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Revista Pandora Brasil - N 42 Maio de 2012 - ISSN 2175-3318
Fundamentos filosficos em Paul Ricoeur para os mais variados textos
TICA E MORAL EM PAUL RICOEUR
Alino Lorenzon1
Antes de entrar na exposio do tema em apreo, convm tecer algumas ponderaes
em forma de prembulo, introduzindo preliminarmente a discusso a respeito da
importncia da tica na atual conjuntura de anomia, permissividade e violncia, em
escala cada vez maior, seja no campo das relaes humanas, bem como no convvio com
o planeta Terra, ameaando a prpria sobrevivncia da vida e da humanidade. Mas,
diante desse quadro, uma questo pode ser levantada: Ser que mais saber tico
corresponder, na prtica, a melhor viver-junto com o outro e com o meio ambiente? A
tica voltar a ocupar o lugar consagrado pelos fundadores da filosofia ocidental? Essas
perguntas banais merecem, no entanto, uma ateno particular. Diante da
compartimentalizao e da diviso acadmica da filosofia, recordo de maneira muita
sucinta algumas observaes de Lvinas e de Pierre Hadot, que nos ajudam a melhor
conhecer e vivenciar a filosofia e, consequentemente, a tica. Geralmente, nos currculos
escolares ensina-se que a filosofia primeira a metafsica, porquanto ela responde s
grandes questes gerais, como o que o ser, o mundo, o conhecimento. No entanto, para
Lvinas, a filosofia primeira a tica, porquanto ser a partir dela que todas as demais
adquirem sentido. Assim, a questo primeira pela qual o homem se instaura como
diversamente que ser e transcende o mundo aquela sem a qual qualquer outra
interrogao apenas curiosidade a questo da justia (1998, p. 10-11). No h
duvidar de que a posio de Lvinas nos remete dessa maneira discusso do estatuto
originrio da prpria filosofia, de como ela surgiu e se desenvolveu na Antiguidade.
Qualquer estudante de filosofia poder constatar como, durante a sua formao, a
Academia ostenta uma pletora de disciplinas, dando a impresso de que dessa
1 Doutor em Filosofia pela Universidade de Paris-X com a tese "Personne et communaut dans l'oeuvre
d'Emmanuel Mounier". Professor aposentado de filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Autor de vrias obras de filosofia, entre as quais assinalo as seguintes: Atualidade do pensamento de Emmanuel Mounier, Iju-RS, Editora UNIJU,1994, e tica e hermenetica na obra de P. Ricoeur, Londrina - PR, EDUEL, 1995, e de vrios artigos, publicados em revistas especializadas em filosofia no Brasil e no exterior. Reside en Rio de Janeiro, Brasil.
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Fundamentos filosficos em Paul Ricoeur para os mais variados textos
maneira que o propalado esprito crtico se desenvolve e se adquire, sem referncia
alguma a uma mudana profunda do comportamento ou do estilo de vida da pessoa e
da sociedade. Lendo as obras de Pierre Hadot, em particular O que a filosofia antiga?,
chega-se concluso de que a filosofia, no comeo, no perodo de sua constituio e na
atitude dos seus fundadores, no era como ns a conhecemos hoje e a ensinamos em
nossos cursos. Hadot, professor do Collge de France e especialista da filosofia antiga e
das relaes entre o helenismo e o cristianismo, baseado em farta documentao de
fontes prim{rias, mostra que todas as escolas filosficas da Antiguidade se recusaram a
considerar a filosofia como puramente intelectual. De fato, a filosofia era considerada
como uma escolha que engajava toda a vida e toda a alma. O exerccio da filosofia no
era, portanto, somente um exercicio intelectual, mas devia ser, acima de tudo, uma
ascese moral e espiritual: O filsofo no forma ento somente para um saber falar, para
um saber discutir, mas para um saber viver no sentido mais forte e mais nobre do termo.
para uma arte de viver ou para um modo de vida que ele convida seus discpulos
(1998, p. 211). Ainda, a esse respeito, Aristteles deixou-nos uma lio e, ao mesmo
tempo, uma advertncia muito sria:
Uma vez que a presente investigao no visa ao conhecimento terico como as
outras porque no investigamos para saber o que a virtude, mas a fim de nos
tornarmos bons, do contrrio o nosso estudo seria intil. Devemos agora examinar a
natureza dos atos, isto , como devemos pratic-los, pois que, como dissemos, eles
determinam a natureza dos estados de car|ter que da surgem (1979, p. 68).
A mudana na percepo e na prtica acadmicas do que significam a filosofia e o
filosofar dar-se-, ainda segundo Hadot, com Descartes e com a maior parte dos
pensadores que o tm sucedido, e isso num processo quase irreversvel at os nossos
dias. Enquanto que para os fundadores da filosofia, como os pr-socrticos, Scrates,
Plato, Aristteles, os esticos, os epicuristas, a filosofia se constitua num modo ou num
estilo de vida em comunidade, um verdadeiro exerccio espiritual, para os modernos a
filosofia prima pela produo dum sistema coerente. Essas ponderaes preliminares
foram introduzidas, principalmente, para lembrar por que e como a filosofia constitui
um campo diferente de outros conhecimentos e por que Lvinas defende a tese de ser a
tica, e no a metafsica ou a ontologia, a filosofia primeira.
Revista Pandora Brasil - N 42 Maio de 2012 - ISSN 2175-3318
Fundamentos filosficos em Paul Ricoeur para os mais variados textos
A questo tica no pensamento de Ricoeur
Pode-se afirmar sem exagero que todo o percurso filosfico de Paul Ricoeur , em ltima
anlise, animado pela preocupao tica. Ao estudarmos suas obras e publicaes de
toda sorte podemos constatar, de maneira explcita ou implcita, como a questo tica
tem constitudo para ele uma preocupao terica constante, implicita ou explicita,
desde as suas primeiras publicaes. Alm dos escritos constantes na bibliografia no
final deste trabalho, convm registrar os seguintes ttulos: Philosophie de la volont, cujos
dois volumes Le volontaire et linvolontaire (1950) e Finitude et culpabilit (1960), esta obra
em dois tomos, tendo como subttulo Lhomme faillible, e La symbolique do mal at o
classico Lhistoire, la mmoire, loubli (2000) e a publicao Les parcours de la reconnaissance
(2004), podemos afirmar que a preocupao com a tica tem sido para Ricoeur uma
constante de sua reflexo, de seus trabalhos, de suas atividades e de seu testemunho de
vida. Talvez no encontremos em sua obra tratados de tica ou de moral da
envergadura dos clssicos, j bem conhecidos, como Aristteles, Spinoza, Kant ou
Nietzsche. No entanto, podemos afirmar que as seguintes obras constituem um conjunto
de temas e de reflexes sistemticas, pertinentes ao campo da tica: Philosophie de la
volont (1950), Amour et justice (1990), Soi-mme comme un autre (1991), Le juste 1 (1995) e
Le juste 2 (2001). No Soi-mme comme un autre, Ricoeur denomina, modestamente, Petite
thique os quatro ultimos captulos desse livro em aluso Magna moralia de
Aristteles. Antes, porm, de entrarmos na exposio do tema, faz-se mister esclarecer
a distino metodolgica que Ricoeur estabelece entre tica e moral. Embora no se
possa justific-la nos planos da etimologia e da histria do termo, no entanto, para efeito
do presente estudo, Ricoeur estabelece a seguinte diferena significativa, que permite
associar as duas principais vertentes da filosofia ocidental: a perspectiva teleologica de
Aristteles e a perspectiva deontotogica de Kant:
, portanto, por conveno que eu reservarei os termos tica para a perspectiva de
uma vida realizada (accomplie) , e moral para a articulao dessa perspectiva em
normas caracterizadas ao mesmo tempo pela pretenso universalidade e por um efeito
de coao. (RICOEUR, 1991, p.200.)
Observar-se- claramente, nessa definio, a coexistncia das duas principais heranas,
respectivamente marcadas, a primeira pela perspectiva aristotlica (a busca da
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felicidade) e a segunda pela perspectiva kantiana (o primado da norma e da obrigao).
Ricoeur pretende estabelecer entre as duas tradies uma relao ao mesmo tempo de
subordinao e de complementariedade. Assim que o termo tica ser{ reservado para
todo questionamento que precede a introduo da idia de lei moral, e o termo moral,
para tudo o que na ordem do bem e do mal se refere a leis, a normas e a imperatjvos.
Ricoeur no tem a pretenso de construir e propor uma nova teoria tica. Por isso,
denomina o seu estudo como sendo uma proposta para uma perspectiva tica,
estruturada numa rede conceitual, composta por trs elementos constitutivos
estreitamente imbricados e interdependentes. Chamamos de perspectiva tica a
perspectiva duma vida boa com e para o outro em instituies justas (RICOEUR, 1991, p.
202.) Esses trs termos no se sobrepem, mas tornam possvel e realizvel o ideal ou a
aspirao a uma vida feliz. Assim que, por estrutura ternria do ethos da pessoa,
Ricoeur visa justamente distinguir a tica da moral, mostrando o primado da primeira
sobre a segunda. Esses trs elementos intimamente inter- relacionados constituem, pois,
aquilo que Ricoeur chama de ethos da pessoa. E aqui convm ressaltar o carter de
originalidade, porquanto, alm de ass