010, p.8.

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23. Cabo Verde no triângulo África, Europa e as Américas O facto de Cabo Verde estar geograficamente situado entre três continentes é incontestável. Por isso a mentalidade do cabo-verdiano de hoje, ideológica e culturalmente, é uma mistura de certos aspectos da cultura africana, da europeia e da americana (dos EUA), embora muitos não estejam conscientes disto. Sei que é uma simplificação falar dessas três culturas, de maneira generalizada, como faço aqui, mas, apesar de tudo, pode ser ilustrativo em relação ao propósito limitado deste capítulo.

Alguns aspectos relevantes da cultura africana Parece-me que poucos cabo-verdianos duvidam que o povo cabo-verdiano é africano; quer racialmente, quer culturalmente falando. Aqui é relevante enfatizar os aspectos ou elementos africanos da nossa cultura. O que, de imediato me vem à mente, é sobretudo, a língua crioula, a morna, a coladeira e o funaná, a nossa morabeza (que inclui em si o espírito comunitário), certos aspectos da nossa culinária e a coesão social dos crioulos.264 Entre estes aspectos, parece-me que a língua crioula está a sobreviver sem muita resistência à cultura estrangeira, comparada com alguns dos outros aspectos da nossa cultura. Por exemplo, as músicas estrangeiras ou as nossas músicas inspiradas e/ou influenciadas por músicas estrangeiras estão, em certas ilhas, a ter uma posição preponderante em relação às nossas músicas tradicionais. Se isto continuar, poderemos vir a perder certos aspectos característicos da vertente africana da nossa cultura. A meu ver, uma tal perda poderá enfraquecer tanto a nossa identidade nacional como a cultural e psicológica, isto é, o que é distintivo da cultura e personalidade crioulas. Por isso, partilho a preocupação de Leopoldo Sedar Senghor, distinto líder africano e ex-presidente do Senegal, quando declarava “que se torna necessário, ao lado da reconstrução económica, ‘descobrir novos valores culturais, próprios da civilização negro-africana: emoção e simpatia, ritmo e forma, imagens e mitos, espírito comunitário e democrático’ ”.265 No que se segue, vou aludir à nossa perda de certos valores de raízes africanas, cuja consequência pode ir em detrimento da nossa comunidade de sentimentos e valores, de identidade cultural, nacional e individual, valores necessários à nossa sobrevivência (como povo e nação unida), nossa cooperação e nossas competições com representantes de outras nações, concernentes à realização de certos valores e ideais universais. Podemos nomear, a título de exemplo, o desenvolvimento económico e democrático e a participação em pesquisas científicas e em jogos olímpicos.

264 Este aspecto da nossa cultura mais se manifesta em situações tristes, como num funeral. 265Zau, F. S. (2011). Cf. artigo em Jornal de Angola 29 de Abril de 2008.

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Aspectos relevantes da cultura europeia Quanto à influência da cultura europeia na cultura cabo-verdiana, principalmente a portuguesa – por razões óbvias – podemos, resumidamente, indicar os seguintes aspectos. Comecemos pelos nossos costumes gastronómicos. Apesar de possuirmos comidas típicas, somos bastante influenciados pela gastronomia portuguesa, cultivada e herdada durante 500 anos de colonialismo e imperialismo. Também o nosso costume de usar facas, garfos e colheres, parece ter a sua origem no mesmo costume português. É bom lembrarmos que em muitos países do terceiro mundo, especialmente em África e na Ásia, as pessoas usam os seus dedos em vez de grafos, facas e colheres. Na área do vestuário, também somos essencialmente dominados pelos hábitos portugueses. Na comunicação linguística somos muito influenciados pelo uso do português, quer no nosso uso do português como língua oficial, quer na etimologia, no conteúdo, na gramática, lógica e semântica da língua crioula. Como a língua e o pensamento estão intimamente ligados, não é de estranhar que pensemos de forma semelhante aos portugueses que nos colonizaram. Joseph Stiglitz, professor de economia e ex-vice-presidente do Banco Mundial, galardoado com o Prémio Nobel em 2001, afirma que “No pós-guerra houve um declínio de influência das antigas potências coloniais, mas a mentalidade colonialista ficou – a certeza de saberem o que é melhor para os países em desenvolvimento.”266 Infelizmente os povos ex-colonizados continuam dependentes da mentalidade colonialista. As influências portuguesas/europeias fazem-se sentir também nos nossos valores morais, religiosos e estéticos, nos nossos sentimentos, etc. Vejamos, por exemplo, o nosso conceito de saudade, os ritos e as cerimónias relacionados com a doença, o sofrimento, a morte, o luto, etc. Podíamos continuar a falar de outros domínios como da vida socioeconómica, jurídica e política, em que a influência portuguesa é enorme.

Aspectos relevantes da cultura americana A história relativamente longa da emigração cabo-verdiana para os Estados Unidos da América do Norte (EUA), a enorme quantidade de cabo-verdianos residentes nos EUA, e a contínua interacção cultural e outras entre Cabo Verde e os EUA, não podem deixar de exercer uma influência considerável na cultura e mentalidade cabo-verdianas. Por isso, o que o cabo-verdiano apesar do seu patriotismo, leva dos EUA para Cabo Verde não é apenas o dólar e utensílios materiais. Consciente ou inconscientemente leva também certos aspectos culturais dos EUA. Sem avaliá-los aqui, em termos de valores bons ou maus (que cada leitor atento faça o seu juízo a este respeito), quero nomear aqui os seguintes aspectos. O espírito liberal e individualista (não necessariamente egoísta ou geocentrista), o espírito empresarial e de concorrência, uma mentalidade bastante materialista, um certo espírito democrático, e um certo orgulho exibicionista e de autossuficiência exacerbado ou exagerado, a auto-estima, autoconfiança e a convicção de que o trabalho árduo tem a tendência de dar bom resultado e sucesso individual.

A necessidade de integrar os três tipos de influência

266 Stiglitz J. E. (2002), p.11

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Se os políticos, os educadores e servidores do povo cabo-verdiano não tentarem integrar, consistente e coerentemente, os três tipos de influência cultural existentes na nossa cultura – e portanto determinantes da nossa mentalidade e identidade –, não conseguirão influenciar os cabo-verdianos, de uma maneira positiva, no âmbito de um desenvolvimento integral, cujo propósito principal é o progresso democrático traduzido na defesa, protecção e promoção da justiça, bem-estar e da paz social e da segurança dos habitantes das nossas ilhas. Quando se fala, hoje em dia, de desenvolvimento de um país, refere-se normalmente ao nível económico do país. Mas o conceito de desenvolvimento é bastante complexo. Nele deve-se incluir não só o progresso económico, mas também a distribuição equitativa dos bens e serviços disponíveis, o grau de implementação da saúde, a alfabetização e educação escolar (com qualidade) da população, o número dos empregados em relação aos desempregados, o grau de participação dos cidadãos no comércio, na indústria e, sobretudo, na política (cf. democracia participativa e não só representativa) e também “[…]a assumpção de paternidade e maternidade responsáveis, os direitos das mulheres, a saúde, a protecção do ambiente e dos animais e a solidariedade social.”267 Todos estes aspectos, mais a tão necessária promoção de valores morais, espirituais, estéticos, etc., constituem conjuntamente o desenvolvimento integral. Por outras palavras, falamos aqui do progresso de Cabo Verde a nível económico, tecnológico, político, cultural, educacional, moral, espiritual, etc.268 (Veja capítulo 11 atrás.) Resumindo e concluindo, quero sublinhar que qualquer política de desenvolvimento integral, será mais ou menos eficaz, na medida em que toma em consideração as três referidas culturas em que o cabo-verdiano está inserido. Aqui usamos a palavra “política” num sentido lato.269

O dilema do emigrante, a necessidade de um ideal super-individual e de uma autêntica solidariedade nacional Foi bom o "apelo" do primeiro-ministro, Dr. Carlos Veiga em 1998, aos quadros cabo-verdianos na diáspora para prestarem a sua contribuição para o desenvolvimento integral de Cabo Verde.270 Infelizmente não são apenas os 200 médicos cabo-verdianos residentes em Portugal que precisam de um apelo semelhante. Há cabo-verdianos especializados nos mais diversos domínios da ciência e da tecnologia, espalhados por esse mundo fora, especialmente na Europa e nas Américas. Todos eles precisam de escutar um tal pertinente apelo. Infelizmente, escutar é uma coisa e responder positivamente ao que ouvem é outra, completamente diferente. No que se segue vou tentar defender a tese: sem um ideal superindividual e nacional não haverá solidariedade entre nós. O regresso definitivo e o dilema do emigrante

267 Zau, F. S. Jornal de Angola, 11.06.2010. 268 Como um parêntese, podemos dizer que Cabo Verde, em termos do volume de emigração, em todos os continentes, é muito parecido com Israel. Mas está Cabo Verde disposto e interessado em aprender com Israel, no que diz respeito à integração cultural dos seus emigrantes? Aprecia Cabo Verde os valores imateriais que os emigrantes podem trazer para Cabo Verde, além dos valores materiais e dos seus votos em eleições livres? Aqui precisa-se de um diálogo autêntico entre “os de dentro” e “os de fora” de Cabo Verde para o bem de ambas as partes ou seja de Cabo Verde inteiro! 269 Riga, Latia, 16 de Março de 2011. 270 O apelo do Sr. Dr. Carlos Veiga foi repetido numa entrevista na televisão cabo-verdiana em 1998.

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O facto do emigrante, especializado ou não, não regressar à sua terra é infelizmente um grande problema não só para Cabo Verde, mas também para quase todos os países do terceiro mundo.271 Chegou, por isso, a hora de perguntarmos criticamente qual é o motivo ou a razão da nossa recusa de regressar definitivamente à pátria amada que tem tanta falta dos nossos conhecimentos, enquanto muitos de nós especializados estão a ser marginalizados na diáspora a ponto de nós nos sentirmos como mãos-de-obra supérfluas em países abundantes em tudo. Isto demonstra quão desarreigado o emigrante está, quer dizer, perdido, jurídica e culturalmente, na terra de ninguém. Esta nossa situação me faz recordar a canção “quem eu quero não me quer272, quem me quer mandei embora, e por isso já não sei, o que será de mim agora … no meu quarto de saudade, solidão mora comigo”. A solidão mais cruel que o isolamento físico é a marginalização e o isolamento social, os quais o emigrante sofre e por vezes até na sua própria terra natal.

O emigrante é alienado tanto em terra alheia como na sua própria O emigrante sente-se alienado (estrangeirado) tanto no país onde vive como na sua própria terra. Não basta a marginalização a que está sujeito em terra alheia. A causa dos males sociais europeus como o desemprego, a droga, crimes diversos, etc., é na Europa, na maioria dos casos, atribuída aos emigrantes do terceiro mundo, os quais, para requintar a sua calamidade, são vistos como portadores e importadores do SIDA. Num destes países, porta-vozes do departamento da saúde e altos representantes do Governo, têm exortado os cidadãos nativos (membros da raça "pura") a evitar relações sexuais com africanos, por estes serem portadores do fulminante VIH. Tudo isto mostra a situação dilemática e humilhante em que o emigrante do terceiro mundo, principalmente da África, está a viver no primeiro mundo. E o dilema do emigrante cabo-verdiano permanece o mesmo que sempre foi: quer partir, mas as circunstâncias forçam-no a ficar. É, portanto, imperativo, impreterível, necessário e conveniente que tanto nós emigrantes como os governos dos países da nossa procedência comecem a ponderar seriamente este assunto antes que seja tarde demais, antes de termos de confrontar un fait accomplit, nesta Europa dita humanista, mas onde a xenofobia, o racismo e o neofascismo florejam vertiginosamente como na década de trinta, imediatamente antes de Hitler, Mussolini, do generalíssimo Franco e de Salazar introduziram o fascismo e nepotismo na Europa Ocidental, algo parecido com o regime então em vigor na então existente União Soviética das Repúblicas "Socialistas" (lê-se este último hoje: "Comunis-tas"). O preocupante problema da xenofobia e a situação precária do emigrante na Europa foram abordados no I Congresso dos Quadros e Técnicos Cabo-verdianos na Diáspora, de 29 de Junho a um de Julho de 1994, em Lisboa:

“O congresso que se realizou em Lisboa tem um significado histórico que ultrapassa o valor de qualquer outro do género até hoje organizado. Surgiu da necessidade da diáspora se reafirmar perante um mundo xenófobo perante uma certa indiferença das autoridades cabo-verdianas quanto ao que Cabo Verde espera no futuro, da capacidade e experiências multiformes dos cabo-verdianos espalhados em mais de 30 nações.”273

271Este facto pode beneficiar certos países anfitriões em detrimento dos países fornecedores de emigrantes. 272 Os emigrantes especializados querem ir trabalhar em Cabo-Verde. Mas parece-me que o governo e as pessoas bem posicionadas em Cabo Verde não os querem receber como concidadãos com iguais direitos e deveres. 273 António e Domingos Barbosa da Silva (1994), p.7.

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À luz do acima exposto, tentaremos contextualizar o supra referido apelo do Dr. Carlos Veiga como se segue.

Estudantes cabo-verdianos no estrangeiro e seu regresso definitivo Com respeito aos estudantes cabo-verdianos na Europa, os países europeus não estão a dar bolsas de estudos pessoalmente a indivíduos do terceiro mundo. Se estou bem informado, dão bolsas a Governos do terceiro mundo e estes distribuem-nos como bem entenderem, mas os países anfitriões exigem que os bolseiros regressem definitivamente aos seus respectivos países, logo após o término dos estudos. Segundo o jornal cristão Vårt Land e outros jornais noruegueses, esta é a prática hoje em dia na Noruega, um dos países mais rico do mundo, ou se calhar o mais rico! Esta é também a prática, por exemplo, na Nossa Faculdade de Teologia em Stavanger, onde recebemos anualmente à volta de 10 bolseiros africanos para o Mestrado, sob a proposta de regresso definitivo dos mesmos. Mas se apesar de aceitarem esta condição, não regressam, é porque há alguns factores importantes que os impedem de regressar, por exemplo, o problema de readaptação a um ambiente social alienante. Mas há outros factores. Depois do I Congresso dos Quadros e Técnicos cabo-verdiano na Diáspora, realizado em Lisboa em 1994, apontámos alguns desses factores: “O problema dos preços das passagens, dos hotéis e outras coisas foi objectivo de reflexão e de preocupação de vários congressistas. Os preços exorbitantes são um verdadeiro estorvo ao regresso definitivo do emigrante e estão a impedir que muitos emigrantes visitem a terra.”274 Mesmos os estudantes cabo-verdianos no estrangeiro – que não são emigrantes – encaram o mesmo dilema ético que os emigrantes: querer regressar à mãe pátria, mas ter de ficar. Durante seis anos ou mais – seis ou sete – que alguns bolseiros têm de viver fora da sua terra, muito pode acontecer que possa tornar o seu regresso definitivo numa impossibilidade prática. Mas seis anos não são seis dias (em crioulo: seis ano ê câ seis dia)!275 Seria, por isso, louvável se os governos do terceiro mundo dessem aos seus bolseiros, no estrangeiro, a possibilidade de, durante as férias, fazerem parte das suas práticas "profissionais" nos seus próprios países. Se assim acontecesse, um estudante de medicina, por exemplo, aprenderia desde o princípio dos estudos, as deficientes condições sanitárias do seu país e adaptar-se-ia às precárias condições em que no futuro terá, eventualmente, de trabalhar, ou de se "desenrascar", o melhor que puder. Deste modo, o estudante de medicina ou futuro médico conservaria os seus laços de amizade com pessoas amigas na terra natal, não perderia o interesse de trabalhar para sua terra, visto trazer sempre viva na sua mente a experiência vivida durante as férias no solo pátrio. Estaria talvez sempre adaptado à água e comida, ao ar, e, sobretudo, à morabeza crioula, e não esqueceria o crioulo, língua da sua mãe, seu instrumento principal e imprescindível de comunicação verbal genuína com o povo. A curto prazo, o governo de Cabo Verde teria de investir, o que implica "perder" financeiramente com isto, a curto prazo. Pois, o problema principal de passar as férias em Cabo Verde é as passagens exorbitantes, e o facto de o estudante, muitas vezes, ter de

274 Ibid. 275 Aqui refiro-me aos estudantes que têm de estudar durante seis ou sete anos para obterem a sua diploma de, por exemplo, médico, engenheiro civil e farmacêutico. Clara que há bolseiros que precisam de dois anos ou menos para um determinado curso académico. Mas há também outros que precisam de mais anos, caso tencionam obter um bacharelato, um mestrado ou a competência e o título de doutor.

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trabalhar durante as férias, no país da sua residência, para poder sobreviver, uma vez que as bolsas, geralmente falando, não são suficientes para uma vida folgada que é uma condição sine qua non para um tempo de estudo tranquilo e frutífero. Daí a necessidade de uma subvenção estatal às passagens e estadias dos bolseiros em Cabo Verde durante as férias, algo com o qual o nosso país, a longo prazo, virá a ganhar em relação à "perda económica" antes mencionada.276 Mas tal “perda” económica deve ser vista à luz de uma solidariedade nacional e de um ideal superindividual, indispensáveis à construção de uma democracia autêntica e dum Estado de direito forte, o que, no fundo, todos os cabo-verdianos patriotas aspiram ou deviam aspirar para o bem de Cabo Verde.

Tanto falar de solidariedade que esta se metamorfoseou em individualismo exacerbado Apesar de termos ouvidos tantas "cantilenas" sobre solidariedade (in illo tempore, isto é, durante cerca de cinco anos após a independência nacional em 1975), apesar da existência de um Instituto de Solidariedade durante os 15 anos de partido único com o desaparecimento inexplicável deste Instituto e a queda do comunismo da Europa do Leste, parece que os que muito cantarolaram tanto a solidariedade como faziam com o "hino" Internacional socialista, se converteram em individualistas exasperados, pregando ou passivamente aceitando agora o dictum da ideologia militar: Cada um por si, Deus por todos, deixando, por isso, o povo ao Deus dará!277 Precisamos, sim, de uma autêntica solidariedade como expressão de um ideal ético comum e superindividual, sendo este último concebido como uma virtude moral, isto é, uma vontade com "a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum, ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos somos verdadeiramente responsáveis por todos".278 Porém, até adquirirmos uma tal virtude e aceitarmos um tal ideal, como prova de uma identidade superindividual ou nacional, temos ainda muito caminho a andar, infelizmente. Summa summarum, parece-me que a verdadeira solidariedade nacional ainda está para nascer entre nós. Quando (ou se) o conseguirmos, será então o momento oportuno (gr. Cairos) de com o senhor Dr. Carlo Veiga, imitando o presidente Joseph Kennedy, perguntarmos o que devemos fazer para Cabo Verde e não o contrário, mas tendo sempre in mente que o Estado foi feito para o Homem i não vice-versa!279

276 Há ainda outras inconveniências – que impedem os bolseiros de regressar definitivamente – mas que o leitor pode acrescentar, escrevendo o seu próprio artigo ou livro acerca do assunto em questão. 277 Santa Bárbara, santa generosa, nha librán de morte que nha morré, nha dán vida que nha vivê! 278 Ver João P. II, Solicitudo Rei Socialis, no 38,30-12-1987. 279 Stavanger, Noruega, 10 de Junho de 1998.

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24. Turismo: vantagens económicas, neocolonialismo ou Apartheid? Este artigo é uma tentativa de analisar como o turismo, a TACV e outros factores socioeconómicos podem contribuir para criar um neocolonialismo e/ou Apartheid em Cabo Verde. Para alguns leitores jovens é informativo e relevante saber que o Apartheid a que estou a referir-me aqui era um sistema político, socioeconómico que existia na República Sul-africana antes de Nelson Mandela ter sido eleito presidente do país em 1994. Como o conceito indica, o Apartheid (i.e., separação) na África do Sul separava as pessoas não brancas das brancas, através da segregação e descriminação raciais, obrigando os não brancos a viverem em ambientes pobres e inumanos, a executarem trabalhos árduos extremamente mal remunerados e a sofrer as muitas consequências negativas desta situação. Com o conceito de neocolonialismo refiro-me a um novo modo de colonizar Cabo Verde (e o terceiro mundo), que ao contrário do colonialismo “clássico” – desmoronado pela luta da independência dos anos 60 e 70 –, consiste, acima de tudo, no hipotecar as riquezas da nossa terra, em particular por ‘entrega-las’ aos estrangeiros. Esta situação que pode criar uma nova dependência capaz de corroer a liberdade que, arduamente, conquistámos e que teoreticamente (de jure) começou com a nossa independência política em 1975, mas que na práctica (de res) só começou com o arraiar de um estado democrático de direito, em 13 de Janeiro de 1991.

Neocolonialismo ou Apartheid em Cabo Verde? Pelo que tenho observado, parece-me que o turismo em Cabo Verde, principalmente nas ilhas do Sal e Boa Vista, já começou a produzir frutos tanto positivos como negativos, estes últimos indesejáveis e com tendência de criar um neocolonialismo e/ou Apartheid. No que se segue vou reflectir sobre as possíveis consequências negativas do turismo sem, no entanto, me esquecer o seu aspecto positivo. Quanto ao seu aspecto negativo, por exemplo, o turismo contribui para que o preço dos géneros de primeira necessidade cresça, desproporcionalmente, em relação ao poder de compra dos cabo-verdianos mais carenciados. Os turistas permanecem satisfeitos, enquanto os preços dos hotéis, das mercadorias, dos transportes, etc., continuarem a ser menores ou iguais aos respectivos preços europeus.280 Mas a maioria dos cabo-verdianos, por serem pobres, tem toda a razão de se sentirem insatisfeitos com os actuais preços dos hotéis cabo-verdianos e dos géneros de primeira necessidade. Como o turismo parece ainda está em gestação no nosso país, podemos dizer que, com o desenvolvimento do mesmo, é muito natural que

280 Na Europa os preços dos hotéis variam de pais para país, sendo a Noruega o país onde os hotéis são dos mais caros do mundo. Por exemplo, o preço de um quarto individual para uma noite, num hotel de três estrelas em Stavanger, Noruega, é à volta de 1000 coroas norueguesas (correspondente a 13 000#00 escudos cabo-verdianos, em 2006). Esta quantia dá para uma pessoa dormir confortavelmente 5 noites, por exemplo, na Pensão Paz e Bem, no Sal. Mesmo que um turista europeu tenha de pagar 5 a 6 mil escudos por um quarto, por noite, num hotel cabo-verdiano, ele não tem razões de ficar insatisfeito, por este preço ser metade do que ele tem de pagar na Europa.

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os preços venham a aumentar consideravelmente.281 A consequência disto é bem clara, para quem esteja interessado no bem-estar dos cabo-verdianos pobres. Devemos, por isso, tomar ad notam as palavras preventivas do senhor bispo do Mindelo, D. Arlindo Gomes Furtado, quando diz: “[...] nota-se a ‘emergência rápida do turismo e o consequente confronto das pessoas com outros níveis de vida’. Às mulheres são exigidas ‘condições indevidas de trabalho’. Estes factores desequilibram e desorganizam a sociedade e o trabalho pastoral [...]’. “282 Do ponto de vista global, eu diria “estes factores”, a longo prazo, contribuem para o empobrecimento de Cabo Verde material, moral e espiritualmente. Como os preços dos transportes públicos, dos táxis e até de alguns artigos de necessidade básica, que variam em certas lojas e restaurantes, dependendo da tez da pele do cliente, com o andar do tempo, as agências turísticas, para evitar esta discriminação no campo do comércio, podem começar a usar os seus próprios hotéis e transportes, como é já o caso da agência sueca Fritidsresor no Sal (agência StarTur, Na Noruega)283. Assim um turista sai do avião, por exemplo, no Sal, toma um transporte da firma sueca Fritidsresor (StarTur) e vai directamente ao hotel, onde pode usufruir de tudo o que necessita (all-inclusive), com uma zona de praia de mar reservada, sem ter de comunicar com a população local. Esta prática turística não contribui positivamente para a economia local e, por conseguinte, para o desenvolvimento das populações. No Liberal online de 1 de Outubro de 2012 podíamos ler o seguinte:

“Ainda nesta ilha [Boa Vista] …, creio que mais de 95% dos turistas estrangeiros que pernoitam nos hotéis, fazem-no no regime de All-inclusive? O que isso quer dizer? Que o dinheiro que eles pagam pelo pacote volta quase tudo para o estrangeiro. O país fica com os 25 euros pago por cada turista pelo visto e o mísero salário que são pagos aos trabalhadores que são muitas vezes explorados e quem de direito não se faz nada para pôr cobro a esta situação”.284

Não é isto o sistema de Apartheid (a separação de ricos e pobres, de europeus e africanos) posto em prática? Quem não acredita que assim é que espere, pelo menos, mais cinco anos e então verá, se quem de direito não fizer nada para melhorar a situação! (Obs. Isto foi escrito em 2007).

A TAP e a TACV já estão a perder clientes internacionais Hoje pode-se viajar directamente de Estocolmo, Copenhaga, Amesterdão e Roma, etc., em aviões fretados (Charter travels) para a Ilha do Sal e Boa Vista. Talvez, dentro em breve, seja também possível viajar deste modo até às outras ilhas, por exemplo Santiago e S. Vicente. Com esta expansão turística, a TAP e a TACV já estão a perder muitos clientes

281 O conteúdo deste capítulo é quase idêntico ao de um artigo do mesmo autor, publicado no jornal Terra Nova em 2007. 282 O Jornal Terra Nova de Outubro de 2006, p. 2. 283 Com a expressão “o preço depende da tez da pele do cliente”, queremos dizer que o turista branco e o emigrante rico têm de pagar um preço desorbitante por que os nossos vendedores e ‘rabindantes’ pensam que eles têm muito dinheiro. Mas se com o seu poder de compra fazem com que o preço aumente progressiva e enormemente, estão a criar uma situação em que os cabo-verdianos pobres – e são a maioria do povo – não podem concorrer com eles. Uma consequência negativa é que os pobres têm de passar fome e miséria na sua própria terra, enquanto vêem estrangeiros e emigrantes ricos a viverem ricamente. Assim aparece o roubo, a prostituição, a venda de drogas, e outros meios ilícitos, mas fáceis, de ganhar o pão de cada dia e não só. 284 [email protected], no: ttp://liberal.sapo.cv/noticia.asp?idEdicao=64&id=37104&idSeccao=549&Action=noticia

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europeus e alguns cabo-verdianos.285 Se Fritidsresor e outras agências turísticas de igual teor continuarem a oferecer aos clientes este tipo de serviço; bom, barato e efectivo, pode acontecer que a TAP e a TACV fiquem reservadas para os portugueses e cabo-verdianos, que, por capricho ou patriotismo exagerado, teimam em usar transportes nacionais. É interessante constatar hoje – depois de 6 anos – que a situação supra descrita piorou. Hoje 05 de Setembro de 2012, podemos ler, no Editorial do jornal Liberal online, o seguinte:

“Os Transportes Aéreos de Cabo Verde são um sorvedouro de recursos públicos, uma agência de colocação de camaradas do partido e de incompetentes, o que tem levado à perda galopante de mercado, particularmente nos voos para Portugal, em benefício de outras empresas, mormente da transportadora aérea portuguesa, a TAP. Os TACV oferecem um mau serviço, dispõem de preços exorbitantes e é um caos no que respeita a cumprimento de horários”.286

A TACV pode já estar a contribuir para o Apartheid entre nós No dia 22 de Dezembro de 2006, viajei do Fogo para o Sal via Praia. Tanto eu como 2 noruegueses e 4 suecos chegámos ao Sal sem as nossas bagagens. Estivemos no aeroporto de S. Filipe às 06h00 de manhã, e saímos de lá depois das 08h00. Chegámos à Praia por volta das 8.30 e tivemos de esperar na Praia até às 15.15 pela nossa partida para o Sal. Só no dia 23 de Dezembro, depois das 15h00, recebemos as nossas bagagens.287 Uma senhora sueca, nossa companheira de viagem, com um bebé de 4 meses estava muito aflita visto que quase tudo que o bebé necessitava estava na bagagem que não veio como previsto. A bagagem de um dos suecos foi violada e roubaram-lhe um telefone móvel e um frasco de perfume muito caro. Tudo foi reportado à empregada da TACV, teoricamente responsável pela perda ou pelo atraso das bagagens. Mas o que mais nos causou estupefação e indignação foi a reacção dessa senhora que nos disse; que não é da sua responsabilidade o atraso das bagagens e nem os furtos ocorridos. Também eu e um dos noruegueses presenciámos, no mesmo dia, uma confrontação entre a referida empregada da TACV e uma senhora brasileira – que veio da Fortaleza, Brasil, e que também não tinha recebido a sua bagagem.288 Esta explicou a sua situação à senhora responsável por inquerir sobre o paradeiro das bagagens, e perguntou-lhe se

285 Uma viagem com a agência sueca Fritidsresor de Estocolmo a ilha do Sal, com uma semana de hotel pago (mas sem comida) custava, em 2006, 4.395 coroas suecas, enquanto um bilhete de ida e volta para este percurso, com a TAP ou a TACV, custava à volta de 6.000 coroas norueguesas. Estes dados foram apresentados no jornal Terra Nova em Junho de 1998, num artigo cujo conteúdo principal apresentamos aqui neste capítulo. Hoje os preços são diferentes. 286 No mesmo Editorial podemos ler o seguinte: “Sara Lopes – e relembramos ser ela a ministra que tutela a empresa pública de aviação -, com a autoridade decorrente da sua função, disse aos cabo-verdianos que os TACV precisam ‘urgentemente de uma intervenção de saneamento financeiro’”. 287 Depois de alguns de nós termos feito três viagens de táxi entre Espargos e o Aeroporto Internacional, Amílcar Cabral, e uma viagem, de táxi, de Santa Maria ao Aeroporto à procura das nossas bagagens. 288 A senhora brasileira fez uma pergunta necessária, relevante, jurídica e moralmente aceitável no mundo inteiro, onde se sabe lidar com os clientes, isto é, onde os gestores e os empregados de uma companhia de viagem tratam bem e não maltratam os seus clientes, e onde agradecem os seus clientes por estes terem escolhido a companhia deles, por que sabem que o seu emprego, ordenado mensal e anual estão, parcial ou totalmente, dependentes de como tratam os seus clientes, o que costuma ter um efeito positivo, económica e eticamente falando, para a companhia. Mas em Cabo Verde os patrões e empregados das companhias dizem não terem responsabilidade pelo que acontece aos seus clientes, porquanto não têm respeito pelos mesmos e seus direitos inalienáveis, nem simpatia para com eles, o que é de lamentar num mundo globalizante em que vivemos.

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podia ir comprar um par de calças que devia ser pago pela TACV, pois ela tinha esperado pela sua bagagem durante dois dias e ainda trazia a roupas que vestia durante a viagem de Fortaleza a Sal. A resposta foi a mesma que já tínhamos ouvido: “a responsabilidade não é minha”. É claro que ela não tem toda a responsabilidade pelo acontecido, mas, como empregada é representante da TACV, e por isso, ela tem alguma responsabilidade. Ela devia saber que na Europa e nos Estados Unidos, por cada hora que passa, o passageiro, em princípio, tem direito a uma certa quantia em dinheiro pelo atraso da sua bagagem, quantia que aumenta com o tempo de espera. 289 (Para mais informações relevantes referimos a Convenção de Montreal sobre os deveres e direitos das companhias de aviões e passageiros, respectivamente.) O leitor atento e compreensivo tem toda a razão de perguntar, quem na TACV é responsável pela perda ou pelo atraso das bagagens? Perante a referida pergunta, jurídica e moralmente aceitável, a TACV, descarta responsabilidade pelo que acontece aos seus clientes, porquanto não tem respeito para com os mesmos e os seus direitos. Diante um mercado fortemente concorrencial, a TACV tem de perceber que terá de melhorar os seus padrões de qualidade para não correr o risco de perder clientes. Talvez TACV venha a ficar reservada para certos patriotas, enquanto outros passageiros, principalmente os turistas, viajarão em companhias que respeitam os direitos dos seus clientes. Se a TACV continuar assim, pode contribuir para a que exista um Apartheid em Cabo Verde. Isto é, do mesmo modo que os turistas usam aviões estrangeiros para chegarem até Cabo Verde, usam hotéis isolados da sociedade cabo-verdiana, usam operários, mestres-de-obras e materiais de construção italianos, etc., podem estabelecer uma agência de viagem exclusiva para turismo em Cabo Verde o que podia separar, ainda mais, os turistas da população cabo-verdiana. É sob este ponto de vista que digo que a TACV pode estar a contribuir para que haja um Apartheid em Cabo Verde. Caro leitor, se tem algo a dizer sobre este assunto, faça-o sem medo, contribuindo assim para o desenvolvimento da democracia na nossa terra.290

289 Em 2006 não havia informações públicas, como hoje, nos aeroportos de Cabo Verde, informando aos passageiros sobre os seus direitos. Graças a Deus as coisas melhoraram neste aspecto. 290 Barbosa da Silva, A. (2007), p.8.

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25. Ensino, competência e pedagogia – quo vadis Africa? No jornal Terra Nova tem aparecido alguns artigos crítico-construtivos sobre o ensino em Cabo Verde, ao nível primário, secundário e superior-académico. Pelas informações que pude colher, parece-me que não é só Cabo Verde que está no estado de carestia concernente ao conteúdo dos programas educativos, à competência do corpo docente quer no campo didáctico-pedagógico, quer no que diz respeito à relação entre o conhecimento teórico e aplicação prática deste tipo de conhecimento.291 Neste artigo vou ‘escrutinar’ tanto Cabo Verde como o resto da África ao Sul do Sahara em termos de alguns critérios que os próprios peritos africanos parecem ter formulado numa “Reunião Regional Preparatória da Conferência Mundial Sobre o Ensino Superior, Realizada em Dakar”, em Abril de 1997, na qual foram identificados ”onze problemas específicos, que definem a chamada crise estrutural e conjuntural do Ensino Superior em África”.292 No que se segue vou apresentar os problemas já referidos, para depois fazer algumas perguntas críticas aos leitores.

Onze problemas que definem a chamada crise estrutural e conjuntural do Ensino Superior em África

1. Desequilíbrios entre as capacidades instaladas e o aumento do número de estudantes;

2. Planos de estudo desajustados e duração demasiada do tempo das épocas de exames;

3. Parcos recursos financeiros e desequilíbrio entre orçamentos destinados a obras sociais e os orçamentos alocados ao ensino e à pesquisa;

4. Deterioração das infraestruturas e falta de manutenção; 5. Remuneração insuficiente do corpo docente e dos investigadores universitários; 6. Desequilíbrio entre o número de estudantes da opção científica e tecnológica e os

da opção humanidades; 7. Desequilíbrio no género, com prevalência de estudantes do sexo masculino; 8. Desequilíbrio entre a actividade de ensino e a actividade de pesquisa (em

detrimento da última); 9. Insuficiência de planificação e da gestão provisional das actividades de ensino

superior e da investigação; 10. Ausência ou insuficiência de formação pedagógica dos docentes e da formação

em gestão universitária dos corpos directivos e responsáveis administrativos das instituições de ensino superior;

291 Para a necessidade de completar a competência dos professores, veja o artigo do Sr. Padre Bernardino Lima no jornal Terra Nova de Abril, página 7, em que escreve sobre a “falta de cooperação […] e de um diálogo franco e responsável entre país e professores” cabo-verdianos. 292 Zau, F. S.. Artigo em Jornal de Angola 29 de Abril de 2008.

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11. Orientação dos programas de ensino fazendo ênfase na transmissão e restituição dos saberes em detrimento do saber-fazer e da resolução dos problemas prementes da sociedade”.293

Embora estes onze problemas tivessem sido formulados há cerca de 11 anos atrás, parece-me que as condições do ensino em África não mudaram consideravelmente. Por outras palavras, estes problemas são ainda actuais hoje na maioria dos países africanos, inclusive Cabo Verde. Por isso, é actual e relevante fazer algumas perguntas aos meus conterrâneos que estejam interessados no progresso do ensino em África, em geral, e em Cabo Verde, em particular. Como o artigo supra referido, pelo Sr. Dr. Zau, foi recentemente publicado em Angola, como uma crítica construtiva do ensino neste país irmão, de luta e sofrimento, vou comparar Cabo Verde com Angola, sem, no entanto, me esquecer de diferenças várias e importantes entre os dois países.

Está Cabo Verde no mesmo status quo que Angola? Pode uma análise cuidadosa do ensino em Cabo Verde permitir a omissão de alguns dos onze problemas supra descritos? Seria informativo saber se Cabo Verde participou na referida Reunião em Dacar, em 1997, e se a resposta for positiva. Uma outra pergunta seria: qual foi a sua contribuição na análise dos temas então abordados e qual a sua promessa concernente ao futuro do ensino em Cabo Verde, à luz da referida análise. Na sua observação dos problemas que o ensino superior em Angola está a enfrentar hoje o Sr. Doutor Filipe Zau cita o dicionário de Pedagogia de Mauro Laeng, no qual o autor aconselha ao leitor a “evitar a opinião equívoca de que qualquer indivíduo pode ser professor, desde que saiba o que vai ensinar. Há aspectos próprios da profissão magistral que só uma cultura adequada (nas ciências humanas, principalmente psicológicas e sociais, e na pedagogia e didáctica) e um estágio apropriado podem, geralmente, desenvolver”. À luz do conselho do Sr. Mauro Laeng, e tendo in mente o problema do ensino superior em Angola o Sr. Professor catedrático, Doutor Zau afirma o seguinte:

- ”Não esclarecer a promiscuidade hoje existente entre o profissional do ensino e aquele que remedeia as dificuldades do sistema educativo, dando aulas sem a necessária formação profissional-pedagógica é, no mínimo, contribuir para a:

- Desvalorizar a importância do Subsistema de Formação de Professores no contexto da actual Lei de Bases do Sistema de Educação (Lei 13/01);

- Subestimar o papel das instituições de formação docente como instituições formadoras de agentes de uma aprendizagem significativa para o desenvolvimento;

- Ignorar a necessidade da sociedade angolana passar a exigir um perfil adequado para a formação de professores, que esteja de acordo com o perfil universalmente julgado necessário;

- Contribuir para o descrédito da profissão docente, onde o espírito de funcionalismo, de segundo emprego ou mercantilista de um qualquer negócio de circunstância se sobrepõe ao da formação de uma classe de profissionais de ensino competentes com alguma autonomia;

- Dificultar a criação de um estatuto coerente de professor universitário que possa dignificar a carreira docente;

- Comprometer, logo à partida, a eficácia da reformulação do sistema educativo”.294

293 Ibid.

294 Ibid.

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Mutatis mutandis, se os responsáveis pelo ensino em Cabo Verde defendem “a opinião equívoca de que qualquer indivíduo pode ser professor, desde que saiba o que vai ensinar” (ibid.), embora não tenha conhecimentos pedagógicos e didácticos, então podemos aplicar tanto os “diagnoses” como “prognoses” do Prof. Doutor Zau do status quo das actuais condições do ensino em Angola, também às infraestruturas do ensino em Cabo Verde. Se assim for, é pertinente perguntar a quem de direito: O que devemos fazer para evitar ou melhor resolver os problemas supra mencionados e outros de igual teor? Caros leitores: “É melhor prevenir do que remediar”!295

295 Noruega, 12.05 2008 e publivado no jornal Terra Nova em em Junho de 2008.

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Epílogo Como já vimos, o propósito deste livro é de, sob o ponto de vista da Ética normativa, aplicada aos domínios político, económico e social, contribuir para o desenvolvimento e aprofundamento da vivência democrática em Cabo Verde. Os valores fundamentais da democracia servem para criar um espírito de liberdade, fraternidade, igualdade e solidariedade baseado no respeito pela dignidade da pessoa humana que, em resumidas contas, constituem os ideais fundamentais da democracia autêntica e de um estado democrático de direito. No que se segue apresentamos dez princípios básicos para o conhecimento e a vivência do espírito democrático. Estes princípios, quando bem entendidos e bem praticados, podem funcionar como meios adequados a atingirem os ideais democráticos, muitos dos quais foram considerados nalguns capítulos deste livro.296

Dez princípios básicos para o conhecimento e a vivência do espírito democrático “1.o

A democracia é – apesar dos seus actuais defeitos que seria inconveniente ignorar – a melhor maneira que os povos têm para se realizar, rumo à satisfação das aspirações, individuais e colectivas. 2.o A democracia deve fundamentar-se na natureza do ser humano e, portanto, na PESSOA HUMANA e seus atributos, tais como – a dignidade e o respeito que lhe são devidos, independentemente da raça, do sexo, da cultura e da posição social. 3.o A democracia pressupõe a liberdade do ser humano – quer a liberdade interior, traduzida pela capacidade do governo de si mesmo, quer a liberdade exterior proveniente das leis justas, das estruturas e do ambiente social – e só se realiza na vivência do quadrinómio: sentido da responsabilidade, auto-crítica, auto-disciplina e autoridade democrática. 4.o A democracia procura realizar uma Unidade na diversidade, e nunca pode degenerar numa Unidade sem diversidade (massificação), nem diversidade sem Unidade (individualismo egoísta). 5 .o A democracia é tanto mais autenticamente vivida, quanto mais cada um se esforçar – por compreender o ponto de vista alheio; por respeitar esse ponto de vista, ainda que discorde dele; por manter diálogo aberto, sempre à procura de uma verdade mais rica; por perceber a necessidade da oposição que por sua vez deve ser leal, colaborante e integrada nas regras do jogo democrático. 6 .o A democracia tem de ser vivida em coerência, entre aquilo que se diz e aquilo que se faz – por isso, a aliança dum Sim com o NÃO é uma abominável forma de deseducação

296 Estes dez princípios encontram-se no livro de A. C. da Silveira Ramos (1977), p.110-111. Estes dez pontos são citados do livro com a permissão da Editora Celbrasil, transmitida via Gráfica de Coimbra, Lda., em carta escrita por esta ao autor deste presente livro ao 11 de Março de 1993.

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para a Democracia, que deve ser combatida, implacavelmente, pela palavra, pelo exemplo e pela autoridade democrática. 7.o A democracia aceita a divisão em partidos políticos, para melhor encontrar o caminho num equilíbrio de forças e de opiniões – mas há que ter em conta que os interesses particulares não se podem sobrepor ao interesse geral e que a vontade geral não é, de modo algum, a soma das vontades dos indivíduos, mas a vontade de um conjunto de pessoas, expressa pelo voto. 8 .o A democracia distingue entre a liberdade do Homem como Homem que o liberta, e a libertinagem que o escraviza – por isso, não admite que, deturpando-a, possa haver liberdade contra a liberdade do ser humano, quer seja interior, quer seja exterior a ele. 9 .o A Democracia – como Ideal difícil de se realizar plenamente – exige por um lado, de quem a cultiva que progrida, quotidianamente, ganhando ‘atitude’; por outro lado, como a ”luz” não deve ser guardada, é seu dever espalhá-la para que aqueles, que a não entendem ainda, ao mesmo nível, a compreendam, sintam e vivam, cada vez melhor. 10 .o A Democracia só se realizará com eficácia se for acompanhada por uma Educação psicológica para a Democracia com fundamento na Pessoa Humana, e sua vivência quotidiana na Família, na profissão, na missão de chefia, na vida social e cívica, na Nação, nos órgãos de comunicação social e na colaboração com os outros povos, sempre dentro da justiça, que só é valida quando coexiste com amor fraterno.”

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Posfácio

Um dia sem rival na história de Cabo Verde

A estrela matinal arraiou em 13 de janeiro de 1991, Mais cintilante, graciosa e desejada do que nunca, Qual noiva à espera do seu noivo ornada, cheia de graça,

Assim alvoreceu o dia jubiloso e da nova esperança.

Veio com todo orgulho e com toda alegria Anunciar ao nosso Povo a grande vitória: Do Bem sobre o Mal, Da Verdade sobre a Mentira Da Realidade sobre a Ilusão Da Justiça sobre a Injustiça Da Democracia sobre a Ditadura!

O sol também brilhou nesse dia Mais refulgente e triunfante do que nunca, Sol de Liberdade, Sol de Justiça, Sol de Reconciliação, Sol de Consolação, Sol de Confiança e de Promessa, Que veio confirmar a todos os verdianos Nos confins do Telus, que valeu a pena Ser leitores de um jornalzinho de oposição De nome profético – Terra Nova – sinal de Esperança!

E a turva lua cansada já antes de nascer, Foi a pôr-se mesmo até antes de anoitecer, Esgotada de ouvir tanto lamento: dos corvos, Dos ‘manelôbos’ e das outras aves da rapina, Que com os nojosos mochos estonteados, amaldiçoavam O cruel destino dos seus protectores, ora afugentados:

Esses camaradas de bandeira vermelha e d’estrela negra, Prenúncio de mau destino dos seus adoradores, Insígnia que nos fora imposta, mas que nunca foi nossa; Por esses desgraçados impostores que, com sentimento lúgubre, Pela última vez entoavam o blasfémico hino, O Internacional comunista, No solo sagrado das nossas Ilhas, Que são de todos nós e não “di nós pôco”! Esses traidores do Povo, numa década e meia, de maresia,

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Que para consumar a sua horrorosa hipocrisia E aliviar a sua inefável angústia infernal, Rezaram pela primeira e última vez [graças ao nosso Deus Misericordioso] Em uníssona voz e coração teo-fobiante do seu vacum existencial Ao seu ‘deus’ inexistente (sim, pâ ês Deus câ tem), A oração:

Dai Senhor aos heróis do partido único de 15 anos de regimento, O eterno descanso, nas profundezas do mar do esquecimento! Ámen três vezes no Céu, na Terra e no Inferno! Viva Cabo Verde, agora um Estado Democrático de Direito!

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CURRICULUM VITAE – A SHORT VERSION

António Barbosa da Silva

PERSONAL INFORMATION: Citizenship………………….…………………………………………………………………………………Swedish Date of birth…………………………………………..17/01-1944 on the island Fogo, Cabo Verde Marital status ………………………………………………………………………Married; Three Children Address..................................................Halvdan Svartes vei 4-D, Kristiansand Norway Phone ……………………………………………+47/38 09 14 59 (home); +47 38 10 65 13 (Work) E-mail…………………………………………………………………………………[email protected]

EDUCATION Year of Examination B. A. (Pedagogy, Psychology, Hebrew and Greek), Philosophical Faculty, Uppsala University …………………………………………………………………………………………….1974 B. Theol. Theological Faculty: Uppsala University……………………………………………….1976 Doctor of Theology (Philosophy of Religion): Uppsala University………………………..1982 Associate Professor of Philosophy of Religion: Uppsala University……………………..1983 Professor's competence……………………………………………………………………………………..1987 Professor (Tf-Professor) at Uppsala University……………………………………………………1992 Adjunct Professor at the Nordic School of Public Health………………………….1993 –1995 Professor of Religious Studies at the Faculty of Theol. Stavanger, Norway..........................................................................................................1993-1996 Professor of Systematic Theology (Philosophy of Religion, Ethics and Healthcare Ethics) Since…………………………………………………………………… 1996 Professor of Ethics and Philosophy of Sciences at the Stavanger University from 08.03.04 to 31.07.2005……………………………………………………………………………..2005 Professor of Mental Health and Systematic Theology at Ansgar Theological Seminary, Kristiansand, Norway from 08.08.2005……………………………………………………………..2005 SPECIAL EXTRA COURSES: a) At the Philosophical Institution, Uppsala, Sweden: The Philosophy of Psychology and Theory of Knowledge…………………………………….1976

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Contemporary Philosophy………………………………………………………………………………….1977 Phenomenology and Existentialism…………………………………………………………………….1978 Philosophy of Science and the Problem of Induction…………………………………………..1979 Semantic, Theory of Argumentation and History of Philosophy, 40p…………………..1979 Normative Ethics, Moral Philosophy inclusive Meta-ethics………………………………….1980 Philosophy of Social Sciences………………………………………………………………………………1981 b) At The Institution of Pedagogy, Uppsala, Sweden: Course for New Employed Teachers……………………………………………………………………1979 Course in Caring (Omvårdnad) 10p……………………………………………………………………..1990 Course in pedagogy and distance teaching for new employed academic teachers……………………………………………………………………………………………………………...1991 c). At Theological Faculty, graduate, postgraduate and doctoral studies at the Faculty of theology, Uppsala Sweden …………………………………………………………………1982 PROFESSIONAL EMPLOYMENTS: Part-Time Lecture at Theological Faculty……………………………………………………1976-1986 Full-Time Employment as Dialogue Secretary within the Church of Sweden………………………………………………………………………………………….1987-88 Full-Time Lecture/docent at The Theological Faculty at Uppsala University Since………………………………………………………………………………………………………….1988-1992 Associate Professor of Philosophy of Sconces and Health Ethics at the Nordic School of Public Health, Gothenburg - Sweden since……………………………………………1992-1995 Professor of Science of Religion at MHS, Stavanger……………………………………1993-1995 Professor in systematic theology at MHS, Stavanger………………………………….1996-2003 Professor i Etik och vetenskapsteori at the University og Stavanger…………..2004-2005 Professor of Mental Health and Systematic Theology at Ansgar Theological Seminary, Kristiansand, Norway since………………………………………………………………………………..2005 Language Competence: a) I speak and write: Portuguese, Crioulo från Cape Verde and Guiné-Bissau, English and Swedish. b) I understand and write Norwegian ("bokmål") and understand New Norwegian "nynorsk") quite well. c) I can speak and write French quite well (Cf. my doctoral Thesis, 1982, chap 3) d) I can read and understand Spanish quite well.

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e) I can read and understand Italian quite well (about 80%). f) I can read old Greek (coiné), old Hebrew and Latin. g) I can understand very little Germany.

Themes in lectures and teaching in course for doctorial- and Master students, and research seminaries The history of ideas and the history of philosophy, epistemology, philosophy of science, history of religion, dogmatic, philosophy of religion, inter-religious dialogue, history of psychology, philosophy of psychology, psychology of religion, psychology of health, hermeneutics and textual interpretation, ethics, health care ethics, global ethics, ethics of scientific research, quantitative method and qualitative method (hermeneutics, qualitative interview, participant observation, phenomenology, content analysis. Some relevant publications between 1983 and 2004 The doctoral dissertation: The Phenomenology of Religion as a Philosophical Problem. An Analysis of

the Theoretical Background of the Phenomenology of Religion, in General, and of M. Eliade'sPhenomenological Approach, in Particular. Malmö: Liber 1982. (It has been used as textbook for graduate courses at the university of Uppsala, Sweden).

Scientific Essay: Religionswissenschaft in Search of a Methodology. The role of the

hypothetical deductive method in scientific research and its consequence for the controversy explanation-understanding within Geisteswissens-chaften, 1982. (Essay for the qualification to docent at the University of Uppsala, Sweden).

Article: Issues in inter-religious dialogue. An Essay discussed in High Seminar on

Missiology during a symposium about inter-religious dialogue at the Theological Faculty. The University of Uppsala on the 3rd Nov, 1982.

Article: James Buchanan's View on "The Uppsala Style of Religionswissenschaft and on 'Meta-Perspective' ". Uppsala, 1983.

Scientific essay: ”Judaism - Its Fundamental Themes. An analysis of some theoretical and

substantial presuppositions for an inter-religious dialogue between Jews, Christians and Muslims. Essay discussed in the high-seminar for the History of Religion”. Theological Faculty, Uppsala, 1984.

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Book: Cultural confrontation: Crisis or possibilioty [In Swedish: Kulturkonfron-tation - Kris eller möjlighet?] Co-author: Domingos Barbosa da Silva. Uppsala: Teologiska Institutionen, 1984.

Book: Is There a New Imbalance in Jewish-Christian Relations? An analysis of the theoretical presuppositions and theological implications of the Jewish-Christian Dialogue with special regard to the World Council of Churches' and the Roman Catholic Church's conceptions of inter-religious dialogue. Teologiska Institutionen, Uppsala 1985. (This is a textbook for graduate courses at the University of Uppsala, Sweden)

Book: Can Religions Be Compared? Methodological issues in inter-religious dialogue with special regard to the contribution of the phenomenology and philosophy of religion to inter-religious discursive dialogue. (This is a textbook for graduate courses at the University of Uppsala, Sweden).

Scientific Essay:

Charles Taylor's Position in the Controversy Verstehen-Erklären. A Critical analysis of Charles Taylor's article: "Interpretation and the Science of Man", 1971. In: Review of Metaphysics, Vol. XXV., Filosofiska Institutionen, The University of Uppsala,1980).

Article: "The 'theology of success' movement: a comment". (En konstruktiv analys av den s k 'Framgångsteologin') Publicerad i: Themelios. An International Journal for Theological Students, Vol. 11, No. 3: 91ff. April 1986. Artikeln är översatt till kinesiska, 1987.

Scientific Essay: “The Third Universal Theory as the Alternative to Socialism and Capitalism.

This Essay is a critical analysis of Muammar Quathafi's Third Universal Theory”, that was presented in a conference In Paris about Quathafi's Green Book, den 22 April 1984.

Book: Science and view of the human being in health care. An introduction to hilosophy of science and health care ethics [In Swedish] 1992, 1995, 1998.

Lecture: ”The Problem of Immigration in the Light of Theological Ethics”. A lecture at the AKADEMIA TEOLOGII KATOLICKIEJ, WARSZAWA den 5 juni 1988. Publicerad in the book: Kulturkonfrontation - Kris eller möjlighet? Uppsala: Alfa Beta Sigma, 1988.

Chapter in a book: "An Analysis of some dimensions of the concept of moral sensing,

exemplified in psychiatric care". In: Lützen’s doctoral dissertation 1993:25-28; In: Scholarly Inquiry for Nursing Practice. An International Journal, Vol. 9, No. 1, 1995: 57-66. Co-author: Lützen, och. Nordin.

Book chapter: “The Philosophical foundation of qualitative Research” [In Swedish: Vetenskapsteoretisk grund för kvalitativ metod”] In: B. Starrin, B. & P G Svensson (eds.). The philosophy of science as a ground for qualitative approach [In Swedish: Kavlitative method och vetenskapsteori]. Studentlitteratur, Lund, 1994: 41-90. Co-author: Professor Vivian Wahlberg.

Chapter in a doctoral dissertation: "A Holistic-Existential Model for Psychiatric Nursing". In: Perspective in

Psychiatric Care, Vol. 30, No. 2, 1994: 7-14. Co-author: Dr. Jan Kåre Hummelvoll.

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Article: "The Theology of Glory movement". Religion Today, October/December. Published by Peter Clark and Stewart Sutherland, Kings College, London 1984. (translated into Chinese and Icelandic).

Article: “Jewish-Christian Relations, Past and Present: From Theological Disputation and Mutual Mistrust to Inter-religious Dialogue' i: The Covenant QUARTERLY, Vol. XLV, No. 4, 1079: 167-179.

Article: Bruce Barron: The Health and Wealth Gospel, Themelios, 2, 1988. Book Review: ”Bio-phenomenological psychology ”[In Swedish: Biofenomenologisk

psykologi]. Bel Habib, Hedis: Biofenomenologisk psykologi. Ett paradigm för tvärvetenskap. Liber, Stockholm 1989. Ylihoitajalehti, nr 3, 1990: 9-10.

Article: ”Quantitative versus qualitative research” [In Swedish: ”Kvantitativ versus kvalitativ forskning och metod”] Nya Vårdlärare pedagogiskt språkrör, nr 3-4, 1990:.3-6.

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Book chapter: Human dignity, the value of knowledge, and the limit of scientific freedom. In: Aasen, H. S., Halvorsen, R. & Barbosa da Silva, A. (eds.) 2009. Human rights, dignity and autonomy in health care and social services: Nordic perspectives. Antwerp, Oxford Portland.

Article: “District Paediatric Nurses’ freedom of decision when they experience a lack o emotional attachment between parents and their children – A moral philosophical perspective” [In Norwegian].

Book chapter: “Religious pluralism in the maritime world. Relating to those of other faiths at sea”. In: The way of the sea. Seattle: William Carey Library, 2007.

Article: “How Christian Norms Can Have an Impact on Bioethics in a Pluralist and Democratic Europe: A Scandinavian Perspective”. In: Christian Bioethics, Oxford Journals, Oxford University Press, 2001 Evans Road, Cary NC 27513, USA; Christian Bioethics Advance Access, published on March 23, 2009, Christian Bioethics 2009 15: 54-73.

Book chapter: “The Relationship Between principles- and ruler based ethics” [In Swedish]. Book chapter: “The role and function of power in supervising of caring professionals – a

moral philosophical analysis” [In Swedish]: Book chapter: “The spirituality need in nursing and its impact on the patient” [In Swedish]. Article: “Out of the wave. The meaning of suffering and relieved suffering for survivors of

the tsunami catastrophe”. (Co-authors: Dr. Åsa Roxberg (first author) and Bengt Fridlund). In: The Scandinavian Journal of Caring Sciences, in September 2009.

Article: “Out of the wave: the meaning of suffering and relieved suffering for survivors of the tsunami catastrophe. A hermeneutic-phenomenological study of TV-interviews one year after the tsunami catastrophe, 2004”. In: Scand J. Caring Sci; 2010, (co-authors: Dr. Roxberg, Å, Burman, M. Mona, Guldbrand, M. & Dr. Fridlund, B.)

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Article: Esquecidos bastidores da Independência Africa. Terra Nova, Julho de 2008, p. 3.

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Novembro de 2011, p.2. Article: Criminalidade, emigração, saúde, o governo e a oposição - que

futuro? Terra Nova, Janeiro de 2012, p. 2. Article: O caso mais controverso que a justiça Norueguesa jamais

enfrentou. Terra Nova, Maio de 2012, p. 2. Article: S. Filipe, Fogo, as autárquicas e o futuro papel de Eugénio

Veiga. Terra Nova, Abril de 2012, p. 2. Article: Três formas de praticar a fé ou religiosidade. Terra Nova,

Julho de 2012, p. 2.

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First tutor for several doctoral- and Master students, and opponent at various Universities of: Sweden, Finland, Norway and Paris.

International engagements and projects Ethical Advisor Board for European Project ACTION. An EU Financed five years project involving five countries: Sweden, UK, Portugal, Northern Ireland, the Republic of Ireland. ACTION= "Assisting Carers Using Telematics Intervention to meet Older person's Needs". The project was financially supported by the European Commission DGXIII (Telematics Applications Programme, Disabled and Elderly Sector], between 1995 and 2000. Current Project: NORDPLUS 2010 Higher Education Project title: Climate Symbols in Arts and Theology” Participating countries: Latvia, Lithuania, Estonia, Finland Project coordinator: Latvian Christian Academy www.kra.lv Doctoral opponent the following Universities: Uppsala and Lund (Sweden), Åbo academy

(Finlad) and Vale de Marne (Paris xii). A Short Biography António Barbosa da Silva was born on Fogo, Cape Verde Islands. He pursued his academic studies in Portugal, Norway and Sweden. He is B.A., B.Theol and Theol. Dr. from The University of Uppsala 1982, with the thesis: Phenomenology of Religion as a Philosophical Problem, where he became Associate Professor in the Philosophy of Religion in 1983. From 1993 to 1995 he worked as an adjunct Professor of Philosophy of Sciences and Health Care Ethics at The Nordic School of Public Health, Gothenburg, Sweden. From 1995 he is Professor of Philosophy of Sciences, Ethics, Mental Health and Systematic Theology in Norway. He is a highly estimated lecturer on the international circuit, and is the author of several works on the philosophy of religion, philosophy of sciences, inter-religious dialogue, Jewish-Christian relation, cultural confrontation, Christian ethics, healthcare ethics, the philosophy of healthcare sciences, the theoretical foundations of qualitative methods and approaches, etc. António Barbosa da Silva (Dr.) is now a Professor of Mental Health and Systematic Theology at Ansgar Theological Seminary, Kristiansand, Norway. His research interests comprises the fields of philosophy of religion, inter-religious dialogue, Jewish-Christian relation, cultural confrontation, Christian ethics, healthcare ethics, the philosophy of healthcare sciences, the theoretical foundations of qualitative methods and approaches, etc. Kristiansand, Norway, the 10th of January 2013 António Barbosa da Silva

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