estudo de três aspectos do regime do negócio jurídico

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Estudo de Três Aspectos do Regime do Negócio Jurídico Zhang Chi* Com a criação do conceito de negócio jurídico, concebido por teóricos alemães da doutrina de codificação, a teoria do direito civil concluiu o seu processo de desenvolvimento histórico que consistiu na passagem «da identidade ao contrato e do contrato ao regime» 1 . O estabelecimento do regime do negócio jurídico constituiu um dos maiores sucessos da ciência do direito civil, ocupando um lugar de relevo na teoria do direito civil e exercendo grande influência sobre a legislação civil dos países do sistema jurídico continental e dos países cuja legislação assenta no direito material. Todavia, como o regime do negócio jurídico regula factos concretos através de normas gerais e abstractas, mesmo na Alemanha, é considerado o instituto mais difícil de compreender. Dada a sua difícil compreensão, foi inevitável o desvio de outros países quando usaram como referência ou aplicaram o referido regime, como é o nosso caso. É pena que durante um longo período de tempo, os teóricos do direito civil do nosso país só se tivessem dedicado à apresentação do regime do negócio jurídico e raramente se tivessem debruçado numa análise mais profunda deste regime, nomeadamente faltou-nos um estudo sobre a racionalidade das normas que diferem do regime tradicional do negócio jurídico. Neste texto, procuraremos abordar estas questões de uma forma comparativa, esperando estimular opiniões mais valiosas. I. A relação entre acto civil e negócio jurídico civil Sabemos que o estabelecimento do regime do negócio jurídico está estreitamente ligado ao desenvolvimento da economia de mercado e deriva do espírito de autonomia do direito privado. No caso do nosso país, devido a razões históricas, a economia de mercado ainda não está suficientemente desenvolvida. Neste contexto, não foi possível criar no nosso país um regime do negócio jurídico que consagrasse a vontade liberal. Por outro lado, o sucesso de outros países não foi considerado importante nem serviu de referência, pelo que não foi possível falar de aperfeiçoamento ou de inovação do regime do negócio jurídico. Porém, à medida que o sistema económico passou do sistema tradicional de economia planificada para o sistema socialista de economia de mercado, e que esta economia se foi desenvolvendo, tornou-se inevitável o aparecimento de um

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Estudo de Três Aspectos do Regime do Negócio JurídicoZhang Chi*

Com a criação do conceito de negócio jurídico, concebido por teóricos alemães da doutrina de codificação, a teoria do direito civil concluiu o seu processo de desenvolvimento histórico que consistiu na passagem «da identidade ao contrato e do contrato ao regime»1. O estabelecimento do regime do negócio jurídico constituiu um dos maiores sucessos da ciência do direito civil, ocupando um lugar de relevo na teoria do direito civil e exercendo grande influência sobre a legislação civil dos países do sistema jurídico continental e dos países cuja legislação assenta no direito material. Todavia, como o regime do negócio jurídico regula factos concretos através de normas gerais e abstractas, mesmo na Alemanha, é considerado o instituto mais difícil de compreender. Dada a sua difícil compreensão, foi inevitável o desvio de outros países quando usaram como referência ou aplicaram o referido regime, como é o nosso caso. É pena que durante um longo período de tempo, os teóricos do direito civil do nosso país só se tivessem dedicado à apresentação do regime do negócio jurídico e raramente se tivessem debruçado numa análise mais profunda deste regime, nomeadamente faltou-nos um estudo sobre a racionalidade das normas que diferem do regime tradicional do negócio jurídico. Neste texto, procuraremos abordar estas questões de uma forma comparativa, esperando estimular opiniões mais valiosas.

I. A relação entre acto civil e negócio jurídico civil

Sabemos que o estabelecimento do regime do negócio jurídico está estreitamente ligado ao desenvolvimento da economia de mercado e deriva do espírito de autonomia do direito privado. No caso do nosso país, devido a razões históricas, a economia de mercado ainda não está suficientemente desenvolvida. Neste contexto, não foi possível criar no nosso país um regime do negócio jurídico que consagrasse a vontade liberal. Por outro lado, o sucesso de outros países não foi considerado importante nem serviu de referência, pelo que não foi possível falar de aperfeiçoamento ou de inovação do regime do negócio jurídico. Porém, à medida que o sistema económico passou do sistema tradicional de economia planificada para o sistema socialista de economia de mercado, e que esta economia se foi desenvolvendo, tornou-se inevitável o aparecimento de um regime do negócio jurídico que acompanhasse esta situação. Aliás, este regime já tinha sido adoptado nos Princípios Gerais do Direito Civil do nosso país. Embora as normas relativas ao negócio jurídico tivessem sido introduzidas tardiamente na nossa legislação civil, continham

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uma definição do conceito de negócio jurídico diferente do conceito da teoria tradicional. No nosso direito civil, o negócio jurídico civil tem a seguinte definição: «Acto legal praticado pelos cidadãos ou pessoas colectivas para estabelecer, modificar ou cessar direitos e deveres civis». Além disso, o conceito de negócio jurídico nulo foi substituído pelo conceito de acto civil nulo. Inicialmente, havia mais teóricos que consideravam que estas normas davam solução aos aspectos contraditórios da teoria tradicional dos negócios jurídicos, ou seja, à questão de os negócios jurídicos poderem ser actos legais, actos nulos e actos anuláveis. Havia até quem defendesse que a introdução dos conceitos de negócio jurídico civil e acto civil na nossa legislação civil constituiu um avanço e ao mesmo tempo uma ruptura com a teoria tradicional do negócio jurídico2. Todavia, recentemente, os teóricos têm apresentado muitas opiniões opostas. Eles consideram que as normas constantes dos Princípios Gerais do Direito Civil do nosso país são superficiais, por isso não conseguem demonstrar completamente e dominar bem as características substanciais do negócio jurídico, constituindo apenas a sua redução a escrito. Tais soluções não resolvem os problemas existentes e implicam maior confronto e confusão entre a teoria e a legislação em matéria civil. Estando de acordo com esta opinião, vamos agora proceder à sua análise em concreto.

Em primeiro lugar, o aparecimento de novas questões teóricas levou-nos para uma situação dilemática. Uma das questões é a definição do acto civil, relativa à qual não há sintonia no sector teórico. Obviamente, a existência de opiniões diferentes implica definições diversas quanto ao acto civil. Há quem considere que os actos civis só se referem aos actos civis nulos e anuláveis3. Outros defendem que o conceito de acto civil é um conceito mais amplo, ao passo que os negócios jurídicos e os actos civis nulos e anuláveis não são mais do que categorias desse conceito. Estes ainda consideram que relativamente aos negócios jurídicos e actos civis nulos e anuláveis, os actos civis exercem funções de orientação4. Outra questão reside na definição do acto civil na ciência jurídica. De acordo com estudos actuais relativos a esta matéria, parece predominar a opinião de que os actos civis desempenham uma função de orientação. No entanto, esta opinião não está conforme à explicação da ciência jurídica uma vez que, ao considerar que o acto civil é um conceito mais amplo, isto significa que estes actos carecem da declaração de vontade como elemento constitutivo. Todavia, na ciência jurídica, entende-se por acto civil todos os actos que produzem determinados efeitos jurídicos nos termos das disposições em matéria civil5. Por outras palavras, os actos civis devem abranger tanto os actos que carecem ou não da declaração de vontade, como os actos legais e ilegais. O alargamento arbitrário do conteúdo de um conceito reduz certamente a sua extensão. Neste sentido, é difícil reflectir de uma forma científica sobre o conceito de acto civil, bem

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como é impossível integrá-lo no sistema completo da ciência jurídica. A terceira questão é a interpretação dos conceitos respeitantes aos negócios jurídicos nulos. Mesmo que deixemos de parte as questões de âmbito mais lato e entremos na análise do próprio sistema do direito civil, verificamos que existem obstáculos impossíveis de superar, porque o regime do negócio jurídico é uma concepção abstracta concebida com base em actos concretos como o contrato, o testamento e a adopção. Se retirarmos deste regime o conceito de negócio jurídico nulo e o substituirmos pelo conceito de acto civil nulo, quais serão as denominações adequadas, nomeadamente para contrato nulo, testamento nulo e adopção nula? Se não conseguirmos encontrar uma definição racional, a questão contraditória existente não será completamente resolvida. Estas normas não estão conformes à realidade, sendo apenas soluções aparentes que não resolvem o problema fundamental, não sendo, portanto, científicas e viáveis.

Em segundo lugar, novos conflitos surgiram também no âmbito legislativo e que são difíceis de explicar. Nos Princípios Gerais do Direito Civil do nosso país, o Capítulo VI e a sua Secção I têm como epígrafe: «Negócio jurídico civil», enquanto os actos civis nulos se integram no artigo 58.º da Secção I. De acordo com uma lógica de conceito e categoria, as epígrafes dos capítulos e das secções devem conter conceitos mais amplos e não categorias. No entanto, na nossa legislação acontece precisamente o contrário. Além disso, se nos termos das normas em concreto, os negócios jurídicos civis podem ter uma forma oral, escrita ou outra, porque é que os actos civis não podem ter as mesmas formas? Obviamente que podem. Isto significa que as normas concretas vigentes são confusas em termos lógicos.

As normas em matéria civil existentes implicaram novos conflitos e contradições, o que levou inevitavelmente os teóricos a reflectir sobre o cerne da questão. O resultado da reflexão é que a contradição que se pensava existente no regime do negócio jurídico não existe efectivamente, sendo apenas uma ilusão. Isto prova que a nova concepção de acto civil na legislação civil é uma medida dispensável. Esta conclusão partiu de dois raciocínios diferentes. Primeiro, considerou-se que os conceitos de negócio jurídico e negócio jurídico nulo são autónomos e diferentes, tendo cada um o seu significado próprio6. É o mesmo que acontece relativamente aos conceitos de revolução e revolução falsa, renminbi e renminbi falso, que nunca considerámos conceitos contraditórios. No caso do negócio jurídico, se acrescentarmos o adjectivo «nulo», não veremos nenhuma contradição entre os conceitos de negócio jurídico e negócio jurídico nulo. Esta ideia, assente na lógica segundo a qual «uma pessoa de barro não é uma pessoa e um cavalo de papel não é um cavalo», é muito simples, clara e compreensível. No entanto, depois de uma reflexão mais profunda sobre a mesma ideia, esta não parece ser convincente. Isto

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porque uma pessoa de barro não tem a mesma natureza que uma pessoa de carne e osso, e a relação entre negócio jurídico e negócio jurídico nulo não é igual à relação existente entre «pessoa de barro e pessoa de carne e osso», mas sim uma relação de «pessoa saudável e pessoa doente». Se não se conseguir provar que um doente não é pessoa, então esta ideia ainda é frágil em termos lógicos7. Segundo, considera-se que a existência de contradições no regime do negócio jurídico se deve à não separação das fases de constituição e de produção de efeitos dos negócios jurídicos e à determinação da legalidade como uma característica essencial dos negócios jurídicos, quando o nosso país usou como referência a legislação civil da então URSS. Esta perspectiva é tão relevante que merece uma análise mais profunda.

Na teoria tradicional do direito civil, relativamente ao negócio jurídico, existem as fases da constituição e da produção de efeitos, tendo sido previstos os respectivos requisitos8. A constituição do negócio jurídico consiste na ocorrência de um facto que reune os requisitos constitutivos do negócio jurídico. São requisitos constitutivos do negócio jurídico os elementos de facto previstos na lei e indispensáveis à sua constituição, incluindo requisitos constitutivos gerais e especiais. São três os requisitos constitutivos gerais do negócios jurídico. 1) As partes. O termo «parte» tem significados diferentes consoante o contexto linguístico, significando aqui apenas os autores de um negócio jurídico e não o adquirente ou o responsável pelos seus efeitos. A falta deste requisito compromete a constituição do negócio jurídico. 2) A declaração negocial. O negócio jurídico tem como elemento constitutivo a declaração negocial, pelo que sem este elemento o negócio jurídico não será constituído. 3) O objectivo das partes de produzir determinados efeitos. Falar em objectivo do negócio jurídico é falar no seu conteúdo. O conteúdo de todos os negócios jurídicos é a pretensão de produção de determinados efeitos jurídicos. Do exposto se conclui que não pode faltar a um negócio jurídico concreto qualquer um dos requisitos acima referidos. Um acto que não preencha todos os requisitos mencionados, ou seja, o negócio jurídico que não foi constituído, não é o negócio jurídico de que aqui falamos. Se o negócio jurídico não tiver sido constituído, não podemos falar de efeitos jurídicos pretendidos pelas partes. Os requisitos constitutivos especiais são os que a lei prevê tendo em conta a especificidade de determinados negócios jurídicos, como é o caso dos negócios reais e dos negócios formais. Estes negócios jurídicos além de terem que preencher os requisitos constitutivos gerais, carecem ainda da entrega do objecto ou de uma determinada forma legal, caso contrário, não serão constituídos.

Quando um negócio jurídico produz efeitos, isto significa que este já está dotado das condições de validade, produzindo uma situação objectiva pretendida pelas partes, em termos legais ou convencionais. Por outras palavras, a produção de efeitos do negócio jurídico tem como pressuposto a satisfação das condições de validade

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previstas na lei. Um negócio jurídico constituído que não preencha as condições de validade é considerado nulo. As condições de validade do negócio jurídico compreendem condições gerais e condições especiais. As primeiras exigem que as partes tenham a devida capacidade negocial, que a vontade declarada corresponda à vontade real e que o conteúdo do negócio seja definitivo, possível, legal e estável. As segundas são aquelas que a lei prevê para situações especiais como o testamento e os negócios jurídicos cuja validade depende da concretização de certas condições. Este tipo de negócios jurídicos produzem, em termos legais ou convencionais, efeitos constitutivos e efeitos executórios vinculativos para as partes de uma relação jurídica civil. Quando um negócio jurídico não satisfizer as condições legais de validade, isto significa que os interesses de uma das partes ou de ambas, do país, do grupo ou de outros serão prejudicados. Assim, para evitar este tipo de situação, a lei estabeleceu o regime da nulidade.

A falta de requisitos constitutivos compromete a constituição do negócio jurídico, ao passo que a falta de condições de validade afecta a validade do negócio constituído. Quer a não constituição do negócio jurídico, quer a nulidade do mesmo, são duas situações semelhantes, isto é, em ambas as situações, não se produzem os efeitos jurídicos pretendidos pelas partes. Apesar disso, as referidas situações são diferentes em muitos aspectos, pelo que não se podem confundir9. Estas diferenças residem concretamente nos seguintes aspectos. 1) A fase em que ocorre cada uma das duas situações. A constituição do negócio jurídico é a primeira fase, sendo o pressuposto lógico da validade do mesmo. A produção dos efeitos do negócio jurídico é a segunda fase, que constitui a concretização dos efeitos do negócio jurídico enquanto facto jurídico, ou seja, é o momento em que a relação jurídica resultante do negócio jurídico começa a produzir efeitos vinculativos para as partes. 2) A natureza. A constituição do negócio jurídico pressupõe a existência de um facto, ou seja, a existência ou não do negócio depende da existência ou não de factos objectivos. O resultado será a constituição ou a não constituição do negócio. A validade do negócio jurídico é uma questão de conformidade do negócio com o espírito jurídico. Para ver se estão preenchidos os requisitos de validade, é necessário recorrer à interpretação da lei ou do espírito jurídico relativamente a actos concretos. O resultado não será apenas a nulidade do negócio, podendo haver outras hipóteses como a validade, a anulabilidade e a pendência dos efeitos. 3) Possibilidade de integrar os requisitos de validade. A falta dos requisitos constitutivos leva à não constituição do negócio jurídico e não pode ser integrada, mas em determinadas circunstâncias, a lei permite que sejam integrados os negócios jurídicos aos quais faltem requisitos de validade. 4) Os efeitos jurídicos. Se o negócio jurídico não for constituído, normalmente as partes só têm responsabilidades civis, ficando obrigadas à indemnização por incumprimento

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de uma obrigação contratual, ou ficando obrigadas à restituição à outra parte por enriquecimento sem causa após o cumprimento do contrato pela mesma parte, não estando em causa responsabilidades de outra natureza. Quando um negócio jurídico for determinado nulo ou for anulado, isto tem como consequência não só a responsabilidade civil como a restituição dos bens ou a indemnização por enriquecimento sem causa ou por incumprimento de obrigação contratual, mas também pode dar origem a responsabilidade administrativa como é o caso do pagamento daquilo que se recebeu indevidamente e das multas, ou pode mesmo resultar em responsabilidade penal.

As diferenças acima mencionadas demonstram que os princípios da constituição do negócio jurídico e os da sua produção de efeitos são completamente distintos, revelando que os negócios jurídicos são factos jurídicos cujo elemento essencial é a declaração negocial que produz efeitos de direito privado e que a legalidade não é uma característica substancial do negócio jurídico. Em concreto, isto significa que a constituição do negócio jurídico resulta da aplicação do princípio da autonomia da vontade, enquanto a sua eficácia resulta da aplicação do princípio da interferência do Estado. A não interferência da lei na constituição do negócio jurídico deve-se às características do direito civil. Isto porque a legalidade consagra a vontade do Estado, sendo uma avaliação jurídica do Estado relativa a um acto concreto, enquanto as relações jurídicas reguladas pelo direito civil são relações da vida privada. A complexidade e pluralidade destas relações estão estreitamente ligadas ao desenvolvimento e progresso da economia de mercado. Se a lei regular estas relações impondo requisitos legais, isto será uma exigência excessiva ao conhecimento e capacidade do homem, o que não está conforme às regras objectivas do desenvolvimento. Tanto mais que, é uma missão própria do direito civil a protecção da liberdade de actuação das pessoas dentro de uma esfera legalmente determinada, ou seja, a declaração negocial das partes que se encontram ao mesmo nível está exclusivamente dependente da sua livre vontade e não pode ser aqui aplicado o princípio da legalidade. Obviamente, a liberdade também tem limites, pois se a realização do negócio jurídico prejudicar os interesses do Estado, de um grupo ou de terceiros, a lei tem que intervir para manter e proteger a economia e a ordem social. Assim, a interferência do Estado tem por objectivo completar e melhorar a realização da autonomia da vontade. Neste sentido, a nossa legislação civil não pode ter apenas em conta a simplificação da técnica legislativa e do processo judicial e juntar as fases de constituição e de produção de efeitos dos negócios jurídicos, devendo antes separar as disposições sobre estas duas matérias. Assim, não só serão resolvidas as questões que consideramos contraditórias existentes no regime do negócio jurídico, mas podemos também trabalhar no sentido de uma maior racionalização no conteúdo

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desse mesmo regime, fazendo com que seja realizado o espírito do direito civil - a autonomia.

É de notar que, apesar da distinção entre as fases da constituição e da produção de efeitos do negócio jurídico, estas não estão completamente separadas. Podemos dizer que se trata de dois conceitos simultaneamente ligados e separados. A constituição do negócio jurídico significa que este já está dotado da capacidade de produzir, modificar e cessar uma relação jurídica civil, enquanto que a sua produção de efeitos simboliza o início dos efeitos vinculativos de uma relação jurídica civil concreta. Esta situação é como as modificações da física ou da química, em que um novo fenómeno começa a desenvolver-se logo que acabou o processo de desenvolvimento de outro fenómeno. Normalmente a constituição do negócio jurídico simboliza o início dos efeitos vinculativos relativos às partes de uma relação jurídica civil, salvo quando o negócio jurídico não está dotado das condições de validade. Pelo contrário, a não constituição do negócio jurídico compromete estes efeitos. Pela mesma razão, se um negócio jurídico constituído não conseguir satisfazer as condições de validade legais, este não produzirá quaisquer efeitos em consequência da determinação legal da sua nulidade, mantendo-se no seu estado inicial. Assim sendo, quer se trate de um negócio válido, quer se trate de um negócio nulo, os seus efeitos retroagem ao momento da sua constituição. É certo que os fenómenos sociais não são tão mecânicos como os fenómenos naturais. As pessoas podem regular e interpretar os efeitos vinculativos das relações jurídicas de acordo com a iniciativa subjectiva, ou seja, podem dividir estes efeitos em constitutivos e executórios, nos termos legais ou convencionais. Mesmo assim, não há contradição entre esta situação e a relação supramencionada existente entre o negócio jurídico e os efeitos vinculativos da relação jurídica10.

II. A relação entre o negócio jurídico e a declaração negocial

No sec. XVIII, Christian Wolff, na sua obra Teoria do Direito Natural, explicou pela primeira vez o conceito de declaração negocial. A teoria da declaração negocial chamou logo a atenção dos teóricos alemães11. Inicialmente, no regime do negócio jurídico alemão, o conceito de declaração negocial era considerado sinónimo de negócio jurídico. Mas os teóricos contemporâneos consideram que os negócios jurídicos são variados, pois alguns carecem da conformidade da declaração negocial das duas partes, ao passo que outros necessitam não só da conformidade da declaração negocial mas também do acto de entrega, pelo que o negócio jurídico e a declaração de vontade são diferentes. Assim, dada a distinção entre a declaração negocial e o negócio jurídico, estes são dois conceitos fundamentais do regime do

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negócio jurídico. Não obstante esta distinção, os teóricos consideram que a declaração negocial e o negócio jurídico estão estreitamente ligados, sendo a declaração negocial um pressuposto do negócio jurídico. Por outro lado, enquanto elemento essencial do negócio jurídico, esta declaração é obviamente uma declaração negocial, uma vez que uma simples declaração de vontade autónoma não produz os efeitos jurídicos pretendidos. Isto significa que «a declaração negocial só constitui um elemento integrante ‘num conjunto de factos jurídicos’ complexo e abrangente»12. Além disso, isto mostra que a declaração negocial tem um papel relevante no regime do negócio jurídico. Pelo que, a teoria da declaração negocial tem grande importância nos principais países que adoptam o sistema jurídico continental como a Alemanha e o Japão, em cujos códigos civis as normas relativas à declaração negocial estão integradas no capítulo dedicado especialmente aos negócios jurídicos13.

Genericamente, entende-se por declaração negocial o acto de exteriorização da vontade do declarante de constituir um negócio jurídico, realizado de acordo com a sua própria pretensão e segundo uma determinada forma. Os teóricos não levantaram muitas questões quanto à definição da declaração negocial, mas não chegaram a consenso relativamente aos seus elementos constitutivos. Alguns consideram que esta é composta por dois elementos — a vontade e a declaração. Outros entendem que são três os seus elementos constitutivos, isto é, a vontade negocial, a vontade de declarar e o acto de declarar. Outros defendem que o motivo, a vontade negocial, a vontade de declarar e o acto de declarar são os quatro elementos constitutivos da declaração negocial. Outros ainda, consideram que a vontade de atingir um determinado objectivo, a vontade negocial, a vontade de declarar, a vontade de agir e o acto de declarar, são os cinco elementos constitutivos da declaração negocial. De facto, o cerne da discussão reside na questão da compreensão e delimitação da vontade subjectiva, não estando em causa o acto exterior, ou seja, o acto objectivo de declarar14. No nosso entender, o motivo, a vontade de atingir um determinado objectivo e a vontade de agir não devem ser considerados elementos constitutivos da declaração negocial, visto que os motivos são tão variados que é difícil determiná-los. Na perspectiva jurídica, a vontade de atingir um determinado objectivo equivale à vontade negocial, e não há necessidade de distinguir a vontade de agir e a vontade de declarar. Nesse sentido, baseando-se no processo psicológico, a declaração negocial deve ser composta por três elementos, a saber, a vontade negocial, a vontade de declarar e o acto de declarar. A vontade negocial é a intenção subjectiva do declarante de concretizar determinados efeitos jurídicos, incluindo a vontade negocial real e a declarada. Normalmente, é difícil conhecer a vontade real. Assim, em termos jurídicos, a vontade negocial deve ser, em princípio, a vontade declarada. A vontade de declarar corresponde à vontade de exteriorizar a vontade negocial, sendo

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uma ligação entre a vontade negocial e o acto de declarar. O acto de declarar é um acto com uma determinada forma através do qual é expressa a vontade negocial. Tal distinção minuciosa é fundamental para fixar o conteúdo da declaração negocial em termos legislativos e práticos, com vista à determinação dos efeitos do negócio jurídico.

Embora não haja uma ideia comum quanto ao conteúdo da declaração negocial, esta não resultará em mais do que duas situações. 1) Uma situação que seria ideal em que há convergência entre a vontade e a declaração, não implicando qualquer problema que careça de avaliação. 2) Uma situação de divergência entre a vontade e a declaração, situação em que é necessário optar por uma ou por outra. Relativamente a esta questão, há sempre muitas discussões no sector do direito civil do sistema jurídico continental. Estas discussões traduzem-se, principalmente, em três teorias: a teoria da vontade, a teoria da declaração e a teoria ecléctica.

A teoria da vontade, que se baseia na protecção do declarante, considera que, relativamente à declaração negocial a lei atribui efeitos jurídicos tendo em conta a vontade do declarante e que a declaração é apenas uma forma de conhecimento dessa vontade, pelo que é nula uma simples declaração que não corresponda à vontade real do declarante de produzir determinados efeitos.

A teoria da declaração, que tem como ponto de partida o princípio da protecção da segurança do comércio, considera que a vontade não pode ser directamente apreendida, só podendo ser conhecida através da declaração, pelo que independentemente da vontade real, os efeitos jurídicos devem ser atribuídos com base no acto declarativo.

A teoria ecléctica considera que ambas as teorias extremistas da vontade e da declaração têm defeitos, por isso, tendo em conta o interesse geral, deve-se tomar uma atitude ecléctica, estabelecendo excepções com base na teoria da vontade ou na teoria da declaração. Na prática, os países devem optar pela solução mais adequada à sua própria situação.

Das três teorias referidas, a da vontade resultou do princípio da autonomia da vontade, realçando demais o indivíduo. Esta teoria favorece muito o declarante, mas se o declaratário acreditar na validade da sua declaração, ele será prejudicado inesperadamente. Acresce ainda que, é sempre difícil conhecer a vontade real em actividades civis. Por seu turno, a teoria da declaração atenta mais à defesa dos interesses do declaratário, à segurança do comércio e à sociedade. Segundo esta teoria, os interesses do declaratário não serão afectados, mas ela não chega para proteger a vontade real do declarante. A teoria ecléctica não vai a nenhum extremo, levando simultaneamente em consideração os interesses das duas partes e os interesses das partes e da sociedade, pelo que é a teoria que melhor consagra a

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justiça da lei e que tem maior acolhimento pelos países na sua legislação civil. A teoria ecléctica é a teoria predominante. Relativamente ao estabelecimento de excepções com base na teoria da vontade ou na teoria da declaração, os países tomam posições diferentes. No direito civil de países como o Japão e a Suíça optou-se por estabelecer excepções com base na teoria da vontade, ao passo que o direito civil alemão defende o estabelecimento de excepções partindo da teoria da declaração. No entanto, com o desenvolvimento económico, apareceram actividades no mercado que se processam com maior celeridade. Atendendo à celeridade da transacção de bens e à segurança do comércio e considerando os interesses das duas partes e os interesses das partes e da sociedade, o direito civil, enquanto regulador das relações patrimoniais entre sujeitos do mesmo nível, deve optar pela solução ecléctica que sugere o estabelecimento de excepções com base na teoria da declaração15.

Atendendo à legislação civil dos Estados representativos do sistema jurídico continental, para determinar de uma forma justa o conteúdo da declaração negocial, estes países procederam a uma regulação detalhada das situações em que é necessário determinar o conteúdo da declaração negocial.

Estas situações são de dois tipos16.Em primeiro lugar, a declaração divergente da vontade real, que se subdividia

ainda em declaração consciente e declaração inconsciente do declarante. A primeira refere-se às declarações simuladas, que se designam igualmente por divergências intencionais e que abrangem as declarações simuladas unilaterais e bilaterais. As declarações simuladas unilaterais são a reserva mental. Relativamente à reserva mental, o Código Civil alemão distingue ainda a reserva da vontade real da declaração não séria. As declarações simuladas bilaterais são declarações simuladas combinadas entre as partes. O Código Civil alemão introduz igualmente nesta matéria os negócios dissimulados. Relativamente à declaração não intencional do declarante, esta refere-se ao erro, aliás à divergência acidental. Quanto ao erro, os países não estão em sintonia, mas todos entendem que só se considera erro aquilo que tenha importância no comércio. Quanto à validade da reserva mental, o direito civil estrangeiro prevê que, em princípio, a reserva mental é válida, salvo quando o declaratário se aperceba da reserva mental do declarante. O direito alemão fez um pequeno ajustamento relativamente à declaração não séria. Em princípio, a declaração não séria é nula, mas se o declaratário acreditar nela, esta será válida. O declarante deve responsabilizar-se pela indemnização devida pelos prejuízos causados ao declaratário, até ao montante correspondente aos benefícios que ele deveria obter durante a vigência da declaração negocial. Em relação à validade das declarações simuladas combinadas, em princípio, o direito civil estrangeiro considera-as nulas e não oponíveis em relação a terceiros de boa fé. Quanto à validade dos negócios dissimulados, deve ter-se em conta o

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preenchimento dos requisitos legais. No que respeita à validade do erro, o direito civil de cada país tem as suas próprias normas, alguns países como a Alemanha considera-o nulo, ao passo que outros países como o Japão considera-o anulável. Mas, o direito civil japonês determina ainda que o declarante com culpa relevante não pode invocar a nulidade do erro.

A outra situação em que é necessário determinar o conteúdo da declaração negocial é a situação de declaração negocial forçada ou declaração negocial viciada, que inclui o dolo e a coacção. A legislação estrangeira considera nula este tipo de declaração. O facto de a lei prever requisitos constitutivos e efeitos jurídicos diferentes para situações diversas visa defender e equilibrar os interesses gerais, consagrando o princípio da teoria ecléctica.

Todavia, a vida social não para de mudar, implicando questões complicadas. Às vezes, é difícil fixar o conteúdo da declaração negocial mesmo que se recorra aos princípios previstos na lei. A razão fundamental reside na pluralidade de significado das palavras. Palavras ou termos diferentes podem ter significados distintos que fazem com que não seja conhecida a vontade real do declarante. É óbvio que não se pode ignorar as situações de desconhecimento da vontade real do declarante, resultantes do seu nível cultural ou da sua falta de conhecimento jurídico, ou até do uso consciente ou inconsciente de palavras ou termos inadequados, com o objectivo de fugir à lei ou atingir objectivos ilegítimos17. A questão mais conhecida e complicada é a desconformidade entre a designação e a realidade do negócio jurídico constituído através da declaração negocial, como é o caso de um acto declarado com a designação de compra e venda sem que este acto tenha o conteúdo correspondente daquele tipo de negócio. A designação do negócio jurídico refere-se ao seu nome e a realidade do negócio jurídico refere-se ao seu conteúdo. A questão da divergência entre a designação e a realidade do negócio jurídico é a mesma que pode existir em relação a qualquer outra coisa. A relação entre a designação e a realidade de uma coisa resulta do costume. Uma determinada designação refere-se certamente a uma realidade concreta, pois uma realidade traduz-se necessariamente numa designação. As coisas podem ter designações diferentes consoante as suas características, mas uma vez determinada a designação de qualquer coisa, especialmente quando esta seja reconhecida pela sociedade, esta designação e a realidade ficam unidas, inter-dependentes e inseparáveis. Nesse sentido, em situações normais, a designação e a realidade do negócio jurídico são coincidentes. No entanto, na prática judicial, verificam-se casos em que não existe coincidência entre uma e outra. Neste caso, urge resolver a questão de determinar a realidade segundo a designação ou determinar a designação com base na realidade. A melhor opção é, indubitavelmente, a determinação dos efeitos do negócio com base no seu conteúdo, visto que a relação

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entre designação e realidade é uma relação entre forma e conteúdo e este último elemento ocupa um lugar orientador. Assim, não podemos estar agarrados a designações. Porém, se houver dificuldades na determinação do conteúdo do negócio jurídico, isto é, quando o conteúdo de um negócio jurídico tanto pode ser considerado pertencente a um certo tipo como a um outro, é necessário determinar o seu conteúdo através da respectiva forma18. Convém esclarecer que não se trata de uma determinação do conteúdo do negócio jurídico baseada na sua designação, e muito menos da atribuição do direito de determinação a qualquer pessoa. Esta determinação do conteúdo do negócio jurídico através da respectiva forma deve traduzir-se no poder discricionário que a lei confere ao juiz. Se não se imposesse nenhuma limitação, haveria arbitrariedade judicial e obstáculos ao julgamento justo. Com efeito, na maior parte dos países do sistema jurídico continental, estão previstos no respectivo código civil, princípios e meios de interpretação da declaração negocial, que servem de fundamento ao juiz no julgamento e na pesquisa da vontade real das partes.

Em resumo, o princípio da interpretação da declaração negocial, aliás do negócio jurídico, é o de que não se pode ter como fundamento o simples significado das palavras, devendo antes fazer uma consideração global do objectivo da declaração das partes, do costume, das normas facultativas e do princípio da honestidade e crédito. Nesta consideração global, o objectivo da declaração é o elemento mais importante, sendo a base da determinação dos efeitos da declaração negocial. O costume ocupa um lugar secundário, isto é, quando não se conseguir determinar a vontade das partes, segue-se o costume. A seguir são as normas facultativas que se aplicam na interpretação, desde que as partes não tenham estabelecido cláusulas que excluam esta aplicação. O princípio da honestidade e crédito deve desempenhar funções de comando, orientando todas as formas de interpretação19.

Os meios concretos de interpretação da declaração negocial são os seguintes. 1) Interpretação do significado, ou seja, pesquisar a vontade real comum das partes na declaração, através das palavras e expressões que empregaram. 2) Interpretação da validade, isto é, se um negócio jurídico tanto pode ser considerado válido como nulo, deve ser considerado válido, a fim de satisfazer a pretensão das partes. 3) Interpretação global, ou seja, aquela que deve fundamentar-se no contexto em que se insere o negócio jurídico, a fim de determinar o conteúdo real da declaração negocial. 4) Interpretação do objectivo, segundo a qual quando existirem mais de duas interpretações relativamente a certas palavras, deve optar-se pela interpretação mais adequada ao objectivo do negócio jurídico. 5) Interpretação segundo o costume, isto significa que se deve seguir o costume praticado no comércio do local onde foi realizado o negócio jurídico. 6) Interpretação sincera, que deve fazer-se com base em

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padrões justos, razoáveis e atentes aos interesses de todas as partes20. É de referir que a interpretação da declaração negocial é diferente da interpretação da lei, uma vez que a primeira visa apenas pesquisar a vontade real das partes, sendo um pressuposto para a decisão do juíz no julgamento dos casos concretos, enquanto a segunda é uma actividade de procura de leis e de integração das suas lacunas, com o objectivo de descobrir a intenção legislativa. Por outro lado, a interpretação da declaração negocial é também diferente da determinação da divergência negocial. A interpretação da declaração negocial normalmente tem a ver com a incerteza relativa ao conteúdo da declaração negocial , enquanto a determinação da divergência negocial é uma questão de decisão sobre qual o princípio a aplicar na determinação do significado real de uma declaração negocial concreta e clara.

Em comparação com o que atrás foi dito, verifica-se que a teoria do direito civil do nosso país não tem dado importância suficiente ao estudo da declaração negocial, sendo muito superficiais as disposições sobre esta matéria previstas nos Princípios Gerias do Direito Civil do nosso país.

Em termos amplos, a teoria e a legislação em matéria de direito civil chinês não separaram a declaração negocial das condições de validade do negócio jurídico. Assim, analisando a técnica legislativa, podemos concluir que o grande volume de normas relativas à declaração negocial gera desequilíbrios nos diversos âmbitos do regime do negócio jurídico. Isto também pode fazer com que seja ignorada a diferença entre a declaração negocial e o negócio jurídico, realçando de mais a interferência da lei. Além disso, falta à nossa teoria e legislação em matéria de direito civil uma regulamentação global do conteúdo da declaração negocial, bem como medidas complementares sobre a aplicação das normas concretas, como por exemplo, não estão previstas disposições sobre a reserva mental e sobre os negócios dissimulados. Outro exemplo é o caso da recém-publicada Lei dos Contratos da República Popular da China, adiante designada por Lei dos Contratos. Esta lei introduziu alterações aos Princípios Gerais do Direito Civil, acrescentando normas sobre a interpretação da declaração negocial. Estas normas servem de fundamento ao juiz na determinação dos efeitos de certas declarações negociais, alterando a situação anterior em que os casos de não entendimento da vontade real ou de divergência entre a forma e o conteúdo do negócio jurídico só podiam ser considerados nulos. Mesmo assim, se não se estabelecerem regras concretas de interpretação, bem como o estatuto e validade das diversas formas de interpretação, as referidas normas não poderão produzir ao máximo os seus efeitos, pelo contrário, poderão gerar impactos negativos desnecessários.

Em termos restritos, uma das questões é a classificação indevida de certas matérias relacionadas com a declaração negocial, o que originou confusão no sistema

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do regime do negócio jurídico, como é o caso da separação das situações de aproveitamento do estado de risco e de injustiça, bem como a inserção dos actos de aproveitamento do estado de risco na categoria de declaração negocial viciada. Na realidade, os actos de aproveitamento do estado de risco normalmente geram injustiça. Mesmo que isto não se verifique em alguns casos especiais, os actos de aproveitamento do estado de risco também não podem ser inseridos na categoria do desvio à vontade real do declarante, visto que o direito civil já fez uma separação entre a coacção e o aproveitamento do estado de risco. Na coacção, o declarante encontra-se numa situação desfavorável resultante da prática de uma infracção pelo autor da coacção. No caso de aproveitamento do estado de risco, este estado de risco não resulta do dolo da outra parte, é simplesmente um aproveitamento por esta da situação difícil em que se encontra o declarante. Isto significa que o declarante tem conhecimento dos efeitos jurídicos pretendidos, pelo que a sua declaração deve ser uma manifestação da sua vontade real. Nesse sentido, o direito estrangeiro designa as situações de aproveitamento do estado de risco por negócios usurários, integrando-os no âmbito de violação da ordem pública e dos bons costumes. Outro exemplo é a separação das normas relativas às causas e aos efeitos do negócio. Na verdade, a injustiça tem uma determinada causa. Relativamente às causas de injustiça como o dolo, a coação, o aproveitamento do estado de risco e o erro relevante, já estão expressamente previstos os respectivos efeitos, mas na nossa legislação, a injustiça é considerada um acto civil anulável. Este facto trouxe novas dúvidas aos teóricos, fazendo com que não se sabia quais são as situações de injustiça. Da sua análise, verifica-se que as causas de injustiça podem ser divididas em causas originais e causas supervenientes. A nossa legislação regula, no regime do negócio jurídico, as situações de injustiça provocadas por causas originais, mas não estão previstas as situações de injustiça resultantes de causas supervenientes. As causas supervenientes não ocorrem na constituição do negócio jurídico, mas ocorrem depois da sua constituição e durante a sua vigência. Além disso, estas causas estão fora do controlo das partes, como é o caso do aumento dos preços e da inflação, sendo a situação mais conhecida a alteração das circunstâncias21. Por isso, não é possível regular esta matéria no regime do negócio jurídico. Daí verificar-se também que os simples actos de injustiça sem qualquer causa não podem existir no regime do negócio jurídico.

Outra questão é a avaliação errada dos efeitos de certas declarações negociais, o que dificultou a concretização da intenção legislativa. Em concreto, algumas situações semelhantes em termos de divergência negocial são muito diferentes quanto à sua validade, especialmente a determinação da nulidade em consequência de dolo e de coacção nos Princípios Gerais do Direito Civil do nosso país. É esta a questão mais

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discutida pelos teóricos. Os defensores da determinação da nulidade em consequência de dolo e de coacção entendem que os actos praticados com dolo ou coacção são ilegais, pelo que não há problema se estes forem considerados nulos. Por seu turno, os opositores consideram que os efeitos deste tipo de declaração negocial envolvem apenas interesses das partes, pelo que não se trata de uma situação de ilegalidade do conteúdo do negócio jurídico. Além disso, o declarante talvez não conheça a nulidade do negócio por determinadas razões, fazendo com que um negócio que deveria ser nulo, passasse a ganhar efeitos jurídicos, o que afecta gravemente a seriedade do regime jurídico. Pelo contrário, se os efeitos deste tipo de negócio forem considerados anuláveis, a questão da sua validade pode ser facilmente resolvida. Concordamos com este ponto de vista, mas entendemos que a determinação da anulabilidade deste tipo de negócio jurídico se deve à natureza do direito civil enquanto direito privado. Se as partes não invocarem a nulidade do negócio, não há possibilidade nem necessidade de o Estado intervir directamente no assunto e determinar a nulidade do negócio. Na elaboração da Lei dos Contratos, o legislador já levou em consideração a insuficiência das normas anteriores, deixando de considerar absolutamente nulo todo este tipo de negócio, passando os seus efeitos concretos a ser determinados de acordo com o facto de este prejudicar ou não os interesses do Estado. Se o negócio causar prejuízos aos interesses do Estado, é absolutamente nulo; se este só prejudicar os interesses das partes, é relativamente nulo. Todavia, esta regulamentação não resolve completamente as questões levantadas no âmbito legislativo, pelo que ainda não é certa a sua viabilidade, carecendo de ser provada na prática.

É inegável que esta regulamentação na nossa legislação afectou a integridade e qualidade científica do regime do negócio jurídico e a consagração do espírito da autonomia do direito privado. Assim, deve ser levada à ordem do dia a questão de como pode servir de referência, de forma racional, a legislação estrangeira em matéria civil, de acordo com a situação do nosso próprio país, reformulando o nosso regime do negócio jurídico. O raciocínio fundamental a seguir é manter o equilíbrio e articulação entre o princípio da autonomia da vontade e o da interferência da lei.

III. Determinação dos efeitos dos negócios jurídicos

Relativamente aos negócios jurídicos concretos, o direito civil avalia os seus efeitos em válidos, nulos, anuláveis e pendentes. Enquanto a determinação da validade dos negócios jurídicos é uma determinação positiva, a determinação da nulidade, anulabilidade e pendência é uma determinação negativa. Importa discutir

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sobre qual o fundamento para a referida determinação e porque é que os negócios jurídicos viciados têm efeitos diferentes.

No que respeita aos negócios jurídicos constituídos que preencham certas condições de validade, a teoria e a legislação em matéria civil de diversos países reconhecem os seus efeitos vinculativos para as partes. Porém, quanto ao fundamento para a sua determinação, estes países não estão de acordo. As doutrinas que mais influenciaram o direito civil moderno são a teoria da vontade, a teoria legal e a teoria da confiança22.

A teoria da vontade entende que a origem dos efeitos do negócio jurídico reside na vontade das partes, reforçando a natureza jurídica da vontade e considera que esta é dotada de efeitos independentemente da aplicação da lei e que a lei serve apenas para a confirmar. Esta teoria tem origem no direito natural. A formação e desenvolvimento do direito natural estavam estreitamente ligados à corrente da doutrina da vontade e da autonomia da vontade vigentes no séc. XIX.

A teoria legal considera que a origem dos efeitos do negócio jurídico reside na ordem jurídica objectiva e não na vontade das partes. As relações jurídicas formadas segundo a vontade das partes produzem efeitos só porque a lei reconhece que a sua vontade não viola a lei nem a ordem pública. Esta teoria exerce influência não só sobre a teoria e a legislação em matéria civil dos países do sistema jurídico continental, mas também sobre a formação e o aperfeiçoamento da teoria do direito civil dos países socialistas.

Na teoria da confiança, os efeitos do negócio jurídico traduzem--se na vinculação a que as partes da declaração negocial ficam sujeitas quando praticam um negócio jurídico. Quando terceiros adquirem confiança no declarante e vierem a ajudá-lo na constituição do negócio jurídico, ele deve cumprir as suas obrigações resultantes do negócio jurídico, caso contrário, deve-se exigir que o declarante as cumpra tendo em conta o princípio da protecção da confiança. Isto demonstra que a origem dos efeitos do negócio jurídico reside nos interesses criados pela confiança derivados do princípio da honestidade e crédito.

As referidas teorias demonstram, sob diversas perspectivas, a origem dos efeitos do negócio jurídico que os teóricos desejam esclarecer. A teoria legal é a mais convincente. Em relação à teoria da vontade, o seu ponto de vista segundo o qual a autonomia da vontade tem sempre prioridade, nega a necessidade de protecção pela coercibilidade da lei das relações jurídicas formadas segundo a vontade das partes e a necessidade da regulamentação dos outros elementos do negócio jurídico. Quanto à teoria da confiança, além de lhe faltar a generalidade, parece que este princípio está acima da defesa da igualdade e justiça. Assim, a teoria da vontade e a da confiança são as teorias mais criticadas pelos teóricos. No entanto, é de notar que, quando

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reconhecemos ou negamos um ponto de vista, devemos fundamentar a nossa posição e não podemos ser extremistas. Embora o princípio da autonomia da vontade tenha sido revisto na legislação civil, o seu valor no regime do negócio jurídico não pode ser ignorado. Pela mesma razão, também devemos tomar em consideração a vinculação das relações contratuais derivadas do princípio da confiança e a protecção legal da segurança do comércio.

Se a origem dos efeitos do negócio jurídico reside na determinação legal, então a confirmação e a negação dos seus efeitos são ambas uma determinação da lei. Relativamente aos negócios jurídicos que satisfaçam as condições de validade, a lei reconhece completamente a sua validade. Quanto aos negócios jurídicos que não preencham as condições de validade, ou seja, relativamente aos negócios viciados, a lei prevê várias hipóteses quanto à sua validade, sendo estas a nulidade, a anulabilidade e a pendência dos efeitos. Estas negações de diferentes graus produzem diferentes efeitos vinculativos para as partes, tendo cada uma as suas próprias características. Para uma apresentação mais fácil desta questão, convém esclarecê-las primeiro.

Os negócios jurídicos nulos são aqueles que não produzem quaisquer efeitos jurídicos desde a sua constituição. Os negócios jurídicos cujos efeitos estão pendentes são os que se encontram num estado em que os seus efeitos ainda não estão determinados, estando esta determinação dependente da ocorrência futura de certos factos. Os negócios jurídicos anuláveis são aqueles em que a lei confere o direito à anulação; se o negócio for anulado pelo exercício deste direito, este negócio jurídico é nulo; se o titular não exercer o direito à anulação ou o negócio não for anulado, este negócio é válido. Relativamente à nulidade dos negócios jurídicos, esta é uma deter-minação extremista da lei. A determinação da nulidade é independente da vontade das partes, não carece da invocação por parte das mesmas nem permite às partes integrar o negócio. Neste caso, desde que não estejam preenchidos os requisitos de validade, o negócio não produz, desde a sua constituição, quaisquer efeitos jurídicos pretendidos pelas partes. No que respeita aos negócios jurídicos com efeitos pendentes, a lei atribui-lhes uma outra consequência diferente da nulidade. Estes negócios podem passar a ser válidos ou nulos, pertencendo normalmente a um terceiro o direito de fazer esta determinação. A nulidade e a pendência dos efeitos dos negócios jurídicos têm características diferentes e evidentes, pelo que a legislação e a teoria em matéria civil não levantam problemas neste aspecto. Assim, não insistimos nesta questão. O que importa discutir aqui é a questão da determinação dos efeitos dos negócios jurídicos anuláveis.

Qual é a natureza dos efeitos dos negócios jurídicos anuláveis? Relativamente a esta questão, os teóricos não estão de acordo. Uns consideram que os efeitos dos

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negócios jurídicos anuláveis se encontram pendentes, enquanto outros entendem que estes efeitos são inválidos. Há ainda outros que qualificam estes negócios jurídicos como válidos, mas que conferem o direito à sua anulação.

O fundamento da pendência dos efeitos é o estado indeterminado em que se encontram os negócios jurídicos anuláveis. Uma vez exercido o direito à anulação pelo seu titular, o negócio em causa passa a ser considerado nulo desde a sua constituição. Pelo contrário, se o titular do direito à anulação reconhecer o negócio como válido ou este direito se extinguir com o termo do prazo de caducidade, o negócio é válido desde a sua constituição. Neste sentido, há duas hipóteses quanto à validade deste tipo de negócios: ou são válidos ou são nulos. Todavia, os negócios jurídicos anuláveis começam a produzir efeitos antes do exercício do direito à anulação, não estando os seus efeitos pendentes. O exercício deste direito faz com que o negócio passe a ser considerado nulo desde a sua constituição, ou seja, o exercício deste direito extingue os efeitos do negócio, pois estes efeitos não estavam pendentes. O não exercício deste direito, ou seja, o reconhecimento da validade do negócio mantém os efeitos já produzidos, não sendo uma determinação dos seus efeitos. Os negócios cujos efeitos estão pendentes nunca produzem efeitos antes da ocorrência de certos factos futuros. A sua validade ou nulidade normalmente dependem da realização ou não de determinados actos por terceiros. Por isso, no que respeita aos efeitos, os negócios jurídicos anuláveis são diferentes daqueles cujos efeitos estão pendentes. Daí que seja difícil admitir a ideia de qualificar os efeitos dos negócios jurídicos anuláveis como efeitos pendentes.

A defesa da invalidade dos efeitos dos negócios jurídicos anuláveis baseia-se principalmente em três fundamentos. 1) Este tipo de negócios só produzem efeitos vinculativos em relação à parte que não tem o direito à anulação, mas não vinculam o titular deste direito. 2) A determinação deste tipo de negócios jurídicos como válidos não está de acordo com o sistema legislativo dos Princípios Gerais do Direito Civil, porque no sistema deste diploma, os negócios jurídicos anuláveis vêm depois dos negócios nulos, não estando inseridos no âmbito dos negócios válidos. 3) A determinação da validade deste tipo de negócios gera confusão entre os conceitos de anulação e dissolução, visto que o direito chinês estabelece que o objecto da dissolução são os negócios jurídicos completamente válidos23. Não concordamos com este ponto de vista. Primeiro, porque ele não exprime claramente o conteúdo e extensão da invalidade dos efeitos dos negócios anuláveis, ignorando o facto de o exercício do direito à anulação não ser necessariamente o pressuposto da anulação do negócio. Segundo, embora a interpretação sistemática seja uma forma importante de interpretação do direito civil, não é a única forma de interpretação. As disposições da lei civil que contrariam o sistema existente são muitas. As diversas normas de

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excepção previstas na lei civil são disso exemplo. Assim, o que a lei civil deve ter em conta é a coordenação e o equilíbrio dos diversos interesses e não a integridade de um sistema lógico. Como se vê, o próprio sistema dos Princípios Gerais do Direito Civil do nosso país também não é perfeito. Terceiro, a determinação dos efeitos dos negócios jurídicos anuláveis e a distinção entre os conceitos de dissolução e de anulação não estão necessariamente relacionadas. No direito civil, a anulação e a dissolução exercem funções diferentes, mas o que acontece no regime do negócio jurídico não é exactamente o mesmo. Rigorosamente, o objecto da anulação são os negócios jurídicos. Com a anulação do negócio jurídico, os factos jurídicos de que resultam relações jurídicas deixam de existir, pelo que os efeitos vinculativos destas relações jurídicas devem ser considerados não existentes desde o início. O objecto da dissolução são as relações jurídicas concretas já existentes. Os efeitos vinculativos destas relações extinguem-se pela dissolução. Isto significa que a própria dissolução é um novo facto jurídico que extingue relações jurídicas.

Pelo exposto, concordamos com o terceiro ponto de vista, isto é, os negócios jurídicos anuláveis são negócios jurídicos válidos que conferem o direito à anulação. Por outras palavras, os negócios jurídicos anuláveis produzem efeitos iguais aos dos negócios jurídicos válidos desde a sua constituição. Só porque a declaração negocial nestes negócios está viciada é que a lei confere o direito à anulação, por isso o exercício ou não deste direito pelo seu titular e o respectivo resultado afectam os efeitos do negócio jurídico. Podemos perguntar porque é que os negócios jurídicos anuláveis pertencem à categoria dos negócios jurídicos que não produzem efeitos e não à categoria daqueles cujos efeitos são reconhecidos, se os seus efeitos são considerados válidos? De uma forma resumida, os negócios jurídicos válidos produzem efeitos absolutos que não podem ser negados ou contrariados, ao passo que os efeitos dos negócios jurídicos anuláveis - negócios jurídicos viciados - podem ser negados através do exercício do direito à anulação, e esta negação retroage ao momento da constituição do negócio jurídico, pelo que este tipo de negócios jurídicos devem integrar-se na categoria dos negócios jurídicos que não produzem efeitos. No entanto, esta é somente uma razão superficial resultante da própria designação destes negócios jurídicos. A razão essencial reside no fundamento da negação dos seus efeitos. É esta a questão que carece duma análise mais profunda no presente texto.

É fácil notar que a lei toma diversas posições quanto à negação dos efeitos dos negócios jurídicos. Relativamente aos negócios jurídicos nulos, a lei faz uma determinação extremista, enquanto no que respeita aos negócios jurídicos com efeitos pendentes ou anuláveis, a lei faz uma determinação menos severa, permitindo a sua integração. Então, qual é o fundamento para esta determinação? Em relação a

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esta questão, muitos teóricos do nosso país entendem que a referida distinção se baseia no grau de ilegalidade dos negócios jurídicos. Porém, esta ideia superficial não consegue demonstrar a intenção legislativa relativa à negação dos efeitos dos negócios jurídicos, implicando antes confusão entre a nulidade dos negócios jurídicos e a ilegalidade dos actos. Há quem partindo da ilegalidade dos negócios jurídicos nulos apresente o conceito de actos ilegais em sentido lato, defendendo que existem actos ilegais em sentido lato e em sentido restrito. Actos ilegais em sentido lato são os actos que contrariam a lei civil, incluindo a violação de direitos, o incumprimento contratual e os negócios jurídicos nulos. Actos ilegais em sentido restrito são os actos que implicam responsabilidades civis por violação de direitos civis. No entanto, o direito civil tradicional não fazia esta distinção. Os actos ilegais eram os que implicavam a violação de direitos, o incumprimento de obrigações e aqueles que implicassem perda de direitos, sendo os negócios jurídicos nulos actos legais.

Embora a nulidade dos negócios jurídicos e a ilegalidade dos actos apresentem a característica comum do incumprimento de normas legais, são duas situações distintas. As suas diferenças traduzem-se essencialmente em três aspectos. 1) A forma. Os actos ilegais consistem na violação das normas proibitivas, ou seja, na destruição das relações jurídicas, pelo que a sua forma consiste necessariamente na violação das obrigações legais ou consensuais. Por seu turno, os negócios jurídicos nulos não produzem efeitos desde a sua constituição, pelo que não existe qualquer relação de direitos e deveres entre as partes. Neste sentido, a característica formal dos negócios jurídicos nulos é somente a falta dos requisitos legais de validade, mas não a violação de uma relação de direitos e deveres. 2) As condições constitutivas. Os actos ilegais implicam objectivamente um resultado prejudicial, pelo que são seus requisitos constitutivos a ilegalidade, o resultado prejudicial e a relação causal entre o acto e o resultado. Por seu turno, os negócios jurídicos nulos são actos de declaração negocial, cujo conteúdo só tem a ver com a vontade do declarante de constituir uma relação jurídica, pelo que, antes de este tipo de negócio jurídico ser realizado, não há qualquer resultado prejudicial concreto a não ser prejuízos dos interesses da outra parte derivados da confiança que depositou no declarante. 3) Os efeitos. Uma vez realizados, os actos ilegais produzem os efeitos jurídicos civis correspondentes, ou seja, o seu autor tem que assumir responsabilidades civis. Podemos dizer que o estabelecimento de regras de responsabilidade na lei civil visa punir os infractores. A determinação da nulidade dos negócios jurídicos tem em vista apenas a limitação dos seus efeitos, fazendo com que não sejam concretizados os efeitos jurídicos pretendidos pelas partes. Ela não gera qualquer resultado prejudicial, por isso também não implica qualquer responsabilidade civil. Relativamente a determinadas responsabilidades civis, como a indemnização e a restituição do objecto, estas não

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podem ser consideradas, rigorosamente, como responsabilidades civis geradas pela nulidade do negócio, sendo responsabilidades civis por negligência contratual ou por enriquecimento sem causa24.

Pelo exposto, ao criticar a negação dos efeitos dos negócios jurídicos baseada no seu grau de ilegalidade, alguns teóricos apresentaram dois critérios de determinação. 1) Princípio da defesa da ordem pública, da igualdade, da honestidade e do crédito. 2) Defesa do autor da declaração negocial viciada e da segurança do comércio25. Na verdade, verifica-se que a negação de diferentes graus dos efeitos dos negócios jurídicos nos códigos civis estrangeiros reflecte os dois referidos critérios ideais. No regime do negócio jurídico daqueles códigos, estão consagrados princípios relacionados com a capacidade de exercício, com a voluntariedade e com o cumprimento da lei, da ordem pública e dos bons costumes, tendo sido feita a classificação das diversas situações de negação dos negócios jurídicos, isto é, os negócios jurídicos que violem a lei, os interesses sociais, a segurança do comércio, a ordem pública e os bons costumes normalmente são considerados absolutamente nulos. No entanto, actualmente, muitos países consideram anuláveis os actos que violem a ordem pública e os bons costumes e que prejudiquem apenas os interesses de uma parte, como é o caso dos negócios usurários. Os negócios jurídicos cuja declaração negocial está viciada e aqueles praticados por quem não possua plena capacidade integram-se geralmente na categoria dos negócios jurídicos anuláveis ou com efeitos pendentes. Por exemplo, o dolo e a coacção são actos anuláveis, enquanto os actos praticados por uma pessoa com capacidade de exercício limitada fora do limite da sua capacidade e os actos praticados por quem não tenha o correspondente direito de representação são considerados actos com efeitos pendentes. Todavia, através deste fenómeno, verificamos que a razão fundamental pela qual a lei prevê vários graus de negação dos efeitos dos negócios jurídicos resulta da articulação entre a interferência da lei e a autonomia da vontade, reflectindo o processo de desenvolvimento do direito civil, ou seja, o processo que parte dos direitos individuais para uma situação em que a sociedade também é tida em consideração. Assim, quando a realização do negócio jurídico prejudique os interesses do Estado ou da sociedade, a lei tem que intervir, isto é, tem que determinar a nulidade absoluta daquele negócio jurídico, a fim de proteger esses interesses, a ordem pública e os bons costumes. Se a realização do negócio jurídico só implicar interesses privados, a lei deve considerar as partes o melhor «agente económico» racional para avaliar os seus próprios interesses, conferindo-lhes o direito de decidir sobre a validade do negócio jurídico, a fim de lhes deixar espaço para gozar da autonomia da vontade.

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É de realçar que, na teoria tradicional e na legislação estrangeira em matéria civil, além de estarem previstos diferentes efeitos dos negócios jurídicos que não preenchem as condições de validade, estão estabelecidas regras excepcionais, com vista ao aperfeiçoamento do sistema de determinação dos efeitos dos negócios jurídicos. As principais excepções são a validade obrigatória e a conversão dos negócios jurídicos nulos.

As regras de validade obrigatória são aquelas regras específicas nos termos das quais certos negócios jurídicos que não preencham as condições de validade não são considerados nulos, mas sim válidos26. A título exemplificativo, os negócios jurídicos praticados pelas pessoas com incapacidade de exercício deveriam ser absolutamente nulos, mas como o tratamento baseado nas regras de nulidade absoluta é severo quanto à defesa da vítima, e normalmente traz influências negativas aos incapazes, estão previstas na legislação civil regras de validade para regular os negócios jurídicos que tenham exclusivamente por objecto o gozo de interesses legítimos por parte dos incapazes, a fim de se permitir a sua integração. A aplicação desta regra já foi estendida às pessoas com capacidade de exercício limitada. Outro exemplo são os negócios jurídicos realizados por menores ou pessoas com capacidade de exercício limitada, que recorrendo a estratagemas fazem acreditar os outros na sua capacidade ou fingem ter obtido o consentimento do respectivo representante legal. Estes negócios jurídicos também devem ser considerados válidos. Isto porque a protecção legal dos menores deve-se à sua falta de conhecimentos e de capacidade de juízo, mas se estes conseguem recorrer a estratagemas, a lei não precisa de protegê-los, devendo antes determinar a validade obrigatória do negócio jurídico como forma de castigo e para proteger a outra parte. Podem ainda servir de exemplo outros efeitos das declarações negociais como a reserva mental. Também nestes casos a lei não determina a sua nulidade absoluta, porque tem em conta a protecção da outra parte.

No que respeita à conversão dos negócios jurídicos nulos, isto significa que quando um negócio jurídico nulo preenche os requisitos de validade de um outro negócio, e as circunstâncias façam crer que as partes pretendiam que fossem produzidos os efeitos de um outro negócio se o primeiro negócio jurídico tiver sido declarado nulo, então o último negócio será válido. Esta conversão abrange a conversão em termos jurídicos e a conversão em termos de interpretação27. Como se sabe, quando um negócio jurídico é nulo, ele é-o desde a sua constituição, não havendo possibilidade de integração. Esta solução, que realça totalmente a interferência da lei e a falta de flexibilidade, parece não respeitar a vontade das partes e tem eventualmente influência na eficiência do comércio. Assim, nos casos em que o negócio jurídico não seja contrário aos interesses sociais e económicos, nem à ordem pública nem aos bons costumes, e que se presuma que as partes pretendiam

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produzir os efeitos de um outro negócio jurídico, a opção pela conversão do negócio nulo é uma solução favorável. Por um lado, ela não contradiz a negação dos efeitos do negócio jurídico nulo, porque o primeiro negócio ao qual faltavam os requisitos de validade deixa de existir, e quanto ao segundo negócio convertido, este preenche as condições de validade. Por isso, a conversão só vai evitar a prática de vários negócios, não sendo uma conversão de um negócio nulo num válido. Por outro lado, esta conversão também consagra o respeito pela vontade dos autores. A existência das duas referidas regras excepcionais reflecte, em termos absolutos a minuciosidade e rigor da legislação civil estrangeira, demonstrando igualmente a intenção do legislador de equilibrar os interesses de todos.

Além disso, a teoria do direito civil também mudou de posição quanto aos actos que fogem à lei. Nestes actos, o autor recorre a meios complicados para fugir às normas obrigatórias. Melhor dizendo, o autor aproveita a liberdade contratual para atingir objectivos não permitidos pela lei. Não se trata duma questão nova. Um ditado do direito romano dizia: «Praticar actos legalmente proibidos é violar a lei. Mesmo que não seja violada a lei escrita, a violação do espírito da lei é um acto que foge à lei». Será que os actos que fogem à lei devem ser considerados expressamente nulos em termos legais? A maior parte dos teóricos alemães discordam desta posição. A razão é que a nulidade dos negócios jurídicos que fogem à lei depende da interpretação dos requisitos constitutivos do negócio jurídico e das normas relativas àqueles requisitos. Se a lei intervir na liberdade de interpretação do juiz, impondo instruções legais, poderá acontecer que os negócios jurídicos legalmente admitidos sejam decretados nulos28. Pelo que os actos que fogem à lei constituem uma questão de interpretação jurídica. Sob este ponto de vista, ficámos a saber que dada a pluralidade e complexidade das actividades civis, são inúmeras as formas legais de negação dos efeitos dos negócios jurídicos. Assim, partindo do espírito legislativo em matéria civil de que aquilo que a lei não proíbe é legalmente admitido (actos legais), o tratamento pelo juiz dos efeitos dos negócios jurídicos que fogem à lei não deixa de ser uma solução que contempla os interesses gerais.

Comparando com a legislação civil estrangeira, o sistema de determinação dos efeitos do negócio jurídico do nosso país apresenta muitos defeitos, dos quais se salientam os indícios relevantes da legislação do modelo de economia planificada, em que o Estado intervém demais nos efeitos dos negócios jurídicos, faltando um mecanismo de articulação e equilíbrio dos interesses dos diversos sectores. Neste sentido, urge proceder ao aperfeiçoamento do nosso sistema de determinação dos efeitos do negócio jurídico.

Conclusão

Page 24: Estudo de Três Aspectos do Regime do Negócio Jurídico

A comparação é uma actividade do raciocínio, um processo essencial de compreensão e domínio dos conhecimentos e simultaneamente um meio importante para descobrir e resolver as questões. No presente texto, através da comparação do direito civil dos principais países do sistema jurídico continental, não só conhecemos o conteúdo dos regimes dos negócios jurídicos estrangeiros e os valores que estão contidos nas diversas regras, mas também ficámos a saber que o seu objectivo consiste em ajustar os conflitos entre a intervenção da lei e a autonomia da vontade, e em equilibrar os interesses entre as partes e entre estas e a sociedade. O mais importante é que ficámos a conhecer as insuficiências da legislação civil do nosso país. O especialista em direito alemão Rudolf von Jhering, na sua obra Geist des

römischen Rechts, refere que «a adopção do ordenamento jurídico estrangeiro não tem a ver com o país, tratando-se apenas de uma questão de adequação aos seus objectivos e às suas necessidades. Se o ordenamento jurídico do próprio país for igualmente perfeito ou for melhor, claro que não é preciso pedir ajuda ao exterior. Porém, se alguém recusar o uso da quinina por esta não ter nascido no próprio jardim, é muito estúpido»29. Assim sendo, devemos empenhar-nos em usar como referência as experiências de outros países na integração e aperfeiçoamento do nosso regime do negócio jurídico. Felizmente, na recém-publicada Lei dos Contratos do nosso país, muitas normas já abandonaram o raciocínio e a estrutura da legislação anterior, absorvendo e tendo como referência as experiências legislativas dos países estrangeiros. Isto demonstra que o aperfeiçoamento e integração do nosso regime do negócio jurídico estão próximos. No entanto, devemos esclarecer que não é fácil orientarmo-nos pela legislação estrangeira. É uma tarefa árdua e complicada a combinação da legislação estrangeira com relações como as relações políticas, econó-micas, consuetudinárias e morais do próprio país, sendo o estudo e o intercâmbio no sector teórico a fase mais relevante deste trabalho. Estas actividades desempenham uma função importante na promoção e aceleração da implementação da «governação segundo a lei» no nosso país.