Ética e política na hist. e no br

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JOS PEDRO HAROLDO DE ANDRADE FIGUEIRA

A FALTA DE TICA E DE ESPRITO PBLICO NA POLTICA BRASILEIRA

NATAL 2009

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JOS PEDRO HAROLDO DE ANDRADE FIGUEIRA

A FALTA DE TICA E DE ESPRITO PBLICO NA POLTICA BRASILEIRA

Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Filosofia, Programa de Ps-Graduao em Filosofia, Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte Orientadora: Prof. Dr. Cinara Maria Leite Nahra

NATAL 2009

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JOS PEDRO HAROLDO DE ANDRADE FIGUEIRA

A FALTA DE TICA E DE ESPRITO PBLICO NA POLTICA BRASILEIRA

Dissertao aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre no Programa de Ps-Graduao em Filosofia, Centro de Cincias Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela seguinte banca examinadora:

BANCA EXAMINADORA Profa. Dra. Cinara Maria Leite Nahra Universidade Federal do Rio Grande do Norte Presidente Prof. Dr. Mrio Nogueira de Oliveira Universidade Estadual do Rio de Janeiro Membro externo Prof. Dr. Rodrigo Ribeiro Alves Neto Universidade Federal do Rio Grande do Norte Membro interno

Natal, 22 de dezembro de 2009

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Para Nazar, minha esposa e companheira h 39 anos. Aos meus diletos filhos, genros, noras e netos, pela ordem: Ileana, Llio, Igor e Larissa; Luana, Carlos, Analu, Lucas e Bianca; Haroldo, Danielle, Jlia e Jonas; Heitor, Suzanne, Felipe e Mariana.

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Gostaria de agradecer a Deus, em primeirssimo lugar; aos meus pais Xapury e urea, (ambos, in memoriam), pelo homem e cidado que sou; minha famlia, pelo permanente incentivo; aos meus mestres, em especial professora Cinara, minha orientadora, pelo estmulo, interesse e dedicao.

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RESUMO

Lamentavelmente, a poltica brasileira caracteriza-se pela falta de tica. Ressalvadas algumas poucas excees, nossos representantes costumam comportar-se no exerccio do poder como se ali estivessem para cuidar dos prprios interesses e no da coisa pblica. A despeito da insatisfao que a situao parece provocar junto boa parte da sociedade, o eleitorado no consegue transformar sua indignao em gesto efetivo no sentido de retirar da cena pblica pessoas que no sabem honrar o mandato recebido nas urnas. Pelo contrrio, a reeleio de maus polticos tornou-se fato corriqueiro. Neste estudo, propusemo-nos a discutir o assunto luz das teorias filosficas tradicionais, selecionando expoentes do pensamento tico do Perodo Antigo at o Moderno. Dedicamos especial nfase, por conta do amoralismo presente nas ideias do pensador florentino, doutrina poltica de Maquiavel. Palavras-chave: tica, poltica, virtude, vcio, poder, cidadania, carter, racionalidade.

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ABSTRACT

Unfortunately, the Brazilian politics has been characterized by lack of ethics. In a few exceptions, our representatives often behave in the exercise of power as if they were there to care for their own interests and not public affairs. Despite the dissatisfaction that the situation seems to trigger to society, the electorate does not get to transform their anger into effective gesture in order to withdraw from the public setting people who can not fulfill their mandate at the polls. Instead, the re-election of bad politicians has become commonplace fact. In this study, we proposed to discuss the matter in light of traditional philosophical theories, by selecting exponents of ethical thought from the Ancient Period to the Modern. We put special emphasis on behalf of amorality in Florentine thinker's ideas, to Machiavellis political doctrine.

Key-words: Ethics. Politics. Virtue. Vice. Power. Citizenship. Character. Rationality.

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SUMRIO

RESUMO ...................................................................................................................................

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ABSTRACT................................................................................................................................

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INTRODUO .........................................................................................................................

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1 TICA E POLTICA: PERCURSO HISTRICO NO OCIDENTE ............................. 1.1. Na Antiguidade .................................................................................................................... 1.2. Com o advento do Cristianismo ........................................................................................... 1.3. No Renascimento ................................................................................................................. 1.4. Na Modernidade ..................................................................................................................

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2 ASPECTOS GERAIS DA TEORIA POLTICA DE MAQUIAVEL ............................. 2.1 Sinopse biogrfica do autor .................................................................................................. 2.2 A inaugurao de uma nova viso da poltica ....................................................................... 2.3 A rea de atrito com a tica crist ........................................................................................ 2.4 A fortuna e a virt ............................................................................................................... 2.5 O paradigma da organizao poltica .................................................................................. 2.6 O paradigma do dirigente poltico .......................................................................................

32 32 33 36 38 40 42

3 TICA E POLTICA EM MAQUIAVEL ......................................................................... 3.1 Meios e fins .......................................................................................................................... 3.2 tica e poltica: convergncias e desencontros .................................................................... 3.3 O dilema entre o ser e o parecer ................................................................................... 3.4 O povo, base de sustentao do poder .................................................................................VII

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3.5 A discusso contempornea sobre a presena da tica na teoria de Maquiavel ....................

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4 TICA E POLTICA NO BRASIL ..................................................................................... 4.1 O paralelismo histrico entre tica e poltica ......................................................................... 4.2 A degradao moral e os caminhos tortuosos da poltica brasileira ...................................... 4.3 A falta de decoro parlamentar discutida filosoficamente..................................................... 4.4 A corrupo institucionalizada.............................................................................................

62 62 66 69 74

5 OS EFEITOS DELETRIOS DOS DESMANDOS POLTICOS ................................... 5.1 A precarizao dos servios pblicos ................................................................................... 5.2 A desigualdade social ........................................................................................................... 5.3 Um olhar filosfico sobre a ciso social brasileira ...............................................................

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6 A CONFRONTAO ENTRE A POLTICA BRASILEIRA E A TICA FILOSFICA ........................................................................................................................... 6.1 O confronto com diferentes correntes do pensamento tico, da Antiguidade Modernidade ............................................................................................................................. 6.2 O confronto com a teoria poltica de Maquiavel ...................................................................

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CONCLUSO ...........................................................................................................................

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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..................................................................................... 105

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INTRODUOEm determinado momento da histria, o povo grego apercebeu-se de que, para realizar os anseios humanos de felicidade, era necessrio faz-lo a partir de uma estrutura social organizada: a plis, em que prevalecessem para os cidados regras de conduta inspiradas nas leis da natureza e nos bons costumes que balizassem a convivncia comum. Sedimentava-se, assim, junto com a noo de vida em sociedade, a concepo filosfica de moralidade, entendida como uma diretriz destinada a mostrar ao corpo social quais os modos certo e errado de agir com vistas a conquistar a felicidade, tanto no plano da individualidade, quanto no plano coletivo. Nesse contexto de ordem comportamental, a tica insere-se como o princpio que atua sobre o carter das pessoas, descortinando para elas o caminho que devem escolher para a tomada de decises morais conscientes no sentido de fazer a coisa certa. Para os antigos, ser tico implicava o comprometimento do indivduo, enquanto membro da sociedade, com uma vida orientada para a prtica de virtudes. E esse era um modelo que deveria servir tanto para a vida privada, quanto para a atividade pblica. tica e poltica entrelaavam-se. Da unio de cidados virtuosos resultaria necessariamente uma sociedade poltica eticamente sadia. Ningum mais que Aristteles se deu conta disso. Com o advento do cristianismo, s virtudes tradicionais, tais como coragem e justia somaram-se valores novos como fraternidade, solidariedade e amor incondicional ao semelhante. A tica crist opera dentro de um enfoque salvacionista e transcendental no qual a promessa de felicidade vale para a vida eterna junto de Deus e no para o viver terreno. Essa viso, em princpio, desvinculava a tica da poltica. A ponderao, porm, de que, para ingressar no Paraso, o cristo precisaria conquistar neste mundo seu passaporte por intermdio de uma existncia no s de f, mas tambm de boas obras, influenciou profundamente a ao poltica e continua a influenci-la. Em teoria, a idia da tica de virtudes de mos dadas com a poltica atravessou sculos a fio sem contestaes mais incisivas, at que, no perodo do Renascimento, o pensador italiano Nicolau Maquiavel, em suas obras Discursos Sobre a Primeira Dcada de Tito Lvio e, de modo especial, O Prncipe, procurou demonstrar que essa associao nem sempre funciona na prtica.

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Da no se depreende que ele se opusesse ao modelo do governante de boa formao moral, cujo interesse no fosse outro seno promover o bem-estar de seus governados. Pelo contrrio, recomendava que, uma vez estabilizado no poder, o prncipe procurasse passar a idia para o povo de que era adepto do agir virtuoso. Saliente-se, no entanto, que, para o soberano, na viso do filsofo, agir virtuosamente no implica ser virtuoso, mas aparentar possuir virtudes, pois o movedio jogo do poder no favorece a quem se prende a condutas morais rgidas. Apegar-se a elas pode custar ao governante a perda do governo e, consequentemente, a inviabilidade de seu projeto poltico. Em situaes que o ameacem, cabe ao prncipe fixar-se na preservao do mando e no hesitar em valer-se de quaisquer meios, mesmo que eticamente reprovveis. Vista sob outro prisma, na disputa poltica, permitido ao prncipe o emprego da fora, o uso da crueldade, da traio, da deslealdade, da dissimulao, do ardil, da m-f e de outros procedimentos afins. Mas h, porm, um limite. No lhe facultado fazer uso de tais expedientes para apropriar-se de bens dos seus sditos, nem molestar suas mulheres. Desse assunto voltaremos a tratar mais adiante. As teses do pensador florentino provocaram e continuam provocando muita polmica. Uns concordam, e h quem aplique os seus preceitos; outros simplesmente os rejeitam e at os abominam. De qualquer modo, o prottipo do governante virtuoso por excelncia ruiu diante dos argumentos maquiavelianos. Maquiavel teve o mrito de mostrar para o mundo que a poltica contm duas faces. Uma ideal, terica, calcada nos pressupostos filosficos de virtuosidade e justia herdadas da Antiguidade, de improvvel exequibilidade prtica. Outra real, impregnada de vcios, mas de eficincia pragmtica comprovada. A experincia histrica demonstra que os polticos bemsucedidos no tocante permanncia no poder foram aqueles que menos importncia deram adoo de princpios ticos. Mais para adiante, outras teorias versando sobre conduta tica foram concebidas. Para efeito do que aqui se estuda, entendemos, porm, que duas tm importantes contribuies a oferecer. Referimo-nos filosofia moral de Kant e tica utilitarista de Jeremy Bentham e Stuart Mill. No primeiro caso, a ao deve ser por dever e se caracteriza quando o que determina a vontade de quem a pratica no so as inclinaes sensveis, mas o imperativo categrico de

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uma lei moral que atua sobre a razo do agente convencendo-o de que a mxima do seu querer precisa ter aplicao universal. Para Bentham e Mill, o que diferencia, do ponto de vista moral, a ao correta da errada so as suas conseqncias totais; ou, mais objetivamente, no o prazer ou o benefcio individual que contam, mas a satisfao do interesse do maior nmero possvel de pessoas envolvidas. Qualquer que seja a modalidade de tica posta em discusso, seja a de virtudes ou a utilitarista, elas mantm entre si um liame comum: a teleologia. No fim, o que todas buscam a obteno daquilo que o ser humano considera o bem maior ou o sumo bem: a sua felicidade. A exceo fica por conta da tica deontolgica de Kant, que concebe a vida moral como uma espcie de convivncia social guiada por princpios puramente racionais. A moralidade kantiana opera como uma lei ditada pela razo, despida de quaisquer influncias, sejam naturais ou ligadas sensibilidade, e deve obrigar a todos e a cada um. Em sntese, a conduta dos indivduos precisa submeter-se aos ditames da lei moral para produzir aes moralmente boas. Eis a o porqu de a humanidade insistir no casamento da tica com a poltica. Na contemporaneidade, a cobrana nesse sentido evidencia-se ainda maior. E talvez at caiba acus-la de pretender algo difcil, mas no utpico ou incompatvel com a racionalidade. De fato, o povo elege os seus representantes para que promovam o bem comum. Se a conduta dos governantes revela descompromisso com a causa pblica, frustrando a expectativa da populao, h fortes chances de que a desordem se instale, passando cada um a agir por sua prpria conta, com graves prejuzos para o convvio social. H experincias bem-sucedidas de aproximao entre as duas atividades. Em estados como a Dinamarca, Sucia, Noruega e em outros dos chamados pases nrdicos, o padro de vida da populao est entre os melhores e no se tem notcia de ilicitudes oficiais ou de descontentamento popular de maiores propores por conta de m gesto da coisa pblica. Releva admitir, contudo, que h muita coisa errada acontecendo mundo afora. Guerras fratricidas, misria, fome, corrupo, agresses aos direitos humanos, tiranias, terrorismo, corrupo, desrespeito s convenes internacionais, entre outras, so mazelas que, infelizmente, tm a ver com o uso abusivo do poder, principalmente junto aos povos menos desenvolvidos. Mas no ocorre exclusivamente com eles.

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Tomemos como exemplo os Estados Unidos da Amrica (EUA) a mais rica e poderosa nao do planeta, festejada por defender princpios de liberdade. Dentro dos limites de suas fronteiras, o aparelho estatal funciona em sintonia com as aspiraes dos seus cidados. As leis valem para todos, e h oportunidades de crescimento pessoal inclusive para os imigrantes legalmente estabelecidos. Alm do mais, no se pode deixar de reconhecer os avanos da sociedade americana no sentido de corrigir as distores sociais que ainda subsistem, herana de um passado discriminador e no igualitrio, a despeito de toda a tradio democrtica que carrega. Alis, a recente subida de um lder negro ao mais cobiado posto poltico do planeta autorrevelador nesse sentido. Pesam sobre os EUA, no entanto, acusaes de abusar do poderio militar e econmico, de desrespeito e interferncia indevida na soberania de outros pases, de omisso ou de apoio velado a regimes tirnicos, de no colaborar com a preservao do meioambiente, entre outros descaminhos ticos. No , todavia, o que se passa l fora que nos interessa neste estudo. Nossa investigao est centrada no que acontece no Brasil. E h uma razo muito forte para tanto. Nossa ptria, infelizmente, surpreende pela forma flagrantemente errtica com que se conduz na gesto da coisa pblica. Aqui, em poltica, tica parece funcionar mais como figura de retrica. A corrupo banalizou-se e permeia os trs Poderes deitando ramificaes por todas as instncias federativas. Quase que diariamente um novo escndalo envolvendo malfeitorias na esfera pblica ganha as manchetes da mdia. O pas rico, tem potencialidades, mas o produto dessa riqueza mal distribudo, criando um fosso de desigualdades e de injustias que talvez s encontre paralelo em pases miserveis da frica subsaariana. A lei que, no texto da Constituio, diz-se vlida para todos, na prtica parece s ter aplicao para quem pobre. Supostos delinquentes que tm ligaes com o poder ou recursos para contratar bons advogados, geralmente escapam impunes. Alis, nosso sistema penal falho em vrios aspectos. Em primeiro lugar mesmo fazendo pender o brao punitivo da justia para a camada mais desamparada da populao, a criminalidade, nesse e em outros segmentos, cresce em nveis alarmantes. Depois, ao permitir que os delinquentes de mais posses protelem indefinidamente o desfecho de seus processos,

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dissemina junto sociedade a sensao de impunidade. Por ltimo, ao submeter os apenados a condies desumanas de encarceramento e promiscuidade (cadeias superlotadas, rus primrios coabitando com transgressores contumazes), ao invs de recuperar criminosos, embrutece-os ainda mais. O pblico confunde-se com o privado. Quem pratica a atividade poltica, na maioria das vezes, no o faz por vocao ou por dever cvico. Ressalvadas poucas excees, a maioria ingressa na esfera pblica para locupletar-se, envolver-se em negociatas, legislar em causa prpria ou para fugir das malhas da justia protegendo-se sob o manto do foro privilegiado. Por que isso acontece? Quais os fatores que contribuem para que o pas seja to corrupto e injusto? E mais, haveria possibilidade de mudana? Qual o papel que a sociedade desempenha nesse quadro de degradao moral: ocupa o lugar de vtima ou participa como cmplice? para essas e outras questes correlatas que pretendemos direcionar o foco da nossa investigao, tomando como referencial filosfico bsico os ensinamentos de Maquiavel. Ressalve-se, no entanto, que a deciso de dar destaque maior doutrina maquiaveliana no parte do pressuposto de que ela respalda os desmandos de nossas autoridades, mas, porque, diferentemente das demais teorias referenciadas, a do secretrio florentino, com fulcro na leitura que o autor faz dos antecedentes histricos da poltica, recomenda execuo. De outra parte, tampouco esse mesmo ato decisrio sinaliza no sentido de uma adeso nossa s idias preconizadas pelo filsofo. Discordamos justamente da tese em que Maquiavel subordina o xito da ao poltica abdicao de valores e princpios ticos pelo homem pblico. Importante para o enriquecimento da discusso as intervenes dos filsofos contemporneos Jos Arthur Gianotti, Marilena Chau, Newton Bignotto, Renato Janine Ribeiro e Roberto Romano. No s pelo fato de, na condio de cidados brasileiros, conhecerem a realidade poltica nacional, mas tambm porque fazem dela objeto de estudo e investigao. expressamente que, em determinadas circunstncias, algumas aes governamentais heterodoxas, inadmissveis no mbito da moralidade, sejam postas em

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CAPTULO I TICA E POLTICA: PERCURSO HISTRICO NO OCIDENTE1.1 Na Antiguidade

Desde os primrdios da civilizao grega que o ocidente aceita tica e poltica como atividades complementares, concebidas para caminharem juntas. A primeira, entendida como a conduta moralmente correta, comprometida com valores que a sociedade considera voltados para a prtica do bem e, a ltima, como a arte ou cincia cujo fim a promoo da felicidade coletiva ou do bem comum. Plato (427-347 a.C) um dos filsofos antigos que comunga desse entendimento. No livro IV de A Repblica, narra que Scrates (469-399 a.C), de quem foi discpulo, ao idealizar a cidade perfeita, edificada luz da razo e das leis da natureza, ressalta que ela deve fazer feliz no s um determinado grupo de pessoas, mas a populao em geral. o que se infere do trecho que se segue: Quando constitumos a cidade, no tnhamos por escopo deixar uma classe mais feliz do que as outras, porm promover a felicidade mxima da cidade.1 Acrescenta, ainda, que, para tal cidade atingir o nvel de perfeio almejado, Ter de ser, por conseguinte, sbia, valente, temperante e justa,2 reproduzindo, exatamente, as virtudes contidas nas almas das pessoas que a povoam. Alis, essa identificao entre a parte e o todo, entre o indivduo e a comunidade, est presente em mltiplas passagens da obra sob comento. O segmento que citaremos a seguir revela-se bastante esclarecedor acerca da similitude havida entre a sociedade e os membros do corpo social, a saber: [...] os mesmos princpios que ocorrem na cidade, existem na alma dos indivduos, em nmero igual tanto numa como noutra.3 Aristteles (384-322 a.C) deixa bem claro o inter-relacionamento entre tica e poltica. E mais, hierarquiza as atividades humanas em funo da finalidade que buscam.1 2

PLATO. A Repblica, 2000, p. 185. Ibidem, mesma pgina. 3 Ibidem, p. 218.

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Assim, a que tem a finalidade mais importante subordina todas as demais. o que preconiza no incio do captulo 2, do livro I, do tica a Nicmaco, a saber: Se existe, ento, para as coisas que fazemos, algum fim que desejamos por si mesmo e tudo o mais desejado por causa dele [...] evidentemente tal fim deve ser o bem, ou melhor, o sumo bem.4 E suplementa sua explanao logo adiante, dando nfase supremacia da cincia poltica sobre as demais:Visto que a cincia poltica utiliza as demais cincias e, ainda, legisla sobre o que devemos fazer e sobre o que devemos nos abster, a finalidade dessa cincia deve necessariamente abranger a finalidade das outras, de maneira que essa finalidade ser o bem humano. Ainda que esse fim seja o mesmo para o indivduo e para a Cidade-Estado, o fim desta ltima parece ser algo maior e mais completo, seja a 5 atingir, seja a preservar.

Em outro trecho do mesmo livro I, esclarece que, em sendo a virtude uma qualidade da alma, no pode a poltica, enquanto atividade superior, deixar de consider-la. Eis o que diz: E tambm parece que o homem verdadeiramente poltico aquele que estuda a virtude acima de todas as coisas, visto que ele deseja tornar os cidados homens bons e obedientes s leis.6 J no livro I da Poltica, o sbio de Estagira ainda mais objetivo no tocante interao que deve existir entre tica e poltica, ao advertir que as virtudes devem estar presentes tanto na pessoa do governante, quanto na do governado: o dirigente ento deve ter a virtude tica por inteiro, pois sua tarefa liderar e a razo lidera. E os outros membros devem ter o montante apropriado a cada um. Assim que cada classe mencionada deve ter virtude tica. 7 Epicuro (341-270 a.C), que conviveu com a realidade sociopoltica caracterstica do perodo helnico a expanso alm-fronteira da cultura grega, por conta da submisso da Grcia ao domnio de outros povos e o nivelamento do homem grego, antes cidado livre da plis, condio de sdito, em p de igualdade com outras categorias sociais, brbaros inclusive , concebe um outro tipo de associao entre os homens, diferente do modelo de organizao poltica convencional. Uma sociedade livre, no excludente, baseada na amizade (philia).

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ARISTTELES. tica a Nicmaco, 2002, p. 17. Idem, Ibidem, p. 18. 6 Idem, Ibidem, p. 36. 7 Idem, Aristteles Vida e Obra, Poltica, 1999, p. 166.

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Jos Amrico Motta Pessanha no texto As Delcias do Jardim, constante do livro tica,8 transcreve resumidamente o retrato escrito que Paul Nizam faz da situao deprimente em que se encontrava a nao grega no tempo do filsofo de Samos. Acompanhemos sua narrativa:A acumulao das riquezas em um polo da sociedade no impede o empobrecimento geral. Nenhum tempo mais trgico que o tempo de Epicuro [...] A infelicidade se estabelece entre os gregos, a desordem e a angstia aumentam todos os dias [...] 9 Sangue, incndios, assassnios, pilhagens: mundo de Epicuro.

Epicuro constri sua filosofia a partir da experincia comunitria da escola que fundou nos arredores de Atenas, o Jardim, da qual participavam, tambm, mulheres e escravos. Ali ensinou aos seus discpulos a adoo de uma tica sintonizada com a natureza voltada para o prazer. Prazer abrangente, de corpo e de alma. O hedonismo epicurista, contudo, no admite nem legitima todo e qualquer tipo de prazer. Eis nas palavras do filsofo reproduzidas no livro X, de Vidas e Doutrinas dos Filsofos Ilustres, de Digenes Larcio, o que define por prazer:

Ento quando dizemos que o prazer a realizao suprema da felicidade, no pretendemos relacion-lo com a voluptuosidade dos dissolutos e com os gozos sensuais, como querem algumas pessoas por ignorncia, preconceito ou m compreenso; por prazer entendemos ausncia de sofrimento no corpo e ausncia de 10 perturbao na alma.

O pensador opunha-se poltica tradicional. Os motivos dessa discordncia Markus Figueira da Silva o explicita bem no livro Epicuro Sabedoria e Jardim. No trecho a seguir, o autor esclarece:Segundo a crtica epicrea, os problemas de ordem poltica podem ser explicados pela dessemelhana de atitudes dos seus membros, causadas sobretudo pela ausncia de reflexes sobre a natureza de uma comunidade e do modo de vida equilibrado. No vazio das reflexes so projetadas as falsas opinies, ou opinies vazias, que servem de alimento s crenas e desejos ilimitados, s vezes naturais, s vezes no, mas quase sempre desnecessrios. Esses desejos, crenas e falsas opinies cumulam 11 em injustas agresses, disputas pelo poder, desconfiana, insensatez e angstia.

Coletnea de escritos de autores nacionais, sobre a qual se far muitas vezes aluso no corpo deste trabalho, citando o ttulo tica, os nomes dos temas em discusso e os dos respectivos expositores. 9 PESSANHA, Jos Amrico Motta. As Delcias do Jardim. In: NOVAES, Adauto (Org.). tica, 2007, p. 92. 10 LAERTIOS, Digenes. Vidas e Doutrinas dos Filsofos Ilustres, 1977, p. 313. 11 SILVA, Markus Figueira da. Epicuro: Sabedoria e Jardim, 2003, p. 92.

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Um dos aspectos mais interessantes do pensamento epicurista a sua preocupao com as geraes futuras. Em As Delcias do Jardim, Jos Amrico Motta Pessanha cita uma mensagem mandada insculpir nas muralhas de Enoanda, na Capadcia (Turquia central) por um certo Digenes, professor de Rodes e discpulo de Epicuro, que viveu no sculo II. Este texto parece reproduzir uma carta que o filsofo teria escrito sua me:Se uma pessoa, ou duas, ou trs, ou quatro, ou o nmero que queiram, estiver em aflio, e se eu fosse chamado a ajud-la, faria tudo o que estivesse em meu alcance para poder oferecer o meu melhor conselho. Hoje a maioria dos homens est doente, como que de uma epidemia, em funo das falsas crenas a respeito do mundo, e o mal se agrava porque, por imitao, transmitem o mal uns aos outros, como carneiros. Alm disso, justo levar socorro queles que nos sucedero. Eles tambm so nossos, embora ainda no tenham nascido. O amor aos homens nos leva a ajudar os estrangeiros que venham a passar por aqui. Como a boa mensagem do livro j foi difundida, resolvi utilizar esta muralha para expor em pblico o remdio da 12 humanidade.

Outra corrente filosfica, oriunda do perodo helnico, que convm ser lembrada neste estudo o estoicismo. Fundada por Zeno de Ccio (330-262 a.C), a escola estica (de Stoa, espao sob prticos) cria um novo conceito de cidade e de cidadania, tendo por base de sustentao a natureza. Intenta construir um novo homem que esteja em harmonia com o cosmo, um ser cosmopolita. Sua cidade ser a Cosmpolis, o mundo sem fronteiras individualizadas. A ordem do todo deve expressar a unio homem-natureza-lei-cidade. O pensamento zenoniano sofre a influncia dos cnicos. Foi discpulo de Crates, a quem Digenes Larcio atribui os seguintes dizeres, conforme Jean Brun, em O Estoicismo: Minha ptria no feita de uma muralha nem de um teto, mas a terra inteira a cidade e a casa colocada ao nosso alcance para a fazer moradia....13 Ainda segundo Brun, vem dos cnicos, tambm, a inclinao pelo desprendimento das coisas materiais e a crtica sociedade humana voltada para a acumulao de riquezas, vcios e instituies. Zeno empenha-se em formar um novo homem (transformado pela via da interioridade), na idia da simplicidade exterior e da riqueza interior valorizando a fora do carter. Para o estoicismo o mundo governado pela natureza. Todos os homens so iguais por natureza. Os cosmopolitas so amigos e parentes, logo no h escravos nem diviso entre gregos e brbaros. Ser homem anterior a ser grego, fencio ou espartano. O essencial ser12 13

PESSANHA, Jos Amrico Motta. Op. Cit., 2007, p. 78 -79. BRUN, Jean. O Estoicismo, 1980, p. 52.

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cosmopolita, cidado do mundo. Eis como Plutarco, segundo Brun, define o modelo de sociedade estica: [...] A Repblica (de Zeno) expe um ideal cosmopolita: a humanidade no mais dividida em naes, em cidades, em aldeias, mas todos os homens considerados conacionais e concidados; uma s sociedade e um s mundo; todos formando um rebanho que pasta no mesmo prato... .14 A norma natural composta das normas racional e tica. Essas duas leis que devem estruturar a Cosmpolis. Cabe ao homem reconhecer tais leis para, obedecendo a elas, organizar a cidade e explicitar o bem agir como cidado. Saber reconhec-las? A resposta seria sim, porque ele as carrega, por natureza, dentro de si na medida em que natureza assim o conforma. Jean Brun esclarece que, em sua Politia, Zeno refere-se a dois tipos de homens. O cidado perfeito (spoudaos) e o anticidado (phulos). Essa distino fica clara nesta passagem:H duas formas de homens, o diligente (spoudaos) e o desprezvel (phulos). A dos diligentes pratica a virtude por toda a vida; a dos desprezveis pratica o vcio; uma acerta em tudo a que se aplica, a outra erra sempre... O diligente grande, robusto, alto, forte: grande porque est num grau de atingir o fim a que se predispe, e isto que lhe compete; robusto porque bem desenvolvido em todo sentido; alto porque participa da altura que toca ao homem generoso e sbio; forte porque obtida a fora que espera. invencvel e insupervel...no cai em desgraa; no enganado e no engana; no mente... afortunado, feliz, invejado, respeitoso, piedoso e querido 15 dos deuses...digno, majestoso, estratgico, poltico, econmico...

H entre os estudiosos do estoicismo, quem ache que o estico valoriza mais a tica que a poltica. Isto porque a filosofia zenoniana no se prende s coisas relacionadas com o exerccio do poder tais como governar, administrar, fazer leis. Para Jean Brun, no entanto, eles incorrem em equvoco. E explica:

[...] o tico e o poltico, como o lgico e o fsico esto integrados na Stoa, o que implica dizer que a Cosmpolis natural, lgica, tica e poltica, pelos princpios da escola. [...] As relaes entre os homens no se consubstanciam s no sentido tico, e no h uma clara linha divisria entre o tico e o poltico, por mais que tentemos afastar tais campos. Disso sabiam bem os gregos e os esticos, 16 especificamente.

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Ibidem, p. 55. Ibidem, p. 53 -54. 16 Ibidem, p. 56-57.

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1.2 Com o advento do cristianismo A tica do cristianismo preserva em parte os pressupostos filosficos da Antiguidade. A alma a sede da razo e o homem deve orientar sua vida no sentido de um bem mais elevado, utilizando-se da virtude como meio para atingir esse fim. As regras morais, porm, no advm do convvio social, mas da vontade revelada de um Deus todo-poderoso que, expressamente, estabeleceu normas de conduta a serem seguidas pela humanidade. Acrescenta valores novos, no considerados pela cultura grega, dentre os quais se destacam a caridade, a humildade e o perdo. Ser caridoso representa amar ao prximo incondicionalmente, tal como se deve amar a Deus. Ser humilde significa reconhecer que, diante do poder de um Criador infinitamente bom e perfeito, aquilo que fazemos, enquanto criaturas, sempre muito pequeno e imperfeito, indigno, portanto, de exaltao pessoal. O perdo, alm de esquecimento, implica a eliminao de ressentimentos decorrentes das ofensas sofridas. H uma outra caracterstica que distingue a tica crist do agir moral dos antigos. Para estes, o vcio s entra em discusso por se opor virtude. J para a primeira, o ato vicioso ou pecado cresce em significao por representar a pedra de tropeo no caminho dos que buscam o reino de Deus. Por conta do pecado, o ser humano perdeu o Paraso e foi condenado a uma vida de sofrimentos na Terra. Para que se redima do erro cometido e reconquiste a felicidade perdida, precisa adotar um viver virtuoso, segundo os ditames da lei e dos ensinamentos vindos do Alto. Para a filosofia moral crist, portanto, o discurso deve dar nfase no s virtude que liberta e salva, mas ao pecado que condena e impede a salvao. A partir de Santo Agostinho (354-430), expoente da filosofia patrstica, para a vida contemplativa que deve voltar-se o viver do homem. Isso no significa dizer que a poltica, em uma posio de menos destaque, no seja digna de ateno, afinal o cristo pertence ao corpo social e condiz com a vontade divina ajudar a construir uma sociedade mais justa, onde haja justia e paz para todos. Ao lado de Agostinho, discorreremos sobre outro insigne representante do pensamento cristo: So Toms de Aquino (12251274), filsofo do perodo medieval. Do primeiro selecionamos alguns trechos da obra A DOUTRINA CRIST: Manual de Exegese e Formao Crist17 em que fala da prtica da virtude, mais especificamente do amor. Do segundo extramos recortes da coletnea de escritos organizada pela Livraria Martins Fontes17

AGOSTINHO. A Doutrina Crist: Manual de Exegese e Formao Crist, 1991.

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em duas partes, intituladas Sobre o Ensino (De Magistro) e Os Sete Pecados Capitais, tendo esta como temtica os atos viciosos ou simplesmente os pecados. Ensina Agostinho que o homem deve amar o seu semelhante no por ele prprio, mas por Deus. Somente de Deus, que constitui em si a vida bem-aventurada, se deve gozar. o que se contm nas seguintes passagens:[...] ningum deve gozar de si prprio, porque ningum deve se amar por si prprio, mas por aquele de quem h de gozar. Ento perfeito o homem quando orienta toda a sua vida para a Vida imutvel e adere a ela com todo o seu afeto, enquanto o fato 18 de se amar por si prprio no tem referncia a Deus. Portanto, se no deves amar a ti por ti prprio, mas por aquele em que est o fim retssimo do teu amor, que nenhum dos teus irmos se aborrea se o amares por 19 Deus.

H quatro objetos a serem amados na viso agostiniana: Deus, ns prprios, nossos semelhantes (amigos e inimigos) e nosso corpo. Amar a si prprio e ao seu corpo natural do homem. Equivoca-se, porm, quando se apega a essa faculdade para sentir-se no direito de subjugar outros homens. para o que adverte o filsofo no fragmento a seguir:

Julga o homem conseguir grande triunfo quando chega a dominar outros homens, seus semelhantes. Porque inato alma, cheia de vcios, apetecer de maneira excessiva e exigir como algo que lhe devido, o que prprio unicamente de Deus. [...] iniqidade para o homem, com efeito, querer ser servido por aqueles que lhe 20 so inferiores, enquanto ele prprio se nega a servir quem lhe superior.

Para So Toms de Aquino a reta ordem das coisas coincide com a ordem da natureza, e as coisas naturais se ordenam a seu fim sem qualquer desvio. Os princpios da razo so os mesmos que estruturam a natureza. O pecado contraria a inclinao natural, e tudo o que v contra a razo pecado. O pecado uma desordem que rejeita a ordem do fim ltimo. O filsofo defende o postulado tico de que se deve fazer o bem e evitar o mal. Dedica questo do mal, que identifica com o vcio, interessante reflexo. Coerentemente com o conceito de virtude introduzido por Aristteles, de quem seguidor, So Toms de Aquino utiliza-se do mesmo critrio de mediania para definir o seu inverso, ou seja, o pecado. Na passagem a seguir, esclarece como se d esse desvirtuamento moral: [...] sendo prprio da razo dirigir o desejo principalmente enquanto informada pela18 19

Ibidem, p. 68. Ibidem, mesma pgina. 20 Ibidem. p. 69-70.

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lei de Deus ento, se o desejo se volta para qualquer bem naturalmente desejado de acordo com a regra da razo, esse desejo ser reto e virtuoso; ser, porm, pecaminoso, se ultrapassar essa regra ou no conseguir atingi-la. 21 So Toms aponta quais seriam para o cristianismo a principal virtude e o maior pecado. No primeiro caso, ensina:[...] a caridade que o amor de Deus comanda todas as outras virtudes e, embora seja uma virtude especfica (se atentarmos para o seu objeto), no entanto, por uma certa projeo de seu domnio, comum a todas as virtudes e chamada forma e 22 me de todas elas. No segundo, indica a soberba, tida pelo filsofo como um distorcido desejo de 23 grandeza e que a raiz e a rainha de todos os pecados.

Para Aquino, o pecado configura-se como transgresso moral ou, pelo que se infere de suas palavras, um ato moralmente mau, se no, vejamos: [...] o gnero ou a espcie do ato moral se considera de acordo com a sua matria ou objeto: da por que o ato moral bom ou mau de acordo com o seu gnero.24 Tentemos aclarar melhor a questo utilizando-nos do trecho que se segue: [...] invejar, pelo seu prprio objeto, implica algo contra a caridade, pois prprio do amor de amizade querer o bem do amigo como se fosse para si mesmo. 25 Enumera sete pecados capitais, assim denominados porque cada um tem por fim um bem muito desejvel [...] de tal modo que, por desej-lo, o homem levado a cometer muitos pecados, e todos tm origem naquele vcio original.26 Em suma, trata-se de pecados lderes que arrastam consigo outros vcios afins. So eles: vaidade, avareza, inveja, ira, luxria, gula e acdia (ou preguia, segundo o catecismo catlico). Eis, resumidamente, o que significam: Vaidade a vanglria (glria v) ou o desejo inadequado de honras e glrias. Avareza o desordenado af de ter uma coisa qualquer. Inveja uma tristeza pela glria do outro. Ira o impulso para a injusta vingana. Luxria o desejo desordenado de prazer sexual, o mais intenso dos prazeres corporais. Gula a falta de moderao no comer e no beber. Acdia o tdio ou tristeza em relao aos bens interiores e aos bens do esprito.

21 22

AQUINO, Toms. Sobre o Ensino (De Magistro); Os Sete Pecados Capitais, 2004, p. 80. Ibidem, p. 81. 23 Ibidem, p. 81-82. 24 Ibidem, p. 89. 25 Ibidem, p. 90. 26 Ibidem, p. 107.

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Vejamos agora a correlao entre os pecados capitais e os vcios que lhes so subordinados: vaidade desobedincia, jactncia, hipocrisia, contenda, pertincia, discrdia e presuno de novidades; avareza traio, fraude, mentira, perjrio, inquietude, violncia e dureza de corao; inveja murmurao, detrao, dio, exultao pela adversidade e aflio pela prosperidade; ira rixa, perturbao da mente, insultos, clamor, indignao e blasfmia; luxria cegueira da mente, irreflexo, inconstncia, precipitao, amor de si, dio de Deus, apego ao mundo, e desespero em relao ao mundo futuro; gula imundcie, embotamento da inteligncia, alegria nscia, loquacidade desvairada e expansividade debochada. Desse conjunto resultam as condutas antiticas do homem e do cidado. Uma sntese das diferenas, do ponto de vista tico e poltico, entre o pensamento antigo e o cristo, pode ser haurida de algumas consideraes expendidas por Marilena Chau, onde ela afirma:[...] o importante no pensamento e nas instituies antigas a idia de uma ordem natural universal e racional onde cada ser, segundo seu grau de perfeio e de realidade, possui um lugar prprio que determina sua natureza, seu carter, seus comportamentos e suas aes. Mesmo com o advento do cristianismo, as mudanas, embora profundas, no abalaram a idia da tica como pertencimento de cada ser humano a uma ordem universal cuja hierarquia determina para cada um de ns as virtudes que nos so prprias. [...] Para os antigos, a liberdade era um conceito essencialmente poltico, pois s na plis algum poderia ser livre e a liberdade era a definio mesma da cidadania. O cristianismo, porm, religio da salvao, nascida fora do campo poltico e contra o Estado, desloca a liberdade para o interior do ser humano, articula liberdade e vontade e apresenta esta ltima essencialmente dividida entre o bem e o mal. A liberdade surge como uma diviso interior entre mim e mim mesma, entre meu querer bem e querer mal, tornando-se livre-arbtrio. O cristianismo despolitiza a liberdade e, ao interioriz-la, moraliza-a. Em segundo lugar, introduzindo o sentimento da culpa originria, coloca o vcio como constitutivo da vontade e, dessa maneira, a tica no pode ser apenas a conduta racional que regula a vontade e submete as paixes, mas exige a submisso da vontade humana a uma outra vontade, transcendente e essencialmente boa, que define desde a eternidade os valores e comportamentos morais, segundo uma finalidade que no mais a felicidade social, poltica e terrena, mas a da salvao 27 extraterrena e extratemporal.

1.3 No Renascimento

Esse o perodo em que desponta o pensamento do florentino Nicolau Maquiavel (14691527), o homem que construiu uma nova noo de poltica, rompendo com a idia que havia prevalecido desde a Antiguidade de que tica e poltica so duas atividades humanas inseparveis.27

CHAU, Marilena. Pblico, Privado, Despotismo. In: Novaes, Adauto. (Org.). tica. 2007, p. 493-494.

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Ele era herdeiro do humanismo um movimento intelectual que se firmou no Renascimento e que se dedicou a resgatar os ensinamentos filosficos da Grcia e da Roma antigas, deixados em segundo plano durante a Idade Mdia. Esse movimento proporcionou Itlia grandes avanos nas letras, artes e filosofia. Seus adeptos, que recorriam ao passado para pensar o presente, inclusive do ponto de vista poltico, patrocinaram o surgimento de uma cultura nova, valorizadora das potencialidades humanas. Ressalte-se que, dominante poca, a doutrina crist ensinava que o homem no pertence definitivamente a este mundo, mas ao reino de Deus. Suas preocupaes, portanto, devem estar voltadas para as coisas do Alto e no para a vida terrena. Questionando essa idia, Giovanni Pico Della Mirandola (1463-1494), um dos expoentes do humanismo, em seu Discurso Sobre a Dignidade do Homem, tentou mostrar que Deus deu ampla liberdade ao homem para conduzir o seu destino aqui mesmo da forma que melhor lhe aprouvesse, podendo, por conta prpria, ascender aos cus ou decair condio terrena mais primitiva. Atentemos para este pequeno trecho em que reproduz o dilogo de Deus com Ado: Poders degenerar at os seres que so as bestas, poders regenerar-te at as realidades superiores que so divinas, por deciso de teu nimo. 28 Maquiavel, que fez da realidade histrica a fonte inspiradora de suas reflexes filosficas, no se fecha possibilidade de que, eventualmente, tica e poltica possam coexistir. Deixa claro, porm, que a ruptura do elo de ligao entre ambas torna-se inevitvel no momento em que entra em perspectiva a conquista e a consolidao do poder. Por se tratar de pea fundamental para o desenvolvimento de nosso trabalho investigativo, dedicaremos, mais adiante, um captulo inteiro para discutir os seus ensinamentos que tm dado causa, mesmo nos tempos hodiernos, a muita polmica. Uma coisa, porm, de antemo precisa ficar clara para quem pretende estudar tica e poltica em Maquiavel, quer isolada, quer conjuntamente: pode-se concordar ou no com os seus argumentos, ignor-los, porm, jamais.

1.4 Na Modernidade Para Immanuel Kant (17241804) s uma coisa pode ser considerada boa sem limitao: uma boa vontade. com essa assertiva que ele abre a Primeira Seo do livro28

MIRANDOLA, Giovanni. Discurso Sobre a Dignidade do Homem, 2006, p. 57.

24

Fundamentao da Metafsica dos Costumes, onde esto lanadas as linhas mestras de sua filosofia moral. E como seria essa boa vontade? Kant esclarece:A boa vontade no boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptido para alcanar qualquer finalidade proposta, mas to-somente pelo querer, isto , em si mesma, e, considerada em si mesma deve ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermdio possa ser alcanado em proveito de qualquer inclinao, ou mesmo, se quiser, da soma de todas as inclinaes. Ainda mesmo que um desfavor especial do destino, ou pelo apetrechamento de uma natureza madrasta, faltasse totalmente a esta boa vontade o poder de fazer vencer as suas intenes, mesmo que nada pudesse alcanar a despeito dos seus maiores esforos, e s afinal restasse a boa vontade ( claro que no se trata aqui de um simples desejo, mas sim do emprego de todos os meios de que as nossas foras disponham), ela ficaria brilhando por si mesma como uma jia , como alguma coisa que em si mesma tem o 29 seu pleno valor.

Para entender o conceito de uma boa vontade estimvel em si mesma, despojada de toda e qualquer intencionalidade e que se posicione no topo dos valores ticos que presidem as aes do homem, nos moldes concebidos pelo filsofo alemo, preciso faz-lo a partir do desenvolvimento de outro conceito, o de dever, que em si embute o de boa vontade. Nesse contexto, desconsiderando-se os procedimentos contrrios ao dever, as aes humanas classificam-se em conformes ao dever e por dever. Entre as primeiras, esto aquelas que, embora visem a finalidades louvveis, envolvem algum tipo de inclinao sensvel e, por isso, no tm valor moral. As que possuem contedo moral, portanto, so as realizadas exclusivamente por dever, isto , aquelas em que o sujeito age porque est convencido de que constituem a coisa certa a fazer e no porque havero de lhe trazer algum tipo de compensao ou vantagem. Kant lana mo de trs exemplos para explicar a diferena que existe entre aes conformes ao dever e por dever. Parece-nos que basta transcrever um deles, para que a matria fique esclarecida. Pincemos o primeiro, a saber:[...] conservar cada um a sua vida um dever, e alm disso uma coisa para que toda a gente tem inclinao imediata. Mas por isso mesmo que o cuidado, por vezes ansioso, que a maioria dos homens lhe dedica no tem nenhum valor intrnseco e a mxima que o exprime nenhum contedo moral. Os homens conservam a sua vida conforme ao dever, sem dvida, mas no por dever. Em contraposio, quando as contrariedades e o desgosto sem esperana roubaram totalmente o gosto de viver, quando o infeliz, com fortaleza de alma, mais enfadado do que desalentado ou abatido, deseja a morte, e conserva contudo a vida sem a29

KANT, Immanuel. Textos Selecionados Fundamentao da Metafsica dos Costumes. 1984, p. 110.

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amar, no por inclinao ou medo, mas por dever, ento a sua mxima tem um 30 contedo moral.

Nessa mesma linha de raciocnio, o filsofo ensina que dever a necessidade de uma ao por respeito lei. S objeto de respeito o princpio racional que est por trs da vontade fazendo com que ela aja por si mesma e no impulsionada por interferncias outras. Eis nas suas palavras:[...] S pode ser objeto de respeito e portanto mandamento aquilo que est ligado minha vontade somente como princpio e nunca como efeito, no aquilo que serve minha inclinao mas o que a domina ou que, pelo menos, a exclui do clculo na escolha, quer dizer, a simples lei por si mesma. Ora se uma ao realizada por dever deve eliminar totalmente a influncia da inclinao e com ela todo o objeto da vontade, nada mais resta vontade que a possa determinar do que a lei objetivamente, e subjetivamente, o puro respeito por essa lei prtica, e por conseguinte a mxima que manda obedecer a essa lei, mesmo com prejuzo de todas 31 as minhas inclinaes.

Em resumo, o que determina a boa vontade a lei moral. Uma lei originria da razo, cuja representao alcana indistintamente todos os seres racionais e que obriga a vontade do agente objetiva e subjetivamente. Uma lei absolutamente abrangente cujo ditame se expressa nos seguintes termos: devo proceder sempre de maneira que possa querer tambm que a minha mxima se torne uma lei universal. 32 Aes morais no admitem concesses ou relativismos. Ou elas so por dever ou no. Acompanhemos o raciocnio do autor no exemplo em que focaliza a questo das falsas promessas feitas por algum que se encontre em apuro, um tpico caso de conduta conforme ao dever. Admite que, em muitas situaes, a ao pode at parecer vantajosa. Mas preciso ponderar se do recurso a esse expediente no adviro inconvenientes maiores do que aqueles que se pretendem com mentiras superar. Diz o pensador a propsito:[...] devo pensar que a confiana uma vez perdida me pode vir a ser mais prejudicial que todo o mal que agora quero evitar; posso enfim perguntar se no seria mais prudente agir aqui em conformidade com uma mxima universal e adquirir o costume de no prometer nada seno com a inteno de cumprir a promessa. Mas breve se me torna claro que uma tal mxima tem sempre na base o receio das conseqncias. Ora, ser verdadeiro por dever uma coisa totalmente diferente de slo por medo das conseqncias prejudiciais. 33

30 31

Ibidem, p. 112-113. Ibidem, p. 114-115. 32 Ibidem, p. 115. 33 Ibidem, p. 116.

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Prossegue em sua linha de argumentao considerando que:[...] para resolver da maneira mais curta e mais segura o problema de saber se uma promessa mentirosa conforme ao dever, preciso s me perguntar a mim mesmo: Ficaria eu satisfeito de ver a minha mxima (de me tirar de apuros por meio de uma promessa no verdadeira) tomar o valor de lei universal (tanto para mim como para os outros)? E poderia eu dizer a mim mesmo- Toda gente pode fazer uma promessa mentirosa quando se acha numa dificuldade de que no poderia sair de outra maneira? Em breve reconheo que posso em verdade querer a mentira, mas no 34 posso querer uma lei universal de mentir.

E arremata ensinando o que se deve fazer para que o nosso querer seja moralmente bom:[...] basta que eu pergunte a mim mesmo: - Podes tu querer tambm que a tua mxima se converta em lei universal? Se no podes, ento deves rejeit-la e no por causa de qualquer prejuzo que dela pudesse resultar para ti ou para outros, mas 35 porque ela no pode caber como princpio numa possvel legislao universal.

A lei moral kantiana, fundada na razo pura prtica, e o seu imperativo categrico ordenam incondicional e universalmente, obrigando todos os homens independentemente de circunstncias particulares. Vale para todas as atividades sociais do homem, inclusive, obviamente, para as aes polticas. A teoria tica do utilitarismo, que tem em Jeremy Bentham (1748-1832) e seu discpulo John Stuart Mill (1806-1873), ambos ingleses, os seus principais formuladores, preceitua que so as consequncias de uma ao que determinam se ela moralmente correta ou no. O elemento basilar para o desenvolvimento da doutrina utilitarista Bentham teria encontrado ao ler a expresso o maior bem para o maior nmero no livro Essay of Government, do filsofo e telogo britnico Joseph Priestley. Entusiasmou-se com a frase e resolveu aplic-la s atividades humanas, chamando-a de princpio de utilidade. Eticamente, utilidade deve ser entendida como tendncia de algo para produzir felicidade e no no sentido de tirar proveito. Eis como o pensador americano Michael Palmer, em Problemas Morais em Medicina, Curso Prtico, pronuncia-se sobre o assunto: Assim como julgamos uma lei ou instituio em termos de seu efeito para a maioria dos cidados, a

34 35

Ibidem, mesma pgina. Ibidem, p. 117.

27

moralidade de nossas aes deve ser julgada em termos de seu efeito para todos os envolvidos, isto , se produzem ou no maior felicidade para o maior nmero. 36 Embora Bentham, com sua obra Principles of Morals and Legislation, de 1789, tenha tido grande influncia poltica na Inglaterra ao contribuir, entre outras mudanas comprometidas com o maior bem para o maior nmero, para o aprimoramento da legislao de seu pas, tais como: a reforma do sistema representativo do Parlamento e das minutas de suas leis; a abolio do banimento e da priso por dvidas; a criao de bancos de poupana e o registro de nascimentos e mortes; no inclua diretamente o Estado como parte afetada pelo princpio de utilidade. Este se circunscreve esfera dos indivduos. Palmer explica melhor:Para ele, Estado, comunidade, nao no passam de termos coletivos para designar grupos de indivduos. No podemos, por isso, falar do Estado contra as pessoas que o compem. Conseqentemente, o princpio de utilidade refere-se s a aes individuais por indivduos, e sua mensagem simples : quanto mais essas 37 aes produzirem felicidade, melhor ser o mundo.

Na mesma linha de Epicuro, Bentham considerava que o prazer o nico bem e o sofrimento o nico mal. As aes individuais, alm de voluntrias, devem pautar-se por um clculo hednico que, aps a ponderao de variveis como intensidade, durao, certeza ou incerteza, proximidade ou distncia, fecundidade pureza e alcance, o resultado deveria, em regra, apresentar no s maior grau de felicidade para a maioria, mas tambm o menor grau de infelicidade para essas mesmas pessoas. Entre o individual e o coletivo, a felicidade deste ltimo que deveria contar. Atente-se para a seguinte simulao desse clculo feita por Michael Palmer:Um conhecido, que voc sabe que rico passa na rua e, por acaso, derruba a carteira. Voc a pega e encontra 50 reais. Deve lhe devolver? Voc decide consultando o clculo hednico. Vrios fatores podem ser postos de lado imediatamente: o alcance, porque obviamente s vocs dois esto envolvidos; a certeza e a proximidade, porque, neste caso, no h dvida de que vocs dois vo sentir certo prazer e certo sofrimento e que essas experincias estaro prximas no tempo ao momento real em que voc pegou a carteira. Por outro lado, se voc decidir ficar com o dinheiro, quase certo que um fator contar contra voc a pureza - , porque altamente provvel que seu prazer tambm contenha algum sofrimento (isto , uma sensao de culpa por pegar o dinheiro...). (...) Contudo, mesmo essas possibilidades no vo diminuir a proporo global de prazer em seu favor. , por exemplo, bastante provvel que seu prazer ao encontrar o dinheiro seja mais intenso que a irritao do rico pela perda; que o seu prazer dure mais que o sofrimento dele; (...) na verdade, como rico, provvel que ele no demore a

36 37

PALMER, Michael. Problemas Morais em Medicina: Curso Prtico, 2002, p. 76. Ibidem, p. 77.

28

esquecer tudo a respeito. Com essas avaliaes, est claro que voc deve ficar com o 38 dinheiro, embora possa, claro, devolv-lo.

Parece ter ficado claro que, para a filosofia benthaniana, agir eticamente faz-lo de acordo com o princpio de utilidade e no se apegando firmemente s normas da moral convencional. Para a maioria das pessoas, roubar, mentir so atos moralmente condenveis. Para o utilitarismo de Bentham, porm, deixam de s-lo quando praticados com o intuito de aumentar a soma total da felicidade humana. Justificam-se, pois, as aes de algum que rouba a arma de um louco homicida ou que passa informaes falsas para um inimigo da ptria. A lgica do principio do maior bem para o maior nmero que preside o clculo hednico pode levar a concluses inaceitveis, como a de justificar situaes moralmente injustificveis. Atentemos para este exemplo sugerido por Palmer: Suponhamos que alguns guardas sdicos torturem um prisioneiro. Se o prazer dos guardas excede o do prisioneiro, ento, segundo o clculo hednico, a ao deles se justifica.39 John Stuart Mill, seguidor de Bentham, introduz aperfeioamentos na doutrina utilitria. As duas teorias, a de Bentham e a de Mill, coincidem em grande parte, principalmente no seu perfil hedonista, mas se distanciam no tocante avaliao do prazer. Mill rejeita a avaliao meramente quantitativa e a substitui por outra de natureza qualitativa. D mais nfase variedade dos prazeres e estabelece uma espcie de hierarquizao de valores entre eles. Os prazeres intelectuais, por exemplo, posicionam-se em nvel superior ao dos prazeres corpreos. Com tais modificaes, o utilitarismo torna-se filosoficamente mais consistente, revendo pontos que o deixavam mais vulnervel a crticas. Michael Palmer d uma idia dos efeitos positivos dessa correo de rumos, trazendo novamente baila a questo dos guardas sdicos a que anteriormente fez aluso: Agora possvel dizer, por exemplo, que o prazer experimentado pelos guardas sadistas no justifica suas aes porque esse tipo especfico de prazer de valor to baixo que no excede o sofrimento intenso experimentado pelo prisioneiro.40 No livro O Utilitarismo, Stuart Mill expe os pressupostos da teoria utilitarista, agora com as reformulaes que ele introduz. Explica que o termo utilidade significa prazer e38 39

Ibidem, p. 79-80. Ibidem, p. 82. 40 Ibidem, mesma pgina.

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inexistncia de sofrimento. o que aflora deste trecho [...] todos os autores, de Epicuro a Bentham, que sustentaram a teoria da utilidade entendiam por utilidade no algo que devesse ser contraposto ao prazer, mas o prprio prazer e ausncia de dor.41 Explicita melhor o fundamento moral do conceito de princpio de utilidade, que ele chama, tambm, de princpio da maior felicidade. Eis como se pronuncia a respeito:[...] A doutrina que aceita a Utilidade ou o Princpio da Maior Felicidade como fundamento da moral sustenta que as aes esto certas na medida em que elas tendem a produzir a felicidade e erradas quando tendem a produzir o contrrio da felicidade. Por felicidade entende-se prazer e ausncia de dor, por infelicidade, dor e 42 privao do prazer.

Mill d conta, ainda, de que a moralidade contida na concepo utilitarista funda-se na teoria da vida e, nesta, prazer e ausncia de dor so as nicas coisas desejveis como fins. As outras coisas so desejveis ora pelo prazer inerente a elas, ou como meios para promover o prazer e evitar o sofrimento. Admite, porm, que uma teoria da vida posta nesses termos encontra opositores. Para muitos crticos, almejar s o prazer igualaria o homem ao animal. o que se infere da colocao a seguir:[...] Supor que a vida no tenha, para usar suas expresses, nenhum fim mais elevado do que o prazer, nenhum objeto melhor e mais nobre de desejo e busca, seria algo vil e baixo, uma doutrina digna apenas do porco, com o qual os seguidores 43 de Epicuro foram, h muito tempo, comparados com desprezo.

Sai ento em defesa dos autores utilitaristas, entre os quais inclui Epicuro, argumentando que no se conhece nenhuma teoria epicurista da vida que no atribua valor mais elevado aos prazeres do intelecto, aos dos sentimentos humanos em geral, inclusive aos da moralidade, do que aos meramente fsicos. Passa, ento, a falar do elemento qualitativo de que vai revestir a doutrina utilitria. Ensina em seguida que: plenamente compatvel com o princpio de utilidade reconhecer o fato de que alguns tipos de prazer so mais desejveis e mais valiosos do que outros. Seria absurdo supor que a avaliao dos prazeres deva depender apenas da quantidade,

41 42

MILL, John Stuart. O Utilitarismo, 2000, p. 29. Ibidem, p. 30. 43 Ibidem, p. 30-31.

30

enquanto na avaliao das outras coisas se levam em conta tanto a qualidade quanto 44 a quantidade.

Esclarece como estabelecer a diferena de qualidade entre dois prazeres, independentemente do fator quantitativo:[...] Entre dois prazeres, se houver um ao qual todos, ou quase todos, os que experimentaram ambos do uma decidida preferncia, independente de qualquer sentimento de obrigao moral para preferi-lo, esse o prazer mais desejvel. Se aqueles familiarizados, de modo competente, com ambos os prazeres, consideram um deles to superior ao outro que o preferem mesmo sabendo que ele ser acompanhado por uma maior soma de dissabores, e se no renunciam a ele em troca de qualquer quantidade do outro prazer que sua natureza capaz de experimentar, ento estamos justificados em atribuir ao gozo preferido uma qualidade superior que excede de tal modo a quantidade que esta se torna, em comparao, pouco 45 importante.

Enfatiza que aqueles que experimentaram os dois tipos de prazeres, ou de gneros de vida: o inferior e o superior, e, portanto, sabem como distingui-los, ho de preferir o gnero que emprega as suas faculdades mais elevadas. Dificilmente um homem inteligente concordaria em transformar-se em um animal inferior diante da promessa de que poderia gozar de todos os prazeres animalescos. Diz mais:Nenhum ser humano inteligente consentiria em ser um tolo, nenhuma pessoa instruda em ser ignorante, nenhum homem com sentimento e conscincia em ser egosta e ignbil, mesmo que estivessem persuadidos de que o nscio, o bronco e o 46 biltre esto mais satisfeitos com o seu destino do que eles com o seu.

O filsofo aduz que:[...] Um ser com faculdades superiores exige mais para ser feliz, est provavelmente sujeito a sofrimentos mais agudos e , certamente, suscetvel a tais sofrimentos em mais ocasies do que um ser de tipo inferior. Mas a despeito dessas suscetibilidades, ele nunca pode realmente desejar decair no que ele considera ser um grau mais baixo 47 de existncia.

Essa relutncia, salienta, podemos atribu-la a vrias causas: ao orgulho, ao amor pela liberdade e pela independncia pessoal, enfim podemos nominar uma srie de motivos da mesma espcie. [...] Mas a designao mais apropriada aquela que se refere a um sentido

44 45

Ibidem, p. 31-32. Ibidem, p. 32. 46 Ibidem, mesma pgina. 47 Ibidem, p. 32-33.

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de dignidade, algo que todos os seres humanos possuem de uma forma ou de outra e que mantm alguma proporo, ainda que no exata, com suas faculdades mais elevadas. 48 Na sequncia, argumenta que seres com capacidades de gozo inferiores tm mais chances de satisfaz-las em plenitude. J os seres dotados de inteleco tero dificuldades em ser felizes, por entenderem que, tal como o mundo est constitudo, as expectativas de felicidade apresentam-se imperfeitas. De qualquer forma, sentencia:

[...] melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeito, melhor ser um Scrates insatisfeito do que um tolo satisfeito. Caso o tolo ou o porco forem de opinio diferente, porque conhecem apenas o seu prprio lado da questo. A 49 outra parte conhece os dois lados para fazer a comparao.

Revisitada a trajetria histrica do pensamento filosfico ocidental versando sobre tica e poltica, que no contempla a totalidade das teorias existentes, mas apenas aquelas que elegemos como importantes para subsidiar este trabalho acadmico, chegamos concluso de que, mesmo nos casos em que as duas atividades no so pensadas de forma inter-relacionada, ainda assim, em alguma medida, h convergncia entre ambas.

48 49

Ibidem, p. 33. Ibidem, mesma pgina.

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CAPTULO II ASPECTOS GERAIS DA TEORIA POLTICA DE MAQUIAVELNo captulo anterior, refizemos o percurso histrico de tica e poltica, desde a Antiguidade at a Modernidade. Pudemos acompanhar, assim, como essas duas atividades humanas foram filosoficamente pensadas no decorrer do tempo, em certos momentos, cada uma de per si, em outros, correlacionadas. O ponto de partida foi, evidentemente, a Grcia antiga, com referncias s teorias de Plato e Aristteles, sem dvida os dois maiores expoentes da filosofia clssica, atravessando o perodo helnico com Epicuro e Zeno de Cicio, o cristianismo com Santo Agostinho e So Toms de Aquino, o Renascimento com breve meno doutrina de Maquiavel, at chegar s filosofias racionalista de Kant e utilitarista de Jeremy Bentham e John Stuart Mill, na Modernidade. Entendemos que a fonte de conhecimentos produzida por aqueles filsofos, agregada, acessoriamente, s consideraes que teceremos neste segmento especfico, fornece subsdios suficientes para a abordagem sobre tica e poltica que nos propusemos realizar no bojo deste trabalho acadmico.

2.1 Sinopse biogrfica do autor

Nicoll Machiavelli ou Nicolau Maquiavel como ficou conhecido na verso do italiano para o nosso idioma, nasceu em Florena, Itlia, em 03 de maio de 1469. Ingressou na vida pblica em 1494, quando a famlia Mdici expulsa do Poder e em seu lugar instala-se o governo republicano do monge Girolamo Savonarola (1451-1498), exercendo funes secundrias dentro da chancelaria. Em 1498, com a deposio e morte na fogueira de Savonarola promovidas pela oposio interna apoiada pelo papa Alexandre VI (1431-1503), Maquiavel assume o posto de secretrio da Segunda Chancelaria da Repblica e, tambm, de secretrio dos Dez da Liberdade e da Paz. O primeiro era exercido em Florena, junto aos gabinetes de administrao. O ltimo implicava misses diplomticas, viagens e visitas a outras terras. no exerccio deste mandato que estabelece contato com Csar Brgia (1475-1507), filho do

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papa Alexandre VI, personagem que mais tarde viria ocupar lugar de destaque no contexto de suas reflexes polticas. Em 1512, os Mdici reconquistam o poder. No ano seguinte, Maquiavel destitudo de suas funes, preso, torturado e mandado para o exlio em San Casciano. nesse perodo de confinamento que nascem as duas principais obras de contedo poltico do pensador florentino: O Prncipe e Discursos sobre a Primeira Dcada de Tito Lvio. Tambm so de sua lavra, dentre outros textos, O Asno (poema), O Demnio que se Casou ou Befalgor (conto), A Mandrgora (pea teatral), Arte da Guerra (dilogo) e a vida de Castruccio Castracani (biografia romanceada), alusiva ao condottiere50 Lucano, espcie de rplica de Csar Brgia. Seu maior anseio era retornar vida pblica, de que se afastara. Sabia, no entanto, que para isso precisaria conquistar as boas graas dos Mdici. O Prncipe, dedicado a Loureno de Mdici, representa uma das suas iniciativas nesse sentido. No consegue atingir de imediato o seu objetivo, mas pelo menos pde regressar Florena. S em 1526 , assume, novamente, uma atividade pblica de maior relevncia, designado que foi para servir como secretrio dos Cinco Provedores das Muralhas, cargo cuja incumbncia relacionava-se com a defesa da cidade. Foi casado, desde 1501, com Marietta Orsini. Faleceu em 21.de junho de 1527, ano em que o imperador Carlos V (1500-1558), do Sacro Imprio Romano-Germnico, libertou Florena do domnio dos Mdici. Morreu com a frustrao de no ter sido, como era de seu desejo, reconduzido pelo novo governo direo da chancelaria. Tampouco viu concretizado seu sonho de uma Itlia forte e unificada. 2.2 A inaugurao de uma nova viso da poltica At o surgimento de Maquiavel, as reflexes sobre o modelo de sociedade organizada, que mais tarde evoluiriam para a concepo institucional que hoje se tem do Estado, no iam alm do campo das idias. Existiam muitas teorias tratando do tema, a maioria das quais logicamente exeqveis, mas que se ressentiam da falta de comprovao prtica.

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Chefe de soldados mercenrios, na Itlia, Idade Mdia e Renascimento.

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Sobre esse assunto, alis, o prembulo do livro Maquiavel Vida e Obra, que contm a ntegra de O Prncipe, mostra-se bastante elucidativo. Confira-se o seguinte trecho:At ento a teoria do Estado e da sociedade no ultrapassava os limites da especulao filosfica. Em Plato (428-348 a.C), Aristteles (384-322 a.C), Toms de Aquino (1225-1274) ou Dante (1265-1321), o estudo desses assuntos vinculavase moral e constitua-se como teoria de ideais de organizao poltica e social. mesma regra no fogem seus contemporneos, como Erasmo de Rotterdam (14651536) no Manual do Prncipe Cristo, ou Thomas More (1478-1535) na Utopia, que, na base de um humanismo abstrato e descarnado de matria concreta, 51 constroem modelos ideais de bom governante de uma sociedade justa.

O filsofo florentino simplesmente inova. No no sentido da construo de um novo modelo de sociedade politicamente organizada, mas recorrendo aos anais da histria para demonstrar que, concretamente, as relaes entre governantes e governados passam ao largo das orientaes filosficas traadas at ento. A anlise que faz nada tem de especulativa. Funda-se na investigao emprica. Interessa-lhe, sobretudo, conhecer o mais possvel acerca do fenmeno do poder. E, para tanto, ps-se a examinar com ateno a trajetria existencial das organizaes polticas tradicionais, procurando saber como nascem, desenvolvem-se, adquirem estabilidade ou entram em decadncia. Seu trabalho investigativo processa-se luz de duas orientaes tericas fundamentais: uma filosofia da histria e uma explicao da psicologia humana. Eis o papel de cada uma delas, de acordo com o trecho a seguir, extrado de Maquiavel Vida e Obra:A primeira concebe o fenmeno histrico no como a idia crist, segundo a qual o desenrolar dos fatos humanos no tempo cumpre desgnios divinos, dirigindo-se linearmente para o juzo final, mas como constitudo por ciclos, que se renovam em movimentos de revoluo em torno de si mesmos. Os fatos histricos repetem-se nas linhas mestras; conhec-los apossar-se de um material de recorrncia, essencial para o estudo do presente. (...) Maquiavel conclui, por meio do estudo dos antigos e da intimidade com os potentados da poca, que os homens so todos egostas e ambiciosos, s recuando da prtica do mal quando coagidos pela fora da lei. Os 52 desejos e as paixes seriam os mesmos em todas as cidades e em todos os povos..

No captulo terceiro do livro primeiro dos Discursos sobre a Primeira Dcada de Tito Lvio (outra importante obra do legado poltico de Maquiavel) que, de ora por diante, ser mencionado abreviadamente como Discursos, o secretrio enfatiza a ameaa contida nesse lado perverso da personalidade humana:51 52

MAQUIAVEL, Nicolau. Maquiavel -Vida e Obra. O Prncipe, 1999, p. 15-16. Ibidem, p. 16-17.

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Como demonstram todos aqueles que discorrem sobre a vida civil e todos os exemplos de que esto cheias todas as histrias, quem estabelece uma repblica e ordena suas leis precisa pressupor que todos os homens so maus [rei] e que usaro a malignidade de seu nimo sempre que para tanto tiverem ocasio; e, quando alguma maldade se oculta que no se conhece porque no se teve experincia do contrrio; mas essa razo um dia posta a descoberto pelo tempo, que, segundo 53 dizem, o pai da verdade.

Embora se refira maldade genericamente, Maquiavel no sustenta que todo o ser humano mau. Porque se assim fosse, estaria eliminada a possibilidade da existncia de valores virtuosos. Ora, Maquiavel fala de bons governantes, do combate corrupo, da lealdade do povo e de sua preferncia pelo regime republicano em razo do compromisso deste com o interesse pblico, conforme deixa explcito no captulo segundo, do livro segundo dos Discursos, ao afirmar: (...) pois o que engrandece as cidades no o bem individual, e sim o bem comum. E, sem dvida, esse bem comum s observado nas repblicas...54 O que ele parece fazer imprimir, propositadamente, uma dose forte de pessimismo sua anlise psicolgica, chamando a ateno para o fato de que, no embate poltico, convm muito mais esperar manifestaes provindas das deformidades de carter do ser humano do que de suas qualidades. Tanto assim que, no captulo vigsimo stimo, do livro segundo, da mesma obra, relativiza a questo ao acrescentar que rarssimas vezes os homens sabem ser de todo maus ou de todo bons.55 Polticos empenhados em trilhar o caminho do xito no devem prescindir nem das lies da histria nem do conhecimento da natureza humana. Pois o passado prdigo em mostrar que, atravs dos tempos, os homens repetem suas paixes e seu modo de agir. Alm do mais, tm de levar em conta, tambm, a circunstncia que envolve a ao. o que se deduz da leitura do trecho a seguir, retirado de Maquiavel Vida e Obra:Determinadas as causas da prosperidade e decadncia dos Estados antigos, pode-se assim compor um modelo analtico para o estudo das sociedades contemporneas, j que s mesmas causas correspondem os mesmos efeitos. Isso no significa, porm, que o mtodo emprico-comparativo fornece uma tipologia de situaes-chave, no estilo de um manual dogmtico. A teoria cientfica, estruturada na repetibilidade da histria e na invariao do comportamento humano, deve ser completada pela 56 investigao das peculiaridades da circunstncia sobre a qual se pretende agir.

53 54

Idem. Discursos Sobre a Primeira Dcada de Tito Lvio, 2007, p. 20. Ibidem, p. 187. 55 Ibidem, p. 89. 56 Idem, Maquiavel Vida e Obra. O Prncipe, 1999, p. 17.

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Dentro desse contexto analtico, a concluso inevitvel a de que tica e poltica no combinam, contrariando, assim, toda uma tradio filosfica milenar. No af da luta pelo poder, no sensato agir eticamente quando se sabe que os agentes polticos no costumam faz-lo, pelo menos enquanto no estiverem definidos a conquista e o processo de consolidao do poder.

2.3 A rea de atrito com a tica crist

Cabe, no entanto, um importante esclarecimento a respeito. A tica qual Maquiavel fazia restrio era a do cristianismo. Isso porque, fiel s suas razes filosficas, alinhava-se aos princpios humanistas, enaltecedores do potencial humano e dos valores cvicos. Concebia, enfim, outro tipo de tica, focada no respeito aos bens pblicos, na observncia s leis do Estado, no amor ptria. O humanismo, sobre o qual j tivemos oportunidade de nos referir sucintamente no captulo anterior, constitui-se a mais importante corrente de idias do Renascimento e teve em Francesco Petrarca (1303-1374) o seu principal consolidador. passado greco-romano. A defesa do papel do homem no mundo e a redescoberta dos valores relacionados com a vida nas cidades fizeram do movimento o grande reformulador das concepes medievais sobre poltica, divergindo da doutrina crist, que tem planos para a realizao do ser humano, mas em outra dimenso existencial. Newton Bignotto no livro Maquiavel, de sua autoria, comenta a propsito que: Esse movimento visava distanciar-se das teses filosficas vigorantes na Idade Mdia e recuperar os ideais de vida do

[...] Desde Agostinho os pensadores cristos haviam se acostumado a colocar a poltica em um lugar inferior vida contemplativa. Um bom cristo deveria viver entre homens e, por isso, tinha razes para se preocupar com a organizao das sociedades. O objetivo principal da boa poltica era garantir a paz, pois s dessa maneira os que dedicavam contemplao, nica atividade verdadeiramente superior, podiam esperar levar uma vida mais de acordo com suas aspiraes. A ausncia dessas condies, no entanto, no alterava a hierarquia das atividades humanas, uma vez que mesmo nas mais difceis situaes ainda era possvel se 57 entregar busca de Deus e das verdades eternas.

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BIGNOTTO, Newton. Maquiavel, 2003, p. 40.

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Cristalizara-se, na Idade Mdia, a viso de que a poltica era uma atividade humana acessria e no principal. Desfazer a concepo arraigada no perodo de que s a vida contemplativa deveria ser digna de ateno e mostrar a vida temporal tinha sentido tambm, estava no cerne do pensamento humanista. Foi a partir da fonte do chamado humanismo cvico que se desenvolveram, em Maquiavel, os ideais republicanos. o que ensina a respeito Newton Bignotto:[...] Podemos dizer que a se encontram os precursores de Maquiavel em sua defesa do republicanismo. Coluccio Salutati (1331-1406), Leonardo Bruni (1370-1444), Poggio Bracciolini (1380-1459) e muitos outros desenvolveram uma concepo de vida dominada pelas questes relativas participao dos cidados nos negcios de suas cidades e s virtudes necessrias para levar a cabo essa tarefa. No lugar de se ocuparem exclusivamente com a salvao da alma e com a vida futura, os humanistas acreditavam que os homens deveriam se preocupar com a escolha dos 58 meios que lhes tornam possvel viver melhor no tempo presente. O foco de seus interesses era a idia de liberdade. A seus olhos a tarefa principal do pensador poltico era mostrar as belezas associadas a esse ideal e como este podia ser desenvolvido integralmente na sua sociedade. Por essa razo, o conceito estava intimamente ligado quele de independncia. Nas circunstncias da vida italiana do sculo XV, os humanistas acreditavam que nenhuma cidade podia se dizer livre se no pudesse governar seus interesses sem a interferncia de outros povos ou instituies. Buscar o desligamento do domnio de muitos sculos da Igreja era uma 59 tarefa essencial para a construo de uma repblica.

Na opinio do secretrio florentino, a tica crist, ao buscar uma felicidade fora deste mundo, e ao valorizar o desapreo s coisas terrenas, a prtica da humildade, do amor e da paz entre os homens, do perdo at mesmo para as ofensas dos inimigos, no se revelaria capaz de forjar uma sociedade livre e slida. Isso aparece nitidamente nos Discursos, no trecho que se segue:A nossa religio tem glorificado os homens mais humildes e contemplativos do que os ativos. Alm disso, v como sumo bem a humildade, a abjeo e o desprezo pelas coisas humanas, enquanto para a outra o bem estava na grandeza de nimo, na fora [fortezza] do corpo e em todas as outras coisas capazes de tornar fortes os homens. E se nossa religio exige que tenhamos fora [fortezza] mais para suportar a fora de 60 certas aes do que para realiz-las.

Ao produzir uma filosofia inovadora, em que anuncia a separao entre tica e poltica, Maquiavel tinha plena conscincia de que iria causar polmica e desagradar muita gente. Resolveu, no entanto, seguir adiante, assumindo as conseqncias de pensar a poltica58 59

Ibidem, p. 41. Ibidem, p. 41-42. 60 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a Primeira Dcada de Tito Lvio, 2007, p. 188-189.

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de um modo diferente daquele consagrado pela tradio. o que deixa claro logo no incio do livro primeiro dos Discursos:Ainda que, devido natureza invejosa dos homens, sempre tenha sido to perigoso encontrar modos e ordenaes novos quanto procurar guas e terras desconhecidas por estarem os homens sempre mais prontos a censurar do que a louvar as aes alheias -, assim mesmo, levado pelo natural desejo que em mim sempre houve de trabalhar, sem hesitao, pelas coisas que me paream trazer benefcios comuns a todos, deliberei entrar por um caminho que, no tendo sido ainda trilhado por ningum, se me trouxer enfados e dificuldades, tambm me poder trazer alguma recompensa, por meio daqueles que considerarem com humanidade os objetivos 61 deste meu labor.

2.4 A fortuna e a virt Fortuna e virt correspondem a dois elementos presentes na vida do ser humano, que Maquiavel aponta como determinantes para o xito ou para o fracasso de quaisquer atividades, a poltica inclusive. Em uma interpretao mais simples, poderamos dizer que a primeira nos afeta de fora para dentro, enquanto a segunda faz o caminho inverso. Sobre aquela no temos inteiro domnio; a ltima podemos no s cultiv-la, mas tambm aprimorla, inclusive por meio da imitao. Relacionada com a deusa da roda dos romanos, a fortuna, sempre de forma inesperada, tanto pode favorecer quanto frustrar os desejos do homem. possvel conhecer suas manifestaes, sentir os seus efeitos, mas no perscrutar seus desgnios ou saber o momento certo em que resolve mudar de lado. J no que concerne virt, o termo tem a ver com o poder do raciocnio do ser humano para desenvolver habilidades comportamentais prticas destinadas, principalmente, a fazer face s circunstncias advindas dos movimentos incertos da fortuna. Em Maquiavel, os conceitos de fortuna e virt no tm exatamente os mesmos contedos semnticos desses termos quando usualmente empregados. Embora, de certa forma, relacione-se com a idia de algo incontrolvel, a fortuna no de todo determinista. Parte dela admite a intervenincia do livre-arbtrio humano no sentido de alterar os seus efeitos. Virt, diferentemente de virtude, no significa boa qualidade moral. Deve ser interpretada como a maneira perspicaz, hbil, criativa, oportuna, enfim, a competncia demonstrada pelo poltico para agir certo no momento certo, valendo-se dos meios61

Ibidem, p. 5.

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circunstancialmente mais adequados e sabendo aproveitar-se das ocasies propiciadas pela fortuna. Alis, Maquiavel no teria definido o que seria virt e seus comentadores divergem quanto possibilidade de defini-la. Uma das interpretaes que a, nosso ver, mais se aproxima do sentido que o florentino procura imprimir ao vocbulo, aquela atribuda a Skinner, constante do apndice aos Discursos intitulado: Vocabulrio de termos-chave de Maquiavel. Para esse intrprete, virt significaria todo o conjunto de qualidades, sejam elas quais forem, cuja aquisio o prncipe possa achar necessria a fim de manter seu estado e realizar grandes feitos. 62 Citaremos, aqui, outras duas interpretaes do que sejam fortuna e virt, feitas por estudiosos de Maquiavel. A primeira, extrada do prembulo de Maquiavel Vida e Obra, do livro sob exame, de autoria do consultor Carlos Estevam Martins, expressa da seguinte maneira:A fortuna proporciona chaves para o xito da ao poltica e constitui metade da vida que no pode ser governada pelo indivduo. Ela proporciona a occasione aproveitada pela virt do governante; [...] o homem de virt aquele que sabe o 63 momento exato criado pela fortuna, no qual a ao poder funcionar com xito.

A ltima, elaborada por Newton Bignotto, no seu livro Maquiavel, enunciada por estas palavras:A virt, que ele evita traduzir para o italiano, para no confundi-la com as virtudes crists, diz respeito capacidade do autor poltico de agir de maneira adequada no 64 momento adequado. [...] A fortuna aparece sempre como uma fora que no pode ser inteiramente dominada pelos homens. Num mundo sujeito a movimentos constantes, ela 65 representa o elemento de imponderabilidade das coisas humanas.

Vejamos, nas palavras do pensador florentino, o trecho no qual cria imagens ilustrativas para mostrar que h na fortuna um lado flexvel, onde possvel ao homem interferir.[...] acredito poder ser verdadeiro o fato de que a fortuna arbitre metade de nossas aes, mas que, mesmo assim, ela nos permita governar a outra metade quase inteira. Comparo-a a um desses rios impetuosos que, quando se enfurecem, transbordam pelas plancies, acabam com as rvores [...] tudo foge diante dele, tudo se submete ao seu mpeto, sem conseguir det-lo e, embora as coisas aconteam62 63

Ibidem, p. 470. Idem. Maquiavel Vida e Obra. O Prncipe, 1999, p. 18. 64 BIGNOTTO, Newton. op.cit., p. 24. 65 Ibidem, p. 26.

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assim, no menos verdade que os homens, quando a calmaria retorna, so capazes de fazer consertos e barragens, de sorte que, em outra cheia, aqueles rios estaro 66 correndo por um canal, e seu mpeto no ser nem to livre, nem to nocivo.

Em outra passagem, ele recomenda que, em determinadas situaes, preciso deixar de lado a prudncia e adotar em relao fortuna uma postura agressiva, de enfrentamento. Explica que, sendo mulher, a fortuna gosta dos jovens impetuosos e por eles se deixa seduzir. Veja-se o trecho a seguir:[...] Estou certo de que melhor ser impetuoso do que prudente, porque a fortuna mulher e, para ter-lhe domnio, mister se faz bater nela e contrari-la. E costuma-se reconhecer que a mulher se deixa subjugar, mais por estes do que por aqueles que agem de maneira indiferente. A fortuna, como mulher, sempre amiga dos jovens, 67 pois so menos circunspectos, mais impetuosos e com maior audcia a dominam.

Sobre esse recorte, Sebastian De Grazia, no livro Maquiavel no Inferno do qual autor, esclarece:Defender uma ao impetuosa pregar a ao sem um clculo frio; Fortuna prefere os impetuosos queles que procedem friamente. Niccol defende racionalmente a ao impetuosa, alegando sua eficcia no trato com a Fortuna, uma semideusa, fora feminina especial, irracional, num mundo cotidiano que, no fosse ela, seria mais inteligvel. [...] quer nos fazer entender que Fortuna, a despeito de todos os seus artifcios tortuosos, a despeito de toda a emoo da orgulhosa queda sofrida pelos bons e grandes, realmente nos deixa, tem de nos deixar um campo de ao, se no 68 inteiramente aberto, ao menos transitvel.

O que parece implcito na doutrina maquiaveliana, entendimento do qual comentadores como De Grazia comungam, que nem mesmo a fortuna e a imprevisibilidade de seus ciclos, ora favorveis, ora desfavorveis, representam impedimentos intransponveis para que os homens, por meio da poltica, da ptria e do Estado, empreendam uma busca racional do bem comum. 2.5 O paradigma da organizao poltica Em sua teoria, o secretrio florentino elege Roma para servir de modelo de Estado a ser imitado. Veneza e Esparta tambm disputavam com ela a posio. Mas o estgio de desenvolvimento que a repblica romana alcanou e o longo tempo em que se manteve no auge da prosperidade, sem dvida contriburam para al-la a esse status paradigmtico.66 67

MAQUIAVEL, Nicolau. Maquiavel Vida e Obra. O Prncipe, 1999, p. 143-144. Ibidem, p. 146. 68 DE GRAZIA, Sebastian. Maquiavel no Inferno, 1993, p. 227.

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No que se tratasse de uma sociedade perfeita quer do ponto de vista organizacional, quer do moral, mas por conta de sua aptido para adequar-se melhor realidade mundana permanentemente em transformao. Newton Bignotto ao prefaciar os Discursos, resume assim a razo da escolha: A seus olhos, Roma no modelar por ser perfeita ou ideal, mas por ter buscado encontrar com suas instituies uma forma de acolher a imperfeio e a contingncia do mundo, no lugar de simplesmente neg-la.69 Maquiavel aponta vrias causas para o sucesso de Roma. Foi povoada por homens de grande competncia poltica, preservava valores como a liberdade e assegurava a igualdade de seus cidados perante a lei, sabia manter a ordem, solucionando, no mbito das instituies estatais, os inevitveis conflitos entre os seus habitantes, entre outras. Na maneira eficiente com que o governo administrava os conflitos internos residia, segundo o pensador florentino, a chave para o sucesso de Roma. Isto porque se apercebeu de que a paz social uma quimera. Os habitantes de uma cidade encontram-se divididos em relao ao poder. De um lado est uma minoria formada pelos grandes, aqueles que desejam e fazem de tudo para exercer o governo. De outro a maioria, o povo, que no aspira governar, mas no deseja ser oprimido por quem governa. No captulo quarto do livro primeiro dos Discursos, faz o seguinte comentrio a respeito do assunto:[...] Direi que quem condena o tumulto entre os nobres e a plebe parece censurar as coisas que foram a causa primeira da liberdade de Roma e considerar mais as assuadas e a grita que de tais tumultos nasciam do que os bons efeitos que eles geravam; e no consideram que em toda repblica h dois humores diferentes, o do povo e o dos grandes, e que todas as leis que se fazem em favor da liberdade nascem da desunio deles [...] E no se pode ter razo para chamar de no ordenada uma repblica dessas, onde h tantos exemplos de virt; porque os bons exemplos nascem da boa educao; a boa educao, das boas leis; e as boas leis dos tumultos que muitos condenam sem ponderar: porque quem examinar bem o resultado deles no descobrir que eles deram origem a exlios ou violncias em desfavor do bem 70 comum, mas sim a leis e ordenaes benficas liberdade pblica.

Trata-se de um choque de interesses necessrio. Resta ao governante perspicaz, por meio do estabelecimento de regras claras, canalizar as pendncias para soluo dentro da esfera institucional. Os dirigentes romanos souberam fazer isso. No oitavo captulo, do livro primeiro dos Discursos, h um exemplo eloquente. O episdio envolve Mnlio Capitolino, um heri romano, que, invejoso da glria atribuda a Frio Camilo por haver libertado Roma69 70

MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos Sobre a Primeira Dcada de Tito Lvio, 2007, p. XXXVII. Ibidem, p. 22.

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dos franceses, passou a caluni-lo junto plebe. O tribunal romano intimou Capitolino para provar publicamente, diante do caluniado, as coisas que de Camilo dissera. No conseguindo faz-lo, Mnlio foi encarcerado. Maquiavel ainda acrescenta: de notar por esse texto, quo detestveis so as calnias, tanto nas cidades livres, quanto nas que vivem de outros modos, e que, para reprimi-las, preciso no negligenciar ordenao alguma que as possibilite. E no pode haver melhor ordenao, para elimin-las, do que abrir muitos lugares para as acusaes; porque 71 estas so to proveitosas s repblicas, quanto so nocivas as calnias.

Segundo Newton Bignotto, no livro tica, a misria reinante nos tempos de Maquiavel deriva menos da imoralidade dos homens e mais do esquecimento do verdadeiro modelo: Roma. Diz em certa passagem:Todos os primeiros captulos dos Discorsi dedicam-se a mostrar que a Repblica romana foi a encarnao dos mais elevados parmetros polticos, que toda ao deve guiar-se pelas aes de seus grandes homens. Exemplaridade da cidade que se funda 72 na exemplaridade das aes de seus cidados.

2.6 O paradigma do dirigente poltico Csar Brgia, o duque Valentino como era chamado pelo povo, enquadrava-se, perfeio, no perfil do dirigente poltico idealizado por Maquiavel. Corajoso, enrgico, astuto, perspicaz, conhecia como poucos os caminhos e os atalhos que levam ao poder. Para todos os efeitos, caracterizava-se como um homem de virt. Uma panormica de sua trajetria de vida traada no captulo VII de O Prncipe. Ali, de acordo com a narrativa do filsofo, possvel se ter uma idia de suas conquistas, dos expedientes de que se utilizava para atingir seus objetivos e as circunstncias adversas que determinaram sua derrocada, como se pod