estudos sf

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São Francisco de Assis e os estudos, uma questão. Introdução O tema da reflexão diz: “São Francisco de Assis, e os estudos, uma questão”. O tema fala do que vamos tratar. Do que pode significar sobre o que ou a partir do que. Assim o tema nos orienta a falar sobre o que São Francisco de Assis pensava sobre os estudos. E ao mesmo tempo, nos sugere que falemos sobre o que São Francisco pensava dos estudos, a parir da implicância de uma questão. Isto significa que o tema nos coloca de antemão dentro da seguinte situação de busca: No início da ordem, com São Francisco e seus primeiros companheiros, e a seguir na evolução da ordem franciscana, no seu primeiro século, os estudos apareceram como problema. Mas trata-se de um problema que se deve tornar para nós, uma questão: questão dos estudos, hoje 1 . Um problema do passado somente nos atinge e se nos torna histórico se nos convoca hoje a colocarmos em questão o evento que se fossilizou como realidade óbvia de um fato historiográfico. Colocar em questão um problema na sua factualidade significa avivar o palpitar da inquietação de um questionamento fundamental. Pois, um questionamento pulsa sempre na raiz de um problema, o qual como problema já estabelecido não mais investiga nem sonda o móvel da situação, em que se achava colocado, quando se consolidou 1

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Page 1: Estudos SF

São Francisco de Assis e os estudos, uma questão.

Introdução

O tema da reflexão diz: “São Francisco de Assis, e os estudos, uma questão”. O

tema fala do que vamos tratar. Do que pode significar sobre o que ou a partir do que.

Assim o tema nos orienta a falar sobre o que São Francisco de Assis pensava sobre os

estudos. E ao mesmo tempo, nos sugere que falemos sobre o que São Francisco pensava

dos estudos, a parir da implicância de uma questão. Isto significa que o tema nos coloca

de antemão dentro da seguinte situação de busca: No início da ordem, com São

Francisco e seus primeiros companheiros, e a seguir na evolução da ordem franciscana,

no seu primeiro século, os estudos apareceram como problema. Mas trata-se de um

problema que se deve tornar para nós, uma questão: questão dos estudos, hoje 1.

Um problema do passado somente nos atinge e se nos torna histórico se nos

convoca hoje a colocarmos em questão o evento que se fossilizou como realidade óbvia

de um fato historiográfico. Colocar em questão um problema na sua factualidade

significa avivar o palpitar da inquietação de um questionamento fundamental. Pois, um

questionamento pulsa sempre na raiz de um problema, o qual como problema já

estabelecido não mais investiga nem sonda o móvel da situação, em que se achava

colocado, quando se consolidou como fato. A ação de in-vestigar o móvel de fundo,

onde se assenta um fato, se chama questão.

Para colocar em questão o problema dos estudos em São Francisco e transformar

problema do passado em questão hoje, formulemos o nosso problema como o costuma

expor e explicar a maioria dos historiadores, peritos no franciscanismo. Mas antes, para

que essa formulação usual do problema não fique no ar, como que isolada e abstrata no

seu conteúdo, mencionemos, ainda que de modo bem geral e panorâmico, alguns fatos

que constituem as etapas da evolução do problema dos estudos na ordem franciscana e

resumamos o que Gratien de Paris 2 diz da organização dos estudos no início da ordem.

I – O problema dos estudos e sua formulação usual

1. Um apanhado geral historiográfico

1

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O período que abrange a origem e o primeiro século do franciscanismo vai de

1209 até 1318. Esse longo período pode ser considerado em 2 etapas: a primeira vai de

1209 a 1219 e a segunda de 1219 a 1318. Na primeira, trata-se da origem da ordem,

onde os estudos não aparecem ainda como estudos organizados e não se constituem

ainda como problema. Na segunda se dá a evolução da ordem, onde os estudos se

manifestam explicitamente como problema e se consolidam como problema, congelados

numa determinada impostação do problema.

Na primeira etapa, de 1209 a 1219 temos os seguintes fatos: Depois da

conversão de Francisco, os primeiros companheiros se agrupam ao redor de Francisco.

Surge a idéia de uma ordem. Constatamos em Francisco um plano, seus meios de ação e

princípios que segue. As características principais da instituição franciscana se tornam

visíveis e com isso também idéias e ideais de Francisco sobre pregação, estudos e

ciência. Surge a Primeira Regra (1209), hoje perdida; se inicia o processo de formulação

das regras mais elaboradas, que nos deu a Regra não Bulada (1221) e a Regra Bulada, a

definitiva (1223).

Na segunda etapa, de 1219 a 1318 podemos distinguir 3 momentos: primeiro

momento de 1219 a 1257. É tempo da consolidação da ordem, aprovada pelo Papa,

oralmente : a Primeira Regra, a elaboração da Regra Não Bulada, da Regra Bulada, do

Testamento, a morte de São Francisco (1226), e a sucessão dos primeiros ministros

gerais da ordem (João Parente 1227-1232; Frei Elias 1232-1239; Aymon de Faversham

1240-1244; Crescêncio de Jesi 1224-1247; João de Parma 1247-1257). O segundo, de

1257 a 1274. É o tempo do generalato de São Boaventura. O terceiro, de 1274 a 1318. É

o tempo de luta ao redor da questão da pobreza.

Nessa segunda etapa temos os seguintes fatos: a clericalização da ordem; a

introdução dos estudos institucionalizados e a sua organização na ordem; surgimento

das casas de estudos em Bolonha, Paris e Oxford; a atuação dos frades na universidade

de Bolonha, Paris e Oxford; a luta dos mendicantes pelo direito de ensinar nas

cátedras da universidade de Paris; o generalato de São Boaventura, sua postura acerca

dos estudos e ciência; o surgimento e a exacerbação da controvérsia sobre a pobreza.

2. A organização dos estudos

Segundo Gratien de Paris3, há inúmeros indícios que mostram como os estudos

foram introduzidos na ordem, provavelmente já no tempo em que São Francisco ainda

vivia. E rapidamente se espalharam por todas as províncias da ordem, logo depois da

2

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morte de São Francisco. Jordão de Jano nos relata que em 1228 “O ministro geral João

Parente, ao perceber que a província da Alemanha não possuía professor em teologia,

tirou do cargo de provincial a frei Simão e o nomeou professor”. Essa observação nos

faz suspeitar que nas outras províncias também havia o cultivo da ciência sacra. O Papa

Gregório IX na sua bula Quo elongati (1230) dispensa do exame e da aprovação do

ministro geral os frades instruídos na teologia. E Jordão de Jano menciona entre os

objetos dos quais os frades podiam ter uso, de modo especia,l os livros. Os apelos dos

pontífices à caridade pública em favor dos frades se referem sempre à ajuda para

construções e aquisição de livros. Assim, Gratien de Paris deduz que desde 1230 o

estudo da Sagrada Escritura i. é, da teologia estava implantado na Ordem Franciscana

e que o número dos clérigos aumentava de dia para dia. Uma tal afluência de pessoas

sábias e estudadas fomentou no interior da ordem uma corrida ao estudo. E como

observa Gratien de Paris, o estudo era uma necessidade inevitável. Os frades não

podiam cumprir com seus deveres e suas missões pastorais sem ele. É que havia em

toda a parte, em cada esquina, em cada praça pública os heréticos, armados até aos

dentes com argumentos falaciosos, sutis e capciosos. Não havia a possibilidade de evitar

o confronto e a controvérsia. Os irmãos sentiam nitidamente que não os podiam

enfrentar sem possuir um sério e profundo conhecimento das Sagradas Escrituras.

Gregório IX, renovando os cânones dos concílios antigos proibira a pregação aos irmãos

leigos, sejam eles de que ordem forem (1235). Por outro lado, os sacerdotes estavam

mal preparados para sua missão. O Papa sentiu o grande perigo que a Igreja corria

devido à decadência dos estudos eclesiásticos. Na tentativa de levantar o nível espiritual

e intelectual do clero, os papas começaram a recorrer às ordens mendicantes: aos

dominicanos e franciscanos. Os dominicanos, desde o início, já pela natureza de sua

fundação, se dedicavam aos estudos e estavam aptos para o desempenho de pregação e

confronto com herejes. Os papas e alguns bispos, vendo a disposição da nova ordem de

São Francisco para o serviço à Igreja, começaram a incentivá-la aos estudos, e isso tanto

mais, ao verem como uma grande multidão de pessoas instruídas, estudadas e muitos

universitários tomavam o hábito da pobreza franciscana. Assim as vozes amigas de um

Jacques de Vitry, de Roberto Grossetête, chanceler da universidade de Oxford, de

Guilherme d’Auvergne, bispo de Paris, de Eudes de Châteauroux, chanceler da

universidade de Paris, encorajavam os filhos de São Francisco a seguirem o exemplo

dos filhos de São Domingos. Logo começaram a surgir entre os próprios frades, pessoas

que confirmavam no seu ser e nas suas obras a eficácia e a fecundidade da aliança entre

3

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o ideal franciscano e o cultivo dos estudos como p. ex. César de Spira, João de Plan

Carpin na Alemanha, Gregório de Nápolis e Aymon de Faversham em Paris, Santo

Antônio de Pádoa na Lombardia e na França. Bem em breve se estabeleceu entre

dominicanos e franciscanos, no âmbito e no nível das ciências, uma rivalidade fecunda e

amiga, cujo exemplo temos na amizade que unia Santo Tomas de Aquino e São

Boaventura na busca da verdade. Em 1231 os frades já possuiam 3 grandes centros de

estudos: Bolonha, Paris e Oxford.

3. A formulação usual do problema dos estudos.

A exposição desses dados historiográficos, colocados como fatos que constituem

o problema dos estudos, poderia ser bem mais completa em número de fatos e nos seus

detalhes informativos. Uma vez colocados como constituintes do problema de estudos,

há diferenças de interpretações e valorização dos fatos, em diferentes autores

franciscanólogos, conforme as perspectivas de impostações que lançam sobre os dados.

No entanto, no seu todo, na colocação do problema enquanto problema dos estudos na

ordem, há na maioria dos autores, uma e mesma impostação, um e mesmo enfoque.

Essa colocação comum e unânime pode ser formulada mais ou menos da seguinte

maneira:

Os estudos estão intimamente ligados à evolução e ao crescimento da ordem, à

sua clericalização, à intelectualização dos seus membros, devido ao apelo e às

exigências da Igreja, por causa da evangelização. No problema dos estudos assim

colocado, trata-se mais da diferença existente, entre São Francisco e o pequeno grupo

de seus seguidores do início com o seu modo pessoal de compreender e viver o

Seguimento (Evangelho), na experiência radical da pobreza na identificação com o

Cristo Crucificado de um lado; e o modo de ser da ordem, de outro lado, que como

comunidade em crescimento rápido e contínuo, não mais podia viver enquanto

comunidade o radicalismo ideal, ainda possível num grupo bem menor, tendo o apoio

da presença física do fundador. E ao mesmo tempo, na medida do seu crescimento, a

ordem estava dentro da necessidade do desenvolvimento histórico, sob a convocação

feita pela própria Igreja de se dispor e se adaptar às necessidades epocais da Igreja e

do mundo, no que se refere à Evangelização.

4. As idéias de São Francisco sobre pregação, estudos e ciência

4

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O problema dos estudos assim colocado na formulação acima como problema de

transição entre o modo de ser da experiência pessoal e privativa do indivíduo Francisco

e de seus primeiros companheiros e o modo de ser, nascido da necessidade de evolução

e adaptação da coletividade da ordem em franco crescimento, precisa ser des-

estabilizado, para que nela surja a possibilidade de interrogações que nos façam

perceber na sua raiz uma questão. Para que isso se torne viável, vamos expor mais em

detalhes o que São Francisco na origem do franciscanismo pensou a partir e através da

sua experiência pessoal e privativa dos estudos e da ciência.

Certamente, essa descrição atinge apenas um momento ainda bem inicial do

problema na origem do franciscanismo. Seria ideal, se pudéssemos também demorar-

nos na descrição de cada etapa do outro momento do fato, a saber, da evolução e

adaptação da ordem na sucessão do processo da sua clericalização e institucionalização

no primeiro século do franciscanismo. Mas, nessa nossa reflexão nos limitamos apenas

a examinar com mais detalhes as idéias de S. Francisco sobre estudos e ciência. Se por

essa descrição apenas de um momento do fato-problema pudermos desestabilizar de

algum modo a fixação factual esse momento, talvez estejamos possibilitando também a

mobilização de todo o resto, a ponto de podermos começar a colocar interrogações que

acordem o interesse da questão para o primeiro século do franciscanismo. Para essa

descrição mais detalhada, reproduzimos num resumo o parágrafo 3 do Capítulo III da

obra já citada de Gratien de Paris, onde se fala de Idéias de São Francisco sobre

pregação, estudos e ciência4.

a) Pregação:

São Francisco tinha grande estima pelas Sagradas Escrituras e sua pregação (2

Cel 103, 104, 105). Segundo Celano, Francisco dizia que: “os pregadores eram dignos

de respeito e veneração por serem arautos das ordens que recebem da boca de um

grande rei, para anunciá-las ao povo” (2 Cel 163). Depois da aprovação da ordem pelo

Papa Inocêncio III, a pregação era um ofício reservado a religiosos especialmente

designados para isso. No cumprimento do ministério da pregação Francisco pedia com

insistência que os irmãos guardassem com muito cuidado e fidelidade os seguintes dois

pontos: o primeiro, que em nenhum caso o apostolado da palavra diminuísse ou

substituísse o apostolado do exemplo; e que jamais ferisse as duas grandes principais

diretrizes da ação franciscana, a saber, submissão à Igreja de Roma e fidelidade à vida

de oração (RNB 17). A pregação não menos do que o trabalho corporal e o cuidado dos

leprosos, não é um fim em si, nem tem importância em e por si, mas é caminho que

5

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conduz os irmãos a dar antes de tudo o exemplo cristão. A ordem que Francisco quer

instituir é antes mais uma ordem de imitadores de Cristo do que uma ordem de

pregadores. Por isso Francisco insiste que o pregador franciscano medite

profundamente o que deve ensinar aos outros e que para isso esteja livre de todo outro

encargo para poder doar-se inteiramente aos estudos espirituais (2 Cel 163); e coloca o

apostolado do exemplo no centro de toda a ação; e quer que o irmão menor, de tempo

em tempo, se engaje no humilde trabalho corporal e no serviço dos doentes e leprosos e

na mendicância (2 Cel 74ss.; LP 71). O segundo ponto a ser observado no ministério da

pregação pelos irmãos é de que jamais se abandone o gênero simples e popular da

pregação penitencial. Segundo Gratien de Paris, se nos ativermos com precisão à

intenção de Francisco, não deveria propriamente haver na ordem dois tipos de pregação,

digamos um, comum a todos os religiosos, p. ex. exortação piedosa; e um outro, o da

pregação eclesiástica propriamente dita, reservado para os clérigos. Mesmo os mais

eruditos e sábios deveriam a modo dos irmãos não-clérigos se ater ao ‘terreno moral5.

Essa atitude de São Francisco em referência à pregação nos faz entrever o que ele

pensava a respeito dos estudos e da ciência.

b) Estima de São Francisco pela ciência:

Francisco se qualifica e se denomina como simplex et idiota. Simples e idiota

soa hoje como simplório e ignorante, diríamos gente ingênua, sem maneiras, sem

formação nem instrução. E logo associamos a tudo isso a conotação de grosseiro,

inculto, estulto, selvagem. São Francisco parece colaborar para esse modo de o

interpretar, quando se chama de vil. Vil é quem mora na vila, i. é, no sítio; nós diríamos

caipira, caboclo. Francisco, porém, é tudo menos grosseiro, vilão e selvagem. Ele é de

fino tato e trato, na sensibilidade fora do comum, de uma percepção e penetração

extraordinária, altamente inteligente, com força de criatividade fora de série. E não era

nem ignorante, nem analfabeto. Sabia ler e escrever. Não possuía uma formação

acadêmica, não freqüentou cursos teológicos. Mas segundo Gratien de Paris, no que

toca às ‘coisas’ de Deus, recebera pela leitura atenta e pela meditação das Sagradas

Escrituras aquela sabedoria que ‘vem do alto’6. Numa alma tão nobre e inteligente não

há lugar para o desprezo e medo que vem do ressentimento e complexo diante da

ciência e da superioridade do saber verdadeiro. Assim, tratava com grande respeito,

natural e tranqüilamente as produções do espírito humano, as quais acolhia com

veneração, veneração esta que mais tarde viriam demonstrar os humanistas cristãos para

com os escritos pagãos (1 Cel 81, 82, 83). No entanto, Francisco considerava os estudos

6

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e a ciência sob dois aspectos distintos: Primeiro, em referência a sua função dentro da

Igreja; segundo, em referência a sua função dentro da ordem. Em referência a função da

ciência dentro da Igreja, Francisco reconhecia que é de necessidade vital. E possuía uma

estima muito grande para com os que possuíam conhecimento da Ciência Sagrada.

Assim, diz ele no Testamento: “Devemos honrar e venerar todos os teólogos e todos

aqueles que nos explicam a Palavra de Deus, porque eles nos dão o espírito e vida”

(cfr. LP 70). Mas em referência à função da ciência na sua ordem, Francisco não coloca

a ciência como um dos meios de sua ação. E aqui, percebemos uma impostação bem

diferente à de São Domingos que considerava a ciência como elemento constitutivo

essencial da ação da sua ordem.

c) São Francisco não considera a ciência como elemento constitutivo essencial

da ação da sua ordem:

Francisco, por um momento de sua vida, teve a idéia de colocar a ciência como

um dos elementos constitutivos da ação franciscana. Quando um noviço lhe pediu a

licença de ter um saltério disse: “Eu, também como tu, já fui tentado a ter livros, mas eu

abri o evangelho para conhecer a vontade de Deus, e então ali eu li: A Vós foi dado

conhecer o reino dos céus; a outros, só o conhecem em parábolas” (LP 71, 72 73). E

acrescentou: “São tantos os que querem subir os degraus da ciência, que bem-

aventurado será quem a ela renuncia por amor do Senhor Deus”(LP 72). Essa renúncia,

a que tipo de estudos e de ciência se refere? Certamente, não se refere a estudos e

conhecimento de edificação pessoal, mas sim a um trabalho verdadeiramente científico

1Notas

? Geralmente os termos questão e problema são usados como sinônimos ou quase sinônimos ambiguamente. Na nossa reflexão distinguimos problema, da questão. Problema é o que suscita dificuldades, dúvidas e perguntas a partir e dentro de uma posição já estabelecida. Questão se refere à busca do sentido disso, a partir e dentro do qual se acha a posição estabelecida. O problema dos estudos em São Francisco foi e é um problema implicante que deve se tornar uma questão para nós, por sermos franciscanos. A ambigüidade do fundador da Ordem franciscana a respeito dos estudos sempre nos incomodou e nos incomoda, cada vez de novo sempre mais, pois parece incidir decididamente na compreensão do que seja propriamente o carisma franciscano da pobreza. Assim sendo, a presente reflexão pode não dizer nada, ou até parecer estranho, a quem não está preocupado com a inserção na espiritualidade franciscana.2 Gratien de Paris, Histoire de la Fondation et de l’évolution de l’ordre des frères mineurs aux XIIIe siècle. Bibliographie mise à jour par Mariano D’Alati et Servus Gieben. Roma 1982. Instituto Storico dei Cappuccini, Capítulo IV, 3, pg. 125-135.3 Gratien de Paris, op. cit. pg. 125-1354 Gratien de Paris, pgs 81-90.5 RNB 16; RB nos mostra bem o que foi dito. Nem todos respeitam essa intenção de Francisco; daí é interessante observar bem o que RNB 17 diz a respeito da vã gloria; cfr 2 Cel 164; LP 71.6 Gratien de Paris, pg. 83; cfr. E. Gilson, La Philosophie de saint Bonaventure, 194, pg. 47. Diz 2 Celano 102-104 “Embora pouco familiarizado com a terminologia da Escolástica, a penetração e a superioridade da sua inteligência se revelava na justeza de suas soluções”.

7

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e que tenta alcançar ciência por ciência7. O estudo, i. é, o empenho8 que Francisco e

seus primeiros companheiros cultivavam com intenso engajamento é o de poder

progredir sempre mais no espírito de conversão e na santidade (1 Cel 34-41; 2 Cel 195).

A Francisco e seus primeiros companheiros, nesse tipo de estudo, de empenho e

engajamento, não ocorre sequer pensar na possibilidade e na utilidade de sentar-se nos

bancos da escola e da universidade. Por outro lado, Francisco compõe o Cântico do sol,

envia irmãos a pregar, cantando. Francisco e seus irmãos se consideram jongleurs de

Deus, entoam o louvor de Deus, pregam e cantam e por salário desse seu trabalho

somente pedem que os ouvintes se convertam e se tornem bons cristãos. Francisco usa

poesia e música para levar as almas ao Senhor. Assim para Francisco a arte entra, até

certo ponto, na existência franciscana como elemento válido e recomendado da sua ação

(2 Cel 126, 213; LP 24, 43, 44). Não há, porém, no programa da formação, na origem

do franciscanismo, lugar para o cultivo científico, expressamente recomendado como no

caso do trabalho manual e cuidado dos leprosos9. Portanto, Francisco, segundo Gratien

de Paris, não somente não quis promover ciência na sua ordem, mas nada absolutamente

fez para remover obstáculos que o gênero de vida, imposta por ele a seus discípulos,

criava contra o cultivo da ciência (RNB 3, 7; 2 Cel 21, 22, 62, 129, 194, 195; LP 66-74,

96, 97). Enquanto São Domingos quer estabelecer seus irmãos nas cidades

universitárias, Francisco se revolta contra a construção duma casa de frades estudantes

em Bolonha (2 Cel 58). Portanto, conclui Gratien, é um fato que Francisco não foi

promotor do movimento científico dentro da sua família religiosa.

Mas como compreender uma tal atitude num homem de uma inteligência tão

vasta e dum espírito tão elevado? Pois a ciência teológica é por excelência uma arma do

apostolado, um meio eficaz e utilíssimo para salvar almas, destruindo as armadilhas dos

argumentos capciosos das exposições das ideologias heréticas. Aqui, não bastava ser

apenas piedoso, humilde e simples para vencer os adversários da Fé; pois p. ex. os

sacerdotes cátaros eram muito mais preparados e sabidos do que o clero católico. É pois

7 A ciência como nós hoje a concebemos não havia na Idade Média. Por isso na nossa reflexão precisaríamos discutir sobre a diferença entre a compreensão da ciência hoje e da scientia, doctrina, sapientia na Idade Média. Deixamos porém de faze-lo, pois isto nos levaria a um excurso muito longo. Aquí apenas observemos que ciência medieval, no sentido da reflexão como é usado por Gratien, se refere antes de tudo a filosofia e teologia como eram ensinadas nas universidades da época e também a medicina e direito. Não se tratava, pois de ciências (ciências naturais e ciências humanas) cujo modo de ser nos domina hoje e transforma tudo tecnologicamente.8 Studium é palavra latina para empenho. 9 RNB 7, 8; RB 10; Testamento. Certamente nenhuma regra monástica anteriores a época de São Francisco e de São Domingos fazia do trabalho intelectual um dever para os religiosos. Mas na sua intenção encorajava os estudos da ciência.

8

Page 9: Estudos SF

necessário unir a ciência à virtude. Assim pensava São Domingos, o fundador dos

dominicanos; assim pensavam também os intelectuais que começavam a povoar a

ordem de São Francisco em grande número. Eles deduziam a necessidade dos estudos

da tarefa do compromisso e da responsabilidade de se prepararem adequadamente para a

pregação. Por mais lógico que seja esse raciocínio dos discípulos sábios e letrados de

Francisco, este surpreendentemente pensava de modo inteiramente diferente. É, pois

importante marcar bem essa diferença. A missão que Francisco escolheu para si e para

seus primeiros companheiros não requeria uma erudição para além do que serviria a

seus fins práticos imediatos. Francisco não pretendia responder, ele sozinho, a todas as

necessidades do coração e do espírito do homem, nem possuía, ele sozinho, os remédios

da ciência para a glória de Deus. Que outros se sirvam dos estudos, erudição e ciência

para glorificar a Deus; que outros reproduzam os traços de Cristo, Doutor e Mestre de

toda a verdade! O que, porém, Francisco, ele mesmo queria é imitar o Cristo humilde,

pobre, amando e sofrendo. O seu apostolado e o da sua ordem, sua vocação, não é a de,

com a ajuda de polêmicas sábias, defender a Fé da Igreja contra seus inimigos de fora,

mas sim, de renovar no seio da Igreja a vida conforme ao Evangelho e isto, pela força

do exemplo e da pregação da penitência. Os doutores, com a ajuda da Ciência, da

dialética e da controvérsia, demonstram a verdade do Evangelho. Francisco por sua vez,

mostra a beleza oculta, a intimidade da ternura do mistério evangélico. Para essa busca

intensa e total de encontro corpo a corpo, ‘full contact’ com Cristo pobre, humilde,

estudos científicos lhe pareciam inúteis e perigosos para o espírito de vida interior, de

simplicidade, humildade e pobreza, que são os fundamentos da sua ordem (2 Cel 195;

LP 70). Os estudos e a ciência exigem a posse de ricas bibliotecas, moradia estável,

conforto e ambiente protegido. A ciência orna a fronte de quem a possui de uma aura de

glória, e atrai honras (2 Cel 194). Além disso, Francisco desconfiava principalmente do

saber livresco. Dizia: “A ciência torna muitas pessoas indóceis, não deixando que

alguma coisa de rígido nelas se dobre aos ensinamentos humildes ”(2 Cel 194, 195). A

rejeição de Francisco contra o saber livresco vinha do receio de que o saber livresco crie

um intelectual inepto à ação e vazio de boas obras (2 Cel 195).

d) A Ciência e a ação apostólica franciscana:

Mas então, por que Francisco aceitou na sua ordem os intelectuais, sábios e

letrados? A isto responde com uma parábola relatada por 2 Cel 191:

Vamos supor que todos os religiosos da Igreja se reuniram em um só capítulo geral! Estando presentes letrados e analfabetos, sábios e os que sabem agradar a Deus mesmo sem sabedoria, encomendaram um sermão a um dos sábios e a um dos simples. O sábio, por ser sábio, calculou

9

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consigo mesmo: ‘isto aqui não é lugar de demonstrar conhecimentos, porque estão presentes homens perfeitos na ciência e não convém que eu me faça notar pela afetação, dizendo coisas sutis diante das pessoas mais sutis. Talvez seja mais proveitoso falar com simplicidade’. Amanheceu o dia combinado, reuniram-se as congregações dos santos, sequiosas de ouvir o sermão. O sábio se apresentou vestido de saco, com a cabeça coberta de cinza e, diante da admiração de todos, pregando mais com o exemplo, foi breve nas palavras. Disse: ‘Prometemos grandes coisas, maiores são as que nos foram prometidas. Observemos as primeiras e, suspiremos pelas segundas. O prazer é breve, o castigo, perpétuo, o sofrimento é pequeno, a glória não tem fim. Muitos são os chamados, poucos os escolhidos, todos têm a sua retribuição’. Os ouvintes romperam em lágrimas com o coração compungido, e veneraram aquele verdadeiro sábio como um santo.

‘Vejam só’, disse o simples em seu coração. ‘O sábio me tirou tudo que eu ia fazer e dizer. Mas já sei o que faço. Conheço alguns versículos de salmos: vou agir como sábio, já que ele agiu como um simples’.

Chegou a sessão do dia seguinte. O simples se levantou, propôs um Salmo como tema. Inspirado pelo Espírito Santo, falou com tanto fervor, com tanta sutileza, com tanta doçura, por um dom que só podia vir de Deus, que todos ficaram muito admirados e disseram: ‘Deus fala com os simples”.

E 2 Cel 192 continua: Depois o homem de Deus explicou assim a parábola que tinha

contado:

“Nossa ordem é uma assembléia muito grande, um verdadeiro capítulo geral, que se reuniu de todas as partes do mundo para viver de uma maneira comum. Nela os sábios aproveitam o que é dos simples, vendo que os ignorantes buscam as coisas do céu com inflamado vigor e que os não instruídos pelos homens aprenderam com o Espírito as coisas espirituais. Nela também os simples aproveitam o que é dos sábios, porque vêem que nela convivem com eles homens preclaros, que poderiam gozar de grande conceito no mundo. É isso que faz brilhar a beleza desta bem-aventurada família, cuja variedade tanto agrada ao pai de família”.

O que nos quer dizer essa parábola a respeito da concepção de Francisco sobre o

relacionamento da Ciência e da ação apostólica franciscana?

Diz Gratien de Paris: “São Francisco tentava assim fazer compreender que os

novos membros da ordem deviam se formar, seguindo a própria natureza e missão

dessa ordem, e não, transformá-la10. Assim, os sábios e os letrados não deviam ter um

outro método e uma outra meta do que os simples e os ignorantes (2 Cel 192). Ao sábio

que se apresentava para receber o hábito da pobreza, ele convocava a renunciar, não

somente aos bens materiais, mas também, de uma certa maneira, à ciência, para que

desapegado de tudo, se oferecesse nu aos braços do Crucificado e chorar seus pecados

na solidão e no silêncio. Uma vez assim preparado, o irmão menor podia ser

considerado apto para a pregação. E ele então “sairá qual leão solto, com força para

todos os trabalhos do apostolado, ‘leo excatenatus ad omnia robustus exire’” ( 2 Cel

194). Ao receber sábios e letrados na sua ordem, São Francisco não fazia apelo à ciência

deles, nem contava com ela para converter almas, mas sim, apelava a e contava

unicamente com exemplo de humildade, simplicidade e pobreza. Em aceitando os

10 Gratien de Paris, pgs 91

10

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homens de estudos e de ciência na sua fraternidade humilde e pobre, Francisco pôde

consagrar e engajar as mais belas e profundas inteligências à educação da gente pobre,

devotou grandes clérigos, estudados e sábios ao apostolado dos humildes, pobres e

marginalizados. Um mestre na teologia, um doutor, diplomado na universidade de Paris,

Oxford e Bolonha, explicando com amor e diligente cuidado o catecismo aos

camponeses, às empregadas, aos velhos e às crianças…eis a imagem que Francisco

fazia do sábio franciscano! E é por isso que devemos escutar a recomendação escrita por

ele na RNB, como valendo para todos os irmãos, sejam iletrados ou letrados e sábios:

“E devem alegrar-se quando se encontram entre pessoas vis e desprezadas, pobres e

débeis, enfermos, leprosos e mendigos da rua”(Cap. 9).

Portanto, se, em nos apoiando nas palavras de São Francisco, e sem nos

deixarmos influenciar pela importância que os estudos recebem mais tarde na ordem

franciscana, perguntarmos qual foi o verdadeiro pensamento de Francisco a respeito dos

estudos e da ciência, percebemos que para compreendê-lo com precisão, não basta

dizer: Francisco não rejeitou os estudos e a ciência, mas apenas rejeitou seus abusos, i.

é, a curiosidade, a vã erudição, o orgulho de superioridade, a vaidade. Essa desconfiança

e atitude crítica contra os abusos e modos deficientes provenientes dos estudos e da vida

científica eram um lugar comum da eloqüência eclesiástica do século XIII. Segundo

Gratien de Paris, Francisco vai além desse lugar comum. Pois, deliberadamente recusa

assumir a ciência como um dos meios da ação franciscana, por causa do perigo que ela

fazia correr ao seu ideal, à estrutura do seu instituto, ao seu sistema de apostolado,

alicerçado mais e essencialmente sobre a força do exemplo do que sobre o poder do

ensinamento verbal. Nem o apostolado da palavra nem o apostolado da Ciência deviam

nem podiam substituir o apostolado do exemplo (2 Cel 185, 193; RB 7).

e) Sob que condição Francisco permitia os estudos científicos?

No entanto, recusando em se fazer promotor da ciência dentro da sua ordem, São

Francisco não a quis banir. Cedendo a inúmeras solicitações dos clérigos, ele até

consentiu que ela fosse cultivada, mas sob certas condições bem precisas, destinadas a

imunizar os frades contra perigos demasiadamente reais, existentes nos estudos (cfr. LM

XI, 1)11. Assim:

Em princípio, cada um dos seus seguidores deveria permanecer no seu estado e

na sua profissão (RNB 7).

Interditou os estudos aos irmãos não-clérigos (2 Cel 195).

11

Page 12: Estudos SF

Portanto, os estudos foram permitidos a aquele a quem já eram de direito pela

profissão, e isto conforme a orientações então em vigor na Igreja, a saber,

estudos da Ciência Sagrada exclusivamente. Outros tipos de pesquisa

dificilmente se conciliavam, segundo Francisco, na interpretação de Gratien,

com a vocação do frade menor. É o que se mostra nos elogios à simplicidade que

Francisco faz diante dos seus irmãos (2 Cel 189). Tudo isso insinua dentro de

que espírito, feitio e forma, os filhos de São Francisco deveriam e poderiam se

doar aos estudos, a saber: no espírito de profunda humildade.

Francisco ensina a procurar nos livros o testemunho de Deus, e não, o valor

verbal; a piedade, e não a beleza estética (2 Cel 62). Dizia, pois: a maneira, a

mais frutuosa de ler e de aprender não é a de percorrer mil tratados, mas de ler

pouco e de meditar muito, de ruminar com devoção (2 Cel 102).

Adquirida na meditação e na contemplação, a Ciência que sabe a São Francisco

se perfaz na ação e deve tender a ação (Adm 7), conforme o seu axioma: “Um

homem tanto possui da Ciência, quanto aquilo que realiza nas suas obras; e um

religioso tanto possui da oração, quanto aquilo que na vida põe em prática”(LP

74).

O verdadeiro frade menor não deve se dedicar aos estudos em vista

principalmente da pregação, para buscar nos Livros Sagrados temas de

especulações teoréticos, de belos materiais para discurso, para argumentos

potentes, portanto não aprender somente a falar, mas em vista da sua própria

santificação, i. é, aprender a agir, a melhor amar, a melhor viver.

Essas colocações de Francisco não são apenas eloqüências; elas saem das suas

entranhas, da sua própria experiência, de toda a sua vida.

E conclui Gratien de Paris: “A lealdade e a atividade que figuram entre os traços, os

mais característicos da espiritualidade de São Francisco, lhe ditam esta atitude em vista

da ciência”12.

11 LM = Legenda maior de São Boaventura: Alguns irmãos, um dia lhe pediram, para aqueles que haviam estudado, a permissão de se dedicar aos estudos da Sagrada Escritura. Respondeu: “Permito, contanto que não se esqueçam de se dedicar também à oração, como Cristo, que, como se lê, mais rezou do que estudou, e contanto, que não estudem unicamente para saber como falar, mas para pôr em prática primeiro aquilo que tiverem aprendido e, depois de terem posto em prática, para ensinar aos outros aquilo que eles devem fazer. Quero que meus irmãos sejam discípulos do Evangelho e que seus progressos no conhecimento da verdade sejam tais, que eles cresçam ao mesmo tempo na pureza da simplicidade. Dessa forma não hão de separar aquilo que o Mestre uniu com sua bendita palavra: a simplicidade da pomba e a prudência da serpente”.12 Gratien de Paris, pgs 95.

12

Page 13: Estudos SF

O que dissemos até agora é o que geralmente se costuma dizer mutatis mutandis

sobre o problema estudos em São Francisco no início da ordem.

II – A questão dos Estudos e sua interrogação

1. A necessidade de desestabilizar a factualidade e despertar a realidade

existencial.

A descrição do que São Francisco pensava dos estudos na origem do

franciscanismo é um problema. Como dissemos na nota nr. 1 da Introdução, problema é

o que suscita dificuldades, dúvidas e perguntas a partir e dentro de uma posição lançada

como estabelecida. Examinemos em que sentido esse fato dado como sendo

“experiência pessoal e privativa do indivíduo Francisco e seus companheiros” é algo

estabelecido. Acima grifamos a expressão como sendo. Por que dissemos, grifando o

como sendo? O que significa precisamente como sendo? O como sendo diz ao mesmo

tempo sendo como. Mas, quando destaca o como do sendo do fato simplesmente dado,

esse como já está predeterminado, já está posto, sim localizado num sentido do ser que

se oculta como lugar comum ou pré-jazida, na qual, a partir da qual, para a qual e ao

longo da qual o fato, os fatos, os momentos do fato repousam e recebem sua localização

e consistência. Os fatos são, por assim dizer, entificações consolidadas desse prévio

sentido do ser, algo como solidificações atomizadas desse sentido do ser. O que

usualmente captamos, como quê simplesmente dado à nossa frente enquanto esta coisa,

aquela coisa, enquanto isto e aquilo, são como blocos de formas terminais dessa

entificação. Assim temos diante de nós Francisco como este indivíduo, os seus

companheiros como esta entidade, mais outra, mais outra etc. E a cada uma dessas

coisas ou entidades, seja a cada uma, seja ao conjunto delas como a um bloco,

atribuímos então atos de diferentes tipos que costumamos classificar como vivências,

pensamentos, sentimentos, volições, ações etc. Temos assim, deste modo, o fato

denominado ‘experiência pessoal e privativa’ do indivíduo Francisco e de seus

primeiros companheiros. O mesmo processo se dá, quando então, ao estabelecermos

essa experiência pessoal de Francisco como fato e também os atos dos franciscanos

posteriores como outro fato, opomos o fato experiência pessoal do indivíduo Francisco

ao fato coletividade da Ordem na sua evolução e necessidade de adaptação. E sobre essa

plataforma estabelecida de posição de fatos é que tentamos explicar o problema, sem

des-estabilizar, sem lhe tirar essa fixidez da sua factualidade, i. é, o modo de ser do fato,

13

Page 14: Estudos SF

no qual estão os fatos incrustados como se fossem coisas em si, ali dadas simples e

obviamente.

A seguir, vamos ilustrar essa situação, tomando dois textos de Celano como

pretexto para ampliar a reflexão sobre a diferença de colocação, quando miramos a

vivência pessoal de Francisco como fato e quando tentamos de alguma forma intuir13, i.

é, ir para dentro do fundo dinâmico do movimento, da origem e estruturação da vida,

denominada experiência pessoal de Francisco.

1.1 – Ilustração-exemplo 1.

O primeiro texto é 2 Cel 102, citado por Gratien para nos mostrar que Francisco

ensinava a procurar nos livros o testemunho de Deus, e não, o valor verbal; a piedade, e

não a beleza estética. Francisco, pois, a maneira, a mais frutuosa de ler e de aprender

não é a de percorrer mil tratados, mas de ler pouco e de meditar muito, de ruminar com

devoção. Diz Celano:

“Embora não tenha tido nenhum estudo, o santo aprendeu a sabedoria do alto, que vem de Deus, e iluminado pelos fulgores da luz eterna, não era pouco o que entendia das Sagradas Escrituras. Sua inteligência purificada penetrava os segredos dos mistérios, e, onde ficava fora a ciência dos mestres, entrava seu afeto cheio de amor. Lia, às vezes, os livro sagrados, e o que punha uma vez na cabeça ficava indelevelmente gravado em seu coração. Usava a memória no lugar dos livros, porque não perdia o que ouvia uma vez só, pois ficava refletindo com amor em contínua devoção. Dizia que esse modo de aprender e de ler era muito vantajoso, sem ter que folhear milhares de tratados. Era um verdadeiro filósofo, porque não preferia coisa nenhuma mais que a vida eterna. Afirmava que passaria facilmente do conhecimento de si mesmo pra o conhecimento de Deus aquele que estudasse as Escrituras com humildade e sem presunção. Era freqüente resolver oralmente as dúvidas de algumas questões porque, embora não fosse culto nas palavras, destacava-se vantajosamente na inteligência e na virtude”

Esse relato de Celano se refere a uma experiência pessoal sui generis de

Francisco. O relato, porém, ao falar da experiência pessoal, o faz a modo de uma

constatação de fatos e ocorrências. Relata, pois, não a partir de experiência pessoal de

Francisco, mas sim sobre ela como fato constituído de inúmeros fatos, todos eles já

pressupostos. Temos assim o fato este indivíduo sujeito, chamado Francisco de Assis;

sua inteligência; o seu afeto, cheio de amor; sua cabeça privilegiada; sua memória.

Temos as ocorrências da ação desse indivíduo sujeito Francisco: aprendia sabedoria do

alto; era iluminado pelos fulgores da luz divina; penetrava os segredos dos mistérios;

lia livros sagrados; não perdia o que ouvia uma vez etc. Os atos desse indivíduo sujeito

Francisco se dirigem sobre fatos reais ou tidos como tais, a saber, p. ex., estudos;

sabedoria do alto; Deus; iluminação dos fulgores da luz eterna; Sagradas Escrituras;

segredos dos mistérios; livros; milhares de tratados; vida eterna; conhecimento de si

mesmo; conhecimento de Deus; inteligência; memória; amor; virtude; humildade etc. 13Intu = intus (para dentro); emos = eamus (de ire = vamos).

14

Page 15: Estudos SF

Todos esses fatos que, por sua vez, são como que um todo tecido por outros pequenos

fatos expressam no seu conjunto a constatação do fato real ou supostamente ocorrente

de que esse indivíduo sujeito, chamado Francisco não tinha estudos, mas aprendeu a

sabedoria do alto; e que a sua inteligência estava iluminada e plena da luz e do vigor da

sabedoria divina; que mais do que do saber intelectual humano dos estudos recebia o

seu conhecimento do sabor da afeição do seu coração, cheio de amor, da sua busca

preferencial da vida eterna, na virtude da humildade etc. Cada fato e cada conjunto de

fatos, em pluriformes concatenações no percurso da narração de Celano - (na sua

totalidade e dentro dessa totalidade, cada fato por sua vez também como totalidades na

sua conjuntura, correspondente a cada momento da narração), - são como que objeto(s)

da própria ação narrativa do relator Celano que, por sua vez, ao narrar os fatos, ali está

também como fato, cercado por inúmeros diferentes fatos, relatados ou por próprio

relator ou por outros relatores que nos informam sobre Celano.

Nessa complexa rede, tecida de fatos, onde os fatos são como que nós, i. é,

pontos de convergências de concatenações do todo, os fatos não estão ali como

entidades, cujo sentido do ser seja unívoco e homogêneo, mas operam como

entroncamentos de diferentes linhas do sentido do ser. Assim, cada fato conforme a

conjuntura em que se acha, pode aparecer como componente de um todo, cuja

referência é p. ex. historiografia, psicologia, sociologia, antropologia cultural etc,

conforme o horizonte e enfoque sob cuja mira o relator considera o fato. Desse modo

cada vez ao redor de cada fato, abre-se uma bem determinada paisagem própria que se

constitui como conjunto de fato impregnado por um determinado sentido do ser, o qual

cada vez deveria ser sondado e tematizado para se perceber em que sentido o fato deve

ser entendido. P. ex. no relato de Celano a constatação de que Francisco, apesar de não

ter nenhum estudo, aprendeu a sabedoria do alto etc., se estou concentrado em averiguar

se tudo isso é de fato real ou apenas uma atribuição devota subjetiva de veneração de

um admirador fiel do Francisco, o fato se apresenta apenas no seu modo de ser formal

abstrato. Aqui o fato não libera de si o conteúdo interno e assim é compreendido

meramente como dado ‘objetivo’ da ocorrência físico-real material. Numa tal

perspectiva do horizonte de averiguação factual é que surge então a dúvida se essa

sabedoria do alto que vem de Deus, os fulgores da luz eterna etc. de fato são reais ou

apenas projeções subjetivas, provenientes do enfoque de uma crença religiosa.

Se agora consideramos como fatos a inteligência, a memória de Francisco, suas

virtudes, o que ali entendemos por inteligência, memória, virtudes etc. por estarem já na

15

Page 16: Estudos SF

formalização generalizante da perspectiva do horizonte de enfoque do saber

psicológico, do antropológico etc., apenas nos revelam que são faculdades de alma, uma

vez como capacidade de compreensão intelectual, outra vez como depósito mental dos

dados adquiridos, ou hábito ético adquirido pela contínua repetição de exercícios.

Dentro desse enfoque factual, por mais que detalhemos os dados, por mais que

acrescentemos fatos sobre fatos, o todo do relato – e cada fato ali ocorrente- é como que

recoberto por uma camada de solidificação ‘coisificante’, a ponto de não deixar

transparecer a dinâmica de pulsões estruturantes que fazem eclodir de dentro

pluriformes níveis de dimensões que surgem, crescem e se consumam cada vez de novo

como totalidades que não são outra coisa do que gênesis das possibilidades da abertura

livre de novos mundos. Desestabilizar a solidificação factual da projeção objetivante e

deixar aparecer a ‘vida interior’ dos fatos é o que designamos por desestabilizar e

deslocar o(s) fato(s) para dentro de experiência pessoal, no nosso caso de Francisco de

Assis. Esse desestabilização não consiste apenas em examinar as vivências subjetivas

‘pessoais’ de Francisco, mas sim muito mais de considerar o que usualmente chamamos

de experiência pessoal de Francisco como, digamos, um buraco de fechadura de um

quarto trancado, através do qual começamos a vislumbrar uma paisagem aberta de todo

um mundo novo, até agora não percebida. No entanto, tão logo começamos a detalhar o

fato ‘experiência pessoal e particular do indivíduo Francisco’, determinado como ‘idéias

de São Francisco sobre estudos e ciência’, a opacidade e a fixidez começam a diminuir e

aparecem detalhes de conteúdos, relacionamentos, implicações e explicações que nos

começam a esboçar toda uma região ou paisagem de significações e valores que

constituem todo um mundo próprio chamado experiência pessoal de Francisco. Assim,

o que antes ali estava dado simplesmente como fato, se abre, a partir de dentro na sua

implicação, como explicação de um todo, mais profundo, oculto para dentro de uma

pré-jazida viva, digamos, pré-factual. Se agora, tomarmos as indicações dos textos,

donde Gratien de Paris tirou as descrições dos fatos, as quais resumimos a cima; e

formos ler, nós mesmos, esses textos, cuja fonte assinalamos entre parentes ou nas notas

do roda-pé, então o fato, há pouco explicitado como todo um mundo de significações e

valores chamado experiência pessoal e privativa de Francisco, continua a se explicitar e

a se intensificar, a se estruturar, se adensando, se diferenciando cada vez mais como

mundo, e se revela e se oculta ao mesmo tempo como imensidão, profundidade e

originariedade de uma totalidade viva e dinâmica do mundo, no qual, para o qual, a

partir e através do qual pulsa a realidade todo própria, chamada usual e banalmente de

16

Page 17: Estudos SF

Vida de São Francisco. A fixidez da locação dos entes-fatos se liquefaz e começam a

eclodir regiões e regiões da paisagem dos entes que povoam e constituem o mundo

exterior e o mundo interior, onde Francisco e seus primeiros companheiros estão

inseridos até ao pescoço. Mas este Francisco não é mais aquele Francisco-indivíduo, ali

dado simplesmente como fato, qual substância-bloco no meio de outros fatos, mas sim

como que a vivência, a explicitação viva e concrescida de todos os fatos que lhe cercam

por fora e por dentro, os quais ele assume, dos quais se responsabiliza a partir de um

fundo, o mais profundo da intimidade dele, na qual e para a qual ele se per-faz e a partir

da qual se constitui como experiência corpo a corpo do e no toque de uma inspiração

que abre toda uma nova realidade, todo própria e única denominada Seguimento de

Jesus Cristo, Crucificado. Essa ‘realidade’ inspiradora não é no entanto algo já existente

em si, a modo de entes e fatos simplesmente dados, nem é fato entre outros fatos que

estão dentro e fora do sujeito Francisco, mas sim o que impregna todo o ser de

Francisco como o sentido do seu pensar, agir e sentir, de todos os seus anelos e

desejos, de todos os seus afazeres, de todas as paisagens que constituem a sua vida.

1.2 – Ilustração-exemplo 2:

O segundo texto diz respeito ao relacionamento pessoal, íntimo de Francisco

para com Jesus Cristo Crucificado, que, por assim dizer, seria o protótipo da experiência

pessoal de Francisco. Diz 1 Cel 115:

Os frades que conviveram com ele sabem, (...) que estava todos os dias e continuamente falando sobre Jesus, e como sua conversação era doce, suave, bondosa e cheia de amor. Sua boca falava da abundância do coração, e a fonte de amor iluminado que enchia todo o seu interior extravasava. Possuía Jesus de muitos modos: levava sempre Jesus no coração, Jesus na boca, Jesus nos ouvidos, Jesus nos olhos, Jesus nas mãos, Jesus em todos os outros membros. Quantas vezes, ao sentar-se para almoçar, ouvindo ou falando ou pensando em Jesus, esquecia-se do alimento corporal e, como lemos a respeito de um santo: “Vendo, não via; ouvindo, não ouvia”. Também foram muitas as vezes em que estava viajando e, pensando em Jesus ou cantando para ele, esquecia-se do caminho e convidava todos os elementos para louvarem a Jesus. E porque conservava sempre com amor admirável em seu coração Jesus crucificado, foi marcado por seu sinal com uma glória superior à de dos os outros. Contemplava-o, em êxtase, sentado numa glória indizível e incompreensível, à direita do Pão, com o qual, ele mesmo, Filho do Altíssimo, e igualmente altíssimo, na unidade do Espírito Santo vive e reina, vence e impera, Deus eternamente glorioso por todos os séculos dos séculos. Amém”.

Como no texto anterior de Celano, observamos que também aqui se fala da

experiência pessoal de Francisco a modo de uma fala sobre o fato indíviduo-Francisco e

sobre seu ato denominado relacionamento íntimo com Jesus Cristo. Aqui também se

apresentam diferentes tipos de fatos: fato indivíduo-Francisco; fato seus atos; fato Jesus

Cristo, objeto do ato de relacionamento íntimo do indivíduo-Francisco; fato indivíduo-

Celano que fala sobre Francisco e seus atos; fato-indivíduo ou grupo de indivíduos que

17

Page 18: Estudos SF

examinam e pesquisam todos esses fatos referentes ao indivíduo-Francisco etc.,etc.

Divisamos, em todos esses fatos dados, seus diferentes modos de ser como diferenças

ônticas. Diferenças ônticas indicam, pois, o modo, de cada ente aqui dado como fato,

aparecer como sendo14. A identidade desses como sendo, o sentido do ser desses como

sendo, que encobre e subsume todos esses diferentes entes nas suas diferenças ônticas é

o sentido do ser que caracteriza o modo de se dar, o modo de se apresentar do fato, da

entidade, cujo ser é a presença da objetividade, i. é, da realidade objeto-coisa físico-

material15. Costumamos denominar o sentido do ser desse modo de ser comum a todos

os entes e que serve como de horizonte geral-formal dentro e a partir do qual os entes

são dados como fatos a modo da realidade objeto-coisa físico-material, de ser-

ocorrência ou ser simplesmente dado. Esse horizonte do sentido do ser da ocorrência ou

do simplesmente dado inclina sempre de novo tenazmente a servir de fixador na

tentativa e na tentação de salvaguardar a ‘realidade’ dos fatos, para não se esvair no

fluxo caótico de aparecimento desordenado dos entes no seu ser. Essa tendência

fixadora dos entes na dinâmica da entificação, decai sempre de novo e, se fixa na sua

decadência, no sentido do ser da ocorrência ou do simplesmente dado como o critério, a

medida básica, elementar e suprema da compreensão de toda e qualquer ‘realidade’,

como o sentido do ser fundamental e fundante, comum e geral de todos os entes. Com

isso as diferenças ônticas são encobertas sob uma maciça camada de univocação

generalizante, cujo conteúdo significativo não libera a concreção viva e dinâmica do

próprio de cada ente na sua diferença. A diferença do ser de cada ente, não é

considerada a não ser como uma diferença ôntica já dentro e a partir de uma identidade

geral-formal que então serve como identidade ontológica de duas coisas diferentes entre

si, mas tendo como modo de ser básico e fundamental de ser, ao menos e antes de tudo,

de ‘algo’, ‘coisa’, fato, ocorrência. Dentro dessa colocação, temos, pois, coisas

materiais e espirituais; coisas humanas, coisas não-humanas de vários tipos, coisas

divinas, coisas apenas coisas, coisas apenas idéias, coisas concretas e reais, coisas

subjetivas e coisas objetivas etc. etc. Como aparece, pois, dentro dessa perspectiva do

horizonte do sentido do ser da ocorrência ou do simplesmente dado, a experiência

pessoal acima mencionada de São Francisco no seu relacionamento íntimo com Jesus

Cristo, como é relatada em Celano? P. ex. onde se localiza o sentido vivo e concreto de 14 O particípio ativo do esse (ser) é ente ou também sendo.Substantivado: o ente, o em sendo. Em grego το ον, -οντος, daí, ôntico.15 Os entes que não são coisa-objeto físico-material como p. ex. atos, vivências, objetos ideais etc. são dados de alguma forma como “algo” factual, real, sempre de certo modo referido a modo de ser da realidade coisa-objeto físico-material.

18

Page 19: Estudos SF

continuamente falando sobre Jesus; sua conversação doce, suave, bondosa e cheia de

amor; sua boca falava da abundância do coração; o amor iluminado que enchia todo o

seu interior e extravasava; sempre Jesus no coração, Jesus na boca, Jesus nos ouvidos,

Jesus nos olhos, Jesus nas mãos, Jesus em todos os outros membros; conservava

sempre com amor admirável em seu coração Jesus crucificado; foi marcado por seu

sinal com uma glória superior à de dos os outros; em êxtase; o Pai, com o qual, ele

mesmo, Filho do Altíssimo, e igualmente altíssimo, na unidade do Espírito Santo; Deus

eternamente glorioso por todos os séculos dos séculos? Respondemos usualmente: entre

coisas psicológicas, coisas vivenciadas, espirituais, divinas, coisas projetadas por

Francisco, coisas, em todo o caso mais subjetivas do que reais, factuais e ocorrentes em

si, como dados objetivos verificáveis concretamente. Ou melhor, incluindo todos os

dados desse gênero sob a denominação geral de coisas subjetivas da experiência pessoal

do indivíduo sujeito-Francisco. No entanto, com essa resposta reduzimos a experiência

pessoal-Francisco ao fato-coisa sujeito e seus atos subjetivos individuais ao lado de

outros fatos coisas ou subjetivos ou objetivos de diferentes tipos e classificações já

estabelecidas e fazemos que toda a paisagem inteiramente nova, viva e concreta de um

mundo todo próprio real, realíssimo e bem estruturado na sua dinâmica criadora fique

neutralizada sob opacidade indiferente e factualidade monótona, sem cor, sem tonância,

sim sem vida. E com isso todos os termos e as expressões do relato acima mencionado,

não vem à fala, a não ser como referências aos fatos, às coisas diversificadas do modo

de ser preestabelecido, sim padronizado do sentido do ser da ocorrência, do

simplesmente dado; impedindo que consigam percutir e repercutir como toque da

origem de todo um mundo da realidade realíssima nova, portanto como diferença

ontológica de uma identidade ontológica todo própria de um sentido do ser mais vasto,

mais profundo e mais originário do que o sentido do ser preestabelecido como

ocorrência ou simplesmente dado.

O que acontece com a assim chamada experiência pessoal, i. é. individual

privativa e subjetiva de Francisco, se ela não for um dos fatos entre outros fatos que

ocorrem nele ‘interiormente’ e outros que o rodeiam ‘exteriormente’, mas sim o próprio

saltar, o próprio surgir de toda um mundo, cuja paisagem está impregnada de um

sentido do ser inteiramente novo, não vindo desse fato particular subjetivo do indivíduo

denominado Francisco, mas sim do toque de inspiração que possibilita e cria a realidade

originária em cujo âmbito aberto se tornam possíveis Francisco e seus atos, suas obras,

seus companheiros e a Ordem, seu destinar-se através da História, em suma, se torna

19

Page 20: Estudos SF

possível a existência franciscana? Mas para que uma tal abertura da possibilidade da

gênesis da nova realidade possa ser vista e intuída, o ser do homem e o homem no seu

ser devem ser compreendidos não a partir do sentido do ser que solidifica tudo na

entificação factual, mas sim a partir e dentro do sentido do ser mais vasto, mais

profundo e mais originário, denominado na fenomenologia de existencialidade da

existência humana, ou ser da existência.16

2.2 – Excurso: Fato e Existência

Para marcar bem essa diferença entre fato e existência recorramos a uma

descrição de um par de sapatos do camponês, que na captação usual cotidiana ali está

como uma entidade-fato simplesmente dada. A descrição nos mostra como é diferente

considerar um fato como fato e vivenciar o mesmo fato como mundo, i. é, como

estruturação da existência. A descrição se refere ao par de sapatos da obra de Vincent

van Gogh, feita por Martin Heidegger na famosa conferência intitulada A Origem da

Obra de Arte17. Reproduzimos simplesmente, sem comentá-la, a descrição da

conferência, pois, aqui queremos apenas registrar, sentir e perceber a mudança de

tonância e de colorido de toda uma paisagem da realidade operada pela mudança do

sentido do ser que está à raiz do abrir-se de toda uma nova possibilidade da realização

da realidade.

a) O fato:

“Nós escolhemos como exemplo um artefato: um par de sapatos do camponês. Para sua descrição não é, sequer, necessário colocar diante de nós uma peça real dessa espécie de artefato de uso. Todo mundo o conhece. Mas, porque se trata de uma descrição imediata, seria bom facilitar a visualização. Para sua ajuda basta uma apresentação pictórica. Para isso escolhemos um conhecido quadro de van Gogh, que várias vezes retratou o artefato-sapato.

16A palavra existência e similares como existencialidade, existencial está sendo usado na nossa reflexão no sentido da fenomenologia do Ser e Tempo (Martin Heidegger), indicando o próprio do ser do homem ou da ‘vida humana’. Em vez de o próprio do ser do homem podemos também dizer o ontologicum do humano. Usualmente quando diferenciamos o ser do homem do ser de outros entes não-humanos, marcamos certamente a diferença entre ente e ente, mas não ‘entre’ o ser do ente humano e o ser do ente não-humano. Com outras palavras, não tematizamos a diferença ontológica, mas apenas a ôntica. A palavra existência e seus derivados, no seu uso específico fenomenológico, indica de imediato o próprio do homem no sentido da diferença ôntica mas ao mesmo tempo, acena também para a diferença ontológica i. é, a diferença que se dá no sentido do ser, ao pensarmos com maior precisão o ser do homem e não o homem como ente. O grande desafio em se manter na tematização da diferença ontológica é a de não representar a diferença ‘entre’ ser e ser como se fosse uma diferença a modo da distinção entre ente e ente. A diferença ontológica só vem à fala, se, em se operando bem a diferença ôntica e marcando de frente na mira a diferença entre ente e ente, divisarmos numa ‘mira’, digamos oblíqua a dinâmica do in-stante do lance livre da totalidade que se estrutura como mundo. É nesse surgir do mundo, nesse ‘intus’ ‘ire’ como ser-no-mundo, que nos mira nesse in-stante o sentido do ser na sua criatividade cada vez, nova e gratuita. O ente que tem como o seu próprio, o apanágio de ser clareira do desvelamento do sentido do ser, se chama Homem, mas não mais entendido como substância ou sujeito, mas sim como a responsabilidade livre e criativo pelo sentido do ser: é existência. 17 Heidegger, Martin, Der Ursprung des Kunstwerkes, Philipp Reclam

20

Page 21: Estudos SF

Mas, o que há ali para ver? Todo mundo sabe o que pertence ao sapato. Se não são especialmente sapatos de madeira ou de corda, encontramos ali a sola e a cobertura de couro, ambas costuradas com fio-barbante e agulha. Um tal artefato serve para cobrir os pés. Correspondendo à utilidade, se é para trabalho do campo ou dança, são diferentes matéria e forma” (pg. 28).

b) Desestabilização do fato e interrogação:

“Tais dados corretos interpretam apenas o que nós já sabemos. O ser do artefato consiste na sua utilidade. Mas, o que há com a utilidade, o uso ele mesmo? Captamos com o uso já a essência do artefato? Não devemos, para que isto se dê, visitar o útil artefato no seu servir? A camponesa no campo calça os sapatos. Somente aquí, os sapatos são o que são. E eles o são tanto mais autenticamente, quanto menos a camponesa pensa neles ou os visualiza ou apenas sente. A camponesa está de pé e anda neles. É assim que os sapatos servem efetivamente18. Nesse processo do artefato em uso, a essência do artefato deve nos vir de encontro efetivamente.Em contrapartida, enquanto representamos um par de sapatos apenas assim em geral ou olharmos em imagem os sapatos que ali estão, vazios e fora do uso, jamais haveremos de experienciar o que é em verdade o ser-artefato do artefato. Segundo o quadro de van Gogh, não podemos nem sequer constatar, onde estes sapatos estão. Ao redor desse par de sapatos de camponês, não há nada, a onde e onde eles poderiam pertencer, apenas um espaço indeterminado. Nem sequer estão grudados neles torrões dos blocos de terra, deixados pelos sulcos do arado ou do caminho do campo, o que aliás poderia ao menos indicar a sua utilização. Um par de sapatos do camponês e nada mais. E no entanto” (pg. 29).

c) A Existência e a sua estruturação:

“Da abertura escura do interior exposto do artefato-sapato encara fixamente a canseira dos passos da labuta. No peso elementar tosco do artefato-sapato está sedimentada a tenacidade do andar lento através dos sulcos extensos e sempre iguais do campo, por sobre o qual sopra um vento cru. Sobre o couro jaz a umidade e a saciedade do chão. Debaixo das solas se arrasta a solidão do caminho do campo para o entardecer poente. No artefato-sapato pulsa o mudo apelo da terra, a silenciosa doação de si do grão maduro e o inexplicável fracasso no ermo escancarado do campo hibernal. Através desse artefato desfila o tremor temeroso da busca pela segurança do pão cotidiano, a alegria sem fala do sobreviver de novo na indigência premente, a vibração na chegada do nascimento, o frêmito na iminência da morte. À terra pertence este artefato e ao mundo da camponesa está ele protegido. É dessa pertença protegida que surge e se firma o artefato ele mesmo para a sua in-sistência19. Mas, tudo isso talvez, nós possamos ver somente em artefato-sapato do quadro. Ao passo que a camponesa simplesmente calça sapatos. Oxalá, que esse simplesmente calçar sapatos fosse tão simples assim! Sempre que a camponesa, ao cair da tarde, sob o peso do duro cansaço, mas sadio, coloca de lado os sapatos e no lusco-fusco do amanhecer ainda escuro os retoma, ou no dia da festa, passa por eles, a camponesa então sabe de tudo isso sem observar e sem refletir. O ser artefato do artefato está quiçá na sua serventia. Mas esta, a serventia ela mesma repousa na plenitude do ser essencial do artefato. Nós o denominamos de confiabilidade20. É graças à vigência da confiabilidade que a camponesa é iniciada no apelo silencioso da terra, é graças à vigência da confiabilidade do artefato que ela está segura e ciente do seu mundo. Mundo e terra estão assim ali à camponesa e aos que com

18 wirklich = significa ao mesmo tempo efetivo e real = atuante.19 Insistência recorda a expressão da escolástica medieval para substância, i. é, in se. Talvez a compreensão moderna do fato como substância-bloco, pontual, seja um modo deficiente da captação da insistência concreta e viva do assentamento do mundo na terra: υποĸειμενον.20 Verlässlichkeit é a palavra do texto alemão. A tradução por confiabilidade não está bem correta. A tentação foi de traduzir por serenidade que em alemão é Gelassenheit. É que tanto na Verlässlichkeit como na Gelassenheit está a palavra lassen que significa deixar. Deixar como lassen sugere deixar ser, abandonar algo a ele mesmo, deixar atrás de si, se abandonar, digamos à serena imensidão, à serenidade como à plenitude da quietude profunda, abissal, assentada em si. É algo como deixar se ser na, e a partir da imensidão, profundidade e do vigor abissal de possibilidade inesgotável e assim tornar-se uma presença totalmente confiável, por ser plenamente consumada em si e por si, idêntica a si. Verlässlichkeit tem a conotação do ‘inteiramente confiável’ p. ex. de um artefato que cumpre totalmente com o que promete e deve ser e ao mesmo tempo ali jaz sereno, assentado e inteiriço na sua identidade.

21

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ela estão no seu modo: apenas no artefato. Dizemos ‘apenas’ e nisso erramos, pois é somente a confiabilidade do artefato que dá, em princípio, ao mundo simples a proteção segura e assegura à terra a liberdade da impulsão permanente.

O ser-artefato do artefato, a confiabilidade, mantém recolhidas todas as coisas, cada vez, segundo seu modo e amplitude, em si. A serventia do artefato, no entanto, é apenas a conseqüência essencial da confiabilidade. A serventia se embala na confiabilidade e seria sem esta, nada. O artefato em particular se torna usado e desgastado; mas, ao mesmo tempo, também o uso cai no desgaste, se desfaz e se torna usual. Assim o artefato entra na desertificação, decai à apenas artefato-coisa. Tal desertificação do artefato é o sumiço da confiabilidade. O sumiço, ao qual a coisa do uso deve então cada vez a sua monótona e persistente rotina vazia, é, porém, um testemunho a mais que acena à essência originária do artefato. A desgastada rotina usual do artefato então se impõe como o único e exclusivo modo de ser a ele próprio21” (pág. 31).

3 - A questão dos estudos e uma interrogação existencial ao problema dos

estudos.

Os exemplos e o excurso acima apresentados nos podem mostrar como é

diferente, de um lado, lidar com os fatos e estabelecer ligações entre fatos e fatos e

então discutir e detalhar os problemas das ‘realidades’ factuais e, por outro lado,

considerar os fatos e seus problemas sob a mira de uma busca do sentido do seu ser,

portanto, como é diversa a abordagem da história enquanto historiografia e a

aproximação da investigação que tenta trazer à fala o acontecer de um evento, em

deixando ser o destinar-se ou historiar-se no seu ser. Para que essa diferença se torne

também nítida entre o problema e a questão dos estudos em São Francisco na origem e

no primeiro século de franciscanismo seria necessário realizar algo semelhante ao que

Heidegger fez acerca do artefato-sapato, reduzindo i. é, reconduzindo a reflexão para a

origem22 do artefato ou ao ser-artefato do artefato. Portanto, no nosso caso, reconduzir

os fatos simplesmente dados da vida de São Francisco e os conteúdos da sua fala e dos

seus escritos sobre isso e aquilo, à dinâmica da inquietação in-vestigante das impulsões

que desvelem toda uma dimensão do ser, a assim chamada existência franciscana, que

uma vez decaída do seu modo de ser originário, se transmuda na mundividência

chamada franciscanismo. Este trabalho não podemos realizar aqui como seria necessário

para evidenciar a implicação do nosso tema, pois extrapolaria os limites de um artigo.

No entanto, tentemos na medida do possível, tecer algumas reflexões acerca do modo de

21 Essa descrição da redução de-cadente do artefato à entificação factual como sendo ele apenas uma coisa ali dada simplesmente, pressupõe que antes de algo estar ali simplesmente dado como fato, há toda uma presença viva de uma estruturação da manualidade, onde se acena uma dimensão mais profunda e subterrânea da existencialidade, lá onde ‘algo’ como realidade humana ou vida humana ou existência se torna possível.22 Origem pode significar início enquanto o primeiro da série na linha de uma sucessão. Mas pode também significar princípio, i. é, o lance do todo da possibilidade, a condição da possibilidade de ser do todo da série.

22

Page 23: Estudos SF

ser da interrogação existencial do problema dos estudos em São Francisco, para que

esse assunto que nos toca como franciscanos adquira maior seriedade e concreção

enquanto questão do nosso ser franciscano, hoje.

Pelo que viemos refletindo, tornou-se de alguma forma mais claro que examinar

os estudos na ordem no nível da factualidade, não nos satisfaz plenamente, por causa da

opacidade e do imobilismo formal abstrato da colocação factual no seu todo. Tornou-se

também mais temática a diferença existente entre a abordagem objetiva dos fatos a

modo historiográfico e a investigação do fundo ontológico do fato como realidade-

existência, a modo da História do ser do Homem. Muita coisa está ainda obscura e

indeterminada no que toca a compreensão da existencialidade do ser do homem em

contraste com a factualidade da entificação coisista da realidade, inclusive do homem.

Mas mesmo assim, mesmo a partir dessa compreensão bastante imperfeita e provisória,

tentemos colocar sob uma única interrogação a formulação usual do problema dos

estudos em São Francisco, na origem e no primeiro século do franciscanismo, tendo

também à mão o que com mais detalhes expusemos ao resumir as colocações de Gratien

de Paris na nossa reflexão I, 4 sob o título: ‘As idéias de São Francisco sobre pregação,

estudos e Ciência’.

Dissemos no início da nossa reflexão, I, 3, que sobre os estudos enquanto

problema, na origem em São Francisco e no primeiro século do franciscanismo, há, na

quase totalidade dos autores, uma e mesma impostação. Segundo essa colocação, os

estudos estão ligados à evolução e ao crescimento da ordem, à sua claricalização, à

intelectualização dos seus membros devido ao apelo e às exigências da Igreja, por causa

da evangelização. Assim trata-se mais da diferença existente entre São Francisco e o

pequeno grupo de seus seguidores do início com o seu modo pessoal de compreender e

viver o Seguimento (Evangelho), na experiência radical da pobreza na identificação

com o Cristo Crucificado, de um lado; e o modo de ser da ordem, de outro lado que

como comunidade em crescimento rápido e contínuo, não mais podia viver como

coletividade o radicalismo23 ideal, ainda possível num grupo bem menor, tendo o apoio

da presença física do fundador. Na medida do seu crescimento, a ordem estava dentro

da necessidade do desenvolvimento histórico, sob a convocação feita pela própria

23 Radical pode ser entendido como radicalismo e como referente à raiz. É bem diferente entender a palavra ‘radical’ como volta à raiz e como exacerbação de um aspecto da coisa, unilateral e com fanatismo. Talvez o radicalismo de São Francisco pouco tem a ver com radicalização, mas muito ou tudo, com volta à raiz, à fonte, à dimensão originária.

23

Page 24: Estudos SF

Igreja, de se dispor esse adaptar às necessidades epocais da Igreja e do mundo, no que

se refere à Evangelização.

A essa colocação do problema dos estudos em São Francisco, na origem da

Ordem franciscana interroguemos: o Seguimento de Jesus Cristo, Crucificado, em São

Francisco é algo pessoal, privativo só para poucos indivíduos e não para a ordem

como coletividade; ou aqui não se trata decididamente de uma dimensão totalmente

nova e diferente da realidade que exige de nós uma inteiramente nova compreensão do

ser?

4. Franciscanismo e a existência franciscana

O fato-experiência de Seguimento em Francisco, compreendido dentro da

colocação usual do problema dos estudos, como radical, mas pessoal privativo só

possível24 a poucos e a pequenos grupos, não, porém à ordem evoluída para um grande

estamento social…Os predicados radical, ideal, pessoal privativo atribuídos à

experiência religiosa de Francisco, como também os correspondentes moderados, real

concreto, comum atribuídos à ordem como coletividade, para explicar o porquê do

surgimento dos estudos entre frades, são binômios de segmentos da tabela de

classificação, na qual, de um lado a experiência de Francisco e de seus primeiros

companheiros é taxada de individual e do outro lado, a vivência e a resolução da ordem

já evoluída, de coletivas e comunitárias. Mas em assim se efetuando a classificação, não

está examinado nem tematizado o que realmente no seu conteúdo e na evidência

significam esses binômios. É que os binômios achatam a compreensão dos fatos,

reduzindo-a a suas significações usuais já estabelecidas e não permitem que os fatos

venham à luz na mostração do que são. Lancemos pois sobre o fato-experiência de

Seguimento em Francisco e seus primeiros companheiros uma interpelação

interrogativa e lhe perguntemos o que é, como é, esse acontecimento já de antemão

classificado como radical, ideal, pessoal e privativo. Uma resposta a esse interrogatório

só pode vir, a partir do próprio fato, mas agora captado, não no achatamento da

classificação já feita, mas sim nele mesmo, em concreto, na e-vidência.

24 Possível, possibilidade se entende usualmente como o que ainda não foi realizado, o que carece de atualização, como ainda apenas virtual. Nesse sentido o possível é menos do que o real. Mas pode ser entendido como dinâmica real, como poder no sentido de potência real, como atuação poderosa do poder, no sentido de ‘pode quem pode’. É nessa última acepção que dizemos: Amar assim, só pode um deus. Aqui o possível é maior do que o real. Se , porém, pensarmos com precisão, esse possível que é maior do que o real, não está no mesmo nível do ser do possível como do virtual, como menor do que o real, pois possibilidade aqui diz: condição da possibilidade do possível e do real.

24

Page 25: Estudos SF

No outono (setembro-dezembro) de 1205 Francisco recebe a voz do crucifixo de

São Damião: “Francisco, não vês que a minha casa está em ruínas? Vai pois e restaura-

a para mim”. O título do capítulo 5 da Legenda dos 3 companheiros onde está relatada a

fala do crucifixo é: Da primeira vez em que o Crucificado lhe falou, e como, desde este

momento até a morte trouxe a paixão de Cristo em seu coração. E a resposta de

Francisco, a decisão de sua existência é: Com muito boa vontade o farei, Senhor!. No

prosseguimento dessa tarefa, se dá o confronto com o pai Pedro Bernardone e a entrega

total a Deus, diante do bispo de Assis. Aos poucos se agrupam ao redor dele seguidores.

E em 1209 Francisco escreve a sua primeira regra, vai a Roma com 11 companheiros

pedir a aprovação do Inocêncio III para a vida de Seguimento de Jesus Cristo,

Crucificado, a vida da Pobreza. Obtém a aprovação, mas só oralmente. Trata-se da

assim chamada Primeira Regra franciscana, hoje perdida.

Do conteúdo dessa regra nada sabemos. Aliás, por isso mesmo ela nos parece

inteiramente inútil para termos notícias sobre se e o que ela fala acerca dos estudos. No

entanto, o surgimento da Primeira Regra e suas implicações e pressupostos, suas

subseqüentes reformulações como Regra Não Bulada, e finalmente como Regra Bulada

e o Testamento, o qual Francisco quer que consideremos não como uma outra Regra,

nos podem revelar o modo de ser, digamos, interno e entranhado disso que, externa e

usualmente denominamos de fato-experiência religiosa de Francisco na sua conversão

pessoal. O fato-surgimento da Primeira Regra 1209 é como a pequena ponta visível de

um ice-berg. Oculta sob a camada ‘objetiva’ de um fato historiográfico,

cronologicamente datado em 1209 e caracterizado como uma etapa final da experiência

subjetivo-pessoal do sujeito-indivíduo Francisco, o surgir e crescer de intensificação do

ser da realidade, a qual podemos denominar de mundo franciscano ou ser-no-mundo

todo próprio chamado existência franciscana.

Em geral, quando falamos de existência franciscana, pensamos a mundividência

franciscana, i. é, visão, concepção do mundo e da vida dos franciscan(a)os. É o

francisicanismo. Essa mundividência se origina com Francisco, se inspira nele. Mas não

é a experiência pessoal e originária do próprio Francisco. É já derivada, e muitas vezes

até um seu modo deficiente. Nessa perspectiva, portanto, o franciscanismo, a ‘existência

franciscana’ ou mundividência franciscana não coincide simplesmente com a

experiência pessoal e originária de São Francisco. Temos então, de um lado: a

experiência pessoal e privativa de Francisco (e de seus primeiros companheiros); e de

outro lado: a concepção do mundo e da vida, aceita e cultivada por muitos, por grupo ou

25

Page 26: Estudos SF

grupos de pessoas que simpatizam, amam e seguem a São Francisco nos inúmeros

movimentos inspirados por sua espiritualidade ou pertencendo à ordem que ele fundou.

A palavra existência franciscana pode ser também entendida como indicando a plena

vida de Francisco com a sua experiência pessoal de Seguimento de Jesus Cristo

Crucificado. Nesse caso existência franciscana não é sinônimo de franciscanismo nem

de mundividência franciscana, mas sim do que há de mais nuclear, autêntico, íntimo e

profundo na vivência e experiência do indivíduo Francisco. É o próprio coração, a

própria alma de Francisco. Trata-se de todo um mundo de ’realidades’ vivas de

estruturações complexas que constituem o interior, a cerne da ‘pessoa’ (leia-se

indivíduo ou sujeito) Francisco. É o que vislumbramos tão logo comecemos a cavar

debaixo da superfície opaca e fixa dos fatos e deixemos vir à tona a dinâmica

constitutiva da paisagem interior dos fatos e acontecimentos. É mais ou menos nessa

perspectiva de fundo que Gratien de Paris nos mostrou as idéias de São Francisco sobre

pregação, estudos e ciência. Aquí, o fato ‘experiência pessoal e privativa’ de Francisco

se torna muito mais complexa, rica e diferenciada nos seus detalhes. Mas, Francisco é

sempre ainda considerado como sujeito que faz, vivencia e agencia a sua experiência

religiosa que ele possui (e é por ela possuída), em contraposição à mundividência dos

que o seguiram, mas de um modo menos radical, mais adaptado às necessidades e

exigências das épocas posteriores.

A situação muda inteiramente, se entendermos existência franciscana no sentido

especificamente fenomenológico, acima explicitado, principalmente à mão da descrição

dos sapatos do quadro de van Gogh, feita por Heidegger25. Pois existência franciscana,

nesse caso, não significaria nem a vida de Francisco e sua experiência pessoal,

privativa, na origem do movimento franciscano, nem a vida dos que a ele sucederam

como seus seguidores ou fãs, nem suas vivências e mundividências, inspiradas por

Francisco, mas sim, o que possibilita a ambas, o que dá essência, o sentido do ser, tanto

a Francisco como a nós, seus seguidores, tanto na origem, no primeiro século do

franciscanismo, como nos séculos subseqüentes, como também hoje e amanhã.

25 O processo de um compreender, des-locando um fato da sua factualidade, liquidando, i. é, liquidificando a fixidez de sua entificação e libertando a estruturação do mundo atuante na raiz do seu ser se chama redução, a saber, recondução à situação originária da dinâmica genética do ser. A redução é cada vez diferente. Por isso, a ‘citação’ da descrição redutiva dos sapatos de van Gogh só serviu para marcar bem a diferença entre a abordagem factual de um ente e a in-vestigação redutiva, existencial do mesmo. No nosso caso, a redução dos fatos da vida de São Francisco à sua estruturação existencial deveria ser feita concretamente, para poder também ver concretamente esses fatos no seu ser todo próprio.

26

Page 27: Estudos SF

Existência franciscana é o que se denominou na tradição da espiritualidade, de espírito

de São Francisco ou carisma fundacional.

III – A questão dos estudos na ordem, ontem e hoje

1. Existência franciscana como espírito ou carisma fundacional.

Essa compreensão fenomenológica26 do que denominamos há pouco de

existência franciscana, agora como espírito ou carisma fundacional27 de São Francisco,

se torna de importância decisiva na questão do problema dos estudos na origem e no

primeiro século do franciscanismo. Pois, ela modifica inteiramente a impostação da

busca em referência aos fatos do problema dos estudos na ordem. Em que sentido? No

sentido de a experiência pessoal e privativa de Francisco não ser mais considerada como

algo individual, particular, subjetiva, só válida para este caso, aquí e agora, para este

fato empírico e ôntico ‘Francisco’; mas sim, ser ela o lugar, onde vem à fala e toma

corpo o lance fundacional de uma inteiramente nova possibilidade do sentido do ser que

26 Em vez de fenomenológica, podemos também dizer existencial, mas de preferência ontológica. Aquí ontológico não se refere a grande região dos entes não-humanos, os assim chamados entes ‘objetivos’, em contraposição à outra grande região dos entes humanos, os assim chamados entes ‘subjetivos’. Ontológico aquí se refere ao sentido do ser, não à significação lógica do termo ser, abstrata formal, sem nenhum conteúdo, comum ou geral a todos os entes extensionalmente. Sentido do ser deve ser entendido como aceno à dinâmica da gênesis de estruturação do mundo, cada vez nova, criativa, em cujo vir à luz se anuncia cada vez de novo o desvelar-se e ocultar-se do abismo insondável da possibilidade de ser.27 Espírito, spiritus em latim, é respiração, o sopro vital. Significa a fonte da vida, sustentação da vitalidade, a própria vitalidade, o vigor, o ânimo, o que impregna todo o ser de uma pessoa em todas as suas ações; portanto significa existência, a existencialidade. Carisma, em grego χάρισμα, chárisma significa dom, presente, graça. A palavra grega χάρις, cháris, de onde deriva chárisma, significa esplendor, graça como beleza, encanto, fascínio, i. é, a graciosidade e também gratuidade. Em geral, quando falamos de graça de Deus, entendemos a graça como dom, presente, talento, i. é, como o quê recebemos ou damos. E quando recebemos um presente, o nosso inter-esse pode estar antes apegado ao quê recebemos, deixando no retraimento a pessoa de quem recebemos. É bem diferente a tonância de um relacionamento com uma pessoa, quando no presente, o nosso inter-esse se enamora pela pessoa de quem vem o dom, nele vê e sente a presença da pessoa que se dá a si mesma através de e no presente. A beleza, a vitalidade, a graciosidade da nobreza e amabilidade da doação de si na bondade do amor é cháris, a graça, o fascínio e o encanto de atração, o esplendor do amor na sua epifania e diafania: é a difusão da bondade, da perfeição do amor. A bondade do Amor de Deus, difusiva de si, a Misericórdia é a graça, a graciosidade, a beleza da SS. Trindade no seu Mistério. Jesus Cristo, o Deus Encarnado é o chárisma, a concreção, a obra consumada, o dom desse Belo Amor. Nesse sentido, Maria, a Virgem e Mãe, é chamada na antiga liturgia latina de Mãe do Belo Amor. Quando a presença e atuação, a vitalidade de Jesus Cristo no seu Seguimento, impregna um dos seus discípulos, e o faz incandescente no seu amor, a ponto de ele se tornar início de um movimento concreto de Seguimento em outras pessoas, dentro do mesmo estilo de sua vida, se chama carisma fundacional. Fundacional, por que funda, inicia e fundamenta a partir da força que o move uma ordem ou congregação. O carisma fundacional é pois participação no ser de Jesus Cristo, da epifania e diafania da cháris de Deus, Uno e Trino. Nesse sentido, a existência franciscana é ontologicamente anterior e mais fundamental do que a experiência pessoal e privativa de um indivíduo chamado Francisco ou de indivíduos ou de grupo de indivíduos que seguem a Francisco. Só que existência franciscana, o carisma, o espírito de São Francisco não existe, no sentido de ocorrência como entidade factual como coisa. Ela se dá no processo vivo, responsabilizado e buscado com todo o empenho de todo o ser da pessoa dos que vão de encontro à convocação do Amor do Encontro.

27

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se torna condição da possibilidade do ser franciscano portanto se torna existencialidade

da existência franciscana. Trata-se pois da medida fundamental, universal e apriorística

de todo e qualquer movimento que pretende carregar o qualificativo de franciscano,

inclusive do próprio Francisco28. Enquanto medida universal de tudo que é e pode ser

franciscano, essa experiência pessoal de Francisco enquanto existência franciscana, se

torna a única questão, i. é, a única ação de busca dos estudos dos seus seguidores. O que

usualmente denominamos de experiência de uma pessoa, entendendo-a como vivência

subjetiva, i. é, da pessoa enquanto sujeito indivíduo, em São Francisco é existência. Para

que compreendamos vivência subjetiva de Francisco como concreção do ser da

existência, é necessário que a vivência seja entendida como um momento, portanto

dentro da perspectiva da absoluta doação de toda a vida de Francisco inteiramente

dedicada ao Seguimento de Jesus Cristo Crucificado. A intensidade dessa doação

apaixonada é tamanha que culmina na conformidade de Francisco com o Crucificado,

na total identificação com Ele, na estigmatização sobre o Monte Alverne. Assim,

Francisco é chamado de um outro Cristo. Uma tal identificação com o outro na doação e

recepção mútua de si se chama encontro. É união, comunhão no amor. A identificação

unitiva no amor de encontro no Seguimento de Jesus Cristo Crucificado é talvez a

realização suprema, ou melhor uma das tentativas, - das mais intensamente

experimentadas na História do Pensamento Ocidental, - de penetrar e perfazer um novo

sentido do ser da realidade no seu todo, que no cristianismo recebeu o nome de Boa

Nova ou Evangelho do Mistério da Encarnação. Na mística do cristianismo medieval,

como a pressuposição ontológica da sua metafísica29, o sentido do ser do ente na sua

totalidade se dá num único ente, todo próprio, sui generis, supremo e absoluto que

concentra em si toda a intensidade do ser. E isso de tal sorte que aqui Ser e Ente

coincidem. Esse ente único, o Ente como tal se chama Deus. Deus é ipsum esse, fora de

Deus não há propriamente ente, a não ser a modo analógico. Por concentrar em si toda a

força da entidade, se atribui a Deus ser no grau de excelência infinito, absoluto,

necessário, onipotente, onisciente etc. No entanto, o característico próprio desses

atributos de supremacia como infinitude, onisciência, onipotência, ser absoluto, ser

28 Apriorístico e o apriori não deve ser entendido como dado prefixado, a modo de uma norma fixa, mas no sentido da dinâmica do abismo insondável e inesgotável do ser; portanto no sentido da essência. Ao que essência aqui está intimamente ligada à compreensão de que a excelência e originariedade do ser não está no sentido do ser como simplesmente dado, como ocorrência, mas sim como pessoa no encontro da doação de si do Deus, como amor difusivo de si.29 Heidegger, Martin,, Die Grundproblem derPhänomenologie. Vittorio Klostrmann,,, Frankfunt a. m. 1975, pg. 127.

28

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necessário, ser a se não é a supremacia e o poder da metafísica do sentido do ser

simplesmente dado, mas sim de ternura e vigor do liberdade, cuja excelência, cuja

consumação se chama pessoa30 e é desvelada no mistério da Santíssima Trindade, um

Deus em três pessoa. Nesse sentido a infinitude, onisciência, onipotência, ser absoluto,

ser necessário, ser a se, diz: o sentido do ser é suma, infinita, icomensurável, clara e

livre, sem nenhuma exigência de condições, toda e absolta doação infinita que tudo

pode na ternura e vigor da gratuidade da oferta de si. Essa colocação fundamental como

o sentido do ser da totalidade que impregna e estrutura criativamente todo um mundo

próprio de ser, pensar, agir, é proposta como princípio prático da introdução à

experiência fundamental e fundante do mundo cristão, formulado como o grande

Mandamento do amor, a saber, amar a Deus com todo o coração, com toda a alma e

com toda a mente, e ao próximo como a si mesmo (Mt 22, 37-40). Mandamento esse

que em Jesus Cristo, na última ceia alcança a sua consumação como o Novo

Mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei (Jô 13, 34).

Toda essa concatenação de referências que liga a experiência pessoal de

Francisco ao Seguimento, à identificação com o Crucificado, e esta ao amor unitivo

denominado encontro, e tudo isso à realização suprema do grande Mandamento do amor

a Deus e ao próximo como a si mesmo, do Novo Mandamento, dado por Cristo na

última ceia, portanto, tudo isso quer apenas realçar que todas essas ‘coisas’ referidas,

uma vez entendidas como constituintes essenciais da existência franciscana, não mais

devem ser representadas como ações e compreensões de um sujeito chamado Francisco,

mas sim como toda uma dimensão, como todo um mundo de ‘realidades’ e

‘possibilidades’ de ser, caracterizado no Evangelho como Reino dos céus ou novo céu e

nova terra. Lembremos que as idéias de São Francisco sobre estudos e a ciência, como

Gratien de Paris as apresentou no III, 3 do seu livro já citado no início dessa exposição,

pertencem como elementos constitutivos a essa realidade da união de amor de encontro,

e somente recebem o seu pleno sentido a partir dela.

Usamos há pouco a expressão ‘realidade da união do amor de encontro’.

Realidade diz e pressupõe ser. Ser, a saber, um sentido do ser31. União, amor e encontro

só tem sentido próprio, a partir e dentro do horizonte de um determinado sentido do ser.

São conceitos que revelam, por assim dizer, o fundo pré-jacente do horizonte desse

sentido do ser. Como tais, são suas categorias fundamentais denominadas existenciais.

30 Cfr. Rombach, Heinrich, Struktur-anthropologie. “Der menschliche Mensch”, Verlag Karl Alber, Freiburg/München, 1978, p. 27-37.

29

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Com o risco de tornar-se chato e pedante, repitamos o que já foi dito várias vezes

anteriormente: Mas o sentido do ser aqui operante na união do amor do encontro, não

pode ser apreendido a partir e dentro do horizonte do sentido do ser dos fatos-coisas.

Dito com outras palavras, para se compreender devidamente o que seja união do amor

do encontro, necessitamos intuir, i. é, ir para dentro de uma nova e outra compreensão

de um outro e novo sentido do ser, muito mais rico, mais diferenciado, vivo e dinâmico

do que a usual compreensão do ser que está à base da compreensão dos entes como

coisas e fatos. Surge aqui a possibilidade e a necessidade de uma nova e outra ciência

do ser, da ontologia existencial ou fenomenológica32. O que aparentemente parecia ser

um fato da experiência pessoal e privativa que pertence à classe dos atos da vivência

chamada religiosa ou mística, se revela como sendo o vir à fala da possibilidade de uma

nova e outra ciência do ser. Isto significa que quanto mais pessoal, íntima e religiosa

for uma experiência, tanto mais deve estar impregnada da clarividência do modo de ser

de uma nova e outra ontologia, ciência do ser.

Por isso essa nova e outra ciência do ser33 diz: quanto mais pessoal, íntimo e

religioso for o ente, tanto mais intensidade, profundidade, vastidão e pregnância deve

possuir do ser. E, como foi dito acima, segundo os medievais, o Ente que por

excelência, é pessoa absolutamente, a tal ponto de ser três pessoa numa só natureza ou

essência, de ser o amor entranhado na ternura e vigor da doação e recepção mútua de

si na benevolência e comunhão, é o Deus Uno e Trino, o Deus do Amor do Encontro e

doEncontro doAmor da Vida Divina, no abismo da intimidade do Mistério da

Encarnação. Tudo isso quer dizer, por sua vez, que todo o Seguimento de Jesus Cristo

Crucificado, vivido corpo a corpo, em todas as dimensões do ser, até a consumação de

total identificação com o Crucificado, ou numa palavra a Vida de Pobreza, foi para

31 Sentido do ser não é idêntico com significação da palavra ser. Sentido, propriamente, nada tem a ver com signo ou significação, embora tenha muito a ver com aceno. Sentido, usualmente indica os 5 sentidos que por sua vez, de modo não muito claro, se referem ambiguamente ao sensorial, ao sensual, ao sensível, à sensibilidade estética. Mas, sentido diz tudo isso, porque em todas essas referências, está presente o sentir. E o sentir está também no sentimento. Mas, então, o que é o sentir? No sentir, há recepção. Na recepção, se é afetado previamente, por um a priori, para que se receba. Mas, aqui não se dá, não há o quê, que afeta. A anterioridade do prévio, do a priori na recepção, não é anterioridade factual, ôntica, de um algo que ocorre antes, em si e então afeta, mas sim atinência ao toque de um aceno que deixa ser sempre de novo, cada vez diferente e nova a possibilidade do eclodir silencioso da estruturação do mundo.32 Ciência do ser é ontologia. Mas, aqui entendida, não como ciência dos entes na sua generalidade, mas sim como ontologia fundamental na acepção fanomenológica, explicitada no Ser e Tempo (Heidegger). Ser aqui não significa Ente, mas sim o sentido do ser oculto na subjetividade transcendental ou subjetidade, ainda interpretada a partir do ser da entificação factual.33 Na Idade Média, é na sua mística cristã que encontramos a autêntica teologia. E na mística medieval está, não temática-, mas operativamente atuante de modo incoativo essa nova e outra ontologia existencial.

30

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Francisco o seu único e grande empenho, i. é, studium, os seus estudos na aprendizagem

dessa suprema, nova e outra ciência do ser do ‘Espírito do Senhor e do seu santo modo

de operar’(RM 10).

6. A questão dos estudos, hoje.

Na perspectiva de uma tal compreensão do ser por excelência, onde o ser

coincide com o Ente único, singular e supremo, que não é outra realidade do que o

Amor do Encontro e o Encontro do Amor, a SS. Trindade no Mistério da Encarnação,

portanto o Amor de Deus e Deus de Amor temporalizado e de-finido como este,

concreto indivíduo-pessoa Jesus Cristo; portanto, na mira de uma tal ciência do ser do

Amor de Deus, o conceito, i. é, a concepção do que seja pessoal, se liberta inteiramente

do binômio subjetivo-objetivo, individual-coletivo, para se estruturar livremente como

coincidentia oppositorum34, na unidade viva da singular totalidade, denominada pelos

medievais de universal. Por isso, em vez de essencial, substancial, em vez de

concentração ou intensificação ou qualificação e plenitude do ser, diziam os medievais

também uni-versal 35. Por conseguinte, universal diz vertido, com-vertido, virado de

volta, centrado ao uno. Isto é: convergência do e para o uno, recolhimento e expansão,

acolhimento e doação do e no uno, a saber na absoluta concentração do ser, a saber, do

ser do Deus de Amor Uno e Trino, na contração do Mistério da Encarnação como Jesus

Cristo, o Crucificado: i. é, segundo São Francisco, a Senhora Pobreza.

Portanto, assim questionado, o problema dos estudos na origem e no primeiro

século do franciscanismo não é mais a diferença e contraposição existentes entre o

pessoal e particular da experiência individual de Francisco e o comum, geral e coletivo

da ordem em evolução e crescimento na adaptação às necessidades dos tempos

posteriores. É antes, uma corajosa, imensa e profunda convocação universal, uma

chamada, um convite para a tarefa decisiva de cada um e da comunidade dos

seguidores vindouros de Jesus Cristo. É, pois, a proposta de um a priori, cuja analítica

é a diligente ternura da precisão de uma criatividade fontal que brota continuamente,

sempre, i. é, cada vez nova e de novo, do abismo do Mistério do Deus feito Finitude da

Encarnação. Uma tal analítica liquida e dissolve todo e qualquer bloqueio,

endurecimento ou dogmatismo do saber entificante factual, acordando, cordializando o

nosso saber para o gosto e a sensibilidade, para o sabor, para o rigor cordial da generosa

34 Coincidentia oppositorum é expressão usado por Nicolau de Cusa para indicar um dos existenciais mais importantes da sua ontologia que possui uma grande afinidade com a ontologia fenomenológica de hoje.35 Católico ou na grafia antiga cathólico vem do grego κατά ολου, i. é segundo ou seguindo o todo.

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afeição à síntese encarnada. E reduz, i. é, reconduz todos os entes, i. é, cada ente, à auto-

identidade, ao cada vez seu, à própria finitude de si agraciada, sob o céu aberto da

imensidão, profundidade e originariedade do surgimento, da gênesis da existência, a

saber, da liberdade da graça, estruturante do mundo, da disponibilidade generosa,

expedita de uma vida inteiramente devotada, engajada no empenho, i. é, no studium,

nos estudos, no inter-esse da busca que sabe à sabedoria do Pobre de Assis.

Mostrar tudo isso em detalhes e em concreto, à mão dos textos-fontes, citados

por Gratien de Paris, quando no III, 3 expôs as idéias de São Francisco sobre pregação,

estudos e ciência, seria a tarefa mais completa desse capítulo. Mas, deixemos tudo isso

para uma outra ocasião. Se, porém, o fizermos, haveremos de perceber que dentro dessa

nova impostação, aquelas condições sob as quais Francisco permitiu os estudos na

ordem, os conceitos como apostolado do exemplo, e a sua primazia sobre o apostolado

da fala, o trabalho manual corporal, o cuidado dos leprosos, a mendicância, a

paciência, a humildade, a simplicidade, a cruz, a pobreza etc.,, são existenciais, i é,

como que lugares, onde se encontram fatos, quais pequenos orifícios da chave de uma

porta fechada, através dos quais, se pode vislumbrar toda uma paisagem da ‘realidade’

abissal de uma nova ciência que nos introduz para dentro do coração de todas as coisas,

cuja razão exige uma nova inteligência, um novo intelecto. E segundo Beato Egídio de

Assis, fiel companheiro de São Francisco e grande mestre da Ciência Útil36, esse novo

intelecto deve estar cordialmente disposto a querer saber muito, para poder dever

aprender muito, humilhando-se a si mesmo, abaixando a cabeça até que o ventre toque

no chão. Nessa busca, se o nosso empenho, o studium se perfizer, se se fizer, se vier a

si, na jovialidade generosa dessa luta ‘full contact’, corpo a corpo com a coisa ela

mesma do Espírito do Senhor e do seu santo modo de operar’, então o Senhor nos dará

toda a Ciência, toda a Sabedoria do Belo Amor.

A cientificidade dessa Ciência Útil, formulada como humilhar-se muito37,

abaixando a cabeça, até que o ventre toque no chão, para receber em cheio, através de

todas as coisas, a evidência e claridade da epifania e diafania do Deus Uno e Trino no

Amor de Encontro, encarnadas como a obra-prima Jesus Cristo, o Crucificado, é o

nosso empenho, o nosso studium, os estudos na Ordem dos franciscanos.

36 Egídio de Assis, Os Ditos de Frei Egídio de Assis, cap. 13, Da ciência útil e inútil.37 Aqui, humilhar-se nada tem a ver com o masoquismo ou complexo de inferioridade, em ser pisado e sofrer na frustração e tristeza do ensimesmamento do eu ferido e ressentido com a vida. Tem tudo a ver com estar firmemente enraizado na finitude da Terra dos Homens, na acolhida corajosa e cordial da graça de poder ser como Jesus Cristo, o Deus Encarnado.

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E assim o que era um problema do passado medieval, se torna hoje uma tarefa

atual de busca enraizada e radical, uma questão. Uma busca cuja emissão e missão é o

envio, o apostolado38, necessariamente a modo do exemplo, a saber, práxis39, uma luta

corpo a corpo, sem simulacro de apenas demonstração, do fazer de conta que, do show

de erudição fútil ou do saber geral, informativo formal; uma práxis de experiência,

vivida, vivificante, não a ‘destilada’ teorética da generalização neutra indiferente em

classificações e informações processadas dentro de padrões já há tempo sorrateiramente

preestabelecidos e congelados. Trata-se, pois, da questão, da busca do saber real e

essencial, da autêntica práxis da teoria, disposta mortalmente à verdade, cuja

jovialidade brota continuamente, na atenta e vigilante alerta cordial, da con-templação

do ‘Espírito do Senhor e do seu santo modo de operar.

Conclusão

Se, no problema dos estudos na origem e no primeiro século do franciscanismo,

de alguma forma, essa nossa confusa e longa reflexão, a pesar de tudo, despertar em nós

o interesse pela questão do ser dos estudos no franciscanismo, certamente haveremos de

perceber que com essa questão estamos sendo tocados pela inquietação que se oculta no

âmago da nossa modernidade, pulsando no subterrâneo dos nossos cotidianos óbvios e

usuais; inquietação epocal que nos faz pensar na dominância da factualidade nas

abordagens que fazemos das coisas do espírito na espiritualidade. Por que reduzimos as

nossas buscas à averiguação dos fatos na acribia e no zelo do asseguramento da certeza?

Por que para nós hoje, verdade significa certeza dos fatos? Por que verdade não mais

pode ser o risco de uma intrépida aventura apaixonada da exposição disposta ao

inesperado, ao abismo do não saber agraciado, da docta ignorância? Por que se nivelou

a verdade, a tal ponto de crescer em toda a parte a aridez baldia do sentido do ser, em

cuja secura e vazio, ser não diz nem se quer apenas ocorrência factual de algo, nem

sequer nos mobiliza a nos indagarmos se não está acontecendo algo de estranho na

nossa compreensão do sentido do ser na sua totalidade? Esse crescente campo da aridez

baldia da factualidade no tempo de indigência do espírito, não poderia ocultar no

38 Apóstolo, apostolado, apostolicidade vem do grego αποστέλλειν que significa enviar, deslanchar.39 Πραξις, práxis vem do verbo πράττειν que significa agir, mas no sentido de criar, fazer obra, trazer à luz obra-prima. O modo de ser da teoria, em grego θεωρειν, significa divisar o vislumbre da incandescência do transluzir da realidade. Nesse sentido, a práxis, a prática não é outra coisa do que o árduo labutar, venturoso, artesanal, corpo a corpo, usando as próprias mãos em deixar ser a coisa ela mesma na clara lucidez da alegria de ser. Os medievais denominavam uma tal ação de contemplação.

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subterrâneo do seu esquecimento do esquecimento do sentido do ser um ante-início de

um novo hálito que nos possa preparar para um puro deserto, cuja acribia e rigor de

precisão interrogativa nos conduzam ao ermo da pobreza do saber, cada vez mais

sóbria, silenciosa, simples e atenta, qual pura ausculta dos vigias de uma nova vigília, a

preparar a nasciva disposição da alegria da espera inesperada…A questão dos estudos

na origem do franciscanismo…A perfeita alegria nos estudos do Seguimento de Jesus

Cristo, Crucificado40…O zelo e o rigor, a precisão da pura ausculta do ser da Pobreza de

São Francisco de Assis: A Idade Média da Contemplação e Mística {e}O Saber do

deserto no Nihilismo do ser das ciências da factualidade…A Modernidade das

Ciências Naturais, físico-matemáticas41: a espera cada vez mais esquecida, retraída

do aceno mudo de um ‘deus vindouro’…

Deixar-se tocar profundamente pela inquietação da busca angusta na indigência

do tempo da espera, viver intensamente o estreito dos riscos e perigos da pobreza

agraciada na dor e alegria da passagem, não estaria aqui, o in-stante da existência

hodierna franciscana, inserida na questão dos estudos na ordem de São Francisco

‘medieval’?

Diz, pois, Hölderlin, o poeta-pensador, o vigia avançado do tempo da indigência:

Pouco saber, mas muita jovialidade, é dada a mortais (IV, 240)42.

40 Cfr I Fioretti de São Francisco de Assis, cap. 8.41 A pedominância da certeza na abordagem de todas as coisas a partir do asseguramento dos fatos na sua factualidade não seria um modo de ser deficiente do sentido do ser que atua no fundo das assim chamadas ciências naturais ou exatas no seu modo de ser físico-matemático?42 A tradução é do professor Emanuel Carneiro Leão. O texto alemão diz: Zu wissen wenig, aber der Freude viel, Ist Sterblichen gegeben. E traduzindo literalmente: A saber, pouco, mas muito, da alegria, é dada a mortais.

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