estudos clássicos unb vol.2

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  • 8/20/2019 Estudos Clássicos UnB vol.2

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    UNESCO | CÁTEDRA UNESCO ARCHAI - UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA | IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA | ANNABLUM

    C O L E Ç Ã O F I L O S O F I A E T R A D I Ç Ã O

    H I S T Ó R I A , L I T E R A T U R A E A R Q U E O L O G I

    ESTUDOSCLÁSSICOS

    GABRIELE C ORNELLIG ILMÁRIO G UERREIRO DA C OSTA

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    Brasília, 2013

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    EsclarecimentoA UNESCO mantém, no cerne de suas prioridades, a promoção da igualdade de gênero, em todas asuas atividades e ações. Devido à especificidade da língua portuguesa, adotam-se nesta publicaçãoos termos no gênero masculino, para facilitar a leitura, considerando as inúmeras menções ao longdo texto. Assim, embora alguns termos sejam grafados no masculino, eles referem-se igualmente agênero feminino.

    Os autores são responsáveis pela escolha e pela apresentação dos fatos contidos neste livro, bem como pelaopiniões nele expressas, que não são necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organização. indicações de nomes e a apresentação do material ao longo deste livro não implicam a manifestação de qualquopinião por parte da UNESCO a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região ousuas autoridades, tampouco da delimitação de suas fronteiras ou limites.

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    Gabriele CornelliGilmário Guerreiro da Costa

    (Orgs.)

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    UNESCORepresentação no Brasil

    Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9º andar70070-912 – Brasília/DF – BrasilTel.: (55 61) 2106-3500Fax: (55 61) 2106-3967Site: www.unesco.org/brasiliaE-mail : [email protected]/unesconaredetwitter: @unescobrasil

    Imprensa da Universidadede Coimbra (IUC)Rua da Ilha, 13000-214Coimbra, Portugal

    Cátedra UNESCO ArchaiUniversidade de BrasíliaCaixa Postal 449770904-970Brasília/DF

    Publicado pela Cátedra UNESCO Archai e pela Imprensa da Universidade de Coimbra (IUC)em cooperação com a UNESCO.

    Esta publicação é fruto de uma parceria entre a Representação da UNESCO no Brasil,a Imprensa da Universidade de Coimbra, a Cátedra UNESCO Archai e a Annablume Editora.

    © UNESCO 2013. Todos os direitos reservados.

    Revisão técnica: Setor de Ciências Humanas e Sociais da Representação da UNESCO no BrasilRevisão: Unidade de Publicações da Representação da UNESCO no Brasil e Cátedra UNESCO ArchaiProjeto gráfico: Unidade de Comunicação Visual da Representação da UNESCO no BrasilIlustrações: Fábio Vergara Cerqueira, Cora Dukelski e Paulo Faber

    Estudos clássicos II: história, literatura e arqueologia / organizado por Gabriele Cornellie Gilmário Guerreiro da Costa. – Brasília: Cátedra UNESCO Archai, AnnablumeEditora; Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013.190p. – (Coleção filosofia e tradição; 2).

    Incl. Bibl.ISBN: 978-85-7652-183-9

    1. Filosofia 2. Ensino de filosofia 3. Filosofia da história 4. Estudos culturais5. Civilizações antigas 6. História 7. Literatura 8. Arqueologia 9. Metodologia científicaI. Cornelli, Gabriele (Org.) II. Costa, Gilmário Guerreiro da (Org.) III. Cátedra UNESCOArchai IV. Universidade de Coimbra

    Impresso no Brasil pela Annablume EditoraImpresso em Portugal pela Imprensa da Universidade de Coimbra

    http://www.unesco.org/brasiliamailto:[email protected]:[email protected]://www.unesco.org/brasilia

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    Coleção filosofia e tradição

    A coleção “Filosofia e tradição” é um reflexo das atividades da Cátedra UNESCOArchai, que, desde 2001, promove investigações, organiza seminários e elaborapublicações com o intuito de estabelecer uma metodologia de trabalho e constituirum espaço interdisciplinar de reflexão filosófica sobre as origens do pensamento

    ocidental. O objetivo fundamental consiste em compreender, com base em umaperspectiva cultural, a nossa tradição, isto é, de onde viemos, para que possamoscompreender nossos caminhos presentes e desejos futuros. Nesse sentido, visandoa uma apreensão rigorosa do processo de formação da filosofia e, de modo maisamplo, do pensamento ocidental, os problemas que orientam as pesquisas daCátedra UNESCO Archai são de ordem histórica, ética e política. Trata-se de umareação ao mal-estar experimentado com a forma excessivamente presentista de secontar a história desse processo de formação, forma que pensa a filosofia comoum saberestanque, independente das condições históricas que permitiram osurgimento desse tipo de discurso. A proposta de trabalho historiográfico-filosóficoda Cátedra procura, portanto, lançar um olhar diferente sobre os primórdios dopensamento ocidental, em busca de novos caminhos de interpretação éticos,políticos, artísticos, culturais e religiosos. Este trabalho dedica-se, em particular, aenraizar o “nascimento da filosofia” na cultura antiga, e se contrapõe às lições deuma historiografia filosófica racionalista que, anacronicamente, projeta sobre o

    contexto grego valores e procedimentos de uma razão instrumental estranha àsmúltiplas e tolerantes formas dológosantigo. A questão é politicamente relevante,

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    em virtude da influência que ainda mantém essa “narrativa” das origens dopensamento sobre a compreensão da atualepistêmeocidental. De fato, na tentativade justificar sua pretensão à verdade absoluta e universal dacultura dos vencedores,a ciência e as culturas ocidentais servem-se de ummito das origens, fundamentado

    nessa mesma visão presentista e asséptica da filosofia clássica. Esse mito, aliáutiliza a diversidade da cultura ocidental em contraposição – e não em diálogo com as outras culturas e visões de mundo que a globalização aproximou de maneimais forte nos últimos anos. O que esta coleção deseja, portanto, é realizar umolhar sobre o passado, sobre as origens do pensamento ocidental, que se revelaextremamente atual e contemporâneo.

    Gabriele Cornelli

    Editor da coleção filosofia e tradição

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    Sumário

    Apresentação ................................................................................................................9

    Parte I:profa. dra. Sandra Lúcia Rocha

    Literatura grega ..........................................................................................................15Capítulo I : Representações do amor na literatura grega .........................................17Capítulo II: Ecos homéricos em representações da morte em Atenas .......................29

    Parte II:prof. dr. José Luiz BrandãoLiteratura romana .......................................................................................................37

    Capítulo III: A representação da Roma viva por meio dos epigramas de Marcial ..........39Capítulo IV: Os césares segundo Suetônio: elementos dramáticos e novelísticos ..........67

    Parte III:prof. dr. Fábio V. CerqueiraHistória grega .............................................................................................................83

    Capítulo V: Sentimentos íntimos femininos vistos pela poesia imagéticados pintores de vaso: representação iconográfica do casamentoe do amor matrimonial na cerâmica ática (séculos VI e V a.C.) .......................85

    Capítulo VI: Efeminação e virilidade, dos modernos aos gregos,dos gregos aos modernos: desnaturalizando noções, diversificando

    a homo/heterossexualidade ........................................................................119

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    Parte IV:profa. dra. Renata GarraffoniHistória romana ........................................................................................................147

    Capítulo VII: Pensando conceitos para estudar a história de Roma ........................14Capítulo VIII: O exército romano: diferentes maneiras

    de pensar sobre Roma e seus exércitos .....................................................155

    Parte V:prof. dr. Pedro Paulo FunariArqueologia ..............................................................................................................163

    Capítulo IX: Arqueologia clássica: os inícios ..........................................................16

    Parte VI:prof. dr. Sílvio MarinoMetodologia da pesquisa em estudos clássicos ..........................................................173

    Capítulo X: Questões introdutórias ......................................................................175

    Capítulo XI: Problemas de interpretação dos textos antigos ..................................183

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    1. Universidade de Brasília, coordenador da Cátedra UNESCO Archai e Presidente da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos.2. Universidade Católica de Brasília e pós-doutorando na Universidade de Brasília (Cátedra UNESCO Archai).

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    Apresentação

    Prof. dr. Gabriele Cornelli1Prof. dr. Gilmário Guerreiro da Costa2

    Muitas vezes se indagou sobre os motivos de persistirem os estudos clássicos aolongo da história, em geral, e em nossa época, mais especificamente. De ondeproviria seu encanto e sedução? A história da recepção dos textos clássicos antigosnotabiliza-se por respostas percucientes a essa questão, dentre as quais vem apropósito destacar a amplitude das pesquisas e os planos múltiplos oferecidos notratamento dos seus objetos de investigação. Mostra significativa desse movimentopode atestar-se no segundo volume do Curso de Introdução aos Estudos Clássicosque ora oferecemos aos nossos leitores, com trabalhos que articulam história,literatura e arqueologia. No arremate desta publicação, uma seção é dedicada aproblemas metodológicos peculiares a essa área de pesquisa.Este volume consta de seis partes. Inicia-se com estudos em torno a aspectosimportantes da literatura grega, escritos pela profa. dra. Sandra Lúcia Rocha, daUniversidade de Brasília (UnB). Lida com dois temas complementares em sua aparentantítese: as representações do amor e da morte na literatura grega, os quaishaveriam de fundar toda uma tradição incessantemente revisitada e reinventada.

    No que tange ao tema do amor, a autora evidencia a força formadora do tema noOcidente, não raro motivada por distorções e exageros consideráveis na representaçãoda cultura grega: ora vista enquanto espaço e tempo de costumes dissolutos, oraimaginada na qualidade de nostálgica era de liberdade erótica. Tais extremosrespondem a simplificações que obstam uma análise mais acurada do tema. Haveriaainda outras duas dificuldades nesse gênero de estudo: o fato de ser a literaturaamorosa grega escrita na maior parte das vezes por homens, e a grande profusão

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    de caminhos experimentados por esses textos. Isso posto, a autora enfrentará taidificuldades mediante estudo, tanto quanto possível, da escrita de mulheres, eorganizará o seu trabalho acerca das representações do amor em três grupos: amoentre homem e mulher, entre mulheres e entre homens.

    Na literatura grega, a tonalidade erótica no amor entre homem e mulher sobressaantes ou fora do casamento. Neste, tende a esmaecer-se, tornando-se em afeto, oque implica, no enfraquecimento do desejo, perder os traços do amor, por lhe seagora escassa a visita de Eros. Em acurada análise de passagens dos poemashoméricos, a autora evidencia o quanto o arrebatamento erótico no matrimônioocorre em situações excepcionais. O amor entre mulheres, por sua vez, pelaevidências de que dispomos no momento, parece ter sido prática menos assentculturalmente, se comparada ao homoerotismo masculino. De qualquer forma, su

    elaboração artística encontra forma rica e delicada nos poemas de Safo. Somoconduzidos, assim, da poesia épica para a lírica, apresentados ao quadro rico evariegado da literatura grega. Por fim, no que se refere ao amor entre homens, autora sublinha tratar-se de prática culturalmente estabelecida na época, o que oatestaria todo um quadro literário e iconográfico. Em uma sociedade ausente dinstituições de formação educacional, recorria-se com frequência aos symposia, nosquais os jovens se inseriam em espaço pedagógico mais aprimorado, o que inclua iniciação erótica. O quadro formativo era amplo, desde a poesia à partilha dvalores éticos. No intercurso erótico, evidenciava-se a relação entre um homemaduro e outro mais jovem, que se notabilizava pelo tom afetivo, raiz de umfidelidade transposta futuramente para a cena política. No âmbito literário, aparecespecialmente na prosa do século V a.C., como por exemplo, em Tucídides, a cuanálise a autora dedica considerável espaço.O segundo texto da profa. Sandra ocupa-se do tema da morte, cuja compreensãoacha-se intimamente ligada à questão da vingança e da honra, articulada por via

    diferente no caso da morte individual e da coletiva. No tocante à primeira, intentose desde a Lei de Drácon, em 621 a.C., impor limites consistentes à prática dhomicídio enquanto resgate da honra. É um horizonte sobremodo fértil para análise do tema conforme disposto nos poemas homéricos, sobretudo em Aquilepremido que se sentia, na “Ilíada”, por vingar a morte do amigo, Pátroclo. Promemanter um propósito incoercível de reconquistar para si e para o amigo a honrque o assassínio cometido por Heitor lhes roubara. Em belo diálogo com Vernana autora sustenta a necessidade da morte do herói, uma vez que a sua honra,

    medida da sua vida, não mais se pôde resgatar. A proximidade de som e sentidoentre honra (timé) e vingança (timoría) sugere o fato de se buscar reparação,

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    mediante a vingança, da honra ferida. Amiúde se intentava satisfazê-la no tribunal,recorrendo-se à ação do Estado, que se encarregava de julgar a sua pertinência,seja pelo interesse em proteger a piedade religiosa da cidade, seja pela relevânciaeducativa do evento, passível de evitar a recorrência de comportamentos julgadosindesejáveis pelo Estado. Em diversos outros níveis também avulta o liame entrehonra e morte, como é o caso da oração fúnebre, objeto de sensível exame no texto.De aspectos da literatura latina ocupa-se a segunda parte deste volume, a cargodo prof. dr. José Luiz Brandão, da Universidade de Coimbra (UC). A princípiointeressa-lhe o estudo da representação da Roma Antiga conforme se lê nosepigramas de Marcial. Aqui se sublinha o caráter vivo do modo de inserir essacidade na literatura, pois não interessa ao escritor um registro arqueológico, masartístico e repleno de movimento. Conforma os traços das suas personagens comesse objetivo. A mordacidade de Marcial alia com arte rara o senso espirituoso e acompreensão profunda do sofrimento das vidas a que seus versos oferecem a tessitura.Sua Roma viva lida com a difícil articulação entre ter e ser e com o belo e o horrendoNo primeiro caso, por exemplo, oferece o molde de uma crítica às graves assimetriassociais em Roma, não com o intuito de palmilhar o caminho da subversão, masprecisamente com o receito de que ela se efetiva. Move-o, portanto, um impulsoconservador. Nos tipos inesquecíveis que então dispõe, sobressaem-se os caçadores

    de heranças; os que parasitam em diversos jantares; os novos-ricos; e profissões,dentre as quais a advocacia, que, segundo o poeta, não oferecem muitos rendimentos,se o seu praticante for honesto... Configura-se assim todo um quadro com o qualo poeta submete aocastigat ridendo moresos contornos do ridículo na relação assimétricaentre as classes, desde as que se enchem de orgulho com o trato bajulatório depessoas despossuídas de bens, até a ginástica exaustiva de muitos ao propugnarempor agradar os superiores na luta pela sobrevivência diária.O segundo texto, um pouco mais breve, mas não menos denso, examina a obra“Vida dos césares”, de Suetônio, a partir de uma questão instigante: os elementosficcionais em uma narrativa que se pretende histórica. Tome-se o caso de César:move-se no livro muito mais próximo de uma forma teatral do que de umarepresentação estritamente factual, além do farto e hábil uso de recursos narrativos.Desde o plano tenso do embate entre vício e virtude nas ações de Augusto, aoplano degenerativo da vida de Tibério, urde-se um texto capaz de oferecer tantointeligibilidade histórica, quanto narrativa, ampliando consideravelmente o quadro

    hermenêutico de aproximação da vida activa dos imperadores romanos, e por viade consequência, oferta por entre as fímbrias desses homens um olhar sobre

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    a vida e a sociedade da época. Caracteres teatrais a conformar a figura de Calígulo uso de expedientes de retardamento narrativo na apresentação de Cláudio,preparatório dakatastropherepresentada por Nero, são alguns dos muitos recursosliterários farta e ricamente urdidos por Suetônio em sua biografia. Por toda a obr

    recursos tomados à comédia, ao romance sentimental e à tragédia se disseminamexplicando parte considerável do seu encanto imperecível.O prof. dr. Fábio V. Cerqueira, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), encarr-se da terceira parte, dedicada à análise de aspectos da história grega antiga. Emum de seus textos, focaliza a representação pictórica da intimidade da vidafeminina da mulher ateniense, conforme se veem em vasos áticos. Avultam-se cenas ligadas ao casamento e os divertimentos no espaço interior da residência, gineceu. É ao primeiro tipo que se dedica o texto, movido pela investigação dabordagem dos sentimentos femininos nessa série iconográfica, em um caminhdiverso do palmilhado por uma historiografia hegemônica, que reputava ser casamento entre os gregos antigos em tudo infenso ao afeto e ao amor. Certamento matrimônio entrelaçava-se a um conjunto de práticas econômicas e políticas, sepor facultar aos descendentes os meios de partilha da herança, seja por lhesoferecer os direitos de cidadania pertencentes aos pais. Esse quadro institucionano entanto, fez com que muitos historiadores negligenciassem o papel dos sentiment

    femininos no interior da vida conjugal. Seguindo de perto os resultados dos estudde Claude Calame, o prof. Fábio articula cuidadosamente uma leitura mais sensíve apropriada do cotidiano desses espaços familiares, julgando assim indevido hiato entre casamento e desejo, conforme o sustentou, por exemplo, setores de uminvestigação de jaez feminista. Estaria longe de significar, portanto, a anulação dsentimentos da noiva. As narrativas iconográficas analisadas pelo autor ofertariam umsensível inserção poética no universo dos sentimentos amorosos no casamento gregDa relação entre homossexualismo e heterossexualismo trata o segundo texto dprof. Fábio, movido pelo intento crítico de desmontagem de aparatos discursivque buscam naturalizar o tratamento da questão. Com uma fluência agradável, emparte devida a uma apresentação oral da qual se originou, o seu escrito discorresobre os benefícios do estudo da história de épocas e culturas afastadas no tempoe no espaço, exercício passível de oferecer certo estranhamento com respeito ideias e procedimentos que se naturalizaram em nossa época. Rompe-se a pretensatemporalidade dos valores, matriz do esquecimento da sua feição transitória

    relativa ao tempo e ao espaço. Tal se lhe afigura vetor necessário à análise daefeminação na Grécia Antiga, reveladora de outras modalidades de leitura d

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    sexualidade nessa cultura. Em uma passagem especialmente esclarecedora eperspicaz, sublinha o quanto os preconceitos têm de jogo entre as ações permitidase a transgressão dessas regras – transgressão essa que exibe o caráter deartefato, de jogo, precisamente de tais regras.

    Ainda no âmbito dos estudos históricos, depara-se-nos a contribuição da profa. dra.Renata Garraffoni, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), na quarta partedeste volume. Roma é seu objeto de estudo, que se inicia com análise preparatóriaem torno aos conceitos fundadores desse gênero de investigação, atendo-se aocontexto do seu desenvolvimento e ao modo como seriam relidos e reinterpretadosem períodos posteriores. Resiste-se dessa maneira a um objetivismo acrítico, como seu intento de sobrevoar as teias contextuais de produção de significado peloshistoriadores. Em vez disso, a autora opta pelo exame de temas importantes na

    história romana, tal como o dos gladiadores, evidenciando seu contexto deelaboração e sua recepção posterior. Texto e contexto se entrelaçam intimamentenesse tipo de pesquisa.É a esse respeito assaz esclarecedor o artigo que a profa. Renata dedica ao estudodo exército romano. Sublinha o lugar de destaque dessa instituição em diversossetores da vida romana, dado um percurso histórico marcado por conflitos com osmais diversos povos durante as guerras de conquista, a exigir um apuro especialna organização dos seus militares, que permitiria a Roma constituir um impériode notável extensão. Tal percurso dá azo a que se reflita sobre as formas de seescrever o passado, mormente devido ao fascínio que exerceria a história romanasobre militares diversos ao longo da história, sobressaindo, no caso, estudos dehistória militar. E visto que a história se lê a partir de modelos inter-pretativos queos estudiosos colhem da sua época, a autora julga oportuno atentar-se para ascríticas pós-coloniais dirigidas precisamente a aspectos da história militar. Se noséculo XIX, marcado pelo imperialismo europeu, abundavam estudos que preten-diam extrair da história romana lições militares importantes, a partir dos eventosem torno do 11 de Setembro de 2001, o interesse passa a residir nas margens detodo o discurso triunfalista, com a atenção agora residindo no modo como osromanos lidavam com a perda, bem como no sofrimento dos povos conquistadose dos escravos. Tudo isso acena para uma maior diversificação dos estudos,conforme o testemunha o diálogo com a arqueologia, a servir-se de traços da culturamaterial (por exemplo, ânforas, lápides etc.) capazes de mover as pesquisas paraalém dos temas ligados à dominação de povos por Roma.

    Contribuição fundamental a essa discussão é oferecida, na quinta parte, pelo prof.dr. Pedro Paulo Funari, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Esclarec

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    ter sido a arqueologia clássica pioneira nos estudos de arqueologia. O Iluminisme a obra de Winckelmann exerceram impulso decisivo nessa direção, mormente âmbito dos estudos dedicados a Roma, que se desenvolveram com notáveceleridade a partir do século XIX, beneficiados pelos novos rumos técnicos e

    industrialização. O interesse inicial moveu-se em direção a grandes edifícios, cuescavações mudariam a feição da cidade, e inscrições, as quais abriram vias fértede investigação de objetos os mais diversos. Notabiliza-se, assim, o desenvolvimede uma ciência hoje crucial nos estudos clássicos, de cujo diálogo bem se beneficia filosofia, a história e a literatura.O volume não poderia encerrar-se de modo mais oportuno: detém-se em considrações metodológicas guiadas com segurança e desvelo pelo prof. dr. Sílvio Marida Universidade de São Paulo (USP) e Unicamp. Explorando inicialmente a etimoldo termométodo, o autor sublinha tratar-se de um instrumento com vistas a tornarmais efetivos os resultados de uma investigação, cujo arremate é, não obstantematéria controversa, sobretudo no âmbito das assim chamadas humanidades, parmarcar a sua diferença com respeito às ciências exatas. Os textos não são um dadobjetivo da natureza, mas uma interpretação inserida no âmbito dos diversosextratos da sua época e cultura. É o movimento de um trabalho marcado pelainterpretação de interpretações. Tal assesto poderia facilmente sugerir a defesa d

    um relativismo irrefreável, mas não é essa uma conclusão necessária. Um bométodo ofereceria limites desejáveis a essa operação, precisamente a sorte deesclareci-mento que o prof. Sílvio apresenta. Acima de tudo, cumpre ater-se a uelemento crucial em pesquisas em estudos clássicos: o texto. Para esse fim, é mistconceder-se a devida atenção às línguas em que foram escritos, a uma predisposiçãao diálogo interdisciplinar e à análise do contexto histórico no qual se inserem escritos antigos. São notas efetivamente úteis e passíveis de fomentar bons trabalhoO segundo texto do autor aprofunda essas questões, desdobrando alguns dos

    principais problemas na interpretação da obra dos pré-socráticos e de Platão, bemcomo orientações sobre a peculiaridade da indicação das citações nesses tipotextuais. Sua defesa da atenção à intenção do texto, em vez da intenção autoralé, sob todos os aspectos, crucial ao entendimento crítico das obras, propensa afazer avançar efetivamente os estudos consagrados a essa área.Nossa expectativa é a de serem os textos reunidos neste volume um meio valiosde pesquisa e aprimoramento nos estudos clássicos, inspirando, esclarecendo

    fortalecendo o ânimo dos seus leitores na dedicação a uma fonte abundante dereflexão e beleza.

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    Profa. dra. Sandra Lúcia RochaUniversidade de Brasília (UnB)

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    Capítulo I

    Representações do amor na literatura grega

    O amor é algo único, como uma tapeçaria que é tecida comfios extremamente diversos, de origens diferentes. Por trásde um único e evidente ‘eu te amo’ há uma multiplicidadede componentes, e é justamente a associação destescomponentes inteiramente diversos que faz a coerência do’eu te amo’. Em uma extremidade há um componente físicoe, pela palavra físico, entende-se o componente biológico,que não se reduz ao componente sexual, mas inclui oengajamento do ser corporal. No outro extremo, encontram-se os componentes mitológico e imaginário; incluo-me entreaqueles para quem o mito e o imaginário não representamuma simples superestrutura, e muito menos uma ilusão,

    mas, sim, uma profunda realidade humana. (Edgar Morin,2011, p. 26)

    Como em várias culturas, o amor se manifesta de múltiplas formas na Grécia Antiga,mesmo quando escolhemos um determinado período de tempo para investigá-lo.O amor, como sentimento culturalmente determinado que é, envolve hábitos eatitudes que variam no tempo e de indivíduo para indivíduo durante determinadoperíodo e região. Codificações culturais prescrevem essas variações. Dando ênfase

    à reflexão sobre o amor na literatura grega, veremos como alguns desses códigosfuncionam na Grécia Antiga.

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    3. Edgar Morin fala da “verdadeira disjunção entre o amor vivido como mito e como desejo” (MORIN, 2011, p. 23).

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    Bem observa Simon Goldhill que, quando o Ocidente se inquieta com questões qdizem respeito ao amor e à sexualidade, sobretudo dos homens, a Grécia Antigemerge ou como um fantasma da depravação ultrajante ou como o paraíso perdidda liberdade sexual (GOLDHILL, 2004, p. 66) – visões obviamente simplificad

    do passado. Assim, ao abordarmos esse assunto, é necessário, em primeiro lugaadotarmos a perspectiva do antropólogo que se esforça conscientemente paradespir-se de seus preconceitos ao estudar determinada cultura. Só assim poderemoentender um pouco da Grécia Antiga quanto a dois aspectos que os gregosconsideravam tão fundamentais para a continuidade da vida: amor e sexo. Esspar assim se coloca porque, diferentemente de concepções amorosas que hojeem dia buscam separá-los na experiência humana3 – concepções cujos traçospodem também ser rastreados entre os gregos antigos –, amor e sexo constituíam

    um par inextrincável para a maior parte dos gregos dos Períodos Arcaico e ClássiA potência divina de Afrodite está em estimular a geração da vida, para a quaa prática do sexo é condição sine qua non no universo humano, enquanto Erorepresenta as atribulações emocionais que o desejo físico, para a continuação despécie, pode provocar. Portanto, Afrodite e Eros não existem para representar uamor puramente espiritual.Há que se considerar ainda, à guisa de introdução, que a maioria das evidência

    literárias das representações do amor são produzidas por homens, poetas ou prosadores, fato que, por si só, ilustra a preponderância de uma certa visão masculinsobre o tema. O fato de nos terem chegado representações masculinas não significentretanto, que vozes femininas tenham sido de todo caladas no que diz respeitoà expressão do amor. Não é somente Safo que nos deixa seu registro excepcionanão menos marcante, na história da literatura grega, mas também Corina, Erina Nossis, e outras poetisas ainda pouco conhecidas, cujos fragmentos têm sidorecentemente estudados (GREENE, 2005). Devido à importância e extensão docorpuspoético da poetisa de Lesbos, se comparada às outras, nos restringiremos à suavaliosa contribuição quando abordarmos a representação do amor por voz femininPara tratar do tema, distinguimos três tipos de representações do amor que seencontram nos textos gregos e que, de resto, são as que mais povoam nossoimaginário e despertam nossa curiosidade sobre o universo cultural da Grécia Antquanto a esse aspecto: o amor entre homem e mulher, o amor entre mulheres e oamor entre homens.

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    4. As traduções da “Ilíada” utilizadas neste texto são de Frederico Lourenço (ver bibliografia).

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    O amor entre homem e mulherEntre os gregos, a relação amorosa entre homem e mulher encontra sua expressãomais erótica antes ou fora do casamento. Quando a moça é virgem e está prestesa casar-se, ou quando ainda é recém-casada, o desejo do marido se manifesta de

    forma ardente; mas, após o casamento, o amor erótico parece diluir-se em certaafetividade que toma seu lugar (GOLDHILL, 2004, p. 50). Nesse caso, não se tratamais exatamente de amor, pois não há Eros, não há desejo; mas de afeto produzidopelo respeito e por boa dose de convenções sociais e familiares. Quandorepresentado na literatura, o desejo entre cônjuges marcado por Eros normalmente,associa-se à tragédia ou a situações trágicas ou muito excepcionais dentro dedeterminada narrativa. É assim que, na épica homérica, Zeus é surpreendido pelodesejo súbito que sente pela esposa, Hera, quando a deusa decide interferir juntoa ele, para favorecer a reação grega na Guerra de Troia. Após ter recebido deAfrodite uma cinta com todos os encantamentos do amor, Hera aproxima-se deZeus, de modo dissimulado, informando estar de partida para visitar Oceano e Tétis.Tomado de desejo nesse momento, diz-lhe o soberano Olímpio:

    Hera, para lá também poderás ir mais tarde:voltemo-nos agora para o prazer do amor.Pois dessa maneira nunca o desejo de deusa ou mulherme subjugou ao derramar-se sobre o coração no meu peito,nem quando me apaixonei pela esposa de Ixíon,que deu à luz Pirítoo, igual dos deuses no conselho;nem por Dânae dos belos tornozelos, filha de Acrísio,que deu à luz Perseu, o mais valente dos homens;nem pela filha do famigerado Fênix,que me deu como filhos Minos e o divino Radamanto;nem por Sémele ou Alcmena em Tebas,esta que deu à luz Héracles, seu filho magnânino,ao passo que Sémele deu à luz Dioniso, alegria dos mortais;nem pela soberana Deméter das belas tranças;nem pela gloriosa Leto – e nem mesmo por ti própriame apaixonei como agora te amo, dominado pelo docedesejo.(Ilíada4, XIV, 313-328)

    A situação é tão incomum, que, ao externar sua estupefação diante do repentinodesejo que lhe desperta a deusa esposa, Zeus apresenta uma lista de mulheres, de

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    5. Em toda a poesia arcaica, termos que se referem aleitosão usados em referências metafóricas ao contato sexual entre amantes(CALAME, 1996, p. 47).

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    relações extraconjugais, todas dignas de menção por lhe terem provocado desejincomparável até então, das quais nascera uma prole não menos digna de registroPois é fora do matrimônio que o Olímpio está habituado a ser tocado por Eros. Coefeito, no presente instante, é graças à cinta especial de Afrodite, que a auxilia, qu

    Hera consegue abalar eroticamente o ímpeto do marido. Nem ela própria, comesposa, havia anteriormente despertado tamanho desejo – diz Zeus –, salvo emseus primeiros encontros. De fato, a situação coloca-se de tal modo em nível dexceção, que o narrador homérico buscará a semelhança desse encontro entremarido e mulher na primeira vez em que Hera e Zeus fizeram amor:

    Assim que a viu, o amor [eros] envolveu-lhe o espíritorobusto,tal como quando primeiro fizeram amor [ philoteti ],

    deitados na cama, às ocultas dos seus progenitores.(Ilíada, XIV, 294-297)

    Por outro lado, o decoro e o respeito que o matrimônio devia manter entre cônjugeà distância dos arroubos eróticos, manifesta-se na resposta de Hera a Zeus:

    Se o que tu queres agora é deitar-te em amornos píncaros do Ida, isso estaria à vista de todos!Como seria se um dos deuses que são para semprenos visse a dormir e depois fosse contar a todos os deuses?Pela minha parte já não poderia regressar à tua casa,depois de me levantar do leito, pois isso seria uma vergonha.Mas se é essa a tua vontade e se é agradável ao teucoração,tens um tálamo, que te construiu o teu próprio filho,Hefesto, tendo ajustado às ombreiras portas robustas.Vamos então deitar-nos lá, visto que o leito é o teu desejo.(Ilíada, XIV, 330-340)

    Ao que lhe responde Zeus:Hera, não receies que algum deus ou homemobserve o ato, tal é a nuvem dourada com quete esconderei. Nem o próprio Sol nos descortinaria,embora nenhuma luz veja mais agudamente que a dele.(Ilíada, XIV, 342-345)

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    É preciso que uma nuvem, dourada como Afrodite, envolva o cume do monteIda para que a esposa possa deitar-se5 em amor com o marido fora do tálamo –aposento onde a conjunção carnal e erótica entre cônjuges é apropriada. Com essasolução, arremata Homero, destacando o estatuto insólito da parceira sexual em

    tais circunstâncias: Falou; e nos seus braços tomou a esposa [ parakoitin] o filho deCrono.(Ilíada, XIV, 346)

    Com essas considerações, não se quer dizer que o amor entre homem e mulher,porém, se reduzisse a um intercurso sexual de hábito, sem desejo e destituído deafeto.Eros(amor-desejo) e philotes(afeto) aparecem associados, embora essaassociação se destaque mais frequentemente na representação das relaçõeshomoeróticas masculinas da poesia mélica, em que a confiança entre homens, emrelações eróticas, se transfere para a vida política (CALAME, 1996, p. 44-45). É quephilotes marca um traço de confiança, de afetuosidade, que pode acompanhar oarrebatamento erótico, embora não lhe seja necessário. Dada a composiçãocoetânea da poesia épica e lírica, não é de nos surpreender que, na citação donarrador homérico acima, em que se descreve o súbito efeito de Hera aos olhos de Zeus,este seja tomado deerose philotessimultaneamente, termos que o tradutor traduziu

    por amor em português.Outro exemplo homérico do caráter afetuoso que prepondera no matrimônio, poucopovoado de expressões de desejo erótico entre homem e mulher, é encontrado noúltimo encontro de Heitor e Andrômaca. Diz Andrômaca ao esposo:

    Heitor, tu para mim és pai e excelsa mãe; és irmãoe és para mim o vigoroso companheiro do meu leito.(Ilíada, VI, 429-430)

    Uma leve evocação ao amor-desejo se vislumbra em “vigoroso companheiro domeu leito”, pois é, em primeiro lugar, a conjunção de afetos familiares o que definea importância de Heitor na vida de Andrômaca. A menção ao leito constitui, todavia,uma referência indireta ao amor erótico, em linguagem bastante discreta. Da mesmaforma, a Heitor preocupa tão somente a condição de escrava a que será submetidaAndrômaca, quando ele morrer. Não se lhe aventa a possibilidade de que, tambémcomo escrava, seja Andrômaca forçada a ter relações sexuais com seu futuro dono.

    Outra expressão que o amor entre homem e mulher pode adquirir é a de um desejonão concretizável, impossibilitado. Na poesia dos cantos corais, em que o amor é

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    6. Fragmento n. 26 da edição de Page (= P): D.L. Page (ed.)Poetae melici Graeci . Oxford: Clarendon Press, 1962 (FERRATÉ, 2000,

    p. 172).7. Tradução minha.8. É comum na poesia arcaica a associação de Eros com a doçura, muitas vezes evocando mel e abelhas

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    manifestado, em geral, por homens maduros, e dirigido para jovens, moços omoças, encontra-se, frequentemente, a impossibilidade da realização do desejoAlcman, poeta de Esparta e autor de partênios, canção entoada por um coro devirgens em festivais cívico-religiosos, celebra o amor sem reciprocidade o

    dificultado por alguma condição ou circunstância impeditiva. O fragmento a segem que o sujeito poético dirige-se a mulheres virgens, exemplifica essa temáti(fragmento 26 P6):

    Não mais, ó virgens de doce e sagrada voz,as pernas me levar podem. Ah, ah, se eu fosse um alcatraz,que sobre a flor da onda junto com as alcíones voa,e tem valente coração – ave sagrada, púrpura como o mar!7

    Eis a voz do homem envelhecido, de condições físicas precárias, diante das virgede voz adocicada pelo charme de Eros8. Seu desejo é poder constituir um paramoroso à semelhança do que narra o mito de Alcíone e Ceíce, cuja felicidade fazia comparar-se a Hera e Zeus, irritando o casal olímpico de tal forma, que otransformou em pássaros, o alcatraz e a alcíone, os quais representam no poema leveza do enlace repleto de energia e vigor para desfrutar do dulcíssimo amor. importante lembrar que a virgindade entre os gregos não é vista como sinônimde castidade, como na tradição judaico-cristã, mas apenas como uma fase de

    intensa sensualidade das jovens, entre a infância e a idade adulta (RAGUSA, 201p. 165). Assim, não há elemento algum de perversão, no sentido mais comum dtermo, no desejo do homem mais velho pela virgem.

    O amor entre mulheresA existência de relações homoeróticas entre mulheres gregas – apesar de contacom alguma tradição interpretativa entre os estudiosos – tem sido maisrecentemente objeto de controvérsia, tendo em vista as poucas evidências de fatem que se apoiam os que acreditam que o homoerotismo feminino tenhacorrespondido a uma prática culturalmente bem estabelecida como a dahomossexualidade masculina (RAGUSA, 2005, p. 68 e ss.). No entanto, não vemproblema em refletir sobre a representação do homoerotismo feminino, por trata-se de uma possibilidade de interpretação que não deve ser descartada, quando o

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    9. Tradução (e notações) de Joaquim Brasil Fontes (ver bibliografia).

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    textos a permitem, e que tampouco precisa estar associada de imediato a umdiscurso excessivamente marcado por questões de gênero. Além disso, apesar depoucos, há poemas de Safo que favorecem sobremaneira tal interpretação. É o casodo seguinte fragmento:

    ] que morta, sim, eu estivesse:ela me deixava, entre lágrimas_ _ _ _ _ _e lágrimas, dizendo: [‘Ah, o nosso amargo destino,minha Psappha: eu me vou contra a vontade’._ _ _ _ _ _Esta resposta eu lhe dei:‘Adeus, alegra-te! De mim,

    guarda a lembrança. Sabes o que nos prendia a ti_ _ _ _ _ _– se não, quero trazer de novoà tua memória [ ]... [ ] as lindas horas que vivemos_ _ _ _ _ _

    ] de violetas,de rosas e aça[flor]... [ ] nós duas lado a lado

    _ _ _ _ _ _[ ] tecendo grinaldas[ ] teu delicioso colo

    ] flores [_ _ _ _ _ _

    [ ] e perfumes[ ]

    ] feitospara rainhas;

    _ _ _ _ _ _ungias com óleos, num leito [delicioso [e o desejo da ausente [

    nem ] grutas] danças

    ] ou sons9

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    10. Segundo West, com relação ao grupo de Safo, a visão mais aceita atualmente é a de que jovens mulheres fossem confiadas a sgrupo para instrução em música e talvez em leitura e escrita (WEST, 1994, p. xiii).

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    O poema apresenta a expressão do amor impedido, nesse caso pela partida de umdas envolvidas na relação amorosa. Não há dúvida de que são duas vozes feminincujo discurso direto se reproduz no poema, e, apesar do vocativo Safo, não temrelevância a discussão biografista quanto a se tratar de expressão de experiênci

    pessoal da própria poetisa ou de sua persona poética. Nisso, são acertadas, nogeral, as considerações de Ragusa (2005, p. 303). Por outro lado, o poema descreva dor da ausência da mulher amada sentida por outra mulher, que a recorda a partide experiências compartilhadas, descritas por uma linguagem povoada de imageneróticas. Gentilli oferece uma interessante interpretação da existência de relaçõhomoeróticas em Lesbos, que poderia acomodar uma possível leitura do poemacima no quadro do homoerotismo feminino. Havia em Lesbos, assim como eEsparta, grupos de mulheres que partilhavam de rituais religiosos comuns e relaçõpessoais, marcadas por fortes identidades, afetos e rivalidades; no interior dessegrupos, as relações entre mulheres eram variáveis, podendo ter o caráter oficial dvínculo afetivo de compromisso ou ainda compreender um breve período diniciação de jovens à vida adulta, anterior ao casamento com homens (GENTI1990, p. 72 e ss.)10. Talvez o poema acima represente uma situação desse tipo, emque a jovem amada se despede da outra com a qual compartilhara momentos deintimidade no grupo (“Sabe o que nos prendia a ti”), encaminhando-se agora par

    o matrimônio (“eu me vou contra a vontade”). Se, por um lado, os poemas de Safimpõem certa cautela a leituras que neles privilegiem somente o homoerotismfeminino (RAGUSA, 2005), por outro lado tais conjecturas, quando possíveis, cono caso do poema acima, não devem ser ignoradas, tendo em vista algunstestemunhos antigos e a pesquisa de tantos outros sérios estudiosos do assuntonas últimas décadas.

    O amor entre homens

    Ao contrário das relações eróticas entre mulheres, o relacionamento homoeróticentre homens, amplamente atestado na iconografia e descrito em textos de prosae poesia da Grécia Antiga, é tema de consenso entre os estudiosos. Nãosurpreende o fato de que, em uma cultura que se desenvolve sob o controle dohomens, também sobre o homossexualismo masculino nos tenham chegado maievidências. Na Grécia Arcaica, as relações erótico-afetivas entre homens desenv

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    veram-se provavelmente no interior dos sumposia, encontros masculinos deentretenimento e discussões, regados a vinho, que ofereciam também aoportunidade de os jovens se iniciarem à vida social. Segundo Calame, a iniciaçãoà vida adulta – e que inclui experiências eróticas – que se dá no sumposium

    corresponde ao espaço destinado à educação em uma sociedade, como a grega,em que não há instituição estabelecida para a formação educacional (CALAME,1996, p. 120 e ss.). Esse espaço, que se fundamenta em laços de afeto entre osconvivas, compreende não só a recitação de poemas como também a exaltação devalores éticos que devem ser transmitidos aos jovens. Portanto, o amor erótico quese manifesta nesses contextos tende a ocorrer especificamente entre um homemmaduro e um jovem rapaz, e normalmente vem acompanhado de afetuosidade( philotes), que será a base igualmente de ligações e fidelidades políticas,posteriormente, entre eles, quando o jovem já tiver se transformado em homemadulto e atuante politicamente na cidade (CALAME, 1996, p. 126-127). Goldhillsalienta que o desejo, nesse caso, se distribui entre papel ativo e passivo, cabendoao homem adulto (o amante) o ativo tanto na expressão e no sentimento do desejoerótico quanto na transmissão de valores e ensinamentos, não sendo ele bem vistosocialmente caso se coloque na posição de amado (GOLDHILL, 2004, p. 52).A prosa do século V a.C. tem inúmeros exemplos de representação do amor entre

    homens e das repercussões sociais de suas relações. Um dos mais notáveis éapresentado por Tucídides, em sua versão da história da sucessão de poder durantea tirania dos pisistrátidas. O relato sobre a relação amorosa surge a propósito deuma referência à tirania de Pisístrato, que teria sido lembrada pelo povo ateniensequando os cidadãos associaram a mutilação das estatuetas de Hermes em Atenas,em 415 a.C., cuja responsabilidade estava sendo investigada, a uma tentativa detomada de poder de tipo tirânico. O objetivo primeiro da menção ao Pisistrátidas écorrigir informação histórica que Tucídides julga estar equivocada entre osatenienses e os demais gregos. Diz Tucídides que quem sucedeu no poder,quando Pisístrato morreu, foi seu filho Hípias, e não Hiparco, como acreditava amaioria dos atenienses. É nesse contexto que se insere o episódio que aqui nosinteressa:

    A ação ousada de Aristógiton e Harmódio foi levada a cabopor causa de um incidente de natureza amorosa [di’ erotiken

    xuntuchian], por meio do qual, após eu relatá-lo de formamais demorada, vou demonstrar que nem os outros

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    [gregos], nem os atenienses nada dizem de exato tantoacerca de seus próprios tiranos quanto acerca deste fatoocorrido. [...] Quando Harmódio estava no auge de suabrilhante juventude, Aristógito, um homem da cidade,cidadão de posição social mediana, o tinha como amante.

    E Harmódio, ao ser cortejado por Hiparco, o filho dePisístrato, embora por ele não tivesse sido seduzido,denuncia o caso a Aristógiton. Este, sofrendo por amor[erotikos perialgesas] e com medo do poder de Hiparco, deque este pudesse aproximar-se de Harmódio à força,planejou tão logo quanto possível, a partir da posição socialque detinha, a dissolução da tirania. E, nesse ínterim,Hiparco, como, apesar de novamente ter cortejado Harmódio,não o seduzisse de modo algum, e não querendo tomarnenhuma atitude violenta, como se não fosse por isso,de uma maneira encoberta preparava-se para insultá-lo(Tucídides, VI, 54,1-4).

    A empresa ousada fora o assassinato do filho do tirano Pisístrato, Hiparco, que casal, juntamente com outros companheiros políticos, cometem por ocasião da fespanatenaica – o que Tucídides narra nos capítulos seguintes. No entanto, o queinteressa na representação da relação amorosa na narrativa tucidideana éexatamente seu caráter subordinado a questões políticas, pois isso revela umpouco da complexidade dos relacionamentos homoeróticos entre homensgregos. Tucídides apresenta a situação destacando especificamente o que érelevante para se compreender como tais relações funcionavam. Harmódio estno “auge de sua brilhante juventude”, e Aristógito é um homem adulto, jáestabelecido socialmente. Hornblower salienta que a expressão grega aqui traduzidcomo “de posição social mediana” significa, na prática, “de classe média”, e é

    indicativa da influência política que Aristógito podia ter em Atenas, a tal ponto q já sinalizaria para a existência do grupo de companheiros com as mesmasconvicções políticas que apoiará o casal no assassinato (Tucídides, VI, 56-5(HORNBLOWER, 2008, p. 442). A narrativa também mostra como o jovem amé subordinado e ligado ao amante por laços de confiança, já que, tão logo écortejado pelo filho do tirano, denuncia o caso a Aristógito. A reação deste ciumenta e passional, descreve Tucídides (“sofrendo por amor”), mas é provocatambém por uma consciência do poder político do rival (“com medo do poder dHiparco”). Ora, a relação entre homens, nesse caso, está intrinsecamente ligada

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    um contexto de formação do cidadão jovem para sua posterior atuação política,estabelecendo um elo que vai além do simplesmente amoroso-sexual. Tucídidesfecha o excurso resumindo que a conspiração ocorrera “por causa de ressentimentoamoroso” (di’ erotiken lupen) e que, após o assassinato, a atuação dos tiranos

    recrudesceu, gerando insatisfações entre os atenienses, que acabaram por derrubara tirania posteriormente.O período a que se reporta o relato de Tucídides é o do século VI a.C., entretanto,nos séculos V e IV a.C. abundam referências a tais relações, algumas famosas, comoa de Sócrates e Alcibíades. Do Período Arcaico ao Período Clássico, portanto,encontram-se várias evidências desse tipo de relação homoerótica entre homens,em contexto de educação e formação do indivíduo jovem para a vida adulta emsociedade – o que permite afirmar que esse é um traço cultural relativamente estávelda Grécia Antiga, ao longo de alguns séculos. O amor, nesses casos, não se restringea um encontro afetivo e erótico, mas se desenvolve no seio de grupos masculinoscom afinidades diversas, de natureza intelectual a política, como se viu no trechoacima.Eis, portanto, alguns casos de representação do amor na literatura grega antiga.Como se pode ver, algumas práticas amorosas dos gregos que aparentemente aindase mantêm na vida ocidental são, todavia, hoje destituídas dos caracteres culturaisespecíficos que as determinavam no contexto grego, como as relações homoeróticasentre mulheres e entre homens, que emergiam, em geral, de uma necessidade socialde introdução e iniciação de jovens em práticas sociais do mundo adulto. Cabeainda frisar que as evidências literárias podem fornecer uma visão bastante limitadada vida grega quanto a esse aspecto, tendo em vista o forte caráter oral da Gréciadurante toda a Antiguidade. A literatura, porém, ainda é uma fonte fértil quecontinua atraindo pesquisadores a explorar esse mundo ainda tão desconhecido

    para nós que é o dos antigos, em geral, e o dos gregos, em particular. Muitoprovavelmente, como na maioria das sociedades, a manifestação do desejo eróticoseria muito mais variada e complexa do que os materiais objeto de pesquisarestantes do mundo grego antigo podem indicar. Ainda assim, a precauçãoinvestigativa, no âmbito de fontes textuais, requer que as interpretações se atenhamàquilo que temos de mais objetivo, os textos – o que constituiu nossa diretrizprincipal ao longo das reflexões feitas aqui.

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    Capítulo II

    Ecos homéricos em representações da morte em Atenas

    A vingança também é agradável; pois, se é doloroso nãoalcançar uma coisa, é agradável alcançá-la; e os iracundosafligem-se em demasia quando não gozam vingar-se, masregozijam-se quando esperam fazê-lo.[...]A honra e a boa reputação contam-se entre as coisas maisagradá-veis, porque cada um imagina que possui asqualidades de um homem virtuoso, e sobretudo quando oafirmam pessoas que ele considera dizerem a verdade.Contam-se entre eles os vizinhos mais do que os que seencontram afastados, os familiares e os concidadãos maisdo que os estranhos, os contemporâneos mais do que osvindouros, os sensatos mais do que os insensatos, e amaioria mais do que a minoria; pois é mais provável quedigam a verdade os que acabamos de mencionar do que oscontrários [...](Aristóteles,Retórica, p. 1370b, 1371a)

    A vingança e a honra, dois conceitos que Aristóteles elenca entre aqueles funda-mentais para que o orador entenda como o prazer deve ser considerado como

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    11. Cf. Lísias,Oração fúnebre, 17-23; Ésquines,Contra Timarco, I.5.12. A Lei de Drácon dispõe sobre homicídio intencional e não intencional. O conhecimento que se tem dos termos da lei reme

    sua republicação pelos atenienses em 408/9 a.C., em que aparecem disposições somente sobre o homicício não intencionaque deve ser punido com exílio ou recompensa monetária. Há várias conjecturas sobre o tratamento dado, na Lei de Drácon, homicídio intencional, sobretudo em vista de a lei punir com morte outros crimes, como o roubo e traição; entretanto, a inscricom a republicação da lei não traz os termos referentes ao homicídio intencional.

    13. Na “Ilíada”, 18.497-508, no novo escudo de Aquiles feito por Hefesto há uma narrativa visual que menciona um julgamenque refere compensação monetária por homicídio. Alguns estudiosos têm assumido isso como evidência de tipo de punição homicídio na Grécia Arcaica (GAGARIN, 1981).

    matéria da oratória judicial, são também dois aspectos essenciais da representaçãda morte entre os gregos, desde Homero. Nos espaços institucionais de Atenasno Período Clássico, eles figuram frequentemente associados à morte individual coletiva, e incorporados a práticas bem estabelecidas, de natureza religiosa e soci

    No caso da morte do indivíduo, é interessante analisar como a honra aparecetravestida em necessidade de vingança nas representações do homicídio levado julgamento. No que diz respeito à morte coletiva dos guerreiros-cidadãos qumorrem combatendo em nome da cidade, a honra transfere-se da morte doindivíduo para a vida da coletividade, revelando como a ideologia ateniensconsolida a fusão entre o valor individual e a glória da pólis em uma ocasiãsimultaneamente religiosa e político-educativa: a da oração fúnebre proferida pocasião dos ritos funerários aos mortos de guerra. Tanto no tratamento do homicídquanto na louvação coletiva aos mortos, percebe-se a exaltação desse importantaspecto da representação da morte do herói homérico: a relação entre morte e honra

    Em uma cidade que se proclama, entre as demais da Grécia Antiga, a mais“civilizada”11, é natural que, desde o início de sua constituição, a pólis ateniensetenha normatizado, pela lei ou pelo costume, o ato brutal de tirar a vida alheia. E621 a.C., a Lei de Drácon dispõe sobre o crime de homicídio, pressupondo umcerta tradição de procedimentos convencionais – anteriores à lei, portanto –relativos ao homícidio. Uma das questões centrais da Lei de Drácon é limitarvingança individual: a lei estabelece que os casos de homicídio devem ir a julgmento12, do que se tem inferido que buscava impedir “justiça com as própriasmãos”, provavelmente uma prática costumeira até então (COHEN, 2005). Perceb-se que a tradição que atravessa os termos da Lei de Drácon – e chega ao PeríodClássico – mantém um aspecto fundamental da justiça do herói homérico comrelação ao homicídio13: a vingança como resgate da honra.

    Na Grécia Arcaica, Aquiles encarna não só o herói que se lança conscientemenpara a morte em troca de renome, mas também o vingador por excelência. Logapós saber da morte de Pátroclo, diz ele à mãe, Tétis, que não viverá enquanto

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    14. Em trabalho de iniciação científica por mim orientado, Luiz Eudásio Barroso Capelo Silva (2009) mostra que, em Antifonte e emTucídides, o conceito deτιµωρία não compreende somente o resgate da honra ultrajada, mas também o reguardo, a proteçãoda honra que pode vir a ser ofendida. Nesse sentido, o verboτιµωρέω é muitas vezes traduzido para o português como“proteger”, pois ocorre em contextos em que se procurar proteger a honra de uma possível ofensa a ser ainda sofrida.

    15.Ilíada, XVIII, 79-81: “Mas que satisfação tenho eu nisso, se morreu meu companheiro amado, Pátroclo, a quem eu honrava acimade todos os outros, como a mim próprio?”

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    “Heitor não perder a vida pela minha lança e pagar a espoliação de Pátroclo” (Ilíada,XVIII, 93). Aqui se refere Aquiles às armas de Pátroclo, de que Heitor se apossaraEntretanto, logo em seguida ele explicita com mais ênfase seu desejo: “E agora ireiao encontro de quem a cabeça amada me matou: Heitor” (Ilíada, XVIII, 114-115).Eis o real motivo que movimenta o herói de volta às hostes dos aqueus – vingar oamigo morto, matando o assassino e mais alguns troianos:

    Visto que agora, ó Pátroclo, irei depois de ti para debaixoda terra,

    não te sepultarei, antes que para aqui eu tenhatrazido

    as armas e a cabeça de Heitor, assassino de ti,magnânimo.

    E na tua pira funerária cortarei as gargantas a doze

    gloriosos filhos dos Troianos, irado porque foste chacinado.(Ilíada, XVIII, 333-337).

    Como bem salienta Vernant, o herói morre porque sua honra não pode serempenhada; sua honra é a medida de sua vida, em um plano metafísico, não social,razão pela qual o prestígio social, que pode ser gozado e adquirido no plano desua existência mortal, não lhe interessa (VERNANT, 1989, p. 47). Por estar emoutro plano de valores, a honra do herói é o que o faz trocar a vida mortal pelaimortalidade na memória coletiva, pela lembrança reiterativa do canto. Ora, avingança (τιµωρία ), que, na Grécia Arcaica, pode permitir que uma morte se paguecom outra morte, não é nada mais do que o ato de resguardar a honra ultrajada,o que bem mostra a relação entre os termos honra (τιµή) e vingança (τιµωρία ),que partilham de um mesmo radical (τιµ-). McHardy, em seu estudo sobre avingança na cultura grega, mostra que o vocábuloτιµωρία resulta da composiçãoentre os radicais do substantivoτιµή (honra) e do verboὄροµαι (resguardar)(McHARDY, 2008, p. 3)14. No caso de Aquiles em relação a Pátroclo, a honra que o

    pelida busca resgatar, ao lançar-se sobre Heitor para vingar Pátroclo, é como sefosse a sua própria15. Nesse contexto, é fundamental a Aquiles recuperar o corpodo amigo, pois deixar Pátroclo insepulto é não concretizar a passagem do amigoao mundo dos mortos, como que o deixando no vácuo entre a vida e a morte, já não mais vivo, mas ainda não exatamente na condição de morto, que é a do

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    16. Gernet (2004) traz uma interessante discussão sobre diversas penas de morte utilizadas até o século IV a.C. em Atenaἀποτυµπανισµός (morte em que a vítima é amarrada nua a um poste de madeira para “morrer viva” – pena que lembra acrucificação); o envenenamento por cicuta, que tão bem conhecemos pelo caso de Sócrates; e oβάραθρον (lançamento devítimas em abismo – se vivas ou já mortas, há controvérsias entre os estudiosos). À pena de morte podia somar-se tambémpena de privação do sepultamento da vítima.

    17. Além de “Contra a madrasta”, ver “Tetralogia” I, 9.

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    indivíduo cujo corpo, finda a vida, passa pelos ritos fúnebres de limpeza e purificapara chegar ao Hades (VERNANT, 1989, p. 70-73).O ideal da honra preservada, se necessário, pela vingança de morte deve terinfluenciado o imaginário dos atenienses por muito tempo, a julgar pelas evidênci

    de alguns textos do Período Clássico. Apesar de o homicídio ter sido regrado peLei de Drácon, que aparentemente não sofreu grandes modificações ao longo dtempo (Antifonte, Acerca do Coreuta, 2; Demóstenes,Contra Aristócrates, 51), muitoembora os termos relativos ao homicídio intencional não nos tenham chegado, possível que uma série de disposições tenham sido acrescentadas à lei original paregulamentar, por exemplo, a execução de pessoas julgadas por homicídiointencional e consideradas culpadas16. Mais frequentemente, a pena capital era acontrapartida para o descumprimento da pena de exílio. Apesar de, em princípiosistema legal ateniense pressupor que cabe à pólis julgar e processar os casos dhomicídio em geral, existe no Período Clássico uma retórica bem articuladaempenhada em afastar, dos casos levados a júri, o desejo de vingança pessoal commotivo desencadeador da ação penal. Tal retórica, argumenta Cohen, pode muitbem indicar que, na realidade, o valor corrente entre os atenienses era buscar otribunal – no caso de homicídios, o Areópago – para obter a vingança pessoa(COHEN, 2005b, p. 219 e ss.).

    Alguns discursos de Antifonte obliteram claramente a distinção entre vingançpessoal e punição do Estado. Em “Contra a madrasta”, o litigante, filho do paassassinado pela madrasta, interpela o júri a assumir seu papel de “vingadores domorto” (21:τῷ τεθνεῶτι τιµωρούς )17, vingando simultaneamente as leis deAtenas – ou, para lembrarmos o sentido deτιµωρία , resgatando a honra do mortoe resguardando a honra das leis atenienses. Para os atenienses, o homicídio,ressalte-se, é um crime que, mesmo perpetrado na esfera privada, tem repercussã

    direta sobre a vida da pólis, certamente porque contém um aspecto diretamenterelacionado à vida religiosa da cidade. Os homicidas eram proibidos de entrar nespaços públicos e julgados somente pelo Areópago. Em “Contra a madrasta”, filho dirige-se aos juízes, dizendo-lhes que o morto

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    18. Não se pense que execuções sumárias, sem julgamento, não fossem permitidas por lei. Sobressai como peculiar – e figura no

    discurso de Lísias, “Sobre o assassinato de Eratosthenes” – o caso do homicídio lícito, permitido quando um homem surpreendeoutro com sua mulher, mãe, filha, irmã ou concubina que mantenha para procriar filhos livres (cf. também Demóstenes,Contra Aristócrates, 53).

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    é digno de receber de vossa parte compaixão, auxílio evingança [τιµωρίας ], ele, que teve de abandonar a vidaantes do que lhe fora destinado, de modo inglório [ἀκλεῶς],contrariamente ao divino [ἀθέως], pelas mãos dos maismiseráveis (Contra a madrasta, 21).

    A vingança restitui, assim, o estado de piedade divina que merece o morto, mastambém parece ter certo efeito educativo, como o de castigar comportamento quedeve ser evitado, funcionando também, portanto, como meio de justiça educativa(COHEN, 2005a). Esse tipo de interpelação dos juízes, como observa Cohen apropósito de outra peça de oratória (Licurgo,Contra Leócrates, 141-6), tende amesclar a distinção entre vingança e punição que o exercício da lei e o julgamentopúblico deveriam, idealmente, preservar em Atenas (COHEN, 2005b, p. 225). Em“Contra a madrasta”, o julgamento e a declaração de culpabilidade atenderiam aopedido do pai do impetrante da ação, que, antes de morrer, em vista de ter ficadovinte dias padecendo de doença decorrente do envenenamento, conseguira pedirao filho que buscasse a vingança (Contra a madrasta, 30). As vítimas de homicídiopremeditado, diz o filho, se “ainda conseguem reagir antes de morrer, chamam seusamigos e os parentes ligados por necessidade, dizem por que mãos pereceram erecomendam a vingança daqueles que sofreram injustiça” (Contra a madrasta, 29).Em Atenas, o homicídio intencional, apesar de ser crime de efeito sobre a vida doscidadãos de um modo geral, só podia ser objeto de ação penal por algum membroda família do morto. Aparece aqui a morte representada e regulamentada no âmbitodas instituições, mas ainda assim suscitando o desejo de vingança pessoal,assumida, porém, ou, de certa forma, facultada, pelo encaminhamento de umaacusação para julgamento, de modo que o corpo coletivo da cidade – que o corpode juízes representa – se torne o vingador da vítima18.O valor da honra do morto, segundo Vernant, também se manifesta pelo seu contrário,pela sua desvalorização com a profanação do cadáver impedido de sepultamento.Na epopeia, obstruir a recolha do cadáver é privar o inimigo de ter fixada suamemória de forma estável, em ato correlato ao canto, por meio do memorial queconstitui, no fim dos ritos funerários, a edificação do túmulo com a stele, estável,imperecível, como marca da vida concluída ou da morte acabada, enquantoprocesso de passagem para o mundo dos mortos (VERNANT, 1989, p. 70-1).

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    19. Péricles refere-se a desfrutar de sua riqueza, no caso dos combatentes ricos, ou escapar da pobreza e tornar-se rico, no casdos pobres – caso visassem somente à sobrevivência.

    20. Tradução minha.

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    A isso dedicam-se com empenho, respectivamente, Heitor e os troianos, com cadáver de Pátroclo, e, depois, Aquiles, com o de Heitor, ainda de modo maiextremo. O resgate e consequente sepultamento do corpo do morto é, portantodesde sempre, um valor caro aos gregos em geral – com frequência ignorado poinimigos, voluntariamente, em contextos de guerra.Entre os atenienses, vinculada ao sepultamento de combatentes mortos em guerrem nome da pólis está a oração fúnebre, que, entre outras funções, tem a funçãoretórica de disseminar em prosa a glória dos mortos, à semelhança do que faz ocanto em relação à bela morte do herói. Entretanto, na oração fúnebre o herói nãé mais indivíduo, mas faz parte de um grupo amorfo e inominado de cadáveres qupromovem, na realidade e acima de tudo, a glória da pólis; são “heróis” sem noma serviço do renome da cidade. A famosa oração fúnebre de Péricles revela algumcaracterísticas, na apresentação do ethos coletivo dos mortos, que evocam, poanalogia e diferença, alguns aspectos da tradição da bela morte do herói homérico

    Considerando que a vingança contra seus inimigos eramais desejável do que essas coisas19 e julgando que esteera o mais nobre dos riscos, decidiram vivenciá-lo e vingar-se daqueles e abandonar aquelas. Deixaram à esperança aimprevisibilidade do acerto e, quanto à ação que para eles já era visível, julgaram-se dignos de vivê-la. E preferiram oato de defender-se e padecer a salvar-se entregando-se: deum lado, escaparam do opróbrio da palavra; de outro,enfrentaram a ação com o corpo e, no breve momento doacaso, no auge da glória, não do medo, eles nos deixaram(Tucídides, II, 42.4).20

    Assim como Aquiles ou Heitor, os primeiros mortos da Guerra do Peloponeso perdsua vida vingando-se de seus inimigos, isto é, resguardando ou resgatando a honraem combate. Porém, diferentemente do herói homérico por excelência, seus destinnão estão previamente selados, mas resultam do “breve momento do acaso”.Tampouco é o vigor físico ou a juventude – qualidades do corpo do herói qusucumbe à morte (VERNANT, 1989, p. 56-57) – o que se destaca quando smencionam a coragem e o enfrentamento com o corpo na ação fatal de guerramas, sim, aδόξα – a fama, a glória advinda da opinião alheia. A linguagem poética

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    de Tucídides aqui visa a sensibilizar, não para o lamento, mas para a exaltação, afictícia audiência interna da história tucidideana, ou seja, os demais atenienses vivosque ouvem as palavras de Péricles (LORAUX, 1986, p. 48). Nesse sentido, ressalta--se mais uma distinção entre a oração fúnebre ateniense e a tradição épica: nada

    na oração de Péricles relembra o lamento de Troia inteira a ver Príamo chegar como corpo de Heitor (Ilíada, XXIV, 720-776). A oração fúnebre ateniense inscreve-seem um contexto didático em que os vivos são convocados a identificar-se com osbelos feitos dos mortos de forma imediata, excluindo-se o distanciamento quefavorece o lamento, pois a glória da cidade, mantida por aqueles que em deter-minado momento entregaram sua vida bravamente e que merecem então serhonrados, depende da continuidade da bravura nos cidadãos vivos. A oração fúnebreé uma lição de moralidade cívica endereçada aos vivos, acrescenta Loraux (1986,p. 98). A morte transfigura-se assim em um destino resultante do acaso que deveser aceito pelos sobreviventes em nome da glória da cidade, que celebra seuscidadãos somente porque estão mortos, uma forma igualmente de apelar aos vivosque não desistam em combate e morram pela cidade, para tornar-se objeto de talcelebração.

    Tanto na representação do homicídio levado a julgamento quanto no elogio dosmortos de guerra de Atenas, a honra é característica marcante da abordagem dos

    vivos em relação aos mortos, tal qual já cantava Homero. Em um caso, ela conecta-secom a vingança; em outro, com a glória. Todavia, na oração fúnebre, os mortos nãotêm mais nome, e, no julgamento do homicídio, os juízes são convocados a vingarnão só o morto, mas também as leis da cidade. No âmbito das instituições eritos atenienses, a morte é representada como uma experiência que se incorpora ese ressignifica no discurso da pólis e do cidadão, subestimando-se seu caráterindividual.

    BibliografiaANTIFONTE.Testemunhos, fragmentos, discursos. São Paulo: Edições Loyola, 2008.ARISTÓTELES.Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 2005.COHEN, D. Theories of punishment. In: GAGARIN, M.; COHEN, D. (Ed.).The Cambridgecompanion to Ancient Greek law . New York: Cambridge University Press, 2005a.

    COHEN, D. Crime, punishment, and the rule of law in Classical Athens. In:GAGARIN, M.; COHEN, D. (Ed.).The Cambridge companion to Ancient Greek law . New

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    York: Cambridge University Press, 2005b.

    DEMÓSTENES.Discursos políticos III . Madrid: Editorial gredos, 2008.GAGARIN, M.Drakon and early Athenian homicide law . New Haven: Yale UniversityPress, 1981.GAGARIN, M. The unity of Greek law. In: GAGARIN, M.; COHEN, D. (Ed.).TheCambridge companion to Ancient Greek law . New York: Cambridge University Press,2005.GERNET, L. Capital punishment. In: RHODES, P. J. (Ed.). Athenian democracy .Edinburgh: Edinburgh University Press, 2004.

    HOMERO.Ilíada. [Trad. de Frederico Lourenço]. Lisboa: Livros Cotovia, 2005.

    LISIAS.Discursos. Madrid: Editorial Gredos, 1988.LORAUX, N.The invention of Athens: the funeral oration in the classical city.Cambridge: Harvard University Press, 1986.McHARDY, F.Revenge in Athenian culture. Washington: Duckworth, 2008.THUCYDIDES HISTORIAE.Oxonii e Typographeo Clarendoniano. Oxford: OxfordUniversity Press, [s.d.]. (Oxford classical text).VERNANT, J.-P.L’individu, la mort, l’amour.Paris: Gallimard, 1989.

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    Prof. dr. José Luiz BrandãoUniversidade de Coimbra (UC)

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    21. Foi usado neste trabalho, embora com uma organização diversa, grande parte do material publicado em Brandão (2012, p.135-161).

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    Capítulo III

    A representação da Roma viva por meio dos epigramas de Marcial21

    O poeta Marcial deixa-nos um retrato da Roma do século I. E quando nos fala dasruas da urbe, dos edifícios, dos espaços de convívio públicos e privados, não faz

    uma descrição arqueológica, do gênero de um catálogo de museu, mas dá-nos umtestemunho vivo das gentes que povoavam tais espaços, desde o rico, ou novo-rico,ao mais miserável dos arruinados; desde o mais poderoso patrono ao último dosclientes, desde o romano da mais pura gema aos mais extravagantes provincianos,desde as mais nobres matronas às mais repelentes rameiras. Por isso, Marcial éconsideradoil poeta di Roma vivente– como dirá Enrico Paoli. Reflete a Roma imperial,com a sua sociedade piramidal e a monumentalidade de cariz totalitário, acumuladasobretudo durante o período dos Júlio-Cláudios e dos Flávios.Roma é o cenário privilegiado dos epigramas. No prólogo do Livro XII, Marcial refere comsaudade os espaços por onde costumava passear (12.21). É a Roma engrandecidapelos Flávios e motivo de adulação por parte do poeta, é o local de atuação dostipos sociais que vai referindo, são os espaços da vida literária (vendas dos livreiros,percursos dos livros para saudar um patrono) e são os trajetos das deambulaçõese canseiras do poeta, que descreve as impressões dos meandros urbanos. Embora

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    22. Vide SULLIVAN, 1991, p. 147 e ss.; ROMAN, 2010, p. 99 e ss.; COLEMAN, 2006, p. 15.23. Cf. Suetônio, Aug. 28.3: “Vrbem neque pro maiestate imperii ornatam et inundationibus incendiisque obnoxiam excoluit ade

    gloriatus ‘marmoream se relinquere, quam latericiam accepisset’. Tutam uero, quantum prouideri humana ratione potui praestitit”.

    24. Suetônio,Ves. 8.1: “ Ac per totum inperii tempus nihil habuit antiquius quam prope afflictam nutan-temque rem p. stabilire pornare”.

    25. Vide PAILLER, 1981, p. 79-87; ROMAN, 2010, p. 111.

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    deseje ootiumfora da urbe, Marcial vive esta contradição de necessitar do espaçourbano para a sua criação poética. A representação topográfica da urbe é, poisuma estratégia literária associada ao gênero que o nosso poeta cultiva; para maisem um período em que as estruturas da urbe sublinham a afirmação do poder de

    uma nova dinastia. Muitos dos epigramas integram-se no consagrado gênero dlaus urbis22. A Roma dos epigramas é um espaço em metamorfose. Augusto dissera que encontrarauma Roma de tijolo e a deixara de mármore. Como outrora Augusto23, Vespasianoe os filhos procuraram restaurar e ornamentar moral e fisicamente a cidade depoda sumptuosidade de Nero e das consequências do conflito civil de 68-69 d.C. ndisciplina e nos edifícios24. O “Liber spectaculorum”, cuja publicação celebra ainauguração do anfiteatro Flávio em 80 d.C. No segundo epigrama desse livroMarcial estabelece o contraste entre passado e presente por meio do louvor dasconstruções que se elevaram no lugar daDomus Aurea, o extravagante palácio deNero, construído no centro da urbe na sequência do incêndio de 64 d.C. Agorareddita Roma sibi est (“Roma foi restituída a si mesma”) (Sp.2.11). A oposição entrepassado e presente corresponde à metamorfose de espaço fechado em espaçosabertos de deslocamento, de convívio e de espetáculo; à transformação dos deleitedo tirano (dominus) em deleites do populus(Sp. 2.12)25. A imagem da Fênix é

    associada a Roma, que por obra de Domiciano renasce das cinzas, provavelmendepois do incêndio de 80 d.C. (5.7). Uma alusão a Domiciano enquanto restaurade construtor de templos é feita de forma espirituosa em 9.3: ao colocar o imperadcomo credor do pai dos deuses, Marcial sublinha o aspecto religioso da política construções, em continuidade com a herança augustana (8.80).Roma permite um cruzamento de percursos poéticos e interpoéticos. Marcial refere-sediversas vezes a percursos da cidade feitos pelas personagens dos epigramas, po

    si próprio ou pelo livro que envia como seu embaixador. É o caso do roteiro de Séque circula pelo o Campo de Marte na ânsia de conseguir um convite para janta(2.14). Outro itinerário destacado é o que faz o poeta até aos seus protetores (1.70

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    26. Cf. Ovídio,Trist . 1.1; 3.7;Pont . 4.5.27. Um poema que, pelo local e pelas referências, recorda também o “Ibam forte Via Sacra”, de Horácio (Sat . 1.9). Descreve uma

    subida desde o Fórum, centro de Roma, até ao Palatino, com menção dos locais que se vão encontrando.28. Vide ROMAN, 2010, p. 103-105.

    41

    1.108; 1.117; 2.5; 5.22; 10.20.4-5; 10.56; 10.82). A relação entre o autor e osespaços da urbe opera-se também por meio do livro, usado muitas vezes comometonímia do poeta. O motivo ovidiano de enviar o livro do exílio26 é transferidopor Marcial para o contexto das obrigações de cliente, como forma de evitar a perda

    de tempo de ir pessoalmente cumprir a salutatio(1.108). Encontra, assim, pretextopara introduzir passo a passo alusões topográficas e arquitetônicas na descriçãode um percurso: é o caso do trajeto do livro que envia ao amigo Próculo (1.70)27,ou do livro que envia a Plínio (10.20)28. Contudo, há também os percursos descritosno sentido de levar os leitores até ao lugar dos epigramas, com indicações do nomedos livreiros e dos locais onde se podem encontrar os epigramas à venda (1.2;1.117; 4.72). Nesses itinerários, a criação literária recorre a relações intertextuais einterpoéticas, pela interseção com a arquitetura, a pintura, a vida cultural e social.

    1. Roma vivaAtento ao mundo em que vive na busca de inspiração para a sua obra, Marcialcapta a realidade e representa-a por meio do olhar de poeta epigramático. E nosquadros representados figuram caracteres, virtudes e vícios, tipos sociais, grupos,profissões. O leitor depara-se com alguns dramas humanos, transmitidos algumasvezes de forma crua e irônica, outras vezes, empática, e a maior parte das vezesespirituosa, como manda o gênero: o epigrama, pela sua tradição. É a escolhaadequada para descrições concisas, argutas e contundentes. Marcial deixa-nos,por isso, um retrato ao mesmo tempo realista e divertido da vida social da Romados Flávios. É uma poesia que, apesar da caricatura, mantém o sabor humano,como salienta o poeta (10.4.10). A mordacidade e a sátira vão alternando coma sensibilidade e a empatia com o sofrimento.

    1.1. Sobreviver em Roma: entre o ter e o ser

    Um dos problemas que mais preocupa a humanidade é o da procura dos meios dasobrevivência. Marcial parece obcecado com o problema da distribuição da riquezae da pobreza na sociedade; não como um paladino da luta pela igualdade socialdos tempos modernos, mas como um cavaleiro conservador, preocupado com operigo da subversão da ordem na sociedade romana. Em Roma, o poder político e

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    29. Vide MARACHE, 1961b, p. 12-13.30. Cf. Petrônio,Satyr.76.31.Otoposfoi aparecendo em Horácio (Sat . 2.5), Petrônio (117), Pérsio (5.73), Juvenal (por ex. 1.37-41). Vide SULLIVAN, 1991, p.

    159 e ss.

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    social estava tradicionalmente associado à riqueza. Desde tempos antigos, que nocomitia centuriatavotavam em primeiro lugar os mais ricos, os da primeira classe.Nos tempos do poeta, o statusde senador e cavaleiro estava dependente da possede um determinado valor patrimonial, um milhão de sestércios para o primeiro400 mil para o último. A ordem senatorial tem o seu estatuto e patrimôniotradicionalmente ligados à posse da terra. Para um cavaleiro, a indústria e o grandcomércio são recomendados29, mas um naufrágio, por exemplo, pode arruinar umhomem rico30. As atividades assalariadas e laborais são consideradas desonrosaspara um homem ilustre. Por vezes, os imperadores tinham de subsidiar indivídudessas classes para que não perdessem o estatuto. Marcial zurze, com vozmoralizante, as situações que subvertem a realidade social.

    1.1.1. Heranças e dotesUm dos principais alvos de Marcial são os caçadores de heranças. A caça à heranou ao dote é um fenômeno comum em Roma por causa das disposições testamentárias que garantiam a propriedade privada e a defesa do direito de cada um dispodos bens a seu desejo. Acaptatiotornou-setoposdos poetas satíricos31. Os alvossão mulheres ricas ou velhos sem herdeiros. É bastante conhecido e repetido, comparadigmático do gênero cultivado por Marcial, o epigrama sobre as núpcias d

    Maronila, que se torna atraente por estar tísica, e, por isso, perto da morte (1.10)ou o caso de Névia que, para atrair um pretendente, usa de publicidade enganosatosse de forma exagerada (2.26) – situações caricatas que refletem a realidade doexpedientes a que se podia recorrer para sobreviver na urbe. Dada a proteção dque gozava a propriedade da mulher romana, surge a suspeita de que certoshomens vendessem os seus favores sexuais em troca do dinheiro das mulheres –o que se deduz da censura feita a Basso, por gastar a sua potência sexual comrapazinhos, subtraindo à esposa o vigor que ela tinha pago com o dote (12.97); d

    ventura de Gélio, que casou com uma velha rica (9.80); ou da desgraça de Matãque para sobreviver tem comércio carnal com mulheres, contra os seus hábito(6.33). E, dadas as disposições legais sobre o adultério – a restauração por partede Domiciano dalex Iulia de adulteriis coercendispromulgada por Augusto –, certasmulheres optam por casar com sucessivos amantes (6.7; 6.22). Na Roma Antig

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    32. Vide SULLIVAN, 1991, p. 161.33. Outros exemplos de caçadores de heranças: 2.76; 4.56; 4.70; 6.62; 6.63; 7.66; 8.44; 9.48; 9.82; 9.88; 11.55; 11.8334. Etão considera como maldição ter de jantar em casa três dias seguidos (12.77).

    43

    o homem tinha só direito ao uso do dote enquanto durava o casamento, e tinha deo devolver em caso de divórcio32. Por isso, Proculeia descobre que é mais lucrativoabandonar o marido por causa da despesa com a brilhante carreira dele (10.41).Por outro lado, a morte de esposas ricas é uma fonte de rendimento (2.65; 5.37;

    10.43), pelo que estas podem tornar-se vítimas de envenenamentos (4.69.3; 12.91).Os velhos sem herdeiros são também vítimas naturais. Os caçadores de herançasenchem-nos de presentes na esperança de verem o seu nome no testamento (8.27;9.8; 11.44; 11.67). É a síndrome de Eumolpo do romance de Petrônio (Sat . 116-141), que, ao saber que, em Crotona, só existiamheredipetae, se faz passar por velhorico para conseguir benesses. O próprio Marcial se inclui no grupo: troça do seupróprio desejo frustrado de ser incluído em um testamento (5.39; 9.48; 10.98;12.73)33, ou de receber uma herança (10.97).

    1.1.2. Espórtula e jantaresOutro tópico fértil são os convites para jantar e o parasitismo que existia nessecontexto, como no caso de Sélio (2.11; 2.14; 2.27), de Vacerra (11.77) ouMenógenes (12.82), que procuram por todos os meios receber um convite. Era sinalde certo êxito social ter muitos convites34, pelo que alguns fingem ser bastanterequestados (5.47; 12.19). No entanto, também ficaria bem socialmente não

    mostrar demasiado entusiasmo ou até certa contrariedade em jantar fora, comosugere a denúncia por parte do poeta de atitudes desdenhosas que soam ahipocrisia (2.69; 6.51).A verdade é que ser convidado para jantar era uma forma de subsistência, comodemonstra o caso de Filão: jurava que nunca jantava em casa, porque, quando nãotinha convite, não jantava (5.47). Alguns aproveitam para fazer provisões, roubandocomida nos banquetes (3.23; 7.20). Essetoposestá, pois, relacionado com as

    obrigações padronizadas entre patrono e cliente. A provisão de comida é uma dasformas primitivas de suporte dos dependentes, que depois se transforma em dádivade dinheiro: a sportula. A “clientela” era uma verdadeira instituição em Roma e, aomesmo tempo, uma forma socialmente digna de um poeta pobre ganhar a vida.Uma vez que o trabalho remunerado era considerado pouco acima de compor-tamento servil, quem não tivesse meios de subsistência e quisesse manter o status

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    35. Vide MARACHE, 1961, p. 38-53; MOHLER, 1967, p. 241; AUGELLO, 1968-1969, p. 259-260, e n. 156.36. Vide ROBERT, 2004a, 48 e ss.37. Sob tal designação se podem incluir os presentes oferecidos durante o jantar, como sugere Plínio (Ep. 2.14.4), e nesse caso é

    comparável com os xeniaouapophoreta; ou pode ser dada durante os banhos (Marcial 8.42), ou durante a salutatio(Juvenal1.95-102; 120-122;127-128): vide MOHLER, 1967, p. 251 e ss.

    38. Cf. 1.80: “Cano morreu depois de receber a sportula: foi esta que o matou... porque foi só uma”.39. Vide AUGELLO, 1968-1969, p. 263.40. A abolição temporária da sportulaé um dos temas recorrentes nesse livro: 3.7, 3.14, 3.30, 3.60. Vide SULLIVAN, 1991, p. 31.

    44

    tinha de optar pelo recurso à “caridade” de um patrono poderoso. E Marcialenvereda relutantemente por esta prática, que juridicamente tem uma origem servil35.É que o papel do cliente sofreu transformações desde a República: nessa fase, vínculo entre patronuse cliensconsistia em uma relação moral bilateral baseada na

    fides; o cliente encontrava proteção no patrono e este precisava do cliente, inclusivpara apoio armado. Com o advento do Império, a ligação moral deixa de existiporque o imperador é politicamente o único verdadeiro patrono, pelo que resta sa ligação econômica36. Como o patrono nada tem a esperar dos seus clientes,a relação paternalista torna-se uma espécie de vassalagem para garantir asobrevivência e ritualiza-se. Há dois momentos fortes do dia em que se efetua encontro ritual entre os patronos e os clientes: a salutatiomatinal e acena, se ocliente tiver a sorte de ser convidado. Em troca, o cliente recebe a tal quantia qu

    lhe permite sobreviver na urbe (3.30), sem que isso constitua um estigma sociaEntretanto, à exceção dos dias especiais, como o aniversário do patrono, em quequantia pode aumentar consideravelmente (10.27), o valor da sportula37 é escasso(3.7; 6.88; 8.42); pelo que o estafado cliente se vê obrigado a correr, para saudarvários patronos.38

    Domiciano, na sua tentativa de apagar de Roma os traços neronianos39, emitiulegislação para transformar a sportula, cuja tarifa remontava a Nero (um cesto de

    comida ou dinheiro), na dádiva de um jantar. Contudo, a nova disposição nãoagradava nem aos patronos, que ficavam vinculados a ter à mesa os seusdependentes, nem aos clientes, que necessitavam de dinheiro vivo. Tal circunstâné repetidamente tratada no Livro III dos “Epigramas”. Afastado de Roma, em ForCornelii (Ímola), com a justificativa de não poder suportar mais o aborrecimenda toga (3.4.6), o poeta dá voz ao descontentamento gerado pela abolição da sportula40. Em vez de um jantar, o poeta sugere a atribuição de um salário (3.7). Noentanto, a disposição de Domiciano acaba por ser esquecida e a anterior práticaretomada, como mostra o fato de o poeta continuar a referir a espórtula nos livroseguintes.

  • 8/20/2019 Estudos Clássicos UnB vol.2

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    41. 10.56; 10.82.42. Vide PIMENTEL, 1993, p. 249-261; BRANDÃO, 1998, p. 151-172.43. Vide HARRIS, 2011, p. 27-54.

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    O poeta acusa repetidamente a humilhação e o cansaço resultante dessa veneração– o termo que usa écolereem 2.55 – dos patronos. Queixa-se do fato de o cliente,ao romper da aurora, ter de se dirigir aos átrios dos patronos para a salutatiomatutina, a tremer (9.92.5); da obrigação de ir vestido a rigor, isto é, de toga, peça

    sobre a qual Marcial faz passar uma ideia de desconforto (3.4.6; 12.18.6.); dahumilhação de ter de saudar o patrono comodominus et rex , títulos tirânicos que opoeta se mostra renitente em usar (1.112; 2.68.2; 10.10.5), mas o tratamento pelonome próprio em vez de pordominuspode implicar a perda da espórtula (6.88).Nessa pirâmide social cujo vértice é o imperador, os patronos do poeta são, por suavez, clientes de outros mais poderosos, situação a qual Marcial não deixa de ironizar(2.18; 2.32). E no Livro X confessa-se exausto41; o que deseja é levar uma vida frugale simples, longe do afã citadino (10.47), e dormir sossegado (10.74). Irá encontrar