Ética cristã, a guerra e a paz ramiro marques a guerra foi, sem

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Ética cristã, a guerra e a paz Ramiro Marques A guerra foi, sem dúvida, o problema ético mais importante do século XX. No século passado, morreram mais pessoas por efeito directo das guerras do que nos vinte séculos anteriores. O século XXI continua a enfrentar o mesmo problema ético com guerras sangrentas no Afeganistão, no Iraque, no Líbano e na Palestina. A par das mudanças climáticas, da poluição e da pobreza, a guerra é um problema ético que gera controvérsia e disparidade de argumentos. Robin Gill (1) agrupa as respostas ao problema ético da guerra em quatro tipos: militarismo em todas as situações, militarismo selectivo, pacifismo selectivo e pacifismo em todas as situações. No primeiro caso, defendese o recurso à guerra em qualquer lado, a qualquer hora e por qualquer causa. No segundo, defendese o recurso à guerra defensiva quando um país é atacado por outro. No terceiro, recorrese à guerra apenas quando se está convencido de que é uma guerra justa. Por último, recusase o recurso à guerra seja qual for a situação. A ética cristã repudia a primeira resposta. As respostas b e c são aceitáveis apenas quando estamos perante guerras justas. Para uma guerra ser considerada justa é preciso que respeite os seguintes critérios: 1) ser declarada por uma autoridade legítima; 2) ser defensiva, ou seja, constituir uma resposta a uma ameaça exterior; 3) usar meios proporcionais, ou seja, constituir uma resposta à ameaça exterior usando meios proporcionais aos meios usados pelo atacante; 4) haver evidência de que a guerra pode evitar males maiores. Quando um destes critérios falha, a guerra não pode ser considerada justa. É possível registar duas fases distintas na posição da Igreja Cristã face à guerra: a posição antes de Constantino e a posição depois de Constantino. Antes da conversão do Imperador Constantino ao Cristianismo, predominava a defesa do pacifismo em todas as situações. A defesa do pacifismo em todas as situações está, hoje em dia, limitada a pequenas congregações religiosas: Anabaptistas, Quakers, Amish e Testemunhas de Jeová. No período préConstantino, é possível destacar a posição inteiramente antiguerra de Tertuliano (160220). Orígenes (185254), embora contrário à guerra, admitia a participação dos cristãos em guerras conduzidas a favor de uma boa causa. Foi preciso esperar por Agostinho de Hipona para que a ética cristã incorporasse o conceito de guerra justa. Tanto o bispo Ambrósio, como Agostinho, faziam a distinção entre uma guerra justa e uma guerra injusta, considerando que os cristãos não podiam isentarse de participar em guerras justas. Agostinho interpretava a condenação do uso da espada (Mateus.26.523) como uma condenação do uso da espada sem a autorização de uma autoridade legítima (2). A respeito da guerra é possível encontrar argumentos diferentes no Antigo e no Novo Testamento. A Bíblia Hebraica é mais favorável à guerra e está repleta de episódios que descrevem a guerra como uma solução sem que vislumbre nesses textos uma condenação clara do seu uso ou uma distinção entre guerras justas e injustas. A Novo Testamento é declaradamente antiguerra, embora Jesus e os Apóstolos nunca tenham feito a condenação do serviço militar.

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Ética cristã, a guerra e a paz 

Ramiro Marques 

  A guerra  foi, sem dúvida, o problema ético mais  importante do século XX. No século passado, morreram mais  pessoas  por  efeito  directo  das  guerras  do  que  nos  vinte  séculos anteriores. O século XXI continua a enfrentar o mesmo problema ético com guerras sangrentas no  Afeganistão,  no  Iraque,  no  Líbano  e  na  Palestina.  A  par  das  mudanças  climáticas,  da poluição e da pobreza, a guerra é um problema ético que gera controvérsia e disparidade de argumentos. Robin Gill (1) agrupa as respostas ao problema ético da guerra em quatro tipos: militarismo em  todas as  situações, militarismo  selectivo, pacifismo  selectivo e pacifismo em todas  as  situações.  No  primeiro  caso,  defende‐se  o  recurso  à  guerra  em  qualquer  lado,  a qualquer hora  e por qualquer  causa. No  segundo, defende‐se o  recurso  à  guerra defensiva quando um país é atacado por outro. No terceiro, recorre‐se à guerra apenas quando se está convencido de que é uma guerra justa. Por último, recusa‐se o recurso à guerra seja qual for a situação. 

  A  ética  cristã  repudia  a primeira  resposta. As  respostas b  e  c  são  aceitáveis  apenas quando estamos perante guerras justas. Para uma guerra ser considerada justa é preciso que respeite os seguintes critérios: 1) ser declarada por uma autoridade legítima; 2) ser defensiva, ou seja, constituir uma resposta a uma ameaça exterior; 3) usar meios proporcionais, ou seja, constituir uma resposta à ameaça exterior usando meios proporcionais aos meios usados pelo atacante; 4) haver evidência de que a guerra pode evitar males maiores. Quando um destes critérios falha, a guerra não pode ser considerada justa. 

  É  possível  registar  duas  fases  distintas  na  posição  da  Igreja  Cristã  face  à  guerra:  a posição  antes  de  Constantino  e  a  posição  depois  de  Constantino.  Antes  da  conversão  do Imperador  Constantino  ao  Cristianismo,  predominava  a  defesa  do  pacifismo  em  todas  as situações. A defesa do pacifismo em todas as situações está, hoje em dia, limitada a pequenas congregações religiosas: Anabaptistas, Quakers, Amish e Testemunhas de Jeová. 

  No período pré‐Constantino, é possível destacar a posição inteiramente anti‐guerra de Tertuliano  (160‐220). Orígenes  (185‐254), embora  contrário à guerra, admitia a participação dos  cristãos  em  guerras  conduzidas  a  favor  de  uma  boa  causa.  Foi  preciso  esperar  por Agostinho de Hipona para que a ética cristã  incorporasse o conceito de guerra  justa. Tanto o bispo Ambrósio,  como Agostinho,  faziam  a  distinção  entre  uma  guerra  justa  e  uma  guerra injusta, considerando que os cristãos não podiam  isentar‐se de participar em guerras  justas. Agostinho  interpretava  a  condenação  do  uso  da  espada  (Mateus.26.52‐3)  como  uma condenação do uso da espada sem a autorização de uma autoridade legítima (2). 

  A respeito da guerra é possível encontrar argumentos diferentes no Antigo e no Novo Testamento.  A  Bíblia  Hebraica  é mais  favorável  à  guerra  e  está  repleta  de  episódios  que descrevem  a  guerra  como  uma  solução  sem  que  vislumbre  nesses  textos  uma  condenação clara  do  seu  uso  ou  uma  distinção  entre  guerras  justas  e  injustas.  A  Novo  Testamento  é declaradamente anti‐guerra, embora  Jesus e os Apóstolos nunca tenham  feito a condenação do serviço militar. 

  A mudança da posição da Igreja Cristã face à guerra tem de ser compreendida à luz da conversão de Constantino. A partir de Constantino, o Cristianismo passa a ser a religião oficial do Império e a Igreja Cristã sai das margens da sociedade para assumir uma posição cada vez mais associada ao Estado, acabando por se fundir com ele, no século XIII, com o surgimento do conceito de Estado Cristão de natureza claramente teocrática. Foi nesse século que Tomás de Aquino viria a lançar as bases racionais de uma teoria da guerra justa que é, até hoje, a posição oficial da Igreja Católica, sucessivamente consagrada por várias Encíclicas. 

  No  século XX,  assistimos a uma mudança na natureza da  guerra,  tornando‐se  ainda mais difícil aplicar os critérios da guerra  justa. A utilização de armas nucleares e químicas, o terrorismo  à  escala  global  e  os  atentados  suicidas  contra  pessoas  inocentes  são  realidades novas que baralham e confundem os dados, tornando extremamente difícil colocar em prática a  teoria  da  guerra  justa. Ultimamente,  são  cada  vez mais  os  eticistas  cristãos  que  fazem  a distinção  entre  causas  justas  para  entrar  numa  guerra  (ius  ad  bellum)  e  práticas  justas  de guerra (ius in bello). 

  A fim de aprofundar esta temática, é essencial a leitura de alguns textos de Agostinho de Hipona e de Tomás de Aquino: do primeiro  teólogo  cristão,  sugiro Resposta a  Fausto, o Maniqueu XXII, 69‐76; do segundo, aconselho a Suma de Teologia, 2ª2ae, 40.1‐2. 

Notas 

1) Gill, R. (2006) (Ed.). A Textbook of Christian Ethics. Londres: T and T Clark 2) Idem, p.196