Ética do clima

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MEIO AMBIENTE

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Artigo que discute as implicações filosóficas e éticas envolvidas nas discussões sobre mudança climática.

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Os eventos relatados por Camus em A peste tem muita relação com o que vivemos hoje em dia.

Mas a postura em relação ao clima deve ser mudada em prol de futuras gerações?

a novela A peste, publicada em 1947, Albert Camus (1913-1960) relata a vida cotidiana de Oran, uma pequena cida-de no norte da Argélia. Os

cidadãos seguem tranquilamente sua roti-na, até o momento em que a cidade é asso-lada por uma epidemia de peste bubônica. Um dos personagens principais, o médico Bernard Rieux, tenta, desesperadamente, alertar as autoridades sobre a necessidade de tomar providências urgentes.

No entanto, ninguém queria reconhecer a gravidade da situação. Alguns cadáveres que apareciam diariamente em diversos lugares da cidade eram cuidadosamente re-movidos para dar a impressão de que nada estava ocorrendo. Todos sabiam da peste, embora preferissem fingir que ela não exis-tia. Havia um autoengano coletivo, uma vontade de achar que tudo estava bem.

O autoengano pode assumir várias formas. Uma delas é a negação, como no caso da novela de Camus. Outra é a

banalização. Quando reunimos amigos para jantar e começamos a discutir o au-mento da criminalidade, percebemos que, quase sempre, todos em torno da mesa já foram assaltados ou conhecem pessoas que já passaram por essa experiência de-sagradável. Contudo, somos capazes de discutir o tema com uma naturalidade assombrosa. Nada pode ser feito e não im-porta se no momento estiverem ocorren-do outros assaltos em bairros afastados, a poucos quilômetros do lugar no qual estamos reunidos. Nada temos a ver com eles, desde que não nos afetem imediata e diretamente. Tampouco nos mobilizam as estatísticas ou imagens efêmeras que sur-gem e desaparecem na tela da TV. Tudo se passa como se nada tivéssemos a ver com a sociedade da qual participamos.

Sabemos que o problema climático existe, mas agimos como se nada tivésse-mos a ver com ele, da mesma forma que um fumante admite que o tabaco o mata-rá, mas nem por isso para de fumar.

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João de Fernandes Teixeira é PhD pela University of Essex (Inglaterra) e se pós-doutorou com Daniel Dennett nos Estados Unidos. É professor titular na Universidade Federal de São Carlos Carlos (Ufscar). www. filosofiada mente.org

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As estiAgeNs já estãO AfetANdO O fOrNeCiMeNtO de águA NAs grANdes CidAdes e tAMbéM Os pAíses NOs quAis A prOduçãO de eletriCidAde depeNde de hidrelétriCAs

Nascido na Argélia, o filósofo e romancista Albert Camus denunciou, em sua obra, os horrores do século XX a partir da conceituação do absurdo e da revolta

Já banalizamos os eventos cli-máticos extremos. Os verões se tor-naram insuportavelmente quentes e os invernos registram nevascas e temperaturas baixíssimas nos paí-ses do hemisfério norte. . As estia-gens prolongadas afetam o forneci-mento de água nas grandes cidades e já estão afetando também os paí-ses nos quais a produção de eletri-cidade depende de hidrelétricas.

A falta de água é sintoma de um aprofundamento dos proble-mas climáticos que já se traduz em uma crise de recursos renová-veis, cuja solução exigirá investi-mentos vultosos e muita vontade política. Em lugares como a Cali-fórnia e o Estado de São Paulo, a falta de água já ameaça a Econo-mia. Durante o segundo semes-tre de 2014, se tornou frequente na cidade de São Paulo a cena de pessoas olharem aflitas para o céu esperando o retorno do ciclo de chuvas abundantes.

Países como a Holanda e a Di-namarca começaram a tomar pro-vidências para substituir carros a gasolina por bicicletas. Eles temem a subida do nível dos mares, que coloca em risco seus territórios. Muitas cidades do interior da Ale-manha estão fazendo o mesmo. Mas sabemos que isso é pouco.

Os climatologistas apontam para uma elevação da temperatu-ra média do planeta em torno de 6 graus até o final do século. Falar

de uma variação de 6 graus não parece muito, sobretudo quando consideramos que, com frequên-cia, temperaturas oscilam mais de 10 graus entre o dia e a noite. Mas, falar de 6 graus em média é diferente. Há 18 mil anos, uma variação negativa de 6 graus pro-duziu uma era glacial no planeta, na qual lugares que hoje corres-pondem ao Canadá, boa parte dos Estados Unidos e do norte da Europa ficaram soterrados pelo gelo. A vida humana só era pos-sível no hemisfério sul. Imagine agora o que uma variação positi-va de 6 graus em média poderia produzir. Haveria falta de água, os incêndios florestais se multi-plicariam e a agricultura seria drasticamente afetada.

Essa previsão assustadora não é apenas futurologia, pois ela se baseia em simulações computa-cionais rigorosas. Há uma parti-cipação humana nesse processo, causada, sobretudo, pelo uso do petróleo, do carvão e do gás que, juntos, lançam na atmosfera uma enorme quantidade de dióxido de carbono, produzindo o efeito estufa. O dióxido de carbono im-pede que o calor produzido pelos raios solares seja devolvido para o espaço, produzindo, assim, uma elevação na temperatura da Ter-ra, ou seja, o aquecimento global. Com o aquecimento da atmosfera, a água que evapora forma nuvens mas, como a temperatura elevada impede a precipitação, as chuvas começam a diminuir.

Nenhum acordo internacional sobre o clima teve sucesso até ago-ra. Os últimos foram o COP-15, que ocorreu em Copenhagen (cuja campanha ficou conhecida como Hopenhagen) em 2009, e o que ocorreu na ONU, em Nova Iorque, em setembro de 2014. Como todos até agora, terminaram em um im-passe. A próxima rodada de nego-ciações ocorre em Lima, no Peru, como um preparativo para um encontro global que ocorrerá em Paris. Mas é pouco provável que as boas intenções saiam do papel.

Cheias de boas intenções pa-recem ser, também, as organiza-ções internacionais em defesa do

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ambiente e da biodiversidade. No entan-to, elas começam a se tornar desacredita-das. A canadense Naomi Klein, em um livro recentemente publicado, relata a promiscuidade financeira dessas organi-zações com os grandes produtores de pe-tróleo e carvão. Um dos exemplos citados é a W.W.F. (World Wildlife Fund), que recebeu recursos da Shell, além de doa-ções regulares da Chevron, da ExxonMo-bil e da British Petroleum.

Muitas organizações ambientalistas internacionais investem seus recursos em ações de petroleiras. Fundo de Defe-sa Ambiental e o Conselho de Defesa de Recursos Naturais (ambos sediados nos Estados Unidos) investem 14 milhões de dólares na Shell e na British Petroleum. Isso não quer dizer que todas as organi-zações ambientalistas do mundo sejam hipócritas, mas explica, pelo menos par-cialmente, porque nas grandes conferên-cias mundiais sobre clima comparecem, lado a lado, estadistas, líderes ambienta-listas e diretores de grandes empresas de petróleo, carvão e gás.

Os países mais ricos sempre esperam que os outros tomem iniciativas e vice--versa. Há dúvidas até sobre o acordo re-cente entre Estados Unidos e China, que prevê uma diminuição gradual das emis-sões de CO2 até 2030. Será difícil lutar contra a tolerância em relação a ativida-des industriais poluidoras, justificadas, sobretudo, como recurso para amenizar os efeitos da crise econômica de 2008.

É utópico achar que as nações che-guem a algum consenso que implique em uma redução no consumo mundial de petróleo, carvão e gás, pois isso exi-giria a diminuição do consumo em ge-ral. Seria muito difícil fazer com que os cidadãos das democracias liberais aceitassem essas restrições. Quem quer abrir mão de tirar férias todos os anos, de viajar de avião e de comer tudo o que gosta? Nenhum político aceitaria abrir

mão de sua reeleição por exigir que seus eleitores reduzam seus padrões de consumo. Nem mesmo um governo mundial que impusesse, à força, regras emergenciais para todas as nações do planeta conseguiria que elas fossem completamente obedecidas.

Nos países em desenvolvimento, o conflito pode ser ainda maior. Como convencer pessoas que nunca puderam comprar um carro que agora, quando fi-nalmente podem ter acesso a esse bem de consumo, devem se privar dele em nome da preservação do ambiente? Os países em desenvolvimento chegaram no fim da festa, mas dificilmente se conforma-rão com isso e a maioria de seus cidadãos acha que agora chegou a vez deles terem acesso ao consumo até então negado.

Há céticos em relação à mudança cli-mática que afirmam que essa é apenas mais uma manobra dos países ricos para manterem sua hegemonia sobre os paí-ses em desenvolvimento, que teriam de refrear o ritmo de crescimento de suas economias. Há também aqueles que afir-mam que a mudança climática em curso não depende das ações do homem. Ou-tro grupo defende que os danos ao meio ambiente causados até agora se torna-ram irreversíveis e que já ultrapassamos um ponto de inflexão, ou seja, nada mais

A estratégia utilizada pelo governo e pela mídia sobre a crise da falta de água em São Paulo é não associar o evento com as palavras “mudança climática”, pois, certamente, induziria ao pânico

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que façamos fará diferença para impedir o desastre climático.

Há ainda os que apostam na tecno-logia e acreditam que ela será capaz de resolver os problemas. Essa é a proposta da Geoengenharia, uma nova discipli-na científica voltada para a solução dos problemas do clima. O ponto de partida da Geoengenharia é a ideia de que as so-luções políticas ou éticas para o proble-ma do aquecimento global nunca serão bem sucedidas. Não há como derrotar os lobbies dos produtores de petróleo, de carvão ou de gás. Por isso, temos que apostar em soluções tecnológicas para reverter a mudança climática.

Os projetos da Geoengenharia são faraônicos. Eles incluem a construção de enormes escudos solares para refletir a radiação e tentar baixar a temperatura na Terra, a modificação do teor de acidez dos oceanos ou até mesmo a pavimenta-ção das estradas com refletores solares. Esses projetos exigirão investimentos astronômicos, mas os geoengenheiros apostam que não faltarão empresas in-ternacionais que queiram fazê-los. Ou, pelo menos, não faltarão empresas de Geoengenharia que convençam seus go-vernos de que é preciso contratá-las para resolver os problemas climáticos apesar de não saberem os efeitos colaterais que intervenções tão drásticas no meio am-biente podem produzir.

Para muitas pessoas, a Geoenge-nharia produz uma tranquilidade alie-nante que resulta da fé de que a tecno-logia sempre poderá resolver todos os problemas, inclusive os criados por ela mesma. O talento humano, que cresce proporcionalmente ao aumento expo-nencial da população mundial, sempre encontrará uma solução para todos os desafios, uma ideia suficientemen-te reconfortante para não termos de nos preocupar tanto com o futuro de nossos filhos e netos. Quem sabe, em

As causas dos períodos glaciais ainda não

são completamente compreendidas; cientistas

acreditam que a composição atmosférica, as variações da atividade solar

e o vulcanismo são alguns dos fatores responsáveis

É difícil sustentar que temos compromissos éticos com pessoas que ainda não nasceram. será que esse compro-misso com pessoas futuras deve prevalecer sobre o que temos com as que vivem no presente?

O tema é genialmente discutido no filme O desafio da lei (1999) dirigido por david Anspaugh e estrelado por Andy garcia, que faz o papel do advogado joseph Kirkland, recém-nomeado para um cargo na suprema cor-te americana. Kirkland tem de julgar um caso de aborto e se vê diante de um dilema não apenas legal, mas tam-bém bioético. Após uma penosa ruminação mental que o

consome por semanas, Kirkland decide pela absolvição da mulher que abortou. sua decisão se baseia no princípio de que, antes de nos preocuparmos com crianças que ain-da não nasceram, temos um compromisso imediato com as que existem no presente. enquanto as necessidades básicas das crianças com as quais convivemos não forem supridas, não faz sentido a preocupação com as que ain-da não nasceram. Ninguém poderia ser punido por não respeitar a vida de alguém que ainda não existe. será que não poderíamos aplicar o mesmo princípio no caso da mudança climática?

e as crianças que não nasceram?

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As plantas contribuem para a absorção do dióxido de carbono e é por isso que o desmatamento constitui, também, um dos principais fatores para o aquecimento global

um futuro breve, teremos uma economia que possa até mesmo prescindir de recursos naturais.

CliMA e filOsOfiAMas, por que os filósofos deve-

riam se preocupar com a questão do clima? Não seria esse um as-sunto para especialistas, como os climatologistas, os ecologistas? Ou, quem sabe, apenas para ativistas?

Atualmente, há vários filó-sofos nos Estados Unidos e na Europa que têm discutido as im-plicações éticas da mudança cli-mática. Peter Singer, por exem-plo, defende a diminuição de hábitos de consumo como parte de sua exaltação do altruísmo e da paz na Terra aos homens de boa vontade. Contudo, no caso da mudança climática, ações assis-tenciais não parecem bastar, pois o que se requer são estratégias de mudança que, até agora, têm sido sistematicamente adiadas.

Para alguns filósofos do cli-ma, como Stephen M. Gardiner, os problemas que enfrentamos hoje são o resultado de uma ati-tude em relação à natureza que se iniciou com a Ciência moderna. A tecnologia derivada da Ciência mecanicista do século XVII tra-tou a natureza como um inimigo a ser dominado. Nessa visão de mundo, o homem não faz parte da natureza e, por isso, podemos manipulá-la como quisermos, sem temer as consequências.

Uma reação precipitada que observamos atualmente é a nega-ção e a demonização da tecnologia, quase sempre acompanhadas de uma exaltação romântica da vida primitiva. Essa tem sido a ban-deira da Ecologia profunda, que

defende que a natureza é sagrada e, por isso, intocável. Mas, é fácil perceber que a Ecologia profunda exclui o homem da natureza da mesma maneira que a tecnologia o fez até agora. Não podemos in-terferir, mas tampouco participar de uma natureza sagrada e intocá-vel. A demonização da tecnologia ou sua exaltação apontam para a necessidade de rever nossa relação com a natureza.

Além da reorientação da tec-nologia, alguns filósofos argu-mentam que a questão do clima não é apenas técnica e que en-volve, além de aspectos políticos, também uma dimensão ética. Estamos tornando o planeta ina-bitável para as gerações futuras e isso não é justo. Não podemos e, sobretudo, não devemos im-pedir as gerações futuras de so-breviverem e, por isso, é preciso mudar nosso estilo de vida. Não basta reverter a economia do pe-tróleo e poluir menos, é preciso também consumir menos para não esgotar os recursos naturais. Consumimos muito mais do que o necessário e, em nome de nos-sos prazeres no curto prazo, su-focaremos as próximas gerações

que poderão não ter sequer água para beber.

Mas, será justo exigir das ge-rações atuais sacrifícios em nome de gerações que nem sabemos se existirão? O filósofo inglês Derek Parfit argumenta que, se amanhã um reservatório subterrâneo com resíduos nucleares for destruí-do por um terremoto, a espécie humana desaparecerá e que nos-sos sacrifícios terão sido em vão. Como exigir prioridade para pes-soas que ainda não nasceram e sequer sabemos se existirão? Qual é nosso compromisso com as gera-ções futuras?

O filósofo francês Blaise Pas-cal (1623-1662) argumentou que, diante da impossibilidade de sa-bermos se seremos recompensa-dos por uma vida virtuosa após a morte, a conduta menos arrisca-da é não ceder aos prazeres mun-danos. Se houver uma recom-pensa, nós a receberemos; se não houver, teremos levado uma vida virtuosa, o que, por si só, já é um ganho. Se não desperdiçarmos os recursos naturais durante a vida, já será benéfico, independente-mente de as próximas gerações existirem ou não. im

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Imaginemos, novamente, uma pes-soa que vive em um país em desenvol-vimento e que tem, pela primeira vez, acesso a bens de consumo como carros, celulares, novas TVs. A cadeia produtiva desses itens passa pelo consumo de pe-tróleo, carvão e gás. Será que aqueles que fizeram sacrifícios por décadas devem continuar a fazê-los? Não será a hora de inverter a situação e exigir que, daqui em diante, os países ricos façam sacrifícios, em nome de um mínimo de justiça dis-tributiva? Ou seria mais sensato, nesse caso, abrir mão dos princípios de justiça distributiva?

futurO de uMA ilusãOHaverá muitas conferências sobre o

clima nos próximos anos. O mais pro-vável é que todas elas fracassem. Em um mundo cada vez mais hedonista, falar contra usufruir prazeres soa, no míni-mo, moralista.

O discurso em favor do clima foi en-campado pelos críticos da sociedade de consumo que sempre se posicionaram mais à esquerda, irritando, com isso, em-presários e políticos desenvolvimentistas.

Será que o socialismo ajudaria a prevenir um desastre climático? Essa é uma pergunta difícil. Por um lado, uma distribuição mais equitativa da riqueza evitaria que populações de nações mui-to pobres utilizassem recursos naturais de forma desorganizada como única alternativa para a sobrevivência. Há povos que ainda cozinham com lenha e praticam a pesca predatória para não passar fome. Estima-se que é preciso que nesses países a renda per capita se aproxime de 5 mil dólares anuais para que essas práticas predatórias possam ser evitadas.

Por outro lado, é difícil imaginar que nas nações em desenvolvimento o socia-lismo reverta o ciclo de consumo. Nessas nações, o socialismo brotou do industria-lismo e dificilmente poderá reverter esse compromisso histórico. O socialismo visa a participação de todos no consumo e não sua diminuição. Quando associado a políticas desenvolvimentistas, mesmo na forma atenuada de desenvolvimen-to sustentável, ele significa um aumento na produção para que a distribuição de renda e de bens se torne acessível a todos. Nada poderia se chocar tão frontalmente com a causa climática.

Restará, então, aos países desenvol-vidos, nos quais o crescimento econô-mico já é nulo há vários anos, liderar a causa em favor do clima. Nesses países,

O acesso à compra de carros continua irrestrito, e os consumidores, apesar de já terem consciência do dano ecológico global causado por essa tecnologia, continuam a comprá-los

O ecOnOmistA norueguês bjorn lomborg chegou a afirmar, em tom quase cínico, que nada deveria ser feito para prevenir o desastre climático, pois os custos para evitá-lo serão maiores do que para remediá-lo no futuro

CONsuMiMOs MuitO MAis dO que O NeCessáriO e, eM NOMe de NOssOs prAzeres NO CurtO prAzO, sufOCAreMOs As próxiMAs gerAções que pOderãO NãO ter sequer águA pArA beber

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s gArdiNer, s. (org) climate ethics. Oxford: Oxford university press, 2010.KleiN, N. this changes everything: Capitalism vs Climate. New York, simon & schuster, 2014.lYNAs, M. six Degrees: our future on a hotter planet. harper Collins ebooks, 2010.sCrutON, r. How to think seriously about the Planet, Oxford: Oxford university press, 2012.

O planeta Terra será completamente destruído. É assim, sem qualquer esperança, que começa Melancolia (2011). Dirigido pelo dinamarquês Lars von Trier, o filme estabelece uma interessante analogia entre a catástrofe natural e a catástrofe familiar

99 fazendeiros e, após alguns me-ses, a pastagem está irreversivel-mente destruída.

Imagine agora que o mesmo ocorra com um bem que todos compartilhamos, ou seja, a atmos-fera do planeta. Cada um tem uma cota de emissões de carbono, mas supõe que ela pode ser desrespei-tada, pois julga que seu acréscimo não fará uma diferença significati-va e nem será notada. A repetição do mesmo raciocínio por cada um leva à tragédia dos comuns.

Para reverter esse processo é preciso construir uma ética individual, um ethos transmis-sível para as gerações seguin-tes, que incorpore princípios de preservação ambiental. Para que essa Ética seja possível é preciso recuperar algo que foi perdido nas últimas décadas: o sentimento de pertença a al-gum lugar que prezamos; a re-cuperação da querência de cada um. Criar esse sentimento não significa, necessariamente, vi-ver em um determinado lugar ou permanecer onde nascemos. Nossas querências podem estar longe de nós, mas é importante que saibamos identificá-las.

políticas públicas já forçam seus cidadãos a andar de bicicleta, economizar água e eletricida-de. Mas, a pressão mais drásti-ca virá dos refugiados do clima que já começaram a abandonar o hemisfério sul. Atualmente, milhares de habitantes da África subsaariana, vítimas da mudança climática em seus países se arris-cam, diariamente, a atravessar o Mediterrâneo em embarcações precárias em busca de refúgio na Europa, entrando pelo sul da Itá-lia ou pela Grécia.

Haverá chance das políticas públicas dos países desenvolvidos se universalizarem? Não acredito em nenhuma solução “de cima para baixo”, ou seja, algum tipo de legislação ou de convenção global que imponha restrições, pois sem-pre haverá países que não as acei-tarão ou que não as respeitarão.

Não podemos esperar que os governos ofereçam soluções. Por isso, é necessário agir “de baixo para cima”, a começar nos condo-mínios nos quais vivemos, pelas associações de bairros e outros pequenos agrupamentos. Serão as microiniciativas que, somadas, permitirão reverter a tragédia dos comuns, um fenômeno estudado pelo biólogo Garrett Hardin, em 1967 e, posteriormente, apropria-do por economistas.

Imagine um grupo de cem fa-zendeiros que compartilhe uma área de pastagem suficiente para criar cem ovelhas. No entanto, um deles acrescenta à área comum mais uma ovelha sem que os ou-tros percebam e, também, por julgar que esse acréscimo não fará diferença. Entretanto, o mesmo raciocínio é seguido pelos outros

A globalização, que tudo pa-droniza, gerou um mundo que é, ao mesmo tempo, de todos e de ninguém. Todos os lugares tendem a se tornarem espaços públicos pelos quais transitamos em nossas viagens. A maioria das pessoas não vive no local onde nasceu, e, quase sempre por razões ligadas ao trabalho ou ao estudo, somos forçados a nos mudar com frequência. So-mos quase todos imigrantes, seja no nosso próprio país ou fora dele. Identificar uma querência, um laço com um lugar que ama-mos e que, por isso, queiramos preservar, pode se tornar difícil nesse cenário. Mas, apesar des-sas dificuldades, temos de re-cuperar o respeito e o amor por Gaia e transmiti-los para as ge-rações futuras. Afinal, ainda não dispomos de um planeta B.

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