estrutura, tempo e imagem de uma histÓria em … teles... · metodologia da analise estrutural....

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ESTRUTURA, TEMPO E IMAGEM DE UMA HISTÓRIA EM QUADRINHOS – A NARRATIVA DE COMO SE NUNCA TIVESSE EXISTIDO... , DE GABRIEL BÁ Emília Teles da Silva Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ Bolsista CAPES [email protected] Este artigo é resultado de minha pesquisa de mestrado em Artes Visuais, sob orientação do Prof. Dr. Rogério Medeiros. Como se nunca tivesse existido... é uma história em quadrinhos de Gabriel Bá, publicada no livro Crítica 1 . Gabriel Bá é um quadrinista paulista, com diversos livros publicados. Ele é conhecido pela série 10 Pãezinhos (da qual Como se nunca tivesse existido... faz parte), realizada em parceria com seu irmão gêmeo, Fábio Moon, e pela série The Umbrella Academy, escrita por Gerard Way e desenhada por Bá. Neste artigo, a narrativa de Como se nunca tivesse existido... será abordada sob três pontos de vista: sua estrutura, o papel da imagem e a questão do chamado “tempo morto”. O objetivo é obter uma compreensão mais profunda da construção de uma história em quadrinhos. O primeiro aspecto a ser investigado é a estrutura da narrativa, empregando a metodologia da analise estrutural. Serão utilizados como referência os textos de Roland Barthes 2 , de Marc Vernet 3 , de Tzvetan Todorov 4 e de Alain Bergala 5 . Em seguida, a imagem será estudada no que diz respeito à sua contribuição para a narrativa, isto é, enquanto linguagem. Para tanto, será feita uma análise semiótica. As referências serão os textos de Martine Joly 6 e de Umberto Eco 7 . Por fim, para compreender melhor o “tempo morto” que se faz presente nesta história, haverá uma reflexão a respeito deste conceito e a respeito da materialidade da narrativa, tendo como referência os textos de Pierre Bourdieu 8 , Moacy Cirne e Pierre Fresnault-Deruelle 9 . A história é reproduzida nas páginas seguintes. 1. A estrutura da narrativa Qualquer narrativa clássica, de acordo com Alain Bergala (1995), cativa o espectador (no caso dos quadrinhos, o leitor) estabelecendo uma distância inicial entre um sujeito desejante e seu objeto de desejo. “Toda a arte da narrativa consiste, depois, em regular a perseguição sempre relançada deste objeto de desejo, desejo cuja realização é incessantemente adiada, impedida, ameaçada e retardada até o final da narrativa” 10 . A função narrativa destes obstáculos é prender o espectador pela vontade de ver a solução. O fim da narrativa ocorre III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR 1104

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ESTRUTURA, TEMPO E IMAGEM DE UMA HISTÓRIA EM QUADRINHOS –

A NARRATIVA DE COMO SE NUNCA TIVESSE EXISTIDO... , DE GABRIEL BÁ

Emília Teles da Silva

Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ

Bolsista CAPES

[email protected]

Este artigo é resultado de minha pesquisa de mestrado em Artes Visuais, sob orientação

do Prof. Dr. Rogério Medeiros. Como se nunca tivesse existido... é uma história em

quadrinhos de Gabriel Bá, publicada no livro Crítica1. Gabriel Bá é um quadrinista paulista,

com diversos livros publicados. Ele é conhecido pela série 10 Pãezinhos (da qual Como se

nunca tivesse existido... faz parte), realizada em parceria com seu irmão gêmeo, Fábio Moon,

e pela série The Umbrella Academy, escrita por Gerard Way e desenhada por Bá.

Neste artigo, a narrativa de Como se nunca tivesse existido... será abordada sob três

pontos de vista: sua estrutura, o papel da imagem e a questão do chamado “tempo morto”. O

objetivo é obter uma compreensão mais profunda da construção de uma história em

quadrinhos. O primeiro aspecto a ser investigado é a estrutura da narrativa, empregando a

metodologia da analise estrutural. Serão utilizados como referência os textos de Roland

Barthes2, de Marc Vernet3, de Tzvetan Todorov4 e de Alain Bergala5. Em seguida, a imagem

será estudada no que diz respeito à sua contribuição para a narrativa, isto é, enquanto

linguagem. Para tanto, será feita uma análise semiótica. As referências serão os textos de

Martine Joly6 e de Umberto Eco7. Por fim, para compreender melhor o “tempo morto” que se

faz presente nesta história, haverá uma reflexão a respeito deste conceito e a respeito da

materialidade da narrativa, tendo como referência os textos de Pierre Bourdieu8, Moacy Cirne

e Pierre Fresnault-Deruelle9. A história é reproduzida nas páginas seguintes.

1. A estrutura da narrativa

Qualquer narrativa clássica, de acordo com Alain Bergala (1995), cativa o espectador (no

caso dos quadrinhos, o leitor) estabelecendo uma distância inicial entre um sujeito desejante e

seu objeto de desejo. “Toda a arte da narrativa consiste, depois, em regular a perseguição

sempre relançada deste objeto de desejo, desejo cuja realização é incessantemente adiada,

impedida, ameaçada e retardada até o final da narrativa”10. A função narrativa destes

obstáculos é prender o espectador pela vontade de ver a solução. O fim da narrativa ocorre

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quando o objetivo do protagonista é alcançado ou, pelo contrário, quando se encerra qualquer

possibilidade de realização deste objetivo. Em Como se nunca tivesse existido..., o desejo do

protagonista surge apenas ao final, e logo em seguida, constata-se que não é mais possível

realizar este desejo. O objetivo que move a história é o de Fábio11, que quer que Gabriel

responda ao interesse da moça.

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Sempre que se começa uma narrativa, cria-se uma situação que deve ser resolvida ao

final. A narrativa avança em direção a esta solução. O fato de a narrativa ser toda orientada,

organizada para a solução da intriga inicial, a torna previsível. Para surpreender e criar o

suspense que prende o leitor, o autor deve inserir uma série de obstáculos e elementos do

acaso na história, de forma a atrasar o avanço da narrativa12. É necessário que leitor fique na

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dúvida em relação ao desenlace, preveja e não preveja o que vai acontecer13. Este lento

avanço é, para Roland Barthes, o paradoxo de qualquer narrativa: “levar à revelação final, ao

mesmo tempo que deixá-la sempre para depois”14. Barthes15 chama de frase hermenêutica

esta sequência de paradas que atrasam o progresso rumo à solução, utilizando pistas falsas,

omissões, desvios, revelações, suspensões, engôdos. Em Como se nunca tivesse existido..., a

frase hermenêutica é composta pela inação do personagem de Gabriel.

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Além da frase hermenêutica, há um outro código narrativo, a intriga de predestinação, que é

usado em algumas histórias de Gabriel Bá. Enquanto a frase hermenêutica é um

antiprograma16 (isto é, algo que impede o avanço da história), a intriga de predestinação é um

programa (ou seja, algo que promove o avanço da história rumo à solução). Trata-se de

revelar, logo no início, a essência da intriga e sua solução, mesmo que apenas alusivamente

ou implicitamente, estabelecendo uma orientação para a história e a narrativa. Por exemplo,

em Como se nunca tivesse existido..., a primeira imagem, que é de uma mão apagando uma

mesa de bar com uma borracha17, traz uma intriga de predestinação. Esta imagem alude a uma

frase de um dos personagens ao final e contém a essência da história: como se um momento,

uma história, pudessem deixar não só de existir, mas de serem lembrados, e isso decorre de

uma decisão humana.

Outro conceito importante para a análise estrutural da narrativa é o de função. Barthes

(1971) define as funções como unidades de conteúdo que “semeiam” a narrativa com

elementos que vão amadurecer mais adiante18. Uma função acarreta a outra, até que o ciclo se

feche quando se alcança o estado desejado (ou o retorno ao estado inicial). E, de certa forma,

uma função exige a outra. Em Como se nunca tivesse existido..., Gabriel é avisado de que

uma moça está interessada nele. Esta função inicial desencadeia a história, acarretando duas

alternativas: que ele se sinta atraído por ela ou não. Qualquer uma destas alternativas

constituiria uma nova função, consequência da primeira. Interessar-se pela moça implicaria,

por sua vez, decidir falar com ela ou não (que seriam novas funções), e assim por diante.

Vemos, então, que as funções podem ser combinadas em sequências que fazem parte dos

programas. Os programas oferecem uma orientação às funções, estando em um nível superior

(que é o das Ações19). Para Barthes (1971), as funções têm diferentes níveis de importância –

a própria narrativa tem diversos níveis20 – e atribuições distintas. Ele distingue as funções

cardinais das funções catálises. As primeiras são relevantes para a história; elas inauguram ou

encerram uma incerteza. As segundas simplesmente preenchem um espaço; elas poderiam ser

removidas sem que o enredo fosse alterado. Entretanto, Barthes ressalta que o fato de a

catálise ser pouco funcional não significa que ela não tenha nenhuma funcionalidade,

nenhuma importância: ainda que ela pareça completamente insignificante, ela tem uma

funcionalidade, mesmo que seja apenas discursiva, como a de atrasar ou acelerar a narrativa,

resumir, antecipar, desorientar o leitor (o que é fundamental em histórias de detetive, por

exemplo), prolongar o suspense. A catálise pode, até mesmo, significar o absurdo, o inútil.

Barthes explica que a catálise tem uma função fática, de manter o contato entre o narrador e o

leitor: se o núcleo for retirado, altera-se a história, mas se a catálise for retirada, altera-se o

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discurso. “Poder-se-ia dizer […] que a arte não conhece o ruído (no sentido informacional da

palavra): é um sistema puro, […] não há jamais unidade perdida, por mais longo, por mais

descuidado, por mais tênue que seja o fio que a liga a um dos níveis da história.”21. Em Como

se nunca tivesse existido..., a narrativa é bastante curta, e quase não há catálises. Uma destas é

a função de estender o braço ao olhar para a moça, de Gabriel. Outra catálise é a função de

apontar para a moça, de Fábio. As funções “fumar” e “segurar a garrafa” também são

catálises. Entretanto, como veremos adiante, elas são igualmente índices.

Barthes (1971) explica que há outra distinção que podemos fazer em relação às funções,

separando-as em dois grupos: as distributivas (como as que temos descrito até o momento, e

que são normalmente denominadas simplesmente funções, em vez de funções distributivas), e

as funções integrativas, que são índices (num sentido bastante amplo do termo), e assim são

chamadas. Os índices são o que caracteriza cada personagem, as informações sobre a

identidade destes, a “atmosfera” do local onde a cena se passa. Índices informam também

sobre sentimentos, caracteres, e ajudam a situar a história no tempo e no espaço. Os índices

têm, portanto, a funcionalidade de descrever personagens e cenários. Entretanto, Barthes

ressalta que não se deve reduzir as funções a ações (verbos) e os índices a qualidades

(adjetivos), porque há ações que são indiciais: elas podem representar as características de um

personagem ou de uma 'atmosfera', de um local.

Gabriel segura uma garrafa de cerveja durante toda a narrativa. Trata-se de uma função

indicial cujo propósito é informar ao leitor sobre seu estado de embriaguez (os pequenos

círculos ao lado de sua testa têm o mesmo propósito). Outra função indicial é o ato de fumar

um cigarro: durante muitos anos, o cigarro foi um símbolo de sensualidade, de sedução, de

modo que o fato de ela estar fumando reforça a mensagem de interesse transmitida pelo

sorriso da moça. Ambos estão vestidos de forma semelhante, indicando afinidade: uma

camisa escura, com uma listra clara na manga, estampa clara, faixas no pulso, anel. Por fim,

há o cenário e os personagens ao fundo, cuja função indicial é compor o ambiente.

Barthes (1971) ressalta que algumas narrativas são mais funcionais (como o conto:

apenas os elementos mais estruturais estão presentes) e outras são mais indiciais (isto é, são

mais descritivas, descrevendo uma atmosfera, sentimentos, locais, personalidades, detalhes

que compõem um ambiente, situação ou personagem). Nesta segunda categoria, por exemplo,

estaria Como se nunca tivesse existido....

Podemos fazer um diagrama de sua estrutura, apontando suas funções.

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A história é homeostática: começa e termina na mesma situação, dois irmãos conversando

num bar. A questão que move a história (a possibilidade de aproximação de uma moça

atraente) passa “como se nunca tivesse existido”, para usar as palavras do personagem de

Fábio. A primeira função, que impele a história, é a afirmativa de que uma moça está

interessada em Gabriel. Esta abre a possibilidade do encontro entre os dois (e força Gabriel a

se posicionar em relação à questão, mesmo que decida não fazer nada), inaugurando um

programa, “O Encontro”, que seria a realização desta possibilidade ou seu impedimento

definitivo. Entretanto, até a resolução do problema, há uma frase hermenêutica que o

prorroga, “Tomada de consciência, Hesitação e Convencimento”: Gabriel olha para ver quem

é a moça, constata que ela é atraente, hesita, depois é convencido. A resolução chega quando

ele está pronto para agir e descobre que é tarde demais. A narrativa é como uma cadeia de

eventos, um levando a outro. Fábio avisa Gabriel, o que o leva a olhar para trás para ver se é

verdade e quem é a moça. Entretanto, verificar que a moça realmente olha para ele e que é

atraente não desencadeia, como poderíamos supor, a função “falar com moça”, mas apenas a

afirmar que ela é atraente. A própria afirmação é um sinal de inação, de inércia – ele já

poderia ter ido conversar com ela. Tanto que desencadeia a pergunta de Fábio (“você não vai

lá falar com ela?”). O ponto central da história está no final da frase hermenêutica, quando

Fábio afirma que, se Gabriel não fizesse nada, seria como se o momento nunca tivesse

existido. A conclusão (a impossibilidade do encontro devido à partida da moça) apenas

reforça o que Fábio disse, assim como o retorno à situação inicial. Esta é uma das poucas

histórias cujo título fica no final, como se a história tivesse acabado antes mesmo de começar,

o que também está de acordo com a afirmação de Fábio.

2. A narrativa visual de Como se nunca tivesse existido...

Antes de começar gostaríamos de comentar que toda a narrativa visual de Como se

nunca tivesse existido... é bastante transparente (na medida do possível para uma história em

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quadrinhos)22. Seus códigos visuais são bastante discretos. Os balões de fala são de um

formato constante, assim como a fonte usada para as palavras; a diagramação é simples, a

perspectiva é a que representa a visão do olho humano, a história é em preto e branco. A

representação dos personagens em si é bastante simples, icônica. Talvez o que mais chame

atenção seja a mudança constante de ponto de vista e do tamanho dos quadros, o que não

chega a quebrar, entretanto, a transparência da narrativa. Esta transparência garante que toda a

atenção se concentre na história.

Uma das primeiras impressões que um leitor pode ter a respeito de Como se nunca

tivesse existido... é que suas páginas são impressas em preto e branco, como, aliás, todo o

livro ao qual pertence. O preto e branco nesta história têm diversos significados. Na primeira

imagem, da mão que apaga a mesa do bar, o preto e branco têm representações opostas,

matéria e inexistência. O preto, nesta história, representa também a noite. No quarto quadro,

o fundo preto e as sombras no rosto de Gabriel significam uma certa depressão. No último

quadro, em que os irmãos estão isolados por uma mancha negra, o preto conota a solidão

(embora estejam juntos, estão separados do resto do mundo pelo negro). Outro aspecto do uso

do preto e branco é que ele amplia o efeito de realismo, devido à ligação com documentos e

documentários. O preto e branco está mais associado a fatos, enquanto cores são mais

associadas a histórias.

Uma das principais funções da textura é representar a materialidade, dar solidez aos

objetos. Outra função é a de representar a imperfeição, a sujeira. Neste conto, ela se encontra

nas paredes e na mesa da moça. A textura também pode representar um relevo ou material

específico, como no caso dos pelos nos braços e dos cigarros no cinzeiro, ou dos muitos

objetos lisos, polidos, transparentes.

Em relação à composição, o primeiro quadro (que será o que analisaremos), tem como

focos de atenção Fábio, antes de tudo, que está numa posição central, e Gabriel, ao qual

somos conduzidos pelo olhar de Fábio. Ambos estão em primeiro plano, o que condiz com a

importância que possuem neste quadro. Em terceiro plano, à direita, está a moça para quem

Fábio aponta, embaixo do vértice de um triângulo formado pela luz. Devido a esta posição,

ela se torna um terceiro foco de atenção, mesmo porque três verticais (a fumaça, o porta-

canudos e um cartaz) também conduzem a ela. O quadro é grande o suficiente para mostrar

todos os personagens e cenários. O ponto de vista traz o leitor para perto dos personagens

principais; como se ele estivesse do outro lado do balcão, permite ver a moça, ao fundo, e

parte do cenário. O ponto de vista muda de quadro para quadro. No segundo, por exemplo,

vemos Bá do ponto de vista do outro lado, de forma a podermos ver seu rosto quando ele vira

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para olhar para a moça. No terceiro, vemos a moça do ponto de vista do rapaz. O quadro é

mais estreito para que ela seja o foco absoluto de atenção. Os dois próximos quadros são

feitos de tal ponto de vista que não se possa ver a moça, e o leitor se surpreenda com sua

ausência no penúltimo quadro (no qual o ponto de vista novamente permite ver sua mesa). O

quinto quadro é grande o suficiente para a fala de Fábio e para mostrar mais o cenário (que

tem uma função indicial importante na história). O sexto quadro tem que ser largo para

mostrar tanto os irmãos quanto a mesa vazia. O último quadro mostra os irmãos à distância,

de costas, como se o leitor se afastasse, encerrando a história (um efeito que os autores usam

em várias narrativas). Uma das razões pelas quais o ponto de vista muda tantas vezes é que os

personagens principais ficam relativamente parados ao longo de toda história (embora eles

gesticulem, não saem de seus lugares respectivos). Todo o movimento da história fica a cargo

do ponto de vista. Como afirma Cagnin (1975, p. 110)23, “a mudança vertiginosa de planos,

de pontos de vista […] e a busca de formas inusitadas dinamizam a história e atraem o leitor”.

Em relação à perspectiva, o autor usa a perspectiva artificialis – uma imagem realista

para uma história verossímil. Podemos apenas ressaltar a perspectiva acentuada do braço de

Gabriel no segundo quadro, que acentua a tridimensionalidade de uma imagem que é, afora

isso, essencialmente bidimensional (devido ao alto contraste, à ausência de tonalidades),

apesar de ter muitos planos. Neste quadro, o braço de Gabriel parece ir em direção ao leitor24

(na diegese, vai em direção à moça), reforçando a impressão de proximidade. O leitor

acompanha Gabriel durante toda a história, embora haja um afastamento progressivo (o ponto

de vista é mais distante no quinto quadro, o que se acentua no último), como se houvesse uma

preparação para o fim da história.

A diagramação reflete, em grande parte, a busca de transparência da narrativa, por ser

tão discreta, a ponto de quase passar despercebida. As sarjetas são todas da mesma largura, os

quadros e todos os quadros de uma mesma faixa têm a mesma altura, a ordem de leitura é

clara, o que aumenta a transparência da narrativa. Há poucos quadros, distribuídos com folga

ao longo de três páginas, o que permite que sejam grandes, o que, por sua vez, possibilita que

os personagens sejam representados como estando mais próximos do leitor.

Nos quadrinhos, o transcorrer dos acontecimentos e o tempo podem ser mostrados de

três formas: através de uma sobreposição de instantes; através da representação do instante

“mais relevante” (conhecido como “instante pregnante”25); e através da sequência dos

quadros. A sequência dos quadros forma a narrativa. Um quadro é um indicador de leitura,

cuja função básica é delimitar uma unidade narrativa e deixar claro se o conteúdo

representado é realidade, sonho, fantasia ou flash-back. Cohen e Klawa26 explicam que os

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quadros são mais inteligíveis quando estão em sequência. O quadro anterior fornece

informações que ajudam a explicar o que se segue; o quadro seguinte esclarece o anterior. Em

Como se nunca tivesse existido..., todos os quadros derivam seu significado dos quadros

anteriores (com exceção do primeiro). O segundo quadro, em que Gabriel olha para a moça, é

um exemplo de como o quadro posterior altera o significado do anterior: o terceiro quadro,

que mostra a moça, completa o segundo, dando sentido ao olhar do protagonista.

Os balões de fala são uma forma de mostrar um período de tempo maior numa imagem

estática. Muitos vezes, a pergunta de um personagem e a resposta de outro encontram-se num

mesmo quadro, sobrepondo, portanto, dois instantes diferentes. O balão é um símbolo que

representa o ato de falar, além do conteúdo da fala. Em Como se nunca tivesse existido, os

balões são uniformes; do mesmo modo, a fonte das letras que os balões contêm não se altera,

indicando que não há nenhuma variação de tom ou de volume nas falas dos personagens. A

única ênfase se encontra nas falas do narrador, em que certas palavras são compostas em

negrito e itálico, à moda americana.

Em relação aos movimentos, é uma história com pouca ação – todos os movimentos são

cotidianos, e não precisam de linhas de movimento ou outros sinais que os expliquem. A

postura curvada de Gabriel, conotando embriaguez (podemos compará-la com a postura ereta

da moça, que representa sobriedade e que é mais um sinal do quanto ela é atraente), a mão

estendida em direção à moça no segundo quadro, num sinal de surpresa (que os olhos muito

abertos acentuam), o fato de Gabriel estar sempre segurando a garrafa (já mencionamos que

este é um signo de embriaguez), os braços estendidos de Fábio enquanto argumenta,

representando indignação (o que é acentuado pela expressão de seu rosto), são gestos que

portam significados. Os rostos são igualmente expressivos: o convite no sorriso da moça, a

inércia nos olhos semicerrados de Gabriel, por exemplo.

Desenhos são ícones, que têm, entretanto, aspectos arbitrários. Em Como se nunca

tivesse existido..., há um forte grau de analogia (as proporções dos personagens, por exemplo,

são essencialmente as mesmas de um ser humano real) e um certo grau de convenção. A

representação dos personagens em preto e branco, com uma linha de contorno, por exemplo, é

uma convenção. Apenas as sombras mais escuras são desenhadas; todas as variações de

luminosidade são simplificadas em preto absoluto e branco. A pele humana, que no mundo

real não é da cor de papel, é representada com esta tonalidade. Nem tudo é desenhado: são

omitidos os detalhes da pele humana, rugas, fios de cabelos, a textura e os detalhes dos

objetos, e assim por diante. Cabe lembrar que nenhum destes desenhos representa algo que

realmente exista no mundo real: os personagens e os cenários são fictícios, e só ganham

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existência a partir do momento em que são desenhados (não há nada além de tinta no papel, e

quem dá voz, movimento e vida aos personagens é a imaginação do leitor). Entretanto, todos

têm como referência uma classe de seres vivos e objetos do mundo real: a moça, por exemplo,

tem os atributos das moças jovens de verdade: um rosto, cabelo, braços, e assim por diante. É

a esta classe que o leitor recorre em sua memória para interpretar o ícone.

Os móveis, figurinos e objetos que compõem o ambiente são desenhados com um grau

maior de analogia, talvez porque sejam símbolos menos universais, menos conhecidos, e,

portanto, precisem ser mais detalhados, mais analógicos, para serem compreendidos. Por

outro lado, é comum nos quadrinhos que o cenário seja mais analógico e detalhado que os

personagens. Fresnault-Deruel1e (1972) afirma que estes detalhes trazem um ar de rigor, de

exatidão e de realismo à narrativa. Eles combatem a irrealidade dos traços dos personagens e

conferem verossimilhança à narrativa (como se os personagens tivessem existência real).

Os personagens são desenhados de forma mais simbólica. Em Como se nunca tivesse

existido..., Bá desenha a moça, por exemplo, de forma quase inteiramente codificada,

construindo-a a partir de uma série de signos que portam o significado “atraente”, com todas

as características exageradas para serem explícitas. Os cabelos loiros e sedosos, a cintura

muito fina (muito mais do que seria num estudo de modelo vivo, por exemplo), os seios

fartos, o nariz pequeno, a boca grande, os olhos alongados, a pinta na bochecha direita, entre a

boca e o nariz 27: é um cliché do que é uma mulher atraente. O leitor não precisa que Gabriel

afirme que ela é “bem gostosa” para chegar à mesma conclusão: a imagem é inequívoca.

Antônio Cagnin (1975) afirma que toda imagem é uma oração, ou, mais precisamente,

pelo menos dois enunciados linguísticos. Tomemos o exemplo da imagem da moça no

terceiro quadro: seus significados denotativos são “isto é uma moça bonita” e “a moça sorri”.

Christian Metz28 afirmava: “Um close-up de um revólver não significa revólver […], mas

significa, como um mínimo, e deixando de lado suas conotações, eis um revólver. Ele veicula

a sua própria atualização, algo como ei-lo aqui.” A imagem da moça é exatamente isto: “eis

uma moça bonita sorrindo”. É a atualização de um conceito, embora não deixe de ser um

conceito. Neste sentido, em teoria, toda a história poderia ser recontada através de

enunciados. Entretanto, poderíamos realmente substituir as imagens por texto, sem perda de

informação? Para tanto, teríamos que ignorar o fato de que imagens tendem a ser

polissêmicas. Ao escolher uma série de enunciados, deixamos de lado outros significados

(tanto denotativos quanto conotativos) que também poderiam ser válidos. Além disso, nem

toda imagem tem um significado tão explícito, tão claro. Muitos são difusos, vagos. Há

aspectos da imagem que não podem ser transcritos em palavras29. Por exemplo, poderíamos

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descrever as expressões faciais sucessivas dos personagens de forma absolutamente fiel?

Portanto, é possível substituir as imagens por texto sem alterar a história, mas não sem alterar

a narrativa e o discurso.

3. O tempo morto nos quadrinhos

Pierre Fresnault-Deruel1e (1972) afirma que, nos quadrinhos, não há “tempos mortos”

(ao contrário de nosso cotidiano) – os personagens dos quadrinhos existiriam apenas para

viverem intensamente. Entretanto, concordamos com Moacy Cirne (2000), que discorda de

Fresnault-Deruel1e neste ponto, e a prova é que Como se nunca tivesse existido... é

exatamente um quadrinho sobre um tempo morto, sobre uma ação que não se concretiza,

sobre a inércia. Um tempo morto é um momento irrelevante para o enredo, em que a história

não progride e o ritmo é quebrado. Esta é a grande diferença entre a narrativa e a vida. Nossos

cotidianos são repletos de “tempos mortos” – ficamos na fila do banco, esperamos o ônibus,

escovamos os dentes, atendemos ao telefone, navegamos pela internet e assim por diante. Nas

narrativas, estes momentos normalmente são eliminados pelas elipses – e, nos quadrinhos,

uma linguagem absolutamente elíptica, este processo costuma ser mais intenso, porque o

próprio tempo dos movimentos é eliminado. É claro que há exceções, como aponta Cirne. Há

espaço para a contemplação, para a descrição nos quadrinhos.

Voltando à definição de tempo morto, e relacionando-o às catálises – o tempo morto é

uma catálise –, embora ele possa ser irrelevante para o enredo, ele não o é para a narrativa.

Em Como se nunca tivesse existido... Fábio afirma a Gabriel que, se ele não fizer nada, vai

ser como se o momento nunca tivesse existido. Um momento insignificante, portanto,

esquecido entre tantos outros sem importância. Paradoxalmente, a própria narrativa não

apenas confere eternidade a este momento, registrando sua existência de modo concreto,

como contradiz sua falta de importância. Se não fosse importante, não haveria uma narrativa

sobre ele. Temos, então, um paradoxo em relação ao momento – por um lado, não é um

tempo morto (que, por definição, é um momento irrelevante para o enredo), porque ele é o

único momento do enredo – o enredo é todo sobre ele, e, portanto, ele é relevante. Por outro

lado, quando Fábio afirma que aquele momento passaria “como se nunca tivesse existido” (o

que é reforçado pelo título), ele quer dizer que ele terá sido irrelevante para a vida do

personagem. Como se a vida tivesse um enredo e alguns momentos fossem mais importantes

do que outros30. Diegeticamente, é um tempo morto. Extra-diegeticamente, não.

Normalmente, o “tempo morto” nos quadrinhos é acompanhado pelas reflexões de um

personagem. Isto é, pode ser um tempo morto em termos de acontecimentos exteriores, mas

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não em relação às emoções e pensamentos. Em Como se nunca tivesse existido..., toda a

relevância está exatamente nas palavras, nas reflexões que os personagens fazem. Ao mesmo

tempo, esta divisão entre acontecimento externo e reflexão permite que o leitor se concentre

apenas em um deles. Por exemplo, o fato de não haver cenas de ação em Como se nunca

tivesse existido... faz com que as palavras dos personagens ganhe mais peso. As ações não são

particularmente importantes – elas são apenas um pano de fundo para as palavras.

Conclusão

O objetivo deste artigo era analisar uma narrativa em quadrinhos sob três pontos de vista:

sua estrutura, o papel da imagem e o tempo na narrativa (especificamente a questão do tempo

morto). Quanto à estrutura da narrativa, vimos que estas são constituídas por funções, que

exigem outras funções, complementares a estas, até que o ciclo se encerre. Em relação à

imagem, buscamos mostrar que cada elemento da imagem é um signo, inclusive elementos

plásticos como cor, textura e assim por diante. Outro aspecto importante da imagem nos

quadrinhos, que é essencial para a narrativa, é a questão da sequência. Por fim, concluímos

que embora o tempo representado diegeticamente seja um tempo morto, o próprio fato de ele

ser representado significa que, extra-diegeticamente, ele não é “morto”, mas relevante.

1 MOON, Fábio; BÁ, Gabriel. Crítica. São Paulo: Editora Devir, 2004.

2 BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural da narrativa. In: BARTHES, Roland et al. Análise

estrutural da narrativa. Petrópolis: Vozes, 1971.

3 VERNET, Marc. Cinema e narração. In: AUMONT, Jacques, et al. A estética do filme. Campinas, SP:

Papirus, 1995.

4 TODOROV, Tzvetan. As categorias da narrativa literária. In: BARTHES, Roland et al. Análise estrutural

da narrativa. Petrópolis: Vozes, 1971.

5 BERGALA, Alain. O Filme e seu espectador. In: AUMONT, Jacques, et al. A estética do filme. Campinas,

SP: Papirus, 1995.

6 JOLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. São Paulo: Papirus, 2008.

7 ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 1976.

8 BOURDIEU, Pierre. A Ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Morais

(coordenadoras). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

9 CIRNE, Moacy. Quadrinhos, Sedução e Paixão. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.

FRESNAULT-DERUELLE, Pierre. La Bande Dessinée. Paris : Hachette, 1972.

10 Bergala (1995, p.263).

11 Sabemos que os personagens se chamam Fábio e Gabriel porque já apareceram em outras histórias do autor.

12 Cabe aqui uma distinção entre história e narrativa. Vernet (1995, p.113) define a narrativa como “o

enunciado em sua materialidade, o texto narrativo que se encarrega da história a ser contada” (1995, p.106).

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Já a história seria “o significado ou o conteúdo narrativo (mesmo se, no caso, esse conteúdo for de fraca

intensidade dramática ou de fraco teor factual)”. A narrativa seria a história em quadrinhos em si: os

desenhos e textos na sequência em que se encontram. A mesma história poderia ter outra narrativa se alguém

decidisse, por exemplo, refazer a história em quadrinhos, ou então fazer um curta-metragem baseado nela.

13 Vernet (1995).

14 Citado por Vernet (1995, p.125).

15 Citado por Vernet (1995).

16 Um programa é um elemento que leva ao avanço da história rumo à solução do conflito principal; um

programa antiprograma, ao contrário, tem a função de frear o avanço em direção a esta solução (segundo

Vernet (1995), um antiprograma não deixa de ser um programa, na medida em que seu desenvolvimento é

organizado; há uma espécie de sintaxe para sua disposição na narrativa). Um antiprograma pode fazer parte

do início de um programa. Por exemplo, o momento em que um herói está o mais longe possível de seu

objetivo – nas mãos do vilão, à beira da morte ou no fundo do poço – pode ser o início de sua ascensão. A

frase hermenêutica é um antiprograma.

17 Falaremos mais adiante da questão da composição, mas gostaríamos de ressaltar que a diagonal que divide

esta imagem em duas traz dinamismo ao movimento da mão.

18 De forma semelhante, Tzvetan Todorov (1971, p.212) afirma que o “sentido (ou a função) de um elemento

da obra é sua possibilidade de entrar em correlação com outros elementos desta obra e com a obra inteira.”

19 Barthes (1971) diz que são as ações que fornecem significado às funções, que estão em um nível inferior.

Acreditamos que a diferença entre os conceitos de Ação e de Programa é que o segundo tem um sentido de

avanço ou de atraso para a narrativa (uma orientação, enfim) que o primeiro não tem. À parte isto, os

significados dos dois conceitos nos parecem ser muito próximos.

20 Barthes (1971, p. 25) diz que há três níveis: o das funções; o das ações; e o da narração, ou discurso. Ele

explica a relação entre os três: “uma função não tem sentido se não tiver lugar na ação geral de um actante; e

a própria ação recebe sua significação última pelo fato de ser narrada, confiada a um discurso que tem seu

próprio código”. (Segundo Vernet, o conceito de actante foi criado por Vladimir Propp, para se referir aos

personagens que são definidos por sua 'esfera de ação', isto é, as funções que cumprem na história, e não por

suas características sociais e psicológicas). Em Como se nunca tivesse existido..., a função “olhar para moça”

está inserida no contexto da ação “tomada de consciência”, em que o personagem verifica qual é exatamente

a situação.

21 Barthes (1971, p.28)

22 Uma narrativa é transparente quando o leitor não percebe as marcas de sua construção, isto é, não percebe

que a narrativa é construída por um autor (ou por uma instância narrativa real, no caso do cinema, que é

feito, em colaboração, por muitas pessoas), que a narrativa tem uma materialidade. Na narrativa transparente,

a história parece se contar sozinha, de forma natural, autônoma, e o universo diegético parece muito real ao

leitor: como se houvesse mais do que está sendo mostrado, como se os personagens tivessem uma existência

real entre as cenas, agindo sem ser vistos pelo leitor.

23 CAGNIN, Antonio Luiz. Os Quadrinhos. São Paulo: Ática, 1975.

24 Outra função desta imagem em perspectiva tão inusitada é trazer interesse visual à história e dinamizá-la,

como explicamos acima.

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25 Segundo Jacques Aumont, com o advento da fotografia, percebeu-se que não há um instante único que

sozinho possa representar a história como um todo; que não há um instante que seja mais importante do que

os outros; cada um é um instante qualquer. AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas, SP: Papirus, 2002.

26 COHEN, Haron; KLAWA, Laonte. Os Quadrinhos e a comunicação de massa. In: MOYA, Álvaro de et alli.

Shazam!. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977.

27 Esta descrição em palavras coincide exatamente com a imagem de Marilyn Monroe em Os homens preferem

as loiras (1953), símbolo absoluto da beleza, sensualidade e atratividade. O corte de cabelo e o figurino são

diferentes, reflexo de épocas diferentes.

28 Apud Cagnin (1975, p.77).

29 Isso é facilmente percebido no caso de imagens cômicas, cujas descrições nem sempre têm graça.

30 Em seu texto A Ilusão Biográfica, Pierre Bourdieu escreve (a respeito dos relatos biográficos, mas isto se

aplica à forma como concebemos a vida em geral) que uma vida pode ser apreendida como expressão de uma

“intenção” subjetiva e objetiva, de um projeto. Nos relatos, a vida é organizada como uma história, segundo

uma ordem cronológica, mas também lógica, “desde um começo […], no duplo sentido de ponto de partida,

de início, mas também de princípio, de razão de ser, de causa primeira, até seu término, que também é um

objetivo.” (2006, p.184). Segundo Bourdieu (2006), o relato autobiográfico se baseia, pelo menos em parte,

na preocupação de se extrair um sentido, uma lógica retrospectiva e prospectiva, de uma vida. No relato,

estabelecem-se relações inteligíveis entre os estados sucessivos (como a de causa e efeito), percebidos como

etapas de um desenvolvimento necessário. São selecionados certos acontecimentos considerados

significativos, e conexões são estabelecidas entre eles para lhes dar coerência, em uma criação artificial de

sentido. Ainda que não cheguemos a escrever uma autobiografia, é comum esta busca de um sentido não

apenas ao nos lembrarmos do percurso de nossas existências, como ao projetarmos nossas vidas, ao

pensarmos no futuro. Deste modo, selecionamos os momentos que consideramos relevantes para nossa

história. Os “tempos mortos” de nosso cotidiano ficam inteiramente em segundo plano – são considerados

insignificantes, não fazem parte do projeto, do sentido que acreditamos que nossas vidas possuam.

Voltando à questão da história de vida, de ver a vida como uma história, isto é, “como o relato coerente de

uma sequência de acontecimentos com significado e direção” (BOURDIEU, 2006, p. 185), talvez seja,

segundo Bourdieu, conformar-se com uma ilusão retórica, um modo de representar a existência bastante

comum, reforçada por toda uma tradição literária. Bourdieu afirma que é significativo que o abandono do

modo de estruturar um romance como um relato linear tenha acontecido na mesma época em que houve o

questionamento da visão da vida como uma existência com significação e direção. Ele cita Allain Robbe-

Grillet: “o advento do romance moderno está ligado precisamente a esta descoberta: o real é descontínuo,

formado por elementos justapostos sem razão, todos eles únicos e tanto mais difíceis de serem apreendidos

porque surgem de modo incessantemente imprevisto, fora de propósito, aleatório”.

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