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ESTUDO LONGITUDINAL DAS CRIANÇAS NASCIDAS EM 1982 EM PELOTAS, RS, BRASIL METODOLOGIA E RESULTADOS PRELIMINARES* César Gomes Victora** Fernando Celso Barros*** José Carlos Martines** Jorge Umberto Béria** John Patrick Vaughan**** VICTORA, C.G. et al. Estudo longitudinal das crianças nascidas em 1982 em Pelotas, RS, Bra- sil. Metodologia e resultados preliminares. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 19:58-68,1985. RESUMO: Tentou-se acompanhar a morbi-mortalidade e o crescimento de uma coorte de 6.011 crianças urbanas nascidas em 1982 nos hospitais de Pelotas, RS, através de visitas do- miciliares aos 12 meses (para uma amostra de 30% das crianças) e aos 20 meses (para toda a população). Estas crianças representaram mais de 99% de todos os nascimentos urbanos na- quele ano. Foi possível localizar 81% das crianças aos 12 meses e 86% aos 20 meses, devido a uma mudança na estratégia de trabalho de campo. A metodologia empregada e as principais dificuldades encontradas são descritas e as características ao nascer das crianças localizadas no acompanhamento são comparadas com as características das crianças não localizadas. A potencialidade de uso dos dados coletados é exemplificada através de alguns resultados preli- minares mostrando as associações entre o peso ao nascer, a renda familiar e o estado nutricio- nal aos 12 meses. O estudo mostra que é possível acompanhar, com uma perda relativamente pequena, uma coorte de crianças com base populacional em uma cidade brasileira de tamanho médio. UNITERMOS: Criança, desenvolvimento. Epidemiologia, métodos. l. INTRODUÇÃO E DESCRIÇÃO DO PROJETO. A quase totalidade das informações dispo- níveis sobre mortalidade, morbidade e esta- do nutricional de crianças brasileiras é deri- vada de estudos transversais e retrospectivos, e portanto torna-se difícil caracterizar a im- portância de fatores perinatais, como o peso * Trabalho apresentado na I Reunião Nacional sobre Metodologia da Investigação Científica em Saú- de (Itaparica, Bahia, setembro, 1984). Realizado com auxílio financeiro do "International Deve- lopment Research Centre (Canadá)" e pelo "Overseas Development Administration (Reino Uni- do)" e pela Divisão de Saúde Familiar do Organização Mundial de Saúde. ** Do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas - Caixa Postal 464 - 96.100 - Pelotas, RS - Brasil. *** Do Departamento Materno-Infantil da Faculdade de Medicina da Universidade Católica de Pelotas - 96.100 - Pelotas, RS - Brasil. **** Do "Evaluation and Planning Centre, London School fo Hygiene and Tropical Medicine, University of London London - Great Britain.

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ESTUDO LONGITUDINAL DAS CRIANÇAS NASCIDAS EM1982 EM PELOTAS, RS, BRASIL

METODOLOGIA E RESULTADOS PRELIMINARES*

César Gomes Victora**Fernando Celso Barros***José Carlos Martines**Jorge Umberto Béria**John Patrick Vaughan****

VICTORA, C.G. et al. Estudo longitudinal das crianças nascidas em 1982 em Pelotas, RS, Bra-sil. Metodologia e resultados preliminares. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 19:58-68,1985.

RESUMO: Tentou-se acompanhar a morbi-mortalidade e o crescimento de uma coorte de6.011 crianças urbanas nascidas em 1982 nos hospitais de Pelotas, RS, através de visitas do-miciliares aos 12 meses (para uma amostra de 30% das crianças) e aos 20 meses (para todaa população). Estas crianças representaram mais de 99% de todos os nascimentos urbanos na-quele ano. Foi possível localizar 81% das crianças aos 12 meses e 86% aos 20 meses, devido auma mudança na estratégia de trabalho de campo. A metodologia empregada e as principaisdificuldades encontradas são descritas e as características ao nascer das crianças localizadasno acompanhamento são comparadas com as características das crianças não localizadas. Apotencialidade de uso dos dados coletados é exemplificada através de alguns resultados preli-minares mostrando as associações entre o peso ao nascer, a renda familiar e o estado nutricio-nal aos 12 meses. O estudo mostra que é possível acompanhar, com uma perda relativamentepequena, uma coorte de crianças com base populacional em uma cidade brasileira de tamanhomédio.

UNITERMOS: Criança, desenvolvimento. Epidemiologia, métodos.

l. INTRODUÇÃO E DESCRIÇÃODO PROJETO.

A quase totalidade das informações dispo-níveis sobre mortalidade, morbidade e esta-do nutricional de crianças brasileiras é deri-

vada de estudos transversais e retrospectivos,e portanto torna-se difícil caracterizar a im-portância de fatores perinatais, como o peso

* Trabalho apresentado na I Reunião Nacional sobre Metodologia da Investigação Científica em Saú-de (Itaparica, Bahia, setembro, 1984). Realizado com auxílio financeiro do "International Deve-lopment Research Centre (Canadá)" e pelo "Overseas Development Administration (Reino Uni-do)" e pela Divisão de Saúde Familiar do Organização Mundial de Saúde.

** Do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas- Caixa Postal 464 - 96.100 - Pelotas, RS - Brasil.

*** Do Departamento Materno-Infantil da Faculdade de Medicina da Universidade Católica de Pelotas- 96.100 - Pelotas, RS - Brasil.

**** Do "Evaluation and Planning Centre, London School fo Hygiene and Tropical Medicine, Universityof London — London - Great Britain.

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ao nascer, sobre o desenvolvimento subse-qüente destas crianças, Torna-se tambémimpossível avaliar o crescimento físico e seusdeterminantes, uma vez que usualmente sedispõe de uma única medida de peso e/ou al-tura. O estudo longitudinal de Pelotas foiplanejado para avaliar a influência sobre asaúde infantil destes fatores perinatais, assimcomo de outras variáveis ambientais, biológi-cas, alimentares e relativas à utilização dosserviços de saúde, dentro de um quadro maisamplo definido pela estrutura social.

De nosso conhecimento, este é o primeiroestudo prospectivo com base populacionalque investiga o crescimento e morbi-mortali-dade de crianças brasileiras. Apesar de a aná-lise de dados estar ainda em andamento,achamos conveniente publicar alguns aspec-tos da metodologia e resultados prelimina-res já na fase atual, para que possam servircomo subsídios para estudos semelhantes.

Pelotas é o segundo município do RioGrande do Sul em população, com 260.000habitantes, dos quais 200.000 são urbanos(IBGE). As principais atividades econômi-cas são a indústria de alimentos (processa-mento de arroz, soja e carnes), os serviços, ocomércio e construção civil, além da agricul-tura e pecuária. O fato de ser uma cidade detamanho médio garante um número suficien-te de crianças para um estudo como o atual,e ao mesmo tempo permite localizar os parti-cipantes mais facilmente do que seria possí-vel, por exemplo, em uma região metropoli-tana.

As diversas fases do estudo longitudinalestão ilustradas na Fig. 1. Na primeira fase,todos os 7.392 nascimentos hospitalaresocorridos em 1982, em Pelotas, foram estu-dados através de entrevistas com as mães eexame dos recém-nascidos. Imediatamenteapós o período perinatal (que vai da 28a se-mana de gestação aos sete dias de vida), 18%das crianças urbanas foram visitadas em casapara verificar a existência de óbitos e colherdados sobre características do domicílio. Oestudo perinatal teve como objetivos: a) me-dir as taxas de mortalidade fetal e neonatalprecoce e a incidência de baixo peso ao nas-cer; b) identificar seus possíveis fatores de-

terminantes; c) avaliar os padrões de assistên-cia médica e sua distribuição na populaçãomaterna; e d) estimar a cobertura do sistemade notificação de óbitos.

Ao final destes doze meses de coleta dedados nos hospitais e domicílios, decidiu-seacompanhar a mortalidade, alguns aspectosda morbidade, o crescimento e o desenvolvi-mento da coorte de 6.011 crianças cujasmães residiam na área urbana de Pelotas.Além do aspecto descritivo, este acompanha-mento teve como objetivos estudar a influên-cia de fatores perinatais, socio-económicos,ambientais, alimentares e relativos à assistên-cia médica, sobre a morbi-mortalidade e ocrescimento destas crianças, Até o momento,este acompanhamento se deu em duas oca-siões: no início de 1983, para uma amostradas crianças, e no início de 1984, para toda acoorte.

Na segunda fase do estudo longitudinal(primeiro acompanhamento), tentou-se loca-lizar, no início de 1983, através dos endere-ços fornecidos no hospital, as l .820 criançasurbanas nascidas nos meses de janeiro a abrilde 1982, que estavam então com doze me-ses, em média. As crianças encontradas fo-ram pesadas e medidas, e seus pais entrevis-tados sobre características sócio-econômicas,ambientais, demográficas e relativas à dieta,morbidade hospitalar e á utilização dos ser-viços de saúde.

A terceira fase (segundo acompanhamen-to) incluiu a visita no início de 1984 a todosos domicílios urbanos de Pelotas (cerca de68.600) para tentar localizar todas as crian-ças nascidas em 1982, pertencessem ou nãoà coorte. Visitou-se também uma amostrade 20% de crianças residentes em áreas ru-rais do município. Estas crianças, então com12 a 27 meses, foram novamente pesadas emedidas e, além das variáveis mencionadasacima, foram colhidas informações sobremorbidade, desenvolvimento psicomotor esobre as características da família, além dedados sobre a saúde da mãe. Estes dadosestão sendo agora ligados às informaçõespreviamente disponíveis do estudo perina-tal (para todas as crianças) e do primeiroacompanhamento (para as crianças também

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vistas em 1983).Paralelamente a este estudo do crescimen-

to, a mortalidade destas crianças está sendomonitorizada através da revisão de atestadosde óbito que chegam à Secretaria da Saúdedo Estado e aos Cartórios de Registro dacidade. Além disso, todos os prontuárioshospitalares de crianças nascidas em 1982 eque já foram internadas nos hospitais locaisestão sendo revisados para a identificação deóbitos não registrados.

2. ASPECTOS METODOLÓGICOS

2. l. Representatividade.Desde o início do projeto teve-se, como

fundamental, garantir que as crianças estuda-das fossem representativas da população dacidade. Por exemplo, se uma proporção ele-vada dos partos fossem domiciliares, seriaimpossível generalizar a partir dos dados decrianças nascidas em hospital. A impressãoinicial era a de que menos de 10% dos par-

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tos teriam sido domiciliares em 1982. Duran-te o segundo acompanhamento, em que to-dos os domicílios urbanos foram visitados ese indagou sobre crianças nascidas em 1982,foram descobertas apenas 46 crianças nasci-das em casa, ou seja, menos de 1% dos nas-cimentos do ano. As estatísticas vitais, nes-te caso, são extremamente falhas, uma vezque muitos partos hospitalares são registra-dos como domiciliares devido a um acordoentre os cartórios e por conveniência dospais. Este baixo percentual de partos domici-liares garante a representatividade das crian-ças estudadas nos hospitais.

2.2. Perdas de acompanhamento.Era essencial que se conseguisse acompa-

nhar um percentual elevado das crianças dacoorte, sob pena de não se poder generalizara partir dos resultados obtidos. Devido à altamobilidade física e às más condições sócio-econômicas de grande parte das mães, a

localização através dos endereços fornecidosno hospital é problemática. Esta estratégiafoi tentada durante a visita realizada logoapós o parto a cerca de 1.100 crianças, e jánaquela ocasião 9% destas não puderam serlocalizadas devido a endereços incompletosou falsos, apesar de os mesmos terem sidocuidadosamente coletados pela equipe depesquisa já com a visita domiciliar em mente.

Durante o primeiro acompanhamento,quando foram visitadas, um ano após o nas-cimento, as crianças nascidas de janeiro aabril de 1982, tentou-se novamente encon-trar as famílias a partir dos endereços forne-cidos no hospital (continuou-se com esta es-tratégia por motivos de ordem prática e orça-mentária). A perda então foi aproximada-mente 19%.

Para o segundo acompanhamento (crian-ças com 20 meses em média), foi estabeleci-do que a se continuar a perder cerca de 10%da população inicial, com cada visita, o estu-do deixaria de ser representativo e suas con-clusões estariam ameaçadas. Decidiu-se entãorealizar um censo de todos os 68.590 domi-cílios urbanos de Pelotas durante o qual setentaria descobrir as crianças nascidas em1982. Os dados então colhidos seriam pos-

teriormente ligados às informações perinataisatravés do nome da mãe, do hospital e dadata de nascimento. O objetivo do censo eratentar encontrar uma maior proporção dascrianças da coorte, uma vez que aquelas cu-jas famílias tivessem mudado de endereçodentro da cidade seriam também localiza-das.

Após o término do censo, restavam cercade 1.200 crianças da coorte que não haviamsido encontradas. Tentou-se então localizarestas crianças pelos endereços fornecidos nohospital, como havia sido feito durante o pri-meiro acompanhamento. Com isto foi possí-vel encontrar outras 431 crianças que haviamescapado do censo, seja por estarem ausen-tes, por terem mudado de endereço durantea realização do mesmo, ou por informaçõeserrôneas fornecidas aos entrevistadores. De-vido a esta nova estratégia, a perda nesta se-gunda fase foi reduzida para 14%, apesar denada menos de 45% das famílias localizadashaverem mudado de endereço, dentro da ci-dade, desde o nascimento da criança.

A Tabela l mostra as "razões pelas quaiscrianças não puderam ser localizadas nasduas fases do acompanhamento. A principalrazão foi mudança da família para outra cida-de, que ocorreu em 5 a 6% do total de crian-ças. Em segundo lugar, os atuais moradoresnão conheciam a família da criança (5%), ouo endereço não existia (3%). Outras razõesmenos comuns para perdas foram criançasque, apesar de localizadas, não foi possívelexaminar após várias visitas, ou cujos paisrecusaram a entrevista.

2.3. Trabalho de campo.O estudo hospitalar cobriu todos os nasci-

mentos ocorridos nas três maternidades dePelotas em 1982. As crianças foram pesadascom balanças pediátricas (Filizola) e suasmães foram entrevistadas através de umquestionário padronizado e pré-codificado,além de serem pesadas e medidas. Em cadahospital, a equipe responsável pela pesquisaera composta de um médico, pessoal de en-fermagem e estudantes de medicina. Os en-trevistadores, em todas as fases do estudo,foram treinados previamente durante pelo

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menos uma semana, e estudos-piloto tam-bém foram realizados antes de cada fase.Esta metodologia já foi exposta previamenteem maiores detalhes (Barros e col.3).

Nas duas fases do acompanhamento, acidade foi dividida entre uma área central eoutra periférica. Todos os entrevistadores(estudantes de medicina) examinaram crian-ças nas duas áreas, concomitantemente e emproporções semelhantes ás do universo decrianças. Um questionário, também padroni-zado e pré-codificado, era respondido pelamãe (mais de 90% dos casos) ou pela pessoaencarregada da criança. Diversas questões daprimeira fase do acompanhamento foramrepetidas na segunda fase para testar a con-cordância entre as duas informações.

Em seguida, a criança era medida e pesadacom equipamentos portáteis (balança CMStipo Salter e infantômetro AHRTAG), con-forme metodologia padronizada (Jelliffe5).As balanças eram calibradas diariamente compesos-padrão e cerca de 5% das pesagens emedições foram repetidas de maneira "cega"por dois entrevistadores na mesma ocasiãopara verificar as diferenças inter-observado-res. Estas diferenças eram monitorizadas per-manentemente durante a coleta de dados e

quaisquer discrepâncias importantes eramidentificadas e corrigidas.

O peso e comprimento de cada criançaforam posteriormente transformados em per-centis e escores-z de peso/idade, comprimen-to/idade e peso/comprimento através de umprograma de computador, levando em contaseu sexo e idade exata. Foram utilizados ospadrões norte-americanos do "National Cen-ter for Health Statistics7".

A análise de dados está sendo realizadacom os pacotes SPSS - Statistical Packagefor the Social Sciences (Nie e col.8) — eGLIM - Generalised Linear Interactive Mo-delling (Baker e Nelder1).

2.4. Principais dificuldades na pesquisa decampo.

A primeira e maior dificuldade encontra-da nos estudos de acompanhamento foi ogrande número de famlias que mudaram deendereço desde o nascimento da criança.Mais da metade das famílias mudaram-seentre o parto e o segundo acompanhamento,uma vez que somente entre as crianças queforam eventualmente localizadas o percen-tual de mudanças foi de 45%. A isto se so-mou a dificuldade de encontrar casas em

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áreas de favela onde a numeração e mesmoos nomes de rua não são consistentes, Quan-do a família não mais residia no endereçofornecido, tentava-se obter com vizinhos oendereço atual ou alguma outra informaçãoque facilitasse a localização da família, comoo endereço de parentes ou amigos ou o localde trabalho dos pais.

Na segunda fase, cerca de 90% das crian-ças localizadas o foram durante o censo dacidade, o que dispensou que fossem procura-das pelos endereços. Apesar disto, ao finaldeste censo, ainda foi necessário procurarpelos endereços as cerca de 1.200 criançasque ainda não haviam sido encontradas.

Por outro lado, esta nova metodologiacriou seus próprios problemas, principalmen-te a dificuldade de ligar os dados obtidos nodomicílio com os dados hospitalares. Paracada criança de 1982 localizada, tentava-seidentificar na lista de partos hospitalares onúmero do questionário perinatal através dadata dos nascimento, o nome da mãe e ohospital. Freqüentemente, estas informaçõesestavam erradas o que tornava impossívela ligação com os dados já disponíveis, sendoentão necessário retornar à casa para corri-gir estes dados. Os erros mais comuns foramna data de nascimento (registros de nasci-mento com data falsa para evitar a multa poratraso) ou no nome da mãe (devidos a mu-dança de nome ou apresentação de docu-mentos alheios no hospital). Para criançasadotadas legalmente, foi necessário recorrerao Juizado de Menores para obter, confiden-cialmente, o nome da mãe verdadeira e possi-bilitar a ligação. No total, 38 crianças cujosresponsáveis afirmaram haver nascido em1982, em hospitais de Pelotas, não puderamser ligadas ao registro hospitalar apesar detodos os esforços da equipe.

Outra importante dificuldade que estásendo enfrentada atualmente é relativa à aná-lise dos dados por computador (Barros e Vic-tora2). Além do grande número de criançasinicialmente incluídas no estudo, para cadacriança contactada no primeiro e no segundoacompanhamento já se dispõe de cerca de500 variáveis. Os centros de processamentode dados das duas universidades de Pelotas

possuem computadores limitados e versõesdesatualizadas dos pacotes de análise estatís-tica. Isto torna necessário utilizar empresasparticulares para a análise de dados, o que afaz extremamente cara.

3. RESULTADOS PRELIMINARES

Alguns resultados preliminares do estudoperinatal e da primeira fase do acompanha-mento são apresentados abaixo. Os dados dosegundo acompanhamento estão ainda emfase inicial de análise. O objetivo desta apre-sentação é apenas ilustrar os usos em poten-cial dos dados disponíveis.

3.1. Estudo perinatalO coeficiente de mortalidade perinatal foi

de 33,5 óbitos por 1.000 nascimentos totaise 8,8% das crianças apresentaram baixo pesoao nascer, ou seja, pesaram menos de 2.500 g(Barros e col.3). Importantes diferenciais namortalidade perinatal e na incidência de bai-xo peso ao nascer foram observados confor-me a renda familiar. As mães de famílias re-cebendo menos de um salário mínimo apre-sentaram um risco três vezes maior de teruma criança de baixo peso ou que viesse amorrer no período perinatal (P< 0,001)(Barros e col.3). Isto mostra a importânciafundamental dos fatores sócio-econômicos —refletindo a posição da família na estruturasocial — na determinação do risco perinatal.

Métodos multivariados foram utilizadospara estudar a inter-relação entre variáveis só-cio-econômicas e biológicas na determinaçãodo risco perinatal. A baixa idade materna,por exemplo, é considerada um fator de ris-co para mortalidade perinatal9. A Fig. 2 mos-tra que, efetivamente, filhos de adolescentesapresentaram um maior risco do que criançasde mães com 20 a 30 anos de idade. No en-tanto, mães adolescentes eram em geral maispobres, haviam utilizado serviços pré-nataisem menor escala e apresentavam uma sériede outras desvantagens. Quando, através deregressão logística, se estudou a influênciada idade materna controlando os efeitos darenda e da assistência pré-natal, observou-seque as adolescentes apresentavam o menor

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risco de todas as categorias de idade. Destaforma, foi possível mostrar que um fator"biológico" parece ser, na verdade, resultadode uma desvantagem social e econômica. Poroutro lado, mães idosas continuaram apre-sentando um maior risco, mesmo após seremcontrolados os efeitos da renda e do pré-natal (P< 0,001).

O estudo permitiu também avaliar ospadrões de utilização de assistência médicapor gestantes e crianças. Por exemplo, aproporção de cesareana foi extremamenteelevado (cerca de 27%), conforme já haviammostrado estudos realizados em outros esta-dos (Mello6). Este percentual variou de18,5% entre as mães de renda familiar abai-xo de um salário mínimo a 47% para mãesde renda acima de 10 salários (P< 0,00001).Isto obviamente sugere que os determinantesda realização de cesareanas são econômicose não relacionados ao risco gravídico.

3.2. Primeiro acompanhamento.

3.2.1. Características das crianças localizadas.Logo no início da análise do primeiro

acompanhamento, desejou-se investigar as di-ferenças — quanto a variáveis medidas porocasião do nascimento — entre as crianças

que foram encontradas subseqüentemente eas que não o foram. Se estas diferenças fossemmuito marcadas, os resultados subseqüentesteriam de ser interpretados com muita cautela

A Tabela 2 mostra que as perdas forammaiores em famílias de baixa renda, de mãescom menos de 25 anos, e quando o interva-lo intergestacional prévio foi menor do que24 meses. Apesar de estatisticamente signi-ficativas, estas diferenças não foram marca-das, e pelo menos 75% das crianças foramencontradas em cada uma das categoriasmostradas na Tabela 2. Outras variáveis, nãoincluídas nesta Tabela, em que as criançascontactadas diferiram das não contactadas,foram escolaridade da mãe, número de visi-tas pré-natais e tipo de relação econômicacom o médico. As menores taxas de sucessoforam entre os filhos de indigentes (64%) ede mães que nunca consultaram o médicodurante a gravidez (60%), dois grupos rela-tivamente pequenos, com menos de 100crianças cada.

Por outro lado, não houve diferença signi-ficativa entre os dois grupos no que diz res-peito ao peso ao nascer, tipo de parto ouordem de nascimento, ou quanto ao grupoétnico (não incluído na Tabela 2). Em geral,conforme era esperado, houve maior dificul-dade na localização de crianças de baixo ní-vel sócio-econômico, mas os diferenciais decontato não foram muito marcados.

3.2.3. Peso ao nascer e estado nutricional aos12 meses.

Como exemplo da potencialidade da liga-ção entre os dados perinatais e o desenvolvi-mento subseqüente, a relação entre o pesoao nascer e o estado nutricional das criançascom 9 a 15 meses de idade está ilustrada naFig. 3. As prevalências de desnutrição, con-forme três indicadores (peso-idade, compri-mento-idade e peso-altura), diminuem mar-cadamente à medida em que aumenta o pesoao nascer (P<0,00001).

Em seguida, investigou-se o papel da ren-da familiar, nesta associação entre peso aonascer e peso com 9 a 15 meses de idade.Na Fig. 4, tanto o peso ao nascer quanto opeso com 9 a 15 meses estão expressos como

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escores-z, ou seja, um número de desvios-pa-drão abaixo ou acima da mediana da popula-ção de referência (Waterlow e col.10) para osexo e idade da criança. Dentro de cada gru-po de renda familiar, as diferenças de pesoobservadas no nascimento mantiveram-secom igual magnitude (em termos absolutos)durante todo o primeiro ano de vida. Os coe-ficientes de correlação entre peso ao nascer epeso com 9 a 15 meses são extremamentesemelhantes nas diferentes classes de renda,variando de 0,324 a 0,430, assim comosão similares as inclinações (coeficientesangulares) das retas de regressão.

Por outro lado, diferenças muito impor-tantes foram observadas entre as intersec-ções (coeficientes lineares) das cinco retas,mostrando o forte efeito da renda familiarsobre o crescimento durante o primeiroano de vida. Por exemplo, uma criança nas-cida com 2.500 g, em uma família com ren-da inferior a um salário mínimo, apresenta-

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va-se, em média, 1.200 g abaixo do pesoideal aos 12 meses, enquanto que uma crian-ça com o mesmo peso ao nascer mas no gru-po de renda acima de 10 salários mínimos jáhavia recuperado este déficit e encontrava-seexatamente com o peso ideal.

Os efeitos conjuntos da renda familiar edo peso ao nascer sobre o peso (escore-z) aos9-15 meses de idade foram investigados atra-vés de análise de convariância, que demons-trou que ambas as variáveis explanatóriastêm efeitos independentes e altamente signi-ficativos (P<0,0001), não havendo interação- no sentido estatístico da palavra - entreas mesmas. Cabe notar que, uma vez que opeso ao nascer já resulta em parte da situa-ção sócio-econômica, o papel da renda fami-liar deve ser ainda maior do que o sugeridoacima.

4. CONCLUSÕES

O estudo longitudinal das crianças nasci-das em 1982 em Pelotas mostrou que, apesardas dificuldades inerentes à pesquisa epide-

miológica em nosso meio, foi possível iden-tificar uma coorte de crianças, representati-va de toda a população de uma cidade detamanho médio, e acompanhá-las prospecti-vamente com uma perda relativamente pe-quena por um período de aproximadamentedois anos.

Além dos achados do estudo perinatalque já foram parcialmente publicados (Bar-ros e col.3), os resultados preliminares desteestudo mostram algumas das potencialidadesda utilização destes dados na investigaçãodos determinantes pré e pós-natais da saúdeinfantil, assim como no estudo da interaçãoentre fatores sociais e biológicos. Diversosindicadores de utilização de serviços de saú-de foram também colhidos, o que permitiráseu uso na avaliação da cobertura e possi-velmente da efetividade destes serviços.

Espera-se continuar a acompanhar o de-senvolvimento destas crianças, examinando-asnovamente no início de 1986, e possivelmen-te em 1989 quando ingressarem na rede es-colar.

VICTORA, C.G. et al. [Study in length of children born in Pelotas, Rio Grande do Sul, Bra-zil, in 1982. Metodology and preliminary results]. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 19:58-68,1985.ABSTRACT: A cohort of 6,011 urban children born in 1982 in the hospitals of Pelotas,

Rio Grande do Sul, was followed up so that their morbidity, mortality and growth could beassessed. These children accounted for over 99% of all births in the city. A 30% sample of thechildren were visited at home when approximately 12 months old, and the whole populationwas visited at about 20 months of age. It was possible to locate 81% of the children at 12months. This proportion increased to 86% at 24 months, due to a change in the logistics ofthe field work which then included visiting all 69,000 households in the city to locate chil-dren whose families had moved within the urban area. The methodology and main difficul-ties encountered are discussed, and the characteristics at birth of children who were locatedat the first follow-up visit was compared to those of children lost to follow-up. Children whowere not located tended to come from poorer families but the overall differences were notvery marked, with more than 75% of children in any of the major socio-economic subgroupsbeing located. The potential use of the large amount of information available on each child isdemonstrated by the study of the relationships between birthweight, family income and nu-tritional status at 9-15 months of age. Birthweight is shown to be a very strong predictor ofweight for age, length for age and, to a lesser extent, weight for length, there being virtuallyno malnutrition among children born with more than 3,000 g. Birthweight is also shown to beclosely associated with weight at 9-15 months within all five family income groups, with a gi-ven absolute difference in weight at birth persisting to the end of the first year. However, dueto the important effects of income on weight gain, a child born with 2,500 g in the lowest in-come group would be on average 1,200 g below the standard NCHS weight at 12 months,whereas a child with the same birthweight from the highest income group would have caughtup with the standard. This study has shown that it is possible to identify a population basedcohort of children and to follow them up for two years in a medium-sized Brazilian city.

UNITERMS: Child, development. Epidemiologic methods.

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Recebido para publicação em 07/11/1984.Aprovado para publicação em 17/12/1984.