etapas essenciais da relacao analista-analisando

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SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICOLOGIA HUMANISTA EXISTENCIAL INSTITUTO DE ENSINO E FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA E ANÁLISE DO EXISTIR 1 TEXTO ETAPAS ESSENCIAIS DA RELAÇÃO ANALISTA-ANALISANDO PARTE DO TEXTO: PSICOTERAPIA OU ANÁLISE DO EXISTIR? PROFª MS. JOSEFINA DANIEL PICCINO - CRP 06/9717

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Etapas Essenciais Da Relacao Analista-Analisando

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SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICOLOGIA HUMANISTA EXISTENCIAL INSTITUTO DE ENSINO E FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA E ANÁLISE DO

EXISTIR

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TEXTO

ETAPAS ESSENCIAIS

DA RELAÇÃO ANALISTA-ANALISANDO

PARTE DO TEXTO: PSICOTERAPIA OU ANÁLISE DO

EXISTIR?

PROFª MS. JOSEFINA DANIEL PICCINO - CRP 06/9717

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ETAPAS ESSENCIAIS DA RELAÇÃO ANALISTA-ANALISANDO EM ANÁLISE DO

EXISTIR

Profª Ms. Josefina Daniel Piccino

A experiência com atendimento clínico mostrou-me que muitos analisandos

percorrem uma trajetória semelhante desde o início da análise até sua interrupção. Quer

dizer, para além das diferenças entre as pessoas, entre suas queixas, histórias e processos,

certos fenômenos se repetem. A questão que chamou a atenção era que, além de

sentimentos em comum como tristeza, saudade, alegria, desejos, etc. ou reações

semelhantes, como reações agressivas, submissas, ou de carinho e solidariedade, etc., ou

de coincidências quanto a acontecimentos na história de vida, como ter tido pais

extremamente rígidos, sofrido as mesmas perdas e dores ou seguido a mesma profissão,

etc., ou ainda coincidências relativas a certos modos de experimentar a presença e

interferências dos outros na relação da pessoa com o mundo, ocorriam repetições de fases

no processo analítico. Percebi, então, que minha presença como analista e o tipo de

intervenção que realizava definia essas fases.

Este tipo de situação foi forte sugestão para que eu realizasse uma análise da

relação analista-analisando e procurasse esclarecer as diferentes etapas da análise

existencial e a natureza de cada uma delas.

As observações sobre as diferentes etapas que ocorrem no processo de análise

foram, ainda, ocasião para obter clareza sobre a importância de algumas perguntas que

formam o ponto de partida de meu trabalho com o analisando: O que há com esta pessoa?

Como ela é? Como ela está? Como deseja ser? O que precisamos fazer? Quais caminhos e

direções temos que seguir?

Essas perguntas, úteis para compreender o mundo da pessoa, indicar os rumos da

análise e avaliar seu andamento permitiram demarcar os acontecimentos constantes e

comuns em diferentes processos.

Alguns desses acontecimentos constantes e comuns serão apontados aqui. Este

texto consiste no esclarecimento desses aspectos e inclui; a) análise das diferentes etapas e

descrição fenomenológica das experiências dos analisandos em cada fase e das atitudes do

analista que produzem as mudanças de fases; b) aproximações entre teoria e os

acontecimentos característicos de cada etapa; c) apontamento das transformações dos

analisandos que estabelecem nova fase; d) estabelecimento das relações entre as condutas

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do analista e as modificações do analisando. Ou seja, a tarefa envolve: verificar possíveis

repetições de fenômenos em análises de diferentes pessoas e retratar suas características

estruturais - redução eidética - e dessa redução, estabelecer, através da descrição

fenomenológica, as características estruturais dos acontecimentos incluídos nos processos

analíticos considerados.

Serviram como material de estudo os processos da análise de 10 pessoas – 7

mulheres e 3 homens - que nunca passaram antes por processo psicoterapêutico de nenhum

tipo. Apesar desses estudos (disponíveis para consulta), para não tornar este texto muito

pesado, não incluirei os pontos das sessões que indicam os conceitos que serão

apresentados.

Foram constatadas cinco etapas desde o primeiro encontro da análise existencial até

o momento que a pessoa decidiu se despedir do processo e do analista.

Antes de apresentar as observações e aproximações entre fatos e a teoria,

considero importante salientar o seguinte:

1º embora cada etapa tenha aspectos definidos a ponto de ser possível sua

descrição, na maior parte das vezes, ocorre sobreposição de etapas;

2º no caso da análise fenomenológica existencial as etapas certamente se

diferenciam conforme as interferências do analista da existência cuja tarefa é

fundamentalmente evidenciar as estruturas de ser da pessoa em suas relações;

3º ocorre de algumas pessoas iniciarem a análise na 2ª etapa. É menos frequente,

mas algumas pessoas chegam já na 3ª etapa.

4º colocarei um espaço com asterisco entre trechos do texto para indicar as

aproximações entre os dados obtidos e conceitos fundamentais do pensamento

fenomenológico – existencial ou comentários sobre significados da situação do analisando.

ETAPAS

1ª Etapa: o mundo, esse grande vilão

Ao iniciar a análise as pessoas estavam em crise, sobrecarregadas de sentimentos

negativos, dificuldades, inquietações, insatisfações, etc. Queixavam-se de não verem saída

para suas vidas.

-> As queixas diziam respeito, principalmente, a três aspectos:

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a) problemas com o casamento: não gostar do cônjuge como antes, não conseguir

preservar a autonomia e identidade no casamento, apesar do afeto ter dificuldades na vida

sexual;

b) dificuldades afetivas e de relacionamento com os pais ou filhos e com as pessoas,

ansiedade e depressão;

A ansiedade mostra a existência de algum nível de corrosão nas bases da

segurança e autoestima e, consequentemente, vulnerabilidade e fragilidade. Os sentimentos

de desânimo ou de tipo depressivo expressam desencanto, desapego afetivo e vínculo

pouco amoroso com o mundo.

De modo geral, as pessoas estão mesmo muito contrariadas com o mundo;

aborrecidas com os acontecimentos de suas vidas, com as outras pessoas e com o que elas

mesmas são. Tudo é negro, cinzento, pesado, doloroso, fechado. As pessoas não vêm

saídas, não sabem como encaminhar as coisas nem o que fazer com suas relações e vida.

Sentem-se desamparadas, sozinhas, desoladas, perdidas e com medo do futuro.

c) sentimentos ou de muita ansiedade ou de depressão ou ambos. Esses tipos de

queixas eram acompanhados de média a intensa ansiedade, medo, desânimo ou depressão.

A crise faz com que a atitude mais constante seja de queixar-se. Os analisandos

queixam-se de tudo e de todos. Queixam de seus pais; de seus irmãos, das (os)

companheiras (os) de vida, dos filhos ingratos e difíceis, da vida que tem trazido dores

profundas e sido especialmente ingrata com elas. Falam das decepções que as pessoas e a

vida têm trazido, do trabalho insatisfatório que são obrigadas a seguir, do chefe, dos colegas

de trabalho, etc., etc., etc.

Sentem-se vítimas do mundo e não pessoas atuantes e co-participantes na

construção de suas vidas e identidade. De forma geral, estão ressentidas e magoadas com

os outros.

Enfim, o mundo é o grande culpado do que se passa com elas. Culpado e

responsável.

* * *

Um dos aspectos que está na base desse tipo de experiência é a forma como as

pessoas “entendem” a relação homem-mundo. As desavenças com o mundo que essas

pessoas têm indicam a concepção de que existe uma separação completa entre pessoas e

mundo. Ocorre o seguinte: são pessoas em cuja interioridade muitos sentimentos e

sofrimentos acontecem por causa do mundo exterior que nelas tudo construiu. Suas

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experiências afetivas são direcionadas ao “meio externo” percebido como dela separado,

autônomo e como o grande artífice de todos seus problemas e males.

Essa forma de experiência faz com que os acontecimentos “interiores” sejam

compreendidos somente como consequências do conjunto de acontecimentos de sua vida.

Quer dizer, suas vivências não são nem sentidas nem entendidas como resultado de sua

relação com o mundo, relação que liga a pessoa e o mundo em uma parceria fundante da

construção da identidade e história individua l do analisando. Também não são dirigidas a

elas mesmas.

O foco das experiências é o meio, o mundo, a sociedade e a família que são

compreendidos como os fabricadores de sua identidade e estado atual de sofrimento.

No início da análise, as pessoas entendem as coisas dessa maneira.

O pensamento existencial tem oferecido elementos para esclarecer o fato de que a

constituição do modo de ser de cada pessoa é um processo que acontece na e pela relação

existencial com o mundo e consigo mesma - implica sempre co-participação. Mas, na

primeira fase da análise, a pessoa está “decidida” a não levar em conta esse fato e a se

escorar na idéia de que existe um culpado por ela ser como é e por sua “situação” de vida

estar desse modo. Está convencida que sua sorte e modo de ser foram constituídos por

acontecimentos pré-estabelecidos pelo destino e pelas outras pessoas. O destino, em função

de processos de auto-proteção, é convenientemente entendido como pré-escrito a ser

cumprido e não como direção, caminho que se faz de um ponto em direção a outro. Tudo de

ruim que acontece e sente é entendido como determinação do destino ou como produzido

pela família e sociedade.

O dado de que a existência se constrói a partir do encontro pessoa-mundo e que

esse encontro depende de uma série de condições de cada um desses dois lados, não é,

nem remotamente cogitado.

* * *

As idéias de que existe uma separação pessoa-mundo, e a pouca consciência de

que cada um participa do processo da própria constituição pessoal, se é uma escora

confortável por um lado, por outro, fazem com que as pessoas se sintam impotentes e

encurraladas. O sofrimento é muito grande. O desafeto com o mundo está construído. Está

também produzido um fechamento desesperado que impede de ver saídas e possibilidades

de transformação do modo de ser nas relações. O auto-conhecimento é precário e difuso ou

muito racionalizado. As pessoas se sentem confusas quanto a sua própria forma de ser. Isto

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surge do gradativo distanciamento de si mesmas. Não raro, afirmam não saber direito quem

são, o que querem, o significado de seus sentimentos e atos. A pergunta constante é: porque

sou assim? A resposta constante é: sou assim, porque a vida e os outros me fizeram assim.

Provavelmente, esta situação faz com, que na primeira fase, da análise os

analisandos chorem muito.

Se o mundo é responsável sozinho por tudo o que elas são, elas são impotentes

para “resolver” suas vidas. “Alguém” tem de fazer alguma coisa, tem de realizar as devidas

alterações. Este entendimento demonstra o modo como os analisandos se posicionam frente

ao analista. Acostumados a atribuir toda responsabilidade da própria constituição de si

mesmos e de suas vidas ao mundo, colocam nas mãos do analista todas as possibilidades.

Seus desejos e expectativas são de que o analista resolva tudo por elas, no lugar delas.

Quer dele explicações, diretrizes e definições quanto ao que devem fazer, pensar, sentir, etc.

O mínimo que querem do analista é uma mágica rápida e indolor que tudo solucione num

intervalo de tempo muito, muito curto.

Nesta primeira fase, o analista tem basicamente dois significados para os

analisandos: é o grande depositário do que eles têm para apresentar e o dono da milagrosa

e poderosa varinha de condão ou bisturi com que faz rápidas e indolores cirurgias para tudo

resolver. Fantasia tão deliciosa quanto impossível.

Isto tudo indica como os analisandos se sentem em suas vidas: estão descrentes de

sua própria capacidade de entender com clareza e nitidez o que se passa consigo mesmos,

como foi sua participação na construção de sua história e de seu modo de ser e sobre as

possibilidades de participar do re-encaminhamento de suas vidas. Poderoso é o mundo, o

outro. O outro é tão poderoso que sozinho o constituiu e mantém assim. Quanto ao analista,

também é um desses outros todo-poderosos que vai salvá-lo.

Em outros termos: das pessoas com quem tem tido contato e da vida, os

analisandos fazem todo tipo de queixa e lamúria. Ao analista, pedem compreensão, ajuda,

proteção. Pedem, acima de tudo, duas coisas: serem ratificados como vítimas e soluções.

De qualquer modo, o fato é que o outro é o centro de todas experiências. Os

analisandos estão ocupados principalmente com o outro, dirigidos ao “fora”. Ao mesmo

tempo estão fechados a seus próprios modos de ser e à natureza das transações que

estabeleceram com os outros, e ao fato de terem constituído e chegado a serem como são a

partir delas.

Como não pensam ter alguma responsabilidade pela produção do estado em que se

encontram, os analisandos se sentem impotentes para agir. Constitui única saída para eles

estar a mercê do analista que pode por fim aos conflitos, dores e desacertos de suas vidas.

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Existe um outro tipo de acontecimento interessante desta primeira fase da análise

existencial.

Algumas pessoas, além de se queixarem diretamente dos outros e do mundo, fazem

grandes relatórios dos acontecimentos passados e atuais de modo a deixar claro porque são

como são e estavam na situação em que estavam. Tal como repórteres, fazem reportagens

de suas vidas.

Enfim, basicamente ou as pessoas culpam o mundo e queixam-se dele ou justificam

seu modo de ser e desventuras através de histórias que, com certeza, mostram as causas

determinantes de suas personalidades.

* * *

O apresentado acima aponta para alguns fatos.

É claro que, enquanto alguém se ocupa com justificar ou culpar não tem tempo e

“espaço” para compreender sua própria estrutura de ser.

Outro fato é que, esta primeira etapa, analista e analisando estão em um momento

delicado. É neste momento que pode e deve ocorrer o estabelecimento do vínculo entre os

dois. O vínculo é o “continente” a partir do qual a análise se torna possível. É também para

orientação de todo tipo de relação analista-analisando.

Uma vez que uma análise, para ser análise do existir, fundamentalmente, torna

evidente a estrutura de ser e se relacionar do analisando e exige procedimentos definidos

e determinados, bom vínculo entre analista e analisando é uma exigência. Se o fundamental

nesta forma de análise é analisar a „relação com…‟, sem bom vínculo, muito pouco de

produtivo pode acorrer.

Produzir vínculo adequado é tarefa do analista e exige atitudes definidas. O

analisando já fez sua parte quando escolheu, particularmente, este analista e a análise

existencial.

Para estabelecer um vínculo significativo, o analista recebe de forma acolhedora.

O que significa exatamente receber de forma acolhedora?

Significa ouvir atentamente, interessar-se, compartilhar das maneiras como esta

pessoa experimenta o que se passa com ela tal como experimenta. Esta forma de receber,

portanto, não é ter atitudes bondosas e generosas, mas, sim, agir fenomenologicamente. As

atitudes analíticas inspiradas no método fenomenológico e os desdobramentos delas

beneficiam o processo de análise do existir. Este assunto será tratado de forma detalhada

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mais adiante, mas é possível apontar já um de seus benefícios: acolhimento com isenção e

rigor.

Uma das atitudes sugeridas pelo método fenomenológico é suspender

temporariamente as teorias, idéias e explicações pré-estabelecidas para, em um estágio

provisório de esvaziamento conceitual, produzir uma abertura possibilitadora da apreensão

do que o analisando apresenta tal como apresenta. No caso da análise do existir, a

abdicação de pré entendimentos e conceitos propicia uma abertura que leva a apreensão

das vivências e experiências da pessoa tal como elas são para ela. Essa atitude é condição

de possibilidade para o analista entender o mundo do analisando. A compreensão resultante

da atitude do analista existencial de suspender por um tempo os conhecimentos adquiridos

não são, portanto, atitudes bondosas e compreensivas, mas atitudes de rigor científico que

produzem entendimento preciso do que se passa com o analisando. A consequência desse

acesso aos fenômenos ou seja, às experiências do analisando tal como se dão, é que o

analisando se sente compreendido, acolhido e aceito. A importância disto está no fato de que

o analisando, na maior parte das vezes, vem à análise se sentindo muito solitário,

desamparado e desacompanhado.

Essa abertura do analista é experimentada pelo analisando como disponibilidade

que oferece continência, e segurança de estar “em mãos de profissional”. A experiência da

disponibilidade do analista é para o analisando, segurança também para se mostrar tal como

é. Nesse sentido, a análise se constitui como um espaço da verdade1. Ao sentir-se acolhido,

compreendido e aceito (resultado da suspensão que o analista realiza), o analisando se

sente em um campo propício para se apresentar sem reservas. Forma-se, então, um clima

de confiança, e ocorrem experiências de não estar sozinho, abandonado no mundo inóspito,

mas de ter posição significativa frente ao outro, e de ter parceiro. Estabelece-se o vínculo

que dá ao analisando a condição de se abrir, lidar com seus dramas, desenvolver-se e se

modificar.

Um bom vínculo analítico é, portanto, o alicerce da construção que, aí mesmo, se

inicia.

O analisando elegeu este analista, está disposto a se abrir; o analista, com suas

atitudes de tipo fenomenológicas, possibilita o vínculo. Então, existe disponibilidade mútua.

Embora mútua, essas disponibilidades não são idênticas - a disponibilidade do analista surge

através de atitudes fenomenológicas. Uma delas é “por entre parênteses”. Com conceitos,

teorias e esta atitude, realiza o movimento de aproximação2. A disponibilidade do analisando

1 Sobre este assunto, ver textos de Emílio Romero 2 Sobre este assunto aproximação e recuo ler o capítulo Especificidade da Relação Terapêutica.

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se dá pelo fato de adotar o analista como alguém em quem acredita e confia, com quem

pode contar e para quem pode se abrir verdadeiramente.

Considerando que o analisando, quando inicia o processo, considera o mundo como

o vilão produtor de todos os seus males e de todas suas dores, confiar e se abrir ao analista

constitui, já, uma modificação importante. Mas a atitude de "por entre parênteses" os

conceitos e conhecimentos já existentes para ter acesso ao mundo do outro tal como esse

mundo é - aproximação - não pode ser a única atitude do analista. Ele, tem outra tarefa a

fazer: analisar. Para analisar, tem de recuar, “distanciar-se”. O recuo é tão necessário quanto

a aproximação, pois possibilita a análise.

Ou melhor, da parte do analista ocorrem dois movimentos: aproximação e recuo 3.

Pela aproximação, o analista acolhe a atitude inicial do analisando de se colocar como o

resultado inexorável de um mundo que o fez assim; com o recuo inicia o trabalho de retirar a

pessoa da imersão e crença irrefletida em tudo aquilo que recebeu do mundo e encaminhá-la

para o enfrentamento de si mesma e de suas possibilidades próprias.

Até o momento, o analisando não compreende o fato de que, apesar da real

importância da família, da sociedade e cultura em sua constituição, esta depende da

“composição” que ele e o mundo fizeram desde sempre no encontro e através dele. Porque,

apesar de cada pessoa, quando vem ao mundo, já encontrá-lo tal como é, o modo de ser de

cada uma é formado a partir do que se dá nos encontros entre ela e esse mundo que já

estava aí pronto. A prontidão do mundo faz parte da condição com que cada homem se

depara e com que faz suas transações. O analisando tem contornado o dado de que, apesar

de condicionante, o mundo já pronto, por si só, pode ser ocasião para uma série de coisas

de sua vida, mas não é determinante. Perceber que existe condicionamento e não

determinação e constatar que a história de cada um e seu modo de ser como a pessoa são

constituídos aos poucos em função dos acontecimentos e das formas de se relacionar com

eles e com as pessoas, definem nova compreensão e novos rumos no processo analítico.

Este aspecto, também, tem relações com o movimento de aproximação e recuo do analista.

Lembremos que, porque se aproxima, o analista compreende o mundo da pessoa, porque

recua, pode investigar, coordenar e sistematizar os dados que obtém e apresentar o outro tal

como é a si mesmo.

O analista configura aquilo que recebe e apreende do que o analisando expõe e

inicia um trabalho de colocá-lo frente a si mesmo. Age como se estivesse pondo um espelho

frente ao analisando de modo que ele possa ver-se tal como é e reconhecer que sua

identidade e história são resultados de seu encontro com o mundo. Ao mesmo tempo que

3 Idem

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põe o espelho na frente do outro, o analista fica “ao lado dele” “olhando” para a visão que

terá aí refletida – o que é, novamente, aproximar-se.

As análises que o analista faz são apresentadas ao analisando. Com isto o analista

cumpre outras funções que são, unicamente, de sua competência: analisar a estrutura de ser

e se relacionar da pessoa e apresentá-la, tal como ela é, a ela mesma. Apresentar tal como

é, é tarefa que exige atitudes metodológicas específicas e rigorosas obtidas do método

fenomenológico.

Neste primeiro momento do processo, então, o analista, além de receber, acolher,

compreender, age no sentido de, através das análises fenomenológicas-existenciais, ampliar

a experiência da pessoa sobre si mesma, ampliação que é um dos objetivos fundamentais

do processo.

Esta apresentação somada à atitude do analisando de se expor encaminha os dois

para um outro estágio do processo. De queixar-se, gradativamente o analisando se

encaminha para o confronto consigo mesmo: olhar-se no espelho, o leva a maior clareza

sobre si mesmo.

II - O encontro com o espelho

Este segundo estágio consiste, principalmente, no encontro da pessoa com o

espelho. A partir das situações em que o analista mostra a pessoa a ela mesma, ocorre

certos níveis de clareza sobre sua contribuição na construção de si mesma e de sua vida. Ao

mesmo tempo, também é em função da própria abertura do analisando que ocorre uma

mudança de direção e natureza do processo.

A pessoa se re-orienta do “fora" para "dentro". As palavras fora e dentro estão entre

aspas para indicar o movimento da pessoa e não a separação mundo externo e mundo

interno. Aliás, nesta fase, acontece de o analisando se assenhorear, em algum nível, do

atrelamento homem-mundo que a estrutura de ser do homem necessariamente inclui. (Esta

compreensão não aparece teoricamente, mas pelos relatos e reflexões sobre o que ocorre

cotidianamente). Quando a pessoa já tem essa compreensão, chega na análise já na

segunda fase do processo. O analista parte desse ponto e confirma e amplia essa

compreensão.

O inexorável encontro que cada um de nós é com os outros, com as situações, como

próprio corpo, com as coisas, etc. e a idéia de que nossa identidade é resultado desse

encontro, não era, até agora, claro para o analisando. Mas, em função do que se passa na

primeira fase da análise, o analisando efetua uma mudança de direção de sua experiência.

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Se, antes, tinha o “meio externo” como foco de sua atenção, agora, começa a sondar mais e

mais seu modo próprio de ser, e a ter maior entendimento sobre ele. Ou seja, se no primeiro

momento o meio externo e sua história de vida eram os focos de sua experiência, agora, seu

si mesmo passa a ser o principal. Isto lhe permite, também, elaborações de vivências e

maior entendimento da estrutura de seu modo de conviver.

Esta situação do analisando, que é diferente da anterior devido a esta re-orientação

do entendimento sobre sua presença no mundo, configura um segundo momento do

processo de análise - momento de realização de uma viagem para “dentro de si mesmo”

possibilitadora da aquisição de conhecimento e clareza cada vez maiores sobre seu modo de

ser.

O que faz o processo tomar outro rumo? São:

- as atitudes do analista descritas anteriormente - aproximação pela suspensão e

descrição analítico-fenomenológica e recuo - possibilitadoras da análise,

- as apresentações da pessoa a ela mesma,

- a atitude do analisando de abrir-se ao analista que produzem pouco a pouco maior

auto-conhecimento,

- o enfrentamento de si mesmo e o ver-se tal como é,

- a constatação do próprio compromisso com a formação de sua estrutura de ser e

com as relações.

Desta maneira temos o “ver-se no espelho” como característica principal desta

etapa. Mas ainda reflexo da pessoa no espelho não é nítido e claro. Existem névoas que

tornam a imagem refletida sem a devida iluminação e a compreensão pouco ampla e

incompleta. O espelho ainda está embaçado e o que se vê são contornos mal delineados,

imagens com sombras e partes veladas. Ficam, ainda, grandes áreas ocultas a serem

iluminadas.

Este tipo de obscurecimento é demonstrado, principalmente, através de sentimentos

de confusão e incertezas, justificativas e explicações lógicas, recusas do que o analista

apresenta. Os analisandos se sentem apreensivos quanto ao que podem encontrar em si.

Referem-se à "caixa preta", ao "buraco negro", ao "monstro horroroso" que têm medo de

encontrar.

Na base disso tudo, estão vivências de medo e inquietação que formam a

característica desta fase. Ocorre também nesta fase, de pessoas estarem carregadas de

dolorosa ambiguidade. Ao mesmo tempo que desejam e necessitam deparar-se com os

dramas a que ficaram, "irremediavelmente" presas para compreendê-los e poder modificar

sua vida, também têm grande apreensão quanto ao que podem encontrar e quanto ao que

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podem sofrer com os encontros. Querem e não querem seguir em frente. Esse é um de seus

grandes conflitos. Querer e não querer conhecer (o que, aliás, de modo impreciso já

conhece) e, assumir sua história é, agora, a situação perturbadora.

Angústia, medo, ansiedade, por um lado e desejo de sair da dor e do desgosto com

sua existência, por outro, são a tônica deste fase do processo. Esta tônica faz com que o

analisando fique empatado, movimentando-se “para frente e para trás”. Vai em frente

enfrentando a si mesmo no espelho e faz retornos temporários ao estado anterior de basear,

na sua condição, a culpa de tudo que se lhe ocorre. Dá passos para frente e retorna para a

anterior atitude de orientar-se para o meio “externo”. Ou seja, o mundo externo não cai,

completamente, no esquecimento. Quando falamos sobre orientação da experiência para o

interior ou para o exterior, referimo-nos ao modo como as pessoas, em geral, pensam ser o

homem.

* * *

Em geral existe a ingênua concepção (condizente a mentalidade ocidental) em que a

separação sujeito e mundo é um fato. Na primeira fase, quando a experiência estava

direcionada, principalmente, ao mundo, também não aconteceu de o si mesmo ficar,

completamente, esquecido. Aliás, esquecimento do eu ou do mundo de modo total,

obviamente, não é possibilidade humana. O pensamento existencial e fenomenológico

mostram com clareza que a possibilidade de ser pessoa se assenta na “relação com...” -

estrutura de ser do homem que impossibilita a anulação de um e de outro “lado”. Nadificação

total do mundo ou do si mesmo seria um rompimento do vínculo homem-mundo o que é

impensável para um ser cuja característica fundamental é, exatamente, ser “relação com...”.

A alienação total quanto ao mundo significaria a sua nadificação; o enfoque completo no

meio externo seria, em contrapartida, a nadificação do si mesmo. Cada um dos dois casos

representaria uma ruptura do enlace homem-mundo, seria o desmanche da existência.

Também é preciso lembrar que a estrutura de ser vinculação experimentada

consciente com o mundo não permite ao homem a apreensão do mundo em sua totalidade.

Assim, quando o si mesmo está iluminado e apreendido, o „mundo‟ está mais obscuro,

menos visível e conhecido, e vice-versa.

* * *

O movimento do analisando nesta fase do processo analítico envolve, reincidir na

atitude de queixar-se do mundo como forma de escape do enfrentamento do si mesmo.

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Lançar mão de culpar o meio pelas desventuras e desencontros é tentar driblar o dado

estrutural (ontológico) de “ser-com o outro” e o dado cotidiano (ôntico) do comprometimento

pessoal e intransferível com a própria vida e com a constituição da forma própria de ser esta

pessoa que ele é.

Com o retorno ao modo queixoso, o analisando repete a costumeira atitude infantil e

não comprometida de assentar, na sua condição, a culpa por tudo que lhe acontece. A

tentativa é de se desviar da tomada de consciência do comprometimento que ser homem por

si mesmo já envolve e da responsabilidade de tomar sua existência nas suas próprias mãos.

Atitudes como estas alimentam a ansiedade vivida pelo analisando e representam o desejo

de se safar do inexorável comprometimento com a constituição de seu modo de ser e com os

rumos dados a sua vida, aspectos que, no final das contas, ele sempre soube e com os

quais brigou.

Nesta segunda fase, acontece um movimento contínuo entre o olhar para ver "o fora"

e olhar para ver "o dentro". Quer dizer: apesar de experimentar mais a si mesmo, o

analisando faz também retornos ao estado anterior de coisas. Dá passos em direção ao

contato mais íntimo com a própria intimidade e, ao mesmo tempo, dá saltos repentinos para

sua realidade externa.

Quando esses retornos acontecem, percebemos que a concepção da pessoa sobre

a responsabilidade da realidade externa para com seus males não foi modificada de modo

importante. A família e a sociedade continuam como bode expiatório. Apenas, ocorre

concomitantes reflexões sobre o que ela mesma essencialmente é.

Isto é, apesar de ter se voltado para si mesma, não faz ainda uma caminhada

suficientemente intensa e profunda. É um tatear, um movimento constante de dar alguns

passos em direção de si mesmo e outros em direção do mundo, de ir em frente e retroceder.

Ocorre certa compreensão de que sua vida pode não estar tão completamente determinada

pelo mundo, mas não a clareza suficiente para produzir re-orientações do estado de coisas

em que se encontra dignas de nota.

Enfim, a caminhada está apenas começando e é interrompida por retornos às vezes

quase ao ponto inicial.

Este movimento de ir adiante e retornar é aproximação e recuo do analisando e

provoca certo nível de confusão. Se antes a pessoa já se sentia perdida, agora pode se

sentir mais perdida ainda. Porque, antes, tudo estava complicado, mas havia uma coisa

completamente certa: o mundo a fez assim. Agora, no nível de compreensão de que sua

história e relacionamentos são constituídos com sua participação, o medo e a ansiedade

aumentam. Porque a pessoa sente que alguma coisa muito estrutural para ser encarado está

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sendo mobilizado. Ela vislumbra sobre si mesmo e sobre o mundo algumas coisas em

direção as quais antes não havia se empenhado em elaborar. Mas, exatamente porque

sente muita angústia e medo, tudo é ainda muito mais velado que claro. Muitas vezes estão

anexados a angústia e medo, a sentimentos de inaceitação e impotência para re-orientar a

vida e se modificar.

Esse estado de coisas provoca o contínuo “olhar para ver o fora” e “olhar para ver o

dentro”, contatos mais íntimos com a realidade “pessoal” e voltas para a realidade "externa".

São evidentes os limites na clareza sobre seu si mesmo. Alcançar maior clareza constitui o

próximo passo e caracteriza o terceiro momento do processo.

* * *

O vínculo estabelecido com o analista nos dois primeiros momentos permite ao

analisando abrir-se mais ao analista que pode apresentar a pessoa a ela mesma tal como é,

de forma mais efetiva, embora, na maior parte vezes, essa apresentação seja dolorosa e

desestabilizante. O vínculo é um dos aspectos que garantem a caminhada. Também existe

garantia, pelo acolhimento fenomenológico que permite que o encontro da pessoa com ela

mesma se desenvolva cada vez mais.

A atitude nunca abandonada pelo analista de “por entre parênteses” julgamentos e

idéias pré-construídas e estabelecidas, possibilita acompanhar o analisando em suas idas e

vindas, movimentar-se com ele “onde” ele está: em seguro e confortável “lugar” ou em

angustiante e sofrido “lugar”.

A atitude de “redução fenomenológica” e de ir “às coisas mesmas” permitem a

compreensibilidade do mundo do analisando. Já as atitudes de descrição fenomenológica e

mostração o re-encaminham para o âmbito de seu próprio ser e de seus modos de montar

composições com o mundo.

O analista, ao manter sempre essas atitudes, nesta fase, torna mais cristalino para o

analisando o movimento de retorno àquele modo anterior de culpar o mundo. Quer dizer,

aponta para esta forma de viver a relação com o mundo e o ir e vir do analisando. Reflete

com ele sobre o valor e sentido desse movimento.

O analista, então, tem as mesmas atitudes de antes, mas o modo de exercê-las e os

objetivos, nesta etapa são diferentes. Pela aproximação, participa do processo de

enfrentamento de si mesmo e o promove; pelo recuo, dá andamento à análise da estrutura

constitutiva da pessoa. Com essa análise, pode descrever (fenomenologicamente) a pessoa

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a si mesma e, com isso, possibilitar a visão mais clara de como é e faz contato consigo

mesma e com o mundo.

Então, a apresentação rudimentar iniciada nos primeiros momentos é ampliada por

uma análise que, agora, se empenha em desentranhar todos os fenômenos incrustados nos

conteúdos apresentados e em evidenciá-los por intermédio da descrição fenomenológica.

Com esta descrição que, agora tem outro conteúdo, acontece a clarificação de tudo que está

envolvido com vivências do analisando. Este, por sua vez, frente as essas atitudes do

analista, empenha-se mais e mais nessa caminhada. Aliás, é o analisando quem oferece os

indícios de que a caminhada íntima já pode acontecer ou já está acontecendo, ou pode se

intensificar. Ao analista, cabe as tarefas de fazer a leitura desses “indícios”, “entrar” com o

analisando no caminho, e funcionar como suporte que lhe permite ir em frente em sua

caminhada apesar das dores, dos retornos, dos sofrimentos, etc. Dar suporte, também, não

significa ser bondoso ou protetor. O suporte brota automaticamente das próprias atitudes

fenomenológicas de redução, de ir às coisas mesmas, de descrição, análise, mostração, de

“retirada” da pessoa da atitude ingênua em que estava imersa e encaminhamento para ver o

que, de fato, existe incluso em seus vividos.

Nesta fase, a relação entre analisando e analista cresce em confiança, em

participação e em convivência. Ocorre profundo comprometimento entre as duas pessoas.

O analisando abandona em certa medida a atitude passiva de esperar tudo de seu

salvador e se compromete com seu desenvolvimento. O analista auxilia de modo a levá-lo a

ver com clareza o que não percebera e apreendera até então.

Apesar de tudo isso, o analisando ainda considera que existem duas coisas bem

separadas: o que ele é, e o mundo. O analista existencial (a partir dos relatos, da própria

presença física do analisando e, principalmente dos afetos), gradativamente e por diferentes

meios, apresenta-lhe as estruturas que fazem parte de seu existir. Uma dessas estruturas é

o mundo. Na medida em que o dado de que o mundo é uma dimensão humana é clarificado

através da análise dos encontros da pessoa com as coisas, as pessoas, etc., acontece re-

orientações na compreensão da dinâmica de sua constituição particular. A pessoa passa a

compreender que a ligação entre homem e mundo é tal, que ela só pode compreender a si

mesma a partir dessa ligação e não a partir ou só do mundo ou só de si mesma.

A consideração da sua contribuição e participação na constituição da sua própria

existência, aos poucos, torna-se presente e evidente. Quer dizer: o analisando adquire

clareza sobre o fato de que o homem, mesmo sem pré-deliberação ou planejamento, é

sempre co-agente na formação de sua constituição pessoal, de sua existência e não apenas

uma massa amorfa moldada pelo outro a seu bel prazer. Reconhece a importância da

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presença do outro na sua constituição pessoal e, ao mesmo tempo, percebe-se como

alguém que, também, encaminhou e encaminha sua história no mundo.

Assim, a definição deste momento do processo analítico existencial se dá pelo início

da experiência de que ocorre sempre a interação pessoa-“mundo”, interação de onde nasce

a estrutura de ser cada um. A pessoa percebe que existir é estar lançado numa tal

vinculação com o mundo que não há como conceber uma compreensão sobre si sem

requerer o mundo.

III - O “caminho” pela própria interioridade

Entrar de corpo e alma no processo de auto-conhecimento é um outro estágio pelo

qual o analisando passa. Ele já está no caminho de uma compreensão mais ampla de sua

estrutura de ser e se relacionar com os outros. Mas para que a lida com seus

descontentamentos e o projeto de realizar mudanças possam ocorrer é necessário

enfrentamentos de si mesmo cada vez mais desenvolvidos. Encarando-se “no espelho”, o

analisando pode se ver tal como é e alcançar uma compreensibilidade da dinâmica de seu

insertar no mundo.

É preciso, então, que as experiências da pessoa sejam iluminadas o mais

completamente possível.

Os sentimentos e as emoções são, com certeza, as melhores fontes que o analista

têm para mobilizar o processo de iluminação da estrutura de ser do analisando.

Existem, também, algumas contribuições importantes que dizem respeito a

acontecimentos específicos da própria situação de análise. O próprio falar sobre si mesmo

do analisando para alguém que (pela própria redução fenomenológica) é neutro e

inteiramente disponível é já uma excelente fonte de auto-compreensão. Falar ao analista é

diferente do falar nas outras circunstâncias cotidianas de vida.

Uma diferença diz respeito ao fato de que por mais disfarces, representações,

fantasias, crenças distorcidas sobre si, ou mesmo mentiras que o analisando apresente, ele

já está sempre em franca reflexão e elaboração sobre ele mesmo e sua vida, e no contexto

do objetivo fundamental de sua exposição - a busca da verdade sobre si mesmo. O

analisando pode até distorcer fatos para forçar alguma verdade, mas, sempre, é ela seu

objetivo. (Quando isto ocorre a tarefa do analista é por em questão essa “verdade”). Falar

com o analista, implica em saber que será ouvido por alguém disposto a isenção. Isto é

francamente liberador.

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Do ponto de vista das tarefas a serem realizadas pelo analista, a exposição do

analisando e as atitudes metodológicas permitirão a des-coberta das razões, afetos e

significações incrustadas nas vivências e condutas do analisando. O analista realiza as

tarefas de buscar razões, afetos e significações, e apresentá-las ao analisando

impulsionando-o, com isso, mais e mais para perscrutar a si mesmo.

Descobrir o que está encoberto é um processo que coloca a pessoa numa situação

vivencial específica. Ao mesmo tempo que fazer esse caminho é doloroso e amedrontador e

a pessoa deseja não seguir em frente, é motivador porque ela intui que pode se deparar com

possibilidades de saída do sofrimento em que se encontra. Se este segundo aspecto for

suficientemente importante, o analisando se propõe a seguir seu processo. Surge, então,

outro momento que exige atitudes definidas do analista para não acontecer de o analisando

sucumbir ao medo e a dor. Novamente são as atitudes de aproximação, compreensão,

recebimento de caminhar ao lado do analisando e o vínculo de confiança entre eles que

podem garantir a continuidade da caminhada.

Se isto tudo ocorre, a viagem para dentro de si mesmo se intensifica e o analisando

acaba por encarar os fatos fundamentais de sua história, suas experiências afetivas mais

importantes, e avaliar as formas de sentir, pensar e agir que vem, desde sempre,

construindo.

A aproximação de si mesmo que o analisando realiza leva-o a identificar os aspectos

mais essenciais de sua maneira de ser no mundo e com o mundo – a alcançar sua estrutura

de ser.

Mas o aprofundamento do conhecimento sobre si mesmo configura uma fase de

maior egocentrismo ainda que a anterior. O analisando fica preocupado consigo mesmo e

com a movimentação emocional que vive.

Este estado de coisas representa um enfrentamento profundo com o próprio modo

de ser. Acontece o confronto com os dramas fundamentais. O analisando mergulha na

intrincada trama de seu existir e encontra seu projeto fundamental de ser. Ele mergulha e

nada na lama de sua própria vida. O mergulho no drama faz com que se envolva com

sentimentos muito fortes de dor, tristeza, raiva, rebeldia, oposição, angústia, ansiedade.

Paralelamente, a visão bem mais nítida da sua tendência fundamental de ser e o

conhecimento da estrutura de ser e dos seus modos de estabelecer suas relações traz

refrescantes sentimentos de que há possibilidades e saídas.

* * *

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O analista ao mesmo tempo que se aproxima sendo o companheiro que caminha ao

lado, não pode deixar de recuar e apontar esses sentimentos refrescantes e possibilidades

que, aos poucos, aparecem. O analista, além de não abandonar as atitudes que teve até

então, ainda acrescenta outras: extrai os significados e sentimentos, propostas, estados de

espírito inclusos nas experiências apresentadas, aponta possibilidades de mudanças a partir

da análise da estrutura de ser da pessoa.

As experiências que o analisando obtêm sobre os modos como constrói seus

“contatos com…” e sobre como funcionam seus processos pessoais aprofundam e ampliam

o autoconhecimento. A visão que a pessoa tem refletida no espelho agora, tem contornos

mais definidos e nítidos, é bem mais clara.

Em outros termos, o que fundamentalmente ocorre nesta fase é a iluminação devida

daquilo que estava incipientemente iluminado. Esta iluminação instaura a possibilidade de

libertação das amarras e desprendimento dos fatos a que o analisando, por sobrecarga

emocional, ficou preso, e põe diante dele as significações e o possível.

A relação analítica se amplia, se intensifica e desenvolve. Analista e analisando

estão ligados pelo envolvimento que ambos têm com a mesma vida - a vida do analisando.

Então, a confiança e disposição de entrega por parte do analisando são cada vez maiores.

Isto permite que o analista possa apreendê-lo mais e melhor, analisá-lo com mais

propriedade e, com isto, ter uma visão muito próxima da natureza de seu mundo.... Acontece

um círculo vicioso bom e produtivo: por um lado, um empenho do analisando de ser expor,

elaborar suas vivências, desenvolver sua consciência reflexiva, enfrentar a si mesmo,

ampliar o autoconhecimento; por outro, um trabalho do analista de “abrir-se” ao analisando

para apreender sua experiência tal como é para ele, analisar sua estrutura de ser, buscar a

significação e sentido presentes em cada experiência manifestada, estabelecer uma relação

de cada manifestação com o todo da existência, apresentá-lo a si mesmo, apontar para as

suas possibilidades configuradas e para aquelas que estão nascendo.

O analista ainda continua sendo o “suporte” do analisando porque esta fase de

enfrentamento, na maior parte das vezes, é difícil, penosa e sofrida. Além disso, o analista já

tem, como informações sobre o analisando, uma série considerável de vivências, condutas e

experiências que lhe dão o “material” necessário para ampliar a mostração de sua estrutura

de ser. O analista sistematiza, ordena conjuntos de manifestações, extraí desses conjuntos

os dados essenciais4, amplia a compreensão da pessoa sobre sua experiência e modo de

ser.

4 Ver o texto sobre aplicação do método fenomenológico em análise existencial

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Assim, as tendências fundamentais, gradativamente, tornam-se mais conhecidas e

claras e, possibilidades de transformações se apresentam.

Mas nessa fase, as transformações, nem sempre são ações concretas. A pessoa

mudou, está mudando, sente-se diferente mas, ainda, não atua segundo as mudanças. Isto

começa a ocorrer com mais vigor na quarta fase e toma corpo, de fato, na última fase.

IV - O Reencontro com o Mundo. A Decisão Radical de Transformação

Com a clarificação de sua própria estrutura constitutiva em franco desenvolvimento,

com o entendimento mais abrangente de como é e opera no mundo e com um contexto de

significações diferente o analisando, paulatinamente, sai da fase de “egocentrismo” e se

“reencontra” com o mundo. Ele entrou na própria toca e agora sai dela para rever o contexto

dos fatos fundamentais de sua vida e suas relações com o mundo. Agora, o conjunto de

acontecimentos de sua vida atual e passada e os seus relacionamentos são sentidos e

pensados segundo a ótica da compreensão que obteve nas fases anteriores.

Ou seja, este “retornar” ao mundo se dá sem que o analisando abandone a visão e

as significações que, de certo tempo em diante, adquiriu sobre si mesmo e sua vida.

Ele tem clareza, agora, sobre o fato de que ao homem não é possível não estar

“enrolado” com o que está aí na sua vida. Tem clareza, também, de que porque cada pessoa

particular é resultado da composição que construiu com o mundo, as formas possíveis de

estabelecer vinculações são infinitas. Acrescido a isso existe a clareza de que a composição

que acontece desde sempre requer seu comparecimento e comprometimento pessoal

mesmo quando isso não pode ser nem minimamente claro ou quando, envolvido com a lida

da vida, não esteve atento para tal.

O analista entrou com ele nessa toca e dela com ele sai. Isto, é aproximação.

Também, nesse caminho, em muitos momentos faz os devidos recuos para realizar a

mostração do que de importante acontecer. Assim, o analisando adquire ótica diferente

sobre as coisas e faz reencontros com o mundo que têm a marca do entendimento e

compreensão originados na análise. Agora, seu “contato com…” adquire outra feição, pois

assume-se como também, responsável e comprometido por sua constituição e seu destino,

mesmo quanto àquilo frente a que nada pode fazer ou não escolheu.

Esta compreensão de como é e monta suas vinculações, e de como é o homem

facilita tanto compreender e aceitar a si mesmo quanto às outras pessoas. Desenvolve,

independência para ser como é, aprende a preservar sua singularidade e a oferecer essa

possibilidade às pessoas com quem convive.

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Ocorre neste momento do processo algo bastante importante: além de se sentir

diferente, a pessoa percebe que existe uma diferença entre como agora é, como sente e

pensa e como se apresenta ao outro ou como as pessoas que a conhecem5 entendem que

ela é. Percebe que tem abdicado de si mesmo e que, esta dupla divisão entre o que era e o

que é, e o que é e o que está mostrando produz um desacerto em suas relações.

Porque o analisando sabe que se modificou, mas as pessoas continuam agindo

como se ele fosse exatamente o mesmo de sempre. Neste caso a análise dos desacertos

interpessoais trazem-lhe a clareza sobre a necessidade de ter a "coragem de ser". (Título de

um livro de Paul Tillich).

Pode ocorrer, também, de as pessoas perceberem suas mudanças, mas cobrarem

continuar sendo exatamente como sempre foi. A questão posta aí é nada mais que a

fundamental importância das relações interpessoais para com as possibilidades de ser de

cada pessoa no mundo.

Em resumo, o que ocorre com o analisando nesta fase é que ele emerge do lamaçal

em que estava imerso e caminha no sentido de superação de seus dramas dando a eles

medidas, significados e proporções diferentes e pode reconstruir suas relações segundo

modos outros cujo fundamento é a clareza e a escolha de ser o que é e não ser o produto da

pura e simples assimilação da herança de sua família, da sociedade a que pertence e de sua

época.

O espantar fantasmas e pactos tácitos que tem sempre feito com os outros, de ser e

de se relacionar tal como todos são e se relacionam e a “visão” sobre si mesmo gerada pela

caminhada interna vem gerando produzem, por um lado, a libertação do encosto não

responsável no ser como se tem de ser e por outro, a construção de arrimos outros para uma

vida cujo destino e significação tem a característica de ser comprometidamente escolhida.

Além desse movimento, faz parte desta fase “uma” decisão fundamental, radical de

dar um basta em certas formas de adesões e tornar concretas as transformações que estão

em gestação. Esta decisão é de extrema importância porque os conceitos e as idéias, em

geral, são mudados com mais facilidade que sentimentos, sensações e emoções. As

sensações, as emoções e os sentimentos são extremamente aderentes e poderosos. Eles

marcam como tatuagens, como elas, são, apenas parcialmente, removíveis e ainda assim

através de recursos muito especiais. Por serem muito determinantes na constituição das

pessoas não existe, sobre os afetos, a mesma possibilidade de alteração que existe frente

aos pensamentos e idéias. O “recurso especial” para remover as “tatuagens” é a mudança

5 Melhor entendimento deste aspecto pode ser obtido conhecendo os conceitos: ser-para-si e ser-para-

o-outro de Jean-Paul-Sartre. Ver: O Ser e o Nada.

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na própria afetividade. Uma “composição” diferente com o mundo é o que pode trazer as

mudanças. E essa “composição diferente” pode se dar através da decisão radical de

enfrentar (o que, em sua estrutura, o homem é): poder ser, e de se embrenhar em dar

andamento ao próprio ser. É no nosso âmbito mais fundamental - a afetividade - que

podemos encontrar as bases das possibilidades de mudanças e de apresentação pública

delas. Temos, aqui, a condição para o exercício das transformações que, durante a análise

vêm acontecendo.

Lidar com a afetividade, “chamar” constantemente o analisando para ela é uma

delicada tarefa do analista. O analisando precisa da continência do analista. Ser esta

continência é aproximar-se. De novo essa aproximação se dá através da suspensão dos

julgamentos quanto ao que deve ou não ser sentido, das emoções permitidas ou não. Esta

suspensão tem o objetivo de acesso aos sentimentos e emoções tal como se dão e são,

novamente, fonte de aproximação. Não falamos aqui da aceitação incondicional de que fala

Rogers. A neutralidade absoluta do não questionamento e avaliação junto e dentro do mundo

do analisando pode ser prejudicial para este. Orientado pelo que se passa com o analisando,

o analista tem de gerar um descolamento da imersão na emoção e ponderar junto com ele

sobre o significado e validade dessa experiência e sobre às possibilidades de outras

experiências menos perturbadoras. Este aspecto é muito importante. Um exemplo pode

indicar a delicadeza do assunto que deve ser melhor desenvolvido em outro momento. Uma

pessoa extremamente passional e que, quando dominada pela raiva tem atitudes violentas,

precisa do questionamento firme e bem marcado sobre as origens e motivações desse

processo. Esse questionamento e a abertura para outras possibilidades de experiência e

relacionamento é sempre uma tarefa do analista. O questionamento, mesmo tendo como

condução a própria experiência do analisando, é representativo do recuo. Ou melhor, o recuo

o possibilita. E é certamente necessário para a preservação da dignidade de vida do

analisando e das pessoas com quem ele convive. E isto não aparece somente no caso de

sentimentos chamados negativos. O excesso de benevolência, supostamente um sentimento

positivo, pode ser tão devastador para a própria pessoa e para suas relações interpessoais

quanto a violência. Por isso a importância das análises da rede de referências que sempre

está incluída na trama da vida afetiva. E análise exige sempre o recuo. Novamente se

apresenta a importância das atitudes fenomenológicas.

* * *

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O reconhecimento dos modos de ser “afetado por...” (ver item sobre dimensão

afetiva), as mudanças desse modos (no limite de suas possibilidades) são experimentadas e

também praticadas. Mas são muito mais sentidas que exercitadas. A ampliação da

concretização das mudanças aos poucos toma mais força e vez.

* * *

V - O Exercício da Transformação. Tomar a Vida nas Próprias Mãos.

O movimento realizado pelo analista de aproximar e estar com o analisando "lá onde

ele está " e de recuar para realizar a análise da estrutura de ser e de se relacionar, somado a

todo o processo de conscientização pelo qual passou o analisando funcionam como fontes

de possibilidade de transformação.

Ao conhecer seu estilo fundamental de ser, o analisando já iniciara o exercício de

praxis diferente.

Mas a efetivação mais firme e consistente do exercício deliberado de novos modos

de sentir e conviver com o mundo é o que acontece na quinta e última etapa da análise. É a

fase de concretizar mudanças, de atuar realmente segundo o próprio projeto de ser, de

utilização prática do movimento aprendido emocional e intelectualmente.

A análise que é existencial e realizada por procedimentos fenomenológicos faz com

que ocorra, além da compreensão sobre si mesmo e sobre modo como as próprias relações

com o mundo vêm sendo estruturadas, uma compreensibilidade sobre o que é a existência,

a existência de todos os homens. Um outro olhar para a vida foi sendo desenvolvido e,

agora, as transformações que puderam acontecer serão colocadas em prática, cada vez

mais.

Isto significa inclusive que as mudanças são exercitadas expressamente. Isto tem

condições de acontecer porque o analisando está estruturado, íntegro, confiante no próprio

poder de viver lançando mão de seus recursos. Tem, já, a consistência pessoal que lhe

permite “bancar” a si mesmo e escolher mostrar-se tal como é ou recolher-se se necessário

for. Assim, pode estabelecer relacionamentos mais satisfatórios com o mundo.

Este estado de coisas não significa que a pessoa não sofre e nem sofrerá nunca

mais de angústia, tristezas e medos. Estas, junto com todos os outros sentimentos e

emoções, por fazerem parte da estrutura mesmo de ser do homem, sempre acontecerão.

Aliás, são elas que podem declarar o que o ser humano é, e o que lhe acontece. São elas

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que nos encaminham para nós mesmos e para a compreensão de nossos modos de

comparecimento no mundo.

O que acontece nesta fase é que a pessoa já tem a segurança necessária para

conseguir realizar o que quer. Apesar do medo, quer e tem que realizar para seguir com a

tarefa que todo homem tem de ser com o outro. Os "acidentes de percurso" que

necessariamente a vida apresenta, agora, podem ser enfrentados sem significado de

destruição.

Além disso, o conhecimento de si mesmo e das características de ser humano

adquirido até então, faz com que a pessoa tenha noção de seus limites e de até onde pode

ir. “Sabe” o que pode suportar e o que extrapola sua capacidade. Consegue ter noções sobre

seus limites e sobre as situações que podem colocar seu ser em jogo e age orientando-se

por essas noções de modo mais realista e menos fantasioso.

Partindo de bases mais reais e das possibilidades mais próprias, exercita, nos seus

encontros com os outros, o que de fato é e, com isso, se firma em seu ser. Assim, o

analisando pode atingir uma condição em que vive os transtornos de sua vida sem se

desmanchar; em que é abalado por eles, sim, mas não derrubado ou destruído. Tem certa

clareza sobre os eixos que são mandantes de sua vida e compreende o destino que dá aos

seus encontros interpessoais.

Este é outro dado importante que ocorre nesta fase final do processo analítico. Ao

exercitar concretamente suas mudanças o analisando passa a ser agente de sua própria

experiência, passa a, comprometidamente, assumir o comando e a direção de sua vida. Isto

não quer dizer que ele se torna o todo poderoso, um sujeito tão substancial que coagulado,

intocável e imutável.

Quer dizer, que sente sua vida como sendo de sua própria conta e risco. Entende

que ser suas próprias possibilidades é tomar sua existência em “suas próprias mãos”. Além

disso, sabe que não pode escapulir da tarefa de ser o fazedor de sua história. Aliás, percebe

que tenha ou não se ocupado com o entendimento disso, isso sempre se deu. Então,

percebe que mesmo não podendo negar a importância do outro em sua vida, sua orientação

fundamental dependeu sempre, também, de como compareceu e partilhou no encontro com

ele. Ao entender que seu envolvimento com o mundo é tal como é em função dos dois, pode

incrementar sua lida com a vida de modo que não se subjugue tão passivamente. As outras

pessoas podem não ter mais o comando como tinham antes. Assim, encontra-se numa

situação de desenvolver autonomia e exercitar a liberdade de ser.

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Nestas duas últimas etapas, a relação analítica torna-se mais leve e prazerosa. O

ver a si e ao mundo com outros olhos e ser capaz de encontros significativos é muito

gratificante ao analisando e ao analista.

Por outro lado, é necessário garantir que esse processo de reencontro com o

mundo, de afirmação diante do outro e de exercício concreto das transformações não pare

de se desenvolver. Para isso, é necessário que o analista tome o devido afastamento do

prazer da relação para que possa avaliar se de fato as transformações estão sendo

exercitadas. Além de avaliar, o analista deve estar atento para as muitas atitudes de

acomodação que o medo e a ansiedade ainda podem trazer ao analisando.

O analista existencial assume, continuamente, a atitude de acompanhar, ratificar e

analisar as concretizações das mudanças, as re-significações, o estabelecimento de novos

modos de vinculações, enfim, a fidelidade ao quanto ao ser si mesmo.

Mas se esse acompanhamento é aproximar-se, o recuo do analista nesta última

etapa é realizar uma retirada estratégica, é, aos poucos, se retirar da vida de seu analisando

tornando sua presença cada vez mais como uma figura que se vai perdendo de vista ao

longe.

Isto é possível e desejável. O analisando inicia na quarta fase e completa na quinta

uma clara percepção de que o analista é um outro que não tem a vida dele em suas mãos.

Entende que ele é, para o analista, um outro com condições de gerir sua própria vida.

Compreende o afeto importante construído entre eles e que apesar de terem sido pessoas

significativas uma para a outra, vão se separar.

Os encontros nessa última fase são mais desprovidos de ansiedade, menos

carregados, mais espontâneos e a vontade. Apesar disso, é valioso que o analista proponha

avaliações, confrontos, questionamentos, que são formas de recuo que incrementam o

fortalecimento da pessoa que o analisando é. Este fortalecimento coloca o analisando na

posição daquele que tem direito de ser segundo seus modos próprios e de tomar a si mesmo

como seu próprio suporte para encaminhar sua vida, suporte que, por fragilidade, medo e

insegurança tinha depositado nas mãos do analista.

Conforme se fortalece o analisando também, aos poucos, bate em retirada, até o

momento que fica o afeto bom de: "estivemos juntos e foi bom e foi duro; foi doloroso,

penoso ao mesmo tempo que gratificante e construtivo..."