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Do livro Estudos Filosficos, publicado em 1999 pela editora Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro C. F. Costa UFRN

Obs: Os captulos 1, 4, 5, 6 e 7 permanecem de alguma maneira teis. As questes tratadas nos captulos 2, 3 e 8 encontram-se mais adequadamente expostos no livro Cartografias Conceituais. A questo do captulo 1 foi longamente tratada no livro A Indagao Filosfica

ESTUDOSFILOSFICOS

SUMRIO

Introduo

1. Filosofia, Cincia e Histria

2. Fichte e a Metafsica do Sujeito

3. Verificacionismo e Imanentismo Teolgico

4. Cogito e Existncia

5. Cogito e Linguagem Privada

6. Processo Primrio e Emoo Esttica

7. As duas Formas Bsicas de Ao Comunicativa

8. As Aporias do Realismo Clssico

9. Notas para uma leitura de O Pensamento

10. Suplemento: Traduo de O Pensamento: Uma Investigao Lgica, de Gottlob Frege

PREFCIO

Essa coletnea traz consigo o signo da diversidade: so ensaios de natureza muito diferente, sobre questes as mais variadas, devendo servir (e no servir) a leitores os mais diversos. Na maioria dos casos a minha estratgia consistiu em tentar construir sobre (ou contra) um material de idias pr-existentes, geralmente originado da tradio filosfica. Fiz ento anteceder discusso uma clara exposio de meu entendimento dessas idias, de modo a informar o leitor e tornar os argumentos mais facilmente acessveis e avaliveis. Comentarei brevemente cada ensaio. Captulo 1: "Filosofia, Cincia e Histria". Esse ensaio tematiza a absoro do domnio da imaginao filosfica pelo da investigao cientfica, considerando duas maneiras de ver contrastantes: a concepo de A. Comte, segundo a qual a metafsica faz parte de um estgio intermedirio da evoluo do saber situado entre religio e cincia, e a opinio de A. Kenny de que ao menos em seus temas centrais a filosofia h de permanecer para sempre irredutvel cincia. Em minha concluso favoreo Comte contra Kenny. De um lado, Kenny no chega a apresentar um suporte satisfatrio para as suas idias; de outro, basta uma breve olhada no vertiginoso e cada vez mais abrangente progresso contemporneo da cincia, para nos apercebermos de que certas idias defendidas por Comte merecem reavaliao. Ele estava apontando para a direo certa, ainda que pudesse enganar-se seriamente quanto s dimenses e natureza do territrio a ser percorrido. A modesta novidade desse ensaio no est, todavia, em seu argumento geral, mas na tentativa de uma anlise da natureza dos conceitos metafsicos com base em Comte (seo 5). Diferentemente de filsofos como Kenny, no creio que a adoo de uma perspectiva comteana nos comprometa com a submisso dos destinos da filosofia a um cientificismo reducionista, eliminador de sua abrangncia (seo 7). Captulo 2: "Fichte e a Metafsica do Sujeito" um aperitivo idealista que talvez ajude a fazer descer a lauta refeio positivista do trabalho anterior. Trata-se de pouco mais do que um bosquejo pedaggico: uma reconstruo sumria do drama metafsico criado por J. G. Fichte e de suas origens kantianas. De maior interesse parece-me a proposta, esboada na seo 3, de uma maneira de se conceber o eu fenomenal que torna o apelo ao Eu transcendental totalmente prescindvel. Captulo 3: "Verificacionismo e Imanentismo Teolgico". Trata-se inicialmente de uma exposio das razes verificacionistas para a concluso de que o enunciado "Deus existe" , ou sem sentido ou, provavelmente, falso. Argumentos atestas clssicos eram em sua maioria insuficientes, pois costumavam depender de uma certa natureza ou ao geralmente atribuda a Deus. Por exemplo: se h o mal no mundo, segue-se da que Deus no existe, posto que Deus deve ser bom. Ou ainda: se a quantidade de massa-energia do universo permanece a mesma, segue-se da que Deus no existe, posto que ele deveria ter criado o mundo do nada. Claro est que tais argumentos so no mximo capazes de demonstrar a inexistncia de uma certa propriedade ou ato de Deus, mas no necessariamente a inexistncia de Deus. J o argumento decorrente de pressupostos verificacionistas, embora no demonstre a inexistncia de Deus, demonstra a improbabilidade da existncia da espcie de Deus pessoal geralmente concebida pelas religies - e essa demonstrao "filosoficamente conclusiva", no sentido de que se segue admisso das premissas. Em adio a isso, procurei mostrar que a crtica verificacionista no se aplica incondicionalmente, sendo possvel pensar em ao menos uma concepo de Deus que , ao contrrio, probabilizada pelo verificacionismo (seo 3). Isso pode acontecer quando, maneira de Spinoza, optamos por uma concepo naturalista e imanentista de Deus como sendo o prprio mundo, na medida de suas perfeies. Semelhante concepo seria ao que parece capaz de resgatar elementos positivos que esto presentes na base do sentimento religioso - elementos que seriam determinados por uma disposio de nossa natureza em direo a uma maior harmonia conosco e com a natureza mais abrangente que nos envolve... No entanto, a palavra Deus recebe aqui um sentido no-caracterstico, cuja aceitao questionvel. Captulo 4: Cogito e Existncia constitui-se em uma avaliao do status epistemolgico do Eu existo no momento de sua afirmao no cogito cartesiano, quando a ele aplicada a distino carnapiana entre formas internas e externas de atribuio de existncia. Se entendido como entidade nica no mundo, o eu cartesiano s pode possuir uma forma externa de existncia. Como o objetivo atribuir uma forma interna de existncia, a soluo cartesiana consistiria na admisso da existncia de um mundo externo ao eu, embora no precise ser o mundo tal como pensamos conhecer. Captulo 5: "Cogito e Linguagem Privada" contm uma resposta cartesiana objeo, advinda do argumento da linguagem privada, segundo a qual a enunciao cartesiana do cogito, devendo ser realizvel sob o suposto da completa inexistncia de uma comunidade lingstica (necessria correo de suas regras), no pode ser significativa. Em sua parte final (seo 6) o argumento toma a forma de uma reductio, na qual admite-se como premissas que: (i) no possvel supor que a linguagem natural por mim falada eventualmente no seja uma linguagem, que ela possa ser destituda de sentido; (ii) que eu seja um crebro no recipiente (ou algum enganado por algum gnio maligno...) algo concebvel e ao menos logicamente possvel. A essas premissas adiciono, como hiptese a ser refutada, o que considero a maneira mais eficaz de se tentar aplicar o argumento da linguagem privada ao cogito; ela consiste na sugesto de que: (iii) no possvel a constituio de uma linguagem cujas regras sejam corrigidas por uma comunidade lingstica meramente virtual, posto que tais correes seriam meramente aparentes (como o cogito se articula sob a assuno de que o sujeito aprende a sua linguagem por meio de uma comunidade lingstica virtual, e essa assuno absurda, deve-se concluir que uma articulao solipsista do cogito, como prope Descartes, no pode fazer sentido). O problema que admitindo (ii), a possibilidade de que eu seja um crebro no recipiente (ou um eu cartesiano), e considerando que no caso de eu ser um crebro no recipiente (ou um eu cartesiano) as regras de minha linguagem seriam forosamente corrigidas por uma comunidade lingstica virtual, idia cuja possibilidade negada por (iii), devo concluir que possvel que eu no esteja pensando em uma linguagem, que nada do que articulo lingisticamente em pensamento faa sentido. Mas essa concluso a negao do que foi assumido em (i). Logo (iii) deve ser falsa. O mais interessante nesse artigo no , para mim, o seu emaranhado argumento principal, mas a breve digresso acerca das limitaes que a estrutura do conceito de realidade impe dvida radical (seo 2). Captulo 6: "Processo Primrio e Emoo Esttica" chama ateno para a importncia dos dois mecanismos fundamentais daquilo que S. Freud chamava de processo primrio - a condensao e o deslocamento - na anlise da obra de arte. Embora eles no sejam responsveis pelo aspecto propriamente esttico da apreciao da obra de arte, eles esto necessariamente envolvidos em toda a produo e a apreciao esttica. Tambm tentei demonstrar que eles esto na base da diferenciao entre o sentimento apolneo (dependente do deslocamento) e o sentimento dionisaco (dependente da condensao). Captulo 7: "As duas Formas Bsicas de Ao Comunicativa consiste essencialmente em uma reconstruo da distino austiniana entre proferimentos constatativos e performativos. Pretendi mostrar que a razo por que Austin cr que a distino no se sustenta que as condies que ele tentou estabelecer para ela so inadequadas. Se, diversamente de Austin, permanecermos fiis intuio que deu origem distino, seremos capazes de estabelecer condies que distinguem suficientemente as duas classes de proferimentos como exprimindo as duas funes mais gerais da linguagem. Captulo 8: "As Aporias do Realismo Clssico" uma crtica ao realismo ontolgico: os paradoxos aos quais so conduzidos os realismos platnico e aristotlico so apontados como razes que sugerem fortemente o abandono do realismo. Essas razes tornam-se mais eficazes quando percebemos que os problemas que o realismo visa solucionar poderiam, ao menos em princpio, ser resolvidos por formas suficientemente sofisticadas de nominalismo e de conceptualismo. Captulo 9: o ltimo trabalho, "Notas sobre 'O Pensamento'" , em certa medida, complementar ao anterior. Alm de conter uma crtica ao realismo do terceiro reino proposto por G. Frege em seu artigo "O pensamento", ele contm uma sugesto programtica de como poderia ser construdo um domnio epistmico prprio, de sentidos e/ou pensamentos, entendidos em termos conceptualistas, sem comprometimento, pois, com nenhuma forma de realismo ontolgico (seo 5). Finalmente, como esse ltimo artigo foi originariamente escrito como introduo a uma traduo que fiz do artigo de Frege, achei indicado reproduzi-la aqui sob forma de suplemento. Gostaria de expressar meus agradecimentos ao professor Marco Antnio Ruffino, pela gentileza de ter revisado a traduo do texto de Frege, bem como ao professor Juan Adolfo Bonaccini, por discusses e encorajamento. Agradeo tambm aos meus alunos da UFRN, por suas manifestaes, e aos editores de Cadernos de Histria e Filosofia da Cincia e Kriterion pela gentil permisso para republicar material originariamente impresso nessas revistas. Esse livro no teria sido possvel sem as bolsas de pesquisa recebidas do CNPq e do DAAD-CAPES.

Natal, 1999

1

FILOSOFIA, CINCIA E HISTRIA

Infame, informe liberdade Romntica, ignorante dos cinco poliedros nicos e perfeitos./ ignorante das jaulas da geometria divina, Feliz priso da retina, Ignorante do prazer contnuo das impiedosas e rigorosas redes/ Doce contrao do crebro Ligamento desejado, Paliada, entrelaos gloriosos, limite dourado, Corbeille, coroa arminhada. (S. Dali)

Como se relacionam filosofia e cincia, do ponto de vista de seu desenvolvimento histrico? Essa uma questo complexa e necessariamente especulativa, posto que a sua resposta envolver a inevitvel admisso de pressupostos problemticos acerca da natureza da filosofia e da prpria cincia. Sobre o relacionamento histrico entre filosofia e cincia, uma constatao fundamental a de que a filosofia, como escreveu Antony Kenny, a me das cincias, melhor dizendo, "o tero" no qual elas foram preparadas para o seu nascimento1. Essa no tanto uma hiptese quanto a constatao de um fato histrico, que foi impressivamente exposto por J. L. Austin na comparao que ele fez do destino da filosofia com o de um sol central e inicial, seminal e tumultuoso, do qual de tempos em tempos lanado fora um planeta frio e bem regulado, uma cincia, que a partir de ento progride com segurana rumo a um estado final distante2. Passando da analogia aos fatos, podemos comear lembrando que ainda na obra de um filsofo como Aristteles a palavra 'filosofia' aplicava-se indiferenciadamente a todo o saber humano, tendo sido o seu domnio de aplicao progressivamente restringido no curso da histria. Que tudo fosse considerado filosofia era entre os gregos justificado, pois o que j existia em termos de cincia era ainda inicial e fragmentrio. Aos poucos, porm, as cincias bsicas foram se destacando da filosofia. Considere-se o caso da matemtica. Embora ela tenha sido a primeira cincia a diferenciar-se da filosofia, sabemos que os filsofos pitagricos ainda mantinham uma compreenso metafsica de sua natureza, considerando os nmeros e os elementos deles constitutivos como sendo o princpio supremo, delimitante e determinante de todas as coisas. No obstante, o tratamento metafsico-especulativo de questes que so de fato pertencentes matemtica cedo deixou de ocorrer na filosofia de forma importante. Algo semelhante aconteceu com a fsica. Ela s passou a ser geralmente entendida como uma cincia independente aps Galileu. Antes disso o seu lugar epistmico costumava ser ocupado pela fsica aristotlica, ao menos na medida em que esta continha uma especulao filosfica acerca da natureza do mundo fsico. Mais tarde a qumica, especialmente a partir de Lavoisieur, tornou-se uma cincia independente de teorias msticas ou especulativas sem real poder preditivo, o mesmo ocorrendo com a biologia. A psicologia filosfica teve origem em livro com De Anima de Aristteles, e filsofos como Descartes e Spinoza produziram minuciosas anlises das faculdades da mente. Mas somente na segunda metade do sculo passado partes importantes da psicologia filosfica comearam a deixar de pertencer filosofia, quando o mtodo tipicamente introspeccionista dos filsofos comeou a ser substitudo, de um um lado, pela psicologia resultante do uso de mtodos psicoteraputicos (o que conduziu ao desenvolvimento da teoria psicanaltica), de outro, pela psicologia experimental (o que permitiu desenvolvimentos como a atual teoria do reforo, entre muitos outros). Tambm desde o final do sculo passado o desenvolvimento da lgica simblica permitiu uma enorme ampliao das possibilidades do clculo lgico, o que imps restries credibilidade da especulao filosfica antes realizada no terreno da ignorncia lgica (e.g.: os excessos da "lgica dialtica"). J. L. Austin pretendeu ele prprio separar da multidirecionada massa de indagaes filosficas uma nova "cincia da linguagem", caracterizada pela sua teoria dos atos ilocucionrios, hoje pertencente pragmtica. Tambm a neurofisiologia, a psicologia cognitiva e os diversos domnios de questionamento de uma emergente cincia da mente devero, assim se espera, abarcar certos domnios que at a pouco pertenciam exclusivamente especulao filosfica. Com efeito, que as cincias bsicas tenham nascido aps um perodo mais ou menos longo de especulaes de carter filosfico em um domnio correspondente, mas ainda indistinto e confundido com outros, um fato dificilmente recusvel. Por isso a filosofia pode ser considerada, ao menos em certa medida e em certos domnios, como uma antecipao especulativa e freqentemente equivocada da cincia que ainda est por nascer: uma forma de protocincia. A reflexo em torno disso conduz a questes filosficas de interesse, como: "Como se daria essa passagem?"; "Quais so os critrios que usamos para distinguir a filosofia da cincia?" "Ir a filosofia, ao final, ser completamente absorvida pela cincia, deixando de constituir um domnio diverso de investigao?" "Possui a filosofia um objeto prprio de investigao, independente dos objetos das cincias particulares?" Tentei esboar uma resposta a essas questes em outro lugar3. Quero aqui considerar apenas duas respostas que outros filsofos deram a elas, com o intuito de fazer algumas reflexes comparativas que possam melhorar a nossa compreenso das relaes entre filosofia, cincia e histria. A primeira concepo a ser considerada constitui-se em todo um sistema filosfico, em parte determinado pela percepo do fato histrico acima resumido. Trata-se da doutrina positivista da evoluo da mente e da cultura humana desenvolvida por Auguste Comte em seu Curso de Filosofia Positiva e em outros trabalhos. A filosofia de Comte tem sido muito facilmente desmerecida, no faltando razes para isso. Sem dvida, a qualidade de suas idias bastante varivel; muito do que ele escreveu incorreto ou perdeu a atualidade; h uma viso reducionista das questes e uma disposio dogmtica, que transparece nos desdobramentos da doutrina. Parece que Comte, em parte devido a acontecimentos de sua vida pessoal, sofreu uma progressiva recada no dogmatismo metafsico-religioso que a lgica de seu pensamento o obrigaria a combater, terminando por criar uma curiosa e estranha religio secular: a religio da humanidade, cujo objeto de culto no era um Deus transcendente, mas a humanidade essencial, representada pela obra e exemplo dos grandes homens. Um filsofo como Sartre chegou a dizer que a espcie comteana de humanismo conduz ao fascismo4. Isso injusto. No obstante, um culto elitrio, que supervalorizasse o social em detrimento do indivduo, ignorando a democracia, poderia facilmente conduzir a alguma forma de totalitarismo. Nada disso, no entanto, deve desencorajar-nos da tentativa de ler Comte sem preconceitos, retirando de seus textos os insights plausveis para p-los em dilogo com a perspectiva contempornea.

1. A CLASSIFICAO COMTEANA DAS CINCIAS

Comte relaciona a filosofia cincia atravs da assim chamada lei dos trs estgios5. Como a aplicao dessa lei filosofia s adequadamente compreendida luz da classificao das cincias fundamentais por ele adotada, quero expor as duas, a comear pela ltima. Comte utiliza como critrio para a sua classificao a generalidade e complexidade de cada cincia. Complexidade e generalidade esto em proporo inversa: a maior complexidade no contedo das teorias de uma cincia vem acompanhada de uma menor extenso, de uma menor generalidade. Tal oposio no casual, mas intrnseca: ele quem nota que os fenmenos, para serem mais gerais, no podem implicar-se com situaes particulares, precisando ser por isso mesmo mais simples6. Aplicando tal critrio, as cincias fundamentais so para Comte a matemtica, a astronomia, a fsica, a qumica, a biologia e a sociologia7. A matemtica a mais geral, aplicando-se simplesmente a tudo o que existe. Em uma considerao mais detida, ela no propriamente uma cincia, por no investigar seres concretos, mas um mtodo comum s diversas cincias. A prxima cincia a astronomia ou fsica celeste. A seguir vem a fsica terrestre, que contm muito da fsica propriamente dita, ocupando-se do estudo das leis gerais da matria. Aps ela vem a qumica, mais complexa e menos geral, ocupando-se dos fatos qumicos. Em nvel de complexidade maior do que o da qumica e dizendo respeito a uma poro ainda mais restrita do universo temos a biologia, que estuda as leis gerais da vida. Por fim chega-se mais especfica e mais complexa das cincias, que Comte denominou fsica social ou sociologia, a qual estuda o homem como ser social. ordenao das cincias da mais simples para a mais complexa corresponde a seqncia de seu surgimento no curso da histria; e essa ordem de seu desenvolvimento natural e necessria, posto que o conhecimento das cincias menos gerais pressupe o conhecimento das mais gerais. Por isso a sociologia s emergiria como cincia no alvorecer do sculo XIX, em parte por obra do prprio Comte.

2. DISCUTINDO A CLASSIFICAO DAS CINCIAS

Uma primeira questo referente hierarquia das cincias sobre a ausncia da psicologia, que aparentemente deveria encontrar-se entre a biologia e a sociologia. A resposta que Comte no inclui a psicologia em sua classificao porque por isso ele entendia a psicologia introspeccionista (filosfica) da poca. A psicologia no para ele possvel, na medida em que a introspeco no verdadeiramente possvel: a mente no pode dividir-se em duas, uma que raciocina e outra que observa o seu raciocinar. Comte tambm no inclui a filosofia em sua classificao. A filosofia, em um sentido afirmativo da palavra , para Comte, a filosofia positiva, vista como uma cincia suprema, cuja principal funo terica a de classificar as cincias, determinar os seus limites, julgar os seus progressos. Enquanto tal, a filosofia se aproxima do que hoje chamaramos de uma teoria das cincias. Mas o que diria Comte da maior parte daquilo que tradicionalmente chamamos de 'filosofia'? Isso ele anatematizaria sob a rubrica de metafsica: uma forma de pensamento pertencente a um estgio pr-cientfico e temporrio do desenvolvimento da mente humana. A classificao comteana das cincias tambm em outros pontos questionvel. obviamente enganosa a oposio entre fsica celeste e fsica terrestre. A astronomia no uma cincia fundamental. Excetuando o seu aspecto cartogrfico, a astronomia hoje geralmente a fsica aplicada ao macrocosmo. a fsica que uma cincia fundamental, a mais geral das cincias empricas, mais do que a astronomia, pois se aplica genericamente a tudo o que de natureza espacio-temporal, incluindo nisso os corpos celestes... E a excluso da psicologia do domnio das cincias empricas perdeu hoje todo o sentido, uma vez que o mtodo introspectivo, criticado por Comte, h muito deixou de ser vital investigao psicolgica. Tambm se pode objetar que o critrio pelo qual reconhecemos a complexidade/simplicidade de uma cincia pode no parecer muito claro. Em que sentido, afinal, podemos dizer que a fsica mais simples que a biologia? Primeiro, h a maior variedade do que compreendido pela biologia; se considerarmos a multiplicidade dos fatos que precisam ser conhecidos como fazendo parte do domnio cientfico, parece claro que a biologia bem mais complexa do que a fsica. Segundo, h uma maior complexidade em termos de regularidades de mbito mais ou menos restrito: por exemplo, regularidades restritas a essa ou aquela espcie de organismo ou a suas partes. Se considerarmos essas regularidades como um equivalente biolgico do que em fsica chamado de lei, prescindindo, pois, de uma exigncia de universalidade irrestrita no sentido de preservao de validade para todos os seres vivos, ento devemos tambm admitir que as leis fsicas so poucas em comparao com a grande variedade das regularidades biolgicas a serem consideradas. Por um ou outro desses critrios de comparao, a classificao das cincias fundamentais pelo critrio de graus de complexidade crescentes mantm-se razoavelmente plausvel. Quanto ao critrio de generalidade decrescente, trata-se de um lugar- comum irrecusvel8. evidente que a fsica a mais geral das cincias empricas, por aplicar-se a tudo o que existe no mundo emprico. J a qumica aplica-se apenas quela parte do mundo fsico formada de tomos e molculas em suas combinaes possveis, e a biologia possui uma aplicao ainda mais estrita que a qumica, reduzindo-se ao mbito dos organismos vivos. A psicologia, uma vez admitida como cincia fundamental, se aplica apenas aos seres vivos conscientes; e a sociologia, por fim, constitui o domnio de aplicao mais restrito de todos, pois s pode ser aplicada a seres vivos conscientes e capazes de se organizar socialmente. Muitas outras cincias existem, mas elas no so mais bsicas ou fundamentais; elas resultam da aplicao das cincias empricas fundamentais a especficas constelaes de fenmenos (exemplos: a astronomia, a neurofisiologia, a psicologia social). Tambm faz sentido a idia que Comte faz de uma subordinao entre as cincias. A matemtica um pressuposto necessrio para o desenvolvimento das cincias empricas. E difcil imaginar que a fisiologia ou a biologia pudessem ter-se desenvolvido se nada soubssemos de fsica. Pense-se, por exemplo, na mensurao do consumo calrico dos organismos ou na inveno do microscpio... Tambm a psicologia experimental no seria certamente possvel sem uma base mnima de conhecimentos fisiolgicos ou biolgicos. Descontando-se, pois, inadequaes que hoje nos parecem evidentes, conclumos que a classificao comteana das cincias, embora exigindo correes, apia-se em princpios vlidos, cuja vaguidade adequada ao carter difuso da matria qual se aplicam.

3. A LEI DOS TRS ESTGIOS

A lei dos trs estgios uma ordenao do trajeto percorrido pela mente, que vai da superstio cincia. Ela no criao de Comte. Outros autores j haviam tido pensamentos semelhantes. Sobre isso basta dizer que, j em 1750, A. Turgot havia constatado que o conhecimento possui trs estgios de desenvolvimento, passando da religio metafsica e da metafsica cincia9. Somente Comte, porm, percebeu e explorou a idia em todas as suas possibilidades. Ele a desenvolveu em maiores detalhes, adicionando uma grande quantidade de material confirmador proveniente de seus estudos de histria da cincia e da sociedade, generalizando-a, por fim, altura de uma lei de impressionante abrangncia, uma lei que em seu entender no era especulativa, mas cientfica, posto que empiricamente corroborada pela histria do surgimento de cada cincia fundamental. Essa lei aplica-se em trs nveis: (i) ao nvel do desenvolvimento comum do saber, (ii) ao nvel do desenvolvimento da mente individual, (iii) ao nvel desenvolvimento da prpria histria social do homem. como uma lei genrica acerca do desenvolvimento do saber ou da cultura humana que a lei dos trs estgios mais importante. Para Comte, na base do surgimento de cada uma das cincias fundamentais, encontra-se um processo evolutivo no qual o domnio correspondente do saber passa, necessariamente, primeiro pelo estgio teolgico ou fictcio, em seguida por um estgio metafsico ou abstrato, chegando finalmente a um definitivo estgio cientfico ou positivo. Comecemos pelo estgio teolgico ou fictcio. Ele constitui o ponto de partida necessrio para a evoluo da mente. Nele o homem pretende explicar os fenmenos do mundo circundante recorrendo a causas essenciais (primeiras ou finais), originadas da vontade de seres pessoais sobre-humanos: os deuses ou o Deus. O conhecimento obtido nesse primeiro estgio pretende-se absoluto. E o saber assenta-se apenas como produto da imaginao, no da razo. O estgio teolgico assume para Comte trs formas subseqentes: as do fetichismo, do politesmo e do monotesmo10. No fetichismo est presente uma mentalidade animista, que concebe os objetos fsicos como sendo vagamente dotados de vida, de paixes e de vontade. Como exemplo temos a adorao dos astros pelos povos antigos. Com o transcorrer do tempo, as foras que animavam imanentemente os objetos so misteriosamente transportadas para seres fictcios, os deuses. Com isso chegamos ao politesmo, tpico da Grcia antiga. Mais adiante, as divindades da religio politesta so fundidas em uma s, chegando-se ento ao subestgio do monotesmo, presente nas religies judaico-crists. H nesse movimento um progresso da mente dentro da ordem teolgica, o qual, tendendo abstrao e reduo do nmero das causas na explicao dos fenmenos, principia o processo de substituio da imaginao pela razo. O segundo estgio o metafsico. Ele representa um notvel progresso, pois, embora se continue a procurar por causas essenciais, o princpio ou explicao no se encontra mais em presumveis realidades divinas, mas de algum modo na prpria natureza. O princpio explicativo posto nas prprias coisas, na medida em que estas encerram ou atuam de acordo com poderes naturais, "propriedades essenciais", "entidades abstratas". Tais entidades (como o ter e os espritos vitais) so, contudo, fices inefetivas, abstraes personificadas, que funcionam de maneira mais ou menos semelhante aos deuses no estgio teolgico. Elas servem somente satisfao de necessidades psicolgicas, e o seu carter fundamentalmente equvoco: elas so inerentes aos corpos fsicos, mas ao mesmo tempo inobservveis e diversas deles; elas no so seres sobrenaturais, mas tambm no chegam a fornecer explicaes verdadeiramente naturais para os fenmenos. E precisam permanecer suficientemente vagas e obscuras para se manterem fora do alcance da crtica. No estgio metafsico o conhecimento continua a ter um carter absoluto, na medida em que as "entidades" ou "propriedades", embora devendo pertencer prpria realidade, possuem em geral imutabilidade e necessidade, estando livres da contingncia e relatividade de cada coisa em concreto. No obstante, a reduo das causas transcendentes e sobrenaturais a princpios naturais e interiores s prprias coisas significa uma certa "racionalizao" na explicao do conhecimento. Ainda aqui, contudo, o saber continua a assentar-se no poder da imaginao, melhor dizendo, no uso abusivo de uma razo que se deixa guiar mais pela imaginao do que o apoio observacional o permite. O estgio metafsico , no obstante, intermedirio e provisrio, no passando de uma longa e laboriosa preparao para a emergncia do estgio positivo, que aquele no qual o saber se afirma como cincia. Para Comte, o estgio positivo instaurado com o abandono das indagaes teolgicas e metafsicas, evidenciadas como irrespondveis e estreis. O conhecimento procurado no mais absoluto, mas relativo condio e situao humana. Aqui no mais a imaginao que explica os fenmenos, mas a razo entendida como adeso ao dado, orientada para a ao operativo-instrumental. Essa a razo cientfica, que no busca mais uma causa essencial das coisas, mas a descoberta de leis, a dizer, a verificao observacional da vigncia de certas regularidades entre os fenmenos. O conhecimento dessas regularidades nos permite fazer previses e, em certa medida, dominar a natureza. Atravs disso as cincias tornam-se um instrumento a servio das necessidades humanas reais, em consonncia com os interesses e fins da sociedade. Para Comte, a funo efetiva dos dois primeiros estgios apenas a de preparar o caminho para o estgio positivo: somente atravs dos estgios teolgico e metafsico a mente humana rene foras para a perseverante observao dos fatos que acaba por conduzir cincia. Um exemplo muito claro disso foi a passagem da astrologia astronomia: a contnua observao dos astros, com vistas a auscultar o destino humano, acabou por conduzir a uma mensurao matemtica dos fenmenos celestes, a qual criou condies para o surgimento das teorias astronmicas. Em segundo lugar, a lei dos trs estgios se aplica ao nvel do desenvolvimento individual dos seres humanos, o que evidencia a sua raiz biolgica. Comte observou que somos telogos na infncia, pois vivemos em um mundo imaginrio, acreditando em seres mticos; somos metafsicos na adolescncia, quando, tendo desenvolvido o uso da razo, tornamo-nos capazes de especular, passando a extrair concluses de premissas as mais incertas; por fim, quando atingimos a idade adulta - na medida em que realmente conseguimos chegar a ela - tornamo-nos fsicos, admitindo somente o saber positivo, firmado e confirmado pela cincia. Por fim, a lei dos trs estgios tambm vem a se revelar ao nvel da organizao e funcionamento da sociedade. Para Comte, o estgio ou perodo teolgico durou at o fim da Idade Mdia, sendo constitudo por uma sociedade autoritria e militarista, dominada por sacerdotes e reis; da reforma protestante at revoluo francesa, as idias metafsicas passaram a adquirir predominncia na orientao da sociedade, instaurando-se o imprio da lei e dos direitos abstratos; mas foi s com a revoluo industrial que se tornou possvel o desenvolvimento de uma sociedade pacfica, na qual a vida econmica do homem passou ao centro das atenes. Nessa sociedade a cincia est destinada a exercer papel determinante na vida social, a qual acabar por ser organizada e regulada por uma elite de cientistas.

4. AVALIAO DA LEI DOS TRS ESTGIOS

A lei dos trs estgios sempre foi objeto de crticas. Responderei brevemente a elas, pois parece-me claro que a histria a tem confirmado, e que essa lei exige apenas correes de detalhes. H, primeiramente, objees provenientes de teorias alternativas. Como essas objees so externas e essas teorias no so muito plausveis11, no ser preciso discuti-las aqui. Quanto s objees internas, h duas mais importantes. Uma primeira, salientada por Habermas12, a de que a lei dos trs estgios , ela prpria, metafsica, pois no se baseia em fato observacional. A resposta que isso seria correto se precisssemos adotar uma concepo reducionista do fenmeno ou fato social ou cultural bsico, como se este devesse ser algo observvel imediatamente e sem pressupostos. Mas, primeiro, o prprio Comte quem denuncia uma concepo reducionista da cincia positiva, rejeitando-a sob o epteto de empirismo. Segundo, parece-me perfeitamente razovel conceber a lei dos trs estgios como uma inferncia para a melhor explicao, resultante da considerao de uma grande diversidade de fatos scio-culturais em sua progresso histrica. por dar coerncia multiplicidade desses fatos que essa explicao nos parece a primeira vista verossmil. E sua confirmao ou refutao pode ser feita pela considerao de fatos scio-culturais futuros, bem como atravs da investigao mais detalhada de fatos scio-culturais passados. Quanto ao ltimo ponto, o procedimento lembra aquele pelo qual uma teoria biolgica como a da evoluo das espcies pde ser comprovada. A segunda objeo a de que a lei dos trs estgios, quando aplicada sociedade, no corresponde adequadamente ordem de surgimento das cincias. Afinal, a matemtica j existia entre os gregos, em pleno estgio teolgico; e a astronomia e a fsica j existiam como cincias no estgio metafsico, antes da revoluo francesa e da instaurao do estgio positivo. Essa objeo foi devidamente respondida pelo prprio Comte13. Com base no que ele diz podemos considerar que, do ponto de vista da ordem social predominante, os estgios sobrepem-se parcialmente uns aos outros, melhor dizendo, elementos culturais de um estgio persistem em outros, ficando a identificao de uma ordem social como pertencente a um certo estgio na dependncia da predominncia relativa de seus elementos. Assim como no adulto alguns traos do adolescente e da criana podem persistir, e tambm no adolescente, e mesmo na criana, alguns traos do pensamento adulto podem precocemente surgir, o mesmo se d com o desenvolvimento da civilizao. A sociedade, em seu estgio positivo, s pode resultar de uma situao na qual as cincias fundamentais j se encontram em geral estabelecidas. Torna-se assim compreensvel que cincias mais gerais que surgiram muito antes, como a matemtica na Antigidade e a fsica no Renascimento, no pudessem deflagrar o estgio positivo ao nvel social. A prpria ordem hierrquica vigente entre as cincias explica, pois, o carter escalonado da positivizao da cultura e da sociedade. Essa dissincronia entre o desenvolvimento de idias cientficas e o da sociedade tambm ajuda a explicar a falta de assimilao de certas descobertas cientficas na Antigidade (e.g. a teoria heliocntrica), as quais, no podendo encontrar o meio cultural e social propiciador de uma recepo adequada, acabaram sendo rejeitadas ou esquecidas. Poderamos acrescentar que se quisermos admitir a existncia de leis gerais do desenvolvimento scio-histrico-cultural, precisaremos estabelec-las de maneira suficientemente vaga e flexvel para que elas faam jus prpria complexidade e variedade incoercveis desse domnio da investigao. Isso significa que o modelo a ser considerado no deve ser o das generalizaes universais, mas algo cuja vaguidade lembra, digamos, as leis estatsticas. Ou seja: elas devem ser entendidas em um sentido meramente tendencial, entendendo-se com isso correlaes de fenmenos inevitavelmente genricas e incertas, o que se d devido indefinida variedade de fatores imprevisveis que podem intervir na aplicao desta como de outras leis scio-histrico-culturais. apenas nesse sentido que se pode falar de uma lei dos trs estgios. Apesar disso, essa lei no uma generalizao acidental, pois a sua aceitao nos faz depreender que se uma outra civilizao, constituda de seres humanos como ns e em circunstncias semelhantes, se desenvolvesse at a aquisio do conhecimento cientfico, dado prpria natureza desses seres, ela passaria por fases de explicaes mitolgico-religiosas, seguidas de fases de explicaes especulativas, para s ento chegar a explicaes cientficas. E essa uma idia bastante razovel. Minha sugesto , pois, a de que, no essencial e em uma interpretao suficientemente flexvel, a lei dos trs estgios se sustenta. No que se segue pretendo ir um pouco alm, entrando em detalhes sobre a medida e a maneira como as concepes filosficas poderiam ser explicadas a partir da descrio comteana do estgio metafsico.

5. APROFUNDAMENTOS E APLICAO METAFILOSFICA DA LEI DOS TRS ESTGIOS

Comeando com o estgio teolgico, parece evidente que a mais primitiva ou originria forma de explicao dos fenmenos baseia-se em uma concepo animista de suas causas, resultante de uma projeo de caractersticas prprias dos seres humanos no mundo externo. Sem dvida, para os povos ditos primitivos, essa era a forma mais natural de explicar a natureza: catstrofes naturais, pestes, uma boa ou m colheita, tudo podia ser explicado pela interveno dos deuses. Isso patente na mitologia grega e em um poema pico bem conhecido como a Ilada: quando o dardo de Aquiles no acerta o adversrio, no sua a irriso; que algum deus do partido oposto interferiu, segurando o dardo no ar e desviando-o de seu alvo. Um ponto a ser notado, entretanto, que o estgio teolgico possui funes bem mais amplas do que a de preparar o caminho para o aparecimento da cincia. Aps Comte, outros pensadores tornaram mais claras as funes sociais e, digamos, psicolgico-afetivas da religio. Do lado psicolgico-afetivo, h a funo de amenizar a enorme insegurana que deve ter suscitado no ser humano a aquisio da conscincia de ser um animal mortal, vivendo em um mundo ameaador, sobre cujos constantes perigos ele no possuia qualquer controle. Certamente, a religio diminui essa insegurana ao sugerir a existncia de divindades protetoras, e que as limitaes da condio humana possam ser superadas pela troca de favores com tais divindades, entre eles a sobrevivncia prpria morte (Freud). Do lado social, h a funo de garantir o funcionamento e a preservao de comunidades sociais, na medida em que a divindade comum reforaria os vnculos sociais, unificando os membros de uma comunidade em torno de valores, obrigaes e ideais comuns (Durkheim). Diversamente, o que Comte mais salientou foi a funo psicolgico-cognitiva da crena religiosa: a funo de estabelecer uma maneira de conceber o mundo ao nosso redor, a qual seja capaz de organiz-lo e explic-lo, ainda que s na aparncia. O ponto que mais nos importa esclarecer aqui o da natureza dos agentes causais sobrenaturais referidos no estgio teolgico. De maneira geral podemos caracteriz-los como possuindo uma natureza mental, mas em um sentido hipostasiado, i.e., no sentido de uma fico falsamente considerada real. Para se entender melhor em que consiste o que queremos chamar de hipostasia do mental, podemos caracteriz-la de modo suficientemente genrico pela atribuio de certas propriedades s entidades hipostasiadas, as quais podem resumir-se em:

(i) a propriedade de serem hipermentais, no sentido de que seus pode- res mentais so alterados e/ou potencializados, freqentemente ao infinito; (ii) a propriedade de serem mentais-transcendentes, no sentido de que se trata de mentes geralmente consideradas como existindo indepen- dentemente do mundo fsico-material.

Assim, as divindades e fatores anmico-mgicos, resultantes de projees antropomrficas, podem ser por ns entendidas em termos de alteraes e potencializaes do mental, alm de sua transcendentalizao com relao ao fsico; o mental que, projetado, passa a possuir funes mgicas, que devem ir alm do que efetivamente conhecemos da ordem natural. H ainda uma outra propriedade que pode ser til na caracterizao de entidades hipostasiadas, que :

(iii) a propriedade de serem hiperfsicas, ou seja, fisicamente alteradas e/ou potencializadas, ou de deterem poderes hiperfsicos.

Do mesmo modo que a hipermentalidade uma hipostasia do mental, a hiperfisicalidade a hipostasia do fsico. Introduzo essa ltima categoria em parte com o objetivo de contemplar a idia de filsofos materialistas, como Epicuro e Hobbes, que supunham serem os deuses ou o Deus constitudos de uma tnue e indestrutvel forma de matria. Assim, mesmo com entidades fsicas ou com a forma fsica de interao, pode haver a hipostasia de agentes, que passam a ser hiperfsicos, no sentido de que suas naturezas e aes fsicas so alteradas e/ou potencializadas, por serem e por realizarem algo que est fora e alm daquilo que a natureza fsica, especialmente a do ser humano, capaz de fazer. preciso notar que, embora uma mesma entidade possa ser hiperfsica e tambm hipermental, uma mesma entidade no pode certamente ser hiperfsica e mental-transcendente (no obstante isso, uma entidade composta de propriedades poderia ter algumas propriedades hiperfsicas e outras hipermentais e mentais-transcendentes, sem contradio.) A maior dificuldade encontrada pelo materialismo metafsico que exclui o mental-transcendente, explicando o hipermental pelo hiperfsico, que, por s admitir entidades materiais, ele facilmente levado contradio quando se obriga a dotar as divindades, no s de propriedades hiperfsicas, como tambm de propriedades que parecem s poder pertencer ao domnio nico do mental-transcendente, tais como as da eternidade e imutabilidade. Com essa limitao, o discurso filosfico materialista acerca do hiperfsico tende a tornar-se uma especulao livre acerca da natureza oculta do mundo fsico, coisa que realmente foi feita pelos atomistas antigos (o que aponta, como em breve veremos, para uma limitao na idia de que a especulao filosfica deva sempre e por necessidade conter elementos antropomrficos). Falamos at agora de entidades mentais hipostasiadas. Mas podemos tambm falar das palavras e conceitos que as nomeiam, e que povoam o universo do homem primitivo. Embora essas palavras e conceitos objetivem fazer referncia principalmente ao mental hipostasiado (ao hipermental, ao mental-transcendente), como o que se tem como modelo efetivamente apresentado experincia apenas o mental e o fsico, tal como eles se nos apresentam no mundo em que realmente vivemos, o resultado que s indiretamente, atravs da aluso analgica ao conhecimento efetivo e compartilhado que os homens adquiriram do mundo fsico, que se consegue fazer com que a referncia ao mental-hipostasiado seja intersubjetivamente compreendida e aceita na falta das bases reais para a sua aceitao. As trs categorias acima introduzidas - hipermentalidade, transcendncia e hiperfisicalidade - podem parecer agora uma complicao suprflua. Mas elas evidenciaro a sua utilidade no que se segue, posto que sero usadas na elucidao da natureza dos conceitos metafsicos em geral. Passemos, pois, ao estgio metafsico. Nele ocorre um afastamento do antropomorfismo explcito. Busca-se a cincia. Mas no h ainda condies de haver cincia. E no havendo isso, o passo que se d adiante no encontra um solo firme que o suporte. Ento a explicao dos fenmenos passa a depender da suposio da existncia do que Comte chamou de princpios ou essncias ocultas. Apela-se geralmente a entidades e princpios metafsicos ambguos, de um lado sendo como se pertencessem ordem natural, mas de outro comportando-se misteriosamente, como se mantivessem ainda algo dos atributos das projees antropomrficas do estgio anterior. Ao exemplificar, Comte costumava ter em mente foras, atraes e repulses, que eram tidas como princpios, referindo-se geralmente a formas de pseudo-cincia imediatamente anteriores s cincias fundamentais, e de modo apenas alusivo metafsica tradicional (provavelmente por desconhec-la e subestim-la). Contudo teria sido muito mais interessante se ele tivesse dado maior ateno a uma anlise dos princpios explicativos no-observveis que a metafsica tradicional postula, pois esses seriam os princpios ou essncias mais caractersticos do estgio metafsico. Quero, pois, tentar estender essas sugestes de Comte aos conceitos e princpios que caracterizaram grande parte da filosofia tradicional, valendo-me para tal das distines categoriais inicialmente introduzidas. Para tal pode ser til lanarmos um olhar inicial sobre as origens da filosofia ocidental. No que concerne cultura, muito claro que na civilizao ocidental o estgio metafsico teve as suas primeiras manifestaes entre os filsofos pr-socrticos. Foram eles que, insatisfeitos com as explicaes mitolgicas, substituram os Deuses por entidades que deveriam atuar como princpios ltimos - entidades que, tal como eles as entenderam inicialmente, eram tais que deveriam reger a origem e o fim das coisas, alm de sustent-las em seu ser14. Quais as razes dessa substituio? Ao que parece, com o acmulo de novos conhecimentos empricos e tcnicos, com o desenvolvimento fragmentrio de explicaes cientficas, com a inevitvel relativizao das crenas proveniente do contato com outras culturas, as explicaes com base na vontade dos deuses perderam o poder de convico entre os pensadores gregos, enquanto, por outro lado, faltava em quase todos os domnios a possibilidade de se recorrer a explicaes que possussem um verdadeiro poder explicativo e preditivo, tal como ocorre na cincia. Ora, embora no se podendo saber como as coisas realmente so, sempre possvel tentar saber como em geral elas poderiam ser. Assim, movidos principalmente pela curiosidade intelectual, esses primeiros filsofos tentaram, seguindo a forma de constituio das explicaes naturalistas, instaurar algum princpio necessariamente vago e obscuro, de fato s alcanvel pela intuio filosfica bem direcionada; um princpio concebido como a suposta base explicativa para os fenmenos, uma base explicativa em si mesma talvez inescrutvel. Com esse fim, esses filsofos recorreram inicialmente a entidades observveis, como a gua, o fogo, o ar, tomando-as como princpios; mas logo eles as substituram por princpios inobservveis, como o infinito, o nmero, o ser, os tomos, estabelecendo com isso uma forma de explicao filosfica que importante porque foi de um ou de outro modo repetida em toda a tradio ocidental. Comte sugeriu que uma anlise dos conceitos metafsicos evidencia que eles dependem, para se fazer inteligveis, da ambigidade incoerente j aludida (razo pela qual ele chama tais princpios de equvocos ou contraditrios). Entendendo esses conceitos metafsicos como referindo-se a entidades metafsicas e aos seus modos de ao, ou seja, sua atuao como princpios, podemos dizer o seguinte. No que concerne s entidades referidas por tais conceitos, elas precisam em geral representar algo que deve ficar a meio caminho entre entidades anmicas hipostasiadas e entidades naturais, sejam elas fsicas ou mentais - as ltimas sendo as entidades aceitas pelo senso comum (como estados mentais, no ltimo caso, e os eventos fsicos observveis, no primeiro) ou justificadamente postuladas pela cincia (como os processos mentais, disposies, atitudes etc., estudadas hoje pela psicologia cientfica, e corpsculos e ondas, estudados pela fsica). Enquanto tais conceitos referem-se tambm a princpios de ao, ou seja, a modos de ao ligados s entidades por eles referidas, os referidos princpios devem encontrar-se a meio caminho entre a ao de entidades anmicas hipostasiadas e formas de causao natural explicveis por leis cientficas. Sob a perspectiva daquilo a que se referem, tais entidades e princpios, melhor dizendo, entidades-princpios (pois geralmente inseparveis) so certamente fices incapazes de se dar experincia, s podendo o discurso acerca delas ser tornado intersubjetivo na medida que os conceitos metafsicos a elas referentes, da mesma forma que os conceitos das divindades transcendentes, forem construdos de maneira indireta, por metforas ou analogias irresgatveis, feitas do material semntico retirado do conhecimento que realmente temos do mental e do fsico habitualmente (e hoje tambm cientificamente) experienciados. A inaceitabilidade cientfica dessas entidades-princpios no repousa, porm, em sua inexperienciabilidade. Se fosse s isso, elas poderiam adquirir um status similar, digamos, ao dos corpsculos e ondas descritos pela microfsica. Ocorre que essas entidades e princpios so fices que, ao contrrio de entidades postuladas pela cincia, no possuem poder explicativo ou preditivo capaz de legitimar a sua postulao: elas se assemelham mais ao ter da fsica clssica ou ao flogisto da qumica pr-Lavoisieur do que, digamos, s partculas subatmicas. A questo no , pois, a da irresgatabilidade das metforas, mas a de sua efetividade em termos de explicao e predio. Para fazer jus ambigidade essencial dos conceitos metafsicos sugerida por Comte, podemos recorrer, pois, a um duplo conjunto de caractersticas identificadoras. De um lado, consideraremos:

(a) As categorias empregadas na caracterizao das divindades, com a suposta referncia do conceito metafsico ao domnio do mental, entendido como mental-transcendente (i.e. do mental pretensamente transcendente, como se admite quan- do se recorre a divindade), ao hipermental (i.e., a pode- res mentais transformados), e mesmo ao hiperfsico (i.e., a poderes fsicos que a natureza no oferece realmente ex- perincia).

Do outro lado consideraremos:

(b) O mental-natural e, notadamente, o fsico-natural, tal como se pretende quando se recorre lei natural.

Segundo essa perspectiva, o conceito metafsico costuma ser uma espcie algo desconfortvel de amlgama, referindo-se em propores variveis s caracterstica apresentadas em (a) e em (b), ou ento, como veremos, a algo que nem (a) nem (b), mas que tambm no pode ser realmente outra coisa. Essas caracterizaes revelam a sua utilidade quando nos voltamos para os exemplos. Consideremos o caso da gua como princpio explicativo em Tales, o primeiro dos filsofos da tradio ocidental. Ele afirma que o princpio (a causa, o sustento e o fim) de tudo a gua, dando a entender que o momento do princpio-gua vivo e animado; como tudo penetrado pela gua, tudo repleto de deuses. Assim, o princpio-gua visto no s como uma entidade fsica natural (se considerarmos o naturalismo da escola jnica, a teoria dos quatro elementos etc.), mas tambm de algum modo como uma entidade hipermental e hiperfsica. Como no se apela aqui a deuses pessoais, tenta-se ao mesmo tempo uma explicao naturalista, que, embora excessivamente vaga para permitir comprovao prtica, satisfaz o desejo de obter compreenso especulativa de como, de um modo geral, as coisas poderiam eventualmente chegar a ser esclarecidas. Se no se obtm uma explicao concreta, h ao menos a direo desta, a forma de uma explicao. Essa ambigidade dos princpios com os quais se tenta a aproximao de uma explicao naturalista, geralmente sem se afastar por completo do recurso explicao que se vale de elementos mgico-anmicos, est em maior ou menor medida tambm presente em outros princpios dos filsofos pr-socrticos, como, muito claramente, no infinito (peiron) de Anaximandro - que divino - e no ar de Anaxmenes - o material do qual as almas so feitas. Ainda outro exemplo, importante porque extremamente influente, o do ser dos filsofos eleatas. Para Parmnides o ser, embora pertencendo physis, s se revela ao pensamento (nos), devendo pois ser hiperfsico, o que mais coerente, ou mental-transcendente, o que seria mais compreensvel, na medida em que ele explicitamente concebido como incriado, incorruptvel, perfeito, eterno, possuindo, dessa maneira, algumas caractersticas do Deus das religies monotestas. Mas o Ser parmendico, ao menos, tambm possui aspectos claramente naturais: ele considerado redondo e finito, tal como os objetos que se situam no espao, embora aqui tambm em um sentido hiperfsico, posto que no se revela aos sentidos, no sendo encontrvel em lugar algum. Desde os gregos, o recurso a certas essncias inobservveis, s entidades metafsicas em maior ou menor medida incognoscveis, que funcionam como princpios explicativos fundamentais que tendem a ser em alguma medida dotados de traos antropomrficos, passou a desempenhar um papel fundamental em toda a histria da filosofia ocidental, tendo essa forma de explicao durado at o incio de nosso sculo. Em razo disso, a mesma forma de anlise recm sugerida pode ser geralmente aplicada a outras entidades metafsicas que agem como princpios e que povoaram a histria da metafsica. Esse o caso do ser em Parmnides, da idia mxima do bem em Plato, da causa primeira de Aristteles, do Uno plotiniano, do Deus dos filsofos, o onideus ao qual tanto se recorreu na filosofia medieval e moderna, da substncia-natureza-Deus de Spinoza, da coisa em si kantiana, de seu eu transcendental, transformado em sujeito absoluto pelo idealismo alemo, da vontade schopenhaueriana, do indizvel do primeiro Wittgenstein, e, de forma um tanto extempornea, do ser heideggeriano (em muitas passagens substituvel pela palavra 'Deus' sem perda de sentido). Como a lei dos trs estgios deve aplicar-se de forma difusa e tendencial, e como os estgios fatalmente se sobrepem, que manifestaes do estgio metafsico tenham e precisem ter vida to longa torna-se algo compreensvel. Como j foi notado, do ponto de vista referencial, a aluso, mesmo que analgica e equvoca, ao domnio do mental e do fsico naturalmente dados um elemento necessrio prpria significatividade e compreensibilidade dos conceitos metafsicos. Considerando isso, uma anlise dos conceitos metafsicos como os recm aludidos nos sugere que eles possam ser apresentados sob duas formas bsicas: a da hibridez (forma inflacionada) e a da elusividade (forma deflacionada). No primeiro caso, o conceito metafsico mais ou menos rico, referindo-se pretensamente a uma variedade de supostos elementos hipostasiados (mentais-transcendentes, hipermentais, hiperfsicos), alm da referncia ao mental e ao fsico, tal como o senso comum ou a cincia os revelam a ns. Como tornar isso coerente provavelmente impossvel, recorre-se ao libi de intuies de natureza questionvel. A hibridez bem exemplificada em conceitos metafsicos dos filsofos pr-socrticos - pense-se no conceito de gua em Tales, que se refere a a algo fsico, mas aparentemente com um momento anmico, hipermental. No caso de conceitos metafsicos com forma elusiva ou deflacionada, pretende-se resolver a incoerncia pela negao de que possamos ter acesso experiencial, mesmo que indireto, entidade metafsica cuja existncia proposta. Pretende-se, pois, que o conceito metafsico seja significativo sem aluso ao nosso conhecimento do fsico e do mental pertencentes ordem natural, ainda que isso rigorosamente no chegue a fazer sentido. O exemplo mais notrio disso dado pelo conceito kantiano de coisa em si. O seguinte esquema resume essa diviso:

Conceitos HBRIDOS ELUSIVOS metafsicos: (inflacionados) (deflacionados) Entidadespostuladas:

(a) Entidades mentais e So semanticamente No devem eventualmente fsicas, dependentes da pre- s-lo. concebidas de forma tensa designao hipostasiada (entida- dessas entidades. des anmicas com a- tributos divinos etc.) e os seus modos de ao. (b) Entidades fsicas e So semanticamente No devem eventualmente mentais dependentes da desig- s-lo. normalmente aceitas nao dessas entidades. como pertencentes ordem natural, alm das leis naturais que regem o seu compor- tamento.

Um rpido exame mostra que essa diviso dos conceitos metafsicos em hbridos e elusivos realmente aplicvel. Casos de conceitos metafsicos hibridizantes so o da substncia infinita em Spinoza, que tambm merece o nome de Deus, embora no deva ser sobrenatural; essa substncia tambm natureza, que procede segundo as leis naturais, nela persistindo, porm, o trao antropomrfico de se tratar de uma atividade viva, que se ama a si mesma com um amor intelectual infinito15. H tambm o caso das idias platnicas: no se pretende que elas sejam nem mentais nem fsicas, mas ao se tentar explic-las recorre-se necessariamente a um material de metforas e elucidaes que retiram o seu sentido da aluso ao fsico e ao mental tal como normalmente so compreendidos (por exemplo: elas devem ser encontradas em enorme quantidade em um lugar que no lugar, o hiperurnio, sendo intudas por uma espcie de viso intelectual; embora sejam somente inteligveis, delas depende o ser das coisas visveis etc.). O mundo das idias assim supostamente esclarecido por meio de um sistema de aluses ao bem conhecido mundo dos sentidos. Contudo, diferena de outros conceitos introduzidos por analogia, o conceito platnico de idia sempre resistiu a uma explicao em termos no-analgicos, e como h razes para se pensar que a sua suposio seja suprflua, h tambm razes para descrer da existncia de tais entidades (argumento do captulo 7 desse livro). Um conceito metafsico pode certamente fazer referncia mais ao mental ou ao fsico, como o caso do Deus cartesiano, que sumamente bom, como um Deus pessoal, mas que tem uma funo de lei ao promover a realidade objetiva de nossas idias (como o Deus dos filsofos medievais, ele princpio metafsico e Deus religioso ao mesmo tempo). Exemplos melhores do que esse (posto que o fato do Deus dos filsofos ser o Deus judaico-cristo contingente) so a vontade de Schopenhauer (entendida como constitutiva do mundo noumnico) e as mnadas de Leibniz, ambas hipostasiando essencialmente o domnio do psicolgico (todas as mnadas devem possuir algum grau de conscincia etc.). Do lado oposto, os tomos de Demcrito e de Epicuro hipostasiam em certa medida o domnio do fsico. H tambm limites para a construo de conceitos metafsicos. Eles no podem pretender designar somente sob uma perspectiva, seja ela hipostasiante (a) ou naturalista (b), sob pena de recair, ou no ponto de vista religioso (perspectiva hipostasiante), ou em uma viso naturalista do mundo, fsico ou mental, apoiada no senso comum (perspectiva naturalista). No ltimo caso no teremos mais metafsica no sentido mais caracterstico, mas ainda assim parece que podemos ter especulao filosfica antecipadora da cincia. Essa pode ser, alis, uma raiz oculta da distino moderna entre metafsica e filosofia: a metafsica (entendida ao modo de Comte) trabalha com mais conceitos que combinam a perspectiva hipostasiante e a naturalista (a exemplo de Descartes e Leibniz); j a filosofia deveria permanecer mais ao domnio de uma investigao naturalista (a exemplo de Locke e Hume), a qual pode ser inclusive filosofia especulativa (ex: o atomismo antigo)16. Vejamos agora casos de conceitos metafsicos deflacionados ou elusivos. Tais conceitos so esvaziados, tanto quanto possvel, de relaes com o mundo mental ou fsico. Esse j era o caso do Uno ou Deus plotiniano, que era inefvel, dele nada sendo possvel predicar, a no ser o que ele no (o Uno ploniniano est na origem da teologia negativa). Semelhante recurso tambm utilizado por Kant com os conceitos intrinsecamente incognoscveis de coisa em si, do eu transcendental e de todo um mundo noumnico inacessvel experincia. No sculo XX o mesmo recurso foi utilizado por Wittgenstein, com o conceito do indizvel (que a linguagem apenas mostra), e por Heidegger com o seu conceito de ser, cujo mistrio pode ser desvelado, mas no efetivamente explicado, atravs de uma metafrica que s os meios da linguagem potica logram propiciar. Evitando incoerncias em seu contedo, o recurso a tais noes metafsicas deflacionadas paga o preo da vacuidade semntica, quando no o da esterilidade terica e da substituio do argumento pela retrica. Do que foi considerado parece deixar-se concluir que a metafsica especulativa (ao menos em sua forma tradicional) s tem razo de ser na medida em que ainda no estiver presente a possibilidade de compreenso cientfica da natureza, sendo essa falta por ela preenchida pelo recurso mstico a entidades anmicas hipostasiadas ou pelo recurso especulativo ao desconhecido natural, que apenas direciona o pensamento. A mente especulativa manobra sempre no sentido de tentar alcanar, e em alguns casos de dar a impresso (quem sabe no ilusria) de ter alcanado, mais do que concretamente capaz. Diferentemente do que Comte possa ter pensado, essa no precisa ser uma atividade primitiva nem obscurantista; a especulao metafsica como uma aposta em uma situao na qual pouco se pode fazer alm de apostar; ela organiza o nosso universo representacional em direes definidas, o que inevitavelmente necessrio. Ademais, no impossvel que a aposta seja ganha, que a direo apontada seja certa, que as metforas abram o caminho para um conhecimento mais seguro, ou que a sua rejeio nos aponte melhores alternativas. O esforo especulativo imiscui-se a necessidades psicolgicas do ser humano, como a de dirimir ansiedades atravs da organizao de uma imagem racional do mundo, mas ele responde tambm, principalmente em sua forma filosfico-especulativa, ao exerccio inteiramente legtimo da curiosidade intelectual prpria do ser humano. Quanto ao ltimo estgio, que marca a instaurao da cincia positiva, trata-se daquele no qual a explicao dos fenmenos feita no mais pela imaginao, visando a um controle da realidade que no fundo meramente imaginrio e que satisfaz necessidades meramente psicolgicas, mas pela razo cientfica, que promove um controle efetivo sobre a realidade independente de ns. Comte tinha toda razo em enfatizar que a diferena entre cincia e pr-cincia terminantemente qualitativa. No caso paradigmtico da fsica, por exemplo, temos (sem querer polemizar com o claro anti-realismo comteano) a investigao das medidas de massas, de foras, de relaes espacio-temporais entre elas, da combinao disso em estruturas (partculas, ondas) cujo comportamento regulado por leis impessoais... Sem dvida, o efeito da aplicao dessas leis nada tem de psicolgico. Elas demonstram a sua adequao ao permitir-nos fazer previses suficientemente precisas e objetivas, demonstrem-se elas verdadeiras ou no; e tais resultados podem ser intersubjetivamente aceitos em um contexto crtico, capaz de prevenir a influncia sub-reptcia de interesses ideolgicos escusos. O poder preditivo ainda - hoje como sempre - universalmente aceito pelos cientistas como a caracterstica mais marcante da cincia. Que a epistemlogos da cincia isso possa no parecer mais to bvio deve-se a um passageiro acmulo de contra-argumentos relativizadores, que acabou por turvar o bom senso de muitos17. Parece lcito concluirmos que Comte acertou no atacado - mostrando a grosso modo o que acontece - ainda que tenha errado no varejo - confundindo, reduzindo e rigidificando o processo. Ele errou ao crer que a sua poca estaria assistindo aos momentos finais da formao e ramificao das cincias, e esse erro deve t-lo encorajado em direo ao reducionismo sociolatrista que deu ao seu positivismo um sentido pejorativo, em certa medida merecido. Mas hoje, quando sabemo-nos s portas de um mundo esclarecido e potencialmente domesticado pela cincia, parece que devemos reconhecer em Comte o seu mais destacado profeta.

6. A. KENNY: UMA POSIO ALTERNATIVA

A lei dos trs estgios sugere que ao estgio metafsico deve seguir-se inexoravelmente a cincia, e que a filosofia (no sentido tradicional que estivemos considerando) deve esgotar-se na cincia e na filosofia da cincia. H filsofos, porm, que, mesmo admitindo que as cincias tenham nascido aps um perodo mais ou menos longo de reflexo filosfica correspondente, continuam a defender que ao menos certos domnios da filosofia continuaro para sempre filosficos: o sol seminal e tumultuoso de que falava Austin, embora perdendo grande parte de sua massa original, possui um ncleo que permanente e irredutvel. Assim pensa A. Kenny, no prefcio de seu livro sobre a filosofia da mente em Toms de Aquino, quando tenta justificar a atualidade das reflexes filosficas deste ltimo sobre as faculdades da mente18. Kenny comea fazendo algumas observaes acerca do que distingue a filosofia da cincia. Se considerarmos a histria da filosofia, escreve ele, podemos dizer que uma disciplina permanece filosfica enquanto seus conceitos permanecerem no clarificados e enquanto os seus mtodos forem controversos. Pode ser verdade que mesmo nas cincias estabelecidas isso tambm acontea. "Contudo", prossegue ele, "quando problemas podem ser colocados de maneira no ambgua, quando conceitos so apropriadamente estandartizados, e quando o consenso quanto metodologia de soluo emerge, ento ns temos uma cincia independente, mais do que um ramo da filosofia"19. A isso podemos acrescentar que a diferena bsica no est somente na falta de consenso metodolgico, mas notadamente na impossibilidade de se chegar, em filosofia, a um consenso quanto aos resultados: diversamente da cincia, a filosofia tem um carter inevitavelmente especulativo, no sentido de que praticamente impossvel que filsofos cheguem a uma concordncia acerca da verdade do que quer que seja que considerem merecedor de discusso20. Nesse mesmo texto, Kenny expe a maneira como para ele a filosofia d luz cincia: por um processo que ele chama de parturio ou fisso. Isso ilustrado pela exposio do problema do inatismo. O problema inicial teria sido: quais de nossas idias so inatas e quais so adquiridas? Essa questo dividiu-se em dois problemas, um psicolgico e outro epistemolgico. O problema psicolgico era: o que devemos hereditariedade e o que devemos ao ambiente? Enquanto o problema epistemolgico era: quanto de nosso conhecimento a priori e quanto a posteriori? A primeira questo foi passada psicologia experimental, no pertencendo hoje mais filosofia. A questo de quanto de nosso conhecimento a priori e quanto a posteriori no era uma questo acerca da aquisio, mas acerca da justificao de nosso conhecimento, e isso permaneceu, ao menos inicialmente, no domnio da filosofia. Mas tambm essa ltima questo sofreu um processo de fisso. Ela subdividiu-se em um conjunto de questes que so filosficas e em um conjunto de questes que no o so. As noes filosficas de um a priori e de um a posteriori ramificaram-se e refinaram-se em um nmero de questes, uma delas sendo "quais so as proposies analticas e quais so as sintticas?", sendo dada noo de analiticidade (segundo Kenny) uma resposta mais precisa nos termos de lgica matemtica. Restam, todavia, questes residuais acerca da natureza e justificao de verdades analticas. Comeamos, pois, com uma questo filosfica inicial confusa, que no seu esclarecimento se ramifica, cedendo partes cincia e deixando um resduo filosofia. A questo fundamental que Kenny finalmente se coloca se ao final desse processo nada mais ser deixado para ser abordado pela filosofia; se todo o questionamento no passar finalmente ao domnio de cincias independentes. De fato, escreve ele, se lanarmos o olhar s obras de Aristteles, por exemplo, veremos que a grande maioria daquilo que ele escreveu pertence hoje a disciplinas que no so mais consideradas filosficas. Considere-se a fsica, a biologia, a metereologia, que, entendidas como tais, so hoje matria de histria das idias e da pr-histria das cincias. O que ainda permanece merecendo estudo filosfico a sua tica, a sua filosofia da mente, a sua metafsica e a sua epistemologia. A pergunta crucial : ser que tambm essas matrias deixaro de pertencer filosofia? Kenny acredita que no. Ele cr que a teoria do significado, a epistemologia, a tica e a metafsica permanecero para sempre filosficas; mesmo que novos problemas no-filosficos sejam gerados pelo estudo dessas disciplinas para serem resolvidos por intermdio de mtodos no-filosficos, permanecer sempre um cerne irredutvel, que somente a filosofia capaz de abordar, razo pela qual o estudo de um filsofo como Toms de Aquino continua a valer o esforo. Kenny no expe razes para a sua opinio. Mas algumas pginas adiante21 ele tenta fundament-la indiretamente, ao sugerir uma concepo alternativa da natureza da filosofia, diversa de sua concepo como protocincia e em certa medida oposta a ela. Trata-se da idia de que a filosofia algo semelhante a uma forma de arte, e, como tal, produto do gnio de alguns indivduos excepcionais. Se tal for o caso, no h progresso em filosofia, nem a questo da passagem da filosofia para a cincia se coloca: nesse caso, Kant no superior a Plato, assim como Shakespeare no superior a Homero. Kenny reconhece o exagero dessa concepo - sem dvida, em praticamente todos os domnios da filosofia temos hoje muito mais a dizer do que tinhamos h alguns sculos. Mesmo assim, ele considera essa concepo essencialmente vlida, ao menos com respeito ao que ele chama de resduo filosfico, i.e., no tocante s indagaes metafsicas, epistemolgicas, ticas... Como razo para a adoo dessa concepo, ele observa que a filosofia em si mesma no questo de conhecimento, de aquisio de novas verdades, mas de compreenso (understanding), no sentido de ser uma questo de organizao do que j conhecido. A filosofia deve oferecer o que Wittgenstein chamava de bersichtliche Darstellung: uma representao sinptica, capaz de esclarecer e unificar nossa compreenso das coisas22. E isso requer, para Kenny, a interveno do gnio: "A filosofia to abrangente em seu objeto, to vasto o seu campo de operao, e a aquisio de uma viso filosfica sistemtica do conhecimento humano algo to difcil, que somente uma mente excepcional pode perceber as conseqncias mesmo do mais simples argumento filosfico, quando para ns a maneira que resta para compreender a filosofia estudando algum grande filsofo do passado".23 Se Kenny est certo, ento a lei dos trs estgios, ao menos no que ela diz acerca da passagem do estgio metafsico para o estgio cientfico, essencialmente incorreta: o que a filosofia perde para a cincia apenas aquilo que nunca lhe pertenceu legitimamente - no o seu cerne irredutvel.

7. CRTICA A KENNY E CONCLUSO

Quero finalizar com algumas objees um tanto cticas a respeito do que Kenny quis sugerir. Primeiro: prima facie arbitrrio - ao menos enquanto no nos forem apresentadas boas razes para tal - que se considere a teoria do significado, a epistemologia, a tica e a metafsica, como formando um cerne irredutvel cincia. preciso notar o quo diversas elas so umas das outras. A teoria do significado (como a teoria da verdade, dos nomes prprios etc.), apenas parte da filosofia da linguagem. J a metafsica no uma rea da filosofia no mesmo sentido da anterior: em seu sentido mais difundido, 'metafsica' o nome que damos investigao especulativa acerca da natureza ltima da realidade, ou seja, acerca da fundamentao ltima dos objetos de nossa investigao. Tal investigao atravessa praticamente todas as reas filosficas, pois em todas elas podemos apresentar questes e respostas metafsicas, i.e., relativas aos seus fundamentos. Assim, metafsica no s uma teoria geral dos universais, mas pode ser tambm uma filosofia da natureza; a filosofia da religio essencialmente metafsica; a filosofia dos valores baseia-se em decises metafsicas; questes de filosofia da histria, de filosofia social, como a da liberdade etc. certo que em domnios definidos do conhecimento, como na cincia, sendo os fundamentos bem definidos, no h lugar para a sua investigao metafsica. Mas o mesmo no acontece com as diversas reas da filosofia, que por no terem fundamentos consensualmente aceitos demandam intrinsecamente a especulao metafsica. Por isso podemos afirmar: tudo o que filosfico tem a sua metafsica! Da tambm a sugesto de que a recproca seja verdadeira: a filosofia como metafsica, para existir, tambm demanda a existncia da filosofia que no metafsica, devendo desaparecer com o desaparecimento da ltima. verdade que, entre outras, a filosofia da linguagem, a ontologia, a tica e a epistemologia permanecem como domnios centrais da atividade filosfica. Mas um defensor da completa absoro da filosofia pela cincia dir que isso reflete apenas o estado atual da filosofia e das cincias. Filsofos de outras pocas tenderiam a incluir no cerne irredutvel mais coisas do que aquilo que Kenny est disposto a incluir, e isso expe o casusmo de sua escolha. Tambm devemos notar que mesmo que a filosofia possa ser considerada em certa medida semelhante arte, isso no serve de objeo contra o seu suposto carter protocientfico. Se a metafsica essencialmente produto do raciocnio orientado pela imaginao, ento ela deve ter tambm uma funo que se assemelhe da obra de arte, como a de no possuir um fim fora de si mesma, a de produzir um prazer desinteressado etc. Ela se distingue da arte por ter uma preocupao com a verdade e com uma resposta racional a questes fundamentais. Por fim, quanto idia de que a filosofia , em seu cerne, questo de entendimento, interpretado como organizao do que j sabemos, devemos notar que essa uma idia inspirada em Wittgenstein e nos filsofos da linguagem ordinria, os quais compreenderam a filosofia em termos de anlise ou elucidao conceitual. Podemos perguntar em que medida isso lcito; em que medida, afinal, precisamos organizar o que j sabemos, se o prprio saber j , em si mesmo, organizao conceitual? E se essa organizao apenas explicitao de uma organizao j implicitamente presente em nossos hbitos lingsticos ordinrios, como muitas vezes se pretende, por que razo ela no pode vir a ser feita pelo prprio homem de cincia, da mesma forma que a organizao da gramtica de uma lngua feita pelos gramticos? E por que razo devemos supor que essa explicitao no possa chegar a um fim? Afora isso, a idia da anlise conceitual carece de limites distintos: em que sentido podemos dizer que Aristteles analisou o conceito de movimento, mas no que Einstein analisou o conceito de simultaneidade? Falta, vaga proposta de Kenny, um desenvolvimento que a torne convincente. Faltam, pois, razes que nos impeam de chegar concluso de que mesmo as reas mais nobres da filosofia no esto imunes possibilidade de se tornarem cientficas. Pode ser que essas reas s tenham at agora permanecido filosficas porque tratam de problemas excepcionalmente difceis e complexos, apelando para nveis variados de abstrao e pertencendo a uma variedade de domnios que se inter-relacionam de tal maneira que consider-los passa a demandar um trabalho reflexivo particularmente amplo e elaborado - mas isso no significa que, com a ampliao dos domnios cientficos, o trabalho correspondente no possa deixar aos poucos de ser especulativo para seguir os rumos mais previsveis da cincia. Na verdade, assim que muitos filsofos contemporneos vem a questo. Eis o que afirma o epistemlogo Keith Lehrer acerca da sua especialidade: "Ns sustentamos que a afirmao de uma distino entre filosofia e cincia terica falsa, tanto histrica quanto sistematicamente. Historicamente, claro que as cincias especiais separam-se da filosofia quando alguma teoria emerge tratando de um objeto circunscrito de uma maneira precisa e satisfatria. A filosofia permanece como o pote residual de problemas intelectuais irresolvidos. Atualmente, teorias do conhecimento ainda permanecem no pote. No queremos afirmar que o presente estudo ou outra pesquisa recente nos tenha levado ao ponto onde a teoria do conhecimento possa ser depurada em uma cincia especial, mas esperamos que estejamos nos aproximando dessa meta mais do que alguns suspeitam e outros receiam."24 Caso K. Lehrer e, em sua essncia, a intuio comteana de que a especulao filosfica pertence a um estgio intermedirio do desenvolvimento do saber humano estejam com a verdade, outras questes se colocaro. Uma delas seria a de se saber se no haver um fim tambm para a prpria cincia e, conseqentemente, para o prprio exerccio do esprito de investigao. Uma outra questo - mais prxima de nossa problemtica - seria a de se saber que forma tomaro os domnios cientficos que acabaro por se desenvolver como continuao da atual epistemologia, da teoria do significado, da tica... Tratar-se- de uma multiplicidade de teorias localizadas, respondendo a pequenas questes remanescentes, to especficas quanto separadas umas das outras? Ou tratar-se- de algo mais abrangente, constitudo por sistemas tericos talvez extraordinariamente complexos, nos quais cada parte seria um elemento necessrio na avaliao do todo, e capazes, finalmente, de oferecer uma resposta segura s grandes questes legadas pela tradio? (Podemos inscrever a teoria de Comte, refinada e corrigida, como candidata a um modesto exemplo disso.) A primeira sugesto mais adequada mentalidade contempornea, que me parece geralmente comprometida com um cientificismo reducionista; Kenny resiste a concluses como a de K. Lehrer porque a considera um corolrio inevitvel. Mas no h razes para que a segunda sugesto, na qual prefiro apostar, precise ser excluda. De fato, s no ltimo caso podemos ter a esperana de que a grandeza do pensamento filosfico tradicional - no sentido dado por Kenny de um saber abrangente - permanea de alguma forma preservada. Seja como for, se esses sistemas conceptuais complexos forem tais que suas conseqncias possam ser objetivamente avaliadas, se eles alcanarem suficiente consenso, se for possvel um progresso cumulativo a partir deles, eles no sero mais filosofia - ao menos no no tradicional sentido aportico da palavra - e sim cincia. Firmar-se- ento um domnio de teorizao cientfica abrangente, no qual sero consensualmente estabelecidas as solues de princpio para as questes remanescentes mais difceis da filosofia. possvel pensar assim, conquanto a nossa noo de cincia no esteja de antemo comprometida com critrios de cientificidade demasiado estreitos. Sem dvida, muito do que eu disse pode soar desalentadamente ctico aos ouvidos dos cultores da filosofia, mais do que aos filsofos. Soa como se serrssemos o galho sobre o qual nos sentamos. Minha opinio, contudo, a de que melhor assim. A metafsica tradicional, ainda que possa conter insights duradouros, cuja importncia dificilmente pode ser exagerada, ainda que tenha sido e que certamente ainda seja capaz de inspirar e orientar novas pesquisas, de fato em certa medida tambm existiu como uma especulao melanclica e enganadora - uma maneira de "ocultar desertos", no dizer crtico de Nietzsche. Nessa medida e aliando-se religio, ela no serviu apenas para saciar a curiosidade especulativa, mas tambm como forma de consolo para o esprito humano em um mundo de ignorncia e de carncia. J em um mundo esclarecido pela cincia e domesticado pelos meios da tcnica, a especulao destinada a confortar o esprito atravs da iluso tenderia a tornar-se um injustificado anacronismo.

Notas:

1 A. Kenny: Aquinas on Mind, London 1993, p. 4.2 J. L. Austin: Philosophical Papers, Oxford 1979, p. 232.3 C. F. Costa: "A conjectura filosfica", in: A Linguagem Factual (Tempo Brasileiro), Rio de Janeiro 1996. 4 J. P. Sartre: "O existencialismo um humanismo", in: Os Pensadores (Abril Cultural), So Paulo 1973, p. 27.5 Traduzo a palavra 'tat' por 'estgio' ao invs de 'estado', de modo a fazer juz ao carter dinmico dos processos denotados pelo conceito comteano.6 A. Comte: Cours de Philosophie Positive, Oevres, Paris 1968 (1830-1842), tomo 1, p. 71 (uma traduo portuguesa de captulos sobre as questes aqui consideradas, tambm do Discours sur L'esprit Positif, encontra-se na Coleo Os Pensadores, ed. Abril, S. Paulo 1973). 7 A. Comte: op. cit., pp. 70 e ss.8 D. L. Hull: Filosofia das Cincias Biolgicas (ttulo original: Philosophy of Biological Science), trad. ed. Zahar, Rio de Janeiro 1974, p. 15.9 Cf. Anne-Robert-Jacques Turgot: Rflexions sur la Formation et la Distribuition des Richesses, Heidelberg 1913 (1750), p. 10 e ss.10 A. Comte: Discours sur L'esprit Positif , Oevres, Paris 1968 (1844), tomo XI, p. 2 e ss. 11 Um exemplo a crtica de M. Scheler em "Probleme einer Soziologie des Wissens" (in: Die Wissensformen und die Gesellschaft, Leipzig 1920). Scheler sugeriu a existncia de diversos interesses e atividades culturais independentes, que, embora surgindo de um pr-estgio mtico comum, evoluem historicamente de forma independente e paralela. Sendo assim, Comte estaria confundindo um processo de diferenciao do esprito com um processo de desenvolvimento em estgios, quando o que realmente se d um processo de diferenciao, no qual se desenvolvem trs diferentes funes ou finalidades: a do saber do sagrado (religio), a do saber cultural (metafsica) e a do saber de domnio (a cincia positiva) - saberes esses que originariamente estariam fundidos em uma religiosidade primitiva e mtico-mgica. Para Scheler, o conflito entre esses domnios do saber s surge quando um deles passa a abarcar indevidamente o domnio do outro. Essa parece ser, contudo, uma alternativa claramente desconfirmada pela histria mais recente, que fala a favor do ponto de vista comteano. O que Scheler sugere pode, ademais, ser explicado sob uma perspectiva comteana: o surgimento de uma nova cincia modifica a metafsica e a religio, que devem acomodar suas concepes a um novo corpo de evidncias para reaver a sua plausibilidade. Isso suscita a impresso de um desenvolvimento autnomo da religio e da metafsica, quando na verdade com elas se d algo semelhante ao que ocorre com um regimento militar que, no intervalo de uma batalha na qual sofreu severas perdas, v-se na necessidade de reagrupar o seu contingente.12 J. Habermas: Erkenntnis und Interesse, Frankfurt 1973, p. 92. 13 Cf. por exemplo K. Thompson (ed.): Augusto Comte: Los Fundamentos de la Sociologia (trad. Fundo de Cultura Econmica), Mxico 1995, pp. 262-3.14 G. Reale: Histria da Filosofia Antiga, So Paulo (trad. port. ed. Loyola) 1993, vol. I, p. 48.15 B. Spinoza: Ethica, livro V, prop. 35.16 K. Popper discute interessantes exemplos dessa espcie de especulao antecipadora da cincia entre os filsofos pr-socrticos em Back to the Presocratics, in K. Popper: Conjectures and Refutations, London 1989. 17 A estratgia bsica, pela qual a crtica ao racionalismo metodolgico tenta relativizar a cincia, consiste, como sugeriu Popper, em exagerar dificuldades em impossibilidades (Cf. Normal Science and Its Dangers, in: I. Lakatos e A. Musgrave: Criticism and the Grouth of Knowledge, Cambridge 1974). Pretender que a astrologia, a alquimia e o curandeirismo possam estar em p de igualdade com, digamos, a astronomia, a qumica e a medicina, como quis Feyerabend, fazer uma concesso arriscada ignorncia e ao engodo. Para Comte a diferena no s existe, mas qualitativa. No primeiro caso nada se obtm, afora meros efeitos psicolgicos e scio-comportamentais; no segundo obtm-se previses objetivas, sobre as quais pode reger um consenso desinteressado.18 A. Kenny: op.cit.19 A. Kenny: op.cit. p. 4.20 C. F. Costa: op. cit. p. 12 e ss.21 A. Kenny: Aquinas on Mind, ibid. p. 9.22 L. Wittgenstein: Philosophische Untersuchungen, Frankfurt 1976, vol. 1, sec. 122.23 A. Kenny: Aquinas on Mind, ibid., p. 9.24 K. Lehrer: Theory of Knowledge, San Francisco 1990, p. 7.

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FICHTE E A METAFSICA DO SUJEITO

Somos da matria de que so feitos os sonhos, e nossa pequena vida circundada pelo sono. Shakespeare

Ao romantismo pouco importava o objetivismo realista da cincia natural e do senso comum, to fortemente valorizados pelo iluminismo. O que mais importava mente romntica era a exaltao subjetivista das paixes; e o que para isso mais contribua no era proveniente da cincia, mas do mundo da arte e da cultura. O grande movimento de idias que foi o idealismo alemo surgiu como a resposta mais amadurecida a esse novo clima intelectual do romantismo; e o primeiro filsofo a desenvolver um sistema capaz de satisfaz-lo em todas as suas conseqncias foi J. G. Fichte(1). Fichte ficou grandemente impressionado com o sistema kantiano, e em seus fundamentos a sua obra pode ser considerada uma tentativa de adaptar aos ideais romnticos o que ele havia aprendido com o estudo de Kant. Neste artigo quero ocupar-me expecialmente em expor e comentar os movimentos gerais de raciocnio que permitiram a Fichte reelaborar o esquema especulativo do idealismo transcendental sob a forma de idealismo absoluto.

1. ELIMINANDO A COISA EM SI

A primeira coisa a ser feita para se proceder transformao do esquema especulativo kantiano em idealismo absoluto era radicalizar as concluses da revoluo copernicana, desfazendo a sua ambigidade ontolgica em nome de um idealismo radical. Para isso era necessrio eliminar a coisa em si, o domnio noumnico correspondente ao objeto na independncia das faculdades cognitivas. Isso no foi difcil, posto que esse sempre fora o ponto mais dbil do sistema. Afinal, se a coisa em si realmente incognoscvel, no parece haver sentido em se afirmar que ela existe. Alm disso, a suposio da existncia da coisa em si parece contradizer os princpios da prpria analtica transcendental. A relao entre a coisa em si e o mundo fenomnico s parece ser explicvel pela aplicao das categorias. Mesmo que se diga que a coisa em si "determina" os fenmenos, como entender essa relao, seno em um sentido causal? Ora, mas s poderemos dizer que a coisa em si causa os fenmenos se aplicarmos a categoria de causalidade a uma relao na qual o primeiro termo - a coisa em si - se encontra fora do mundo fenomnico. E mesmo que supusssemos que tal determinao no fosse causal, ela ainda assim seria uma relao, o que por sua vez significa que ao menos a categoria de relao aplicada prpria coisa em si. Em qualquer dos casos o resultado que - contra os princpios da Crtica - categorias so aplicadas para alm dos limites da experincia possvel. verdade que Kant sugeriu ser possvel aplicar indeterminadamente categorias no esquematizadas coisa em si, mas no claro que isso faa sentido. Por outro lado, dizer que a hiptese da coisa em si um mero "instrumento epistmico", como por vezes se faz, apelar para uma espcie de faz-de-conta que solapa o frgil fundamento do realismo emprico ainda pretendido por Kant. Uma vez eliminada a coisa em si, encontramo-nos j no mbito do idealismo: tudo o que resta a prpria mente, e o universo inteiro precisa ser de algum modo explicado em termos de contedos de conscincia. Tal era a espcie de concluso que satisfazia o impulso romntico de exaltao da subjetividade. Um outro caminho consistiria em investigar se Kant no teria ido longe demais com a sua revoluo copernicana - mas essa era desde j uma opo muito pouco aprazvel mentalidade romntica. Fichte no apenas eliminou o objeto como coisa em si, o que de resto j tinha sido proposto por outros. Sua grande idia foi completar esse movimento, elevando infinitamente o papel do sujeito ao torn-lo criador do mundo. Para tal, ele tomou de emprstimo de Kant a idia do Eu como atividade transcendental de sntese e reinterpretou-a de maneira a satisfazer a vontade do mais narcisista dos filsofos.

2. O EU TRANSCENDENTAL KANTIANO

Faz-se agora necessrio introduzir uma distino, cuja origem kantiana, entre o que pode ser chamado de Eu transcendental (que designarei com 'E' maisculo), o "grande Eu", e o eu fenomenal, emprico ou psicolgico, o "pequeno eu". O eu fenomenal no parece possuir nada de excessivamente misterioso. Ele diz respeito ao modo como cada pessoa dada a si mesma. Independentemente do que Kant possa ter pensado, o fato de sermos capazes de descrever-nos parece proporcionar um elemento caracterizador do eu fenomenal: ele o eu passvel de descrio. Com efeito, posso descrever meu "eu" como o de uma pessoa com tais e tais atributos psicolgicos e memrias, que me identificam perante mim mesmo e os outros. O mesmo nunca pode acontecer com o Eu transcendental, referido por Kant por meio de nomes como apercepo transcendental, apercepo pura e unidade transcendental da autoconscincia(2) - esse Eu elusivo, permanecendo alm de toda a possibilidade de experincia e descrio da experincia. Por que Kant precisa supor a existncia de um obscuro Eu transcendental, no se contentando com a suposio de um mero eu fenomenal? O raciocnio que conduz mais diretamente a essa suposio pode ser reconstrudo da seguinte maneira: primeiro, Kant percebeu que, para as representaes tidas por algum serem identificadas como suas, seria necessrio que elas estivessem acompanhadas por um nico Eu. A suposio de que haja um nico eu acompanhando todas as minhas representaes necessria preservao da unidade de minha conscincia: se no h um nico e idntico Eu-pensante, capaz de acompanhar todas as minhas representaes, no tenho como represent-las como minhas, fragmentando-se com isso a unidade de minha conscincia. Torno-me ento um "eu multicor", mudando com a mudana das representaes. Vejamos agora, sob a fora de tal assuno, o que acontece quando considero as representaes que tenho de mim mesmo. Se o Eu unificador da conscincia deve acompanhar todas as minhas representaes, ento ele deve acompanhar tambm as representaes (ou descrie